Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos II SEHA - 2015 - Volume 3... · em...

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos Universidade Federal do Pará Belém, 15 a 18 de junho de 2015 A map of Terra Firma Peru, Amazoneland…, 1732 Volume 3 Cultura, memória & ensino PPHIST/Universidade Federal do Pará PPGHIS/Universidade Federal do Maranhão PPGH/Universidade Federal do Amazonas ISBN 978-85-61586-86-7

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos

Universidade Federal do Pará

Belém, 15 a 18 de junho de 2015

A map of Terra Firma Peru, Amazoneland…, 1732

Volume 3

Cultura, memória & ensino

PPHIST/Universidade Federal do Pará PPGHIS/Universidade Federal do Maranhão

PPGH/Universidade Federal do Amazonas

ISBN 978-85-61586-86-7

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Ficha Catalográfica

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos

/ Cultura, memória e ensino. Rafael Chambouleyron (Org.). Belém: Editora Açaí, volume 3, 2015.

p. 111

ISBN: 978-85-61586-86-7

1. História – Cultura. 2. Espaço – Memória - Ensino. 3. Cultura - Amazônia – Ensino. 4. História.

CDD. 23. Ed. 348.9976

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Apresentação

Apresentamos os Anais do II Seminário de

História em Estudos Amazônicos, realizado

em Belém, de 15 a 18 de junho de 2015. O

primeiro Seminário foi realizado em São Luís,

em 2013, fruto do esforço conjunto dos

programas de pós-graduação em História da

Universidade Federal do Maranhão e da

Universidade Federal do Pará, aos quais se

junta agora o da Universidade Federal do

Amazonas. Neste ano, o SHEA congregou

docentes e discentes das três instituições,

resultando na apresentação de mais de cem

trabalhos, aqui publicados, organizados em

sete volumes, cada um referente a um

Simpósio Temático. O objetivo é reforçar os

laços entre as pós-graduações de instituições

amazônicas, que historicamente,

compartilham trajetórias comuns.

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Sumário

UM ESTUDO SOBRE SOCIABILIDADES ADOLESCENTES NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA: NOTAS INTRODUTÓRIAS Anderson Patrick Rodrigues Wilma de Nazaré Baía Coelho ...................................................................................3 PENSANDO O ARQUIVO PÚBLICO DO AMAZONAS (1980-2010) Bernardo Farias dos Santos ..................................................................................... 13 O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL A PARTIR DE FOTOGRAFIAS: RELATOS DE EXPERIÊNCIA NO ENSINO FUNDAMENTAL NO DISTRITO DE MOSQUEIRO-PA Geraldo Magella de Menezes Neto ........................................................................ 25 MEMÓRIAS EM PEDAÇOS: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE CARREIRA PROFISSIONAL E DOMINAÇÃO Jesiane Calderaro Costa Vale Wilma de Nazaré Baía Coelho ................................................................................ 37 A CIVILIZAÇÃO DOS ÍNDIOS E AS ESCOLAS NA AMAZÔNIA POMBALINA Jonas Araújo da Cunha ............................................................................................. 42 ESTUDOS AMAZÔNICOS: CONHECER A AMAZÔNIA Leila Mourão Luis Otávio Viana Airoza Stela Rodrigues Santana ........................................................................................... 53 A ARTE DE PARTEJAR: HISTÓRIA E MEMÓRIA DAS PARTEIRAS DO AMAZONAS Luciana Guimarães Santos ....................................................................................... 62 AS REPRESENTAÇÕES DA AMAZÔNIA EM LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA APROVADOS PELO PNLD PARA OS ÚLTIMOS ANOS DO ENSINO FUNDAMENTAL E ADOTADOS PELAS ESCOLAS DE BELÉM ENTRE 1999 A 2014 Luis Eduardo da Silva Monteiro ............................................................................. 73

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FORMAÇÃO PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NO PARFOR/UFPA E AS REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORES EM FORMAÇÃO: INCURSÕES PRELIMINARES Wilma de Nazaré Baía Coelho Nicelma Josenila Brito Soares ................................................................................. 79 COTIDIANO DE TRABALHO NO PORTO DO CENTRO DE MANAUS 1990-2014 Rafaela Bastos de Oliveira ....................................................................................... 87 ENTRE O LÚDICO E A REFLEXÃO: CHARGE E A PRODUÇÃO DE MEMÓRIAS NO ENSINO DE HISTÓRIA Susy Nathia Ferreira Gomes.................................................................................... 96 LEMBRAR PARA ESQUECER: A CONSTRUÇÃO DA “MEMÓRIA COLETIVA” DO DIA 13 DE MAIO “CABANO” Viviane Patrícia Fitz Gerald Frazão ..................................................................... 105

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UM ESTUDO SOBRE SOCIABILIDADES ADOLESCENTES NAS AULAS DE EDUCAÇÃO FÍSICA: NOTAS INTRODUTÓRIAS

Anderson Patrick Rodrigues1 Wilma de Nazaré Baía Coelho2

Este trabalho analisará como a formação em Educação Física habilita os professores para o enfrentamento pedagógico da diversidade e das relações de sociabilidades nas aulas com estudantes do Ensino Fundamental - II Ciclo; discutirá as relações de hierarquia entre os mesmos e, por fim, buscará um perfil destes alunos. Para tal, esta pesquisa envolve professores e estudantes de duas escolas públicas da cidade de Belém do Pará, agentes de capitais cultural e social distintos (BOURDIEU, 1979) que coabitam o mesmo espaço escolar, interagindo e (in)tolerando uns aos outros. Estes agentes serão analisados de modo consubstanciado por meio de questionários específicos. Em princípio, a partir da literatura especializada, verifica-se que a despeito do previsto na Legislação relativa ao Ensino Fundamental, e aos princípios norteadores advindos de todas as disciplinas a que os estudantes estão vinculados, há uma questão em aberto a ser analisada com mais vagar: a dificuldade, de professores e estudantes, em enfrentar a diferença nas relações de sociabilidades assim como seu impacto na sala de aula, em todas as disciplinas desse nível de ensino. Palavras-chave: Sociabilidades; Ensino Fundamental; Educação Física; Escola.

Introdução Este trabalho demarca o início de um longo caminho na categorização do

objeto aqui defendido, mas sem deixar de conciliar a profundidade das discussões, a racionalidade crítica e científica das investigações e um olhar atento às necessidades educacionais da Educação Física enquanto campo, no sentido de desenvolver um campo e um habitus de tolerância, respeito e sociabilidades entre seus alunos.

1 Mestrando em Educação pela Universidade Federal do Pará, Professor de Língua e Literatura Vernácula / Educador Físico . 2 Coordenadora do NEAB/UFPA - Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais/GERA; Professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas- Bolsista\CNPQ

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Mas porque a Educação Física? Tratar com adolescentes3 nem sempre é uma tarefa fácil, trata-se de uma fase peculiar de (re)construção de identidades, validadas por determinados grupos afins onde quem pertence ao grupo A, não pode transitar pelo grupo B e assim por diante4.

Na contramão dessa lógica, as aulas de Educação Física são um excelente campo para a interação entre alunos de diferentes habitus, por tratarse de um espaço democrático de entrada de sujeitos diversos com suas histórias, suas visões de mundo, suas crenças, suas sexualidades, seus saberes, suas etnias e identidades. As aulas de Educação Física são, portanto, um espaço onde os diferentes capitais culturais e sociais, que distinguem cada indivíduo dos demais, convivem de forma direta no mesmo espaço e ao mesmo tempo justificando ou modificando os sujeitos envolvidos.

Para apresentar nossa pesquisa, este artigo divide-se em duas partes: na primeira, trataremos mais detidamente sobre o espaço das aulas da educação física escolar no Ensino Fundamental, II Ciclo, em busca de responder se a formação dos professores de Educação Física os habilita para o enfrentamento pedagógico da diversidade e das relações de sociabilidades em suas aulas.

Na segunda relacionamos as teorias de Bourdieu com nossa pesquisa, no sentido de esclarecer como elas nos ajudaram a construir os caminhos que traçamos para estudar e compreender as hierarquias no espaço escolar e as relações de sociabilidades estabelecidas entre adolescentes de duas escolas públicas da cidade de Belém do Pará. O último objetivo destes autores, porém, só poderá ser alcançado após a aplicação e análise dos questionários específicos que nos permitirão entender a formação dos professores de Educação Física dessas escolas; e traçar o perfil dos adolescentes em questão.

Educação Física Para Adolescentes: um entre lugar

A Educação Física escolar tem sua prática historicamente voltada ao

privilégio de movimento e à exposição do corpo em situações de força, velocidade, combate e contato físico direto entre os alunos, o que caracterizava, de imediato, um espaço de dominação masculina (BOURDIEU, 2012)5 onde

3 Segundo a Organização Mundial de Saúde, entende-se por adolescente, os jovens entre 10 e 19 anos de idade. (BRASIL: 1996, p.5). 4 Dentre os pesquisadores que estudam sociabilidades adolescentes na Educação Física, destacamos os trabalhos de: Jocimar Daolio e Rogério da Cruz de Oliveira (2014); Liane Aparecida Roveran Uchoga (2012); Jorge Luís D’ Ávila e Maria Lúcia Paniago Lordelo Neves (2001); e Nildo Viana (2011). 5 Bourdieu. Pierre. A Dominação Masculina. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

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valorizavam-se habilidades cultuadas como viris e excluía-se totalmente, portanto, as meninas das aulas de Educação Física, estas eram impedidas inclusive por força de lei6, de participarem das atividades da disciplina7.

A partir da década de 80, a Educação Física entrou em processo de reformulação de seus conceitos bases e uma nova disciplina surge em 90, trazendo em si novos saberes em relação ao conceito de corpo, da própria Educação Física8 enquanto campo e a novidade metodológica das aulas mistas. Nesse contexto, surgem teóricos que se tornaram clássicos do Ensino aprendizagem da disciplina9 e uma obra em especial é elencada como a

“Bíblia” da Educação Física: o “Coletivo de Autores: metodologias do ensino de Educação Física”10(1992).

O Coletivo de Autores, portanto, está presente, como base comum, nos cursos de Licenciatura em Educação Física do Brasil. É ele que norteia as questões referentes à formação dos futuros educadores físicos e à atuação destes frente às dificuldades que encontrarão no ambiente escolar. Diante do exposto, nos interessa saber como essa formação os habilita para o enfrentamento pedagógico da diversidade e das relações de hierarquias e sociabilidades em suas aulas.

6 Decreto de Lei no 3.199, baixado em 1941 pelo governo Vargas, através do Ministério da Educação, que foi regulamentado pela deliberação no 7/65 e ficou em vigor até 1979. Que, em seu artigo 54 dizia: “[...] Às mulheres não se permitirão a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza” (BRASIL).(UCHOGA, 2012). 7 (CASTELLANI FILHO, 1994; ROSEMBERG, 1995; GOELLNER, 2003). 8 Sobre as mudanças na disciplina, estas foram muito além das turmas mistas: da lei Lei nº 4.024/61 que obrigava o ensino da disciplina em todos os níveis de ensino, à atual Lei nº 9394/96, houve um longo processo de reformulação da disciplina que resultou na atual obrigatoriedade da Educação Física enquanto componente curricular no Ensino Fundamental, (Art. 26.) integrada, portanto à proposta político-pedagógica da escola, e, ao mesmo tempo, facultativa aos alunos nos casos previstos pela Lei nº 10.793/03. 9 João Batista Freire, Elenor Kunz, Celi Taffarel, Lino Castellani Filho, Mauro Betti, Jocimar Daolio, Maria Elizabeth Varjal, Micheli Ortega Escobar, Valter Bracht e Carmem Lucia Soares. 10 Coletivo de Autores é o nome popularizado da obra Metodologia do Ensino de Educação Física, publicado em 1992, pela editora Cortez e se tornou a principal referência no campo da produção do conhecimento em Ensino-aprendizagem de Educação Física, sendo, portanto, leitura imprescindível aos que atuam na Educação Física escolar.

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Questionar essa formação é buscar compreender se tudo o que professores e professoras aprendem na academia, conseguem incorporar como habitus em suas vidas profissionais11.

Pois, tomando-se como exemplo o Projeto Político Pedagógico da Universidade do Estado do Pará – UEPA12,espera-se da formação de professores de Educação Física, que esta seja:

generalista, humanista, crítica e reflexiva pautada em princípios éticos, políticos, pedagógicos e com base no rigor científico, cuja intervenção profissional seja qualificada para o exercício de atividades profissionais nos diversos ambientes educacionais da Educação Física com base na atividade docente expressa no trabalho pedagógico, em diferentes campos de trabalho, mediado pelo objeto – práticas corporais, esportivas e do lazer. (UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ, 2007, p. 45).13

Neste sentido, portanto, as aulas de Educação Física devem primar pela

democratização, pelo respeito, pela cooperação e pela inclusão de todos os alunos no espaço de suas aulas14. Isso porque, por ser uma disciplina que trata da cultura corporal, esta “será configurada com temas ou formas de atividades, particularmente corporais”,15 o que não impede o trabalho de conscientização

11 NASCIMENTO, Fabíola Santini Takayama do. Educação Física no Ensino Médio: possibilidades de produção de saberes e habitus? MESTRADO ACADÊMICO em EDUCAÇÃO. Instituição de Ensino: PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE Goiânia, 173 f. il. grafs 12 A escolha pelo PPP de EF da UEPA deve-se ao fato de tratar-se do curso formador de um dos autores deste trabalho e, também, por o mesmo encontrar-se disponível no site << http://paginas.uepa.br/ccbs/edfisica/files/PPP_UEPA.pdf>>, diferentemente do PPP dos cursos de EF de outras faculdades e universidades paraenses. 13 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ. Projeto Político Pedagógico do CEDF/UEPA. Belém: Curso de Educação Física, 2007. 14 De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, o trabalho de Educação Física no Ensino Fundamental é muito importante, pois possibilita o desenvolvimento nos alunos das habilidades corporais e de interação em atividades coletivas, como jogos, esportes, lutas, ginástica e dança que proporcionam lazer, expressão de sentimentos, afetos e emoções (BRASIL, 2001). As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental, por sua vez, apresentam a Educação Física como referência metodológica para as demais disciplinas trabalharem seus conteúdos tornando suas atividades mais desafiadoras, atraentes e divertidas. 15 COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez, 2012

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político social dos envolvidos, já que há uma intencionalidade atrelada ao Programa de Educação Física que, supõe-se, estar diretamente influenciado pelos problemas sociais trabalhados de forma lúdica no desempenho das atividades coletivas de jogos, lazer, ginástica, dança e esportes em geral.

Trabalhar no Ensino Fundamental, em especial no II ciclo, recorte desta pesquisa, é trabalhar com adolescentes e seus respectivos capitais simbólicos, sociais, culturais e econômicos que determinam suas identidades, as relações que buscam e, principalmente, as relações que não buscam.

Entendemos tratar-se a adolescência de um período crítico na formação do ser humano, e identificamos diversos trabalhos, em diferentes áreas do conhecimento tentando explicar esse período natural, porém complicado e, ao mesmo tempo, determinante na formação de nossas identidades16. Todas as pesquisas partem da definição do conceito de adolescente/adolescência para as questões que influenciam esse período a favor e/ou em desfavor da construção e consolidação dos sentimentos de respeito, fidelidade, valores éticos e morais nos adolescentes17.

Dentre as definições apresentadas nos referidos trabalhos, o conceito mais próximo de nossa visão de adolescente/adolescência encontra-se em Eliana Garritano18 pois:

Consideramos a adolescência um momento de consolidação de sentimentos de respeito, fidelidade e valores éticos. É neste período que se edificam as aspirações pessoais e sociais, através da busca de novos pares e construção de ideais, onde os laços sociais são estabelecidos pelo compartilhar com o grupo social de determinada cultura. (p.15)

A preocupação com o ensino de adolescentes deve-se ao fato de tratarse de

uma fase diferenciada, onde o indivíduo, dotado de um nível maior de

16 Até a submissão deste artigo, catalogamos 83 trabalhos científicos, entre livros, teses e dissertações preocupadas com o conceito de adolescentes/adolescência e com o ensino voltado para esta fase: MONTEIRO (2011), GARRITANO (2008), KUSNETZOFF (1982), ALBERTI (2004), RODRIGUES (2011), BAPTISTA (2011), VOLCOV (2011), SILVA (2011), BRAGA (2012), RODRIGUES (2012), FILHO (2012), MORAES (2012), BLOS (1995), CARDOSO (2001), CASSORLA (1997), MACEDO (2010), dentre outros. 17 GARRITANO, Eliana Julia de Barros. O adolescente e a cultura do corpo. 2008. 165p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Prática Psicanalítica, Rio de Janeiro, 2008. 18 Ibdem.

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percepção de sua realidade, vê-se dividido pela necessidade de expressar sua individualidade e, ao mesmo tempo, inserir-se em grupos sociais que compartilhem os mesmos valores identitários buscados por ele. É, portanto, uma fase fundamental no processo de ressignificação das vivências infantis na (re)construção de um novo eu19.

Bourdieu e Sociabilidades Adolescentes nas Aulas de Educação Física Escolar

Aqui faremos uma breve relação entre as teorias de Bourdieu com nossa

pesquisa, no sentido de esclarecer como elas nos ajudaram a construir os caminhos que seguiremos para compreender as hierarquias20 no espaço escolar e as relações de sociabilidades entre adolescentes do Ensino Fundamental, II ciclo, em duas escolas públicas da cidade de Belém do Pará.

A construção histórica do espaço escolar nos revela a escola como um instrumento legitimador de desigualdades. Longe de ser um espaço democrático e libertador, a escola mantêm-se como instrumento de manutenção de mecanismos de reprodução social21 que sustentam a dominação de um(s) grupo(s) dominante(s) sobre outro(s), reforçando assim as hierarquias arbitrárias que determinam quem são os agentes mais influentes e tem mais poder que os outros.

Tais hierarquias são resultantes do processo de interação humana, em seus diversos processos históricos, e estão em todos os campos do conhecimento, sempre a favor da manutenção do poder de um grupo específico sobre os demais; originando, portanto, uma constante disputa pelo reconhecimento e

19 MONTEIRO, Roberta Araújo. Desamparo e intensidades em ato na adolescência: riscos ao devir. Porto Alegre, 2011. 103 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Psicologia,2011. 20 Para Bourdieu (2004) as hierarquias permitem reproduzir de forma eufemizada e dissimulada as diferenças existentes entre classe e frações de classe, ou seja, a classe dominante sobre a dominada, onde esta não se percebe dominada por aquela, devido acreditar que o padrão cultural dominante ocupa, de forma natural, uma posição hierárquica superior aos demais. O que leva o indivíduo dominante a acreditar-se merecedor de seu lugar social, não justificado por uma relação de dominação, mas por suas ditas qualidades culturais superiores. 21 Bourdieu vê a reprodução social como uma manutenção atemporal da “posição de seus agentes e de seus grupos na estrutura social”. BOURDIEU, Pierre. O Diploma e o Cargo: relações entre o sistema de produção e o sistema de reprodução. In.: NOGUEIRA,M.A.; CATANNI, A.M. (Eds.). Escritos De Educação. 9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007b. p.127144.

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valorização de seus capitais culturais; estes, por sua vez, podem ser definidos como:

uma expressão cunhada e utilizada por Bourdieu para analisar situações de classe na sociedade. De uma certa forma o capital cultural serve para caracterizar subculturas de classe ou de setores de classe. Com efeito, uma grande parte da obra de Bourdieu é dedicada à descrição minuciosa da cultura - num sentido amplo de gostos, estilos, valores, estruturas psicológicas, etc. - que decorre das condições de vida específicas das diferentes classes, moldando as suas características e contribuindo para distinguir, por exemplo, a burguesia tradicional da nova pequena burguesia e esta da classe trabalhadora. Entretanto, o capital cultural é mais do que uma subcultura de classe; é tido como um recurso de poder que equivale e se destaca - no duplo sentido de se separar e de ter uma relevância especial - de outros recursos, especialmente, e tendo como referência básica, os recursos econômicos. Daí o termo capital associado ao termo cultura; uma analogia ao poder e ao aspecto utilitário relacionado à posse de determinadas informações, aos gostos e atividades culturais.22

No que tange a manutenção de tal disputa hierárquica, a escola não se

mantem indiferente, mas, ao contrário, assume um posicionamento ativo “no processo de reprodução das desigualdades sociais. Mais do que isso, ela cumpriria o papel fundamental de legitimação dessas desigualdades”.23 Podemos constatar essa afirmativa na escolha arbitrária do currículo, dos conteúdos privilegiados em detrimento de outros, das metodologias e no capital cultural privilegiado por seus agentes.

Como adiantado anteriormente, as relações de sociabilidades estabelecidas por adolescentes no ambiente escolar, especialmente nas aulas de Educação Física, são o alvo principal deste trabalho. Para alcança-lo recorreremos à análise de conteúdo de Bardin24, ou seja, ao conjunto de procedimentos de análise dos dados, dividido em três etapas: pró-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados, onde serão utilizados métodos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo dos resultados encontrados.

Interessa-nos discutir a tessitura de hierarquias existentes neste campo, alicerçados nos sistemas simbólicos que constroem uma realidade estruturada

22 SILVA, Gilda Odinto do Valle. Cultural Capital, Classe e Gênero em Bourdieu. INFORMARE - Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação. v.l, n.2, p.24-36, jul./dez. 1995. 23 NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins; NOGUEIRA, Maria Alice. A Sociologia da Educação de Pierre Bourdieu: limites e contribuições. Educação & Sociedade, ano XXIII, no 78, Abril/2002. 24 BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2009.

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e ao mesmo tempo estruturante25, e determinam as relações de poder que asseguram a naturalidade dominante de um grupo sobre o outro através de um habitus, ou seja, através da internalização de estruturas sociais incorporadas socialmente de acordo com a posição social de cada indivíduo no campo em que estão inseridos.26

Para Bourdieu, as estruturas hierárquicas de poder são produtos de um trabalho árduo de reprodução ideológica que resulta em uma violência simbólica, instituída pela naturalidade atribuída à relação de dominação do dominado sobre o dominante, resultante da “incorporação de classificações, assim naturalizadas, de que seu ser social é produto”.27 Esta violência é caracterizada e mantida pelo conhecimento e pelo desconhecimento prático de seus agentes.

Trata-se de uma Illusio28, isto é, um jogo com regras definidas onde quem o joga, compreende-se enquanto jogador, pois sabe que vale a pena jogá-lo, ou, nas palavras de Bourdieu, é:

estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou, para dizê-Io de maneira mais simples, que vale a pena jogar. De fato, em um primeiro sentido, a palavra interesse teria precisamente o significado que atribuí à noção de illusio, isto é, dar importância a um jogo social, perceber que o que se passa ai é importante para os envolvidos, para os que estão nele. Interesse é "estar em", participar, admitir, portanto, que o jogo merece ser jogado e que os alvos engendrados no e pelo fato de jogar merecem ser perseguidos; é reconhecer o jogo e reconhecer os alvos. (BOURDIEU: 1996, p.139).

Podemos perceber, portanto, que as teorias de Bourdieu compõem uma

importante ferramenta para a construção de uma ponte entre os diferentes capitais simbólicos dos alunos, o campo da Educação física escolar e as hierarquias que nelas se encontram. Isto porque, a educação Física enquanto componente disciplinar, torna-se um cenário propício a observação e ao debate sobre respeito e valorização das diversidades dos alunos, pois está diretamente ligada ao reconhecimento dos caracteres sexuais do corpo, ao movimento, à interação física e social de seus agentes e às manifestações de seus capitais

25 BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1989. 26 SOUZA, Rafael Benedito de. Formas de Pensar a Sociedade: o conceito de habitus, campos e violência simbólica em Bourdieu. Revista Ars Historica. Jan. /Jun. 2014, p. 139.151. 27 BOURDIEU. Pierre. A Dominação Masculina. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. 28 BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus Editora, 1996.

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culturais, manifestadas nas preferências, nas sociabilidades grupais e nas habilidades em determinada atividade física ou esportiva.

Cabe aos professores, no entanto, em seus trabalhos pedagógicos, a escolha entre trabalhar uma Educação Física reprodutivista, mantida por uma ideologia tradicional, descompromissada, excludente de violência simbólica dos agentes dominantes contra os dominados, ou contrariar essa ideologia e trabalhar uma Educação Física em sentido amplo, preocupada com seus sujeitos, com a democratização do espaço escolar a partir de ações afirmativas de orgulho à diversidade e às diferenças, e voltada para a superação das desigualdades. Uma Educação Física inclusiva, contrária à violência e aos preconceitos racial e sexual pensada em sua essência para atuar a diversidade na diversidade.

Esta é uma visão pedagógica que só pode ser entendida por aqueles professores que tiveram uma formação preocupada com a democratização do campo da Educação Física em que atuam, mas, se considerarmos que não a tiveram, e o senso comum ratifica essa possibilidade, nada impede a esses professores de buscar o conhecimento que lhes fora negado durante a formação acadêmica.

Para fazer com que os professores repensem suas pedagogias, é preciso, primeiramente, que estes se percebam agentes, dominados de um lado e dominantes de outro, e que suas práticas dotadas de saberes e capitais certamente influenciarão a formação de seus alunos. Estes, adolescentes em construção de suas identidades, “moldados” pela legitimação do lugar social em foram naturalizados arbitrariamente pelo o habitus em que estão inseridos.

A inconclusão desta pesquisa nos limita o debate aos fatos apresentados até então. Nessa perspectiva, defendemos que as teorias de Bourdieu são essenciais não apenas para o reconhecimento de nosso lugar social, mas também dos diferentes capitais simbólicos que ditam nossas interações dentro e fora da escola; e, no que diz respeito aos objetivos deste trabalho, por enquanto, nos ajuda a reconhecer a formação do campo da Educação física escolar e as hierarquias que nela se encontram.

Considerações Finais

Como mencionado anteriormente, este trabalho está em processo de

conclusão, mas já percebemos que tratamos de um campo que carece de estudos mais específicos: a dificuldade, de professores e estudantes, em enfrentar a diferença nas relações de sociabilidades assim como seu impacto na sala de aula, em todas as disciplinas desse nível de ensino; o que exige um trabalho pedagógico urgente, voltado para a superação de preconceitos e para a valorização das diversidades dentro da escola, podendo iniciar pelo campo da Educação Física.

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O próximo passo será a seleção das escolas da rede pública de Belém, onde aplicaremos os questionários específicos para professores e alunos, passo fundamental para a posterior análise em busca do entendimento da realidade pedagógica dos professores de Educação Física destas escolas; e da realidade do processo de sociabilidades entre adolescentes, alunos do Ensino Fundamental, II ciclo.

Acreditamos que a conclusão desta pesquisa nos permitirá traçar o perfil dos adolescentes que comporão o corpus deste trabalho e de suas redes de sociabilidades dentro dos muros da escola, sem desprezar desta os conhecimentos históricos de sua constituição enquanto instituição formadora, o que nos habilitará debater o caráter excludente que a escola e a Educação Física assumem em determinados momentos através de suas práticas metodológicas.

Finalmente, acreditamos chegar ao fim desta pesquisa, condicionados a justificar de forma qualitativa a necessidade de repensar as práticas de ensino da Educação Física, voltando-as para o debate do trabalho com a diversidade dos alunos, para o respeito das individualidades destes, buscando, assim, a ressignificação do olhar o outro e a si mesmo enquanto agentes atuantes e transformadores do campo a partir da internalização de um novo habitus.

Desse modo, acreditamos atuar em favor de uma ressignificação da Educação Física enquanto disciplina, ampliando suas metodologias partindo do reconhecimento de seus sujeitos, da democratização dos seus espaços, do trabalho com ações afirmativas que valorizem a diversidade e as diferenças, da preocupação com a superação das desigualdades, do pensamento contrário à violência e aos preconceitos racial e sexual, para uma formação crítico-superadora, formadora de adolescentes cidadãos, conhecedores de suas realidades, de suas identidades e das diversidades que os distinguem na diversidade em que estão inseridos.

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PENSANDO O ARQUIVO PÚBLICO DO AMAZONAS (1980-2010)

Bernardo Farias dos Santos1

Resumo

O Arquivo Público do Amazonas é uma instituição de suma importância para a pesquisa histórica local e situa-se no Centro Histórico de Manaus. São poucos os pesquisadores que pensam o local onde as suas fontes históricas estão guardadas. O que é o Arquivo Público? Quando foi criado? Como está organizado? O que preserva? Quem são as pessoas que nele trabalham? Quem procura esse arquivo? Como ele tem atuado no seu contexto político e social? Para compreendermos o Arquivo Público é necessário entendê-lo como um lugar de possibilidades, de múltiplos sentidos, onde se articulam saber e poder, relações e acordos, práticas e vivências, enfim, toda a experiência humana que perpassa pelo seu acervo documental. O Arquivo Público é um lugar de fazer social, de reconstrução das memórias, identidades e da própria história. É importante que ele entre nas pautas de discussões acadêmicas e se torne uma preocupação de toda a sociedade, pois, cuidar desse patrimônio histórico é mostrar as formas de lidarmos com a nossa própria memória. Apresenta-se uma breve descrição do Arquivo Público do Amazonas e da sua documentação.

Palavras-chave: Arquivo Público do Amazonas. Memória. Patrimônio Histórico.

Introdução

A produção do conhecimento histórico exige capacidade e competência

teórico-metodológica, e, principalmente, que o pesquisador seja capaz de apreender e incorporar no seu trabalho toda a experiência humana. Nessa exposição procuro pensar o Arquivo Público do Amazonas, patrimônio histórico que “guarda” toda essa experiência humana registrada em seu acervo documental, instrumento básico para o trabalho do historiador.

Transformar o Arquivo Público em objeto de estudo é um trabalho complexo, e exige de quem o faz um entendimento global desse fenômeno em outras perspectivas, onde se faz presente a experiência humana. Pensar o

1 Mestrando em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Graduado em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

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Arquivo Público é entendê-lo como um lugar de possibilidades, de múltiplos sentidos, onde se articulam saber e poder, práticas e vivências. Essa visão sobre o Arquivo Público nos ajudará na produção de um conhecimento sobre ele.

Antes do Arquivo: memória, testemunho e documento

Muitos pesquisadores “recebem” o arquivo “organizado”, com a sua

documentação “pronta” para ser “explorada”. Em outros casos isso não acontece, pois, muitas vezes, encontramos um local totalmente sem nenhuma condição de funcionamento. Independente desse contexto é importante fazermos alguns questionamentos: como esse arquivo se constituiu? Quem produziu os seus documentos? Como produziu? Porque produziu? Para quem produziu? Porque nele se guardam determinadas fontes e outras não?

Pelo acervo de um arquivo permeiam as memórias, as práticas sociais, as lutas, os acordos, as negociações, as identidades, as origens, as trajetórias, enfim, todos os aspectos da experiência humana que é político, social, cultural e histórico, devendo ser preservados e disponibilizados ao público.

Camargo diz que os documentos de arquivo são “instrumentos e produtos das ações de indivíduos e instituições, e continuam a representá-los mesmo quando as razões e os agentes responsáveis por sua criação se transformam ou deixam de existir.”2

Se grande parte do acervo de um arquivo é constituído de documentos escritos, vamos pensar um pouco sobre a formação dessa documentação, a sua “passagem do testemunho oral ao testemunho escrito, ao documento de arquivo.”3

Para Ricoeur “a historiografia é inicialmente memória arquivada e todas as operações cognitivas ulteriores recolhidas pela epistemologia do conhecimento histórico procedem desse primeiro gesto de arquivamento”.4 Então, pode-se dizer que o primeiro momento do arquivo encontra-se na memória. Mas, o que é a memória?

Nora diz que a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos

2 CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Arquivos pessoais são arquivos. Revista do Arquivo Público Mineiro, 2009, p. 28. 3 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Unicamp, 2007. p. 178. 4 Ibid., p. 156.

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os usos e manipulações. É um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente. A memória é um absoluto.5

A memória está presente nas práticas sociais dos grupos humanos. Não se pode falar de memória, mas de memórias, uma vez que ela é um fenômeno plural e dinâmico, que tanto pode representar o coletivo quanto o individual. Ela está em todos os lugares e constitui elemento importante para a construção de uma narrativa histórica significativa.

E quando a memória se torna testemunho? Para Ricoeur “a memória declarativa se exterioriza no testemunho. Tudo tem início não nos arquivos, mas com o testemunho”.6 Para passar ao arquivo tem que passar antes pelo testemunho.

O testemunho pode ser considerado a primeira categoria da memória arquivada, e com ele inaugura-se um processo epistemológico que parte da memória declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e termina na prova documental.7 Assim, pode-se falar em 3 tipos de testemunho:

• O oral: é o testemunho original; ele é escutado, ouvido e só se constitui em documento depois de gravado, deixando assim a esfera oral para entrar na da escrita. Pode-se dizer então que a memória está arquivada, documentada.8

• O escrito: consiste em textos que é a essência de um fundo de arquivo. Se transforma em discurso que vai rolar de um lado para outro; em um documento de arquivo aberto a quem quer que saiba ler.9

• O não-escrito: são os “vestígios do passado” que fazem a felicidade da arqueologia: cacos, ferramentas, moedas, imagens pintadas ou esculpidas, mobiliário, objetos funerários, restos de moradia, etc.10

A memória assim registrada e conservada constitui ainda a base de toda atividade humana: a existência de um grupo social seria impossível sem o registro da memória, ou seja, sem os arquivos.11 O número de documentos que povoam o arquivo é imenso. O pesquisador que queira “desvendar” esse universo precisará entender o arquivo e o seu acervo como um espaço social sempre em construção.

5 NORA, Pierre. Entre memórias e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto História, São Paulo, PUC, n. 10, 1993. p. 9. 6 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Unicamp, 2007. p. 155-156. 7 Ibid., p. 170. 8 Ibid., p. 176/189. 9 Ibid., p. 179. 10 Ibid., p. 180. 11 LODOLINI, 1990, p. 157 apud JARDIM, José Maria. A invenção da memória nos arquivos públicos. Ciência da Informação. Brasília, IBICT, v. 25, n. 2, 1995. p. 4.

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O Arquivo como lugar de possibilidades O que podemos falar sobre um arquivo constituído? O que é o arquivo?

Essa é uma pergunta inevitável quando se trata de estudos sobre esse fenômeno. O arquivo deve ser pensado como objeto de novas práticas e problematizações. Pensar o arquivo nessa perspectiva é entendê-lo globalmente, é identificá-lo na sua essência, é percebê-lo não como um espaço limitado, mas como um lugar social, dinâmico, de produção do conhecimento.

São atribuídos ao termo arquivo uma multiplicidade de conceitos, mas é importante destacar que qualquer conceito atribuído a esse fenômeno é histórico, ou seja, “constituído em determinado momento do processo histórico, por homens reais, concretos, com interesses, valores também reais, concretos”.12 Precisamos perceber o arquivo muito além do documento e da instituição. Mas afinal, o que é o arquivo? Será que podemos conceituá-lo? Apresentam-se a seguir algumas contribuições de teóricos sobre esse fenômeno.

Para Nora os arquivos “são os instrumentos de base do trabalho histórico e os objetos mais simbólicos de nossa memória”, porém, o autor propõe que o historiador não tome os arquivos como “lugares sagrados” da “verdade”, mas como espaços “mixtos, híbridos e mutantes, intimamente enlaçados de vida e de morte, de tempo e de eternidade, numa espiral do coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imóvel e do móvel”.13

O arquivo apresenta-se como um lugar físico que abriga o destino dessa espécie de rastro que cuidadosamente distinguimos do rastro cerebral e do rastro afetivo, a saber, o rastro documental. Mas o arquivo não é apenas um lugar físico, espacial, é também um lugar social.14 Muito além de lugar físico onde se guardam os testemunhos escritos, o arquivo é um lugar social, portanto, construído. Sendo assim, o arquivo não é um lugar inerte, de armazenamento de informações, mas um espaço onde se constrói e produz conhecimento.

Foucault propõe chamar de arquivo todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro). O autor não entende por esse termo a soma de todos os textos que uma cultura guardou em seu poder, como documentos do seu próprio passado, ou como testemunho da sua identidade mantida; nem tampouco, as instituições que, em determinada sociedade, permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter lembrança e

12 VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo et al. A pesquisa em História. 4. ed. São Paulo: Ática, 2005. p. 9. 13 NORA, Pierre. Entre memórias e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto História, São Paulo, PUC, n. 10, 1993. p. 13/22. 14 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Unicamp, 2007. p. 177.

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manter a livre disposição. O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares.15

O autor dá um sentido ao arquivo, buscando a sua essência, o que é importante que cada pesquisador compreenda, para que não se perca entre os diversos “discursos” que o arquivo pode disponibilizar, iludindo-se com as “verdades” e deixando de lado o que é mais importante para o trabalho do historiador que é o questionamento do documento, da fonte.

Para Ophir o arquivo é um conjunto indefinido de vestígios que a história deixou atrás de si; ele inclui tudo o que revela o passado, tudo o que lhe é relativo, tudo o que pode evocar um fato antigo. O arquivo reúne tudo o que é suscetível de produzir sentido para o historiador contemporâneo. Pode ser considerado como um epifenômeno do discurso histórico. Tudo nele pertence simultaneamente ao presente e ao passado, e por esta razão, não pode ser reduzido à realidade de fatos antigos: ele contém tudo o que foi salvo do esquecimento.16

Diante dessas referências, percebe-se que não podemos conceituar o arquivo, ou podemos conceituá-lo a partir de uma determinada perspectiva, mas o certo é que esse fenômeno abrange um universo complexo. Esse estudo delimita sua abordagem no Arquivo Público e trata-o numa perspectiva epistemológica, contextualizando-o num campo de possibilidades, onde se faz presente as práticas sociais e as relações de poder, buscando a sua essência para compreendê-lo muito além do instrumento, da instituição e do documento.

O que é um Arquivo Público? Ele é apenas um lugar de memória? Um instrumento de pesquisa? Uma instituição onde se guardam documentos históricos? Como ele se constitui em um fazer social? Os arquivos públicos quando se tornam objetos de pesquisa entram na discussão dos “problemas enfrentados pela comunidade local de acesso às fontes de pesquisa, às formas de lidarmos com a memória, com o patrimônio público, à preservação, à guarda e à administração dos documentos, às suas políticas e condições de funcionamento.”17 O Arquivo Público do Amazonas

15 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 157-158. 16 OPHIR, Adi. Das ordens no arquivo. In: SALOMON, Marlon (org.). Saber dos Arquivos. Goiânia: Edições Ricochete, 2011. p. 77-79. 17 ENCONTRO Estadual de História do Amazonas, 2, 2014, Manaus. Ofício do historiador na Amazônia: fontes documentais e desafios de pesquisa. Manaus: Universidade Federal do Amazonas/Associação Nacional de História, Seção Amazonas (ANPUH-AM), dez. 2014.

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Algumas fontes bibliográficas levantadas para essa pesquisa mostram, por

meio da narrativa dos seus autores que realizaram seus estudos consultando esses serviços, a realidade de muitos arquivos públicos locais: abandono, limitação de uso, péssima estrutura de funcionamento são alguns termos usados para mostrar o estado dessas instituições.

Essas narrativas datam da década de 80, 90 e primeira década do ano 2000. Será que a situação dos arquivos e seus acervos encontrada por esses pesquisadores ainda é uma realidade hoje? Como se encontram atualmente as instituições arquivísticas da cidade? Como a comunidade tem lidado com a questão dos arquivos públicos locais?

Nessa parte do estudo apresenta-se uma breve descrição do Arquivo Público do Amazonas e de seu acervo. As fontes levantadas até o momento permitiram levantar alguns questionamentos: o que os amazonenses sabem sobre a história do seu Arquivo Público? Ele preserva o quê? Quem são as pessoas que “movimentam” esse lugar?

Na revista Arquivo do Amazonas encontrou-se a informação que o arquivo foi instalado em 1852 e funcionou sempre agregado à Secretaria do Governo, apenas como uma sala. Quando da sua criação através do decreto 184, de 19 de agosto de 1897 passou a ser vinculado à Diretoria de Estatística. Ao longo de sua história o arquivo passou por diversas denominações, chegando à época atual como Departamento de Arquivo Público, através do Decreto n°. 5.628, de 28 de maio de 1981. Teve sua estrutura atual definida pelo decreto n° 19.670, de 23 de fevereiro de 1999, sendo assim, visto como uma Coordenadoria.18

O Arquivo Público do Amazonas é uma instituição vinculada à Secretaria de Estado de Administração do Amazonas (SEAD), e localizado na Rua Bernardo Ramos, 265, Praça D. Pedro II, Centro Histórico de Manaus, uma “área de relevante valor histórico-cultural, que se manteve pela presença maciça da arquitetura européia de prédios imponentes, retrato vivo da opulência do poderio econômico da borracha”19, e que se encontra sob proteção legal.

18 ARQUIVO DO AMAZONAS: revista destinada a divulgação de documentos geográficos e históricos do Amazonas. Manaus: Secretaria de Estado da Administração, Coordenadoria e Planejamento, 1988. p. 69. 19 MOTA, Assislene Barros da. A Escola Normal da Província do Amazonas: 1880-1890. Manaus: Valer, 2012. p. 86.

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Foto 1: Localização do Arquivo Público

Fonte: MOTA, Assislene Barros, 2012, p. 89.

Apesar de ter sofrido “intervenções” há alguns anos, a área onde se localiza

o Arquivo Público do Amazonas continua degradada e foi “transformada em antro de prostituição, ficando conhecida como ‘quarteirão da luz vermelha’ que abrange as ruas Frei José dos Inocentes, Itamaracá, Saldanha Marinho, Joaquim Sarmento e Lobo d’Almada.”20

Foto 2: O Arquivo Público visto da Praça D. Pedro II, ponto de

prostituição em Manaus .

Fonte: Acervo do pesquisador, 2010.

20 Ibid., p. 88.

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O prédio onde está instalado o Arquivo Público é antigo. A situação do imóvel não é das melhores, mas vem sofrendo intervenções ao longo dos anos. O Arquivo Público do Amazonas tem um papel importante, porém, ele vem sendo “esquecido” ao longo das décadas pelo Estado.

Foto 3: Fachada do prédio onde está instalado o Arquivo Público

Fonte: Revista do Arquivo do Amazonas, 2001.

O Arquivo Público do Amazonas funciona de segunda a sexta-feira no

horário das 08h às 14h. A revista Arquivo do Amazonas apresenta os objetivos e as funções desse arquivo. Como objetivos: o controle, a coleta, a análise, o processamento técnico, a armazenagem, a recuperação e a disseminação dos documentos oriundos dos órgãos integrantes da Administração Pública Estadual, assim como das entidades privadas e os de valor histórico, provenientes de outras entidades ou de origem particular.

E como funções: dar descrição de cada novo documento incorporado às coleções; determinar e classificar o assunto de todos os documentos; manter devidamente ordenados o conjunto de documentos, formulários e fichas referentes à vida funcional de qualquer instituição que depositar seus documentos no acervo do arquivo; restaurar e conservar documentos; recuperar e disseminar o documento na hora certa.

O Arquivo Público do Amazonas dispõe de duas áreas de utilização: o térreo, onde são realizados os serviços técnicos e está o acervo para consulta; e o subsolo, onde se faz os serviços de conservação, encadernação, restauração de documentos e se encontra o depósito de documentos ainda não classificados.

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Foto 4: Prédio do Arquivo Público do Amazonas

Fonte: Acervo do pesquisador, 2010.

O Arquivo Público possui documentação a partir do século XIX: anais,

regulamentos, relatórios, coleções de leis e decretos, livros e periódicos, etc., datados de 1852 até aos dias atuais. No seu acervo encontram-se valiosos documentos para a história administrativa do Estado do Amazonas. Como visto, não são apenas documentos que se encontram “guardados” nesse arquivo, mas memórias, práticas sociais e relações registradas e conservadas que ajudam os pesquisadores na constituição dos seus objetos de estudo.

Foto 5: Acervo do Arquivo Público do Amazonas

Fonte: Revista do Arquivo do Amazonas, 2001.

Alguns documentos que fazem parte do acervo do Arquivo Público são: • Diário Oficial do Estado, coleção completa de 1893 até os nossos dias;

coleção de relatórios publicados pela presidência da antiga Província do

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Amazonas, desde sua fundação em 1852 até a Proclamação da República, editada em 1905 pelo Sr. Antonio Constantino Nery, Governador do Estado do Amazonas naquela data; coleção das Leis da Província do Amazonas de 1852 a 1868, impressa em 1875.

Foto 6: Documentos que compõe o acervo do Arquivo Público do

Amazonas

Fonte: Revista do Arquivo do Amazonas, 2001.

• Obras do literato amazonense Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, 1899;

manuscritos de atos administrativos de Eduardo Ribeiro, 1893; Revista do Arquivo Público denominada “Arquivo do Amazonas” – 1° volume 1906 e 2° volume ano II – 1908, editada por Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha.

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Foto 7: Capas da Revista Arquivo do Amazonas (1988, 2000, 2001)

Fonte: Coordenadoria do Arquivo Público, 2010.

Apesar de aberto a toda população, o público que mais utiliza os serviços do

Arquivo Público são os estudantes de Mestrado, sendo que é apresentado a estes os materiais existentes sobre sua pesquisa dentro do limite das solicitações. O atendimento é realizado por 1 (uma) Bibliotecária com especialização em Arquivo Público e Privado.

Apesar da boa vontade dos funcionários em fazer um bom atendimento, acredita-se que a situação do Arquivo Público do Amazonas ainda revela-se preocupante. Em pesquisas recentes, os autores mostram que a situação dos arquivos públicos ainda é lamentável, pois, muitas dessas instituições não possuem uma política clara de atuação e parecem estar “paradas” no tempo.

Quando perguntados sobre os vários aspectos dos arquivos públicos que administram, alguns gestores adotam um discurso oficial que não está sendo colocado em prática, omitindo informações de suas competências. E percebe-se também que muito do patrimônio documental dessas instituições estão se perdendo em porões, galpões, banheiros, vãos de escadas ou mesmo jogado no lixo sem nenhum critério e sem atender a um programa de gestão de documentos.

O Arquivo Público deve: adaptar-se rapidamente às mudanças, tornando-se mais visível enquanto instituição social; garantir o acesso à informação administrativa, histórica e cultural; e promover ações que o aproxime mais da população, não somente de um grupo específico, mas dos vários grupos que formam a sociedade. É um lugar que pode oferecer muitas contribuições, porém, compreendê-lo atualmente diante das mudanças por que passa essa sociedade, principalmente as tecnológicas, é um grande desafio.

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Considerações finais

Problematizar o Arquivo Público tirando-o do seu domínio técnico para o

epistemológico é um trabalho bastante difícil. E a tentativa de descrever o Arquivo Público do Amazonas foi uma iniciativa para reforçar a preocupação que temos com esse lugar de memória. Ao longo dessa descrição foi possível verificar que o Arquivo Público do Amazonas precisa de mais atenção tanto do Poder Público quanto da sociedade.

É preciso que a comunidade se mobilize e pense estratégias de melhorias para o funcionamento desse arquivo e manutenção do seu acervo, na perspectiva de facilitar o acesso, trabalhar com as técnicas arquivísticas apropriadas, sendo o foco a organização e a conservação correta dos documentos originais, incluindo uma política de preservação dos documentos em outros suportes.

Toda ação que parte do Arquivo Público vislumbra em práticas políticas e sociais com interesses, por isso, precisamos compreendê-lo numa perspectiva macro e não somente técnica. A pesquisa sobre o Arquivo Público do Amazonas está em andamento, e esta breve exposição foi uma tentativa de apresentá-lo à comunidade acadêmica, no sentido de mostrar que ele deve entrar na pauta das discussões acadêmicas, afinal, são os arquivos públicos que dão o primeiro suporte para os acadêmicos em suas pesquisas históricas.

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O ENSINO DA HISTÓRIA LOCAL A PARTIR DE FOTOGRAFIAS: RELATOS DE EXPERIÊNCIA NO ENSINO FUNDAMENTAL NO

DISTRITO DE MOSQUEIRO-PA

Geraldo Magella de Menezes Neto1 A História como disciplina escolar no Brasil se inicia no século XIX. O

Colégio Pedro II, localizado na então capital do Império, Rio de Janeiro, estabelece em seu primeiro Regulamento de 1838 a inserção dos estudos históricos no currículo a partir da sexta série.

A História inicialmente estudada no país tem uma matriz europeia, tendo como influência os manuais franceses. Assim, segundo Elza Nadai, essa História ensinada aos alunos foi “a História da Europa Ocidental, apresentada como a verdadeira História da Civilização. A História pátria surgia como seu apêndice, sem um corpo autônomo e ocupando papel extremamente secundário.”2

Apesar de hoje a história do Brasil já ocupar um espaço maior, a história da Europa ainda é privilegiada. Basta observar os conteúdos dos livros didáticos de História da 5ª série e 6ª séries, por exemplo, na qual são priorizadas as populações européias, como Grécia e Roma.

Desse modo, quando os alunos chegam à 5ª série/6º ano (Ciclo III do Ensino Fundamental), série na qual geralmente tem o primeiro contato com a História como disciplina autônoma, acabam por estudar povos distantes espacialmente. Não que não seja necessário o estudo da história de outras sociedades. No entanto, numa série em que os alunos se deparam com grandes novidades no ensino em relação às séries anteriores, o estudo apenas de realidades distantes pode gerar dificuldades de compreensão da História, além de criar a ideia de que a história de sua região não tem importância.

Diante disso, há uma necessidade de que o professor de História também trabalhe com os alunos a história local ou regional. Marcos Lobato Martins destaca que “o ‘lugar’ e a ‘região’ respondem a demandas individuais e coletivas

1 Mestre em História Social da Amazônia pela UFPA. Professor do curso de Licenciatura em História da Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA) e do ensino fundamental da Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC), distrito Mosqueiro. 2 NADAI, Elza. O ensino de História no Brasil: trajetória e perspectiva. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 13, n. 25/26, set. 92/ago. 93, pp. 146.

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por segurança, continuidade histórica e pertencimento a algum tipo de comunidade de destino.”3 Martins explica que:

História Regional é aquela que toma o espaço como terreno de estudo, que enxerga as dinâmicas históricas no espaço e através do espaço, obrigando o historiador a lidar com os processos de diferenciação de áreas. A História Regional é a que vê o lugar, a região e o território como a natureza da sociedade e da história, e não apenas como o palco imóvel onde a vida acontece.4

Assim, o presente trabalho pretende chamar a atenção para uma experiência

de ensino da história regional ou local, no caso aqui específico, a história do distrito de Mosqueiro5 a partir da análise de fotografias antigas do distrito. Tais fotografias, disponíveis em livros, na internet e em acervos de particulares, são do início do século XX, momento em que o distrito era visto como um lugar de lazer para as elites econômicas de Belém, que passam a construir várias residências de férias, os chamados “casarões” ou chalés. O relato de experiência se refere a atividades realizadas com alunos da 5ª série/6º ano das escolas Professor Remígio Fernandez e Professor Abel Martins e Silva no ano de 2014.

Fotografias na sala de aula

Em texto publicado no início dos anos 1990, Elza Nadai chamava a atenção

para as novas perspectivas do ensino de História após a ditadura militar (1964-1985). Nesse contexto de redemocratização, o ensino de História também deveria ser repensado. Dentre as perspectivas apontadas por Nadai, estavam a “superação da dicotomia ensino e pesquisa”, para “resgatar a historicidade dos próprios alunos”, além do “uso de fontes variadas e múltiplas, com o objetivo de resgatar discursos múltiplos sobre temas específicos.”6

3 MARTINS, Marcos Lobato. “História Regional”. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.). Novos temas nas aulas de História. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2012, p. 139. 4 Ibid. p. 143. 5 Mosqueiro é um distrito pertencente a Belém, localizado cerca de 70 km. da capital paraense. É composto por trinta e cinco ilhas. No período colonial, boa parte das terras que hoje formam o distrito pertencia ao distrito de Benfica. No atual bairro do Carananduba, foram erguidas no século XVIII as primeiras habitações coloniais, as fazendas Santana, na praia do Paraíso, e a fazenda ou sítio Conceição. No campo político, Mosqueiro foi elevado à categoria de Freguesia em 1869, e depois ganhou status de Vila, em 6 de julho de 1895. Ver-o-Pará. Centenário de Mosqueiro. Belém: Agência Ver Editora, jul. 1995, pp. 4-6. 6 NADAI, Elza. O ensino de História no Brasil: trajetória e perspectiva. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 13, n. 25/26, set. 92/ago. 93, pp. 159-160.

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As imagens apresentam-se como uma fonte com bastante potencial para as aulas de História. Circe Bittencourt destaca que desde o século XIX os livros de História do Brasil já continham em suas páginas imagens, sobretudo relacionadas à política, para apresentar aos jovens estudantes personagens como Pedro Álvares Cabral, o “descobridor”, e Tomé de Souza, o primeiro “chefe político”.7

Hoje as fotografias são utilizadas não mais como meio de glorificar personagens políticos, mas como instrumento de análise. Como qualquer fonte, a fotografia deve ser criticada pelo historiador e pelo professor de História. Compreendemos que a fotografia é um “documento/monumento”, como diz Jacques Le Goff, pois, é “o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram.”8 Nesse sentido, “é preciso começar por desmontar, demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos documentos-monumentos.”9

Circe Bittencourt aponta que “é sempre necessário perguntar o que está sendo fotografado, a fim de compreender por que e para que algumas fotografias foram feitas.” Isso é importante porque uma foto “é sempre produzida com determinada intenção, existem objetivos e há arbitrariedade na captação das imagens.”10

Se a fotografia não é necessariamente prova incontestável da verdade, e portanto, não constitui documento irrefutável da história, Júlio Pimentel Pinto e Maria Inez Turazzi indicam que convém ao historiador e ao professor, “o conhecimento dos diferentes mecanismos pelos quais uma fotografia, além de provocar nossa imaginação, também pode esconder, dissimular ou mesmo mentir sobre determinado personagem, tema ou acontecimento.”11

Desse modo, Regina Oliveira, Vanusia Almeida e Vitória Fonseca apontam que “o primeiro elemento a ser considerado ao analisarmos uma fotografia é o contexto de sua produção: qual a relação possível de ser estabelecida entre o

7 BITTENCOURT, Circe. “Livros didáticos entre textos e imagens.” In: BITTENCOURT, Circe. (org.). O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2013, p. 77. 8 LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento”. In: História e memória. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2003, pp. 537-538. 9 Ibid. p. 538. 10 BITTENCOURT, Circe. “Documentos não escritos na sala de aula”. In: Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004, p. 367. 11 PINTO, Júlio Pimentel; TURAZZI, Maria Inez. “Fotografia e ensino de história”. In: Ensino de história: diálogos com a literatura e a fotografia. São Paulo: Moderna, 2012, p. 116.

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tempo e o espaço que a imagem traz?”12 Em segundo lugar, temos as questões de autoria da imagem: “quem a produziu? Quais as intenções pessoais e profissionais que cercam essa produção?”13 Nesse sentido, é importante o papel do professor:

Na medida em que o senso comum atribui à fotografia o sentido de “retratação do real”, cabe a nós professores, fazermos a mediação entre esse conceito e as concepções que nossos alunos possuem sobre as implicações da manipulação da imagem fotográfica. Para analisarmos esse aspecto, é importante compreendermos não só o contexto de produção fotográfica, o cenário, os enquadramentos etc. A imagem fotográfica não deve ser tomada como ponto final de uma análise, mas como ponto de partida para o resgate e montagem de uma informação, na medida em que permite que sejam vistos fragmentos de uma determinada sociedade, enquadrados em uma imagem fixa, representando pessoas, objetos, roupas etc.14

A fotografia auxilia ainda os alunos a estabelecerem conexões entre o

passado e o presente. No sentido de contribuir para que os alunos compreendam a realidade atual em perspectiva histórica, os Parâmetros Curriculares Nacionais da área de História nos ciclos III e IV do ensino fundamental, sugerem “o desenvolvimento de atividades nas quais possam questionar o presente, identificar questões internas às organizações sociais e suas relações em diferentes esferas da vida em sociedade”; “identificar relações entre o presente e o passado, discernindo semelhanças e diferenças, permanências e transformações no tempo.”15

Fotografias para o ensino da história regional/local

As fotografias podem ser utilizadas como fonte na sala de aula para tratar de

vários temas. No entanto, iremos focar aqui como as fotografias podem contribuir para o estudo da história regional/local.

A primeira tarefa é selecionar as fotografias a serem utilizadas nas aulas, o que demanda uma pesquisa. Para Marcos Lobato Martins, “os professores de História, para levar às salas de aula a História Regional e Local, terão que virar

12 OLIVEIRA, Regina Soares de; ALMEIDA, Vanusia Lopes de; FONSECA, Vitória Azevedo da. “A utilização da fotografia em sala de aula”. In: A reflexão e a prática no ensino – Volume 6 – História. São Paulo: Blucher, 2012, p. 51. 13 Ibid. p. 52. 14 Ibid. p. 49. 15 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história. Brasília: MEC/SEF, 1998, pp. 53-54.

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pesquisadores. Ensino e pesquisa, teoria e prática terão que ser definitivamente associados.”16

Nesse sentido, alguns cuidados devem ser tomados, haja vista que a maioria das fontes para a história regional/local reserva espaço ao estudo dos chamados aspectos políticos: Ressaltam-se, por exemplo, “a origem e a evolução do município e do estado”, “os vultos que contribuíram para o progresso da cidade, da região”, o que acaba por difundir a memória das elites locais.17

Tendo em conta esses cuidados, procedemos a pesquisa em livros, revistas e na internet. No livro Belém da saudade: A memória da Belém do início do século em cartões-postais, encontramos duas fotografias de Mosqueiro no início do século XX. As fotografias indicam como editor E. F. Oliveira Junior, que pode ter sido o fotógrafo ou aquele que manipulou a imagem para transformá-la em cartão postal.

Encontramos também algumas fotografias antigas de Mosqueiro em alguns blogs na internet, como o Blog Mosqueirando, de Claudionor Wanzeller18, Blog Mosqueiro Sustentável, de Eduardo Brandão19, Blog do Haroldo Baleixe20, além do Blog da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA.21 Tais blogs, principalmente os de Claudionor Wanzeller e Eduardo Brandão, visam “resgatar” a história de Mosqueiro, contando a história dos casarões antigos, “causos”, lendas, além de divulgar fotografias antigas de Mosqueiro, preocupando-se também com a preservação do patrimônio histórico do distrito.

Segundo Circe Bittencourt, “na seleção de imagens, um primeiro ponto a levar em conta é a escolha de ‘imagens fortes’ como documento”, imagens que sejam representativas, “capazes de causar um impacto visual”, para motivar os alunos e “trazer informações substantivas sobre o tema ou gerar questionamentos.” Bittencourt recomenda também que o professor de História trabalhe com “uma ou duas fotos”, para que “possam ser exploradas com cuidado, iniciando o aluno nas análises de leitura interna e externa.”22

16 MARTINS, Marcos Lobato. “História Regional”. In: PINSKY, Carla Bassanezi. (org.). Novos temas nas aulas de História. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2012, p. 146. 17 FONSECA, Selva Guimarães. “O estudo da História Local e a construção de identidades”. In: Didática e prática de ensino de história: experiências, reflexões e aprendizados. Campinas-SP: Papirus, 2003, pp. 154-155. 18 Ver: <http://www.mosqueirando.blogspot.com.br/> 19 Ver: <http://mosqueirosustentavel.blogspot.com.br/> 20 Ver: <http://haroldobaleixe.blogspot.com.br/> 21 Ver: <http://fauufpa.org/> 22 BITTENCOURT, Circe. “Documentos não escritos na sala de aula”. In: Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004, p. 368.

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Os objetivos das atividades desenvolvidas com os alunos da 5ª série/6º ano das escolas Professor Remígio Fernandez e Professor Abel Martins e Silva no ano de 2014, nortearam na escolha das imagens. Dentre os objetivos da atividade estavam os de: estudar a história regional/local do distrito de Mosqueiro; comparar o passado e o presente de Mosqueiro a partir de fotografias; oportunizar aos alunos o contato com as fontes histórias sobre o distrito de Mosqueiro; compreender as transformações urbanas ocorridas em Mosqueiro a partir das fotografias. Constatamos que o uso das fotografias no estudo de história regional ou local “revelam-se extremamente motivadores para os alunos porque lhes permitem realizar atividades sobre temas que lhes despertam o interesse, pela sua relação com o passado do que ainda reconhecem os mais variados vestígios.”23 Soma-se a isso, a importância dos alunos perceberem o conceito de tempo, fundamental no ensino de História na escolaridade básica, que supõe que se estabeleçam “relações entre continuidade e ruptura, permanências e mudanças/transformações, sucessão e simultaneidade, o antes-agora-depois.”24

A atividade na prática: relato de experiência no uso de fotografias nas turmas de 5ª série/6º ano

As atividades realizadas buscaram em um primeiro momento que os alunos

percebessem que a fotografia pode ser questionada, que ela não representa em si o passado. Pedimos aos alunos que identificassem alguns elementos presentes nas fotografias e fizessem a comparação com o presente:

23 MANIQUE, PROENÇA apud FONSECA, Selva Guimarães. “O estudo da História Local e a construção de identidades”. In: Didática e prática de ensino de história: experiências, reflexões e aprendizados. Campinas-SP: Papirus, 2003, p. 159. 24 BEZERRA, Holien Gonçalves. “Ensino de História: conteúdos e conceitos básicos”. In: KARNAL, Leandro. (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2012, p. 45.

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Imagem 1: “Outra vista da Praça Matriz, em Mosqueiro, ornamentada para dia de festa.” (Coleção Victorino Chermont de Miranda).25

A imagem acima trata-se de um cartão postal do início do século XX (não

sabemos o ano exato de sua produção) da Praça Matriz de Mosqueiro. Na atividade realizada, os alunos conseguiram identificar a Praça. Mas ao mesmo tempo notaram algumas diferenças, como a decoração para uma festa e principalmente as vestimentas das pessoas da foto, vistas pelos alunos como roupas “chiques” e como inadequadas para o clima quente.

Procuramos também chamar a atenção para o que o cartão-postal não mostra, como a presença de camelôs, e o lixo, por exemplo. Hoje é comum na praça, mesmo com a presença de lixeiras, as pessoas jogarem lixo no chão. Será que no passado não havia lixo? O que podemos dizer é que, como o cartão-postal não deixa de ser uma propaganda, o fotógrafo procurou destacar os aspectos positivos da praça, pois os cartões-postais “também se destinam a provocar nossa imaginação, criando uma mensagem positiva sobre esse espaço-tempo.”26 Assim, os alunos puderam compreender que toda fotografia é uma fonte produzida com uma determinada intenção. E essa produção da fotografia acaba por ocultar também vários elementos que não se queria destacar.

25 Belém da saudade: A memória da Belém do início do século em cartões-postais. 2 ed. Belém: Secult, 1998, p. 258. 26 PINTO, Júlio Pimentel; TURAZZI, Maria Inez. “Fotografia e ensino de história”. In: Ensino de história: diálogos com a literatura e a fotografia. São Paulo: Moderna, 2012, p. 116.

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Outro cartão postal utilizado, também do livro Belém da Saudade, mostra o trapiche da Vila, no qual desembarcavam os vapores que faziam a linha Belém-Mosqueiro:

Imagem 2: “Na foto, o tradicional trapiche da vila, localizado na Praia do Areião, inaugurado em 1908 pelo governo estadual, para atracação dos vapores que faziam a linha Belém-Mosqueiro.”(Coleção Victorino Chermont de Miranda).27

A imagem acima foi utilizada para explicar aos alunos o momento em que

Mosqueiro torna-se ponto turístico entre o final do século XIX e início do século XX com a chegada a Belém de técnicos alemães, franceses, ingleses e americanos trazendo o hábito de procurar nos momentos de lazer, lugares belos e agradáveis próximos à cidade com vistas ao repouso semanal.28 O cartão postal reforça mais uma vez a propaganda de que Mosqueiro era uma localidade pronta para receber turistas, inclusive os estrangeiros, com estrutura condizente para os visitantes desfrutarem o seu lazer.

O trapiche, segundo Willame Ribeiro, foi transformando a Vila “na porta de entrada do espaço turístico de Mosqueiro” e sua praça matriz “no centro da

27 Belém da saudade: A memória da Belém do início do século em cartões-postais. 2 ed. Belém: Secult, 1998, p. 257. 28 MEIRA FILHO, apud RIBEIRO, Willame de Oliveira. Ordem e desordem do território turístico: a chegada do estranho e os conflitos de territorialidades na orla oeste de Mosqueiro. Belém: Dissertação de Mestrado em Geografia, Universidade Federal do Pará – UFPA, 2007, p. 9.

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vida social mosqueirense, cujos traços arquitetônicos do período da bélle-époque ainda hoje podem ser observados em diversos pontos de sua paisagem.”29

Os dois cartões-postais do início do século XX nos ajudam a relacionar a história de Mosqueiro com a história do Pará, no contexto da chamada Belle Époque.30 Os Parâmetros curriculares nacionais da área de História para o terceiro ciclo, dentro do eixo temático “História das relações sociais da cultura e do trabalho”, indicam o estudo das paisagens naturais, rurais e urbanas; memórias das paisagens; relações entre natureza e cidade; natureza e economia do turismo.31

A próxima imagem utilizada se refere a uma família em frente ao chalé Cardoso:

Imagem 3: Fotografia de uma família em frente ao chalé Cardoso, no Chapéu Virado, possivelmente dos anos 1920. Acervo de Maria Isabela Faciola Pessôa.32

29 Ibid. p. 14. 30 O período da Belle Époque no Pará refere-se ao período no qual a Amazônia torna-se a maior exportadora de borracha no mundo, entre o final do século XIX e início do XX. Maria de Nazaré Sarges aponta que “uma série de melhoramentos foi realizada no espaço urbano de Belém, como pavimentação das ruas, construção de praças e jardins, usinas de incineração de lixo, limpeza urbana, tudo isso controlado por um código de posturas, baseado em ideias liberais. Entretanto, todo esse ‘progresso’ era localizado e dirigido à área central da cidade, onde habitava a elite local e parte da classe média nascente.” SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle Époque (1870-1912). 3 ed. Belém: Paka-Tatu, 2010, p. 158. 31 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história. Brasília: MEC/SEF, 1998, p. 58. 32 Imagem disponível no Blog do Haroldo Baleixe: <http://haroldobaleixe.blogspot.com.br/2009/04/mario-de-andrade-no-mosqueiro-chapeu.html >

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Nessa fotografia, ressaltamos a importância dos chalés como local de residência de férias das famílias de classes sociais mais abastadas no contexto da Belle Époque. Conforme Willame Ribeiro,

um dos principais vetores na constituição do espaço turístico de Mosqueiro, que incorporava as praias do oeste da Ilha, consistiu na construção de grandes palacetes dotados de forte adequação às áreas de praia, os chalés, sendo fundados ou inspirados em arquitetura européia, essas residências secundárias eram amplas e arejadas possuindo, em geral, uma elevação em relação ao solo que permitia amenizar a umidade, da mesma forma que os muros baixos permitiam uma maior interação com a praia. A construção desses chalés está atrelada ao contexto de riqueza e suntuosidade da bélle époque.33

Os casarões mosqueirenses receberam a influência do local de origem dos seus proprietários, de famílias estrangeiras como os Lochard, os Ponted, os Smith, os Upton, os Kaulfuss, os Arouch, etc.34 Em função disso, é possível identificar a predominância de certos gêneros, como é o caso da arquitetura eclética alemã, presente no Canto do Sabiá.35

Também é importante destacar a paisagem, cercada de árvores, e com rua ainda não asfaltada, além da vestimenta das pessoas, bastante diferente de hoje.

A próxima imagem utilizada se relaciona aos meios de transportes:

33 RIBEIRO, Willame de Oliveira. Ordem e desordem do território turístico: a chegada do estranho e os conflitos de territorialidades na orla oeste de Mosqueiro. Belém: Dissertação de Mestrado em Geografia, Universidade Federal do Pará – UFPA, 2007, p. 13. 34 OLIVEIRA, Juliana. “Um pedaço da Europa na Amazônia”. In: BRANDÃO, Eduardo. (coord.). Ilhas Amazônicas. Edição 01 – Inaugural, jan. 2006, p. 34. 35 Ibid. p. 37.

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Imagem 4: Fotografia de 1933: Um dos bondes, talvez, destravados da Locomotiva “Pata Choca”, que em idos das décadas de 1920 e 1930, fazia o transporte de passageiros entre a Vila - do trapiche - até a curva do Murubira. Acervo particular do Sr Luiz Anciães, morador do Rio de Janeiro.36

A imagem acima trata-se de um bonde que circulava em Mosqueiro nas

primeiras décadas do século XX. A imagem foi utilizada para que os alunos compreendessem as transformações nos meios de transporte do local em que vivem e de que maneira isso afetou na circulação das pessoas em Mosqueiro. Segundo Francisco Antônio Pereira e Maria Beatriz Mendes, a locomotiva movida a vapor que fazia a linha Vila-Porto Artur, fazia geralmente quatro viagens, sendo duas de manhã e duas à tarde.37 Os PCN’s de História para o terceiro ciclo do ensino fundamental também apontam como objeto de estudo os “meios de transporte e interferências na natureza na implantação de infra-estruturas” 38

36 Imagem disponível no Blog Mosqueirando: <http://www.mosqueirando.blogspot.com.br/2012/12/na-rota-da-historia-locomotiva-pata.html> 37 PEREIRA, Francisco Antônio Almeida; MENDES, Maria Beatriz Pacheco. Mosqueiro: uma viagem ao passado. Belém: Imprensa Oficial do Estado, 2013, p. 14. 38 BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história. Brasília: MEC/SEF, 1998, p. 59.

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Considerações finais: Reações dos alunos em relação às fotografias antigas de Mosqueiro

Como atividades de avaliação, solicitamos aos alunos que fizessem textos

imaginando como seria a vida em Mosqueiro antigamente e a elaboração de desenhos comparando residências e meios de transporte do passado e do presente.

Os alunos da 5ª série/6º ano demonstraram curiosidade durante a apresentação das fotografias, reconheceram os locais, mas acharam estranhas as roupas “chiques” utilizadas pelas pessoas, como o fato dos homens andarem de gravata e as mulheres de vestido em pleno calor.

Os alunos também se mostraram surpresos com a antiguidade dos chalés ou casarões de Mosqueiro. Vários ressaltaram que hoje a maioria dos casarões está “caindo aos pedaços”, em situação de abandono. Procuramos chamar a atenção para a importância da preservação do patrimônio histórico e que eles, alunos, também lutem pela conservação dos casarões, evitando pichações e depredações. Outro fato que despertou a atenção dos alunos foi a presença de bondes no distrito, o que levou alguns a escrever que “sequer tinham imaginado isso”.

As fotografias selecionadas visavam sobretudo o exercício da comparação passado-presente, pois:

A História ajuda os alunos a compreenderem o mundo. A análise de processos históricos necessita de procedimentos como observar, identificar e comparar, para, então, chegar a operações mais complexas de estabelecer relações, por exemplo. Aprender História implica comparar diferentes tempos, argumentar, posicionar-se e descrever cenários históricos sociais.39

Dessa maneira, podemos dizer que a atividade trouxe resultados positivos, pois

os alunos puderam conhecer um pouco mais da história da sua localidade e estabelecer relações entre o passado e o presente, o que, para alunos da 5ª série, é importante justamente para ajudá-los a compreender a importância do estudo da história e demonstrar que eles também fazem parte da história. Um ensino de História baseado apenas na narrativa de eventos e na escrita tende a tornar a aula menos interessante para os alunos. Assim, compreendemos que o estudo da história regional/local a partir de fotografias pode fugir uma pouco desse tipo de História que tanto é criticada, mas que ainda é muito frequente nas salas de aula brasileiras, sobretudo pelas condições adversas impostas ao professor do ensino básico, principalmente aos das escolas públicas.

39 GIL, Carmem Zeli de Vargas; ALMEIDA, Dóris Bittencourt. “Conversando sobre avaliação em História”. In: A docência em História: reflexões e propostas para ações. Erechim-RS: Edelbra, 2012, p. 151.

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MEMÓRIAS EM PEDAÇOS: ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE CARREIRA PROFISSIONAL E DOMINAÇÃO

Jesiane Calderaro Costa Vale1

Wilma de Nazaré Baía Coelho2 A inserção de mulheres na carreira policial militar no Brasil é recente,

somando-se pouco mais de 50 anos. No Estado do Pará, um pouco mais de 30. Os relatos de policiais militares admitidos na instituição, quer na reserva, quer na ativa, apontam para fatores internos institucionais que motivaram suas admissões, tais como humanização, que objetivavam melhorar a imagem da polícia e aproximá-la da população. Assim, a participação feminina, em um universo exclusivamente masculino, provocou reflexões, mudanças e adaptações. Este texto traz algumas considerações sobre a questão com subsídios da obra “Dominação Masculina” de Pierre Bourdieu.

Aquela era uma manhã de 07 de setembro de 1982. As tropas das Forças militares estavam escaladas, para o emprego no desfile militar, vivenciavam a alusão da data comemorativa da Independência do Brasil. De longe se ouvia a banda de musica, carregando seus variados instrumentos, o tilintar dos pratos de metal, o soar do bumbo, do tarol, do surdo, dos trompetes e do flautim, proporcionando a marcação do passo, no compasso e na cadência.

Ao longo das ruas por onde entusiasticamente os pelotões passavam, se aglutinavam senhoras à soleira das portas, nas varandas de suas casas, por cima de seus tamancos ou dos bancos se punham a espreitar. Os idosos, em suas cadeiras de balanço, vivenciando o saudosismo de seus tempos, apreciavam o vigor dos jovens; as moças casadouras ficavam prontas a flertar, e as crianças, por sua vez, a cada pelotão que passava, se punham à marcha imitar.

Naquele dia, para o desfile, tornava-se evidente, que os preparativos começavam ainda de madrugada. O Exército Brasileiro, de verde oliva, exibia seus possantes e pesados tanques de guerra; a Marinha, longe do mar, com seus pelotões adestrados refletia sua vestimenta do branco puríssimo que lembrava a neve; a Aeronáutica, trazia o seu peculiar azul, acenando para a cor do céu, a

1 Psicóloga, Mestre em Psicologia e Doutoranda em História Social da Amazônia. Pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais-GERA/UFPA. 2 Pedagoga, Doutora em Educação, Docente do Programa de Pós- graduação em Educação- PPGED e do Programa de Pós- graduação em História, ambos da UFPA. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais - GERA/UFPA.

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Policia Militar, ostentava azul petróleo e seus pesados fuzis, e os Bombeiros , simplesmente traziam o marrom, do tipo café com leite.

Havia uma parte da tropa no entanto que chamava mais atenção: era o pelotão feminino. Um pelotão jovial, composto exclusivamente de mulheres, recentemente recrutadas, elegantes, cabelos bem cortados, garbosamente enfileiradas, uniformizadas de saias-calças, extremamente engomadas, cintos reluzentes e sapatos pretos engraxadissimos, vibrantes, em uníssono batiam firmemente os pés no chão.

O relato apresentado acima, faz parte da memória, pinçado das lembranças de uma policial feminino, hoje na reserva (aposentada), quando de seu ingresso na carreira militar, em 1982. Traz um encontro marcado entre a memória e a história .

O encontro da memória com a história, como nos assevera Beatriz Sarlo (2009)3 é um lugar de conflito, de captura do presente, onde, a memória e a historia se colocam em duvidas. Sarlo, reconhece que as visões do tempo passado não podem ser eliminadas, porque o passado, é o tempo da lembrança, e esta, insiste em povoar o presente, quer seja por meio de uma musica, um cheiro, uma comida. Refere que até mesmo se a lembrança não é convocada, mesmo assim ela aparece, porque ela é “soberana e incontrolável”(p.10), e usa o tempo passado como apropriado para lembrar e se apodera do tempo presente tornando-se, ele próprio.

Na linha da história, a primeira turma de mulheres admitidas na Policia Militar foi inserida por meio do Decreto Estadual nº 2.030, assinado pelo então Governador paraense Alacid da Silva Nunes, no dia 15 de dezembro de 1981, que foi criado o primeiro Pelotão Feminino da Polícia Militar do Pará, cuja instalação aconteceu no dia 30 de janeiro de 1982. Naquela ocasião, eram 47 mulheres e a primeira comandante foi a oficial4 2º tenente Izanete5. Na primeira turma foram admitidas alunas soldados com a escolaridade do antigo 1º grau, do antigo 2º grau e de nível superior.

3 SARLO, B. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva: Belo Horizonte: Ed. da UFMG,2009. 4 Oficiais são denominações hierárquicas de um dos círculos profissionais. Existem praças e oficiais. Oficiais são Tenentes, Capitães, Majores, Tenentes-Coronéis e Coronéis e Praças são Soldados, Cabos, Sargentos e Subtenentes. 5 Sobre a primeira turma de mulheres policiais militares ler: LEITE, M.M. Origens sociais e trajetórias profissionais das primeiras mulheres policiais pertencentes ao circulo de oficiais da Policia Militar do Pará. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Defesa Social e Mediação de Conflitos- UFPA, 2013.

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A admissão das mulheres, produziu certa perplexidade, e por se tratar de algo incomum, foi adotado o modelo do gênero masculino, como forma de gerenciar o padrão feminino das atividades de policiamento para as mulheres.

A inserção de mulheres, em âmbito dominado por homens, trazia sobre as mesmas, expectativas de um ethos comportamental significativamente “diferenciado”. Havia fiscalização e rigor sobre o padrão do uniforme, no qual as saias-calças do uniforme deveriam ser abaixo dos joelhos, uma adaptação do masculino(calça) para o feminino(saia).

Sobre o cabelo, a exigência é que o modelo do corte fosse bem curto, “tipo joãozinho”- masculinizado, logo, não era permitido rabo de cavalo ou coque.

Era proibido o uso de maquiagem e de joias, exceto aliança, relógio discreto e anel de formatura. Supervisionava-se o cumprimento das unhas, bem como a cor dos esmaltes, que deveria ser em tons nudes. As expectativas era de que se revelassem masculinizadas.

Contraditoriamente, na relação das atividades previstas para das mulheres policiais era, via de regra, associam-se à natureza feminina, maior capacidade de escuta, mais cuidado com o ser humano policial, mais disciplina, menos corrupção, mais sensibilidade e simpatia.

Inclusive em matéria do Jornal DIÁRIO DO PARÁ,6 no Caderno de NOTÍCIAS DA POLÍCIA MILITAR, no ano em que a Policia Feminina completou 10 anos de sua fundação, o articulista da coluna, enalteceu as atividades desenvolvidas e destaca a presença graciosa e altiva das policiais, conduta que agradava a sociedade paraense:

A Polícia Feminina surgiu no Comando do Coronel EB/QEMA Artagnan de Amorim Sobrinho, que na época era o Comandante Geral da Força. Sua missão específica e operacional é fazer o policiamento nos Terminais Rodoviários, Aeroportos, PM-Boxes, Área comercial, dentro das normas estabelecidas pelo Comando de Policiamento da Capital, protegendo, orientando e informando a população e, em especial as pessoas do sexo feminino, menores e anciões, colaborando ainda nos demais órgãos que constítuem a Polícia Militar, na manutenção da ordem pública, defesa interna, defesa civil e territorial, com total aceitação da nossa sociedade, que cada dia que passa mais exige a presença graciosa e altiva das policiais femininas.(grifo nosso)

Sobre a simpatia esperada entre as mulheres, Bourdieu(2007) declara: A dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos simbólicos, cujo ser (esse) é um ser percebido(percipi) tem por efeito colocá-las[...] se espera que sejam ‘femininas’, isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas,

6 Jornal DIÁRIO DO PARÁ, de 26 de janeiro de 1992, B-7.

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contidas ou até mesmo apagadas.E a pretensa ‘feminilidade’ muitas vezes não é mais que uma forma de aquiescência em relação às expectativas masculinas, reais ou supostas, principalmente em termos de engrandecimento do ego,[...](p.82)

Quando as policiais foram sendo empregadas em outras atividades na

caserna, ainda não previstas, e as foram desenvolvendo adequadamente, foram simultaneamente revelados conflitos, incongruências. A presença das policiais estava repercutindo na imagem publica da Instituição, além de estar tornando mais suave e humanizado o serviço desenvolvido.

Ora, como assegura Bourdieu (2007)7:

[...] a diferença biológica entre os sexos isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e principalmente da divisão social do trabalho. ( p.20)

A carreira militar por meio de seus códigos, suas normatizações, invadia

todos os aspectos da vida da pessoa, inclusive da intimidade8, determinando escolha dos nomes de guerra, a escolha das amizades, horários e locais de passeios, etc. reforçando a ideia da constituição de um habitus9 pelas origens sociais, capital social e simbólico associados à profissão.

Portanto, a despeito de ser um lócus de ambiguidades, onde a dominação masculina,10 demarca a lógica da subordinação da mulher, manifestando que pela força física e por sua suavidade, não poderia exercer funções de comando, as mulheres foram se destacando e representaram um importante vetor de diálogo com a sociedade e de transformação na estrutura interna da Corporação e o trabalho policial foi tradicionalmente visto como uma tarefa eminentemente masculina, teve por meio da inserção de mulheres nos quartéis a introdução de uma outra dinâmica nas relações interpessoais, intra e intercírculos.

Frente aquela carreira altamente hierarquizada, pela ausência de um debate interno sobre questões de gênero, nos quartéis, a competitividade via dominação masculina, endereçou a mulher para o âmbito interno dos quartéis, para as funções administrativas/função meio ou dentro dos ranchos (cozinha),

7 BOURDIEU, P. A dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. 8 No Dicionário Houaiss da língua portuguesa, encontra-se vários atributos e sentidos sobre a intimidade, dentre elas, relacionado ao âmago da pessoa, ao que se passa nos recônditos da mente, do espírito, que trata de assuntos extremamente pessoais, confidenciais, particulares ou secretos. 9 BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 14.ed. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil, 2010. 10 BOURDIEU, P. A dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

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dando guarida à lógica da figura da mulher como “gentil, atenciosa, afetiva, sensível, doméstica, dona de casa”.

Enfim, as próprias mudanças da condição feminina obedecem sempre a lógica do modelo tradicional entre o masculino e o feminino. Os homens continuam a dominar o espaço público e a área de poder (sobre a produção), ao passo que as mulheres ficam destinadas (predominantemente) ao espaço privado (doméstico, lugar de reprodução)[...](BOURDIEU, 2007, p.112)11

O processo sócio histórico da presença da mulher no mundo do trabalho e

também na atividade policial militar é analisado por uma gama de autores PRÁ12, SOARES13, STEARNS14, SOARES & MUSUMECI15, TOLEDO16 no entanto a base legal para a incorporação de mulheres policiais, nas instituições militares, somente se deu na década dos anos 80.

Observa-se que a ‘permissão’para a entrada de mulheres nas PMs brasileiras data do período da ditadura militar e se “associa à necessidade de cobrir certos campos de atuação em que o policiamento masculino (fundamentalmente repressivo) estaria encontrando ‘acentuadas dificuldades’. Entretanto, a efetiva incorporação das PMFems, na absoluta maioria dos estados, ocorre sobretudo a partir do inicio dos anos 1980, já no contexto da abertura política e, em vários casos, após a redemocratização do país – o que parece acrescentar-lhes outros objetivos, como o de modernizar as PMs e ‘humanizar’ sua imagem social, fortemente marcada pelo envolvimento anterior com a ditadura”(SOARES, 2005, p.29)

11 idem. 12 PRÁ,J.R. O feminismo como teoria e como pratica. EmM. Strey (Org.), Mulher: Estudos de gênero. São Leopoldo: Unisinos, 1997. 13 SOARES, B.M. Mulheres policiais: presença feminina na Policia Militar do Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 14 STEARNS,P.N. História das Relações de gênero. São Paulo: Contexto.2007. 15.SOARES, B.M.& MUSUMECI, L Policia e Gênero: participação e perfil das policias femininas nas PMS brasileiras. Revista gênero. Niterói, v.5, n.1.2004. 16 TOLEDO,C. Mulheres: O gênero nos une, a classe nos divide: Psicologia e Sociedade. São Paulo: Editora Sundermann, 2003.

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A CIVILIZAÇÃO DOS ÍNDIOS E AS ESCOLAS NA AMAZÔNIA POMBALINA

Jonas Araújo da Cunha

Introdução

A compreensão de um determinado processo histórico quase sempre requer

uma maior e melhor atenção ao sentido das palavras, termos e conceitos que compõem a linguagem e os discursos de seus sujeitos. Nesta perspectiva a análise de seus usos e a percepção de sua variabilidade no decurso dos tempos podem nos fornecer dados e informações relevantes sobre a realidade, na medida em que, apontam sinais de mudanças mentais e flagram, por assim dizer, a própria dinâmica que sofre a linguagem no cotidiano das relações e interações sociais. Diferentemente da nossa era marcada “pela velocidade desconcertante com que as ideias desaparecem e caem no esquecimento antes de ter a chance de amadurecer e envelhecer”1 nas eras passadas os termos e palavras presentes nos discursos, especialmente pela longevidade de sua utilização, tornam-se passíveis de, com relativa segurança, sinalizar uma apreensão mais substancial da extensão e dos limites de seus sentidos e significados. Na sua obra sobre A noção de cultura, o antropólogo e sociólogo francês Denys Cuche ressalta o fato de que “as palavras têm uma história e, de certa maneira também, as palavras fazem a história”. Neste sentido, e em face do seu objeto de pesquisa, ele enfatiza que se isto é verdadeiro para todas as palavras é particularmente verificável no caso do termo "cultura"2. Entendemos que se pode asseverar a mesma coisa sobre o termo “civilização”.

Atentando para o momento em que a palavra civilização emergiu no discurso historiográfico ao longo do século XVIII, Jacques Revel destaca que “há mais de dois séculos” que esta noção afeta nossa “maneira de ver os fatos de cultura e as relações entre as sociedades que os conduzem”3. Em seu trabalho sobre o tema o filósofo britânico Terry Eagleton assinala que Raymond William investigando a “complexa historia da palavra cultura” distinguiu dentre seus “sentidos modernos principais” com base em suas raízes etimológicas que, a palavra “primeiro significa algo como civilidade” e que no século XVIII “torna-

1 BAUMAN, Zygmunt. Introdução. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2012, p. 7. 2 CUCHE. Denys, A noção de cultura nas ciências sociais..Bauru-SP: Edusc.. 1999, p. 18. 3 REVEL. Jacques, Proposições: ensaios de história e historiografia. Rio de Janeiro: EdUERJ. 2009, p. 101.

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se mais ou menos sinônima de civilização”4. De fato ao perscrutar sobre o desenvolvimento do termo Raymond Williams afirma que “em todos os primeiros usos, cultura era um substantivo que referia a um processo” e que “o substantivo independente civilização também surgiu em meados do século XVIII; a partir de então, sua relação com cultura é muito complicada”5. Eagleton, por sua vez, destaca que “na qualidade de ideia, civilização equipara significativamente costumes e moral: A própria palavra implica uma correlação dúbia entre conduta polida e comportamento ético” e finalmente que como sinônimo de “civilização”; “cultura” pertencia ao espirito geral do iluminismo. Essencialmente, pelo fato de que "Cultura se inscreve então plenamente na ideologia do Iluminismo: às ideias de progresso, de evolução, de educação, de razão que estão no centro do ensinamento da época”6. É nesta conjuntura que a ideia de civilização “assume uma conotação dupla: ela é um valor em si, espécie de qualidade que faz ou deve fazer parte da própria maneira de ser do homem em sociedade”7.

A palavra civilização e seus correlatos são encontrados copiosamente nas obras literárias do Setecentos. Inclusive naquelas direcionada a públicos mais seletivos, como as correspondências oficiais e as cartas particulares. As cartas desempenharam relevante papel para a escrita da historia da colonização da América. No caso especifico da administração pombalina na Amazônia pelo seu volume e conteúdo o epistolário produzido pela pena de Francisco Xavier de Mendonça Furtado se constitui uma fonte documental valiosa. É nesta perspectiva que procuraremos analisar, nos discursos praticados no contexto da administração pombalina no Vale do rio Amazonas, a noção do termo “civilização” e seus correlatos “civilizar”, “civilidade” e de outras palavras do mesmo campo semântico como “polir” e “polícia”. Nosso objetivo é por meio da análise destes termos presente neste corpus documental“melhor compreender” o papel das escolas no projeto da “civilização dos índios” que habitavam o Vale do Amazonas8.

4 EAGLETON. Terry, A ideia de cultura. Tradução Sandra Castello Branco. São Paulo. Editora UNESP., 2005, p. 20 5 WILLIAMS. Raymond. Palavras-Chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo Editorial. 2007, p. 117 E 119. 6 EAGLETON. Op. Cit, p. 21. 7 FALCON. Francisco José Calazans, Iluminismo. São Paulo: Editora Ática 1986, p. 60. 8 O termo “Vale do Amazonas” será usado no presente trabalho para designar o espaço territorial de nossa pesquisa. A imensa região que englobava a maior parte do denominado Estado do Grão-Pará e Maranhão

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O Governo de Mendonça Furtado e a civilidade dos índios no Vale do Amazonas

Recomendareis muito da minha parte, aos missionários, que os índios que forem da sua administração, os ocupem, fazendo-lhes aprender os ofícios a que tiverem mais propensão, como praticam os missionários Jesuítas das povoações castelhanas, e que cuidam em civilizá-los e serem mais capazes de servirem ao público, e que o contrário será do meu real desagrado9. A primeira coisa que no dito Regimento se deve fazer é que os índios, depois de civilizados, procedendo no serviço de S. Maj. Com honra e fidelidade, sejam habilitados para todas as honras civis10.

As citações em relevo destacam uma das maiores preocupações da coroa

portuguesa no intuito efetivar a colonização do Vale do Rio Amazonas: A Civilização dos Índios. A partir da segunda metade do século XVIII durante o Reinado de D. José I (1750-1777) Portugal e seus longínquos domínios ultramarinos11 foram impactados pelo chamado “despotismo esclarecido” ou “reformismo ilustrado”. A racionalização da administração pública, uma das práticas sugeridas pelo iluminismo, se tornou a marca principal de seu governo. Mérito de seu nomeado Secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782) mais conhecido na historia luso-brasileira pelo seu futuro título: Marquês de Pombal12.

Durante a “Era Pombalina”, das regiões que compunham o ultramarino Império luso - constituído nas suas aventuras por mares nunca d’antes navegados - o Estado do Maranhão e Grão Pará era reputado como uma das mais carentes. De fato, os relatos que chegaram aos ouvidos reais só falavam da “decadência e ruína” daquele Estado. O atraso social e econômico que marcava esta vastíssima região espraiada em torno do rio das amazonas, além de um grave

9 INSTRUÇÕES RÉGIAS, PÚBLICAS E SECRETAS PARA FRANCISCO XAVIER DE MENDONÇA FURTADO, CAPITÃO-GENERAL DO ESTADO DO GRÃO-PARÁ E MARANHÃO. (MENDONÇA, v.1, p. 72) 10 Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao Sr. Diogo de Mendonça Corte-Real. Pará, 30 de novembro de 1751. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na Era Pombalina. Correspondência do governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Brasília: Edições do Senado Federal, 2005 v.1,130. 2005. 11 A apresentação do Rei em suas missivas sempre chama atenção para este aspecto “D. José por graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar em África, Senhor de Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, etc. 12 O título de Marquês de Pombal lhe seria concedido por decreto do rei D. José I de Portugal somente em 16 de Setembro de 1769.

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desfalque financeiro, acentuado em face da ressaca vivida pelo tesouro real com a redução do ouro e pedras preciosas das Minas Gerais do Estado do Brasil, gerava também um profundo desconforto político. Impingindo nódoas na legendária história de um império forjado para levar e estender a Fé católico-romana aos pagãos e bárbaros. Propósito último da epopeia marítima, como já expressou Pero Vaz de Caminha ao apresentar a Ilha de Vera Cruz a D. Manoel, O venturoso: “para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé”. Este fundamento teleológico da expansão e colonização portuguesa era recorrentemente renovado, como se atesta na primeira das Instruções Régias de D. José I ao novo Governador e Capitão General do Estado do Grão Pará e Maranhão Francisco Xavier de Mendonça Furtado “vos encarrego, em primeiro lugar, que atendais muito à glória de Deus, como abaixo vos instruireis, para que em execução das minhas reais ordens e resoluções tenhais todo o cuidado nesta obra tão importante para a extensão e aumento do cristianismo”13.

Cerca de três anos antes de ser nomeado para o Governo do Grão-Pará, Mendonça Furtado testemunhou o Ato de Posse de Dom Antônio Rolim de Moura como Governador da Capitania de Mato Grosso. Na ocasião foram lhes dadas pela Rainha D. Mariana D’ Áustria (esposa de D. João V) as Instruções que deveriam nortear o seu governo. Dois aspectos de seu teor são particularmente relevantes para a nossa pesquisa. Na décima nona Instrução é afirmado que “Em todo o vasto país que medeia entre o Paraguai e o Paraná ou rio Grande se acha vivendo o gentio Caiapó, que é o mais bárbaro e alheio de toda a cultura e civilidade que até agora se descobriu no Brasil”. E na vigésima primeira que “nas terras que medeiam entre o Cuiabá e o Mato Grosso se encontrou há alguns anos a nação dos índios Parecis mui próprios para domesticar-se, com muitos princípios de civilidade14.

Primeiramente é necessário asseverar que o sentido de “alheio a toda cultura” em conformidade com o uso semântico do termo no século XVIII, se refere à ausência de qualquer atividade de “cultivo”, qualquer “agricultura”. Isto fica patente quando na Instrução trigésima primeira a Rainha recomenda a Dom Antônio “adiantar o comercio desse Estado” examinando “os gêneros que produzem essas capitanias” e “favorecendo o aumento e cultura deles”. Na trigésima segunda o Governador é admoestado a “animar os senhores das fazendas” a que “cuidem na cultura e perfeição delas” e finalmente na trigésima

13 MENDONÇA. Op Cit. v.1, p. 68. 14 INSTRUÇÕES DADAS PELA RAINHA D. MARIANAD’ ÁUSTRIA, MULHER DE D. JOÃO V, AO GOVERNADORDA NOVA CAPITANIA DE MATO GROSSO DOM ANTÔNIOROLIM DE MOURA LISBOA 19 DE JANEIRO DE 17. MENDONÇA, Op Cit. v.1, 60. Destaque nosso.

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terceira A Rainha proíbe terminantemente que “se abram minas de qualquer qualidade ou metais” com o fim de “evitar que os povoadores se distraiam com este pretexto da cultura das terras”15. O projeto de Civilização dos índios desembocava, por via de consequência, em um processo civilizador que visava “o aperfeiçoamento da humanidade” a “sofisticação dos hábitos humanos”. Era este o tema central da agenda administrativa de Mendonça Furtado, fundamentalmente porque tal empreitada se constituía no desejo maior de seu monarca. Analisando este enfoque na correspondência de Mendonça Furtado o historiador Geraldo Coelho assinala:

No corpo desse epistolário, ao mesmo tempo pessoal e de Estado, flagram-se as figuras e os contorcionismos do entendimento civilizacional pombalino da Amazônia, com suas estratégias, suas ações, seus agentes, mas, também e por isso mesmo, com suas contradições, seus paradoxos e seus limites16.

O uso da palavra civilização nas correspondências de Mendonça Furtado

comporta invariavelmente o sentido pragmático de civilidade. Em carta enviada a Sua Majestade D. José I o governador expõem sua visão sobre os “inumeráveis meios que nestas terras se têm seguido para arruinarem este Estado inteiro”. Segundo ele dois são especialmente danosos. O primeiro era a existência de “uma quantidade de índios alforriados e livres que andavam sendo vadios, sem que o público tirasse utilidade alguma do seu trabalho” segundo o missivista os colonos que os abrigavam na esperança de utilizá-los em suas lavouras era frustrado pela fuga repentina “ficando desta forma sem conseguirem o fim que intentavam, e os índios sem mais lucro, pagamento ou civilização”. O Segundo fator de ruína era o fato dos colonos alimentarem esta situação de “vadiagem” indígena, mediante uma disputa pela mão-de-obra que utilizava como recurso a promessa de um maior tempo de descanso “que eles amam sumamente” – enfatiza Mendonça Furtado. O resultado era uma situação de tensão entre nos colonos “vem isto a fazer uma tal confusão, que passa de ódios mortais, quase a uma guerra civil entre estas gentes” e “vindo por este meio a perderem os lavradores a cultura das suas fazendas, e os índios, além das soldadas que deveriam ganhar, a civilização que deveriam ter se fossem criados em obediência e disciplina”17. O projeto civilizatório e o papel das escolas

15 Idem. p. 78 16 COELHO. Geraldo Mártires, Índio, Súdito e Cidadão. In: O VIOLINO DE INGRES: Leituras de História Cultural Belém do Pará: Paka-Tatu..2005, p. 268. 17 Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a S. Majestade D. José I. Pará, 14 de fevereiro de 1754. (MENDONÇA. Op Cit, v.1. 109). Destaques nosso.

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A civilização, portanto, é uma meta que só será atingida no instante em que o homem, saindo da barbárie e superando toda a ordem de obstáculos, políticos ou religiosos, que lhe são colocados poderá, finalmente, fazer progredir o conhecimento como condição decisiva do aperfeiçoamento da vida civil18. (...) tendo por primeiro e principal objeto desta importante diligência a civilidade daqueles índios, não perdoando a meio algum de o conseguir, e fazendo com que os rapazes frequentem a Escola que deve ser o primeiro princípio de conseguir aquele fim, e instruindo-os sempre na Língua Portuguesa.19

No discurso sobre a civilização dos índios contido nas correspondências de

Mendonça os nativos taxados de “rústicos” e “bárbaros” agora também rotulados de “naturalmente” preguiçosos, como afirmou de forma cabal o Governador: “porque tenho por infalível que estes índios como são, não só bárbaros e rústicos, mas, além de preguiçosos, não amam conveniência alguma a que hajam de chegar por trabalho20”. Ao mesmo tempo está presente no discurso a visão de que esta condição podia ser revertida, afinal “todos nós já fomos bárbaros” lembrava o Marques de Pombal em uma de suas orientações a Mendonça Furtado. Portanto, o que se precisava fazer propõe o gestor do Reformismo Ilustrado era “se praticar com esses miseráveis índios o mesmo que aqui praticaram os romanos, dentro de pouco tempo haverá no Pará tantos portugueses quanto são os bárbaros que hoje vivem nos matos21”. O problema era que, mesmo depois mais de um século de colonização portuguesa na região isto não estava acontecendo, pelo contrário:

Não se podendo negar, que os Índios deste Estado se conservam até agora na mesma barbaridade, como se vivessem nos incultos sertões, em que nasceram,

18 MOURA. Caio. O advento dos conceitos de cultura e civilização: sua importância para a consolidação da autoimagem do sujeito moderno. Revista. Filosofia Unisinos 10 (2):157-173, mai/ago.2009. p. 169. Disponível em<http://www.revistafilosofia.unisinos.br/pdf/150.pdf. Salvo em 20 de junho de 2014 19 INSTRUÇÃO QUE LEVOU O AJUDANTE JOSÉ DE BARROS, PARA GOVERNAR OS INDIOS DA ALDEIA DE SANTANA DO MACAPÁ. Gurupá, 21 de Outubro de 1754. (MENDONÇA, v. 2, p. 293). MENDONÇA, Op Cit,. v.2, 293. Destaque nosso. 20 132ª Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Sebastião José de Carvalho e Melo . Arraial de Mariuá, 12 de novembro de 1755. MENDONÇA, Op Cit.. v.1, 509. Destaque nosso. 21 Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo para Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Lisboa, 15 de Maio de 1753. MENDONÇA, Op. Cit.. v, 1, p.492. Destaque nosso.

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praticando os péssimos e abomináveis costumes do paganismo, não só privados do verdadeiro conhecimento dos adoráveis mistérios da nossa Sagrada Religião, mas até das mesmas conveniências temporais que se podem conseguir pelos meios da Civilidade, Cultura, e do Comercio. (Diretório, paragrafo 3)

Na interpretação de Mendonça Furtado a causa da permanência dos índios

no seu estado de “incivilidade” e “ignorância” era o descaso e descuido dos missionários com a manutenção das escolas. Expressamente ela denuncia esta situação em uma carta ao seu irmão o marquês: “acharam os ditos padres, a propósito, a uns poucos de anos fecharem as escolas, e criarem os rapazes na barbaridade em que nas aldeias eram educados”. Era urgente a restauração das escolas para se iniciar o processo de civilização dos índios.

No Setecentos o papel da escola como instituição promotora da civilidade já estava bastante consolidado22, raramente se ouviam vozes que discordassem da sua relevância social, embora, muito se falassem sobre a necessidade de reforma em seus métodos e renovação de seus manuais didáticos. No espaço colonial, carente de ser “civilizado”, o estabelecimento de escolas se tornará imprescindível, especialmente, tendo em vista o conceito de que “a palavra civilização nasce, portanto, marcada pela clivagem da distinção entre eu e os outros”. A necessidade premente de “controlar pulsões, racionalizar gestos e movimentos, disciplinar condutas, destacar voluntariamente os usos agenciados das potências do corpo, com o fito de estabelecer planos de longo prazo”23 projetou a instituição escolar a um patamar altaneiro no espaço da construção do projeto civilizacional. Como sintetizou Carlota Boto “civilizar é indicar um caminho dirigido a um telos e a escola é uma forma específica de civilizar” (...) A escolarização assume, por essa lógica, a explícita finalidade de civilizar24 Franco

22 Conferir ARIÈS, Philippe. História social da família e da criança. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. E de forma mais ampla o Ensaio do historiador Norberto Dallabrida: Nascimento da escolarização moderna: cotejo de duas leituras onde o autor compara dois estudos de sociologia histórica sobre a escolarização moderna. Os livros escolhidos são Produção da escola/produção da sociedade: análise sócio-histórica de alguns momentos decisivos da evolução escolar no Ocidente, de André Petitat (1994), e Arqueología de la escuela (1991), de Julia Varela e Fernando Alvarez-Uría.”. PERSPECTIVA, v. 22, n. 01, p. 93-110, jan./jun. Florianópolis; 2004. 23 Norbert Elias. Apud. BOTO, Carlota. A racionalidade escolar como processo civilizador: a moral que captura almas. Revista Portuguesa de Educação, 2010, p. 52. 24 BOTO. Carlota, A racionalidade escolar como processo civilizador: a moral que captura almas. Revista Portuguesa de Educação, 2010, 23(2), pp. 35-72. Universidade do Minho. CIEd. 2010. Disponível em: http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/rpe/v23n2/v23n2a03.pdf. Salvo em 10 de junho de 2014. p. 66.

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Cambi observa que “no curso dos anos seiscentos a escola se racionaliza, se laiciza e torna-se um instrumento cada vez mais central na vida do Estado”, e chama a atenção para o fato desta instituição se tornar “cada vez mais submetida ao controle e à planificação por parte do poder público”25.

Escrevendo a Francisco Portilho de Melo, um dos mais conhecidos apresadores de índios e que resolvera prestar seus serviços á coroa, Mendonça Furtado o instrui a declarar aos Principais de cada tribo que Sua Majestade “ordena que seus filhos aprendam a ler e escrever a língua portuguesa” e que para tal propósito seria enviado “um Mestre para abrir escola”, cabendo a Portilho de Melo “dar dois pescadores e um caçador, cujo ordenado por ora há de ser pago por conta da Fazenda Real”26. Nota-se pelo alguns pormenores da carta: Envio de um “mestre” e preocupação com a sua manutenção “lhe dar dois pescadores e um caçador” que não se tratava de uma ação fortuita, mas sim de uma política administrativa que lhe era constantemente cobrada pelos seus superiores em Lisboa, “mas, não deixe V. Sª de continuar na visita das aldeias, e em que se estabeleçam escolas para que alguns índios saibam ler e escrever em português e todos falar esta língua27”.

Quando foi preciso substituir Francisco Portilho na supervisão dos índios da Aldeia de Santana de Macapá ao instruir o sucessor, o ajudante José de Barros, Mendonça Furtado lembra enfaticamente que ele tinha como “primeiro e principal objeto desta importante diligência a civilidade daqueles índios, não perdoando a meio algum de o conseguir”. Detalhando este aspecto ele o orienta a fazer “com que os rapazes frequentem a Escola que deve ser o primeiro princípio de conseguir aquele fim, e instruindo-os sempre na Língua Portuguesa”. A concepção de que a Escola era “primeiro princípio” para se efetuar a civilidade dos índios reflete uma perfeita ressonância com o entendimento da mentalidade ilustrada sobre o tema. Preconizando que “a tarefa civilizadora da escola seria, sob qualquer aspecto, preventiva contra a barbárie” tendo em vista, o entendimento de que “ a escola é a instituição que se dá a ver como lugar primeiro do cultivo da racionalidade: seja uma racionalidade no campo dos Saberes”. Torna-se, portanto, de inestimável valor não se perder de vista o papel e a função da escola neste contexto enquanto instrumento de um processo que buscava a civilidade do índio “um artefato da

25 CAMBI, Franco. História da Pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo, Editora da UNESP, 1999, p. 307. 26 Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a Francisco Portilho de Melo. Pará, em 24 de abril de 1753. MENDONÇA, Op Cit. v.1, p. 453.Destaque nosso. 27 Carta de Diogo de M. Corte-Real a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Lisboa, 22 de Maio de 1753. (MENDONÇA, Op Cit, v. 1, p. 503).

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civilização”28. A criação da Vila de Ourém por Mendonça Furtado ilustra com propriedade esta realidade:

Na chamada Casa Forte do Guamá, tenho mandado ajuntar mais de 150 índios que se têm tomado a diversos contrabandistas, com o intento de fundar naquele sítio outra nova Vila de gente da terra, que também sendo V. Maj. servido, faço tenção de que se conheça pela nova Vila de Ourém, e para que os rapazes se possam criar com civilidade, lhes mandei abrir uma escola aonde me dizem que se vão criando muito bem, e aprendendo nela a língua portuguesa29.

O exemplo de Mendonça Furtado no tocante ao cuidado com o estado da

instrução pública e o ensino da língua portuguesa passou a ser uma marca requisitada dos agentes públicos que eram comissionados para atuar na região. Ilustra isto o governo de seu sobrinho Joaquim de Mello e Póvoas na Capitania de São José do Rio Negro, criada por Carta Régia de 3 de março de 1755, com sede administrativa na boca oriental do rio Javari. Nomeado por Decreto Régio de 11 de julho de 1757, Mello e Póvoas foi empossado pelo seu tio e Governador durante a instalação da unidade colonial de Mariuá em 7 de maio de 1758. A necessidade de orientação quanto ao Governo de uma região tão relevante naquele contexto de afirmação territorial fez com que Mello e Póvoas entabulasse por meio de intensa correspondência, um constante diálogo com a Corte. A leitura destas missivas nos permite confirmar como a questão do estabelecimento de escolas para processarem o ensino da língua portuguesa se tornou tema ordinário da preocupação com a boa administração pública no Vale do Amazonas:

As Escolas como tão precisas para se Civilizarem estes rapazes, são uns do principais objetos do meu cuidado; posto que com a desconsolação de não haver sujeitos capazes para mestres, o que me obriga a visitar pessoalmente com frequência a Escola desta Villa, não bastando esta diligencia, para conseguir que todos os rapazes venham a lição, porque os mesmos pais costumados com a rusticidade com que sempre viverão, escondem os filhos pelas roças sem embargo das ameaços que se lhe fazem; mas acabando a atual escrita com que me acho, não passará um só dia, sem examinar os que faltam, e com o castigo de alguns pais, verei se consigo o frequentarem todos os filhos a Escola”30.

28 BOTO. Op Cit. 40. 29 Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a S. Majestade D. José I. Pará, 11 de outubro de 1753. (MENDONÇA. Op Cit. , v.1, p. 518) 30 Carta do Governador Joaquim de Mello e Povoas ao Ilmo e Exmo. Senhor Thomé Joachim da Costa Corte Real. Nova Villa de Barcelos 21 de Dezembro de 1758. In: CARTAS DO PRIMEIRO GOVERNADOR DA CAPITANIA DE SÃO JOSE DO

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Conclusão É muito provável que uma das cartas que mais Francisco Xavier de

Mendonça Furtado tenha tido o prazer de ler durante sua estadia a frente do Governo do Estado do Grão Pará e Maranhão (24 de setembro de 1751 a 25 de fevereiro de 1759) foi àquela enviada por Tomé Joaquim da Corte-Real. Por ela Mendonça Furtado tomou conhecimento que ao ser relatado os seus feitos na presença de Sua Majestade o rei D. José I este “mesmo Senhor louvou o zelo, a atividade e o incansável trabalho com que V. Sª se aplica a tudo o que é do aumento do Estado, e civilidade de seus vassalos”. Na condição de súdito a serviço da coroa tal deferência não poderia ser mais agradável. Escrita em Junho de 1757 à carta podemos presumir representaria uma avaliação de quase seis anos de atividade e realizações. Ao mencionar o “aumento” da “civilidade de seus vassalos” como um dos motivos de louvor, inclusive trazendo a memória que estes, devido “o descuido dos que tinham por obrigação educá-los” ariam ainda “no inraciocínio em que nasceram” se não fosse o “zelo” do Governador31, Sua Majestade deu um destaque especial aos bem sucedidos esforços de Mendonça Furtado em mudar a terrível condição dos denominados “bárbaros” e “rústicos” indígenas.

É significativo o fato de que a perspectiva que se apreende é aquela de que a região estava finalmente passando por um processo de civilidade, ou seja, de civilização “então definida como um processo de melhoria das instituições, da legislação, da educação...” (CUCHE, p. 11). Que de fato “Por obra do processo civilizatório, deixaria a Amazônia tribal de ser domínio da natureza e paisagem evangélica passando à representação da cultura.” (COELHO, 2209, p, 265). Sendo civilizar um processo, um cultivo, uma cultura obviamente pressupõem sequencia, expansão progresso daí Corte- Real declarar de forma otimista “espera o mesmo Senhor que a V. Sª se deva o seu adiantamento, de que se seguirá não só a utilidade do seu Real Serviço, mas o de Deus, no aumento da Religião”. As expectativas são as mais alvissareiras “aumento” os efeitos os mais desejados índios úteis e não ociosos, cristãos e não pagãos. Como assinalou Denys Cuche “as ideias otimistas de progresso, inscritas nas noções de "cultura" e "civilização" podem ser consideradas como uma forma de sucedâneo de esperança religiosa”.

RIO NEGRO. p. 110. (Para melhor compreensão de seu conteúdo efetuamos uma atualização da escrita). Destaques nosso. 31 Carta de Tomé Joaquim da Costa Corte-Real ao Senhor Francisco Xavier de Mendonça Furtado (Palácio de) Belém, 16 de junho de 1757. (MENDONÇA, Op Cit. v.2, p. 312).

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As realizações de Mendonça Furtado enquanto promotor da civilidade dos Índios não podem ser desvinculadas do “projeto civilizacional” pensado pelo marques de Pombal. A este respeito Geraldo Coelho adverte que “será sempre importante enfatizar que Mendonça Furtado, por meio da correspondência que recebia de seu irmão”. Orientando e por vezes corrigindo a sua trajetória administrativa “revelava-se como o espelho a refletir as imagens da retorica reformista de Carvalho e Melo para a Amazônia”. Em ultima instancia contudo, o mérito é do monarca que com sua sabedoria singular havia estabelecido leis que se tivessem sido “observado o que nelas se ordena, estaria este Estado todo sumamente opulento e os índios não só civis, mas cristãos e totalmente tirados da brutalidade em que se acham”. Fica claro que “índios civis” seria o resultado da aculturação resultante do processo de civilização. Como sintetizou Geraldo Coelho “civilizar o índio seria europeizá-lo, miscigenando-o, transformando-o, assim, num instrumento efetivo e eficaz de ocupação/colonização da Região”32.

32 COELHO. Op Cit 264.

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ESTUDOS AMAZÔNICOS: CONHECER A AMAZÔNIA

Leila Mourão Luis Otávio Viana Airoza

Stela Rodrigues Santana A presente comunicação resulta do esforço que vem sendo realizado por

alguns pesquisadores da academia no sentido de promover incursões que promovam a interação entre as investigações realizadas no âmbito desta com o ensino da disciplina história na Educação Básica ao longo do processo de reformulação e implantação das Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Na década de 1970, Miriam Moreira Leite já havia publicado o livro “O Ensino da História (no primário e no ginásio)” no qual realizou uma análise crítica dos métodos e programas do ensino da História no curso primário e secundário. A pesquisa foi resultado de sua experiência como professora de História da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, acrescida de entrevista e questionários respondidos por professores e pais dos alunos e materiais didáticos utilizados no Ensino de História. Fez um exaustivo levantamento geral da situação escolar brasileira no que respeita ao Ensino de História, examinando os programas vigentes, os livros didáticos adotados e a situação de aprendizado. Os dados colhidos e analisados lhe permitiram apresentar sugestões didáticas realistas que, tendo em conta as peculiaridades do contexto escolar brasileiro, possibilitou direta e indiretamente reflexões e iniciativas, na pedagogia da história e na modernização do Ensino de História no Brasil. Os resultados dessas reflexões foram complementados por uma série de sugestões pedagógicas e de conteúdos para a melhoria da comunicação entre ensino e aprendizagem, repercutiram também na produção editorial de livros, dando origens a coleções que, adotando as orientações indicativas para que se resguardasse as especificidades regionais do Brasil na elaboração e ensino da História, teve início a publicação de edições especiais como a da Editora Cultrix e outras, que publicou a coletânea História do Brasil- Geral e Regional, sendo o Volume I sobre a Região Norte – Amazônia (Amazonas, Pará, Acre e Territórios) e “Os Rios e a Floresta: Amazonas e Pará” de Ernani Silva Bruno.

É necessário ressaltar que foi durante os anos de 1970 que diversas obras sobre história da região Amazônica ganharam espaços entre as publicações sobre a História Regional.

A Universidade Federal do Pará nesta mesma época publicou e reeditou inúmeras obras de História sobre a “Grande Região Norte” através da coleção Amazônica, composta de séries, sob a direção de Arthur César Ferreira Reis. As séries continuaram sendo publicadas pela UFPA até os anos de 1990.

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Paralelamente aos esforços editoriais da UFPA outras instituições regionais como os Arquivo Público, Museu Emílio Goeldi, Secretarias de Estado e Educação e Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia- SUDAM publicaram obras sobre a região em diversas áreas de conhecimento que interagiram com as publicações historiográficas específicas.

Em meados da década de 1980 foi publicado o “Diagnostico e Avaliação dos Cursos de História no Brasil” realizado pelo Ministério da Educação/Secretaria de Educação Superior/Sub Secretaria de Desenvolvimento da Educação Superior e Coordenadoria de Apoio ao Desenvolvimento Educacional, em maio de 1986, sob a coordenação de Déa Ribeiro Fenelon, o qual destacou quatro elementos focais a serem repensados: O profissional de História e o mercado de trabalho; Articulação da Universidade com o Ensino de 1º e 2º graus; A questão do Currículo mínimo e pleno; e O Programa de Melhoria do Ensino de Graduação em História - PMEG/História.

O MEC em sua exposição de Motivos nº 125 de 31 de maio de 1985, já havia instituído o programa “Educação para Todos – Caminho para Mudança” e foi sob sua égide que, tornaram-se possíveis algumas modificações.

Seguindo as orientações do ‘Diagnóstico’ mudanças diversas foram sendo adotadas em maior ou menor grau pelas instituições de Ensino.

No caso do Pará o Curso de História teve seu conteúdo programático reformulado com inclusão e exclusão de estudos, assim como adotou a formação do profissional de História habilitado em bacharelado e licenciatura. Esta questão não será discutida neste texto.

No que se refere ao Ensino de História para o Fundamental e Básico, a Secretaria Municipal de Educação e as Secretaria Estadual de Educação, nos anos de 1980, incluíram as disciplinas História do Pará nos currículos de 5ª e 6ª séries e Estudos Paraenses para as demais. As inclusões exigiram a preparação rápida dos professores para ministrá-las, assim como materiais didáticos.

Foram celebrados convênios entre a UFPA e Secretarias de Educação para a preparação de docentes que já faziam parte do Sistema de Ensino e elaboração de materiais didáticos, em face da inexistência desses materiais para a disciplina. Num esforço conjugado os professores de História do Departamento de História e Antropologia, em conjunto com os docentes vinculados às Secretarias Estadual e Municipal de Educação empreenderam e executaram duas tarefas simultâneas: capacitar os docentes do Ensino Fundamental e elaborar material a ser utilizados em sala de aula. Durante o ano de 1987 foi realizada uma série de cursos, seminários e oficinas de curta e média duração, na perspectiva de preparar os professores do Ensino Fundamental e Básico. O material oriundo dessas atividades docentes foi levado à sala de aula e trabalhado pelos professores e alunos do Sistema, em caráter experimental. Foi

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um trabalho realizado a muitas mãos e cérebros. O resultado foi à organização de dois livros didáticos “História do Pará: Amazônia” v. I e “História do Pará: Da Independência a República”, v. II. O primeiro volume foi editado, publicado e utilizado no Ensino Fundamental entre 1989 e 1994.

A atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB, publicada em 20 de dezembro de 1996, estabeleceu como finalidade da educação básica assegurar ao educando a ‘formação comum indispensável para o exercício da cidadania’1, e deu início a uma reorientação curricular nos diversos níveis do ensino brasileiro. No Estado do Pará a instituição da disciplina “Estudos Amazônicos” buscou atender as exigências curriculares na medida em que a LDB, estabelece para o currículo do Ensino Fundamental uma base comum nacional de disciplinas e em sua complementação outra diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela’.2 No caso dos estados brasileiros localizados na planície amazônica, a exemplo do Pará e Amapá, incluiu-se nesta segunda parte diversificada a disciplina “Estudos Amazônicos”. A inexistência de materiais didáticos continuou como um dos problemas a ser resolvido.

Em 1998, observando as orientações do Ministério da Educação e do Conselho Nacional de Educação, a Secretaria de Estado de Educação - SEDUC, do Governo do Estado do Pará, encaminhou às suas unidades de ensino as Novas Diretrizes Curriculares para a Educação Básica do ano letivo de 1999. Nestas orientações, estabelece que na parte diversificada seja incluída a disciplina “Estudos Amazônicos” em substituição a disciplina “Estudos Paraenses”, por considerar aquela mais abrangente em seu conteúdo que esta. Neste caso, a nova disciplina ocuparia 2 (duas) aulas semanais na 5ª e 6ª séries e 3 (três) aulas semanais na 7ª e 8ª séries e que deveria ser ministrada por professores de seu quadro efetivo licenciados plenos em História, Geografia e Sociologia.3

As Prefeituras Municipais, a exemplo do Governo do Estado, incluíram “Estudos Amazônicos” como disciplina do Ensino Fundamental e, inclusive, realizaram concurso público para a constituição de um quadro docente efetivo que incluía o cargo de professor desta disciplina.

1 Artigo 22 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 20 de dezembro de 1996. 2 Artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 20 de dezembro de 1996. 3 PARÁ, Secretaria de Estado de Educação do. Orientação para a implantação e estruturação do modelo curricular para o ensino fundamental, a partir de 1999, com base nas novas diretrizes para o ensino fundamental (mec/cne). Belém: Diretoria de Ensino/SEDUC, dezembro de 1998.

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Em grande medida, a inclusão da disciplina “Estudos Amazônicos” no currículo do Ensino Fundamental, deve-se a importância que a Amazônia possui nos cenários nacional e internacional.

Em 2010 os autores desse artigo iniciaram um trabalho na perspectiva de elaborar uma coleção sobre “Estudos amazônicos” com múltiplas finalidades: atender à necessidade de material didático e transformar o saber científico acumulado em anos de pesquisas em saber escolar.

A coleção “Estudos Amazônicos” está sendo elaborada inovando a metodologia e conteúdo ao retomar o diálogo entre as diversas áreas de conhecimentos, dando atenção especial às pesquisas realizadas pelas etnociências, que vem contribuindo de forma significativa para que outros olhares e abordagens decifrem a ‘utópica’ Amazônia, possibilitando a emergência de sentidos de pertencimento para o pleno exercício da cidadania brasileira na região.

Estudos Amazônicos

O eixo dos atuais debates sobre a Amazônia tem como ícones da

globalização a biodiversidade, as questões ambientais, em especial a reserva de água doce e sua função armazenadora de carbono. A sociodiversidade da região tem sido tradada de forma secundaria. O tema bioma da “Floresta Tropical” tem sido o elemento essencial para assegurar sua inserção no sistema mundo pela sua amplitude e biodiversidade. Os discursos elaborados como produtores de sentidos e dos seus efeitos, em especial do sentido do não dito, sobre a Amazônia, contém ainda que simbólicas as mensagens da exuberância, do exotismo e de uma pseudo ‘natureza intocada’. Essa biodiversidade vem sendo identificada e estudada por diversas áreas de conhecimento (especialmente pelas etnociências). As suas florestas, rios e solos vem sendo reconhecidas e resinificadas como resultantes da interação das populações humanas que viveram na região ao longo de sua história. Neste texto apresentamos uma interpretação que considerara fundante à perspectiva do bioma como construções culturais da sociodiversidade.

A biodiversidade e a sociodiversidade da Amazônia tem sido centro das atenções dos ambientalistas, da comunidade internacional e da academia, especialmente pela ameaça de destruição de seus ecossistemas, pela biopirataria, o reconhecimento do povo indígena, dos ribeirinhos e dos diversos moradores da floresta, mas também para assegurar sua inserção no sistema mundo. São essas populações (tradicionais no sentido antropológico do termo) que tem realizado a história socioambiental na região.

Os estudos relacionando a História e Natureza, isto é, história socioambiental, busca restituir a Natureza aos estudos históricos e demais áreas

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de conhecimento, na perspectiva de que ela seja reconhecida como protagonista nas distintas dimensões da realização da História. E têm como finalidade interpretar as relações sociedade-naturezas no sentido de reconstituir as estratégias, através das quais as dinâmicas produtivas e reprodutivas das sociedades, assim como as variações e perturbações antrópicas ou naturais alteram a dinâmica dos ecossistemas e influenciam na conformação de limites de desenvolvimento dessas sociedades e do ambiente em que vivem. Busca também, explicitar os fundamentos das maneiras com que os distintos grupos humanos consideram seu ambiente em função de suas histórias, economia e de sua cultura. E esclarecer o modo como são compelidos a utilizar seus produtos, a perturbá-lo gravemente ou, ao contrário, a recompô-lo, a protegê-lo, a empenhar-se em sua gestão e adotar medidas reguladoras no sentido de preservá-lo e valorizá-lo, possibilitando a sua própria reprodutividade social, econômica e cultural.

Para os estudos sobre a Amazonia as práticas produtivas e reprodutivas de grupos sociais ou sociedades se conformam e definem-se através da manipulação dos ecossistemas naturais para a produção de bens com valor de uso histórico e culturalmente dados, por um lado, e por outro pelo emprego de um saber e instrumentos de produção adequados. Todos os processos produtivos e reprodutivos significam a apropriação de um ou vários ecossistemas naturais, que podem ter sua estrutura e funcionamento alterados. O modo de produção ou formação social de cada grupo ou sociedade têm conjugado de maneira específica o trabalho humano, os saberes, a cultura, a ciência, os produtos da natureza e os meios de produção com a finalidade de produzir bens utilizáveis por elas. Selecionando-os, transformando-os e consumindo-os, distribuindo e trocando parcelas desses bens, necessários em cada momento histórico da vida humana, de modo a assegurar a sua produção e reprodução social dos mesmos.

As possibilidades de abordar o ambiente natural na produção dos estudos amazonicos são amplas e possibilitam o uso de diversificadas e ricas fontes.

Se o relacionamento da sociedade e/ou grupos sociais com seu ambiente natural é equacionado no bojo de relações sociais historicamente conformadas, a interpretação dos processos produtivos e reprodutivos contribuem de modo significativo para a comprensão da historia do ambiente e da construção das paisagens contemporâneas, possibilitando o diálogo presente-passado.

Recuperar as diferentes estratégias e praxis, as quais conferem certos graus de liberdade de reação dos diferentes grupos sociais envolvidos, que têm dado diferentes soluções aos impasses surgidos, de modo a reconformarem suas práticas para atenderem as necessidades surgidas ao longo da história, permite a compreensão dos processos na medida em que coloca em evidência os diferentes partícipes neles presentes.

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O reconhecimento dos distintos tempos históricos que orientam a dinâmica da interação Sociedade-Natureza, explicitando os ciclos de regeneração e reprodução dos ecossistemas que se definem pelo médio e longo prazo, inseridos, portanto na longa duração. Assim como a compreensão de que os processos sociais de apropriação dos produtos naturais pelos diferentes grupos sociais ou sociedades, são de curto prazo.

O reconhecimento das distintas percepções e representações que orientam as dinâmicas das diferentes interações Sociedade-Natureza ao longo da história de cada uma delas é fundamental para o educando perceba, pense e elabore um processo cognitivo/educativo e construa sentidos e significados sobre a interligação entre os dois, e por isto aproprie-se do sentimento de pertecimento e responsabilidae pelo ambiente e sociedade em que vive. E é nesse sentido que se insere e realiza de forma perene na cultura a ídeia-força de educação ambiental.

Cada grupo social ou sociedades têm construído marcos de referências ideológicos, simbólicos, de valores e culturas, para organizarem as distintas atividades de suas vidas e dar-lhes sentido, aceitação e certa continuidade. Esse marco de referência mental tem conformado, para cada grupo ou sociedade, uma determinada visão de mundo, de si mesmo, da natureza e da interação entre as duas. Essa visão de mundo é uma construção social que reflete de modo mais ou menos deformado a organização da sociedade em um determinado ambiente (habita)t. A concepção que cada um ou uma tem da Natureza e de seus produtos é, também, uma construção mental e histórica. E nem todas as visões culturais sobre o significado social da natureza tem favorecido o mesmo tipo de relação da sociedade com o seu ambiente natural.

Para os estudos amazônicos as práticas produtivas e reprodutivas de grupos sociais ou sociedades se conformam e definem-se através da manipulação dos ecossistemas naturais para a produção de bens com valor de uso histórico e culturalmente dados, por um lado, e por outro pelo emprego de um saber e instrumentos de produção adequados. Todos os processos produtivos e reprodutivos significam a apropriação de um ou vários ecossistemas naturais, que podem ter sua estrutura e funcionamento alterados. Podem ser mantidos por muito tempo pelo fato das alterações serem mínimas, ou serem totalmente artificializado como tem ocorrido com os projetos agrpecuários, extração de madeira etc. pré-postas pelas políticas governamentais do último quartel do século XX.

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O projeto e a coleção Em grande medida, a inclusão da disciplina “Estudos Amazônicos” no

currículo do Ensino Fundamental, deve-se a importância que a Amazônia possui nos cenários nacional e internacional.

Hoje, a Amazônia é a maior fronteira de recursos naturais do planeta. Possui um mega-bioma que desafia os saberes tradicionais e o conhecimento científico, diante das potencialidades e serviços ambientais que pode disponibilizar. 4 Possui uma importância fundamental na gestação de um novo modelo de civilização, com a utilização inteligente de seus recursos naturais e humanos, conciliando desenvolvimento socioeconômico com proteção do meio ambiente nos planos nacionais e internacionais. O que tem atraído o olhar de interesses de forças políticas e movimentos locais nacionais e transnacionais. Aqui, torna-se relevante que, apesar de sua importância internacional e, conseqüentemente da necessidade de diálogo com outros países, a Amazônia em território brasileiro seja tratada como um patrimônio brasileiro. 5

A inclusão da disciplina “Estudos Amazônicos” no currículo do Ensino Fundamental é uma excelente oportunidade para que a juventude paraense possa discernir sobre temas amazônicos que estão na agenda dos grandes debates internacionais contemporâneos, tendo em vista a incidência de problemas ambientais como as mudanças climáticas e uma crescente preocupação com as florestas tropicais e os recursos hídricos.

Hoje a disciplina estudos amazônicos é parte integrante do currículo do Ensino Fundamental em Unidades de Ensino municipais e estaduais no Pará. Todavia, três questões merecem destaque sobre o ensino desta disciplina: a) Qual a qualificação do ministrante? b) Qual o conteúdo ministrado? c) Quais os materiais didáticos utilizados?

Em busca de respostas a estas questões analisamos, também, documentos da Secretaria de Estado de Educação que orientam suas unidades de ensino sobre a disciplina “Estudos Amazônicos”. Dialogamos, ainda, com alguns professores e estudantes de “Estudos Amazônicos”.

Em relação à qualificação exigida ao professor titular da disciplina “Estudos Amazônicos”, verificamos que não há uma postura uniforme entre as Secretarias Municipais de Educação, ou destas com a Secretaria de Estado de Educação.

4 BECKER, B.K. Amazônia: geopolítica na virada do III milênio. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. 5 SILVA, Alberto Teixeira da. Segurança multidimensional e governança do desenvolvimento sustentável na Amazônia brasileira. Texto apresentado no 3º Congresso Latino-Americano de Ciência Política. Campinas-SP, setembro de 2006.

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Em relação ao conteúdo ministrado em “Estudos Amazônicos”, verificamos que, também por decorrência da definição do perfil acadêmico-profissional do professor titular desta disciplina, não há uniformidade entre estas Secretarias Municipais de Educação e destas com a Secretaria de Estado de Educação. Aqui, enquanto algumas secretarias municipais concentram o conteúdo de estudos amazônicos em Geografia do Brasil, outras ministram uma sociologia da região. Acreditamos que ainda prevaleça um momento de amadurecimento e construção das atribuições desta disciplina.

Em relação ao material didático utilizado pelos professos titulares de “Estudos Amazônicos”, verificamos que não havia um livro didático específico para esta disciplina. As secretarias de educação municipais e estadual não disponibilizam de um material adequado aos seus professores e estudantes desta disciplina. Aqui, verificamos que as limitações não são apenas das secretarias de educação, mais também do mercado de publicações de livros visto a inexistência de publicações desta natureza. Neste caso, restam aos professores titulares de “Estudos Amazônicos” a utilização de capítulos ou recortes de capítulos de outros livros didáticos como de História, Geografia e, em alguns casos, de Biologia, o que ocasiona uma superposição de conteúdos ministrados, pois tais conteúdos já seriam ministrados pelos professores titulares das disciplinas de História, Geografia, etc.

Diante do exposto, acreditamos que a importância da elaboração e publicação de material didático de “Estudos Amazônicos” para o Ensino Fundamental possui um duplo significado. Primeiro, por atender uma demanda do ensino desta disciplina e da educação paraense que não possuem um livro didático de “Estudos Amazônicos”, apropriado aos jovens estudantes do Ensino Fundamental. Segundo, por aglutinar várias temáticas relevantes ao bom entendimento da realidade amazônica em um único material didático e, assim, contribuir para a formação de cidadãos conscientes e que possam exercitar sua capacidade de influenciar na construção de uma Amazônia brasileira sustentável.

Em relação á escolha dos temas abordados nos dois livros, realizamos uma análise dos conteúdos ministrados na disciplina de “Estudos Amazônicos” em várias unidades de ensino fundamental, municipais e estaduais. Consideraram-se, ainda, as discussões sobre a Amazônia realizada pela imprensa, academia e entre ambientalistas. Assim, acreditamos que os temas escolhidos são de relevância a uma compreensão contemporânea da Amazônia em seus aspectos ambientais, sociais, econômicos e culturais.

Em relação a metodologia de elaboração da escrita dos capítulos temáticos, realizar-se-á uma pesquisa bibliográfica e documental sobre os mesmos pelos autores que, em seguida elaborarão um ‘texto inicial’ sobre o capítulo temático em questão. Este ‘texto inicial’, por sua vez, será submetido a uma “aula

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laboratório” com a presença de professores e estudantes que dialogam em “Estudos Amazônicos”. Aqui, pretende-se considerar para a escrita final os cenários sociais, culturais, naturais, etc. destes personagens. Pretende-se considerar as características de percepção e compreensão de professores e estudantes sobre as temáticas amazônicas escolhidas. Após este laboratório, proceder-se-á a elaboração do ‘texto final’ sobre o capitulo temático. Ao fim, este texto final será submetido a um “consultor adoc”.

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A ARTE DE PARTEJAR: HISTÓRIA E MEMÓRIA DAS PARTEIRAS DO AMAZONAS

Luciana Guimarães Santos1

Resumo

O presente trabalho tem o propósito de analisar o ofício da arte de partejar. Como as parteiras através do conhecimento informal, da observação do saber transmitido de geração a geração, adquirem o ofício do parto tradicional. Narrar às experiências dos saberes da parturição é o norte nesse artigo. A pesquisa utiliza-se dos relatos da História Oral e da Memória, destacando as parteiras Dona Antonia e Dona Luiza. Analisando através de suas falas o saber popular, que é a arte de partejar. O interesse de investigar as parteiras é trazer à tona as histórias de vida dessas mulheres e dando a elas oportunidade de relatar seu trabalho.

Palavras Chave: Parteira Tradicional; História Oral; Medicalização do Parto; Memória.

O processo do nascimento é historicamente um acontecimento natural na

vida de uma mulher. O parto é uma das práticas humanas mais antigas, e um evento com inúmeros significados culturais que através do tempo sofreu transformações, mas apesar dessas modificações o nascimento não deixou de ser um ato marcante da vida.

A mulher no ato de parir se isolava, geralmente tinham filhos sem nenhuma assistência ou ajuda de outras pessoas. Com o passar do tempo, surgi à figura da parteira, as mulheres chamadas de parteiras serão as responsáveis por trazerem crianças ao mundo e eram vistas como mulheres detentoras do saber do partejo, e das práticas religiosas. A parteira foi e é capaz de vivenciar no parto todo o processo de nascimento, pois seu ofício é doação e dedicação do seu tempo. Usando de sua sabedoria, pois na observação ela sabe que a parturição é um evento “fisiológico”, “biológico”, “cultural” e “individual” da natureza da mulher. O parto vivenciado como um ritual de passagem na vida da mulher e da família.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas, Instituto de Ciências Humanas e Letras.

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E toda essa simbologia que antes tinha em torno do nascimento, do parto e o saber da parteira, vão passar por mudanças: como perseguição na Idade Média e desqualificação na Modernidade, com o processo de medicalização do parto.

Na Cidade de Manaus, as parteiras sempre estiveram presentes, nas áreas rurais e ribeirinhas. Exercendo seu ofício através do conhecimento que foi transmitindo de geração a geração. Como diz Dona Antônia

Você sabe que as pessoas no interior não tem estudo, não tem orientação de médico, não tem nada, a gente faz pelo necessidade, e foi como aconteceu, eu aprendi muita vez com minha avó, ela me levava e acabei vendo muitas coisas. Como ela fazia e eu como era muito curiosa, eu analisava muitas coisas, mas eu já mais pensei em ficar em uma situação de eu fazer sozinha, por eu sempre ia com ela, fazia com ela, eu ficava na cabeceira (cama) da cabeça da moça e ela fazia o resto, então, que dizer essa parte ai eu sabia, mas quando chegou o dia de eu mesma, cair nas minhas mãos, eu fazer quase por necessidade, porquê a moça tinha essa criança ou ia morrer, né. . Porquê a criança tava atravessada, e ela vinha do interior pra Manaus, que dizer ela ainda tava muito longe para chegar aqui em Manaus, e foi quando eu entrei em ação, né! Eu vi o que minha vó fazia o chã, e vez, e graça a Deus através de Deus mesmo, né. O milagre aconteceu, e eu salvei aquela senhora e o filho dela também, é homem. Então que dizer foi eu mesma que fiquei em ação, foi eu que fiquei ali, ninguém! Só marido dela ficou comigo lá, o resto foi eu que fez o negócio lá (parto), então ai eu já fiquei assim, já quis ir no outro parto, e já fui sabendo já das coisas, então foi isso que aconteceu, a parteira na coisa, como é na necessidade né.2

Dona Antonia da Silva, mãe de quatro filhos. Nasceu em Ilha Grande do

Soriano, no município de Itacoatiara no interior do Amazonas. Dona Antônia vem de uma família humilde, pois interior onde morava era muito escasso de saúde pública, “lá não tinha nada, lá era lago, médicos só em Itacoatiara, lá é interior mesmo sabe! Cada qual tem seus terrenos. A saúde ali pra gente era mato mesmo!”3

Dona Antônia apesar do pouco acesso a educação, foi alfabetizada, uma mulher “curiosa”, que aprendeu a fazer partos com sua avó, além da curiosidade, tem a “necessidade”, devido à ausência de profissionais da saúde, ela aprendeu por necessidade, como ela diz: “foi como aconteceu”. A parteira Antônia, uma senhora muito simples, que com delicadeza e atenção se prontificou a me ajudar com as informações sobre seus serviços de aparar criança.

2 Entrevista com Dona Antonia, realizada em 25.07.12. Acervo particular. 3 Idem.

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Dona Antônia diz que todos os seus filhos nasceram em casa, e ela mesma fez seus partos, como é mesma fala: “quando a parteira chegava à criança já tinha nascido só era ela para cortar o umbigo e cuidar da criança.”

É através desse conhecimento empírico, esse conhecimento que é passado de geração a geração, e muitas vezes aprendido com outra parteira ou por necessidade que se aprende a partejar, pois há casos de grávidas que entram em trabalho de parto e a parteira não se encontra. Assim, são chamadas para ajudar qualquer mulher, com isso muitas acabam se tornando parteira, isso acontece e muito, principalmente, nas comunidades ribeirinhas.

Muitas parteiras são mulheres associadas com pessoas humildes e compreensivas, que estão sempre disponíveis para ajudar, pois muitas vezes renunciam o aconchego de seu lar para assistir a parturiente que esta em processo de parto, ou que tem quer cuidar da gestante durante sua gravidez ou pós-parto e do recém-nascido. Esses fazeres do parto envolve atividades práticas, como ritual de utilização de ervas, chás e rezas, os cuidados com a criança, a grávida e a alimentação pós-parto.

Dona Antonia relata do quanto é importante o trabalho de parteira: “É muito importante à gente dar vida, trazer vida, é muito importante, porque você estar trazendo uma vida né. Ali, e quando você ver a criança nascer viva ali, que dizer é muito emocionante, você ver!”4

Ainda há um grande número de parteira tradicionais no Brasil, e elas estão praticamente presente em grande parte das comunidades. As parteiras são pessoas preparadas para oferecer assistência ao parto, são mulheres reconhecidas e solicitadas por seu prestígio não somente na hora do parto, mas também por adquirir saberes sobre rezas para tirar quebranto da criança, ervas e remédios, saber esse também concebido de forma informal.

Como diz Marina Santos Pereira citando, Del Priore: As práticas que envolviam o parto das mulheres no Brasil colonial eram um evento de mulheres; revela também que a situação agonizante gerada por um parto difícil requeria a participação da vizinhança, tornando-o um evento coletivo. Ressalta ainda que as mulheres se valiam de rezas e benzimentos, bem como de instrumentos do mundo doméstico, como a bacia, a tesoura, para cortar o cordão umbilical, e da garrafa de cachaça, para limpar a tesoura, assim como do azeite, óleo ou banha, para as massagens – o parto era um momento de solidariedade entre mulheres que contavam com a ajuda das parteiras, chamadas de “aparadeiras” ou “comadres” 5

4Idem. 5DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil colônia. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1995. Apud PEREIRA, Marina Santos. O Trabalho da Parteira: um saber iniciado e compartilhado entre as mulheres. In: V Jornada Internacional de Políticas Públicas - V JOINPP, 2011, São

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Ao trabalharmos com as parteiras, valorizamos também sua memória. Alessandro Portelli nos ensina a “não encarar a História Oral como instrumento para fornecer informações sobre o passado. O que interessa é a subjetividade dos narradores.”6 Assim, “à memória, ainda que seja moldado de diversas formas pelo meio social, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais.”7

Ao entrevistarmos essas mulheres observamos que muitas se fizeram parteiras na experiência e, provavelmente, foram nomeadas e reconhecidas como tais pelo meio sociais onde vivem.

A essência da arte de partejar não mudou, pois as parteiras souberam preservar a cultura e tradição, como verdadeiras defensoras do saber de aparar uma criança. Na hora do parto entrevistadas comentam que oram, ou seja, trabalham com devoção e fé naquilo que fazem. É o caso de Dona Luiza que rezava uma oração, que aprendeu. Ela explica que

quando a mulher ta pra ter filho: minha Santa Margarida;

Não to prenha e nem parida; Ma ajuda a tirar essa carne podre da minha barriga.

No caso é a placenta, né. Pra rezar na ora, não me lembro quem foi que me ensinou esse dizereszinho, hoje em dia não tem mais essas coisas, antigamente era mais valido e de confiança, hoje é só no mais fácil... quando a mulher tava pra ter nenê colocava logo escapulário, Nossa Senhora do Parto,...conforme sua devoção, tudo valia. 8

Dona Luzia Feitosa, nasceu na cidade de Manaus. É divorciada e tem oito

filhos todos nasceram em casa, inclusive os filhos gêmeos. Cursou até o ensino fundamental, apresenta ser uma mulher muito firme na sua oralidade, sempre se expressando com clareza sobre seu passado. Bem humorada, em alguns momentos da entrevista a parteira Luiza e eu riamos, com fatos engraçados que aconteceram quando fazia partos. Ela aparou muitas crianças dentre elas estão netos, sobrinhos e o último que fez o parto foi do seu bisneto que tem 16 anos. Dona Luiza: “era doméstica, não tinha emprego, só caseira dentro de casa com

Luís/MA. Anais da V Jornada Internacional de Políticas Públicas: Estado, Desenvolvimento e Crise do capital, 2011. Disponível: http://www.joinpp.ufma.br. Acesso 21/08/2012. p.03 6PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História Oral. In: Ética e História Oral. Projeto História, Revista do Programa de Estudos pós-graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, vol.15, 1997. pp. 13-49. 7 Ibidem, pp. 15-16. 8 Entrevista com Dona Luiza, realizada em 23.07.12. Acervo particular.

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os filhos, o serviço de parteira era uma extra”9. Tornou-se parteira, mais por causa de sua comadre, que era parteira, foi por intermédio de sua comadre que tirou o certificado de parteira leiga. Sempre que se lembra dela fica emocionada. A parteira Luzia diz que os partos que fazia por fora cobrava certo valor, mas diz também que “levei muito calote”. Luzia diz que se sente católica, e usava das rezas durante o parto.

As parteiras, além de dar auxílio ao parto, são solicitadas em suas comunidades ou locais onde residem para prestar assistência à saúde, devido seu conhecimento no manejo de ervas, e quando se trata de saúde, tanto de homem, quando de mulheres, lá estão elas dando assistência. Essa é um das especificidades dessas mulheres, que conseguem uma proximidade tão grande com as gestantes, as famílias e com a comunidade.

Dona Antonia além de ter sido parteira foi benzedeira, e ela diz: tudo aprendeu e fazia. Ela ainda fala que não sabe donde vem, mas fazia e as pessoas acreditavam. “E coloquei muitas desmentiduras no lugar”10.

Carmen Susana Tornquist, diz que “O uso de benzeções e massagens tinha por objetivo aumentar as dores, que eram vistas como necessárias para a vinda do bebê”11. As massagens também são utilizadas, caso o bebê não esteja na posição correta para nascer de parto normal, como relata Dona Antônia, seu primeiro parto sozinha, sem a ajuda da sua avó, foi no barco, ela tava vindo do interior para a cidade de Manaus, e no mesmo barco tinha um grávida, que estava vindo para ter seu filho por que estava atravessado na barriga, e tinha que vir para a capital. Durante a viagem a moça começou a sentir dor, ou a moça tinha a criança ou ia morrer, pois ainda faltava muito para chegar a Manaus, e foi quando ela entrou em ação. Dona Antônia fez o chá e a massagem.

A puxação é uma prática importante entre a parteira e a parturiente na gestação e no pós-parto, pois se verifica como está o bebê na barriga, caso ele não esteja na posição correta, à parteira puxa ou massageia a barriga, e coloca o bebê na posição certa para parto normal. Nas comunidades interioranas, principalmente, é comum às parteiras adotarem esse tipo de procedimento de “puxar” a barriga da mulher pós-parto para não ficar barriguda. “A puxação é uma prática assiduamente empregada durante a assistência à gestante a à

9 Idem. 10 Entrevista com Dona Antonia, já citada. 11TORNQUIST, Carmem Susana. A mão e a luva: o processo de medicalização do parto e o corpo feminino em Florianópolis. In: MORGA, A. (Org.). História das mulheres de Santa Catarina. Florianópolis: Argos/Letras Contemporâneas, 2001. p. 50.

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parturiente. É um procedimento em torno do qual se estabelece toda a relação entre a parteira e a mulher”.12

Outra questão é o deslocamento que essas mulheres fazem para chegar à casa das parturientes, principalmente, no interior, como diz Dona Antonia: “no interior é casa aqui outra lá”13. Muitas vezes ia a pé, de cavalo, carroça, barco ou canoa para chegar à casa da gestante, em condições desfavoráveis, mas lá estavam elas. Dona Luiza diz que, às vezes a gente “tá dormindo, lá chega ai tem que largar tudo e atender”14.

Dona Luzia também conta que sempre foi prevenida: Eu sempre fui prevenida tinha meu material, eu tinha, tinha tudo. E mais não encontrei barreira nessa história não, pra mim foi tudo legal. Até essa comadre que era parteira já, morreu. Ela foi parteira, nos formos parteiras e ela foi minha parteira (risos). Usava tesoura para cortar o cordão umbilical, eu usava. Agora é um protocolo doido, mas naquele tempo a gente pegava o barbante colocava no álcool deixava dentro do álcool, quando precisava pegava com uma pince, tira fazer uso e graça a Deus nunca teve problema. E as pinces duas pinces uma para segurar o cordão umbilical e outra perto da placenta pra evitar uma hemorragia. Eu tinha tudo tinha coisa para escutar mandei fazer tinha minhas gases tudo, tudo, tudo.15

“Agora é um protocolo doido”, Dona Luiza esta se referindo aos novos

processos de higienização, instrumentos como tesouras e luvas serão exigidos com mais rigor no parto. Se no século XIX o parto era feitos por parteiras, da metade do século XX os partos passaram para o controle dos médicos no hospital, e devido a isso os cuidados, procedimentos e instrumentos de partos serão cobrados com mais responsabilidades por essa instituição, o hospital.

O interessante também é a especificidade das parteiras do interior e da cidade, com relação o que elas ganham para fazer partos. Exemplo da Dona Antonia ganhava galinha, farinha e até chamada para comer tracajá. Dona Luiza era parteira domiciliar aprendeu o ofício com sua comadre, mas depois por incentivo novamente de sua comadre, participou de curso de parteira. Perguntei se ela ganhava ou cobrava alguma coisa, veja o relato dela:

12CARNEIRO, Lívia Martins e VILELA, Maria Esther de A. As Parteiras da Floresta. In: In: Luiza Jucá, Nilson Moulin (org). Parindo um mundo novo: Janete Capiberibe e as Parteiras do Amapá. São Paulo: Cortez. 2002. p.82 13 Entrevista com Dona Antonia, já citada. 14 Entrevista com Dona Luzia, já citada 15 Idem.

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Duzentos dependendo... eu levei muito calote também(risos), Por que quanto a mulher tava com a dor, era aquela coisa...quanto passava, ai pronto acho que esqueciam, eu acho. Tenho um caso bem interessante , eu fiz um parto, na cachoeirinha ( um bairro em Manaus), não lembro o nome do marido dessa senhora, e nem o nome dela e nem o nome da criança, só sei que foi uma menina, nasceu no dia 13 de junho, também não lembro mais o ano, ela veio do interior ela já era mãe, ai ( pausa), era uma vila, ai a irmã dela me conhecia e veio me chamar, ai fui pra lá. Passei à noite e nada da mulher e nada da mulher, ai falar de hospital pra ela era uma onça ela já estava acostumada a ter em casa, né. Ai deu 5 horas da manhã, fui pra lá 7 horas da noite, deu 5 horas da manhã nada! Ai disse para o marido dela, não tem mais solução não. Aqui o caso é levar ela na cachoeirinha perto da Igreja Santa Rita, e leva para o Hospital de Santa Rita, ai ele ficou assim, ela tava no quarto, ai a irmã dela foi pra lá, quando ela voltou disse: Dona Luzia me desculpa minha irmã ta acostumada até filho, depois de manter relações, ai eu disse pra ela mana não seja por isso, por que não me falaram isso antes! Sabe que foi uma injeção, ai ele foi lá pro quarto, vimos ele passar era uma vila, depois ele veio de lá todo desconfiado, ai ela chama a irmã dela, e pede pra mim entrar, a menina já estava nascendo, achei impressionante isso. Coisa de interior mesmo, mais é valido (risos), ela deve estar com mais de 20 anos, é assim.16

O relato nos chama a atenção, Dona Luiza conta que uma parturiente apenas

conseguiu parir após manter relações sexuais com o marido, por isso, provavelmente, a resistência dela não querer ir ao hospital. As parteiras são mulheres respeitadas nos locais onde atuam, são “identificadas como lideranças”, elas estabelecem laço familiar, com isso, são referências para a saúde da gestante, da criança e da família. Muitas parteiras tornam-se comadre, madrinha de batismo, devido esse laço de proximidade. Dona Luiza conta:

Nasci em casa, dona Sebastiana, a parteira dona Sebastiana morava aqui na Leonardo (Rua no bairro da Praça 14, Manaus), eu me lembro bem daquela senhora. Mamãe ia lá, por que naquele tempo da ignorância, parteira eram nossa madrinha, segunda mãe, em a simplicidade que existia, até por sinal era muito bom, então a gente gostava muito da dona Sebastiana.17

Com a relação de proximidade das parteiras com o ambiente familiar das

grávidas, muitas delas se tornavam madrinha de batismo e segunda mãe do recém-nascido.

O puerpério, período importante para mãe e o recém-nascido, para a família, e principalmente para a parteira, Dona Luzia diz que acompanhava o pós-parto:

16 Idem. 17 Idem.

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“fazia o asseio, dava banho no nenê oito dias. Fazia asseio na mãe dava banho no nenê, tudinho”.

Carmem Susana Tornquist descreve: Durante o período do resguardo, a mulher ficava isenta de suas atividades domésticas habituais. Era comum que o marido, um parente ou mesmo a parteira ali permanecesse prestante auxílio na rotina doméstica, que ficava bastante alterada no momento do pós-parto (“quarentena”). A parteira permanecia, muitas vezes, na casa até cair o umbigo da criança, podendo ser chamada para eventualidades no reestabelecimento da mãe. O pós-parto, contrariamente ao período da gravidez, era bastante significativo no sentido de demarcar o processo de retorno à vida cotidiana, o que sugere, também aqui, a existência de um ritual de retorno à vida cotidiana, alterada pelo evento do nascimento. Na quarentena, uma série de proibições e tabus relativos à alimentação, aos cuidados corporais e às relações sexuais eram recomendadas ... “Muitas cautelas e caldo de galinha” era a regra geral...”18

Depois que nascer a parteira corta o cordão umbilical com uma tesoura

virgem (tesoura nova). Começa o período de quarentena, com orientação da parteira a mãe não deve comer qualquer tipo de comida. O mais apropriado é alimentar-se de canja de galinha, quando a mãe tem pouco leite a parteira recomenda tomar bastante caldo (sopa), a criança também não podia pegar sereno à noite e nem vento. Pois, corria o risco de contrair algum tipo de doença, o pai e a mãe não podem fazer nenhum tipo de esforço, outra informação importante é não espremer a roupinha da criança na hora da lavagem e não pode ficar muito exposta ao sol, conforme a orientação pode causar cólica na criança.

Os problemas de partos, conforme as parteiras das quais entrevistei, relatam que nenhuma teve complicações de nascer primeiro o pé ou a mão, chamado pélvico. A Dona Antonia relata que: “que pegou criança laçada com o cordão umbilical passado (fez o gesto no pescoço) só nunca peguei assim de pélvica, isso aí não, sempre normais (parto normal), mas complicados os que vinham com o cordão”19.

Dona Antonia também fala que era procurada para fazer aborto: “Recebi sim! Isso pra mim não vale, nunca aceitei, nunca, nunca, nunca!”20 Perguntei se iam muitas mulheres? Ela respondeu: “Pra mim não, mas pra minha comadre era quantidades que vinham, quando saiam do serviço, dia de sábado tudo

18 TORNQUIST, Carmem Susana. Op. Cit. p. 47. 19 Entrevista com Dona Antonia, já citada 20 Idem.

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vinham pra ir, meninas jovens”21. Sábado porque era o dia do descanso para as mulheres que trabalhavam, tanto no comércio, como na indústria.

A arte de partejar é um dom que a parteira tem de ajudar o outro, seu trabalho é reconhecido no local e na cidade que reside, ajuda a salvar e aparar vida, principalmente no interior. É um saber cheio de solidariedade, mas de muita responsabilidade e preocupação para com a vida da parturiente e da criança, na hora da parturição e puerpério. Elas começam auxiliando no parto, e aprendem a ser parteira acompanhando, observando, ajudando a mãe, avó, comadre ou até outras parteiras conhecidas, mulheres essas que são do lar e da família, sempre disponível a ajudar.

Ser parteira é estar disponível, pois o nascimento não tem hora marcada e nem lugar. Como cita Betty Mindlin:

Ser parteira é um dom, conferindo a capacidade de adivinhar e de fazer diagnósticos. Mas além de privilégio, é também uma obrigação e uma responsabilidade social: a de salvar vidas, atendendo em lugares perdidos, a qualquer hora. O domínio feminino, valorizando o papel da mulher: a transmissão do saber se dá em linha materna.22

Partejar é uma experiência adquirida no cotidiano da parteira, um

conhecimento aprendido informalmente, através da partilha de vida dessas mulheres, um ato de solidariedade com o próximo. “O processo de nascimento em domicílio se apresenta como uma experiência tecida em uma rede de múltiplos significados, tanto para as parteiras tradicionais como para as parturientes e familiares”23.

É significativo para nós que a maioria de nossas entrevistadas não fala em parir ou parto, mas, aparar, pegar ou segurar a criança. Quando perguntamos se são parteiras afirmam que sim, no entanto no desenrolar da entrevista, percebemos que fizeram ou pegaram seus próprios filhos e alguns filhos e filhas de outras mulheres quando a necessidade se fez presente. Significativo também é a fala do passado (segurar a criança), misturada com a fala do presente (no

21 Idem. 22 MINDLIN, Betty. As Parteiras do Amapá. Prefácio.In: In: Luiza Jucá, Nilson Moulin (org). Parindo um mundo novo: Janete Capiberibe e as Parteiras do Amapá. São Paulo: Cortez. 2002. p.18 23BARROSO, Iraci de Carvalho. Os Saberes de Parteiras Tradicionais e o Ofício de Partejar em Domicílio das áreas Rurais. PRACS- Revista Eletrônica de Humanidades, v. 02, p. 01-14, 2009. Disponível:http://periodicos.unifap.br/index.php/pracs/article/view/34/n2Iraci.pdf. Acesso15/01/2013. p. 02

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tempo da ignorância e agora um protocolo doido). Esses novos fazeres do parto, registros e protocolos, Foucault chama de “disciplina”,

a disciplina exerce seu controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento, a disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos, e implica um registro contínuo. É o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos em sua singularidade24.

A partir do século XVIII com o advento da ciência, a medicina passou a

estudar os procedimentos do parto e os homens começaram a participar das novas técnicas da medicalização, introduzindo a cirurgia como técnica de auxiliar no nascimento de bebês. Normalmente os partos eram realizados com a mulher em pé, de cócoras ou sentada, era um processo natural. E com a medicalização do parto é que as mulheres começaram a dar a luz deitadas.

Assim, o parto foi levado para dentro de clínicas e hospitais, ambientes vistos por muitos, e principalmente pelas mulheres como desconfortáveis. Algumas famílias sentiam reseio quando a opção de nascerem os seus filhos em um local cheio de instrumentos e pessoas desconhecidas. O parto doméstico é uma forma de voltar às origens com as práticas naturais do parto, quando a mulher contava apenas com a ajuda de parteiras para ter seu filho em casa. “O parto era muito mais um ritual de mulheres e quem assistia a mulher neste e em outros momentos era a parteira que até então não contava com nenhuma formação especializada exceto por sua própria experiência”25.

A parturição é um evento familiar e social que tem a parturiente, como protagonista desse acontecimento, por isso que para ela o parto é “divisor de águas”

O parto é considerado um divisor de águas na vida da mulher, carregado de significados construídos e reconstruídos, a partir da singularidade e cultura da parturiente que transforma o cotidiano da mulher. Esse processo é um evento histórico no qual a arte de parir ocorria no domicílio da mulher, que geralmente era acompanhada por uma parteira de sua confiança. Nesse cenário, a mulher

24 FOUCAULT, Michel. O nascimento do hospital. In: MACHADO, Roberto (ed). Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. pp. 99-111. 25ROHDEN, Fabíola. Uma Ciência Da Diferença: Sexo, Contracepção e Natalidade na Medicina da Mulher. 2000. p 30. Tese (Doutorado apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional) - Universidade Federal do Rio de Janeiro,2000.

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expressava livremente seus sentimentos e anseios em um ambiente caloroso no seio familiar.26

Até início do século XX a maioria dos partos era feitos na casa das próprias

parturientes. Contudo, com o avanço da medicina e o surgimento de novas técnicas propiciaram a busca dos partos hospitalares, considerando o hospital o local mais seguro para o parto. Com o tempo histórico, o parto tornou-se um evento hospitalar, com a medicalização e as rotinas cirúrgicas, devido os instrumentos como “bisturi”, “fórceps”, “cesariana” afastaram as parteiras do ofício de partejar. Mas elas permaneceram no seu silêncio.

E muitas parteiras aprenderam nos cursos os cuidados com o parto e nascimentos. No entanto percebe-se também, que este conhecimento era completado com a prática do cotidiano que as elas tinham sobre o parto. Mas também dá para perceber que devido o controle feito pelo Estado, e no hospital pelos médicos. As parteiras adotaram práticas disciplinares.

26 ESCOBAL, Ana Paula; GONZALES, Roxana Isabel Cardozo; HÄRTER, Jenifer; MATOS, Greice Carvalho de; SOARES, Marilu Correa. A Trajetória Histórica Das Políticas De Atenção Ao Parto No Brasil: Uma Revisão Integrativa. Rev enferm UFPE online., Recife, 7(esp):870-8, mar., 2013. p.871

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AS REPRESENTAÇÕES DA AMAZÔNIA EM LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA APROVADOS PELO PNLD PARA OS ÚLTIMOS

ANOS DO ENSINO FUNDAMENTAL E ADOTADOS PELAS ESCOLAS DE BELÉM ENTRE 1999 A 2014

Luis Eduardo da Silva Monteiro1

Resumo

Este trabalho tem como objetivo apresentar a pesquisa que venho desenvolvendo em torno das representações da Amazônia em livros didáticos de história aprovados pelo PNLD para os últimos anos do ensino fundamental e que foram adotados nas escolas estaduais de Belém no período pretendido de 1999 a 2004. Desta feita, procuro ressaltar a importância do PNLD em meio às políticas públicas educacionais elaboradas no Brasil, as especificidades de se trabalhar com livros didáticos, as pesquisas mais recentes envolvendo livros didáticos, as suas lacunas e as permanências verificadas no ensino de história, a despeito das inovações apontadas pelo PNLD. Em seguida apresento a importância de se estudar a história regional, as fontes e o aporte teórico-metodológico com que pretendo analisar as coleções de história, bem como o estágio atual do andamento da pesquisa.

Ao longo do século XX observamos uma preocupação cada vez maior do

Estado brasileiro em estabelecer uma política educacional interessada em conformar um tipo de cidadania de acordo com as necessidades sociopolíticas do momento, dentre outras formas, através de leis, diretrizes curriculares e programas de distribuição de livros didáticos nas escolas de todo o país. Desde a criação da Comissão Nacional do Livro Didático (CNLD) em 1938, na Era Vargas, passando pela criação da Comissão do Livro Técnico e Livro Didático (COLTED) em 1966, no contexto da Ditadura Militar, até a criação do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 1985, durante o período de Abertura Democrática, o Estado brasileiro formulou políticas de intervenção sobre o que era veiculado nos livros didáticos, principalmente de História, assim como uma política de distribuição nas escolas.

Atualmente, o PNLD corresponde à última instância em termos de uma política educacional visando intervir na qualidade dos livros didáticos que estão disponíveis para o uso pelos professores nas escolas brasileiras. A partir de 1996, o PNLD passou a contar com uma comissão de especialistas por

1 Mestrando em História Social da Amazônia (PPHIST/UFPA).

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disciplina que avaliavam os livros didáticos disponíveis para a escolha dos professores. O parecer dessa comissão era divulgado no Guia do Livro Didático, instrumento que servia de orientação para a escolha dos livros pelos professores. As obras inscritas que não fossem aprovadas seriam excluídas do PNLD (CASSIANO, 2004).

O livro didático é um objeto cultural complexo, pois apresenta características próprias de conteúdo, linguagem, edição, autoria, público alvo e espaço de circulação. Sua constituição perpassa o interesse de sujeitos sociais diversos, além de autores e editores. Através dele, o Estado procura intervir no ensino, no entanto, professores e alunos se apropriam de forma diferenciada desse material e lhe atribuem significados próprios. Por esse motivo, os livros didáticos podem ser analisados sob diversos olhares e se constituem como fontes de diversas pesquisas no campo da história.

Dentro da bibliografia levantada (principalmente no banco de dados do Scielo e da CAPES) podemos observar que os livros didáticos são analisados sob diferentes perspectivas: (01) análise das ideologias presentes em seu conteúdo e no papel que o livro assume como veículo portador de um sistema de valores correspondentes aos interesses e necessidades do Estado brasileiro (FARIA, 1991); (02) analises do livro didático enquanto uma mercadoria ligada ao mercado editorial e à indústria cultural (MUNAKATA, 2012; MATOS, 2012; GATTI JÚNIOR, 2005); (03) análises do processo de escolha das coleções pelos professores, no interior do âmbito escolar (ZAMBON & TERRAZZAN, 2013; CASSIANO, 2004); (04) análises das relações entre história e memória nos livros didáticos (ALMEIDA & MIRANDA, 2012); (05) revisões de processos históricos, como a Idade Média (SILVA, 2011) e a Ditadura Militar (PEREIRA & PEREIRA, 2011); (06) análise das representações de grupos sociais como o negro (ROSEMBERG & BAZILLI & SILVA, 2003) e o índio na história brasileira (COELHO, 2009).

No começo do século XXI, o diagnóstico das coleções de história aprovadas pelo PNLD/2005 acusam um saber histórico onde a narrativa acontecimental (69% das obras) ainda é mais valorizada do que os procedimentos da construção do saber histórico, as experiências prévias dos alunos pouco são levadas em considerações nas coleções (apenas 32% dos livros), a maior parte dos currículos de história das coleções ainda operam sob uma base eurocêntrica e cronológica (76% delas) e a renovação historiográfica ainda é pouco incorporada (21% das coleções apenas) (MIRANDA & LUCA, 2004).

Portanto, não foram encontradas maiores referências sobre a forma como os aspectos regionais são tratados pelos currículos oficiais de história presentes no conteúdo dos livros didáticos. A exceção encontrada corresponde à pesquisa realizada por Medeiros sobre a visão da região amazônica presente nos livros didáticos de 1ª a 4ª série de Estudos Sociais utilizados em 30 escolas de Belém

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no ano de 1984 (MEDEIROS, 1988).Desta feita observamos que há uma lacuna na pesquisa envolvendo livros didáticos acerca das representações que a região amazônica apresenta nos livros didáticos de história.

As principais contribuições que o estudo das questões regionais em livros didáticos de história podem fornecer residem, por um lado, no repensar das formas tradicionais de se conceber e ensinar história percebidas ao longo do século XX, uma história fundada sob modelos europeus onde o Brasil e a Amazônia figuram como apêndice. O apelo em se estudar o mundo globalizado relega a história nacional uma posição secundária, um apêndice da história do desenvolvimento do capitalismo internacional, onde os problemas nacionais são explicados a partir de razões externas. Por outro lado, a história nacional, quando abordada, tem sido apreendida pelo olhar da região mais hegemônica político economicamente (BITTENCOURT, 2004).

Dessa forma, o ensino de história praticado nas escolas brasileiras foi marcado pela valorização do que está tanto temporalmente longínquo de nós quanto pela valorização do que está geograficamente distante (a história e a realidade europeia), em detrimento do conhecimento acerca do nosso espaço mais próximo e de um tempo mais recente (no nosso caso, a realidade amazônica). No entanto, o conhecimento acerca da história regional é uma importante ferramenta de resistência aos processos de padronização e homogeneização cultural produzidos pela sociedade de consumo e por um processo de globalização que procura dissolver cada vez mais as identidades socioculturais construídas pelos indivíduos (CAIMI, 2010).

Através do conhecimento da história regional é possível compreender melhor o ambiente que nos cerca e as transformações e permanências da história a partir das experiências culturais que nos são familiares, o que é fundamental para fortalecer laços de pertença e construção de identidades sociais alternativas aquelas fornecidas pela sociedade de consumo de massa, assim como a historicidade dos problemas sociais em nossa volta, além de poder fornecer uma articulação maior entre o local, o regional, o nacional e o internacional (CAIMI, 2010).

O lugar da Amazônia nos livros didáticos não é colocado de forma arbitrária, mas faz parte de um jogo de poder cujo campo de luta está nas representações que são formuladas sobre as regiões. Nessa pesquisa entendemos o conceito de região como uma construção histórica e cultural em constante transformação, pois é fruto do embate entre grupos de interesses distintos. Região, nesse sentido, também é um campo de luta, onde diversos discursos sobre o que seja regional procuram assumir posições de hegemonia frente aos outros e assim, legitimar, na prática, ações de dominação e políticas de intervenção no espaço (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2008).

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O desconhecimento da história da própria região, somado com as precariedades do ensino e com os imperativos de consumo veiculado pelos meios de comunicação de massa contribuem para formar sujeitos alienados e descompromissados com a sua própria história e com os problemas que persistem na nossa região. O maior conhecimento sobre a história local permite habilitar os indivíduos a se apropriarem de forma crítica dos bens culturais que chegam para o seu consumo. Investigar as representações que a região amazônica assume nos livros didáticos de história do ensino fundamental é importante para conhecer os espaços relegados ao conhecimento de nossa região nos programas educacionais oficiais, uma vez que estes distribuem livros para as escolas de todo o país e, portanto, carregam representações da região para todo o Brasil.

Este projeto procura analisar como a região amazônica está representada nos livros didáticos de história dos anos finais do ensino fundamental (5ª a 8ª série/6º ao 9º ano) que foram aprovados pelo PNLD desde 1999 a 2014 e adotados nas escolas de Belém, pretendendo abranger um total de 10 escolas aproximadamente. O período da pesquisa procura abranger as coleções de história aprovadas pelo PNLD após a instituição da avaliação pedagógica por especialistas, iniciada em 1996 mas que, no caso da história, começou em 1999, conforme está presente no primeiro Guia de Livros Didáticos publicado para a disciplina, sendo seguido a cada 03 anos, pelos Guias de 2002, 2005, 2008, 2011 e 2014, totalizando as 06 últimas edições do PNLD voltadas para os anos finais do ensino fundamental.

Portanto, além das (01) coleções de história e dos (02) guias de livros didáticos, pretendemos também utilizar outros documentos voltados para a educação que foram produzidos pelo Estado brasileiro, como a (03) legislação voltada para o ensino fundamental e para o PNLD, (04) a LDB/1996 e suas alterações, (05) os PCN’s/1998, (06) as DCN’s, (07) os editais e outros documentos correlatos produzidos pelo MEC. O objetivo aqui é verificar como esses documentos abordam a questão regional, como se relacionam com a produção de livros didáticos de história e quais transformações esses documentos engendraram nas representações sobre a região. A legislação, os editais, as coleções de história e os guias devem ser percebidos numa perspectiva histórica, como intuito de perceber as mudanças e permanências ao longo do tempo.

A metodologia da pesquisa pretende partir do levantamento do corpo documental, a legislação, editais e guias de livros didáticos, além de inventariar as coleções de história mais utilizadas nas escolas de ensino fundamental de Belém, dentro do período da pesquisa. Para isso contamos como banco de dados do SIMAD (Sistema do material didático), um anexo da página do FNDE, que contém a relação de livros didáticos distribuídos para cada escola

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cadastrada no sistema em todo o país, No SIMAD é possível saber quais livros foram distribuídos para cada escola, num determinado ano do PNLD.

Em seguida pretendemos abordar as coleções de história mais adotadas pelas escolas através da análise do discurso, compreendida aqui como uma análise dos elementos presentes no contexto de produção e uso do discurso que, por sua vez, são os elementos que estruturam todo esse discurso. Todo texto pode ser entendido como um discurso construído a partir do diálogo entre saberes diversos(Bakhtin, 2006). O discurso sob a região amazônica presente nos livros didáticos deve ser entendido dentro dessa perspectiva, pois o próprio livro é produzido a partir da interação entre diferentes saberes que circulam no ambiente escolar. Na elaboração do livro didático de história, o(s) autor(es) deve(m) levar(m) em consideração as leis e diretrizes educacionais prescritas pelo Estado, o saber historiográfico, o saber docente e o saber escolar.A esse conhecimento próprio da cultura escolar é que chamamos de saber histórico escolar (MONTEIRO, 2013; COELHO, 2014; ABUD, 2005; CARDOSO, 2007).

Nesse sentido, pretendemos decompor o discurso sobre a região amazônica presente nos livros didáticos de história, no intuito de compreender o papel que as diferentes modalidades de saberes assumem na construção de um discurso sobre a região, na forma de um diálogo, os significados que eles engendram na cultura escolar e a sua contribuição para a formação de um saber histórico escolar sobre a Amazônia, visto sob uma perspectiva histórica, onde devemos levar em consideração não apenas as permanências de enunciados sobre a região, mas também as rupturas e descompassos percebidos na trajetória das coleções aprovadas nas edições do PNLD.

Partimos desta perspectiva em que o discurso elaborado sobre a região, a partir da coadunação de diversos saberes, são responsáveis pela elaboração de representações sobre a Amazônia, procuraremos investigar essas representações e os interesses por detrás delas. Embora as representações aspirem à universalidade, elas são sempre determinadas pelos interesses de grupos distintos que as produzem e, somente a análise do que é dito, relacionada com o seu lugar de produção e as suas formas de apropriação, é que permite entender o significado que as representações assumem na organização social (CHARTIER, 1990).

As representações da Amazônia em livros didáticos de história são construídas em torno de signos que expressam o que se entende por região e os aspectos históricos e socioculturais que lhe são próprios. Toda representação se constrói em torno de um conjunto de signos que procuram dar uma definição do objeto ausente. No entanto, as representações têm a pretensão de tomar o objeto ausente pelo signo, ou seja, fazer crer que a representação vale pelo real, com o intuito de legitimar uma dominação e fabricar submissão (CHARTIER, 1990).

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Identificar quais são esses signos e suas funções na construção de um sabe histórico escolar, os diversos sujeitos e interesses envolvidos em sua produção e as formas como esses signos são apropriados pelos livros didáticos de história, tendo em vista a educação dos alunos é objetivo desse projeto, pois o que está em jogo são os significados que a região e sua história apresentam no contexto do ensino em Belém e o papel atribuído à Amazônia na educação e história brasileira.

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FORMAÇÃO PARA O ENSINO DE HISTÓRIA NO PARFOR/UFPA E AS REPRESENTAÇÕES DE PROFESSORES

EM FORMAÇÃO: INCURSÕES PRELIMINARES

Wilma de Nazaré Baía Coelho1 Nicelma Josenila Brito Soares2

Resumo A presente comunicação compõe as investigações da tese de doutoramento em educação e abordará o tema formação de professores no estado do Pará, mediante análise de alguns aspectos referentes a formação oferecida por meio de ações do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR), desenvolvido no curso de História, na Universidade Federal do Pará. A constituição desses sujeitos como profissionais em exercício na atividade docente, e que, em função das metas estabelecidas no âmbito das políticas educacionais brasileiras, efetivam, nesse momento, seu processo de formação inicial, tende a compor um panorama singular no que concerne aos estudantes deste Programa. Nesse sentido, direcionar um olhar atento para este panorama onde a formação ocorre em concomitância com o exercício da docência, ou, em alguns casos, após decorridos muitos anos do início desta, reveste-se de importância em função das contribuições que podem advir de tal experiência. Palavras chave: Ensino de História; Formação de Professores; PARFOR

O Ensino de História e o PARFOR/UFPA As discussões que centram, na figura do professor, o “processo de

construção da sua profissão e do seu desenvolvimento profissional” (RAMALHO et al. 2002 p.7)3 têm constituído uma tendência na literatura educacional na atualidade, entretanto, para além deste profissional, as discussões têm chamado a atenção para a presença de uma desarticulação entre

1 UFPA. 2 UFPA/FAPESPA. 3 RAMALHO, Betania Leite; NUÑEZ, Isauro Beltrán; TERRAZAN, E.; PRADA, L. E. A. A pesquisa sobre a formação de professores nos programas de pós-graduação em Educação: o caso do ano 2000. 25ª Reunião Anual da ANPED - Educação: manifestos, lutas e utopias, 2002, Caxambu - MG, 2002.

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a teoria e a prática (ROMANOWSKI, et al, 2008)4 enquanto elementos que entravam uma formação consistente e adequada.

Com a produção acadêmica, a superação da idéia do “professor missionário, do professor quebra-galho, do professor artesão, ou tutor, do professor meramente técnico” (GATTI, 2010, p.1361)5 cede espaço para a compreensão da necessidade da constituição de uma atividade profissional por meio do suporte de uma base consistente. Tal base será o instrumental a ser mobilizado pelo professor no encaminhamento cotidiano de questões que dizem respeito à sua prática pedagógica.

Esse repertório, construído no processo de formação, é endossado na trajetória que o professor pavimentará por meio da “socialização profissional” (LUDKE e BOING, 2004, p.1174)6 vivenciada no âmbito da escola. Essa socialização “dará consistência ao repertorio pedagógico” (idem) adquirido na formação inicial do professor.

Em tais reflexões situa-se a gênese da inclinação pelo objeto de estudo desta investigação: as representações dos professores em formação pelo PARFOR. A constituição desses sujeitos como profissionais em exercício na atividade docente e que, em função das metas estabelecidas no âmbito das políticas educacionais brasileiras, nesse momento, seu processo de formação inicial, tende a compor um panorama no qual as representações acerca da prática docente se encontrem em processo de efervescência.

Essa compreensão advém das proposições de Ludke e Boing (2004)7, para os quais a formação inicial e a socialização profissional conformam o processo de profissionalização docente. Se tal conjugação conforma a profissionalização, há que se atentar para a realidade dos agentes inseridos no PARFOR.

Para traçar um perfil dos participantes de um processo de formação inicial, convém atentar para a formulação de Flores (2010)8 que os identifica como “futuros professores” sobre os quais paira “um conjunto de crenças e de ideias sobre o ensino e sobre o que significa ser professor que interiorizaram ao longo

4 ROMANOWSKI, Joana Paulin; GISI, Maria Lourdes; MARTINS, Pura Lúcia Oliver. Fóruns de licenciatura: que contribuições para a formação de professores? Revista Diálogo Educacional. Curitiba, v. 8, n. 23, p. 121-135, jan./abr. 2008. 5 GATTI, Bernardete. Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educação & Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1355-1379, out.-dez. 2010. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br. 6 LÜDKE, Menga e BOING, Luiz Alberto. Caminhos da profissão e da profissionalidade docentes. Educação e Sociedade, Campinas, vol. 25, n. 89, p. 1159-1180, Set/Dez. 2004. Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> 7 Idem 8 FLORES, Maria Assunção. Algumas reflexões em torno da formação inicial de professores. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 3, p. 182-188, set./dez. 2010.

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da sua trajectória escolar” (FLORES, 2010, p. 183)9. Tal formulação remete à percepção de participantes de uma formação inicial nos quais a vivência da docência se constitui uma projeção futura. Tal aspecto implica a existência de ambiguidade, no que tange aos processos de formação característicos deste estudo, uma vez que o PARFOR é, concomitantemente, formação inicial e continuada para os agentes nele inseridos.

Na formação proposta pelo Plano Nacional de Formação Docente, percebe-se distanciamentos, em termos de experiência dos participantes do processo formativo: as remissões feitas aos agentes inseridos no PARFOR, os apresentam enquanto “professores em exercício na rede pública de educação básica”, demarcando um distanciamento na experiência docente das quais esses já são detentores, em relação aos primeiros que recebem a formação inicial para conformar uma prática por vir. Em face dessa configuração, na remissão a esses agentes no corpo desse trabalho, será adotada a designação “professores/estudantes”, posto que estes agentes apresentarem como característica, o fato de serem, inicialmente, professores, e atualmente, se encontrarem na condição de estudantes do PARFOR.

O panorama tecido pelas formulações de Ludke e Boing (2004) e de Flores (2010), a inserção no Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais, que tem privilegiado, dentre suas ações, a questão da formação de professores (COELHO, 2010)10 e a experiência advinda da inserção no curso de História do PARFOR/UFPA, constituem elementos balizadores da relevância pessoal da análise das representações dos agentes que se encontram em formação pelo PARFOR.

A relevância acadêmica de analisar as representações construídas em meio ao panorama onde a formação ocorre em concomitância com o exercício da docência, ou, em alguns casos, após decorridos muitos anos do início desta, reside na contribuição com as discussões que se ocupam com os processos de formação de professores.

Para melhor esclarecimento, a análise das representações dos professores/estudantes que se encontram em formação pelo PARFOR pode anunciar-se como uma das possibilidades de contribuição com as discussões sobre o processo de formação de professores. A expectativa de tal contribuição evidencia-se em face da possibilidade de identificação dos desdobramentos desta formação de acordo com as representações dos próprios agentes desse processo. Sob tal perspectiva, parte-se do entendimento de que as discussões

9 Idem 10 COELHO, Wilma de Nazaré Baía. O Núcleo GERA e a formação continuada. In: COELHO, Wilma de Nazaré Baía. (Org.). Educação e relações raciais: conceituação e historicidade. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2010 p. 11 - 34.

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sobre os processos formativos que povoam a literatura e permeiam a adoção de políticas educacionais, adquirem uma nova nuance quando partem da escuta a um dos protagonistas do processo formativo, cujas vozes precisam estar no cenário.

Nesse sentido, esse trabalho parte da escuta aos agentes que se encontram em formação, com vistas ao exercício da docência em História, e que têm como aspecto distintivo, o fato de que suas experiências são demarcadas pela ambiguidade de, concomitantemente, encontrarem-se em formação inicial, mas, já vivenciarem a prática docente, o que conferiria a formação que recebem, o estatuto de formação continuada. Logo, essas configurações que os conformam, possibilitam vislumbrar uma formação que articule a dimensão teórica com a dimensão prática nos processos formativos.

A identificação dessas configurações constitui estratégia de contribuição com as reflexões que se pretendem favorecedoras da “tomada de consciência sobre as condições da docência” (CAIMI, 2013, p 106)11 que têm povoado as produções que têm se debruçado sobre a formação de professores para o ensino de História na realidade brasileira.

A relevância desse estudo é amparada pelos marcos legais, os quais definem a necessidade de que a formação de professores observe, dentre seus princípios norteadores, um preparo que considere “a coerência entre a formação oferecida e a prática esperada do futuro professor” (Resolução CNE/CP nº 1, de 18 de fevereiro de 2002, art. 3º, II). Logo, a relevância social dessa investigação reside no seu caráter de iniciativa para o fornecimento de dados empíricos que possam subsidiar os processos de formação a partir dos desdobramentos das representações dos sujeitos em formação sobre a prática docente no espaço das salas de aula.

São indicativos da importância dessa contribuição, trabalhos que buscam superar a oposição entre uma “epistemologia dos saberes” e uma “epistemologia da ação” (DURAND et al, 2005, p. 37)12 e os que buscam a construção do perfil e da identidade do profissional da educação a partir dos “atores que atuam na escola e têm vínculo com o trabalho educativo” (MELO, 1999, p.45)13 dentre os quais situamos a figura do professor.

11 CAIMI, Flávia Eloisa. Professores iniciantes ensinando História: dilemas de aula e desafios da formação. Revista História Hoje, vol. 2, nº 3. p. 87 – 107. 2013 12 DURAND, Marc; SAURY, Jacques; VEYRUNES, Philippe. Relações fecundas entre pesquisa e formação docente: elementos para um programa. Tradução Neide Luzia de Rezende. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 125, p. 37-62, maio/ago. 2005 13 MELO, Maria Teresa Leitão de. Programas Oficiais para Formação dos Professores da Educação Básica. Educação & Sociedade, ano XX, nº 68, p. 45 – 60, Dezembro/1999.

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Nessa direção, nas formulações acerca dos processos de formação profissional para o ensino em História, ganham espaço as reflexões acerca da adoção de “estratégias de reflexão, de produção de conhecimentos de natureza pedagógica e de tomada de consciência sobre as condições da docência” (CAIMI, 2013, p 106)14 tendo como pano de fundo a prática docente. Caimi (2013) ancorou sua percepção na análise das experiências em estágio supervisionado de um curso de Licenciatura em História, ressaltando os efeitos formativos desencadeados pela análise da prática, ainda nos processos de formação inicial. A análise da autora concorreu para a compreensão acerca da importância da reflexão com vistas ao “redirecionamento e implementação de novas ações, qualitativamente superiores” (CAIMI, 2013, p 106)15 para os processos de formação profissional.

O PARFOR e a formação

A presente comunicação que integra a investigação desenvolvida no

doutoramento em Educação, parte da análise do objeto de estudo representações dos professores em formação pelo PARFOR, abordará o tema formação de professores no estado do Pará, mediante análise das representações dos professores em formação oferecida por meio de ações do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR), desenvolvido na Universidade Federal do Pará.

Implantado para atendimento das demandas de formação explicitadas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – aprovada em dezembro de 1996 – o PARFOR efetiva suas ações baseado no objetivo de “garantir que os professores em exercício na rede pública de educação básica obtenham a formação exigida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, por meio da implantação de turmas especiais, exclusivas para os professores em exercício”16.

Constituindo “resultado da ação conjunta do Ministério da Educação (MEC), de Instituições Públicas de Educação Superior (IPES) e das Secretarias de Educação dos Estados e Municípios, no âmbito do PDE - Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação – que estabeleceu no país um novo regime de colaboração da União com os estados e municípios”17, o PARFOR destina

14 Idem 15 Id ibid 16 Disponível em <http://www.capes.gov.br/educacao-basica/parfor> Acesso em 2 maio 2015. 17 Disponível em <http://www.parfor.ufpa.br/parfor_ufpa.html> Acesso 2 maio 2015.

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sua ação “aos professores em exercício das escolas públicas estaduais e municipais sem formação adequada à LDB, oferecendo cursos superiores públicos, gratuitos e de qualidade.”18

Na Universidade Federal do Pará, a aprovação da criação e oferta de cursos de graduação para o cumprimento do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica tornou-se possível por meio da Resolução de nº. 3.921, datada de 21 de dezembro de 2009. Decorridos três anos de sua implantação, em 2012 - próximo a finalização de período de um curso - as ações do PARFOR na UFPA atingiram 6.495 alunos19, em 21 cursos de licenciatura distribuídos em 183 turmas situadas em 4220 polos/municípios paraenses21, concorrendo para a percepção de que a experiência do PARFOR na UFPA produz a expansão das ações desse programa vinculado à Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da educação Básica.

O avanço inscreve-se em um panorama que requer atenção em função dos dados apontados pelo Educasenso 2007, a partir dos quais no estado do Pará “cerca de 125.000 funções docentes” são “exercidas por profissionais sem a qualificação adequada”22. As peculiaridades regionais são elencadas dentre os aspectos que entravam os processos formativos em nosso estado, uma vez que as dificuldades de acesso aos vários municípios que o integram se acirram em função das “dimensões do Estado e a quantidade de rios que compõem a bacia amazônica”23.

Tal contexto adquire feições de “desafio”24 para a formação docente pois desencadeia práticas, no âmbito das escolas situadas nos municípios, em que “docentes atuam em mais de uma disciplina gerando um quadro ainda maior de funções docentes não adequadamente preenchidas”25.

O engendramento de ações que promovam a melhoria do quadro de carência atual passa pela adoção de “intervenções políticas intensas e

18 Idem 19 Disponível em <http://www.parfor.ufpa.br/parfor_ufpa.html> Acesso 2 maio 2015. 20 Dentre estes 42 municípios, ações do PARFOR voltadas para a formação de professores de História são efetivadas nos municípios paraenses de Abaetetuba, Altamira, Bragança, Breves, Cametá, Castanhal, Marabá, Nova Esperança do Piriá e Tucurui. Disponível em <http://www.parfor.ufpa.br> Acesso em 2 maio 2015. 21 Disponível em <http://www.parfor.ufpa.br/parfor_ufpa.html> Acesso 2 maio 2015. 22 Plano de Formação Docente do Estado do Pará, 2009, p.10 23 Idem 24 Plano de Formação Docente do Estado do Pará, 2009, p.10 25 Idem, p.27

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sistêmicas”26 subsidiadas, dentre outros fatores, por dados provenientes da realidade vivenciada nos espaços nos quais ocorre a ação educativa escolarizada, colhendo-se elementos que norteiam a realidade no tocante às demandas existentes. Entretanto, acrescer a esses aspectos as percepções dos agentes em formação também pode representar contribuição na medida em que as vozes dos protagonistas contribuem para delinear como os processos formativos têm rebatimentos em suas práticas docentes.

Considerações finais

A atenção com o processo de formação de professores no Brasil, que

remonta à criação das Escolas Normais no final do século XIX (GATTI, 2010)27, atualmente apresenta-se em um cenário educacional demarcado por aparato legislativo que delineia os processos formativos. Compõem esse aparato, a Lei nº. 9.394/1996; as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores e as Diretrizes Curriculares para cada curso de licenciatura.

Os aspectos inerentes à atividade docente, constituem objeto de enfoque nos marcos legais que definem as diretrizes referentes a formação de professores, evidenciando a centralidade de um processo formativo no qual o fazer docente se constitua alvo de atenção. No contexto, os princípios norteadores da formação privilegiam:

II - a coerência entre a formação oferecida e a prática esperada do futuro professor, tendo em vista: a) a simetria invertida, onde o preparo do professor, por ocorrer em lugar similar àquele em que vai atuar, demanda consistência entre o que faz na formação e o que dele se espera; b) a aprendizagem como processo de construção de conhecimentos, habilidades e valores em interação com a realidade e com os demais indivíduos, no qual são colocadas em uso capacidades pessoais; c) os conteúdos, como meio e suporte para a constituição das competências; d) a avaliação como parte integrante do processo de formação, que possibilita o diagnóstico de lacunas e a aferição dos resultados alcançados, consideradas as competências a serem constituídas e a identificação das mudanças de percurso eventualmente necessárias. (BRASIL, 2002)28.

26 Idem, p.5 27 GATTI, Bernardete. Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educação & Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1355-1379, out.-dez. 2010. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br. 28 BRASIL. Ministério da Educação. Resolução CNE/CP nº 1, de 18 de fevereiro de 2002. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena.

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Ainda que a legislação educacional brasileira apresente elementos que

contemplem o fazer docente constituindo seus elementos norteadores, os estudos que evidenciam problemas para o alcance dos objetivos referentes a formação permeiam a literatura educacional há muito (ALVES, 199229; BRAGA, 198830; CANDAU, 198731; MARQUES, 199232).

Por outro lado, produções como a de Mello (2000)33 se ocupam com as dificuldades advindas dos processos formativos que necessitam ser equacionadas. A autora sugere que os processos de formação de professores considerem a adoção de “modalidades de organização pedagógica” favorecedoras das competências que serão requeridas para “ensinar e fazer com que os alunos aprendam de acordo com os objetivos e diretrizes pedagógicas traçados para a educação básica” (MELLO, 2000, p.101)34.

As discussões nas quais os professores são “alvos ou estão no fogo cruzado de muitas esperanças sociais e políticas” (LUDKE e BOING, 2007, p.1188)35 evidenciam as compreensões que pairam sobre o agente social em formação, bem como a compreensão que os formuladores das políticas mantêm em relação ao professorado.

29 ALVES, Nilda (Org.). Formação de professores: pensar e fazer. São Paulo: Cortez, 1992. 30 BRAGA, Mauro Mendes. A licenciatura no Brasil: um breve histórico sobre o período 1973-1987. Ciência & Cultura, São Paulo, v. 40, n. 2, p. 16-27, 1988. 31 CANDAU, Vera Maria Ferrão. (Org.). Novos rumos da licenciatura. Brasília, DF: INEP/PUC-RJ, 1987 32 MARQUES, Mario Osório. A reconstrução dos cursos de formação do profissional da educação. Em Aberto, Brasília, DF, n. 54, p. 7-18, 1992. 33 MELLO, Guiomar Namo de, Formação inicial de professores para a Educação Básica: uma (re)visão radical. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 14, nº 1, p. 97 – 110, 2000. 34 Idem 35 LÜDKE, Menga e BOING, Luiz Alberto. O trabalho docente nas páginas de Educação & Sociedade em seus (quase) 100 números. Educação e Sociedade, Campinas, vol. 28, n. 100 - Especial, p. 1179 -1201, out. 2007. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br

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COTIDIANO DE TRABALHO NO PORTO DO CENTRO DE MANAUS 1990-2014

Rafaela Bastos de Oliveira1

O dia de trabalho começa antes mesmo do nascer do sol, na área portuária

da Manaus Moderna, localizada às margens do Rio Negro, no centro da cidade de Manaus, onde o movimento de trabalhadores, de mercadorias, e passageiros com suas bagagens que saem e chegam à Manaus é frenético.

Refletir sobre as experiências cotidianas dos sujeitos envolvidos na carga e descarga de mercadorias e bagagens da área portuária não é uma tarefa fácil. Durante uma parte da pesquisa nossa atividade consistia em nos debruçar sobre as fontes escritas, como jornais, leis de regulamentação da área portuária, regulamentações em torno da atividade dos carregadores de mercadorias e bagagens. Lançamos mão também das narrativas desses trabalhadores, em seus momentos de folga, durante o almoço, após um dia inteiro de trabalho, e nestes instantes, enquanto esperávamos o término ou uma pausa de seus serviços, inúmeras vezes acompanhávamos olhando esses trabalhadores em plena atividade. Esse acompanhar visualmente e as conversas com alguns desses trabalhadores nos levaram a observar que de modo algum as trajetórias desses trabalhadores podiam ser encaradas de maneira homogênea.

As entrevistas nos instigaram a refletir sobre o cotidiano de trabalho e pensar numa maneira de abordar esse cotidiano de maneira em que privilegie as construções de solidariedade, de conflitos e de certas ambigüidades no modo de viver dos carregadores da área portuária. Neste sentido, foi de suma importância buscar na historiografia noções em torno de cotidiano, experiência, cultura não numa preocupação de encaixar as trajetórias dos sujeitos num quadro teórico, mas no sentido de valorizá-las e ampliar nossas reflexões do que se tem produzido em torno dessas noções, desejando colocar em evidência as estratégias dos sujeitos que foram construindo socialmente seus modos de viver e sobreviver dentro do espaço portuário. Um modo mais eficaz de proceder nas reflexões dessas experiências é lançando um dia de trabalhado de um dos carregadores.

Leandro Rodrigues da Silva, 28 anos de idade, nascido em Manaus, carregador sem vinculação sindical ou associativa, trabalha no porto da Manaus Moderna há nove anos. Em entrevista, descreveu como era um dia de trabalho.

1 Aluna do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal do Amazonas. (UFAM). Trabalho entitulado, Entre memórias: as experiências dos carregadores da área portuária da Manaus Moderna (1990-2014). Orientada pela Professora Doutora Patrícia Rodrigues da Silva.

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Mencionando uma das dificuldades o chegar ao trabalho, por morar na Zona Leste da cidade, mais especificamente no bairro Braga Mendes, demora até uma hora pra chegar ao centro da cidade, pegando às 5h30 da manhã um ônibus no terminal de ônibus (T-04), localizado nas proximidades de sua casa. Quando chega ao centro, se desloca para um banheiro dentro do Mercado Adolpho Lisboa2, onde coloca uma roupa que trouxe de casa para trabalhar. Posteriormente, percorre a orla da Manaus Moderna observando as três balsas particulares, que servem de atracadouro para os barcos que chegam do interior do Amazonas como Parintins, Tefé, Tabatinga, e das cidades de Estados vizinhos, como por exemplo, Óbidos e Alenquer no Estado do Pará.

O percorrer na orla feita por Leandro para observar onde estão os barcos tem um sentido, são nesses barcos que ele vai negociar e oferecer seus serviços como carregador. Onde ele vai tecer laços a partir do trabalho e de proximidade com os passageiros e tripulantes das embarcações. E enquanto na orla, esse conhecimento de Leandro permite que os passageiros que chegam à área portuária saibam onde estão atracados os barcos em que eles farão sua viagem. Essa informação se faz no momento em que oferecem seus serviços a estes que partem da cidade. Tais maneiras desenvoltas de exercer a atividade foram sendo aprimoradas com o passar do tempo. Leandro nos possibilita compreender sua trajetória do fazer-se carregador,

No caso, foi porque eu não tinha como trabalhar no momento, e eu tinha que trabalhar pra sustentar minha família, eu tinha acabado de me amigar como minha esposa, a primeira esposa. Aí, foi o jeito, me chamaram. pra trabalhar, aí, eu vim trabalhar. Eu me identifiquei com os colegas, e fiquei por aqui. Foi seu Antônio Simões, eu nunca mais vi ele. Aí, ele me chamou e, eu vim. Eu trabalhei um ano com ele, depois, comecei a trabalhar por conta própria também. Ele me ensinou como trabalhar, como ver o serviço. Aí, eu me aprimorei, e segui por conta própria3.

O desenrolar dessas experiências constituídas no cotidiano de trabalho são

iluminadas a partir da compreensão e um delineamento do interesse dos

2 Situado na Rua dos Barés. Antes da existência do Mercado Adolpho Lisboa, este mesmo local era conhecido como Riberira dos Comestíveis, servindo de local de abastecimento da cidade de Manaus e ponto de venda de produtos alimentícios vindos do interior do Estado do Amazonas. Nos fins do século XIX. Transformações neste espaço foram ocorrendo no período de efervescência do comércio de Borracha, transformação esta que ficou a cargo da firma Bakus e Brisbin, de Belém, com estrutura inglesa projetada pela firma inglesa Grancisc Norton, Engineers, Liverpool. Site: portalamazonia.com.br/ 3 Leandro Rodrigues da Silva. Carregador sem vinculação ao Sindicato ou Associação. Entrevista cedida no dia 29 de janeiro de 2015, no interior do Mercado Adolpho Lisboa.

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historiadores por trajetórias do cotidiano de trabalho. Maria Izilda Santos de Matos nos possibilita refletir sobre o tema ao perceber que existente um papel fundamental por conta da sobrevivência e o fato de ocupar grande parte da vida cotidiana,

Ao contrário do que alguns apontam, a história do cotidiano não é um terreno relegado apenas aos hábitos e rotinas obscuras. As abordagens que incorporam a análise do cotidiano têm revelado todo um universo de tensões e movimento com uma potencialidade de confrontos, deixando entrever um mundo onde se multiplicam formas peculiares de resistência/luta, integração/diferenciação permanência/transformação, onde a mudança não está excluída, mas sim vivenciada de diferentes formas. Assim, não se pode dizer que a história do cotidiano privilegie o estático, já que tem mostrado toda a potencialidade do cotidiano como espaço de resistência ao processo de dominação4.

Uma das situações observadas e mencionadas nas narrativas dos

carregadores é que, para cada dono de mercadoria, ou passageiro que passa com sua bagagem na área portuária conhecida como Manaus Moderna, localizada no Centro da cidade de Manaus5 haverá a espreita de uma oportunidade de trabalho um ou mais carregador disposto a oferecer seus serviços em troca de uma quantia em dinheiro a ser acertada no ato em que o passageiro ou dono de mercadoria concorda ou solicita os serviços desses trabalhadores. Nesta extensão em que os carregadores vão tecendo possibilidades de sobrevivência é o tempo em que vão constituindo relações com os passageiros ou donos de mercadorias, e também com outros trabalhadores. Em alguns momentos, as relações são marcadas por momentos de tensão entre as partes, por conta do serviço prestado pelo carregador, em que pese, os deslizes que prejudicam a mercadoria ou por uma quebra do acordo quanto ao pagamento pelo serviço, mesmo que não ocorra estrago da mercadoria ou bagagens6.

Com relação às relações de conflito entre os carregadores, está a divisão dos ganhos após um serviço coletivo ou certos momentos, por conta dos chamados intrusos/penetras/pirangueiros, palavra mencionada por sindicalizados ou associados para definirem aqueles que buscam na mesma atividade a

4 MATOS. Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura. História, cidade e trabalho. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2002, p.26. 5 A avenida principal da Manaus Moderna é a Avenida Lourenço da Silva Braga, antiga Avenida Beira Rio. Esta Avenida separa a Feira da Manaus Moderna e o Mercado Adolpho Lisboa das margens do Rio Negro. 6 Acidentes ao carregar as mercadorias e bagagens são comuns no cotidiano de trabalho desses sujeitos. A rampa em que eles têm que passar para fazer o trajeto do barco até a Avenida Lourenço Braga é muito escorregadia, sem proteção nenhuma. A Avenida que é separada do Rio Negro só por uma pequena barreira de concreto.

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oportunidade de trabalharem, mas sem uma vinculação direta com estas instituições7. Segundo alguns carregadores, esses intrusos são responsáveis por atos que prejudicam a imagem da categoria, são aqueles que praticam furtos de mercadorias e bagagens, e como dominam o desenrolar da atividade, se aproveitam em momentos de distrações da tripulação dos barcos, ou dos passageiros com bagagens,

Se tivesse identificação, a pessoa ao se dirigir da sua casa pra ir precisar de um trabalho, que as pessoas fossem exercer pra ela como carregador, ali ele já teria a identificação quando fosse abordado pelos carregadores, com identificação, onde ele pudesse observar aqueles que deveriam trabalhar, e hoje existe alguns, mas nós temos dificuldade de, é... de padronizar todo mundo, temos dificuldades. Até que existe penetra no nosso meio e por disso aí, têm pessoas (passageiros) que acreditam que podem, que tem pessoas que que não pode fazer bem. Eu não vou duvidar, eu não vou duvidar de forma alguma, até porque, aquilo é 24h ali, ali durante o dia existe esse negócio de furto e o carambas as quatro, mas acredito que a pessoa que tá lá pra trabalhar, pra fazer seu trabalho, ele não vai perder seu tempo, então essas pessoas que deveriam ter mais apoio, entendeu? Que são eles que merecem ter, ser, que olhem pra essas pessoas, às vezes eles perdem horas procurando essas pessoas, entendeu?8.

Fernando Teixeira da Silva, que escreveu sobre trabalhadores portuários de

Santos no período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, observando a trajetória de vida dos sujeitos a partir do universo de trabalho que se inseriam, atentando para as hierarquizações existentes na área portuária, como também, visualiza suas relações de proteção mútua, reciprocidade, troca de favores e suas

7 Ressaltamos a existência da lei No 12023 de 27 de Agosto de 2009 está relacionada aos direitos e deveres dos “movimentadores de mercadorias nas áreas urbanas e/ou rurais sem vínculo empregatício mediante intermediação obrigatória do sindicato da categoria, por meio de Acordo ou Convenção Coletiva de Trabalho para execução das atividades. Esta lei e demais avisos em torno de como deve ocorrer a solicitação dos serviços desses trabalhadores são anunciadas através de uma rádio local (porto). Essas informações anunciadas na rádio, Voz Praieira são cedidas pelo Sindicato dos Carregadores e Transportadores de Bagagem do Porto de Manaus a R. Maia Publicidade. Voz Praiana. Av. Beira Rio, s/no – Box 103 – Centro (anexo Adolfo Lisboa). Manaus-AM. Tefelone: (92) 9226-3648/ 9125-6196. 8 Antônio Carlos Lima. Carregador na área portuária desde 1995. Vinculado ao Sindicato dos Carregadores e Transportadores de Bagagem do Porto de Manaus. Seu Antônio foi entrevistado em duas oportunidades, a primeira, no início de 2012, outra, no fim de 2012.

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manobras contra as políticas patronais e, leis estabelecidas pelo Estado para as atividades portuárias9.

A troca de favores, proteção mútua estão também inseridas no cotidiano de trabalho, principalmente quando ocorrem acidentes entre eles. Por conta da maioria não ter garantias de tratamento contínuo que em caso de acidentes, pois são momentos em que eles não vão poder trabalhar, os carregadores mais próximos do acidentado fazem uma cota de auxílio para que a família do carregador e o próprio carregador tenham como se garantir até um momento em que ele esteja recuperado. Assunto recorrente nas falas dos carregadores, quando citam as dificuldades em conseguirem algum tipo de apoio/ajuda para que possam fazer o tratamento e poder obter o sustento. O desgaste físico e doenças também são resultados de uma série de atividades feitas sem nenhum tipo de proteção. Quando cometam sobre um dia todo de trabalho pesado, surgem dores nas pernas e coluna. Em entrevista com Seu Antônio Carlos Lima, que é tesoureiro da Associação dos Carregadores, ele, afirma que seu problema na coluna começou após um longo período trabalhando como carregador, “Difícil, mas já faz tempo. Até por conta eu só trabalho com a cinta, se eu não tiver com a cinta, eu não trabalho. Prefiro não carregar nada porque aí eu já to me comprometendo além do meu alcance10. A cinta, que o seu Antônio se refere, é usada por ele, para sustentar o peso das mercadorias, sem ela, segundo ele, no fim do dia, as dores ficam insuportáveis, fazendo seu Antônio auto medicação, de relaxantes musculares.

Os encontros com esses sujeitos, nos contando seu cotidiano de trabalho, algo possível a partir das entrevistas cedidas por eles. A História Oral, enquanto metodologia nos proporcionou ampliar os horizontes das experiências desses sujeitos. A leitura de artigos de Yara Aun Khoury que preocupada em produzir um conhecimento que valorize os sujeitos, toma cultura “como todo um modo de vida, e na memória, como parte dela, buscando entender os modos e os sentidos das amplas mudanças históricas11”.

9 SILVA, Fernando Teixeira. Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. Neste sentido, vale relembrar no caso dos carregadores de Manaus, as questões relativas a sindicalização são mencionadas em aspectos em que o não sindicalizado ou não associado pode gerar algum tipo de perda para aqueles estão no sindicato, como figura a lei de regulamentação da atividade 12023/2009. Geralmente, a perda de clientes, por aqueles não sindicalizados pedirem um preço mais barato para o serviço, ou por conta da má fama que gira em torno dos trabalhadores, “ladrões e bêbados”. 10 Antônio Carlos Lima, cedida em 19 de junho de 2012. 11 KHOURY, Yara Aun. Muitas Memórias, outras histórias: cultura e o sujeito na história. In: FENELON, Dea et al. (org.) Muitas Memórias, outras histórias. pp, 117-118.

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Esse exercício de lembrar de experiências relacionadas à atividade carregam muitos modos de se produzir a vida no meio urbano, em família, entre os companheiros de trabalho, no bairro, pois são locais em que são significativos, por conta da rede de relações que vão construindo ao longo do tempo.

O literato italiano, Alessandro Portelli em uma série de artigos se posiciona a favor da atenção as narrativas orais para a produção do conhecimento histórico, com isso inspirando-nos a um “novo relacionamento durante a pesquisa, tornando-a um experimento de igualdade12”. Portelli considera memória, “um processo ativo de criação de significações. Assim, a utilidade das fontes orais para o historiador repousa tanto em suas habilidades de preservar o passado quanto nas muitas mudanças forjadas pela memória13”.

As fontes orais foram e são primordiais, pois, é a partir do que lembram e como lembram as suas experiências é que podemos traçar, também, os modos de viver dos sujeitos. A História Oral para Robson Laverdi e Geni Duarte, muito além de uma prática metodológica, é tomada como “dimensão de comportamento político com as sociedades em que vivemos e no interior das quais nos sentimos instigados a pensar historicamente14.

Para nos aproximarmos das vivências e experiências dos carregadores na área portuária, foram importantes leituras em torno do que Thompson considerava classe. Que o autor observa que classe é uma definição dos homens enquanto vivem sua própria história15. Neste sentido, entendemos que o processo de carga e descarga na área portuária e a identificação do sujeito enquanto trabalhador da atividade se constitui nas suas formas constantes de praticar a atividade, para além da atividade em si, está nas formas em que se relaciona com outros trabalhadores que estão próximos, marcando trajetórias, que estão trocando informações, por exemplo, de como carregar.

Iniciamos o texto contando como começou a trajetória de Leandro na área portuária, quando obteve a ajuda de outro carregador, seu Antônio Simões, a quem ele menciona nunca mais ter visto. Gostaríamos de encerrar fazendo algumas considerações em torno da pesquisa que estamos desenvolvendo, uma delas é justamente as proximidades traçadas por esses sujeitos no instante em

12 PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na História Oral. A pesquisa como um experimento em igualdade. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 1981, pp. 07-24. 13 PORTELLI. O que faz da história oral diferente. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo, 1981, pp. 33-34. 14 DUARTE E LAVERDI, p. 173. 15 THOMPSON, Edward Palmer. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro: 1987

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que auxiliam uns aos outros a desenvolver as habilidades do trabalho. Entre o manejar de uma mercadoria e outra, vão ocorrendo conversas sobre como fazer, como abordar os clientes, como sobreviver no meio urbano, nos revelando que mesmo o passar do tempo e nunca mais ter visto o colega de profissão não significa esquecê-lo completamente. São essas falas e experiências marcadas no bojo do cotidiano que vão construindo o fazer-se. E como refletiu Maria Izilda Matos, o tempo é marcado por mudanças, transformações e destruições, que contrasta com outros tempos: o tempo das permanências, da continuação e da memória16.

Ainda sobre a pesquisa há alguns desafios, como o explicitar e refletir a partir das narrativas que eles vão construindo uns sobre os outros, que demonstra conflitos, mas ambigüidades. Citamos anteriormente as relações e designações que ocorrem com a prática de furto, que os institucionalizados comentam se dirigindo outros, aqueles sem sindicato nem associação. Em uma conversa, sem uma pretensão de entrevista com seu Antônio Lima, que hoje possui um ponto próximo a orla, no intuito de aumentar seus ganhos, um homem chegava com uma cebolas cobertas por uma camisa, que ele levou para trocar por uma dose de água ardente e dois cigarros com seu Antônio Carlos, tesoureiro da Associação. Seu Antônio fez a troca e me conta que é preciso ajudar aos outros para que possam sobreviver no porto. Logo após essa observação, uma moça chega com cebolas na barraca de seu Antônio não para trocar como fez o homem que havia se aproximado num momento anterior, mas para pedir um saco para que pudesse colocar as cebolas. Do outro lado da rua, havia um caminhão parado, e o motorista estava dentro do caminhão, na parte da carga, havia vários sacos de cebola. Provavelmente estas cebolas tinham um proprietário, no entanto, no momento em que descarregavam o caminhão de cebola, alguns carregadores que estavam descarregando abriam algumas sacas e retiravam as cebolas e davam para alguns homens e mulheres que chegavam perto do caminhão. Após algumas cebolas retiradas, eles amarravam o saco, e partia para abrirem outro saco de cebolas.

Essa oportunidade de olhar do desvio de cebolas não foi registrada por outros meios. São momentos como estes que esta pesquisa precisa de um tempo de maturação para a compreensão do viver como carregador na área portuária de Manaus, que está constantemente ligada ao desenrolar as possibilidades de ganhos, de manejar a carga, de desviá-la.

Fernando Teixeira nos alerta que observar as atividades portuárias não pode ser feitas de maneira homogênea, o que contribui para um amplo quadro de complexas relações criadas a partir da atividade, e das relações de proximidade entre os sujeitos, “os sistemas de regras e sansões são pontilhados de incoerências,

16 MATOS, p.32.

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ambigüidades e porosidades que permitem aos atores sociais a tomada consciente de decisões para agir de acordo como um quantum determinado de opções e informações17.

Foto do Jornal A Crítica, 22 de fevereiro de 2015.

17 SILVA, Fernando Teixeira. Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003, p.44.

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Foto do carreto de tucupi, na rampa da Manaus Moderna. 2015. Acervo Rafaela Bastos de Oliveira.

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ENTRE O LÚDICO E A REFLEXÃO: CHARGE E A PRODUÇÃO DE MEMÓRIAS NO ENSINO DE HISTÓRIA

Susy Nathia Ferreira Gomes1

Resumo O seguinte trabalho aborda a charge – humor gráfico que geralmente está ligada a acontecimentos políticos e sociais, porém de modo distorcido e lúdico-como instrumento de reflexão e critica na sala de aula, e como esta se apropria dos acontecimentos e dá sentidos aos mesmos através de suas produções, reconhecendo sua historicidade e representações dos fatos sociais e políticos bem como determinando sua condição de signo ideológico. Visando mostrar como a charge pode ser utilizada como fonte para a construção do conhecimento histórico, trazendo reflexões sobre a memória da época em que estava inserida e possibilidades para seu uso no processo de ensino-aprendizagem.

Palavras- chaves: Charge; história; memória; ensino de história.

As artes gráficas, tais como a charge, caricatura2 e cartum3, são todas as

imagens que têm como objetivo comunicar através de elementos visuais uma dada mensagem, podendo persuadir o observador ou leitor, guiar sua leitura e possibilitar o surgimento de uma ideia ou crítica. A charge (do francês charger: carregar, exagerar) é a articulação que existe entre diferentes linguagens, especialmente a verbal e a visual.

Assim estas têm compromisso com os fatos cotidianos e os cartunistas usam-os como meio para exercer seu estilo e criatividade, além do uso de humor que atrai a atenção do leitor, o texto com imagens transmite também um posicionamento crítico sobre personagens e fatos políticos. A charge é uma forma de comunicação condensada com muitas informações, em que o

1 Mestranda em História Social – UFMA. Orientada pelo Dr. Professor Alexandre Guido Navarro e é bolsista pela CAPES. 2 Caricatura retrata a imagem de figuras conhecidas, uma de suas funções é exagerar, escolher alguma característica, traço ou detalhe e exagerar de forma humorística. No período que se seguiu à Revolução Francesa de 1830, na França, foi que a caricatura elevou-se a categoria de arte. 3 Cartum é a arte gráfica que se propõe ao humor estático, ou seja, que é elaborado e permanece às mudanças de tempo e espaço.

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entendimento depende de um conjunto de dados e fatos contemporâneos ao momento específico em que se estabelece a relação discursiva entre o produtor e o receptor, e aliada ao humor atrai o leitor para uma crítica de forma descontraída, como cita Romualdo:

Se pensarmos em termos de conteúdo, uma charge ou uma caricatura podem ser muito mais densas do que os outros textos opinativos, como uma crônica ou até mesmo um editorial. O leitor pode, inclusive, deixar de ler estes e outros gêneros opinativos convencionais, optando pela leitura da charge que, por ser um texto imagético e humorístico, atrai mais sua atenção e lhe transmite mais rapidamente um posicionamento crítico sobre personagens e fatos políticos4.

A charge permite acesso ao clima de uma época e o modo pelo qual os

chargistas pensavam os acontecimentos políticos locais, pensavam a si próprios e que perspectivas conduziam seus desenhos. A perspectiva de profissional atuante, em nome de um público que não tem como se pronunciar. O que parece ser uma busca por legitimidade da própria produção ou a reivindicação de uma função social. Para Rodrigo Patto Sá Motta(2006), o desenho de humor, de maneira recorrente, atua no comentário diário dos acontecimentos e atos dos líderes políticos, o que auxilia os jornais em seu papel de produzir a notícia e informar o grande público. Em outras palavras, as charges desempenham uma função fundamental no jornal, e atualmente nas redes sociais e outros veículos midiáticos da web, qual seja a de traduzir os eventos, conflitos e grandes personagens políticos para uma linguagem mais inteligível ao público iletrado e/ou socialmente excluído.

Em uma charge pode conter a caricatura como um de seus elementos, como também espaço, o plano, o ponto de enfoque, o volume, a luz e a sombra, o movimento, a narrativa, o balão, a onomatopéia e o texto verbal, não aparecendo necessariamente, todos estes elementos em todas as charges. Vale ressaltar que a maioria das charges vem acompanhada de textos ou palavras, pois os elementos linguísticos se tornam importante para explicitar a sua intencionalidade ou completar o sentido humorístico e político.

A arte que é produzida pelo cartunista consiste em nos possibilitar conhecer o real de forma cômica imagética, nos introduzindo na critica que é veiculada. O riso e a reflexão é o resultado que o chargística almeja no processo de elaboração do humor gráfico, riso este que “ "castiga os costumes". Obriga-nos a cuidar imediatamente de parecer o que deveríamos ser5’’, dessa forma a crítica

4 ROMUALDO, Edson Carlos. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia: um estudo de charges da Folha de S. Paulo. T Maringá: Eduem, 2000. p. 15. 5 BERGSON, Henri. O RISO - ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: ZAHAR EDITORES, 1983, p. 13.

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ilustrada funciona como um instrumento que desconstrói a maquiagem do ridículo presente no conteúdo da charge, fazendo nos refletir sobre este.

Um dos aspectos desse trabalho é a ressaltar a utilização da charge como recurso didático no ensino de história, já que a charge tem proximidade com o cotidiano, e são geralmente encontradas em jornais, internet e revistas tratando temas atuais, atemporais, divertindo e marcando épocas. Além disso, permite que o aluno passe a entender a imagem como discurso, atribuindo-lhe sentidos sociais e ideológicos.

Com as mudanças advindas dos avanços tecnológicos bem como da aquisição e uso das novas tecnologias da informação e da comunicação nos sistemas de ensino com o objetivo de oferecer aos educandos o acesso a computadores e outros dispositivos eletroeletrônicos disponíveis como alternativas na melhoria de aquisição de conhecimentos. E aos professores ferramentas que possam dinamizar o processo de ensino aprendizagem, de forma que a escola passou a ser um ambiente de interações sociais e que exerce um importante papel em construir, socializar e legitimar os conteúdos conceituais que nortearão o processo de ensino e aprendizagem em suas diversas modalidades.

Possuímos diversas capacidades de comunicação, não somente a linguagem verbal, a imagem também nos possibilita interpretar o mundo. Por um longo tempo foi-se valorizado apenas a mais constante e usual, a linguagem verbal, na sua manifestação escrita e oral. Mas são inúmeras as linguagens, tais como: artes plásticas, cinema, teatro, televisão, internet, entre outros. As artes gráficas –charge- enquanto linguagem legítima e elemento histórico permitem ao leitor, mediante um olhar satírico, irônico e humorístico, uma reflexão e compreensão do comportamento humano em diferentes situações e épocas, fazendo deste tipo de imagem uma fonte legítima. Pois como Santaella (2003) afirma:

[...] o nosso estar-no-mundo, como indivíduos sociais que somos, é mediado por uma rede intrincada e plural de linguagem, isto é, que nos comunicamos também através da leitura e/ou produção de formas, volumes, massas, interações de forças, movimentos; que somos também leitores e/ouprodutores de dimensões e direções de linhas, traços, cores... Enfim, também nos comunicamos e nos orientamos através de imagens, gráficos, sinais, setas, números, luzes.Através de objetos, sons musicais, gestos, expressões, cheiro e tato, através do olhar, do sentir e do apalpar. Somos uma espécie animal tão complexa quanto são complexas e plurais as linguagens que nos constituem como seres simbólicos, isto é, seres de linguagem6.

Assim somos rodeados de elementos que nos trazem sentidos, e muitos

deles possuem sentidos históricos e estreita relação com o tempo as quais

6 SANTAELLA, Lúcia. O Que é semiótica? São Paulo: Editora Brasiliense, 2003, p. 02.

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pertencem. Quando se fala sobre a incorporação de novas linguagens ao ensino de História, Selva Guimarães Fonseca (2004) afirma que incorporar diferentes linguagens no processo de ensino de História, reconhece-se não só a estreita ligação entre saberes escolares e a vida social, mas também a necessidade de re (construirmos) nosso conceito de ensino e aprendizagem.7

Dentre a variedade de subsídios teóricos incorporados por alguns profissionais da educação, a introdução do uso da imagem em sala de aula, a música, a literatura, as histórias em quadrinhos entre outras linguagens que constituem ferramentas indispensáveis para que os alunos aprendam a ler e interpretar não apenas signos, mas principalmente o mundo ao seu redor que é de fundamental importância no processo de ensino-aprendizagem, tornando-o ainda mais prazeroso e possibilitando transmitir maior conhecimentos não limitando o aluno apenas no livro didático.

Mas deve-se ressaltar que nos próprios livros didáticos o professor pode encontrar dicas de outras ferramentas que podem ser utilizadas para transmitir conhecimento como sites, músicas, filmes, obras literárias e charges.

O material imagético que é utilizado nos livros didáticos, paradidáticos, tanto quanto nos ambientes virtuais, revistas, jornais impressos servem na construção de conceitos que são assimilados pela sociedade como reais. E problematizar questões que são abordadas por estes, sejam elas atuais ou de outras épocas é uma estratégia de ensino positiva, pois desmistifica estereótipos, amplia a visão critica do educando e propicia uma atitude reflexiva inserida no processo de ensino e aprendizagem.

Dentre algumas das propostas metodológicas e estratégias de ensino que vêm se consolidando entre professores e produzindo resultados exitosos na aprendizagem de História por crianças e jovens, Selva Guimarães Fonseca (2010) aponta:o alargamento do campo da história ensinada, nas várias formas de organização curricular, que possibilita identificar a ampliação do universo de temas, problemas estudados e de materiais/fontes utilizadas no ensino de História8.

A charge não é apenas um gênero jornalístico, como também considerado artístico e histórico ela não poderia deixar de se influenciar pelos mesmos

7 FONSECA, S. G.. A construção de saberes pedagógicos na formação inicial do professor para o ensino de história na educação; In: Ensino de história: sujeitos e práticas. Rio de Janeiro: Manud X: FAPERJ, 2007. (Trabalhos apresentados no V Encontro Nacional Perspectiva de Ensino de História, Ensino de história: sujeitos, saberes e práticas, realizado no Rio de Janeiro, de 26 a 29 de julho de 2004. p. 149 – 156) 8 FONSECA, S. G.. A História na educação básica: conteúdos, abordagens e metodologias. Anais do I Seminário Nacional: Currículo em Movimento – Perspectivas Atuais Belo Horizonte, novembro de 2010. p. 09

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critérios de uma notícia. Isso significa afirmar que a charge toma parte do processo de agendamento dos temas midiáticos, colaborando com a discussão pública e com o processo de formação da opinião. Os chargistas exploram os principais acontecimentos políticos, sociais e culturais que mereceram destaque tanto na mídia televisiva quanto na mídia impressa. O professor ao conduzir a análise das charges e tirinhas em sala de aula, esta contribuindo para os sujeitos da aprendizagem se apropriem das habilidades e competências para a prática da leitura e interpretação de textos.

Paulo Ramos (2009) afirma que não se pode compreender o sentido de humor presente num texto sem que o conteúdo seja lido e entendido, e o humor e entendimento textual são elementos interligados, um depende do outro. Nesse sentido, ler piadas, crônicas, charges, tiras e outros textos com temática cômica pode ser um elemento importantíssimo para exercitar a capacidade de intelecção dos estudantes.

A utilização da charge em sala de aula possibilita que o aluno consiga unir conceitos, conteúdos e normas ao conhecimento do que lhe cerca, para que o aprendizado não seja passageiro, que se mantenha e evolua conforme as novas informações que o aluno for recebendo ao longo de sua formação. No seu uso em aula, a charge deve ter uma ligação direta com o conteúdo que está sendo abordado no momento. O professor deve ter objetivos pedagógicos em relação à escolha do material a ser trabalhado, para que este não se perca durante o processo de compreensão e de interpretação, e assim consiga trocar informações sobre o conteúdo que está sendo passado.

A charge como recurso didático em sala de aula ajuda o aluno adentrar outros universos, conhecer outros discursos, debater sobre sua realidade e ter novas maneiras de expressar uma opinião, ampliando também sua forma de leitura. Pois de acordo com Lajolo (1993):

Ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significado, conseguir relacioná-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista9.

Reconhecendo que o processo de leitura não se restringe ao ato de

decodificar os signos dispostos nos livros e outros gêneros textuais, além disso, admitir que a escola encontra-se inserida em um contexto histórico, cultural e econômico no qual as pessoas recebem diariamente centenas informações e

9 LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993. p. 59

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imagens veiculadas pelas mídias, de modo que é necessário que os conteúdos e as formas de repassá-los aos alunos possam abarcar múltiplas linguagens.

As atividades de leitura e analise devem levar os alunos a perceber que a composição da charge, bem como a sua função social e seus propósitos comunicativos.

Outra vantagem do uso da charge como recurso didático está no fato desta chamar a atenção dos alunos pela própria linguagem artística que exibe, assim como as inúmeras abordagens sobre a política nacional e internacional, estabelecendo relações de intertextualidade, evocando conhecimentos específicos da linguagem e do período histórico a ser analisado.

No processo de ensino de história o professor deve criar condições para que o aluno possa ter autonomia nas suas reflexões, e segundo Schmidt (2004), “entender que o conhecimento histórico não é adquirido como um dom10” e sim por meio de pesquisas e de redescobertas. A sala de aula não é um simples espaço de transmissão de informações, mas antes um ambiente de vivências, de experiências, de relações entre professor e alunos, construindo sentidos e significações.

Durante o período da ditadura militar no Brasil -1964 a 1985- as charges tiveram destaque como forma de contestação e ocuparam um lugar significativo e expressivo nas lutas, nos movimentos sociais, políticos e culturais da sociedade brasileira gerando discussões quanto aos anseios da construção de uma sociedade democrática e cidadã.

Esse trabalho tem como recorte o período de abertura política, redemocratização no Brasil, tendo em vista que o uso de charges que circularam nesses periodo possibilita trabalhar os conceitos de democracia, ditadura militar, os movimentos sociais, políticos e culturais, principalmente pela proximidade do tempo histórico.Também se levou em consideração a grande produção de charges neste momento histórico da sociedade brasileira.

A historiografia brasileira, no referido período, tem material diversificado e rico para a investigação histórica,sendo a charge um elemento significativo. Já que a charge revela-se como um traço da história, pois captura os fatos denunciando faces do poder por meio de uma linguagem metafórica. Assim, como afirma Rozinaldo Miani (2001) o desenho ilustrativo da charge é uma representação humorística com a função de denunciar, satirizar, ridicularizar, criticar um fato, um personagem real, mantendo viva a memória histórica11.

10 SCHMIDT, M. A. A formação do professor de história e o cotidiano da sala de aula. In: BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula. 9 ed. São Paulo: Contexto, 2004. p. 57 11 MIANI, Rozinaldo Antonio. Charge: uma prática discursiva e ideológica. XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação – INTERCOM. Campo Grande /MS – setembro 2001.

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A charge faz parte da memória histórica, pois teve papel significativo durante a ditadura, e a memória é um fenômeno sempre atual, pois muitas das charges que circularam nesse período servem hoje de análise e reflexões sobre o que passou. No ensino de história é necessário dialogar com as memória que fazem parte dos acontecimentos históricos, e em sala de aula é um ambiente em que se pode fazer a relação entre história e memória, no qual a primeira deflagra análises, reflexões e novas compreensões. E cabe ao professor trabalhar o pensamento histórico para o questionamento de verdades estabelecidas e a busca da compreensão da historicidade da vida social, pois saberes podem ser construídos pelos alunos, saberes esses que, ao se tornarem conhecimento cotidiano, pode vir a ser instrumentos de libertação ou resistência.

A charge como um gênero da imprensa, se traduzia nas reflexões feitas pelos cartunistas, e que tais reflexões não eram simplesmente lembranças e avaliações de uma experiência individual ou isolada, era o que a sociedade brasileira vivia naquele momento. Na verdade, a memória pessoal de cada um deles é também parte de uma memória social, que corresponde aos grupos e às categorias sociais nos quais eles se incluem12.

As charges produzidas, dentro das limitações vigentes, contribuíram significativamente para lançar luzes sobre o período, e proporcionam uma percepção geral da sociedade e do país. Maurice Halbwachs (1990) argumenta que a lembrança não é uma linear repetição do passado, mas um instrumento de reconfiguração dos fatos, a partir das experiências presentes, uma vez que contextos diversos geram constantes mudanças na sociedade. São esses contextos que associam e selecionam o passado para espelhar o presente e visualizar o futuro13.

As charges a seguir, são ilustrações que circularam na imprensa teresinense – Jornal O Dia- durante o governo de João Batista Figueiredo (1979-1985) e podem servir para analise e compreensão do processo de abertura política, bem como as charges expressavam a realidade política brasileira, assim como o pensamento dos cartunistas que por meio de suas ilustrações objetivavam despertar uma visão critica e reflexiva sobre o conturbado momento do Brasil. A charge de número 01, retrata a dúvida do eleitor sobre se as possíveis eleições seriam ou não validas. Já que o pleito de 1982 apresentava-se como o ‘maior da história’, pois o eleitor teria de escolher seis cargos: governador, senador, deputado federal, deputado estadual, além de prefeito e vereador.

12 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 39 13 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

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Igualmente, era um importante passo na retomada da democracia, pois os partidos criados pela reforma de 1979 estreariam nas urnas, políticos cassados haviam retornado ao país e a disputa para governador voltava a ser direta depois de quase 20 anos14.

Jornal O Dia, 28 de setembro de 1982

Na charge de número 02, trata sobre as questões econômicas que assolavam

a sociedade brasileira, que era a crise econômica e o endividamento externo que eram problemas que Figueiredo herdara dos governos anteriores, que adotaram um modelo de crescimento econômico baseado no endividamento externo. Meio este que consistia na tomada de empréstimos a longo prazo, que era comum naquele período em países que desejam crescimento acelerado e não possui recursos internos suficientes, que serviu para o surgimento do ‘milagre econômico’.

Essa estratégia de contrair empréstimos parecia algo saudável no inicio da década de 1970, mas foi se transformando em um desastre a longo prazo, pois

As taxas de juros das dividas do Brasil, as maiores do mundo em desenvolvimento, dispararam. O Brasil, como os demais países das America latina, não podia fazer seus pagamentos. Esta atrasou o pagamento e seus empréstimos aos bancos

14 KINZO, M. D. G. Oposição e autoritarismo – gênese e trajetória do MDB(1966/1979). São Paulo: Vértice, 1988, p. 213.

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comerciais e o boom econômico do Brasil foi interrompido15.

Percebe-se que o personagem que está a perguntar o que o homem que está sobre a escada está fazendo é Delfim Neto, e de forma de ironica o homem que está na escada responde que está dando um polimento no que Delfim Neto deixou para a sociedade brasileira, que era a “crise”.

Jornal O Dia, 27 de janeiro de 1983

15SKIDMORE, Thomas. Uma história do Brasil. Paz e Terra. São Paulo, 1998. p. 252.

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LEMBRAR PARA ESQUECER: A CONSTRUÇÃO DA “MEMÓRIA COLETIVA” DO DIA 13 DE MAIO “CABANO”

Viviane Patrícia Fitz Gerald Frazão1

Resumo

Na cidade de Belém das ultimas décadas do século XIX a campanha

abolicionista adquirir novas formas e contornos ganhando visibilidade social a partir das práticas utilizadas pelas diferentes associações abolicionistas que promoviam festas, bazares e conferência com o intuito de angariar fundos, bem como simpatizantes para defesa da liberdade escrava. As efemérides da província, bem como do Império constituíam um verdadeiro calendário cívico na cidade de Belém sendo comemoradas com grande festa sendo utilizadas para legitimar a causa abolicionista. Dentre essas datas o 15 de agosto data de adesão do Pará a Independência, o 2 de dezembro aniversário do Imperador, 28 de setembro Lei do Ventre Livre eram comemoradas com grande festa e entregas de cartas de alforria. Esse acontecimento era realizado com o intuito de promover maior visibilidade social no sentindo de ganhar mais adeptos em favor da causa abolicionista. Outra data comemorada na cidade de Belém foi o 13 de maio “cabano” data de retomada de Belém pelas tropas legalistas efeméride anunciada com grande entusiasmo pelos periódicos do período. A presente pesquisa tem como objetivo entender por que os abolicionistas elegeram o 13 de maio como uma das datas de legitimação fazendo alusão a um período da cabanagem, porém se distanciando do movimento cabano. E como ao longo do tempo o 7 de janeiro foi sendo associado a um conhecimento negativo sendo apagado da memória da sociedade. Palavra Chave: escravidão, efemérides, memória, abolicionismo.

Introdução A presente pesquisa surgiu como uma inquietação que foi se apresentando ao longo da pesquisa nos jornais da época, a saber, o “Diário de Belém”, a “Constituição” e o “O Liberal do Pará”, periódicos que procurei analisar a fim de rastrear as associações abolicionistas que se formaram ao longo da década de 1880. Ao avançar as pesquisas nos jornais percebi como os chamados abolicionistas foram se apropriando de elementos para legitimar sua causa em

1 Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia. Universidade Federal do Pará/2015.

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favor dos escravos. E um desses elementos apropriados, que se mostrou presente ao longo da década de 1880, foram as chamadas efemérides que se apresentavam como cenário de propagação da causa defendida pelos abolicionistas. Como nos aponta Bezerra Neto “emancipadores e abolicionistas não só se apropriavam das datas cívicas associando-as às suas lutas contra a escravidão, mas acabavam dando-lhes um novo significado e sentido comemorativo no contexto anti-escravistas”2. As efemérides da província, bem como do Império constituíam um verdadeiro calendário cívico sendo realizado nessas datas bazares, conferências e festas com o intuito de angariar fundos que seriam utilizados para formar pecúlios para a liberdade escrava. Essas festas eram realizadas com o objetivo de promover maior visibilidade social no sentindo de ganhar adeptos em favor da causa abolicionista. Dentre essas datas o 15 de agosto data de adesão do Pará a Independência, o 2 de dezembro data que marca aniversário do Imperador, 28 de setembro Lei do Ventre Livre eram comemoradas com grande festa e entregas de cartas de alforria. As associações elegiam determinadas efemérides como símbolo de sua agremiação, como é o caso, do Club Patroni, que tem o 15 de agosto como data que marca suas festas e entregas de carta de liberdade. Porém não quer dizer que essas associações não participassem de outras festas em diferentes datas, ao contrario, cada efeméride se apresentava como oportunidade de construção e/ou desconstrução da memória. Segundo LeGoff3 a memória coletiva e sua forma científica, a história, aplicam-se a dois tipos de matérias: os documentos e os monumentos, sendo o primeiro escolha do historiador e o segundo herança do passado. No caso das efemérides elas se encaixariam no monumento que possuiria o poder de perpetuar, voluntária ou involuntária seu legado enquanto objeto de construção da memória, cabendo ao historiador transforma-lo em documento a partir da analise da memória enquanto espaço de manipulação. Segundo Marcia Santos “memórias individuais e coletivas são em grande medida espaços de homens e grupos se encontrarem e se portarem como sujeitos da história”4. Nesse sentido da apropriação das datas para construção e/ou desconstrução da chamada “memória coletiva” que o 13 de maio, que ousei chamar aqui de “cabano”, por fazer alusão a um episódio da cabanagem será o fio condutor do

2 Ver. NETO, José Maia Bezerra. A segunda independência. Emancipadores, abolicionistas e as emancipações do Brasil. Almanack. Guarulhos, n.02, 2°semestre de 2011. PP. 87-100. 3 LE GOFF, Jacques. 1924. História e Memória/ Jacques Le Goff; tradução Bernardo Leitão. [et. al]- Campinas, SP: Editora UNICAMP, 1990. (Coleção Repertórios). 4 SANTOS. Marcia Pereira dos. História e Memória: desafios de uma relação teórica. OPSIS. Vol. 7. N°9. Jul-Dez, 2007. PP. 95.

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presente artigo que tem por escopo entender por que os abolicionistas elegeram o 13 de maio como uma das datas de legitimação de sua causa fazendo alusão a um período da cabanagem, porém se distanciando do movimento cabano. E como ao longo do tempo o 7 de janeiro foi sendo associado a um acontecimento negativo sendo apagado da memória da sociedade, somente sendo reabilitado anos mais tarde.

Lembrar para Esquecer:

Embora o “movimento abolicionista” tenha sido feito em nome da libertação dos escravos, realizando manifestações públicas marcadas pela participação popular, os chamados “meetings” os emancipadores e partidários da abolição paraenses não associavam os seus embates pela liberdade com as lutas dos cabanos ou com a cabanagem, movimento popular ocorrido na província na primeira metade do século XIX.5

As palavras de José Maia Bezerra Neto deixam claro que emancipadores e abolicionistas não associavam seus embates pela liberdade ao movimento da cabanagem por se tratar de um movimento “associado à desordem e anarquia, sendo retratado como um grande motim contra as autoridades e o governo”. Nesse sentido que a escolha do 13 de maio “data que remete ao dia 13 de maio de 1836 quando os cabanos e seu último presidente, Eduardo Angelim, abandonaram a capital paraense, que ficou em poder das trocas legalistas”6se configura como a data que serviria para construir na sociedade a memória a ser lembrada na qual Belém retorna a ordem, que até então, se havia perdido em meio ao motim7. Partindo dessa efeméride que entenderemos a não associação entre abolicionismo e cabanagem, mas para isso temos que voltar um pouco no tempo. Segundo Magda Ricci o movimento cabano ocorrido na cidade de Belém em 1835 adquirindo mobilidade para as diferentes regiões através dos rios amazônicos trazia como bandeira o “patriotismo”, porém não era sinônimo de ser brasileiro. A autora coloca, ainda, que “esse sentimento fazia surgir no interior da Amazônia uma identidade comum entre povos de etnias e culturas

5 NETO, José Maia Bezerra. O Doce Treze de Maio. O abolicionismo e as visões da Cabanagem, Grão-Pará- Século XIX. In. NEVES. Fernando Arthur, org. Faces da história da Amazônia/ Organização de Fernando Arthur de Freitas Neves e Maria Roseane Pinto Lima. – Belém: Pakatatu, 2006. 6 NETO, José Maia Bezerra. A segunda independência. Emancipadores, abolicionistas e as emancipações do Brasil. Almanack. Guarulhos, n.02, 2°semestre de 2011. PP. 98. 7 O termo usado por Domingos Antonio Rayol em seu livro para designar a cabanagem como depreciativo associado à anarquia.

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diferentes. Indígenas, negros de origem africana e mestiços perceberam lutas e problemas em comum. Essa identidade se assentava no ódio ao mandonismo branco e português e na luta por direitos e liberdades”. 8 A cabanagem se apresentou como o fio condutor para acentuar essa identidade ocorrendo no interior desta diferentes lutas e contestações. Podemos afirmar que existiram cabanagens dentro da cabanagem. O caso das fugas de escravos que se acentua nesse período é um exemplo das diferentes visões que os agentes sociais possuíam do movimento cabano. José Maia diz que “a rebeldia escrava acentuou-se durante a cabanagem, na qual diversas lideranças negras encabeçaram batalhões de escravos fugidos e aquilombados [...] que os negros sabiam que a bandeira da abolição não se constituía em ponto comum entre cabanos, portanto cabia-lhe lutar pela mesma, enfrentando as represálias por parte de seus partidários de luta contrários a libertação dos escravos”. 9 A população negra escravizada se apropria da cabanagem como campo de luta para adquirir a liberdade além das fugas como forma de desestruturar a economia, poderia ser por meios violentos como o assassinato do próprio senhor ou do feitor que era responsável pela organização do trabalho. Portanto, o que já foi apresentado até aqui nos permite voltar agora para as últimas décadas do século XIX, onde as campanhas abolicionistas na construção dos “símbolos coletivos” utilizam as efemérides para legitimar sua causa e usavam como nos aponta Edgar Decca do “discurso de poder”10, onde um símbolo seria usado para apagar outro, apagando da memória da sociedade, principalmente da população negra escravizada o 7 de janeiro data que marca a tomada da cidade de Belém pelos cabanos deixando esta data na obscuridade e elegendo o 13 de maio que é quando as tropas legalistas retomam o poder sobre a cidade como marco do estabelecimento da ordem. Os principais jornais que circulavam na cidade de Belém naquele período publicavam em suas páginas noticias referentes às festas do 13 de maio. O Liberal do Pará de 1884 nos traz a seguinte noticia “estiveram esplendidas as

8 RICCI. Magda. Nação e Revolução: a cabanagem e a experiência da “brasilidade” na Amazônia (1820-1840)- T(r)ópicos de História: gente, espaço e tempo na Amazônia (séculos XVII a XXI)/ José Ruiz-Peinado Alonso, Rafael Chambouleyron (organizadores).- Belém. Ed. Açaí/Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia (UFPA)/ Centro de Memória da Amazônia (UFPA), 2010. PP. 141-16920. PP. 141. 9 BEZERRA NETO, José Maia. Ousados e Insubordinados: protestos e fugas de escravos na Província do Grão-Pará (1869-1888). Topoi, Rio de Janeiro, Março de 2001. PP. (79-112). PP. 76. 10 DECCA. Edgar de. 1930: O silencio dos Vencidos memória, história e revolução. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.

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festas do treze de maio, data que marca o retorno das tropas legais para a cidade de Belém, sendo distribuídas 6 cartas de alforria”. 11 O uso das efemérides na construção da “memória coletiva”, bem como a eleição do 13 de maio “retorno a ordem”, em detrimento ao 7 de janeiro marcado pela “subversão” nos permite entender o ponto chave da discussão daqueles que estavam a frente das associações emancipadoras e abolicionistas que seria o olhar que a elite intelectual, , possuíam sobre o movimento cabano. Essa elite buscava se distanciar da cabanagem, pois essa não se enquadrava nos moldes da chamada “revolução social” Os chamados abolicionistas e emancipadores que defendiam a bandeira de uma abolição pelos meios legais e, é importante que se ressalte isso, se apropriaram de símbolos, principalmente, as efemérides para a construção da memória coletiva não só em torno do abolicionismo, mas também para ter um maior controle sobre a liberdade escrava. E essa “revolução social” pensada por emancipadores e abolicionistas deveria partir “de cima para baixo” e não ao contrário e associar abolicionismo e cabanagem com as nuances que a última apresentou em seu interior significava abrir margem para o fim da escravidão de forma descontrolada e violenta. O movimento cabano era visto como nos aponta Ricci a partir da interpretação do livro “Motins Políticos” de Domingos Antonio Rayol o “Barão de Guajará” “como uma anarquia paraense e a data de 7 de janeiro como um dia fúnebre em que a Província havia sido tomada por homens que ele chamava de vândalos”.12 Partindo dessa interpretação feita pelo Barão de Guajará que a cabanagem não passou de uma desordem, que podemos compreender o porquê do movimento emancipador e abolicionista se distanciarem do movimento cabano. O encaminhamento da questão servil passou a ser um campo de disputas e jogos de interesses e a formação de associações abolicionistas e emancipadoras de certa forma assumiu o papel de controlar a liberdade escrava e mesmo limitar a participação ativa de escravos no processo de liberdade, por exemplo, dentro das associações existia uma divisão entre sócios ativos e passivos e o negro escravizado se enquadrava nesse último “esperando” que o processo de liberdade fosse feito aos sabores dessas disputas e interesses. Associar abolicionismo com cabanagem, aquela apontada como desordem pelo Barão de Guajará, seria invalidar um movimento patriótico catalizador da vontade nacional que poria fim a última herança colonial e de certo modo abrir margem para que os negros escravizados, assim como no movimento cabano

11 O Liberal do Pará. 1884. PP. 2 12 RICCI. Magda. Do Sentido aos Significados da Cabanagem: percursos historiográficos. Anais do Arquivo Público do Pará- Belém: Secretaria de Cultura/Arquivo Público do Pará, 2001. V. 4. T.L. PP. (241-273) PP. 246.

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contestassem sua condição escrava e reivindicassem sua liberdade, talvez, de maneira violenta. O medo de uma insurreição escrava como aquela que ocorreu em São Domingos, “em fins do século XVIII, [uma] revolução negra [que] havia causado temor nas classes senhoriais de diversas partes da Américas até pelo menos meados do século XIX, quando defrontados com a rebeldia de seus escravos”13e essa lembrança do que aconteceu em São Domingos continuava viva na memória da sociedade fazendo com que abolicionistas e emancipadores preferissem o 13 de maio, marco da retomada de Belém por parte das tropas legalistas como efeméride na construção da “memória coletiva” por representar o reestabelecimento da ordem em detrimento ao dia 7 de janeiro. Esse distanciamento e até esquecimento em torno do 7 de janeiro esta estritamente ligada ao controle social exercido por essas associações abolicionista e emancipadores, onde os discursos em torno da chamada questão servil giravam em torno da “reforma civilizacional” que deveria ser feita pela elite pensante belenense não permitindo a inserção da população negra escravizada nesse processo como agente ativo. Entender como se deu o processo de desconstrução da memória coletiva em torno do 07 de janeiro associado a fatos negativos é perceber o quão o abolicionismo se apresentou como um movimento complexo, onde abolicionista e emancipadores se apropriam de elementos, como o 13 de maio, para apagar e construir uma memória na sociedade utilizando esses elementos com o fim de ter um controle sobre a liberdade escrava, bem como manter a hierarquia social. Considerações Finais: O abolicionismo enquanto movimento social feito pela elite belenense usou de vários artifícios para ganhar a simpatia da sociedade e o uso das efemérides foi um desses artifícios abolicionista e emancipadores construíram uma “memória coletiva” em torno do calendário da Província e do Brasil elegendo datas de acordo com as nuances de seus interesses e se apropriando dessas para legitimar a causa abolicionista e reforçar a ideia de que a sociedade belenense unida promovendo bazares, festas e conferências poderiam fazer a “revolução social” extinguido de maneira lenta e gradual a escravidão sem perigo de uma insurreição escrava. Esse medo de um levante da população negra escravizada nos permite entender o fazer esquecer o dia 7 de janeiro por se tratar de uma data que representa um movimento de cunho popular de afirmação de

13 BEZERRA NETO, José Maia. Ousados e Insubordinados: protestos e fugas de

escravos na Província do Grão-Pará (1869-1888). Topoi, Rio de Janeiro, Março de 2001. PP. (79-112). PP. 82.

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Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos

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identidade, contestação e reivindicação que não deveria ser lembrada ou talvez devesse ser reapropriada para mostrar que a desordem havia ficado no passado a partir da retomada de Belém e que não competia ao país que procurava alcançar a civilidade os atos de vandalismo e anarquia ocorridos no movimento cabano. A presença negra na Amazônia, que apesar de se situar a “margem” das discussões em torno de sua liberdade não deixaram de utilizar de estratégias sabendo aproveitar as nuance que o movimento abolicionista apresentou para adquirir sua liberdade. Apesar do foco aqui não ser suas atuações podemos perceber pelo medo da perda do controle social que ao negro escravizado não passava despercebido sua condição como agente contestador e reivindicador. Paralelamente podemos perceber a atuação de diferentes agentes sociais quando da efervescência do movimento abolicionista que nos permite observar um caleidoscópio de possibilidades de analise para o entendimento do longo e complexo processo que foi o fim da escravidão na cidade de Belém. Por ora, o lembrar para esquecer teceu durante muito tempo as memória e histórias da sociedade oitocentista.