Bruxa de Evora

17
A migração da mítica da Bruxa de Évora: da Babilônia até a Península Ibérica ...a Bruxa de Évora foi vista voando em um bode preto... voava... acompanhada por um veado e um javali alados... (FARELLI, 2006 p 26) Segundo a biografia do feiticeiro Cipriano, seu encontro com a Bruxa aconteceu na Mesopotâmia, na Babilônia, [atual Iraque] onde se reuniam os ocultistas que estudavam a magia dos antigos Caldeus [sobretudo Astrologia]. Os dois personagens, já legendários: Cipriano, o Feiticeiro e supostamente, um de seus Mestres, sendo uma certa Bruxa de Évora, parecem ser um caso de migração de mitos e sincretismo cultural.

description

Bruxa de Evora

Transcript of Bruxa de Evora

Page 1: Bruxa de Evora

A migração da mítica da Bruxa de Évora: da Babilônia até a Península Ibérica

...a Bruxa de Évora foi vista voando em um bode preto...

voava... acompanhada por um veado e um javali alados...

(FARELLI, 2006 p 26)

Segundo a biografia do feiticeiro Cipriano, seu encontro com a Bruxa aconteceu na Mesopotâmia, na Babilônia, [atual Iraque] onde se reuniam os ocultistas que estudavam a magia dos antigos Caldeus [sobretudo Astrologia].

Os dois personagens, já legendários: Cipriano, o Feiticeiro e supostamente, um de seus Mestres, sendo uma certa Bruxa de Évora, parecem ser um caso de migração de mitos e sincretismo cultural.

Ambos, Cipriano e a Bruxa, originalmente, parecem pertencer ao acervo das crenças e figuras mitológicas que chegaram à península Ibérica em diferentes períodos históricos mas que combinaram-se perfeitamente no universo da mítica do sobrenatural: primeiro, chega a lenda Cipriano, já difundida no Martirológio cristão: o caso do Feiticeiro e sua misteriosa mestra de Yeborath. O Bruxo que virou Santo.

Page 2: Bruxa de Evora

Mais tarde, o juntamente com os Mouros sarracenos que invadiram e dominaram o território a partir de 715 d.C., vieram as bruxas misteriosas do Oriente, quase ciganas, as bruxas das Yeborath ou Iebora, das encruzilhadas, das agulhas.

E, se sobre a Bruxa não há registro históricos de espécie alguma, a não ser como arquétipo, sobre Cipriano, o Santo Feiticeiro, existem, ao menos, um parcos documentos, como sua Confissão depois da conversão ao Cristianismo.

Como foi dito, Cipriano – o Feiticeiro não somente encontrou uma certa Bruxa de Evora em sua passagem pela Babilônia como dela teria herdado os livros, as poções, os segredos do poderes de sua Mestra.

Considerando essa informação como fato possível, uma Bruxa ou feiticeira na/ou da Babilônia seria, naturalmente, versada naquele tipo magia característica da cultura Mesopotâmica, aquela normalmente classificada como magia das trevas, da mão esquerda, magia negra: Goecia, necromancia, vidência, evocações, parcerias com demônios, envultamentos [encantamento à distância: os bonecos de cera e as agulhas], oráculos.

Essas bruxas e bruxos foram aqueles que preservaram alguma coisa das tradições da magia das tribos nômades e reino antigos de tempos ainda mais arcaicos entre os quais destacam-se os Caldeus e os Assírios. Era uma Magia de sombras, freqüentemente desprovida de escrúpulos, sem critérios éticos, que livremente associava-se com entidades não humanas e pouco confiáveis: demônios, gênios, formas-pensamento, elementais, espíritos de pessoas mortas.

Uma bruxa assim poderia, mesmo ter existido. E não somente uma, mas várias. As bruxas de-ou-das Evoras seriam algo como uma categoria de feiticeiras. Voltando à etimologia da palavra Évora, embora sejam encontradas raízes em solo europeu, não se pode desconsiderar a Yeborath dos árabes que, como foi explicado tem como significado: Cruzado, cruzamento, encruzilhada.

Uma etimologia que sugere a tradução do termo Bruxa de Évora para Bruxa de Encruzilhada ou, bruxa que faz seus trabalhos em encruzilhadas, lugar de Pactos. [Lembrando uma característica que lembra a divindade grega Hécate, senhora dos encantamentos e do mundo dos mortos.]

Page 3: Bruxa de Evora

Com uma pequena mudança gráfica e fonética, se Yeborath é dito Iebora, então o significado muda para Agulha, agulhas e assim resulta, Bruxa das Agulhas. Ou seja, uma bruxa que trabalha com agulhas [supõe este pesquisador, agulhas e bonequinho de cera. Meditemos]...

Segundo o livro de São Cipriano [o feiticeiro, século III d.C. anos 200], capa de Aço, no tempo em que os mouros viviam na região portuguesa de Évora, o rei mouro Praxadopel ali construiu um castelo, em Montemur.

Nesse lugar, hoje chamado Castelo de Giraldo [referência a Geraldo, o Sem Pavor – ... -1173? herói da reconquista da terra lusa ocupada pelos mouros], transformado em ruínas pelo passar dos séculos, em meio às pedras, louvado nas noites escuras pelo uivo de lobos e chacais, no fundo da propriedade, ocultos embaixo de montes de pedras, no Túmulo de Montemur, foram encontrados os restos mortais de sete pessoas e pergaminhos escritos por Lagarrona, a Feiticeira de Évora (também chamada Lagardona ou La Guardona).

* Os mouros, povos do oriente médio, somente poderiam ter ocupado a região depois período de expansão dos domínios árabes em suas incursões em território europeu, em uma época, portanto, pós-fundação do Islamismo. Porém as referências à uma bruxa de Évora remontam aos primeiros séculos do Cristianismo, por volta do século III, coincidindo com o período de vida de do bruxo Cipriano. Eis uma prova da dificuldade de identificar a historicidade dessa feiticeira tão famosa.

Frei Antão de Sis, estudioso dos fenômenos mágicos e da feitiçaria, através dos pergaminhos, encontrou a casa da bruxa, ainda em pé, apesar do tempo. Descreveu-a como uma casa diabólica... No meio dela havia uma cova da altura de um homem. As paredes internas estavam repletas de desenhos representando lagartos, cobras, lagartixas caracóis, rãs, escaravelhos, símbolos egípcios, vespas, baratas e outros bichos peçonhentos.

Do lado de fora, havia quatro sapos e várias figuras de meninos tendo nas mãos molhos de varinhas de ervas com os quais ameaçavam os sapos. Ainda dentro da casa, em dos cantos dessa casa mal-assombrada havia a escultura de pedra de um cavalo-homem, como um centauro. Noutro lugar, outra estátua, esta, a de uma mulher-serpente. Em certo ponto do chão ladrilhado com cerâmica negra, uma inscrição:

Page 4: Bruxa de Evora

O primeiro a abrir esta cova

Verá coisas jamais vistas

Cava por diante para que resistas [enfrentes]

ao grande temor que seu peito prova

Verás sortilégios mágicos que prendem os homens,

o filtro do amor que amarra as mulheres.

Não temas, não temas. Não mostres temor:

acharás sucessos, magia e amor

e, por certo, em tudo será vencedor.

Gran libro de San Cipriano o los tesoros del hechicero, 1985

FEITIÇO DA COBRA GRÁVIDA

Outro supostamente episódio biográfico sobre a Bruxa relata o paradoxal encontro da Feiticeira com o Bruxo Cipriano, já cristianizado mas ainda especialista em bruxedos. O caso é conhecido com O Encontro de São Cipriano com a Bruxa de Évora. Neste encontro, Cipriano não parece um discípulo diante de uma antiga mestra. Ao contrário, é a bruxa, já em avançada idade que recorre ao novo cristão para realizar um feitiço que lhe renderia [a ela, bruxa] bom dinheiro. Trata-se do feitiço da cobra grávida, para segurar marido.

O ex-bruxo propõe uma barganha: a conversão da bruxa ao Cristianismo em troca da fórmula mágica. A bruxa aceita e eis a feiticeira de Évora transformada em penitente velhinha cristã. Ao final, a receita profana, destinada a recuperar o marido da contratante, uma jovem senhora da nobreza, pede o favor para a réptil gestante [a cobra grávida!] mas, isso em nome de Deus e da Virgem Maria! Uma combinação extravagante de feitiço pagão e reza cristã.

Santander, autor deste livro, O Livro da Bruxa ou Feiticeira de Évora, este autor é tão difícil de identificar e datar quanto a própria Bruxa de Évora. Ele começa sua obra sem qualquer introdução, identificando o período de vida da personagem que dá nome ao livro com o tempo da dominação Sarracena na península Ibérica, ou seja entre o século VIII e começo do século XII.

Escreve Santander: No tempo em que os mouros viviam na região portuguesa de Évora... E ao longo do capítulo descreve o que seriam os últimos anos de vida da Bruxa, claramente

Page 5: Bruxa de Evora

qualificada como Moura, muçulmana. No relato, a feiticeira tem um filho adulto e mau. Chamado Candabul, desejou possuir uma jovem donzela cristã. A bruxa ajuda no rapto da moça, providencia a morte por enfeitiçamento todos os pretendentes dela. Mas o mal-feitor é preso e condenado à morte. Mais uma vez a bruxa interfere e se empenha em produzir mágicos meios de fuga para Candabul.

LA GUARDONA, O FANTASMA DA BRUXA

Caçada pelos agentes da Lei, depois de várias peripécias, ela acaba morrendo durante um acidente (será???)na realização de um de seus feitiços, que fazia em uma tentativa desesperada de escapar da Justiça. Quando chegaram os soldados, encontraram-na morta. Não foi sepultada. Como punição post-mortem, foi pendurada na porta da própria casa e ali ficou apodrecendo e sendo devorada pelos abutres e vermes. O cadáver, lentamente virando ossada, oscilando ao sabor das ventanias, era uma visão macabra que parecia vigiar o lugar e a bruxa morta passou a ser chamada de La Guardona [ou, as corruptelas, Lagarrona e Lagardona], algo como A Guardiã... da casa, de suas ruínas e arredores. O local, naturalmente, passou a ser temido e considerado como assombrado.

Todavia, mais adiante, quando fala do encontro da feiticeira com o ex-mago negro, o autor [Santander] ignora completamente os dados históricos que, se pouco dizem também sobre a vida do bruxo Cipriano, ao menos bem determinam a data de sua morte, martirizado por ser cristão em 304 d.C., muito antes, séculos antes, portanto, da Bruxa de Santander ter protagonizado aquelas aventuras. No episódio do feitiço da cobra grávida, o fim da bruxa é outro: cristianizada, bem aposentada com o ouro do último bruxedo que fez por contrato e empregada como Aia [criada pessoal] de uma condessa.

LENDAS, FÓRMULAS & SEGREDOS

Torna-se claro que os relatos sobre a bruxa de Évora são de fato, um conjunto de lendas e seus supostos escritos são de origem desconhecida, excertos de Grimórios mais antigos de autoria igualmente duvidosa. Alguns são atribuídos a este ou aquele mestre mais conhecido na esfera do folclore, da cultura popular, como Alberto, o Grande, Papa Honório, bruxo Atanásio e o próprio Cipriano, o feiticeiro.

Muitas das receitas dos Grimórios são fórmulas de remédios caseiros, acervo de um saber muito útil em uma época em que a medicina dispunha de toscos recursos e médicos com estudo eram poucos e para ricos. Muitos dos Segredos da Bruxa revelados no livro de Amadeo

Page 6: Bruxa de Evora

de Santander fazem parte da sabedoria popular dos curandeiros e curandeiras de linhagem imemorial, uma herança que durante muito tempo foi preservada e transmitida através da cultura oral.

A própria Bruxa apresentada por A. de Santander em sua pretensa-original tradução-reprodução do Único e autêntico manuscrito comprovado pelos sábios da Galícia extraído do Flor Sanctorum, datado dos tempos dos mouros de Évora, a feiticeira comenta revelando algo possivelmente verídico na vida de muitas Bruxas de Évora: que seus conhecimentos foram-lhe ensinados pela mãe, segredos passados de geração em geração. Explicando a Cipriano em que consiste o seu [dela] feitiço da Cobra Grávida Para Prender Marido ela revela algo de recorrente na biografia dessas bruxas de Encruzilhadas:

É pele de cobra com flor de suage [ou sage, Artemisia vulgaris ou, ainda, flor-de-são-joão, erva-de-são-joão, artemísia-verdadeira, losna, absinto. L.C.] e raiz de urze [Erica Lusitanica ou torga e/ou Calluna vulgaris] que estou queimando em nome de Satanás, para defumar as roupas do duque [o Grão Duque de Terrara] e ver se o desligo daquela mulher [uma amante]. Esta mágica foi sempre infalível quando minha mãe a praticava debaixo dessas abóbodas em que as mãos dos homens não tomaram parte. Minha mãe desligou com ela [a tal magia] mancebais [relações extraconjugais] de nobres e monarcas...(SANTANDER, p 13)

Compilados em manuscritos medievais, organizados em volumes raros, artesanais, ornados com finas iluminuras, a grande enciclopédia dos saberes populares, pagãos, curiosamente, começou a ser organizada, não raro, pelo monges escribas das grandes escolas e bibliotecas de mosteiros da Cristandade medieval. Provavelmente foi da pena dos monges que surgiram os primeiros Grimórios e/ou Engrimanços. Com o advento e evolução da imprensa, ou seja, depois de Johannes Gutenberg [Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg, 1398-1468 – alemão, considerado inventor/introdutor da imprensa no Ocidente], esses conhecimentos documentados em registros escritos tornaram-se disponíveis em numerosas cópias que ganharam o mundo em letras de forma, em publicações variadas, de folhetos baratos, almanaques de curiosidades até custosas e exclusivas edições.

O ENCANTAMENTO DA BRUXA

Em A Bruxa de Évora, Maria Helena Farelli (2006) apresenta a personagem como arquétipo folclórico luso-hispano-brasileiro, com ênfase nas raízes portuguesas da lenda, já devidamente hibridizadas entre: 1. o druidismo celtíbero doméstico; 2. o culto romano à deusa Diana [correspondente à grega Artemis], cujas ruínas do templo ainda podem ser visitadas em Évora; 3. a figura mítica da moura feiticeira, freqüentemente apresentada, simplesmente e

Page 7: Bruxa de Evora

depreciativamente como a Moura Torta, um modelo de bruxa, tudo isso misturado ao – 4. ritualismo cristão das orações e adoração dos santos e das relíquias e nome sagrados.

Em Farelli (2006), a narrativa passa, como é necessário, pela história da nação lusitana, detendo-se em período em que a cultura popular mística-religiosa já tinha absorvido elementos que ficaram como herança do tempo da dominação islâmica-sarracena em toda a península Ibérica. Boa parte dessa herança consiste no universo misterioso na magia semita, caldaica, mesopotâmica: dos magos-alquimistas, astrólogos, videntes, quiromantes, necromantes – invocadores de gênios e espíritos dos mortos, magia-negra, também, sim, da mais antiga tradição árabe, pré-Islã. Segundo Farelli a Bruxa de Évora era a ...guardadora dos segredos dos feitiços do Oriente, a que voava em camelos alados... (FARELLI, 2006 – p 15).

Sobre o sincretismo no qual foi forjada a Bruxa de Évora, a autora escreve: ...o português sempre acendeu uma vela para Deus e uma para o outro. Até na Igreja ele fazia mirongas... Até os padres eram acusados desses feitos. Mas os considerados grandes bruxos eram os mouros e os judeus... (Idem, p 29). E mais: ...segundo a lenda, a Bruxa de Évora era moura... árabe ou mourisca... morena... (Ibid., p 29).

BRUXA ERUDITA

Em relação à aparência, A Bruxa de Évora (FARELLI, 2006) apresenta o arquétipo folclórico da personagem em sua velhice. Esta esta é uma daquelas bruxas velhas e esquivas dos contos infantis. Mas, ao contrário do modelo da curandeira intuitiva, analfabeta, camponesa ignorante cujo conhecimento é todo proveniente de experiência pessoal e herança de tradições orais, em Farelli (Idem) a bruxa de Évora é praticamente uma erudita. Alfabetizada, poliglota, ela fala, lê e escreve em português [o gentílico da época], árabe e latim.

Sem citar sua fonte de informação, a autora enfatiza: Sabia matemática... reconhecia as estrelas,... sabia ler a sorte nas areias... Ela conhecia a magia de seus ancestrais muçulmanos* mas, vivendo no século XIII [anos 1200], também sabia [da magia] dos celtas... (FARELLI, 2006 – p 33). Todavia, a moura pagã era, ao mesmo tempo, devota cristã: ...a velha bruxa já tinha feito a peregrinação a Santiago de Compostela [tradição cristã]... Já tinha ido à Sé de Braga, muitas vezes, pagar promessas... (Idem) ...E, ainda: ...a bruxa de Évora não era uma herética. Era uma mulher que conhecia as rezas (Ibid., p 41).

Page 8: Bruxa de Evora

* Um equívoco comum do olhar superficial do Ocidente sobre o Oriente. Há muito tem-se confundido cultura árabe com cultura de muçulmanos. A magia não poderia ser praticada por uma muçulmana. O Islã proibiu, sujeitando a severas penas, a prática da magia tradicional pré-islâmica. Na verdade, a famosa riqueza da cultura árabe precede o Islã; uma riqueza que o Islamismo cuidou de mutilar ao longo de mais de um milênio e declina, mais e mais, com a expansão e recrudescimento fundamentalista da fé no Alcorão e sua teocracia – repressiva, opressora e regressora, baseada em leis supostamente religiosas suplementares – as Sharias, diferentes para as diferentes seitas muçulmanas, que ignoram até mesmo os preceitos estabelecidos no confuso livro sagrado desses crentes.

Além disso, essa Bruxa de Évora era uma senhora em situação social e de comportamento atípicos para sua época. Vivia bem [ou seja, não passava dificuldades financeiras, materiais]. Tinha dinheiro proveniente da prestação de seus serviços mágicos e/ou técnicos-científicos. Porém, consciente do espírito dos tempos medievais, não ostentava riqueza ou poder. Era discreta, sabiamente. Andava pobremente vestida, Era seu jeito de ficar invisível e evitar confrontos com as autoridades religiosas.

Flos Sanctorium ou Flos-Santorio: Flor dosSantos

Como todo ocultista, seja leigo ou erudito, considerando uma figura histórica da Bruxa como precursora ou símbolo de um mito, a Bruxa de Évora, alfabetizada que era possuía ou devia possuir seu próprio Livro [ou livros] de estudos e anotações contendo fórmulas de elixires, ungüentos, poções, rezas, rituais e outros saberes. Nos meios exotéricos, o livro de registros pessoais de uma bruxa é chamado Livro das Sombras.

Um possível Livro da Bruxa de Évora seria – ou foi e é, um objeto que, se autêntico, atraiu e atrai curiosidade e cobiça proporcional à força lendária de sua suposta autora. Um objeto digno de um Museu de história da cultura ocidental. De fato, este Livro é um dos elementos mais explorados do folclore em torno da Bruxa; explorado, inclusive, no mercado editorial.

Porém, o texto que tem atravessado séculos e que Amadeo Santander reproduz em seu Livro da Bruxa (s/data), este texto é uma mutação de autoria desconhecida o suficiente para ser considerado de domínio público. Na folha de rosto de uma edição recente Santander e/ou a editora [seja lá quem for este autor] declara que a obra reproduz o único e autêntico manuscrito... [cópia] do original extraído dos Flos Sanctorum, datado do tempo dos mouros de Évora.

Page 9: Bruxa de Evora

Esta informação é uma encruzilhada na pesquisa: ocorre que o Flos Sanctorum [ou Florilégio dos Santos, Flor dos Santos] a princípio, é Hagiografia: um livro que reúne biografias de santos [?!]. E a situação se complica posto que o Flos Sanctorum, segundo estudos é, por sua vez, reedição de um livro mais antigo, A Lenda Áurea ou A Legenda Áurea que também é, essencialmente, coletânea de vidas de santos, escrito-compilado por Jacobus de Voragine [1230-1298, italiano, religioso dominicano, arcebispo de Gênova], datado em em torno do ano de 1260.

A questão é: como pode, o Livro da Bruxa apresentado por A. Santander ser extrato, derivação de um Flos Sanctorum de qualquer século? Tudo indica que o Livro da Bruxa não é, de modo algum derivado de manuscritos de uma Bruxa de Évora. O nome da Bruxa, nesse caso, tal como no caso do penitente Bruxo Cipriano é usado como atrativo de mercado. Caso simples de propaganda enganosa. Em ambos os casos, os Livros atribuídos aos lendários autores são coletâneas de simpatias e receitas populares, tradicionais, resgatadas do acervo da cultura oral, misturadas com rezas e saberes práticos destinados a solucionar os problemas do corpo e da alma do Homem medieval.

MAGIA PRÁTICA, MUITO PRÁTICA

No livro de A. Santander as receitas mágicas, feitiços, oráculos, começam no CAPÍTULO III com uma técnica muito útil, atemporal! que pode funcionar em qualquer época, para as mulheres se livrarem dos homens quando estiverem aborrecidas de os aturar. A seguir, uma receita infalível para as mulheres não terem filhos, tão útil quanto anterior ou mais, método bastante tradicional, utilizando esponjas do mar introduzidas na vagina antes do coito, truque já usado no Egito Antigo, por exemplo. Há magias para sedução, rejeição e fidelidade, para prosperar no trabalho honesto ou desonesto. Oferece proteção contra inimigos, oráculos para saber do presente e do futuro, feitiços e contra-feitiços.

O CAPÍTULO IV resgata a figura do mago egípcio Janes [que, juntamente com seu parceiro, Jambres], que confrontou Moisés e Arão diante do Faraó com uma disputa de poderes mágicos. Este personagem, o mago egípcio Janes, pouco lembrado nos dias correntes, também é citado nos Livros de são Cipriano, fortalecendo as alusões a uma ligação, mestra-discípulo entre o Santo Bruxo e a Bruxa de Évora. Em uma das versões da fim da vida da Bruxa, ela é convertida ao cristianismo por Cipriano e termina sua vida como devota católica e aia [camareira pessoal] de uma aristocrata.

Neste capitulo, continuam sendo listadas magias relacionadas com questões mundanas, cotidianas, incluem ainda, receitas de beleza: Para conservar a formosura, para afinar, limpar e clarear a pele, tingir os cabelos. Em uma das formulas o mago Jambres promete: ...Fazer sumir do corpo e do rosto as verrugas, manchas e outras excrescências da pele.

Page 10: Bruxa de Evora

O CAPITULO V é dedicado à Pastoromancia, denominação imprópria, refere-se à chamada, por ocultistas como Eliphas Levi [Alphonse Louis Constant, 1810-1875] e Papus [Gérard Anaclet Vincent Encausse, 1865-1916], magia dos campos, da tradição dos pastores da Sicilia, Itália. E não são propriamente magias.

São receitas, mais especificamente, medicinais, parte do arsenal curativo popular dos precários tempos medievais. São remédios e rezas para combater, solitária [Taenia solium, verme platelminto], hemorróidas, lesões musculares, surdez, dor de dentes, feridas, úlceras, hemorragias, queimaduras, picada de insetos e animais peçonhentos e, é claro, receita contra calos e verrugas.

O CAPITULO VI promete revelar o segredo alquímico da arte de fazer ouro. Porém, como sempre acontece nesse tipo de "literatura" o texto nada fornece de aproveitável sobre o tema. Aliás, passa longe de qualquer fórmula de produzir ouro.

São mencionadas umas poucas substâncias muito usadas em outras operações mágicas registradas em outros manuais do gênero. Tais substancias seriam ingredientes-chave da transmutação de materiais ordinários no precioso metal. Escreve Santander: Não faltam nos livros verídicos [?] exemplos que comprovem essa operação. E ainda: Esta arte é de grande facilidade [!] mas exposta a graves perigos porque não se pode executar em a cooperação do demônio (SANTANDER, p 59).

É o demônio quem prepara e fornece certos pós empregados na transmutação. Dois metais e uma outra substância são mencionados como ingredientes essenciais: argenteo vivo [possivelmente interpretável como Alumínio (Al) mas muito mais provável que seja redundância esclarecendo o azougue como sendo e elemento Mercúrio cujo símbolo é Hg provém da designação latina – hydrargyrum que significa prata líquida.

De fato, o Mercúrio assemelha-se a uma prata buliçosa e vívida [por sua consistência entre o fluido e o gel]; daí também a denominação azougue [para o mercúrio], aludindo a algo buliçoso, que não para quieto. Finalmente, entre os ingredientes da transmutação comentada em O Livro da Bruxa é mencionado um misterioso pó de Resh.

Page 11: Bruxa de Evora

CAPÍTULO X – CARTOMANCIA

Neste penúltimo capítulo, mais uma vez, misterioso manuscrito revelaria a técnica da suposta Bruxa de Évora no ofício oracular de ler o destino das pessoas nas cartas de um baralho comum.

Na misérrima choça que abrigava a bruxa, sua última morada antes da condenação e num falso compartimento que lhe servia de dormitório, foi achado um manuscrito esta nova arte de deitar as cartas, a que demos o nome de cartomancia cruzada e, ao que parece, [desta técnica] a feiticeira começou a fazer uso depois de ter-se indisposto com Satanás [supostamente, a Bruxa converteu-se ao Cristianismo por influência do também ex-feiticeiro Cipriano – [p 139].

Observação: Na cartomancia, as cartas podem deitadas [tiradas e postas na superfície de um plano] em disposição linear, uma ao lado da outra, é muito comum. A forma cruzada dispõe as cartas de modo a formarem a figura de uma cruz, com uma tiragem de cinco cartas, por exemplo. Isso isentaria a prática de tirar a sorte do estigma do pecado que consiste, justamente, em fazer uso de oráculos. Meditemos...

CAPÍTULO XI – SOBRE ASSOMBRAÇÕES

Finalizando o Livro, Santander apresenta uma pequena coleção de casos de assombrações, sem faltar a célebre casa assombrada de Atenas e referências a personagens do folclore histórico, especialmente da península Ibérica, como: o Frade da Mão Furada e a Velha nos telhados das casas. Crenças que chegaram ao Brasil colônia como atestam pesquisas de estudiosos do assunto.

LINK RELACIONADO: Cipriano, O Santo Feiticeiro

FONTES:

ALARCÃO, Jorge de. Populi, Castella e Gentilitates. Revista de Guimarães. Volume Especial I. Guimarães: 1999. Casa de Sarmento.

Page 12: Bruxa de Evora

ÁLVAREZ, Antonio. Historia de España IN Enciclopedia Intuitiva, Sintetica Y Practica. EDAF, 10ª ed.. España: 1998. Google Books.

BARRETO, Luis Antonio. Flos Sanctorum. IN Infonet. [http://www.infonet.com.br/luisantoniobarreto/ler.asp?id=41760&titulo=Luis_Antonio_Barreto – acessado em 17/09/2010]

BERNAND, Carmen Muñoz. Enfermedad, Daño e Ideologia: Antropología médica de los Renascientes de Pindilig. QUITO-Ecuador: Edicones Abya-Yala, 1999. Google Books.

DICIONÁRIO DE MITOLOGIA GRECO-ROMANA. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

FARELLI, Maria Helena. A bruxa de Évora. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Pallas, 2006.

LA HECHICERA DE EVORA O HISTORIA DE LA SIEMPRE NOVIA: Sacada de um manuscrito de Amador Patricio, datada em Salvaterra – 23 de Abril de 1614. IN Gran Libro de San Cipriano o los tesoros del hechicero. Ediciones AKAL, 1985. Google Books.

LEVI, Eliphas. Dogma e ritual da alta magia. [Trad. Rosabis Camayasar]. São Paulo: Pensamento, 1993.

MANDELBAUM, Benjamin. A Letra Resh. IN [http://www.cjb.org.br/bina/cabala/benjamin/Letras%20e%20Numeros/A%20letra%20Resh.pdf] acessado em 04/11/2010.

MCNALL BURNS, Edward. História da Civilização Ocidental, vol. I. [trad. Lourival Gomes Machado et. al.]. Porto Alegre: Ed. Globo, 1975.

SANTANDER, Amadeo de. O livro da bruxa ou A feiticeira de Évora. Ed. Eco [sem local, sem data].

São Cipriano, o Bruxo. Capa de Aço. Coletânea, p 38. IN Google Books.

Page 13: Bruxa de Evora

SARAMAGO, José. Évora, Património da Humanidade. [http://www.fikeonline.net/2001/pt/evora.php]

SINCLAIR, Douglas R. Descendants of Israel and Golda (Goldstein) Mendelbaum: tree generations in Hesseand New York City, 2007. IN [http://www.dougsinclairsarchives.com/mandelbaum.pdf]

SÍMON, Francisco Marco. Religion and Religious Practices of the Ancient Celts of the Iberian Peninsula. IN E-Keltoi Journal of Interdisciplinary Celtic Studies, vol. 6. The Celts in the Iberian Peninsula. University of Zaragoza, 2005. [http://www4.uwm.edu/celtic/ekeltoi/volumes/vol6/6_6/marco_simon_6_6.pdf].

SKALINSKY JUNIOR, Oriomar. O caminho dos jesuítas da mística à Educação: dos Exercícios Espirituais ao Ratio Santorum. Universidade Estadual de Maringá, 2007. [http://www.ppe.uem.br/dissertacoes/2007%20-%20Oriomar_Skalinski_Junior.pdf Acessado em 17/09/2010]