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ADRIANO MOREIRA
REFLEXÕES
FICHA TÉCNICA
TITULO:
Reflexões
AUTOR : Adriano Moreira
NOTAS INTRODUTÓRIAS:
Maria Salomé Pais, Viriato Soromenho Marques,
Alberto Araújo
EDITOR : Academia das Ciências de Lisboa
GRÁFICA
Pimenta Indústria Gráfica, Lda.
CONCEPÇÃO GRÁFICA:
João Fernandes Susana Marques
ISBN: 978-972-623-123-3
ORGANIZAÇÃO
Academia das Ciências de Lisboa
R. Academia das Ciências, 19 1249-122 LISBOA
Telefone: 213219730 Correio Eletrónico: [email protected]
Internet: www.acad-ciencias.pt
Coyright © Academia das Ciências de Lisboa (ACL), 2012. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, por qualquer meio, sem autorização do Editor
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ADRIANO MOREIRA E O INSTITUTO DE ESTUDOS
ACADÉMICOS PARA SENIORES (IEAS) DA ACADEMIA DAS
CIÊNCIAS DE LISBOA
O Instituto de Altos Estudos (IAE) da Academia das
Ciências de Lisboa (ACL), no qual se integra o Instituto de Estudos
Académicos para Seniores (IEAS), foi criado em 1931 por proposta do
Sócio Efetivo da Classe de Letras, Moses Bensabat Amzalak,
apresentada na sessão plenária de 4 de Junho, por se sentir a
necessidade de fazer progredir a investigação científica em Portugal,
iniciativa que mereceu imediato apoio do então Presidente Júlio
Dantas.
Na altura, “a ACL sentiu a necessidade de criar cursos
livres que, a par com as Universidades, permitisse a coexistência de
ensino pós-universitário e supra-universitário cujo único objetivo era
fazer progredir a ciência através de estudos e investigações pessoais”.
Estes cursos eram professados por académicos ou por
personalidades convidadas de reconhecido mérito, externas à ACL
(regulamento IAE, art. 2º).
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O programa de cursos livres foi iniciado no ano académico
de 1931-1932, com uma lição proferida a 5 de dezembro de 1931, no
Salão Nobre da ACL, por Joaquim de Carvalho sobre a obra de
Spinoza, a qual teve considerável impacto na vida intelectual do País.
Entre 1931 e 1978, no âmbito do Instituto de Altos Estudos,
foram organizadas com alguma regularidade, conferências versando
temáticas muito diversas, nomeadamente:- agricultura, ciências
jurídicas e administrativas, direito, economia, filosofia, história,
literatura, matemática e relações internacionais em que participaram
sócios efectivos e correspondentes, e cientistas não académicos de
destaque nacional e internacional, como era lema do IEA. Entre 1979 e
2008, o IEA, por razões desconhecidas, deixou de ter um programa
regular de conferências, tendo, ao que pudemos apurar, ocorrido 2 ou
3 colóquios nas áreas das ciências e das humanidades.
Em 2008, Adriano Moreira é eleito Presidente do Instituto de
Altos Estudos. Como Presidente, imprime ao Instituto de Altos
Estudos uma nova dinâmica na qual se integram, como no passado,
conferências e colóquios sobre temáticas das mais variadas áreas das
humanidades e das ciências exatas e naturais, proferidas e organizadas
por académicos e cientistas de renome internacional.
Adriano Moreira, sempre atento aos fenómenos políticos e
sociológicos no mundo globalizado do século XXI e, em particular no
seu País, conhecedor da necessidade de dar resposta às novas
exigências de articulação das gerações, num movimento dinamizador
do IAE criou, em 2010, o Instituto de Estudos Académicos para
Seniores (IEAS) com o objetivo de corresponder à necessidade de
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adaptação contínua dos idosos às mudanças aceleradas da época atual
em que os media e a internet aceleram a capacidade de interação e de
diálogo. Pouco depois, Adriano Moreira criava, também, o Seminário
de Jovens Cientistas.
Ao criar o Instituto de Estudos Académicos para Seniores,
Adriano Moreira assegura aos seniores (maiores de 50 anos) uma
ligação com o avanço da sociedade da informação e do saber,
permitindo que tal grupo se mantenha ativo e participante no
acompanhamento dos avanços científicos e tecnológicos, e das
mudanças culturais que exigem compreensão inter-geracional.
Assim, a Academia das Ciências de Lisboa, através do IEAS,
assume, tal como outras congéneres a nível mundial, um dever cívico
ao intervir nesta área tão desafiante da evolução do saber e das
exigências de articulação geracional, o que implica uma definição de
trabalho, sujeito a experiência, que esteja de acordo com a sua
especificidade institucional.
O primeiro curso do IEAS teve início em Outubro de 2010,
decorrendo atualmente o 3º ano letivo (2012-2013). É particularmente
importante salientar o extraordinário contributo de Adriano Moreira
na apresentação e discussão de temáticas de enorme atualidade e
interesse nacional e internacional. As cerca de 200 conferências e cinco
seminários em áreas que vão da cidadania à governança, passando
pela biologia, saúde, e ambiente, de entre outras, proferidas, nos 2
anos passados, por personalidades de grande mérito que, apesar das
carregadas agendas têm generosamente, dado ao IEAS a sua
colaboração, permitiu aos maiores de 50 anos e aos mais jovens, uma
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verdadeira oportunidade de valorização sem constrangimentos
económicos ou de qualquer ordem. Tal movimento tem igualmente
permitido que a ACL tenha vindo a contribuir, de maneira regular,
para a divulgação da cultura artística através de concertos ou outras
atividades culturais.
Chegou a altura de reconhecer a extraordinária visão
estratégica de Adriano Moreira e o seu empenho na vivência e na
consolidação desta iniciativa, pelo que o IEAS decidiu prestar-lhe
homenagem, materializada na nova designação deste Instituto como:
Instituto de Estudos Académicos para Seniores Adriano Moreira.
Maria Salomé S. Pais1
1 Diretora do Instituto de Estudos Académicos Para Seniores
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ANTECIPAR E CUIDAR DO FUTURO
A ORIGEM das Academias das Ciências nos mais diversos
países europeus terá tido na imaginação dos Modernos a sua força
propulsora. Francis Bacon começou a escrever a sua New Atlantis –
uma obra utópica sobre o papel da ciência e da técnica na
reorganização das sociedades humanas – por volta de 1623. De acordo
com algumas pistas biográficas, esse impulso para tornar visivelmente
dramáticas as expectativas de um novo mundo, onde a tecnociência
elevasse a uma escala nunca testemunhada o “império humano” sobre
a Natureza, teria nascido, como reação imediata, a partir do contacto
que o sábio britânico tomou com a edição da Civitas Solis, do infeliz
Tommaso Campanella, obra que havia sido dada à estampa, em
Frankfurt, também nesse ano de 1623.
Tanto Bacon como Campanella partilharam uma visão épica
acerca do valor da ciência como catalisador da história humana.
Ambos acreditavam que o seu uso libertaria a humanidade da
superstição, da doença, da pobreza, e de muitas outras modalidades
de indignidade a cuja sujeição a sempre frágil condição humana parece
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condenada. Como sempre ocorre, os grandes fundadores tendem a ser
imitados com exagero. A desmesura mimética do otimismo científico
tornou-se numa ideologia fáustica, numa estratégia de relacionamento
com o mundo que não hesitou em prescindir da verdade em prol do
incremento do poderio, mesmo que essa predominância sobre as
coisas não passasse de um efémero simulacro de sucesso, destinado a
terminar de modo catastrófico.
De onde vem a ameaça, vem também o que salva, como nos
recordam os imortais versos de Hölderlin. As Academias das Ciências
foram e são, também, o lugar onde a procura da verdade tem lugar
contra a lógica dos interesses e das conveniências. Contra o sanguíneo
entusiasmo das correntes mais fáusticas, as ciências europeias
acusaram sempre a resistência e o primado dos mais modestos
seguidores de Prometeu. A procura de uma vida humana plena e
realizada exige uma ampla compreensão dos limites materiais e das
condições naturais de possibilidade que a ontológica inserção da
humanidade na nossa casa planetária exige. Trata-se de uma exigência
teórica e prática. Um desafio para respeitar e construir dentro dos
nossos limites matriciais que é lançado aos nossos sistemas de
conhecimento, mas também às nossas tecnologias e aos nossos
modelos de governação. Não há vida sem esperança no futuro. Mas só
as esperanças alimentadas pela prudência e moderadas pela sabedoria
podem garantir à nossa habitação da Terra não só a dimensão espacial,
mas, sobretudo, a duração no tempo.
A Academia das Ciências de Lisboa pertence, desde a sua
fundação, à grande corrente do saber com prudência. Ela foi, desde a
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sua origem, o lugar onde se desenvolveu uma consciência
universalista das ciências, onde se praticou a cooperação
interdisciplinar, mesmo antes deste conceito circular nas revistas e nas
conferências das diversas escolas. Na linha de rumo de um Abade
Correia da Serra, a Academia das Ciências de Lisboa caracterizou-se
pela compreensão da responsabilidade social das ciências. Uma
responsabilidade que jamais se confundiu com troca de papéis em
relação aos atores políticos e económicos que, nas suas esferas
próprias, modelam o rumo das sociedades.
NÃO PODERÍAMOS encontrar exemplo mais vibrante desse
estilo próprio de vincular as ciências e a sociedade, posto em prática ao
longo dos séculos pela Academia das Ciências de Lisboa, do que o
longo magistério académico do Professor Adriano Moreira, como esta
obra bem o testemunha. Quem quiser perceber o princípio
fundamental que orienta o pensamento de Adriano Moreira sobre o
papel das Academias e das Universidades, bem como sobre a missão
do ensino superior, teria de recuar mais de meio século, até um texto
notável publicado em 19662. Não partilhando o otimismo
desmesurado, reinante nesse tempo, Adriano Moreira propunha uma
reorganização global do ensino, através da introdução de um
Ministério da Ciência e Educação, substituindo o Ministério da
Educação Nacional, mas evitando a pulverização da investigação
científica. Propunha também a necessidade da Universidade vencer o
2 Adriano Moreira, “Para um Ministério da Ciência”, Estudos Políticos e Sociais, Revista trimestral do Instituto superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, Lisboa, Volume IV, n.º 4, 1966, pp. 1241-1253.
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“complexo de Savanarola”, a recusa em vislumbrar o futuro. Pelo
contrário, numa sociedade percorrida por novas e velhas ameaças, o
saber deveria ser, cada vez mais, um esforço organizado visando a
antecipação do futuro. Essa era, aliás, uma das razões principais para a
aposta no desenvolvimento das ciências sociais, de que Adriano
Moreira seria um dos mais importantes pioneiros em Portugal.
Antecipar o futuro seria a missão académica por excelência,
encaminhando as ciências e as técnicas para uma relação de simbiose
com a natureza, em superação do modelo ainda prevalecente do
domínio e da conquista. Cuidar do futuro seria a tarefa dos
verdadeiros estadistas, articulando a linguagem e lançando as bases
institucionais da cooperação regulada, como inevitável ultrapassagem
do léxico da guerra e do conflito, apenas possível quando o mundo
parecia infinito e a marca telúrica da humanidade era praticamente
irreconhecível.
Mas o que transforma Adriano Moreira numa inconfundível
personalidade da história contemporânea de Portugal é a intrínseca
unidade de propósito entre obra e vida, a absoluta coerência entre o
pensar e o agir. Sobre ele ninguém poderá afirmar que a sua obra
transcende em muito a sua vida. E isso não porque a sua obra não
tenha sido, e continue a ser, valiosa. Mas, pelo contrário, porque as
iluminações e inspirações do seu pensamento encontram plena
correspondência nos atos e apostas da sua vida, em todos os seus
domínios públicos e privados, ela própria desenvolvida como uma
verdadeira obra de arte, sujeita a sucessivos processos de alteração e
aperfeiçoamento.
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Em Adriano Moreira o rigor metodológico do cientista social
harmoniza-se com a integridade do cidadão, calibrando a sua
liberdade como ator político no quadro de uma exigente ética pública.
Nele não cabem os estados de alma, aludidos por Max Weber, sobre
“as forças diabólicas” que se agitam na química interior das almas a
quem a história concede uma oportunidade na navegação do destino
coletivo dos povos. Chamado a dar o seu esclarecido contributo numa
das horas mais dramáticas e sangrentas do Portugal do século XX,
ofereceu-se de corpo e espírito ao projeto de um país capaz de vencer a
fatalidade e a decadência consideradas inevitáveis. Mas, senhor de um
raro domínio de si próprio, soube perceber os limites, identificar
aquela linha vermelha que separa o que podemos e devemos fazer, de
uma zona de caos e sombras onde podemos deitar tudo a perder
dentro de nós próprios.
Nesta nova época crítica da marcha coletiva de Portugal,
Adriano Moreira continua a inspirar-nos. Na noite mais longa, no
eclipse mais demorado é sempre preciso alguém que recorde àqueles,
e são a maioria, que o ciclo da luz regressará, se soubermos cultivar a
paciência indispensável a uma informada esperança. Bafejado por uma
vitalidade física tão generosa como a frescura crítica da sua
inteligência, o Professor Adriano Moreira continua a dar a Portugal o
maior dom que todos temos no mais profundo da nossa identidade, o
dom de nós próprios. Numa agenda povoada por conferências,
seminários, provas académicas, apresentações de livros, reuniões de
comissões e conselhos, este Académico ilustre, indiferente à
omnipresente expansão da “esfera das transações”, continua a oferecer
de si sempre o possível, que é sempre o melhor. Na verdade, Adriano
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Moreira recorda-nos que uma nação jamais perecerá enquanto seja
capaz de produzir uma aristocracia. Não uma nobreza ditada por
cartas genealógicas, mas sim uma aristocracia do conhecimento e da
ação. Homens e mulheres sempre prontos a rumar em direção ao
futuro, antecipando-o por palavras e por ações, não hesitando em
arriscar por mares nunca dantes navegados.
Viriato Soromenho Marques3
3 Sócio Correspondente da Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa
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HOMENAGEM AO PROF. DOUTOR ADRIANO MOREIRA
A religião canoniza os seus santos. A sociedade homenageia os seus
heróis. Hoje, o Instituto de Estudos Académicos para Seniores (IEAS) presta
viva homenagem ao Professor Doutor Adriano Moreira.
Santos são aqueles crentes cuja vida atinge os níveis mais exemplares
ou inspiradores de ética e de moral, de todas as virtudes que possam
dignificar a existência humana. Heróis são os cidadãos que dedicam a vida a
notáveis empreendimentos ao serviço da sociedade. O Homem ou a Obra que
é o Prof. Doutor Adriano Moreira é de todos conhecido: amigos, alunos que
são agora professores, profissionais, políticos, admiradores desconhecidos da
CPLP, de Goa/Damão/Diu, de Macau, enfim, dos recantos lusófonos
espalhados pelo Mundo, onde raro Visitante português se encontrou
lusodescendentes e colocou uma coroa de flores na campa dos seus
antepassados; admirador pessoal desde as décadas de 50 e desde a juventude
dos colegas que constituem a atual liderança da última Província
descolonizada do espaço mundial lusófono. Fazemo-nos eco de Nuno Melo
no jantar de homenagem pelo 90º aniversário da figura a quem o IEAS, hoje,
tem o privilégio de prestar homenagem, jantar organizado pelo Diário de
Notícias, em 07 de Novembro do corrente ano 2012: “Adriano Moreira “é uma
referência incontornável do século XX e do início do século XXI; uma história
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viva e uma referência que tem motivado gerações; um exemplo seguido por
muitos, mesmo dos outros partidos.”
A Wikipedia permite-nos uma imagem do atual Presidente da
Academia das Ciências de Lisboa e do Conselho Geral da Universidade
Técnica de Lisboa: “aluno brilhante; estadista, político, deputado, advogado
jurisconsulto, internacionalista, politólogo, sociólogo e professor;
subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, em 1959, ascendendo
depois a ministro do Ultramar, em 1961; opositor da portaria que reabriu o
Campo do Tarrafal, em Cabo Verde, desta vez destinado aos presos dos
movimentos de libertação das colónicas: Salazar manifestou-lhe
posteriormente que não podia concordar com várias das suas políticas,
afirmando-lhe que mudaria de ministro se não as alterasse; segundo conta o
próprio Adriano Moreira, este então comunicou-lhe que “Vossa Excelência
acaba de mudar de ministro”. O autor do artigo continua com uma amostra
do que que o PROFESSOR pensa, escreve, diz e faz pela sociedade: legado
teórico-metodológico, cargos políticos, méritos e condecorações, principais
obras, biografia. O autor da notícia sobre a homenagem organizada pelo
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de
Lisboa, diz: “Aos 90 anos, Adriano Moreira (…) É considerado um dos
"senadores" da sociedade portuguesa. Apesar das suas incursões políticas, diz,
no entanto, preferir ser reconhecido como "académico" ((ISCSP-UTL,
27set2012, Fonte, Lusa/Google). “Portugal precisa de um «Governo de
gabinete», onde o primeiro-ministro não veja diferença de partidos nos
ministros à sua volta. (Por ocasião de uma conferência sobre ‘O Estado e a
Competitividade da Economia portuguesa’, organizada pela Antena 1 e Jornal
de Negócios, em 16out2012). Pretender citar aqui os inúmeros marcos que
fazem do “Académico” um herói e acrescentar a este panorama as citações
dos seus admiradores é fazer como a criança que pretendia meter num
buraquinho da praia toda a água do mar.
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A 18 de Outubro de 2012, cria o Instituo de Estudos Académicos para
Seniores (IEAS), tendo como cofundadora e Diretora a Profª. Doutora Maria
Salomé Pais. O testemunho vivo de todos aqueles que, desde esta data, têm
estado presentes nas conferências, todas as segundas, terças e quartas-feiras
não pode não ter um significado muito especial. Ouvir o PROFESSOR nas
suas conferências e tê-lo entre nós, sempre que lhe tem sido possível, nas
outras conferências, tem-nos permitido um autêntico privilégio. Por trás, ou
ao lado, do Homem tão conhecido por todo o público, sentimos um homem
chamado Adriano Moreira, onde os opostos se aproximam ou se unem:
professor e aluno, sabedoria e saber, grande e simples, cientista e humano,
formal e amigo, tão elevado e tão próximo: Adriano Moreira é mais do que
tudo o que está escrito e feito; tem o lado invisível, fonte do surpreendente
que em cada dia e em cada contexto se vai revelando. Uma destas revelações,
que nos prendeu a atenção, é o que afirmou numa das recentes conferências:
“Portugal necessita de VISIONÁRIOS”: e ele próprio é um dos incontornáveis
Visionários. Conhece o Povo Português do passado, conhece em
profundidade e em largura a crise portuguesa, europeia e mundial; e não só
faz apelos como procura inspirar a nova geração para o futuro.
Na conceção do IEAS estão presentes dois projetos, em resposta às
novas exigências de articulação inter-geracional: criação de Academias de
Jovens Cientistas; formação contínua dos adultos e idosos (maiores de 50
anos) em ordem à sua adaptação “às mudanças da época atual em que os
media e a internet aceleram a capacidade de interação e de diálogo”. Ao
colocar lado a lado os Seniores e os Jovens Cientistas, a Academia das
Ciências de Lisboa, aposta na memória do passado, no domínio do presente e
na atenção perante o futuro, no sentido de os atores estarem preparados e
atentos para realizar ou orientar as potencialidades e a construção do futuro.
Nas antigas culturas os Seniores constituem os Conselheiros da Comunidade,
com o seu saber e sabedoria herdados dos antepassados e trabalhados pelos
próprios. Nas novas culturas, nomeadamente ocidentais ou ocidentalizadas,
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ser Sénior tem significado estar ultrapassado, inadaptados aos novos tempos,
incapacitado para o ritmo das novas competitividades económicas e
financeiras, incapaz de empregabilidade; são consumidores não produtores
que pesam na estratégia e na política de desenvolvimento e de
competitividade nacional. Os Seniores da Academia das Ciências de Lisboa e
de tantas outras academias nacionais, desde o nonagenário fundador do IEAS
aos conferencistas, professores catedráticos no ativo e jubilados, estão a
demonstrar precisamente o contrário. O ACADÉMICO por excelência está a
demonstrar que o caminho do futuro é conhecer bem e objetivamente o
passado, pelo menos para evitar os erros cometidos, não repetir simplesmente
as verdades já formuladas ou não pensar que se é autor de novas descobertas,
que já foram descobertas no passado, ou levantar como novas questões que já
foram colocadas desde há séculos, desde os pré-socráticos e talvez seus
antecessores, há mais de 26 séculos. Noutros termos, o sistema
educativo/formativo deve ter como paradigma que: todo formando deve ser
um formado e todo o formado deve ser um formando.
O IEAS está no 3º ano de existência. As conferências dos dois
primeiros anos mostram bem a excelência do projeto IEAS e do sonho dos
seus fundadores. Seminários, teatro, concertos, canto, visitas de estudo a
museus e outros espaços, 140 conferências sobre temáticas sobre a estratégia
veiculadora de construir o futuro, compreendendo e resolvendo as questões
do presente e tendo presente o passado. Consultando a lista dos
conferencistas no Sítio http://www.acad-ciencias.pt, “Atividades IEAS, e os
respetivos currículos no Google, podemos constatar o elevado nível de
experiência científica e pedagógica dos conferencistas ou professores. Mas, há
vertentes que estão para além do “poder da palavra” escrita e/ou publicada
no Sítio ou através de outros meios, esse outro poder ou riqueza humana que
só se pode entrever através da comunicação ou do diálogo presencial,
repetindo, às segundas, terças e quartas-feiras, das 17h00 às 19h00 ou mais, na
Sala/Aula Maynense, fundada pelo Padre José Mayne em 1792 onde “estava a
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nascer o Ensino de qualidade, abrangendo nomeadamente as Ciências
Naturais, Física, Química e Astronomia, em Lisboa, apesar de obstáculos
ativos. Para mais, foi aí criado o ensino da Língua Árabe, este em relação com
outro vulto eminente, o depois Arcebispo de Évora Frei Manoel do Cenáculo.”
(Fonte: Notas sobre Academia das Ciências de Lisboa, Google).
Nesta Aula histórica e inspiradora, tivemos a excecional experiência e
privilégio de ouvir as profundas conferências do “ACADÉMICO” e de poder
esclarecer as nossas dúvidas e preocupações, sonhos e propostas face aos
inevitáveis desafios que se colocam à Nação na presente conjuntura de crise
nacional, europeia e mundial. Foi precisamente com este tema – “DESAFIOS
PARA PORTUGAL” - que, na cerimónia de apresentação pública do IEAS, em
18 de Outubro de 2010, o Prof. Doutor Adriano Moreira abriu a série de
conferências e de atividades. Seguiram-se “Nunca é Tarde para o Homem”
(Junho de 2011, ver Google e Docs. IEAS); “Dias Sem Ocaso” (10out2011,
Ibidem); “Direitos e Deveres Humanos e Paz Social” (ibidem); “Portugal e a
Geopolítica da Interculturalidade” (31out2011, ibidem); “Projeto Político dos
Lusíadas” ( 17jan2012, ibidem); “Conhecimento e Sabedoria na Europa do
Século XXI” (09out2012, ibidem); “Política e Ciência Política” (17out2012,
ibidem). Mas, repetindo, nada melhor que ouvir e estar com o
“incontornavelmente” e excelente “Académico”. Fica o pessoal convite e
certamente também dos colegas do IEAS.
As conferências são dirigidas a uma plateia de número variável em
cada sessão. Por outro lado, abrangem não apenas os presentes mas também o
universo ilimitado de interessados, desde os congéneres espaços de formação
espalhados por todo o país aos outros existentes na Europa e no Mundo. Os
textos e os vídeos, publicados através do Sítio da Academia atrás referido,
constituem objeto de partilha de conhecimentos e experiências entre o leque
universal de interlocutores. Neste leque, está incluída a nova geração, cuja
presença nos debates tem inestimável importância para a construção da
ciência e da nação. Representam recursos de formação contínua e de
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autoformação. Neste sentido, o IEAS foi concebido pelos fundadores para o
serviço da sociedade ou, no fundo, de cada pessoa, até ao limite máximo de
suas capacidades físicas e mentais. ESTA HOMENAGEM REPRESENTA UM
DEVER DE CIDADANIA.
Na intenção pessoal, estas últimas palavras são também as primeiras. Quero
agradecer à Cofundadora do IEAS, Profª. Doutora Maria Salomé, o elevado
privilégio que me foi dado para representar os sentimentos dos colegas nesta
HOMENAGEM.
Alberto Araújo4
4 Aluno do Instituto de Estudos Académicos Para Seniores
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DESAFIOS PARA PORTUGAL
Sessão Inaugural do IEAS 18 de Outubro de 2010
Portugal foi de regra um país dependente de fatores externos, decidido
a procurar fora do território matricial apoios políticos e recursos materiais que
habilitassem o Estado a desempenhar as funções e realizar os objetivos do seu
conceito estratégico variável em cada época.
Logo na fundação procurou o apoio da Santa Sé; desde a primeira
dinastia que as relações com os poderes europeus foram objeto de cuidado, e a
necessidade de a soberania ir adquirir os fundos estruturais indispensáveis
mudou mais de uma vez de sentido, mas sem afetar a permanência da
determinação.
Digamos que a definição jurídica, também variável no tempo, do sistema
político foi tendencialmente mais restrita do que o próprio sistema que inclui
elementos exteriores à soberania, especificamente as alianças, das quais a mais
duradoira é a inglesa, que no século vinte foi a NATO, para depois de 1974 ser
a Europa em formação.
É por outro lado certo que durante séculos o modelo político foi o da
cadeia de comando, com o regime monárquico a colocar o Rei no topo de um
povo em armas durante toda a longa dinastia da reconquista, depois o povo
deitado a longe na dinastia da expansão marítima, com D. João II a amarrar ao
leme a mão do marinheiro de Pessoa, para finalmente, com o desastre de
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Alcácer Quibir, se desagregar a cadeia de comando, e logo o Estado, e finalmente
a desamparada sociedade civil. O sebastianismo recorrente, ainda por vezes
presente na interpretação existencial do modelo constitucional em que
vivemos, guardou a memória dessa cadeia de comando. Em mais de uma
crise animou o carisma de interventores eventualmente vistos no modelo do
Presidente-Rei, que mais uma vez Pessoa julgou reconhecer em Sidónio, e que
talvez fosse a inspiração de Mouzinho quando proclamou que este Reino é obra
de soldados, no tempo em que Antero dirigia os olhares para a Europa. É do
livro do nosso desassossego que ambos se tenham suicidado.
Assim como a Índia foi uma deslumbrante origem de fundos
estruturais, o esgotamento do modelo encontrou substituto no Brasil das
ilusões, e mais tarde, perdida ali a soberania, no arranque para África depois
da Conferência de Berlim de 1885.
A permanência deste conceito estratégico, de conteúdo variável, e com
invariável dependência de fatores externos, teve numa diplomacia de
excelência um instrumento fundamental, e no apego da nossa diáspora às
raízes um suplemento do amor pátrio e de remessas das poupanças.
A Revolução de 1974 foi um ponto final no Império Euromundista de
que éramos parte por responsabilidade histórica fundadora, mais uma vez os
condicionamentos externos foram determinantes, mais uma vez foi necessário
reequilibrar o sistema político nacional com uma amarra externa, a qual foi a
nova Europa sem qualquer outra escolha. Por leitura apressada, um alto
responsável político anunciou por então as novas caravelas portadoras dos
fundos estruturais europeus, sem reparar em que nestas não estava qualquer
contribuição dos pinhais de D. Diniz, e amarrados os críticos ao Velho do
Restelo, com o equívoco de não reconhecer no personagem o primeiro dos
europeístas, contrário como foi à decisão de deitar o país a longe.
A severa crise com que entramos no terceiro milénio, esgotado o
conceito estratégico nacional secular, também parece finalmente despertar a
compreensão de que a conjuntura é radicalmente nova em relação à
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experiência secular, que as exigências dirigidas à capacidade do Estado
ameaçam colocá-lo na categoria de Estado exíguo, quer na definição em
progresso das hierarquias internas da Europa, quer na hierarquia da Europa
nas balanças de poderes mundiais, balança estratégica, balança científica e
técnica, balança económica. Assim como o Império Euromundista teve o seu
ponto final, assim como o conceito histórico português se esgotou com a
derrocada daquele, assim agora o desafio europeu é coletivo, a recuperação da
Europa dos desastres das suas guerras civis interiores depende
reconhecidamente de solidariedades funcionais das várias soberanias. E por
isso Portugal está estruturalmente envolvido no processo europeu, e inscrito
na Europa que ela, ainda com definição incerta, está envolvida no turbilhão
do globalismo que colocou todas as áreas culturais do mundo a intervir no
processo com independência política.
É uma novidade estar Portugal envolvido na primeira linha das
contradições do processo interno europeu, com a evidência de que, por
experiência passada, é a capacidade diplomática que exige reforço e
criatividade para estar nos centros de decisão, e não ser apenas destinatário
dos efeitos das decisões em que não participa. É pela participação respeitada
nessa gestão do interesse comum europeu que pode conseguir apoio à reserva
de um espaço de liberdade para agir em favor do vasto património de
presenças que espalhou pelo mundo.
Para responder à exigência de reinvenção de um conceito estratégico
nacional renovado, é prioritária a meditação sobre as capacidades reais do
Estado, e sobre a coerência da sua relação com a comunidade nacional.
Nesta rede de exigências, acontece que muitas referências históricas
estão ultrapassadas: a fronteira geográfica é hoje simples apontamento
administrativo vista a livre circulação europeia; a fronteira de segurança é a
da NATO; a fronteira económica é a da União; a livre circulação de pessoas e
o descontrolo das migrações reconstituem uma composição populacional que
recorda a época em que os Reis de Portugal eram os Reis das três Religiões,
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com todas as dificuldades inerentes; a cidadania desdobra-se em fidelidades
múltiplas, que se especificam na fidelidade ao Estado português, na fidelidade
à Europa em formação, e na fidelidade aos interesses comuns da
Humanidade, fidelidades nem sempre fáceis de relacionar coerentemente: é
uma exigência do novo conceito estratégico nacional a formular proceder à
racionalização do pluralismo cultural que regressou às nossas problemáticas
do futuro, e assegurar a coerência das fidelidades múltiplas desafiantes.
Não é possível assegurar o desenvolvimento destas traves mestras sem
que uma vontade cívica consistente assuma a responsabilidade da escolha e
crítica das decisões políticas envolvidas, e sem que esteja assegurado que o
Estado não sofre do fenómeno de redundância que mais de uma vez se
verificou ao longo da história.
Infelizmente, o pessimismo frequenta excessivas vezes as nossas
circunstâncias de desafio, e nesta data multiplicam-se os textos de desânimo
em relação ao povo que somos, por vezes em relação ao povo que fomos.
Reeditam-se as Conferências do Casino, volta a circular o alarme de João de
Andrade Corvo (Perigos: Portugal na Europa e no Mundo, 1870), onde escreveu
estas palavras: “é grave a situação de Portugal. Confusão e incoerência nos
princípios, grande desordem nas finanças; enfraquecimento deplorável da
autoridade; falta de confiança na vitalidade do país, e nas suas faculdades
políticas e económicas; um desalento injustificável atrás do qual se esconde
um perigoso indiferentismo…”. Leia-se o de novo publicado trabalho de
Augusto Fuschini, O Presente e o Futuro de Portugal (1899), onde se encontram
considerações semelhantes. Ou o desanimo de Eça de Queiroz (O Francesismo)
quando escreveu: “porque nós somos realmente o povo que se compraz em
estar quieto entre os choupais, a ver correr as águas meigas, pensando em
coisas saudosas. Fomos à Índia, é verdade, mas quase três séculos são
passados, e ainda estamos descansando, derreados, desse violento esforço a
que nos obrigaram alguns aventureiros que tinham pouco do fundo comum
da nossa raça…”. Tudo traduz o mesmo estado de espírito, que tarda em
23
reconhecer que alguma frequente necessidade, não assumida, de avaliar em
cada conjuntura a relação entre o Estado, a época, a sociedade civil, e o tempo
perspectivável, caracteriza a história política portuguesa, e desperta esta
angústia. Uma angústia que parece por vezes imaginar que a definição do
Estado, e da sua relação com o povo e a conjuntura, diz respeito a elementos
invariáveis na sua história. Ora aquilo que não parece fundado é desfiar uma
teoria intimista de pontos fracos da memória de existir do povo, evitando o
doloroso realismo de confrontar o Estado com a situação exógena que o
globalismo acentuou, para o redefinir com lucidez em termos de eliminar a
recuperada atualidade das palavras de Andrade Corvo. Em resumo, como
doutrina um renovado Fukuyama (State-Building, 2005), reconstruir a relação
entre a população e o Estado, a partir de uma consciência cívica assumida das
reais capacidades e da direção a seguir na conjuntura nova, por vezes
imprevista, de regra apenas conhecida pelo conjunto de efeitos colaterais que
a definem, e não foram antecipados.
Sugerimos que a vinculação à nova forma de ser Europa é um projeto
para a nova época posterior ao colapso do Império Euromundista, mas não é
um envolvimento português sem precedentes nas passadas formas de a
Europa se entender a si própria. Este facto desafiante e imperativo exige agora
a presença de Portugal em todos os centros de decisão, para não ser apenas o
destinatário delas. Tendo porém sempre presente a experiência da sua
valiosíssima história nacional, porque o esquecimento dela, e do que ensina,
facilita que o passado mais sombrio subitamente bata com estrondo à porta do
futuro, destroçando projetos e ilusões.
Por exemplo, não pode continuar a verificar-se a prática da política
furtiva europeia, que caracteriza muitos dos passos dados, com total falta de
participação da opinião pública informada e dos Parlamentos nacionais. Não é
recomendável que o alargamento europeu se faça, como se tem feito, sem
estudos e discussão assumida sobre a questão da governabilidade; não é da
prudência governativa que o alargamento das fronteiras se faça sem estudos e
24
discussão assumida sobre a garantia de obter uma fronteira de países amigos:
os pequenos países são os mais interessados em que o diálogo europeu seja
reestruturado, e essa é apenas uma das muitas razões que exigem a lembrada
revalorização da vertente diplomática.
A definição dos espaços em que tal intervenção necessariamente vai
decorrer tem uma exigência de opção que diz respeito ao conflito crescente
entre o americanismo e o europeísmo, com referências simplificadoras que
vinculam os EUA a Marte e os europeus a Vénus.
Passando por alto os erros do unilateralismo americano, e o
despropósito de alguma pontual arrogância de europeus, as novas ameaças
globais, sobretudo a partir do 11 de Março, aconselham todos, e sobretudo os
pequenos países, entre estes aqueles que pela história dos ocidentais e pela
geografia estão na frente atlântica, a intervir para impedir que se reproduza
agora nesse mar a desastrada experiência europeia de os Estados não terem
vizinhos, mas sim inimigos íntimos. Para Portugal, a solidariedade atlântica
coloca-o na centralidade dos interesses ocidentais, enquanto a rutura agrava o
risco do agravamento da condição periférica, que já nos inquieta.
Temos por suficientemente experimentado que aquela perspetiva da
articulação a Marte e a Vénus estimula irracionalismos unilateralistas, como se
passa com o anúncio francês de um novo conceito de utilização das armas
estratégicas, no passado tidas para não serem usadas mas sim para assegurar
contenção recíproca dos Blocos, agora anunciadas para serem
ameaçadoramente usadas na defesa de interesses próprios, designadamente
energéticos.
Nesta perspetiva de solidariedade atlântica se articula a manutenção
de uma janela de liberdade governativa e soberana, para desenvolver a
política que recebeu forma na CPLP. É uma vertente que envolve articulação
da segurança do Atlântico Norte com a segurança do Atlântico Sul, reconhece
25
a importância dos Arquipélagos portugueses, e também de Cabo Verde, que
ajuda a renovar e modernizar a solidariedade do Brasil, que presta ao
globalismo o serviço da solidariedade horizontal dos povos de língua
portuguesa. E valoriza também a solidariedade das comunidades espalhadas
pelo mundo, as quais, ainda que não falando a língua, não esquecem as raízes
e os laços com um Portugal que por ali passou no exercício da soberania, ou
na função de pregar a todas as criaturas, ou simplesmente instalando a
diáspora que é uma dimensão estruturante da presença de Portugal no
mundo.
Esta estrutura multifacetada implica que, se a competição económica é
hoje uma frente europeia e por isso também especificamente portuguesa, a
dimensão cultural vai acentuadamente para além do espaço europeu e
ocidental, com uma dimensão de liberdade que se destaca dos deveres de
cooperação dentro dos Tratados da União, da NATO, e da ONU, com
destaque para a cooperação militar que se desenvolveu com êxito no antigo
ultramar.
Daqui resulta a evidência de que, quer na frente interna europeia e
ocidental, quer na referida frente de liberdade, o objetivo da qualificação, o
ensino e a investigação, exigem uma mobilização prioritária. Talvez não seja
difícil reconhecer que as chamadas Declaração de Lisboa e Declaração de
Bolonha se conjugam para exigir políticas que tendem para o modelo das
políticas dos Estados unitários, e que as redes, embora contratualizadas,
ganham uma autonomia sistémica que constrange a liberdade residual dos
Estados. É por isso que, ao mesmo tempo que o objetivo de obter uma
competitividade que exceda a dos EUA arrisca afetar a solidariedade atlântica,
também a hierarquização qualitativa das universidades do espaço europeu e
ocidental ameaça impor a situação periférica às instituições dos pequenos
países, abrindo novos Caminhos de Santiago para sedes pouco numerosas
num centro ativo.
26
Trata-se de um desafio agudo, agravado pela longa falta de regulação
a que se entregou o Estado português, o qual despertou finalmente na data
em que uma crise financeira com pouco precedente alarga o risco de o fazer
evoluir para Estado exíguo. Trata-se de um risco que afeta quer o
desempenho no espaço europeu e ocidental, quer na citada área de liberdade
que outras antigas soberanias coloniais europeias ciosamente guardam, com
relevo para a França, a Inglaterra, a Bélgica, e a Holanda.
Pareceu-nos que as políticas de contenção não podem atingir esta
frente fundamental com critérios que ameaçam a mercadorização do ensino, o
enfraquecimento da investigação fundamental, a menorização das ciências
sociais em relação com o espaço definido principalmente pela língua. A língua
que, pela expansão, já não é nossa, é também nossa. Tão exigente identificação
e coordenação de interesses aponta para que as despesas com a investigação,
o ensino, e a promoção da área cultural, sejam consideradas despesas de
soberania, salvaguardadas da teologia de mercado que anda a contribuir para
relativizar os valores ocidentais, europeus e portugueses.
Portugal fez uma longa caminhada de séculos, certamente com pontos
fracos e pontos fortes na avaliação feita em cada nova conjuntura, mas o que
fica de permanente no património da Humanidade são as emergências em
que se inscreve a criação de novos países, entre os quais se destaca o Brasil, a
contribuição para que finalmente chegássemos a uma Declaração Universal
dos Direitos Humanos, a marca no direito internacional sobrevivente às
catástrofes militares, a doação da língua ao diálogo de milhões de seres
humanos, a inscrição de valores inovadores no património de áreas culturais
por onde passaram ou a soberania ou a evangelização, e a mundialização das
interdependências que desafiam agora as intervenções da globalização em
progresso. Na génese dos pontos fortes e dos pontos fracos dessa globalização
estão a intervenção e a responsabilidade portuguesas.
Não podemos ignorar o dever de continuarmos participantes nas
respostas, desenvolvendo o esforço indispensável para que essa participação
27
seja mundialmente válida e reconhecida. Começando por dar notícia de que o
património humano ocidental, europeu, e mundial, que se trata de preservar e
dinamizar, não é nosso. Mas também é nosso.
Acontece que no espaço europeu, a que pertencemos, se desenvolve
um movimento, que é apoiado pelas suas Academias, no sentido de contribuir
para o reforço desse património impedindo que se enfraqueça ou quebre o elo
de relação e solidariedade entre as gerações, um risco agudizado pela
velocidade crescente de alteração da circunstância envolvente das
comunidades, quer pela velocidade dos riscos que a nova polemologia tem
dificuldades em identificar, quer pelos avanços da ciência e da técnica que
alteram a relação com a natureza, com o passado, e com as perspetivas de
futuro, quer pela incidência erosiva nas relações familiares, quer pelas
inquietações específicas de cada ser com o mundo em mudança ao longo de
uma vida que inevitavelmente avança para um ponto final.
Também as Universidades estão a responder a tal desafio, cada
interventora com especifico conceito estratégico, também instituições privadas
anunciam o desafio, igualmente a nossa Academia responde com a vocação e
meios de intervenção ao seu dispor. Temos felizmente na Academia a vontade
cívica, o saber científico, e a determinação humanista, que nos asseguram a
dignidade e riqueza da intervenção que vai empreender nesta área, com
esperança fundamentadamente apoiada na qualidade dos intervenientes que
imediatamente se decidiram a dar a sua contribuição pessoal, rica, e
generosa.5
5 Este texto atualiza a comunicação feita à SHIP, em 25-05-2006.
28
NUNCA É TARDE PARA O HOMEM
Sessão de Encerramento do 1º Ano do IEAS 16 de Junho de 2011
Num livro altamente preocupante com o destino da nossa cultura
europeia e ocidental, e que o autor, William Ospina, intitulou (1994) Es tarde
para el Hombre, tem um capítulo intitulado El Canto de Las Sirenas, onde escreve
o seguinte: “Como o pai de Bude, a sociedade contemporânea parece
empenhada em impedir que os seus filhos se inteirem de que existem a
doença, a velhice e a morte. Ao menos no Ocidente corre uma espécie de
religião da saúde, da juventude, da beleza e da vida que contrastam com o
carácter cada vez mais danoso da indústria, mais mortífero da ciência e da
economia”. De facto, enquanto o século XIX, consumou até aos limites o
modelo da expressão imperial dos ocidentais, o século XX, que teve uma
duração curta entre duas guerras mundiais, terminou com o fenómeno não
programado do globalismo que submeteu todos os povos da terra à
submissão do credo do mercado, substitui o valor das coisas pelo preço das
coisas, deixou desabar esse edifício em escombros chamados crise mundial da
economia e das finanças, e, agonizante sob tais escombros, o sentido da
dignidade humana como valor paradigmático do encontro em paz e
cooperação de todas as áreas culturais. Ao contrário do que Ospina afirma ter
sido o sonho europeu do século passado, conclui que “hoje é uma necessidade
imperiosa adquirir ou recuperar a consciência de que o mundo é mais vasto e
mais rico do que nos quer fazer pensar a imagem uniformadora do capital”.
29
Justamente uma das riquezas do mundo, que a globalização remete
progressivamente para o esquecimento, é a solidariedade entre as gerações,
quebrada por vários fatores. Em primeiro lugar o predomínio do credo de
mercado, que inclui a crença de que os deuses anunciam agora o futuro pela
estatística. Enquanto as sociedades que o nosso orgulho ocidental considerou
necessitadas de recolher os modelos de comportamento e de pensar europeus,
entendiam que a morte de um velho, que continua a ser a meiga palavra que
reservam para os anciães, equivale ao desaparecimento de uma biblioteca,
agora, acompanhando a técnica tributária, os vivos são escalonados por
grupos de idade, o que, em vista do aumento da duração da vida, já obrigou a
sistematizar a quarta idade. Eduardo Frieiro, em O Cabo das Tormentas, informa
o seguinte: “perguntei certa vez a um velho negro que idade tinha. O negro
ancião sorriu com indiferença: nunca tivera idade”. Todavia o facto de os
deuses falarem pelas estatísticas, implica que também o conceito de que a
idade entre no âmbito do valor das coisas, seja anulado pelo peso da despesa
que a longevidade de cada escalão representa, não apenas para o Estado,
quando tem serviços adequados, também para as solidariedades familiares ou
comunitárias, e para os corolários dos valores do seu património imaterial que
se vai degradando ou redefinindo em face da nova circunstância. É difícil de
racionalizar a coexistência dos saberes que se destinam a prolongar a vida,
suscitando problemas graves à bioética, com a liberdade de dispor legalmente
dos limites à proteção dos nascituros, com a inquietação sobre como
proporcionar descendência aos frustrados pela natureza, tudo rodeado de um
aparato científico e técnico também cuidadosamente distribuído em função
dos custos e das correspondentes capacidades financeiras dos beneficiados.
Assim se foi escrevendo uma narrativa de separação das gerações, na qual os
vivos tendem não para recordar os mortos mas sim para esquecer os velhos
que teimam em viver e consumir, e que, na qualidade de velhos consumistas e
afluentes já não apelam à Nossa Senhora da Boa Morte, mas tem medo de
morrer incubados e em sofrimento. Tudo significa que o corte entre gerações
30
tem um traçado rigoroso, que do ponto de vista social, do tecido imaterial das
comunidades, tem cortes e soluções de continuidade, que atingem o
desenvolvimento sustentado, tributário do avanço das ciências e da técnica, e
das raízes sem as quais não existe paz e segurança na mudança inevitável da
circunstância de que cada geração é tributária. Foi a meditação sobre este facto
gritante, que fez dos avós um encargo em vez de uma referência, que nasceu o
movimento destinado a manter a anciania a acompanhar a corrente da
evolução do saber e do saber fazer, e as consequências diretas ou colaterais
sobre as escalas de valores, para que desse modo não cresça a mais severa dor
das idades que é a sobrevivência e a solidão. Sobrevivência aos que foram de
uma geração e maneira de viver, amar, e morrer; solidão em face de um
mundo novo que tende para ignorar as raízes, acreditando que o futuro é
anunciado pelas estatísticas. De facto, tentamos implantar o paradigma
segundo o qual cada pessoa é um fenómeno que não se repete na história da
humanidade, e que por isso o seu valor é inalterável na vida, e a sua memória
é um alicerce do futuro. É o que intenta a Academia das Ciências de Lisboa
com este curso.
31
DIAS SEM OCASO
Sessão de Abertura do 2º Ano Letivo do IEAS 10 de Outubro de 2011
Talvez a narrativa do envelhecimento tenha necessariamente de ser
múltipla, porque são diferentes: as perspetivas evolutivas dos responsáveis
pela governação que gerem os recursos públicos destinados a responder às
exigências da debilitação dessa parte da população; as perspetivas evolutivas
da juventude cuja primeira experiência da velhice é de regra a sua
dependência geracional; as perspetivas dos velhos, variáveis em função das
múltiplas diferenças que dão especificidade à circunstância, no sentido de
Ortega, de cada um dos grupos em que a velhice se multiplica; e finalmente a
perspetiva singular do percurso de vida de cada homem.
Pela inevitável circunstância de a vida decorrer em sociedade, a
perspetiva da relação das governações com a velhice é crescentemente
exigente de avaliação e prospetiva éticas. Acontece, todavia, que a
predominância do globalismo económico, a teologia de mercado a que temos
estado submetidos, e que fala pelas estatísticas aos crentes, também submete
tendencialmente os velhos à definição que essa enigmática voz aconselha.
Para primeira crítica, note-se que tal resposta, a qual, neste plano
utilitário tende para ser de fidelidade estatística antes de ser juridicamente
imperativa, tem uma distante referência valorativa, enunciada pela ONU,
sintetizada na expressão “envelhecimento ativo”.
32
Todavia, a definição legalmente imperativa, que determina o início da
velhice, por exemplo aos 65 anos de idade, é possível que acentue a tendência
para não ser determinada com base nas debilidades que acompanham o
envelhecimento, nem os cuidados programados terão uma dimensão
estabelecida a partir da mesma base. Isto porque um padrão legal de
envelhecimento ativo, que no caso significa utilidade social reconhecida, é
uma decisão de um poder político instalado, orientado por uma inevitável e
prévia adesão ideológica.
De algum modo, a teoria do envelhecimento ativo, ao articular
programas e políticas, não elimina o risco de uma dogmática decisão de perda
de capacidades, com limitada atenção, o que foi sublinhado pela própria
intervenção da ONU, aos casos em que os atingidos continuam capazes de
serem autónomos e independentes, sem graves deficiências físicas.
Tendo em vista a orientação que, olhando ao dogmatismo da
estatística, organiza instituições e programas que são para os idosos a réplica
dos que têm em vista os pobres e incapazes, tal intervenção parece chamada a
crescer de dimensão e custos à medida que as sociedades agrárias perdem a
estrutura secular, e com ela a segurança familiar que partilhava afetos e
recursos, amparada pelas organizações religiosas, também pela filantropia. O
abrandamento ou extinção dessas funções de raízes medievais, fez crescer
paralelamente o apelo ao programa público das sedes governativas, chamadas
a responder à vida habitual com base em filosofias sociais variadas, e
obrigadas a enfrentar as crises de disfunção da economia, ou as crises
causadas pela violência interna ou externa, pelos desastres naturais, pelas
doenças endémicas, pelas alterações revolucionárias ou lentas das ordens
económicas, religiosas, políticas.
Justamente as aceleradas mudanças da governança mundial, as
ameaças e os desastres da natureza agredida e da paz violada, tudo obriga a
pensar sobre a definição e estatuto dos idosos, frágeis perante esse turbilhão,
no futuro cujos sinais já vão requerendo leitura. Tal futuro, nas décadas
33
próximas, será condicionado, para além daqueles desastres, pelos avanços da
ciência que vão alongar a duração da vida, seguramente oferecendo uma
melhor qualidade de vida, mas fazendo crescer o peso dos idosos na
programação financeira de todas as instâncias interventoras, e sobretudo do
Estado. A relação entre ativos e inativos torna-se preocupante, as capacidades
financeiras, em crise, do Estado social são desafiadas, as definições dos
direitos humanos são revistas.
A debilidade orçamental dos Estados, o desastre do sistema financeiro
global, a decadência induzida na economia real, não vaticinam que o
relativismo que mina as sociedades ocidentais, a crueldade que se abate sobre
o multiculturalismo caótico que está a ser dinamizado pelas carências
desafiantes do direito à vida e à sustentação da vida na geografia da fome, não
é seguro que não venham a orientar a relação sociedade-idosos por um
paradigma, embora mais benigno, do que aquele que já envolve os povos
mudos e os povos descartáveis, povos aos quais não é reconhecido o direito de
intervir no diálogo global, povos eliminados pelos genocídios que não param.
A crescente debilitação do Estado social deu avisos suficientes no
sentido de que a vigilância ativa do humanismo tem de ser mobilizada para
dar uma resposta positiva ao apelo da ONU.
Por isso, não é certamente à visão estatística e grupal que pode
consentir-se que esgote o quadro das inquietações com o envelhecimento, é
antes a mobilização dos compromissos éticos que cresce de urgência, e são as
histórias de vidas que mais devem inspirar as opções governativas, e as
resistências da sociedade civil aos desvios tecnocráticos.
Um dos contos de Eça de Queiroz, recordado recentemente por
Carreira das Neves, intitulado “A Perfeição”, imagina Ulisses fatigado pela
beatitude em que vivia na ilha Ogígia, nos braços acolhedores da deusa
Calipso e desfiando estas lamentações: “Ó deusa, há oito anos, oito anos
terríveis, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento… Ó
deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo
34
arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens
que se injuriam na passagem de uma ponte; os braços suplicantes de uma mãe
que chora; um coxo, sobre a muleta, mendigando à porta das vilas… Deusa,
há oito anos que não olho para uma sepultura…”
A impossibilidade não assumida de regressar a esse encontro de
vitalidades em combate, é um passo definitivo para a angústia do Outono dos
dias, para a tristeza do amarelecer das folhas, para o desperdício das últimas
unidades de vida disponíveis. Porque é em unidades de vida que se mede o
tempo em relação ao qual apenas é possível ensaiar não o desperdiçar, porque
ele não para de nos esgotar os recursos.
Sobrevivência aos que foram de uma geração e maneira de viver, amar, e
morrer; solidão em face de um mundo novo que tende para ignorar as raízes,
acreditando que o futuro é anunciado pelas estatísticas. De facto, tentamos
implantar o paradigma segundo o qual cada pessoa é um fenómeno que não
se repete na história da humanidade, e que por isso o seu valor é inalterável
na vida, e a sua memória é um alicerce do futuro. É o que intenta a Academia
das Ciências de Lisboa com este curso, entregue à direção, competência, e
entusiasmo da Professora Maria Salomé Pais, com resultados já notáveis.
35
DIREITOS E DEVERES HUMANOS
Conferência do 2º Ano Letivo do IEAS 25 de Outubro de 2011
A questão dos Direitos e Deveres Humanos e a paz mundial pede,
como aconselhou Amartya Sen, ser considerada sob dois pontos de vista: ou
sob o ponto de vista das instituições jurídicas, ou pela referência à justiça do
ponto de vista da sua expressão real na vida das pessoas e suas liberdades,
entendidas estas em sentidos múltiplos.
Naturalmente os juristas são orientados no sentido de avaliar as
instituições, muito frequentemente atendendo à racionalidade do seu
posicionamento, mas as circunstâncias do mundo em que estamos a viver
implicam que os dois pontos de vista se cruzam e que o debate sob o
predomínio ou precedência de cada um deles seja objeto da ativa
controvérsia, designadamente no campo especifico da política também
institucionalizada, ou no que decorre no plano da paz social, desafiada,
violada, e sempre, com severas nas raras exceções anárquicas, em nome de
uma conceção de direitos e deveres desafiantes das instituições.
O que significa que estas questões dos Direitos e Deveres e Paz Social,
não parecem fáceis de avaliar sem ter presente a pluralidade de conceções do
mundo e da vida, que dividem as áreas culturais, que confrontam os povos
politicamente diferenciados, que inimizam as etnias diferentes, que levam aos
confrontos armados, típicos e atípicos, tornando complexa uma polemologia
36
que infelizmente se renova aceleradamente no milénio em que nos
encontramos.
Estas pequenas notas destinam-se a tornar clara aquela que julgamos
ser a mais inquietante das componentes da circunstância em que nos
encontramos, e que se tornou talvez a mais identificadora de uma
problemática que se foi definindo sobre os destroços das duas guerras
mundiais (1914-1918 e 1939-1945), de cinquenta anos de guerra fria, e
finalmente de uma crise financeira e económica mundial declarada na entrada
do III milénio, a qual tem expressão nesta perplexidade geral: existe qualquer
possibilidade de formular um paradigma mundial, como busca
infatigavelmente Kung, que reorganize institucionalmente os direitos e
deveres humanos, ou vamos assistir ao juízo de Deus, que é a guerra, neste
caso plural e multifacetada em busca do triunfo, ou, mais provavelmente, do
desastre global?
A última hipótese aparece já formulada expressamente por William
Ospina, num livro intitulado Es tarde para el hombre (2008), onde a ultima
oportunidade oferecida é o apelo à transcendência. Diz assim: “Perante esta
nuvem letal que avança sobre o mundo, cheio de saber, de poder, de
tecnologia, de produtos, de publicidade, de espetáculos que mobilizam o
homem, e de arsenais atómicos incompreensíveis, perante este faustoso e
admirável poder que nega o sagrado e saqueia a natureza e tudo profana, só
nos resta um poder a opor, o último asilo da esperança: o poder do divino que
guarda, em forma de sonhos e terrores, de amizade e de amor, de arte e de
memória, de perplexidade e de gratidão, no coração dos seres humanos, essa
força que nunca aparece na estatística, que por isso não parece existir nem
conta em face dos evidentes poderes do caos, mas é o que constrói as Nações,
inventou as línguas, organizou os ofícios e sonhou erguer ao redor, sob as
significativas estrelas, o único verdadeiramente dique que brotou alguma vez
dos nossos lábios e das nossas mãos, o canto respeitoso da gratidão e da
esperança”.
37
Este texto, simultaneamente amargo e esperançoso, encaminha-nos
para a consideração com prioridade, da conceção do mundo e da vida que
precede toda a construção jurídica, e talvez nos ajude a compreender porque é
que a situação atual pode ser descrita pela voz escutada de Vandana Shiva
como tendo resposta naquilo que chama Democracia da Terra (Manifesto para
uma democracia da terra. Justiça, sustentabilidade e paz, 2005) baseada numa série
de princípios virados para a inclusão, e não na soberania, na reclamação dos
“campos comunais” de toda a espécie e no uso não partilhado dos recursos da
terra.
Sugerimos que o ponto de partida para esta situação caótica, que é o
reverso inspirador do referido Manifesto, para esta espécie The Logic of
Anarchy que chamou à meditação Barry Buzan, Charles Jones, e Richard Litte,
está pura simplesmente na queda do Império Euromundista. Trata-se de uma
tentativa de ultrapassar o neorrealismo que dominou o fim da guerra fria e
procurou construir uma teoria lógica da nova realidade internacional.
Independentemente da análise da tentativa, tentarei tornar claro que a visão
da nova realidade tem a dificuldade histórica de a conceção do mundo dos
poderes políticos e da sua função nesse mundo, dura mais tempo do que a
realidade. Para tornar claro o ponto, recordarei que, não obstante o fim do
Império Euromundista, a França e a Inglaterra continuam a ter o poder de veto
no Conselho de Segurança, e que, no regionalismo, movimento em que se
inscreve a União Europeia, a Alemanha e a França não deixaram de mostrar
supor que lhes pertencem um poder diretivo na União Europeia, pondo em
menoridade os órgãos institucionais mal equacionados no Tratado de Lisboa.
Ora, uma das razões para a anarquia mundial, é que a Ordem proposta
na Carta da ONU e na Declaração Universal dos Direitos do Homem foi
corolário de uma conceção do mundo e da vida, em grande parte liderada
pelo casal Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), que tinham a herança da
Virgínia Declaration of Rights (1776) e da Declaração da Revolução Francesa
(1789), a inspiração do pensamento de Hobbs, Lock, Kant, sobre os direitos
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naturais, a intervenção menos lembrada de teólogos-juristas que acompanhou
a expansão ocidental, como Francisco Suarez, Bartolomeu de Las Casas, Luís
de Molina: em suma, uma conceção do mundo e da vida tida por superior,
desde Vasco da Gama até à descolonização do fim da II Guerra mundial,
levou os europeus imperiais a tratar os outros povos como – o resto do mundo.
Pouco tempo, e alguns desastres como o esmagamento da França na
Indochina, a retirada dos EUA do Vietnam, o desastre da Argélia, ou o
sacrifício da guerra colonial portuguesa, não chegaram para fazer
compreender aos ocidentais que as outras áreas culturais do mundo falavam com
voz própria na vida internacional, e tinham leituras diferenciadas das
narrativas dos factos e do conteúdo das doutrinas elaboradas e proclamadas
pelos ocidentais.
Quando, em 2009, no seu famoso livro The Idea of Justice (Penguin
Books) o Prémio Novel da Economia Amartya Sen, escreveu que “um dos
traços pouco habituais – alguns provavelmente dirão excêntrico – deste livro,
quando comparado com outros escritos dedicados à justiça, é o amplo uso que
fez de ideias reunidas de sociedades não ocidentais, especialmente da história
intelectual indiana, mas também das outras”, fez um notável esforço para
equacionar a igual dignidade das culturas.
Quando escreveu estas palavras já Francis Fukuyama (The End of
History and the Last Man, 1992), um assimilado ao orgulho ocidental, avisava
que na luta entre a lógica da ciência e a lógica da história animava o que seria o
unilateralismo americano, a suspensão do conflito direita-esquerda pela
democracia capitalista liberal, enquanto o seu, julgo que mestre, Huntington
morreria inquieto sobre o conflito das civilizações, e o destino da própria
sociedade civil multicultural americana (Who are we, 2005).
É o último tema que torna improvável encontrar a resposta à temática
deste encontro. Temos uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, em
Portugal recolhida pelo Diário da República, I Série, de 9 de Maio de 1978,
repensada pelo Tratado de Helsínquia de 1975, sem nunca ficar esclarecido,
39
até à queda do Muro de Berlim, se na Constituição Soviética (1977) tais
direitos significavam liberdades no sentido original do texto da Carta, ou em
parte significavam deveres que exigem contribuição estranha,
designadamente do Estado, por exemplo o direito ao trabalho. Mas o tema do
conflito das civilizações rodeou a leitura de mais interrogações difíceis, como
se aceitando a sustentação e a própria doutrina dos direitos naturais, ainda
discutem que existem mas qual será a reta enumeração, como se distinguem
de direitos locais, ou como se decide o eventual conflito com direitos regionais
ou até convencionais dos novos povos chegados ao livre debate mundial.
Este conflito entre as áreas culturais, que é sobretudo posto em
evidência pela emergência do poder e presença muçulmana, enfrenta um
núcleo irrenunciável dos antigos dominadores ocidentais, que compreende
designadamente o direito de acesso ao devido processo judicial, e a
independência do julgador.
Mas na própria tradição ocidental temos severas lembranças da
limitação dos direitos humanos fundamentais, bastando lembrar que se a
Declaração americana afirmava que todos os seres humanos nascem iguais e
com igual direito à felicidade, todavia excluía as mulheres, os índios, os
escravos, os trabalhadores, uma teoria longa de exclusões que ilustrou muitos
combatentes e mártires dentro do próprio país.
Nesta data, o tema do cordão muçulmano, que vai de Gibraltar à
Indonésia, e explodiu no Mediterrâneo, torna problemática a questão de saber
se e como a leitura ocidental vai conseguir coincidir pacificamente com a
crença que desencadeou um turbilhão no Mediterrâneo, que ajudou a deslocar
a fronteira da pobreza do Sul do Saara para o Norte desse mar que parece
estar a transformar-se num cemitério.
O conjunto de revoltas populares que abalam o mundo muçulmano,
sem a cooperação do qual nem o projecto euro-africano, nem a paz geral,
serão possíveis, não tem impedido que a tese de Fukuyama, tão contrariada
desde o seu aparecimento numa data de explosão da crença americana de que
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lhe estava destinada a liderança mundial, tenha encontrado defensores de
que, afinal, o profeta tinha razão. Esta consagração encontrou por exemplo
expressão numa entrevista de Yadh Ben Achour (2011), um constitucionalista
tunisiano agora chamado a constitucionalizar o novo regime do seu país, que
entre outras firmes convicções, afirmou o seguinte: “a democracia não é nem
ocidental, nem oriental, nem asiática, nem africana, ela está na constituição
psíquica de todo o ser humano. A democracia é a humanidade”. De facto,
trata-se de retomar a proclamação da Carta da ONU e da Declaração
Universal de Direitos Humanos, mas não se trata da realidade mundial que os
Relatórios do PNUD procuram retratar anualmente, nem do vazio de recursos
dos Objetivos do Milénio, nem da privatização da guerra e do preço que é
pago pela mutilação ou pela morte anual de milhares de crianças, nem da
fome que fere ainda maior número, nem sequer dos múltiplos conceitos de
democracia e dos diferentes sentidos de maioria: maioria de interesses,
maioria de votos, interesses maiores.
São estas diversidades que se abrigam sob o mesmo texto da Carta da
ONU que reúne 194 Estados, divididos pelas leituras diferenciadas e pelas
práticas incompatíveis, com membros proeminentes a nem sequer ratificaram
nem as convenções sobre os direitos das crianças nem o estatuto do Tribunal
Penal Internacional.
Para fim da história, no sentido de Fukuyama, falta um longo trajeto, e
o conflito das civilizações, que inquietou o seu mestre Huntington mesmo no
que respeita à estrutura da sociedade civil americana (Who are we?), e levou a
organizar uma ativa intervenção da ONU, não anuncia um ponto final
próximo. Parece fora de propósito acrescentar em abono da visão esperançosa
do fim da história, propor (Luc Ferry, 2011) comparar a situação atual das
revoltas que avançam no cinturão árabe-muçulmano ao que se passou na
América Latina no fim do século XX, “uma queda de regimes autoritários e
uma vitória dos valores democráticos”, porque o enquadramento cultural é de
novo diferente: por isso, nem todas as camadas das populações acedem aos
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mesmos patamares de direitos e deveres, e o que mais avulta é a demora com
que nesse espaço ocidental se vai chegando ao que o fim da história anunciou
para o resto do mundo.
A razão de Fukuyama é a razão da longa teoria de projetistas da paz
ocidentais, que ocupam limitadamente a memória dos fracos líderes que
colocam em dúvida a capacidade de responder com êxito aos riscos que
ameaçam a unidade europeia, e a perceção de que é todo o Ocidente que se
encontra em decadência.
Ter, e divulgar e fortalecer, a convicção de que possuímos um
paradigma comum de convergência dos modelos políticos europeus, já seria
um passo importante para deter o relativismo dominante no espaço ocidental,
abandonando a frequente e histórica atitude de pretender ocidentalizar o resto
do mundo, substituindo a tolerância pelo respeito das diferenças que não
afetem os valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Lutar, nesse lugar, que é a ONU, onde todos falam com todos, para
que tal paradigma seja adotado e tornado efetivo como património comum da
humanidade, seria não o fim, mas o princípio da longa narrativa que ainda é
necessário escrever, evitando o recurso ao sangue, suor, e lágrimas que
permanece para além do fim da guerra fria, sobretudo fazendo cada vez mais
profunda a vala entre povos ricos e povos pobres, estes com um nível de
existência que não lhes consente o salto da luta pela alimentação para o
patamar da ideologia política. Primeiro, conseguir viver.
Se atendermos ao sentido mais rigoroso do espaço virtual, tem de ser
entendido, em qualquer circunstância, como um espaço aberto à expansão de
uma capacidade existente e orientada ou orientável estrategicamente para um
resultado. Por isso se diz que o “presente traz no seu bojo as virtualidades do
passado” (Houaiss).
De facto é um juízo de probabilidade, ao qual a expressão no futuro
pode traduzir-se apenas numa frustração. Daqui a sementeira de frustrações a
que em cada época dão forma as situações vividas, porque não
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corresponderam ao esperado dos candidatos virtuais a presidentes, a
governantes, a empresários de sucesso que não conseguiram. Por isso, no
sentido clássico, a palavra, derivada de virtus, virtutis, significava, e volto ao
mesmo autor, “força corporal, denodo, ferocidade, força de espirito, virtude,
amor e prática do bem, eloquência”, tudo expressões relacionadas com um
futuro, com uma relação ética com os efeitos da ação, com o que foi chamado
consequencialismo.
Esta relação com o consequencialismo tem implicações éticas,
designadamente com a política, porque a intervenção assumidamente
virtuosa pode originar um consequencialismo não previsto, ou previsto mas
de fatalidade eventual aceite, como é a regra quando o recurso à guerra é feito
por justa causa e se traduz nos efeitos colaterais das armas de destruição
maciça, independentes da ética das intenções que nortearam as capacidades
virtuais postas em ação. Por isso se tornou corrente a máxima segundo a qual
“if the means accuse, the end excuses”, apoiada pelo terrorismo moderno, e
também pelos regimes políticos totalitários, aos quais é sobretudo a posse,
exercício, e manutenção do poder que é o resultado justificador. É
apresentado como exemplo o aforismo de Lenine, segundo o qual “a nossa
moralidade (revolucionária) é completamente submissa ao interesse exclusivo
do proletariado”, ou que “tudo o que é feito a favor do interesse do
proletariado é honesto”: a teoria da vanguarda, a doutrina do centralismo
democrático, o ataque ao revisionismo, a teoria do imperialismo último
estágio do capitalismo, a estratégia da revolução cultural, tudo apoiado na
excecional capacidade de liderança de Lenine, são consequências lógicas.
É interessante notar que os fracassos sucessivos de governos que não
conseguem traduzir em factos os programas que os levaram ao poder pelo
voto, como acontece nas democracias de todas as espécies, ou nos regimes
totalitários na relação entre o que produzem e a ideologia que proclamam
justificadora dos métodos, deu ao conceito de virtualidade um sentido
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negativo, mesmo pejorativo no discurso político corrente de ataque ou
simples crítica.
Garantir a construção de um império africano duradoiro como pregou
Mussolini, ou dominar a Europa como anunciou Hitler, conseguir a revolução
mundial como professaram os soviéticos, foram tudo consequencialismos
frustrados – virtuais – tal como desse modo foram e são apelidados os
projetos de desenvolvimento sustentado propagandeados por governos que
conduziram os Estados à condição de Estados exíguos, à falência das finanças e
da economia real, quando, talvez menos prejudicialmente, ficam pelos
anúncios de maior abundância e dos menores encargos fiscais.
É neste plano, com consequências desastrosas, que se verifica
frequentemente a pura virtualidade de potências que foram detentoras de
supremacias estratégicas, perdidas em guerras infrutíferas, ou em
competitividades económicas perdidas, mas que conservam os títulos e as
atitudes de perdida grandeza em face de uma realidade que obedeceu a um
consequencialismo de formas imprevistas e muito diferentemente centradas.
Temos de exemplo contemporâneo duradoiro, o facto de a Carta da
ONU ter consagrada a referência à supremacia, usando o título de
superpotências, aos Estados que receberam o poder de veto no Conselho de
Segurança, os EUA, a URSS, a França, a Inglaterra, e a China, quando apenas
as duas primeiras correspondiam por então a tal conceito, e a queda do Muro
de Berlim deixou a primeira como sobrevivente a prazo, o período que André
Fontaine (Fayard, 1991) chamou L’Un sans L’autre, deixando à solta a
improvisada e unilateral governança republicana do Presidente George Bush,
que foi afundando nas aventuras do Iraque e do Afeganistão a capacidade de
os EUA manterem a convicção de serem a Nação indispensável, a casa no alto
da colina, levando o citado autor a sustentar que “num mundo cuja direção é
assegurada grosso modo pelos Estados-Unidos, tendo como parceiros o
Conselho de Segurança e o G7, é difícil de conceber um sistema europeu que
não se integre de alguma maneira no sistema mundial”. Não lhe ocorreu, na
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circunstância virtual da época em que se pronunciou, que o confronto, nem
sempre surdo, entre americanismo e europeísmo, os desastres do
unilateralismo republicano, a redescoberta de que o mar americano é o
Pacífico, e as incertezas do rumo a tomar pela União Europeia, teriam no seu
consequencialismo uma visão afastada da realidade supercomplexa em
marcha.
De facto, o que mais evidenciam os factos é que, aquilo que os ingleses
chamam agency ou faculdade de ação, é, na política, uma capacidade que os
moralistas colocam facilmente no pretório ao avaliar a relação entre a virtude
e o processo consequencialista desencadeado, porque os acidentes da
imprevisão fazem vacilar entre os valores e os desejados resultados, a obter
por outros métodos longe dos princípios éticos, o que transforma essa arte
numa atividade em que, segundo Maquiavel, é difícil não manchar o
percurso, que tem por objeto o poder de impor, e a defesa de tal poder. Estava
a escrever por 1513 e não perdeu atualidade nesta entrada do terceiro milénio.
Daqui que, em todos os tempos, uma teatralidade especificamente
relacionada como o poder tenha sido desenvolvido até ao ponto em que, no
século passado, Schwartzenberg tenha feito uma síntese do fenómeno que vou
tentar referir, chamando-lhe a época do Estado Espetáculo.
Como fenómeno relevante e dominante está certamente a revolução
das comunicações. No começo está o fenómeno da descolonização que
colocou em liberdade todas as áreas culturais do mundo, a falar em liberdade
à comunidade internacional alargada pelo próprio fenómeno da extinção do
colonialismo, pelo menos do caracterizado pelo domínio do poder político.
O antigo mundo, o dos sobreviventes que hoje são um embaraço para
a segurança social, sofreu um número incalculável de ruturas, e uma anarquia
dos conceitos tidos por mais experimentados, valorados e seguidos.
A diplomacia dos países emergentes perfilou-se contra o ocidente
antigo, dominador em recuo, e a agenda dos desafios ultrapassou largamente
o facto da descolonização colonial; o Ocidente e sobretudo, no que mais nos
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interessa, a Europa dominadora tornou-se dependente das fontes de matérias-
primas, de energias não renováveis, e até de reservas alimentares.
Os conflitos militares, com difícil distinção entre internos e
transfronteiriços, multiplicaram-se nas áreas libertadas, os complexos
militares-industriais, na confissão do discurso do adeus de Eisenhower,
ultrapassou o poder diretivo governamental, centros de poder não previstos
na lei internacional tomaram o poder, designadamente financeiro, sem centro
visível e responsável de decisão, os avanços sem precedente da ciência e da
técnica perderam o sentido do interesse nacional, e, no que toca à ética,
colocou-se o credo do mercado no lugar da ética fundamental, o preço das coisas
no que pertenceu ao valor das coisas, ao mesmo tempo que o poder de
comunicação foi objeto de distinção crescente entre poder geoestratégico, que
ainda caracterizou a hierarquia dos Estados vigente na II Guerra Mundial,
pelo poder da geoeconomia que definiu uma nova hierarquia em tempo de paz,
mesmo que se trate de guerra fria.
Uma das consequências evidentes, e alimentadora das queixas da
época que vivemos, foi que as lideranças políticas ocidentais deslizaram para
o recrutamento nas escalas da mediocridade (Alain Garrigou), enquanto que o
mercado sem fronteiras ultrapassou o poder político, recruta as melhores
elites que saem dos centros de investigação e ensino, eles próprios a tenderem
para a privatização, e a propaganda tomou o lugar que antes pertencia à nobre
arte do discurso.
Os governos autoritários iniciaram a decadência da arte, porque os
Parlamentos se transformaram em espaços de ressonância do poder efetivo;
na justiça, a perda do antigo espirito das ordens que os grandes oradores
cultivaram, acompanhou a mundialização dos mercados submetendo os
grandes centros de intervenção judicial à escrita erudita cujo valor é medido
por horas de trabalho, e tendeu a orientar as suas vertentes institucionais para
serem invadidas pelo espírito sindical, e até os oradores sacros, quando
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desceram do púlpito para o microfone, pareceram ter perdido o ardor
profético.
A mensagem passou a ser um produto submetido a regras
compreendidas e lidas em função das circunstâncias, realmente do mercado,
usando as técnicas que antes eram teatrais, procurando que a arte de reter a
atenção dominasse o sentido da crítica. A própria atividade democrática
adotou a aparelhagem dos palcos, e a atividade do ensino tendeu para
transformar os estudantes em clientes.
De facto, assistiu-se à vigência de três fenómenos frequentemente
considerados semanticamente equivalentes, mas de facto diferentes: a
mundialização, a interdependência e o globalismo.
Da primeira os portugueses são os pioneiros responsáveis, pelas
navegações que deram aos ocidentais o conhecimento do globo, das
diferenças das suas culturas e etnias, da multiplicidade de crenças e formas de
governo, da distribuição das fontes de riqueza, e das formas de
hierarquização das potências, usando a submissão política, mas também
frequentemente a diplomacia adaptada às circunstâncias. De caminho,
legitimaram a ação com critérios da sua cultura, incluindo a evangelização a
partir do princípio da universalidade da doutrina que deveria ser levada a
todos os povos.
A necessidade política de ter um apoio exterior, como foi a vassalagem
à Santa Sé, depois a Aliança Inglesa, e agora a adesão à Europa, esteve sempre
presente nesta busca de outras lonjuras por Portugal.
O avanço da ciência e da técnica, que no século XX teve progressos
sem precedente, produziu aquilo que o talento de Castells chamou as redes,
fazendo do mundo um entrançado de circunferências mas sem um centro em
nenhum lugar.
A luta pela hegemonia, deixou de ser, quer interna quer externamente,
necessariamente militar, e a comunicação apareceu como um instrumento
fundamental: para mundializar o consumo, em que a circunferência do
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mercado, com as suas técnicas, acompanhadas da circunferência financeira,
ambas sem centro assumido, dominou o processo económico e também, em
grande parte, incluindo os países que conservaram a designação de potências,
a circunferência do poder político, com os passados das influências reciprocas,
incluindo práticas de correção cada vez mais gritantes. O próprio poder de
comunicação, que cresceu apoiado no dever de informar um povo com o
direito de ser informado, não escapa aos constrangimentos da circunferência
do poder económico, e não evita construir um mundo irreal que apoia a
submissão dos cidadãos ao poder efetivo do globalismo anárquico em que se
vive. Porque o que caracteriza o globalismo, com a anarquia dos conceitos
antigos, como fronteira, pátria, nação, é o facto de termos o consumismo
universal, e os centros de poder não identificáveis.
Talvez seja já reconhecível que a reação vem dos particularismos que
não foram destruídos por esta revolução não anunciada, e que, no que tem de
mais evidente, não confunde o conceito e a realidade da Nação com a crise
dos Estados, que atinge a maioria destes embora ainda não os tenha tornado
dispensáveis. O credo do mercado, que seguramente afetou as relações de
pertença às religiões organizadas, não impediu que o apelo à transcendência
cresça, por vezes assumindo formas preocupantes. A anarquia mundial não
impede que homens raros, muitos deles não ocidentais, como Mandela,
saibam que o verbo organizou o caos e que uma nova demonstração dessa
força tem um papel a desempenhar. Lembrarei que Havel escreveu, durante o
domínio soviético, com um grupo de amigos, o Manifesto das 20.000 palavras:
todos foram presos, mas as 20.000 palavras não, e o Muro caiu. E
principalmente de novo lembrarei o caixão de João Paulo II, pousado no chão
da Praça de S. Pedro, com o evangelho em cima: uma leve brisa folheava o
livro a lembrar que no princípio era o Verbo.