Análise Social -...

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Noêmia Lazzareschi IESDE Brasil S.A. Curitiba 2012 Edição revisada Análise Social

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Noêmia Lazzareschi

IESDE Brasil S.A.Curitiba

2012

Edição revisada

Análise Social

Capa: IESDE Brasil S.A.

Imagem da capa: Shutterstock

IESDE Brasil S.A.Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br

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Lazzareschi, Noêmia Análise Social / Noêmia Lazzareschi. - 1.ed., rev. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2012. 108p. : 24 cm Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-3045-3

1. Sociologia. 2. Ciências sociais. 3. Sociologia do trabalho. 4. Sociologia organizacio-nal. I. Título.

12-6040. CDD: 301 CDU: 316

23.08.12 03.09.12 038481 __________________________________________________________________________________

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Noêmia LazzareschiDoutora em Ciências Sociais pela Universi-

dade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Ciências Sociais do Trabalho pelo Institut Supérieur du Travail da Université Catholique de Louvain (Bélgica). Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do departamento de Sociolo-gia da Faculdade de Ciências Sociais e do Pro-grama de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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A promessa e as tarefas das Ciências Sociais 9

11 | Condições históricas do nascimento das Ciências Sociais

17 | As Ciências Sociais

As sociedades industriais capitalistas 23

23 | Emile Durkheim

25 | Max Weber

26 | Karl Marx

28 | A estrutura das sociedades industriais capitalistas

30 | As empresas

As diferentes formas de administração do processo de trabalho no capitalismo moderno

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39 | A acumulação primitiva do capital

40 | A divisão tecnológica do trabalho

41 | Taylorismo e fordismo

45 | Impactos do taylorismo/fordismo sobre o trabalhador

48 | Os Anos Dourados

A crise econômica mundial, a globalização da economia e a reestruturação produtiva

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61 | A crise da economia mundial

63 | A globalização da economia

69 | A reestruturação produtiva ou a nova lógica organizacional

71 | O desemprego e as novas relações de trabalho

87 | Sindicalismo no Brasil

Novas competências profissionais 97

ApresentaçãoHistoricamente situados, o mundo empresarial

e o mundo do trabalho repercutem em seu interior as condições econômicas, políticas, sociais e culturais hoje universalmente existen-tes, devendo ser considerados um microcosmos delas derivado. Frutos sociais do processo histó-rico mundial, são, no entanto, ao mesmo tempo seus produtores, irradiando universalmente as suas inovações tecnológicas e organizacionais das quais surgem novos produtos e serviços que inundam os mercados e determinam, em grande parte, novos estilos de vida. Processo social uni-versal e mundo empresarial e do trabalho estão, pois, em relações recíprocas, constituindo uma só realidade social, objeto de estudo das Ciências Sociais.

Assim, a disciplina Análise Social tem como objetivo apresentar os subsídios teóricos produ-zidos pelas Ciências Sociais e, em especial, pela Sociologia, para a compreensão das inter-rela-ções entre a sociedade e o mundo empresarial e do trabalho.

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A promessa e as tarefas das Ciências Sociais

Wright Mills (1965, p. 10), um dos mais conceituados sociólogos norte- -americanos do século XX, no livro A Imaginação Sociológica, chama a atenção para o fato de que

[...] raramente [os homens] têm consciência da complexa ligação entre suas vidas e o curso da história mundial; por isso, os homens comuns não sabem, quase sempre, o que essa ligação significa para os tipos de ser em que se estão transformando e para o tipo de evolução histórica de que podem participar. Não dispõem da qualidade intelectual básica para sentir o jogo que se processa entre os homens e a sociedade, a biografia e a história, o eu e o mundo.

A qualidade intelectual básica necessária para que os homens compreendam a história, a biografia e as íntimas relações entre elas, dentro da sociedade, é a “imaginação sociológica”. Essa qualidade permite a cada um de nós se compreender como produto e produtor da vida social e, por isso, se compreender como ser historicamente condicionado, cujas possibilidades e limitações na vida são, em grande parte, circunscritas pela estrutura da nossa sociedade num determinado momento da história mundial.

A conscientização política é a expressão primeira, e talvez a mais importante, da “imaginação sociológica”. Quem a possui sabe não poder traçar livremente o próprio destino, cujo desenho é esboçado pelas condições sociais existentes, criadas e transmitidas pelas gerações passadas, mas reproduzidas, reformadas ou transformadas por decisões políticas da geração presente, das quais certamente exigirá participar para poder exercer algum controle sobre o curso de sua própria vida.

Possibilitar o desenvolvimento da imaginação sociológica é, segundo Wright Mills, a promessa das Ciências Sociais. Para cumpri-la, investigam, analisam, explicam – norteadas pelos procedimentos metodológicos e teóricos definidores do conhecimento científico – a estrutura social, demonstrando os princípios que a constituem, os mecanismos de sua manutenção e mudança e a psicologia de homens e mulheres que dela emerge. A compreensão da estrutura social é condição necessária para situar historicamente o objeto de estudo de cada uma das Ciências Sociais, por mais específicos que sejam os problemas e as perspectivas teóricas que definem o eixo de suas preocupações particulares.

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A promessa e as tarefas das Ciências Sociais

Representando o consenso entre os mais diferentes autores sobre as tare-fas e os objetivos que as Ciências Sociais se autoimpõem, Wright Mills consi-dera como a mais importante tornar claros e transparentes os valores sociais aceitos, pois que os problemas ou questões sociais resultam de sua trans-gressão, cuja origem deve ser buscada nas contradições da estrutura social.

Uma questão social é um assunto público: é um valor estimado pelo público que está ameaçado. [...] A questão, na verdade, envolve quase sempre uma crise nas disposições institucionais, e com frequência também aquilo que os marxistas chamam de “contradições” ou “antagonismos”. (WRIGHT MILLS, 1965, p. 15)

São muitas as questões sociais que enfrentamos: a violência urbana, os conflitos armados, a miséria absoluta de milhões de pessoas, a favela, o desemprego, o abandono de crianças, a prostituição infantil, as drogas, o analfabetismo etc. que ferem os valores centrais das sociedades humanas: o respeito à vida e à dignidade humana, distanciando-nos da realização do sonho de instauração de uma sociedade justa, na qual, de fato, possam se realizar os princípios de Igualdade, Liberdade e Fraternidade, herdados da Revolução Francesa, e que inauguraram o mundo moderno.

O estudo científico da estrutura social é, pois, o ponto de partida não só do reconhecimento dos problemas sociais que nos afligem, mas, sobretudo, o ponto de partida da descoberta de suas origens e dos meios disponíveis para solucioná-los, ou pelo menos minorá-los, no contexto do jogo de interesses de diferentes grupos e classes sociais das decisões políticas. Mas a imaginação sociológica, que desperta e aprofunda a conscientização política, torna-se o vetor do processo político democrático, impedindo que os homens se transformem em simples marionetes da história e objeto do poder autoritário de alguns.

Para Wright Mills, as Ciências Sociais tornaram-se o denominador comum de nosso período cultural. De fato, evidencia-se universalmente o reconheci mento da importância do desenvolvimento da análise científica da vida social, pois pu-demos constatar, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, que a utiliza-ção política dos conhecimentos produzidos pelas ciências físico-químico-natu-rais pode gerar mais problemas humanos e sociais do que realmente contribuir para resolver os já existentes. Não obstante, até aquele momento, a humanidade acreditou que o conhecimento por elas produzido era o mais eficaz e eficiente instrumento de que dispunha não só para melhorar as suas condições de vida, mas também para solucionar todos os graves e persistentes problemas sociais. Por isso, as ciências naturais receberam especial atenção ao longo de mais de um século no mundo moderno, sem que se prestasse atenção às prováveis con-sequências dramáticas do uso político que delas se pode fazer.

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Com efeito, basta lembrar a tragédia provocada pela bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki; a ameaça constante de utilização de armas nucleares; o sofrimento de milhões de famílias devido à introdução de sofisticadas tecnologias que destroem milhares de postos de trabalho e geram desemprego em massa; os problemas éticos e morais originários das potencialidades da engenharia genética, a devastação da natureza, a poluição do ar, sonora e visual etc. para se dar conta da necessidade de se avaliar continuadamente os efeitos sociais e humanos, éticos e morais, positivos e negativos, construtivos e destrutivos, da utilização do conhecimento produzido por aquelas ciências.

E essa avaliação depende não só da imaginação sociológica, mas da produção intelectual dos cientistas sociais, cujas obras podem ser considera-das como a consciência crítica do processo histórico universal, contribuindo para o desenvolvimento da consciência crítica de toda a humanidade.

São essas as principais tarefas e objetivos das Ciências Sociais, cujos estudos estendem-se inevitavelmente ao mundo das empresas e do trabalho, ajudando os administradores de empresas a atuarem profissionalmente com maior clareza e responsabilidade social, sem perder de vista os seus objetivos específicos de promoção da eficiência do processo produtivo e de prestação de serviços.

Condições históricas do nascimento das Ciências Sociais

A análise científica da vida social data do século XVIII e deve ser conside-rada como o produto intelectual mais importante das transformações eco-nômicas, políticas, sociais e culturais em curso desde o Renascimento e que se cristalizaram no Ocidente com a Revolução Industrial e a Revolução Fran-cesa, marcos do surgimento do mundo moderno, isto é, da consolidação da ordem social capitalista.

A Revolução Industriala)

A invenção da máquina a vapor na Inglaterra de 1750 significou o início de uma revolução nas técnicas de produção, o que possibilitou a mecanização do processo de trabalho em muitos ramos da atividade econômica, já na primeira metade do século XIX, tendo significado também uma revolução na organização da produção que, a partir de então, passou a ser realizada no interior de empresas com caráter permanente e racional.

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A promessa e as tarefas das Ciências Sociais

Ao propiciar o aumento da produtividade do trabalho, a redução dos custos de produção e, como decorrência, o barateamento das mercadorias, a Revolução Industrial permitia vislumbrar o nascimento de uma sociedade de abundância e mais justa, graças às possibilidades econômicas de uma distribuição mais igualitária da renda.

Rapidamente irradiada para o continente, a Revolução Industrial, contra-riamente a todas as expectativas, gerou problemas sociais de extrema gravi-dade que se alastraram, também rapidamente, por toda a Europa.

Em primeiro lugar, provocou o êxodo rural de enormes contingentes de trabalhadores entusiasmados com as perspectivas de melhoria de suas condições de vida. A consequência inevitável, porém, foi o desenvolvimento acelerado da urbanização não planejada, cujo resultado se expressava nas péssimas condições habitacionais dos trabalhadores, na imundície das cidades industrializadas, na falta de fornecimento de água, nas epidemias de cólera e de tifo que se espalharam por todo o continente, dizimando milhares de pessoas.

Segundo Eric J. Hobsbawm (1977, p. 225), o mais renomado historiador do século XX:

Só depois de 1848, quando as novas epidemias nascidas nos cortiços começaram a matar também os ricos, e as massas desesperadas que aí cresciam tinham assustado os poderosos com a revolução social, foram tomadas providências para um aperfeiçoamento e uma reconstrução urbana sistemática.

Em segundo lugar, os baixos salários e o desemprego de milhares de traba lhadores, pois [até a década de 1840]

[...] grandes massas da população continuavam até então sem ser absorvidas pelas novas indústrias e cidades, como um substrato permanente de pobreza e desespero, e também as grandes massas eram periodicamente atiradas ao desemprego pelas crises que, até então, mal eram reconhecidas como temporárias e repetitivas. (HOBSBAWM, 1977, p. 228)

A criminalidade e a violência urbana, o alcoolismo, a prostituição, o suicídio constituíam o quadro de deterioração da vida social, aprofundado pela enorme desigualdade social. Ainda nas palavras de Eric J. Hobsbawm, (1977, p. 227)

A época em que a Baronesa de Rothschild usou um milhão e meio de francos em joias no baile de máscaras do Duque de Orleans, em 1842, era a mesma em que John Bright assim descreveu as mulheres de Rochdale: “2 mil mulheres e moças passaram pelas ruas cantando hinos – um espetáculo surpreendente e singular – chegando às raias do sublime. Assustadoramente famintas, devoravam uma bisnaga de pão com indescritível sofreguidão, e se o pedaço de pão estivesse totalmente coberto de lama seria igualmente devorado com avidez.”

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Em terceiro lugar, o rígido controle e disciplina impostos pelos patrões que tornavam infernal a vida dos trabalhadores das fábricas, submetidos a jornadas de trabalho de 16 horas e a todo tipo de castigos e multas.

A Revolução Industrial não foi, portanto, apenas uma revolução econô-mica, que se tornou um marco na história da humanidade ao abrir as portas do crescimento e desenvolvimento econômicos por suas inovações tecno-lógicas e organizacionais. Foi, também, responsável pelo aparecimento de novos e contundentes problemas humanos e sociais, além de ter dado início ao fim do antigo regime, com a entrada definitiva de novos personagens no cenário social: o empresário capitalista e o trabalhador proletário que passa-ram a constituir as duas grandes classes sociais da moderna sociedade capi-talista nascente, permanentemente em conflito de interesses por ocuparem posições diferentes no processo de produção da riqueza. O capitalista é o proprietário dos meios de produção, isto é, do capital, da riqueza que gera mais riqueza – terra, tecnologia e trabalho concentrados na empresa por ele administrada – e o proletário é proprietário apenas de força de trabalho, isto é, de capacidade para trabalhar, produzir e reproduzir em escala ampliada o capital, obrigando-se a vender a sua única propriedade no mercado de trabalho em troca de um salário com o qual deverá sustentar sua prole.

Por essa razão, a Revolução Industrial não pode ser lembrada apenas como revolução econômica, devendo ser considerada uma verdadeira revo-lução da estrutura social que precipitou as transformações políticas, jurídicas e ideológicas consumadas pela Revolução Francesa.

A Revolução Francesab)

A Revolução Francesa de 1789 foi o acontecimento de maior repercussão no Ocidente por ter destruído definitivamente o antigo regime absolutista e a supremacia de uma aristocracia decadente e por ter criado as condições necessárias e suficientes para o surgimento do Estado Moderno e a consoli-dação do regime capitalista de produção.

Foi uma revolução conduzida pela burguesia enriquecida, inconformada com os consideráveis privilégios e honrarias sociais concedidos aos nobres e ao clero, e sequiosa de poder para, sobretudo, pôr fim aos altos impostos e às rígidas regulamentações da política mercantilista vigente que lhe restrin-giam a liberdade econômica. E pôde contar com o apoio imediato dos cam-poneses exasperados com o pagamento de um conjunto de obrigações exis-tentes desde a época feudal que lhes limitavam sobremaneira os ganhos.

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Grupos de interesses econômicos contrariados encontraram nas ideias dos filósofos iluministas e dos economistas o arsenal intelectual para defla-grar uma revolução que atingiu mortalmente as instituições políticas e jurídicas vigentes pela força da nova ideologia, inspirada principalmente nas obras de: Locke (1632-1704), Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755), os grandes críticos da monarquia absolutista e pais da teoria política liberal, e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), fundador da teoria política democrá-tica moderna, obras que se constituíram no fundamento teórico no qual se assenta o Estado Moderno.1

Os economistas contribuíram com a crítica ao mercantilismo que impunha severas restrições à atividade econômica com sua política de amplo controle estatal sobre o comércio, favorecendo as exportações e restringindo as importações para manter uma balança comercial que garantisse o enriquecimento do tesouro do país, e amplo controle da produção doméstica, com leis que regulamentavam os salários, as condições de emprego, a qualidade dos produtos etc.

A crítica à política mercantilista encontrou na obra de Adam Smith, A Riqueza das Nações, de 1776, a sua expressão mais contundente e qualificou o autor como o pai do liberalismo econômico. A teoria por ele elaborada defendia o livre mercado por sua fundamentação na competição entre os produtores que, movidos pelo desejo egoísta de obter sempre mais lucros, garantiriam não só a produção do demandado pelos consumidores, como também o aprimoramento da qualidade dos produtos, a busca da eficácia e eficiência do processo produtivo para a redução dos custos e o barateamento das mercadorias, assegurando, dessa maneira, o desenvol-vimento eco nômico continuado.

Assim, intelectualmente fundamentados, os revolucionários de 1789 elaboraram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em setembro daquele ano, reunindo nesse documento as ideias que comandaram a trans-formação da sociedade francesa e mais tarde de todo o mundo ocidental.

Nas palavras de Eric J. Hobsbawm (1977, p. 77), “esse documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária”, porque, apesar de seu primeiro artigo declarar que “os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis”, prevê a existência de distinções sociais, ainda que “ somente no terreno da utilidade comum”. Mas, mesmo assim, não se pode deixar de considerar a importância social, política, econômica e cultural desse

1 As obras mais importan-tes de John Locke são: Trata­dos sobre o Governo; Cartas sobre a Tolerância; e Tratado sobre a Racionalidade do Cristianismo. As de François-Marie Arouet Voltaire são: Cartas Filosóficas; Candido; Ensaio sobre os Cos tumes. A principal obra de Charles de Secondat, barão de Mon-tesquieu é Espírito das Leis. As de Jean-Jacques Rous-seau são: O Contrato Social; Discurso Sobre as Ciências e as Artes; Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens; e Emílio.

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documento porque, de fato, ele inaugura o início do processo de resgate do conceito grego de cidadão, reformulando-o e ampliando-o, condição necessária para o surgimento do Estado Moderno, isto é, do Estado Racional, fundado no Direito Racional e na autoridade legal-racional, administrado burocraticamente e, segundo Max Weber (1864-1920), um dos clássicos da Sociologia, “único terreno em que o capitalismo moderno pode prosperar” (WEBER, 1980, p.160).

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em seus demais artigos, foi decisiva para o advento das instituições políticas, jurídicas e econômicas necessárias e suficientes para o desenvolvimento do regime capitalista de produção e do Estado democrático, ao declarar a propriedade privada um direito natural, sagrado, inalienável e inviolável, como também a liberdade de expressão, a tolerância religiosa e a liberdade de imprensa, ao mesmo tempo que determinava ser o povo a fonte de toda soberania. A partir dessa declaração, o povo foi conquistando aos poucos o direito de se organizar politicamente, quer em partidos políticos, quer em movimentos sociais, não só para eleger seus representantes, mas também para contestar e reivindicar melhores condições de vida, ponto de partida para a efetivação de mudanças na estrutura social.

Não obstante a importância desses acontecimentos, cumpre ressaltar que tanto a Revolução Industrial quanto a Revolução Francesa, como também as Ciências Sociais, são filhas do processo de racionalização da cultura ocidental, iniciado dois séculos antes, e cujas expressões mais significativas são a própria ciência e a filosofia iluminista.

O Racionalismoc)

O Racionalismo tem origem na chamada revolução copernicana do século XVI que, além de Copérnico (1473-1543), é obra também de Kepler (1571-1630) e Galileu (1564-1642), cujas ideias, investigações e estudos sobre o universo se constituíram nas primeiras e mais contundentes contes tações à autoridade da Igreja Católica Apostólica Romana como fonte única do conhecimento oficialmente aceito, até então considerado sagrado, absoluto, incontestável. Fizeram nascer a convicção de que os homens, dotados de razão e de sentidos pela graça de Deus, são capazes de desvendar os mistérios de Sua criação e explicá-los corretamente.

No século XVII, René Descartes (1596-1650), matemático e físico, tornou-se o maior expoente do racionalismo, ao considerar a razão como a única fonte segura de conhecimento. No Discurso do Método, afirmava ser necessário não só duvidar

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da veracidade dos conhecimentos existentes, como também das impressões sensoriais, pois nada garante que os nossos sentidos sejam confiáveis.

Para ele, a reflexão filosófica deve partir de verdades ou axiomas simples e evidentes por si mesmos, como “Penso, logo existo”, e, por dedução mate-mática, como na geometria, chegar a um conjunto perfeitamente lógico de conhecimentos sobre indagações específicas.

Com Descartes, o processo de secularização da cultura ganha fôlego porque o método racionalista por ele elaborado foi o passo decisivo para o desenvolvimento da crítica racional às verdades que sustentavam a ordem estabelecida. Os resultados da aceitação desse método como instrumento único para a construção do conhecimento se expressaram na emancipação do pensamento das verdades religiosas, na renúncia a uma visão sobrenatural para explicar os fatos e na contestação dos fundamentos da sociedade feudal, suas instituições e costumes. Em outras palavras: o resultado do racionalismo foi a consagração do livre pensamento, livre da visão de mundo dominante até então, livre para ensaiar novas e revolucionárias construções.

O Iluminismo ou Filosofia das Luzes, cuja manifestação suprema se deu na França do século XVIII, foi o ponto culminante dessa revolução intelectual em curso que abalou definitivamente os alicerces culturais da sociedade medieval europeia.

A crítica feroz que seus principais representantes desfecharam contra a sociedade medieval também se assentava na convicção de que os procedimentos intelectuais que possibilitaram o desenvolvimento das ciências naturais deveriam ser aplicados na explicação da realidade social como fundamento racional para a sua rejeição. E esses procedimentos não se limitavam à aplicação do método dedutivo de investigação legado por Descartes, mas também do método empirista desenvolvido por Francis Bacon (1561-1626, cuja obra principal é Novum Organum), baseado na observação e na experimentação para a descoberta das leis universais invariáveis que regem a ordem natural e a ordem social.

Pode-se afirmar que da conjugação do método racionalista e do método empirista advém a concepção moderna de ciência, hoje universalmente aceita como o caminho para a busca da verdade e, portanto, um dos valores centrais das sociedades ocidentais. E dessa conjugação surgiram trabalhos extraordinários no campo das ciências físico-químico-naturais ainda nos séculos XVII e XVIII. Basta registrar os nomes de Isaac Newton

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(1643-1727) e Leibniz (1646-1716), no campo da Física e da Matemática; de Boyle (1627-1691) e de Lavoisier (1743-1794), no campo da Química; e de Lineu (1707-1778) e de Buffon (1707-1788), no campo da Biologia, para compreender as origens das convicções dos iluministas de que a Razão e a Ciência poderiam permitir o exercício de um certo controle humano sobre o mundo e, fundamentalmente, sobre a realidade social, agora compreendida como construção humana e não mais como realização da vontade divina e, portanto, passível de crítica, de contestação e de transformação.

Preparava-se, assim, o caminho para o processo revolucionário de instauração do mundo moderno e para o desenvolvimento das Ciências Sociais.

As Ciências SociaisNão há fronteiras rígidas entre as Ciências Sociais, pois todas, como vimos,

têm por objeto de estudo o comportamento social determinado pelo processo histórico universal. No entanto, cada uma delas focaliza um aspecto específico desse comportamento, analisando-o de uma perspectiva própria, em torno de conceitos particulares que definem a sua construção teórica. Mas todas as Ciências Sociais se beneficiam dos conhecimentos produzidos pelos autores de cada uma, num íntimo entrelaçamento que permite o enriquecimento e aprofundamento da compreensão da vida social. Embora se possa distinguir a especificidade da produção de cada uma das Ciências Sociais, nela se identifica a contribuição do trabalho das demais, pelo menos no que diz respeito à utilização dos principais conceitos que indicam o seu campo de estudo particular e os problemas fundamentais de que se ocupam.

A Economia Política, cuja origem é a Escola Clássica da Inglaterra com a publicação das obras de Adam Smith, Ricardo (1772-1823, autor de Princípios de Economia Política) e Malthus (1766-1834, autor de Ensaio Sobre a População), estuda as ações sociais voltadas à produção, circulação, distribuição e consumo de bens e serviços em seu contexto institucional nacional e, hoje, internacional.

A Ciência Política analisa as instituições políticas que regulamentam a distribuição do poder, as diferentes formas de governo, a administração do Estado, a luta pelo poder, o comportamento político em suas diferentes manifestações: político-partidário e eleitoral, as atitudes populares diante das questões políticas, a participação em movimentos sociais, enfim, o processo político em geral, inclusive no seio das organizações e empresas.

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A promessa e as tarefas das Ciências Sociais

A História é a ciência que estuda o processo de produção da vida (isto é, das condições materiais de existência e da consciência, expressa no conjunto de crenças, valores, padrões de comportamento), na expectativa de apreendê-lo em suas diferentes manifestações e especificidades ao longo do tempo. Detém-se sobretudo na análise daqueles acontecimentos que decisi vamente contribuíram para a sua transformação com o surgimento de novas instituições sociais.

A Psicologia Social investiga as relações recíprocas entre personalidade e estrutura social, demonstrando a influência do ambiente social na formação da personalidade e, como, em contextos grupais, os processos sociais são por ela influenciados, como, por exemplo, na ação da multidão, tal como tumultos ou linchamentos, nos estudos de opinião pública, nos movimentos sociais, nas atitudes grupais em relação aos preconceitos de qualquer natureza etc., ou seja, como as reações coletivas alteram a conduta individual e interferem na vida social.

A Antropologia focaliza seus estudos na construção da cultura, ou seja, no mundo dos significados e dos valores sociais predominantes nas mais diferentes sociedades, inclusive nas sociedades ágrafas, ou sem grafia, analisando-as em todos os seus aspectos, como conjuntos. Por isso, as fronteiras entre a Antropologia e a Sociologia são muito tênues.

A Sociologia, ciência que subsidia o curso Análise Social, investiga, analisa, explica e interpreta a estrutura social como um todo, levando em consideração todos os aspectos que a constituem, o econômico, o político, o cultural, o histórico, o psicológico, como também os demais fenômenos que interferem na configuração da vida social, como a demografia, a ocupação do espaço físico etc. É a ciência das relações sociais norteadas pelas instituições, ou padrões de comportamento, que expressam os valores, crenças, ideias, sentimentos, compartilhados pelos membros de uma sociedade, e princípios sobre os quais se assenta a organização da vida social em todas as suas dimensões: econômica, política, social, cultural, determinando-lhe a estrutura e assegurando-lhe uma ordem. Por isso, muitos autores se referem à Sociologia como a ciência que procura descobrir, descrever, explicar e compreender a ordem que caracteriza a vida social, ou seja, os padrões de comportamento que a caracterizam e que “permitem a corrente rotineira da vida social” (INKELES, 1964, p. 47), permitindo, portanto, prever-se o seu curso e, ao mesmo tempo, indicar as manifestações de desordem, de conflito e de mudança, pois a realidade social é processo.

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Ampliando seus conhecimentos

Estudando Sociologia(GIDDENS, 2005)

A imaginação sociológica nos permite ver que muitos eventos que parecem dizer respeito somente ao indivíduo, na verdade, refletem questões mais amplas. O divórcio, por exemplo, pode ser um processo muito difícil para alguém que passa por ele – o que Mills chama de “problema pessoal.” Mas o divórcio, assinala Mills, é também um problema público numa sociedade como a atual Grã-Bretanha, onde mais de um terço de todos os casamentos termina dentro de dez anos. O desemprego, para usar outro exemplo, pode ser uma tragédia pessoal para alguém despedido de um emprego e inapto para encontrar outro. Mesmo assim, isso vai bem além de uma questão geradora de aflição pessoal, se considerarmos que milhões de pessoas numa sociedade estão na mesma situação: é um assunto público, expressando amplas tendências sociais.

Tente aplicar esse tipo de perspectiva à sua própria vida. Não é necessário pensar apenas em acontecimentos preocupantes. Considere, por exemplo, por que você está virando as páginas deste livro – por que você decidiu estudar Sociologia. Você pode ser um estudante de Sociologia relutante, fazendo o curso somente para preencher créditos exigidos. Ou você pode estar entusiasmado para descobrir mais sobre o assunto. Quaisquer que sejam as suas motivações, você provavelmente tem muito em comum, sem saber necessariamente, com outros que estudam Sociologia. Sua decisão individual reflete sua posição numa sociedade mais vasta.

As seguintes características se aplicam a você? Você é jovem? Branco? Você vem de um background profissional ou de colarinho-branco? Você já teve, ou ainda tem, um trabalho de meio-turno para aumentar seus ganhos? Você quer encontrar um bom trabalho quando terminar sua educação, mas não está especialmente empenhado em estudar? Você não sabe realmente o que é sociologia mas acha que tem algo a ver com como as pessoas se comportam em grupo? Mais de três quartos de vocês responderão “sim” a tais questões. Estudantes universitários não são o típico da população como um todo, mas tendem a ser provenientes de ambientes mais favorecidos. E suas atitudes geralmente refletem aquelas sustentadas por amigos e conhecidos. Os ambientes sociais dos quais viemos têm muito a ver com os tipos de decisões que achamos apropriadas.

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A promessa e as tarefas das Ciências Sociais

Mas suponha que você respondeu “não” a uma ou mais dessas questões. Você pode ter vindo de um grupo minoritário ou de um passado de pobreza. Você pode ser alguém de meia-idade ou mais velho. Mesmo assim, outras conclusões provavelmente se seguem. Você provavelmente teve de se esfor-çar para chegar onde está; talvez você tenha tido de superar reações hostis de amigos e de outros quando contou a eles que estava pretendendo ir à faculdade; ou talvez você esteja combinando Ensino Superior com paterni-dade em tempo integral.

Embora sejamos influenciados pelos contextos sociais em que nos en-contramos, nenhum de nós está simplesmente determinado em nosso com-portamento por aqueles contextos. Possuímos e criamos nossa própria in-dividualidade. É trabalho da Sociologia investigar as conexões entre o que a sociedade faz de nós e o que fazemos de nós mesmos. Nossas atividades tanto estruturam – modelam – o mundo social ao nosso redor como, ao mesmo tempo, são estruturadas por esse mundo social.

O conceito de estrutura social é importante na Sociologia. Ele se refere ao fato de que os contextos sociais de nossas vidas não consistem apenas em conjuntos aleatórios de eventos ou ações; eles são estruturados ou padronizados de formas distintas. Há regularidades nos modos como nos comportamos e nos relacionamentos que temos uns com os outros. Mas a estrutura social não é como uma estrutura física, como um edifício que existe independentemente das ações humanas. As sociedades humanas estão sempre em processo de estruturação. Elas são reestruturadas a todo o momento pelos próprios “blocos de construção” que as compõem – os seres humanos como você e eu.

Atividades de aplicação1. O filme O Nome da Rosa, encontrado nas prateleiras de filmes de ação

ou de suspense das locadoras de DVDs, foi inspirado no livro de mes-mo nome de autoria do italiano Umberto Ecco. O livro apresenta, de maneira romanceada, o início do processo de secularização, intelectu-alização e/ou racionalização da cultura ocidental. Indique os indícios desse processo referindo-se ao conjunto das cenas ou a cenas específi-cas do filme.

A promessa e as tarefas das Ciências Sociais

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2. Explique a seguinte afirmação: “A imaginação sociológica capacita seu possuidor a compreender o cenário histórico mais amplo, em termos de seu significado para a vida íntima e para a carreira exterior de numerosos indivíduos. Permite-lhe levar em conta como os indivíduos, na agitação de sua experiência diária, adquirem frequentemente uma consciência falsa de suas posições sociais. Dentro dessa agitação, busca- -se a estrutura da sociedade moderna, e dentro dessa estrutura são formuladas as psicologias de diferentes homens e mulheres. Através disso, a ansiedade pessoal dos indivíduos é focalizada sobre fatos explícitos e a indiferença do público se transforma em participação nas questões públicas” (MILLS, 1965, p. 11-12).

3. Apresente, explicando, as condições históricas que permitiram o surgi-mento das Ciências Sociais.

4. Qual o objeto de estudo das diferentes Ciências Sociais? É possível delimitar fronteiras entre elas? Justifique sua resposta.

ReferênciasGIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005.

HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

INKELES, Alex. O que É Sociologia? São Paulo: Pioneira, 1974.

WEBER, Max. História Geral da Economia. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Cole-ção Os Pensadores).

WRIGHT MILLS, C. A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1965.

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