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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO MESTRADO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO LUIZ EDUARDO FERREIRA DA SILVA CIÊNCIA COMO TÉCNICA OU TÉCNICA COMO CIÊNCIA: nas trilhas da Arquivologia e seu status de cientificidade JOÃO PESSOA 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO MESTRADO EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

LUIZ EDUARDO FERREIRA DA SILVA

CIÊNCIA COMO TÉCNICA OU TÉCNICA COMO CIÊNCIA: nas trilhas da Arquivologia e seu status de cientificidade

JOÃO PESSOA

2013

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LUIZ EDUARDO FERREIRA DA SILVA

CIÊNCIA COMO TÉCNICA OU TÉCNICA COMO CIÊNCIA: nas trilhas da Arquivologia e seu status de cientificidade

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba, na Linha de pesquisa “Memória, Organização, Acesso e Uso da Informação” como requisito para o grau de Mestre em Ciência da Informação. Orientadora: Profª. Dr.ª Dulce Amélia de Brito Neves

JOÃO PESSOA

2013

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S586c Silva, Luiz Eduardo Ferreira da.

Ciência como técnica ou técnica como ciência: nas trilhas da Arquivologia e seu status de cientificidade / Luiz Eduardo Ferreira da Silva.- João Pessoa, 2013.

138f. : il.

Orientadora: Dulce Amélia de Brito Neves

Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCSA

1. Arquivologia. 2. Saber arquivístico. 3. Agir funcional. 4. Ciência da informação.

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LUIZ EDUARDO FERREIRA DA SILVA

CIÊNCIA COMO TÉCNICA OU TÉCNICA COMO CIÊNCIA: nas trilhas da

Arquivologia e se status de cientificidade

Dissertação apresentada ao curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba, na Linha de pesquisa “Memória, Organização, Acesso e Uso da Informação” como requisito para o grau de Mestre em Ciência da Informação.

Aprovada em _____/______/______

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Dulce Amélia de Brito Neves (Orientadora)

Doutora em Ciência da Informação Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

_________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Bernardina Maria Juvenal Freire de O liveira

Doutora em Letras Universidade Federal da Paraíba (UFPB)

_________________________________________________ Prof. Dr. José Washington de Morais Medeiro s

Doutor em Educação Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

____________________________________________ Prof. Drº. Carlos Xavier de Azevedo Netto

Universidade Federal da Paraíba (UFPB) (Suplente Interno)

____________________________________________

Profa. Drª Jacqueline Echeverría Barrancos Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

(Suplente Externo)

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AGRADECIMENTOS

Ao senhor Deus de todas as coisas, o Pai maior que nos guia e nos protege

de todos os perigos da vida, obrigado Deus de bondade, de misericórdia e amor. À Profª. Drª. Dulce Amélia de Brito Neves – minha orientadora – por ter acreditado na minha caminhada dissertativa, pelas conversas e acima de tudo por ter tido a coragem de abrir uma disciplina especial no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba para discutir epistemologia, obrigado pela humildade. Aos meus mestres Prof. Dr. Waldeci Ferreira Chagas e o Prof. Dr. José Washington de Morais Medeiros, dois seres humanos excepcionais, obrigado por ter acreditado nas minhas potencialidades de aluno, de ser humano, tudo que sou hoje enquanto pesquisador agradeço a vocês, onde me espelho, não apenas pelo víeis acadêmico, mas, sobretudo na conduta ética que encaram a construção do saber. Obrigados meus nobres e eternos orientadores. A banca examinadora pelas valiosas contribuições que foram auferidas e logo acatadas no exame de qualificação. A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da UFPB, em especial a Profª. Drª Mirian de Albuquerque Aquino, pelo incentivo, pelas conversas, pelo exemplo de professora, obrigado pelo carinho, aprendi muita coisa com sua ação peculiar de educadora. A Profª. Drª Bernadina Maria Juvenal Freire de Oliveira, obrigado pelo carinho, por suas palavras, obrigado pelas discussões de memória, pela conduta e seriedade que leva suas ações, muito obrigado pela confiança, e por ter acreditado em meu potencial. A minha base, o meu tudo, minha família, os que não estão mais presentes fisicamente nesse mundo, mas que foram e serão sempre lembrados em meu coração e em minhas orações, (in memoriam) Irene Maria Ferreira minha avó amada, ao querido e brilhante avô José Ferreira, aos meus tios Feliciana Ferreira (Chandu), Antônio José Ferreira e Maria Luzinete Ferreira, pessoas que eu não tenho como esquecer, pois me ajudaram a ser homem e cidadão, ensinado a respeitar o semelhante e lutar pelos nossos sonhos, obrigado meus eternos e memoráveis amores. A minha mãe, que dispensa comentários, te agradeço por tudo, por ter me educado e criado, por sempre acreditar em mim, por me amar sem cobrar nada em troca, minha mãe a mulher mais importante que a vida me deu, não tenho palavras para expressar meu amor e minha gratidão, tudo que eu faço hoje é pensando também em seu futuro. Amo-te.

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Ao meu pai, exemplo de conduta humana, de ética e honestidade, características que nesse mundo é difícil de encontrarmos hoje, obrigado por ter acreditado em mim, por ter estendido a mão e por nunca me tratar com indiferença, o obrigado meu Pai, tudo que faço é também pensando em vosso futuro. Aos meus irmãos Lucas Ferreira Santana e Karla Patrícia, que fazem parte da minha história, do meu crescimento e também das minhas conquistas. Obrigado por existirem em mim. A minha amada companheira Suênia Vasconcelos de Souza, minha futura esposa, a pessoa que Deus escolheu para eu cuidar, para eu amar, joia perfeita tenha certeza que farei isso com todas as minhas forças, passamos por muitas coisas juntos, medos, incertezas, provações, mas que Deus sempre mostrou a nossa aliança. Amo-te. Aos meus amigos (irmãos) que sei que posso contar, o laço de irmandade não é apenas sanguíneo, mas sobretudo quando sabemos que encontramos verdadeiros amigos, Fernando José, Antônio Augusto e Joelson Nascimento. Aos funcionários da secretária do PPGCI, Franklin Duarte Kobayash e Helton Bruno Pinheiro Barbosa pela presteza e dedicação que encaram o trabalho, por sempre ter me tratado com respeito e paciência, meu muito obrigado. A todos os meus colegas do mestrado da turma 2012.1, pessoas brilhantes que tive o prazer de conhecer, uns levarei no meu coração com mais intensidade por estarem mais próximos de mim. Agradeço a vocês pelos momentos de crescimento, conversas e acima de tudo na ajuda mútua. Obrigados a todos, com muito carinho.

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Pense no cientista como explorador de labirintos. Ele se meteu pela ala esquerda, terminou num beco sem saída, voltou e colocou na entrada um sinal vermelho. Esse sinal é digno de confiança, final, decisivo. Ele prossegue, encontra a caminhos abertos, volta, coloca um sinal verde. Esse sinal não é digno de confiança. Nada garante que, mas adiante, a ala por ele explorada não termine também num beco sem saída. O sinal vermelho diz: é inútil entrar por este caminho. Tal sinal tem um enorme valor: poupar esforços. A informação de que certos caminhos não levam a lugar algum é informação tão importante como quaisquer outras. Se você encontra, no inicio da rua, uma tabuleta com a informação “beco sem saída”, você não entra por ela. Economizará. Isso também é conhecimento. (ALVES, 1981, p.179).

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RESUMO

Pesquisa que tem por objeto compreender o caráter de cientificidade da Arquivologia sob a luz da Ciência da Informação, de modo que essa problematização tenha um papel fundamental no contexto arquivístico. Desse modo, partimos da seguinte hipótese: Em Arquivologia, a lógica do agir instrumental obstrui o caráter do campo como ciência quando, na verdade, desdobra-se mais como técnica. Nesse sentido, por intermédio do método indiciário e da hermenêutica crítica, buscamos através dos indícios interpretativos, encontrar as pistas para as incertezas epistemológicas em que a Arquivologia está circunscrita, sobretudo, no contexto teórico-metodológico. Logo, através dessa ação indiciária medimos as possibilidades de uma Arquivologia – técnica ou de uma Arquivologia – Ciência. Com efeito, observamos que a Arquivologia não pode fugir da técnica como procedimento, mas, o que nos deixa preocupados é que a “cientificação da técnica” se tornou a própria ideologia da Arquivologia, o sentido primeiro e último sobre o qual a razão de ser constitui-se como base. De todo modo, os resultados indiciários e interpretativos demonstram que se a Arquivologia reduz-se a um conjunto de técnicas, trata-se de um “produto” e não de uma ciência que via de regra, produz verdades e implementa verdades criando produtos. Por conseguinte, concluímos que esse estudo permitiu perceber que uma ação reflexiva no contexto da pesquisa em Arquivologia, poderá fazer com que a Arquivologia se distancie do modelo funcional/pragmático que a marcou no processo de historicização. Palavras-chave: Arquivologia - Ciência. Arquivologia - Técnica. Saber arquivístico. Agir funcional. Ciência da Informação.

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ABSTRACT

The research aims at understanding the scientificity character of Archival

Science in light of Information Science so as this problematization may have an

outstanding role in the archival context. In this way, the following hypothesis

was taken into account: In the Archival Science, the logic of instrumental action

hinders the field character as science when, in fact, it is unfolded as a

technique. In this perspective, by means of the evidential method and the

critical hermeneutics, we searched through interpretative evidence to find

clues for the epistemological uncertainness in which the Archival Science is

circumscribed, especially, in the theoretical and methodological context.

Therefore, through this evidential action, the possibilities of an Archival Science

– technique or of an Archival Science - Science were measured. In effect, it was

observed that the Archival Science can not ignore the technique as procedure,

but one major concern is related to the “scientification of the technique” which

became the Archival Science ideology; the first sense and the last one about

which the reason of being is constituted as basis. Thereby, the evidential and

interpretative results demonstrate that if the Archival Science is reduced to a

set of techniques, it refers to a “product” and not to a science that, usually,

produces truths and implements them by creating products. Consequently, it

can be concluded that this study enabled to perceive that a reflective action in

the context of Archival Science research can make the Archival Science to

distance from the functional/pragmatic model that registered it in the

historicization process.

Keywords: Archival Science - Science. Archival Science – Technique. Archival

knowledge. Functional action. Information science.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 A dual visão do sentido “paradigma” na ciência 60

Figura 2 O esboço científico da divisão da ciência 78

Figura 3 Rationalizierung (racionalização) do agir funcional instrumental na Arquivologia

97

Figura 4 A concepção do ciclo prático-vital na Arquivologia 100

Figura 5 A produção do conhecimento e interesse em Jürgen Habermas 103

Figura 6 A evolução informacional ao longo da história 113

Figura 7 A dinamicidade quadripolar na Arquivologia 117

Figura 8 A relação hermenêutica da pesquisa 123

Figura 9 O “saber-se” instrumental na Arquivologia 126

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

11

2 “SPIE” METODOLÓGICO

22

3 A INTELECÇÃO PARADIGMÁTICA NA ARQUIVOLOGIA: um diálogo entre o clássico e o contemporâneo

33

3.1 O Principio da proveniência

40

3.2 O Princípio da ordem interna ou original e o respeito pelos fundos

45

3.3 A Teoria sistêmica e o rompimento da ordem: a crise paradigmática na Arquivologia

50

4 A CIÊNCIA COMO RAZÃO LEGITIMADORA: da revolução das luzes à crise de paradigmas na modernidade

55

4.1 Racionalidade e século das luzes: liberdade, igualdade e fraternidade

61

4.2 O poder da razão na modernidade: a redenção de ciência

70

5 CONHECIMENTO E INTERESSE: o lugar das Ciências Soci ais Aplicadas

76

5.1 A constituição de um campo científico

79

5.2 Manifestações das ciências sociais aplicadas: O que são? De onde vêm?

83

5.3 A técnica como ideologia do pensar -agir : do pragmatismo ao funcionalismo

87

5.4 Ciências empíricas e ciências histórico -hermenêuticas : critica de Jürgen Habermas

101

6 TÉCNICA OU CIÊNCIA? EM BUSCA DE UMA POSSÍVEL “IDENTIDADE PERDIDA” NA ARQUIVOLOGIA

110

6.1 O esforço da abordagem europeia: a perspectiva sistêmica dos arquivos

113

6.2 Os laços do pensamento funcional sob a formação prag mática

119

6.3 A negação da auto -imagem : os estilhaços da ciência arquivística

121

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

125

REFERÊNCIAS 131

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1 INTRODUÇÃO

Em um contexto sociopolítico, econômico e de profunda transformação, a

ciência contemporânea traz consigo diversas formas de pensarmos a estrutura e a

formação de um corpus científico. Todavia, o campo científico de qualquer disciplina

ou área do conhecimento que busca estabelecer-se como ciência tem que possuir

uma metodologia e uma base teórico-metodológica consolidada1.

Nesse sentido, percorrendo o universo empírico e pragmático, ao qual a

Arquivologia2 foi associada no processo de historicização, procuramos compreender

seu lugar como um campo do conhecimento que está ancorado supostamente em

uma cientificidade. Dessa maneira, é interessante visualizar o status científico que a

Arquivologia almeja, através dos seus princípios e fundamentos mais específicos.

Segundo Rousseau e Couture (1998, p.53) “um corpus científico constitui-se de

diversas maneiras, mas, sobretudo através de manuais3 da especialidade e a

criação de atividades de formação. A publicação de manuais representa uma etapa

na constituição de uma disciplina científica”. Rousseau e Couture (1998) indagam a

respeito desses manuais que seriam o caminho de tornar a Arquivologia um campo

do conhecimento autônomo.

De igual modo, esses manuais existiam desde o século XV e XVI com o

avanço da ciência, no entanto, na Arquivologia esses manuais tiveram sua grande

ênfase no final do século XIX com o manual dos arquivistas holandeses4.

1 Tanodi (1960, p.13-14) afirma que “a configuração de uma ciência depende do

cumprimento de alguns requisitos, quais sejam: a) Ter um campo específico de observação, um objeto; b) Tal objeto deve ser investigado com um fim determinado: procurar o conhecimento pelas causas ou estabelecer leis universais, ou investigar uma verdade; c) Para atingir seu objetivo, toda ciência deve ter um método próprio”.

2 Na pesquisa apresentamos como sinônimos os termos Arquivologia e Arquivística, uma

vez que na literatura para a conceituação “científica” da área os dois termos aparecem de modo semelhante.

3 Para Rousseau e Couture (1998, p. 53) “desde o início do século XIX, surgiram em

diferentes países vários manuais de arquivística. Concebidos por arquivistas, cuja competência é reconhecida ou por associações profissionais, descrevem as práticas nacionais em matéria de concepção e de tratamento dos arquivos”.

4 Muller, Feith, e Fruin produziram seu manual para a associação de Arquivistas

Holandeses em cooperação com o Arquivo Nacional e o Ministério do Interior. Cada uma das cem regras no manual foi formalmente discutida pela sociedade durante os anos de

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Na segunda metade do século XIX, o percurso histórico da Arquivística foi marcado por duas variáveis: as preocupações com o equacionamento dos problemas dos arquivos modernos, com o desenvolvimento de práticas arquivísticas, e, por outro, com as preocupações em torno da necessidade de se construir consenso acerca dos conceitos e métodos utilizados pela Arquivística no mundo. (SILVA, 2012, p. 34).

Dessa maneira, a escolha pela temática se deu em virtude de conhecer as

lacunas teórico-metodológicas da Arquivologia, principalmente quando relacionado à

dicotomia entre ciência e técnica, pois o objetivo desses esclarecimentos é situar a

Arquivologia dentro do pensamento contemporâneo, partindo dos questionamentos

e das ações interpretativas à compreensão das variáveis do saber arquivístico.

Assim, ao interpretarmos um fenômeno é necessário corroborar para um processo

de autofundamentação em um sentido explanatório, interpretativo e autorreflexivo.

De todo modo, partimos para a compreensão da relação da ciência com a técnica no

universo da Arquivologia, principalmente fundamentados em Jürgen Habermas5

através da lógica da argumentação exegética.

Logo, analisamos esse antagonismo de um agir funcional instrumental

(técnica)6 a uma possível teoria epistêmica na literatura da Arquivologia. Segundo

1890. Típico dos trabalhos feitos por comitês, é escrito com muito cuidado e com uma série de exemplos. Mesmo em relação a regras, é perceptível esse aprofundamento. O manual também reflete as ideias de Muller tomadas da teoria Francesa, devido a seus estudos na École des Chartes e do conceito alemão de proveniência, utilizado em uma série de arquivos da Holanda. (COOK, 1997, p. 21).

5 O filósofo da ciência Jürgen Habermas considera que se pode classificar a maneira de

ver as interações entre a ciência e a sociedade em três grupos distintos: 1º as interações tecnocratas, 2º interações decisionistas e pragmático-políticas. Essas três maneiras de ver jamais existem em estado puro: trata-se de modelos conceituais que permitem uma representação do que ocorre. Para o modelo tecnocrático, as decisões cabem aos especialistas. Já o modelo decisionista faz uma distinção entre tomadores de decisão e técnicos. Para o modelo tecnocrático, seriam os conhecimentos científicos (e, portanto, os “especialistas”) que determinariam as políticas a serem seguidas (objetivos e meios). Já o terceiro modelo, o que é privilegiado é a perpetua discussão e negociação entre o técnico e os clientes. (FOUREZ, 1995, p. 208- 209-210).

6 A crítica da racionalidade instrumental ou técnica. Uma tentativa crítica reconceituada

enxerga a racionalidade instrumental/da tecnologia como um dos aspectos mais opressivos da sociedade contemporânea. Essa forma de “hiper-razão” envolve uma obsessão com os meios e não com os fins. Os teóricos críticos alegam que a

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Ribeiro (2002, p. 105), a Arquivologia necessita ser “repensada e (re) construída sob

pena de não vencer o empirismo e o estatuto de disciplina técnica que a tem

caracterizado”. Desse modo, a autora propõe um caráter informacional coadunado

com a vertente paradigmática da informação social que estaria no entremeio do

objeto de estudo da Ciência da Informação.

Nesse sentido, a investigação interpretativa visou debater os conceitos,

finalidades e intelecção dos indícios hermenêuticos em um processo argumentativo

para abrangermos essa dicotomia ciência/técnica na Arquivologia, “na medida em

que a técnica e a ciência pervadem as esferas institucionais da sociedade e

transformam assim as próprias instituições, desmoronam-se as antigas

legitimações”. (HABERMAS, 2009, p. 45). Essas legitimações impregnadas no

anseio da modernidade, marcadas por essa assimetria dicotômica da ciência e

técnica foi contextualizada pela ruptura com a antiga herança da ciência moderna.

Segundo Habermas (1987), a conjectura da racionalidade é fundamental para o

sujeito abandonar o paradigma que existia na ciência moderna na relação sujeito-

objeto, no entanto, surgirá o paradigma do agir comunicativo em um processo

linguisticamente interpretativo.

Com efeito, Habermas (1987) chama atenção para algo importante que levou o

homem a entender sua práxis enquanto ser categorizado por subjetividade, ou seja,

a emancipação dos interesses do “saber prático”; o autor esclarece a

preponderância de se trabalhar em um substrato teórico e epistemológico, o qual ele

chamou de teoria social crítica. Logo, esse teor reflexivo traz para o campo do

conhecimento outro olhar, outra maneira de se fazer, pensar e contextualizar o

exercício epistêmico em detrimento aos padrões tecnocratas que foram

impregnados na Arquivologia no processo de historicização.

racionalidade instrumental/técnica está mais interessada no método e na eficiência do que na finalidade, delimitando suas dúvidas a “de que forma”, e não a “por que deveria”. Em um contexto de pesquisa, os teóricos críticos alegam que muitos estudiosos racionalistas ficam tão obcecados com questões envolvendo a técnica, o procedimento e o método correto que esquecem da finalidade humanista do ato da pesquisa. A racionalidade instrumental/técnica geralmente separa o fato do valor em sua obsessão pelo método “apropriado”, perdendo, no processo, uma compreensão das escolhas de valor sempre envolvidas na produção dos assim chamados fatos. (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 284-285).

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Diante dessas argumentações, o século XIX marcou de forma concisa todo

entremeio do conhecimento da Arquivologia que foi alinhavado e sobreposto a um

modelo de saber que reportava sempre à uma praticidade, uma finalidade

convencional, porque era incrementada pela ação intervencionista do Estado7

institucionalizado, uma vez que a Arquivologia nesse período estava demarcada

com o adjetivo de “auxiliar da História” e que foi impulsionado pela ação positivista:

O positivismo posto em cena por Comte, serve-se dos elementos da tradição tanto empirista quanto racionalista para solidificar, a posteriori, em vez de refletir, a fé da ciência em sua validade exclusiva, clarificando a estrutura das ciências com base nesta fé. (HABERMAS, 1987, p. 27).

Essa postura positivista condicionou em larga escala o avanço científico da

Arquivologia servindo-se dos elementos da ação tradicional (empirismo) e da

validade exclusiva determinada pela neutralidade da lei dos três estágios8.

Habermas (1987) reporta ao positivismo um processo objetivo de formação da

espécie humana, que dogmatizou e mascarou a fé da ciência nela mesma. Desse

modo, a Arquivologia não muito diferente de outros campos do conhecimento sofreu

a influência do positivismo, através de correntes que se afirmaram e se constituíram

como o empirismo9, pragmatismo10 e o funcionalismo11, que “enclausuraram” o

7 Segundo Habermas (2009, p. 68), “desde o último quartel ao século XIX, fazem-se notar

nos países capitalistas avançados duas tendências evolutivas: 1) um incremento da actividade intervencionista do Estado, que deve assegurar a estabilidade do sistema e, 2) uma crescente interdependência de investigação técn ica , que transformou as ciências na primeira força produtiva”.

8 A lei dos três estágios de Comte enuncia uma regra segundo a qual o desenvolvimento

intelectual dos indivíduos, bem como o da espécie, deve consumar-se em seu total. Esta lei do desenvolvimento possui manifestamente uma forma lógica não correspondente ao status das hipóteses nomológicas das ciências experimentais: o saber que Comte reivindica para interpretar o significado do saber positivo não está, ele mesmo, subsumido sob as condições do espírito positivo. (HABERMAS, 1987, p. 92).

9 Medeiros (2008, p. 84) afirma que “o empirismo, por sua vez, foi a orientação filosófica

que reiterou a supremacia da experiência” sensível das coisas e procurou ligar, persistentemente, o saber à experiência vivida”.

10 “O pragmatismo de Peirce de 1871-1878 significa uma concepção de realidade que

perfaz uma crítica de sentido associada a um conceito teórico consensual (e jamais instrumentalista) de verdade” (HABERMAS, 1987, p. 349).

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saber arquivístico a um modelo da funcional de um agir instrumental e que

perpassou todo o século XIX até chegar a nossa contemporaneidade.

A rigor, Habermas (1987) propôs pensar a primazia de uma cientificidade

social crítica (interpretativa) contra a hegemonia positivista que adentrou no universo

de diferentes áreas do saber em variados contextos geográficos. Esse positivismo

impregnou-se de uma forma específica e intencional na produção do saber da

arquivística durante duradouros tempos. Nesse sentido, essas correntes deixaram

escombros no campo do saber arquivístico, ou seja, a não reflexão epistemológica e

a não teorização interpretativa, levando a procedimentos operatórios do saber-fazer

pragmático em seus fundamentos e princípios, ocorrendo uma ação da

racionalidade instrumental que não visa a uma experiência de atividade reflexiva ou

emancipatória, “nesse sentido a experiência da reflexão recorda os momentos

emancipatórios da história da espécie”. (HABERMAS, 1987, p. 40).

De modo semelhante, Habermas (1987) traz a experiência da reflexão, do

conhecimento teórico enquanto tal, em que uma fundamentação se consolida em

termos transcendentais de subjetividades, característica peculiar do sujeito

categorizado (intersubjetivo) e que se baseia em um círculo de experiência

intrínseca ao indivíduo (realidade cotidiana). Destarte, o autor tece sobre o processo

hermenêutico, na medida em que ele propõe olhar para o interesse emancipatório

(autorreflexivo), e que com a modernidade tornou-se um meio de sobreviver sobre

as intempéries das forças produtivas, “o interesse emancipatório visa à consumação

da reflexão enquanto tal”. (HABERMAS, 2009, p. 144).

11 Para voltar da vida orgânica para a vida social, se examinarmos tal comunidade como

uma tribo africana ou australiana, podemos reconhecer a existência de uma estrutura social. Seres humanos individuais, as unidades essenciais nesta instância, estão conectados por um conjunto definido de relações sociais com um todo integrado. A continuidade da estrutura social, tal como aquela de uma estrutura orgânica, não é destruída por mudanças nas unidades. Indivíduos podem deixar a sociedade, por conta da morte ou de um outro modo; outros podem entrar nela. A continuidade da estrutura é mantida pelo processo social, que consiste nas atividades e interações dos seres humanos individuais com os grupos organizados nos quais eles se reúnem. A vida social da comunidade é aqui definida como funcionamento da estrutura social. A função de toda atividade recorrente, tal como a punição por um crime ou uma cerimônia funeral, é a parte que ela desempenha na vida social como um todo, e, por conseguinte, a contribuição que ela faz para a manutenção da continuidade estrutural (RADCLIFFE-BROWN, 1952, apud HABERMAS, 2009, p. 124).

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Por conseguinte, a teoria crítica social emancipatória possibilita um diálogo

mais forte sobre si, tornando-se um processo autocompreensivo e reflexivo que são

constituídos nas expressões, nas experiências e nos círculos exaustivos dos

questionamentos. De todo modo, a Arquivologia deve fundamentar o sentido inverso

da “tecnificação” do agir funcional instrumental12 e, através da reflexão, começar a

desenvolver outros significados sobre si.

Por meio desse estudo buscamos olhar dentro de nós mesmos e enxergar as

lacunas de nossa formação, no entanto, nosso propósito não é “julgar” o saber

arquivístico, pelo contrário, nosso interesse (emancipatório) é compreender e

contribuir de fato para o avanço da Arquivologia, o que será estabelecido através

dos atos exegéticos que estão circunscritos em rupturas epistemológicas, “o ato de

compreender não se planifica na empatia no outro, mas na reconstrução de uma

objetivação intelectual .” (HABERMAS, 1987, p. 161, grifo nosso). Assim, é

preponderante auferir a autofundamentação emancipatória e precisamente mostrar

que a Arquivologia pode ultrapassar a vivência empírica da instrumentalização

técnica em seus fundamentos e princípios, planificando-se no processo de

compreensão autorreflexiva, porque a Arquivologia pode clarificar uma ação

epistemológica a partir da percepção conceitual de suas próprias bases

metodológicas.

Vale ressaltar que, não almejamos refletir nossa própria condição, ou seja,

colocarmo-nos na condição de interlocutor do debate, pois seria muito fácil criticar,

“gritar”, o difícil é consolidar no grito a força de um argumento plausível e, assim,

colocar-se na condição de interlocutor do debate, sobretudo numa área profissional

como a Arquivologia, que permanece em um “ciclo vicioso” de reproduções dos seus

próprios conhecimentos, ou seja, das técnicas.

Sendo assim, é pertinente indagarmos: Como entender o caráter epistemológico

da Arquivologia como ciência sob a luz da Ciência d a Informação? Podemos

então considerar que o sentido da pergunta implica no próprio campo de estudo da 12 Para Habermas (1987, p. 213): A função transcendental da atividade instrumental é

corroborada por processos relativos à articulação de teoria e experiência: a observação sistemática possui a forma de uma demonstração experimental (ou quase experimental), permitindo registrar sucesso de operações mensuráveis.

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Arquivologia, através da provocação e da vigilância epistemológica que poderá

fortalecer suas entrelinhas conceituais, pois tomamos como hipótese que: Em

Arquivologia, a lógica do agir instrumental obstrui o caráter do campo como

ciência quando, na verdade, desdobra-se mais como t écnica na dimensão de

seus princípios e fundamentos mais característicos , ou seja, “a teoria que se

refere à essência imutável das coisas para lá do âmbito mutável dos negócios

humanos, só adquire validade na práxis por marcar a atitude vital dos homens que

dela se ocupam”. (HABERMAS, 2009, p. 98).

Sendo assim, esses sinais e emblemas aguçaram nosso olhar no sentido de

compreendermos o caráter epistemológico da Arquivologia no universo de sua

pretensa cientificidade com a contribuição da Ciência da Informação.

Especificamente objetiva-se:

a) Discutir os “chamados paradigmas” da Arquivologia enquanto ciência;

b) Verificar o processo evolutivo da disciplina com suas características gerais;

c) Averiguar as mediações relativas aos aspectos contingentes do processo pelo

qual se empreende a atividade científica enquanto tal.

Desse modo, na contemporaneidade, não é difícil arriscarmos perceber que

determinadas ciências se constituíram através de técnicas que servem justamente

para “dominação”, nesse sentido, compreendemos que nem toda ciência liberta,

nem toda ciência consegue emancipar o sujeito a qual ela forma. Logo, corremos o

risco em nome da ciência possibilitar muito mais “coerção” do que “liberdade”,

“retrocesso” do que “progresso”, corremos o risco de reiterarmos a “violência” e a

“morte” do que a vida.

Inconscientes do que é e faz a ciência na sociedade, os cientistas são incapazes de controlar os poderes escravizadores ou destrutores gerados pelo saber [...] o conhecimento escapa-lhes e constitui uma potência que se torna estranha e ameaçadora. (MORIN, 1999, p. 23).

Por isso, o papel da interpretação e compreensão do fenômeno é justamente

possibilitar uma dialética crítica auxiliada aprioristicamente em um olhar denso do

que se pretende estudar, ou seja, suas diretrizes e direcionamentos.

Conforme a abordagem hermenêutica , os estudos da informação não deveriam propor-se, porém, à separação entre o discurso

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informativo e os não informativos; trata-se, antes bem, de compreender a inextrincável relação da informação e da desinformação como dimensões do mundo de partilhar com outros a abertura de um mundo. Dês-informação e informação seriam, assim, abreviações das experiências de mentir, iludir, distorcer, errar, ocultar, fazer propaganda, ou – de outro modo – de buscar a comunicação pública, a orientação à verdade, qual a abordagem adequada para tratar problema ou assunto; de escutar o ponto de vista dos outros, de argumentar, de cultivar o pensamento crítico . (GONZALEZ DE GOMEZ, 2011, p. 36-37, grifo nosso)

Dessa forma, a pesquisa buscou cultivar o pensamento crítico, fazendo uma

tessitura construtiva e contributiva que poderá provavelmente remodelar e arranjar a

maneira de se pensar a Arquivologia. Nesse sentido, entendemos que o campo

arquivístico ainda esbarra em configurações conflituosas, principalmente

relacionadas às terminologias, revelando na maioria das vezes em inconsistências

conceituais. Esse antagonismo pode ser identificado na nomenclatura do campo

como Arquivologia13, Arquivística e Arquivonomia. Salientamos ser de fundamental

importância para Arquivologia discutir suas peculiaridades em função do avanço da

área, que nos últimos tempos cresce consideravelmente em todo o país.

Similarmente, não menos complexo, uma ala muito consistente da Arquivologia

ainda tenta associá-la à pós-modernidade, no entanto, a pós-modernidade se

constituiu muito mais naquilo que ela não é, ou naquilo que a modernidade não

conseguiu ser.

O outro momento se caracteriza por uma mudança de paradigma e vai, desde a década de 1980 até os dias atuais, sendo identificado, pelos teóricos da área, de maneiras diferentes. Nesse período, novas mudanças acontecem devido aos intensos debates teórico-práticos promovidos no seio da Arquivística , provocados pelo surgimento das tecnologias de informação e comunicação e da influência das ideias pós-modernas no desenvolvimento das ciências. (SANTANA; MENA MUGICA, 2009 apud CALDERON, 2011, p. 54, grifo nosso).

13 No Brasil, autores como Castro, Castro e Gasparian (1988), Rondinelli (2002), Smit

(2003) e Fonseca (2005) reiteram o uso do termo Arquivologia, provavelmente como reflexo da denominação legal dos cursos universitários da área. Nos países hispânicos, mantêm-se três denominações: Arquivística, Arquivologia e Arquivonomia. No que se refere ao termo Arquivonomia, parece haver consenso que não se aplica “como denominação global” para a área. (CALDERON, 2011, p. 52).

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Essa nuance paradigmática da Arquivologia surge a reboque da transformação

tecnológica que assolou a humanidade no final do século XX e início do século XXI,

porém, é necessário compreender que interligar a Arquivologia ao rol da pós-

modernidade pode ser algo emblemático e perigoso, além de não garantir o status

científico.

Desse modo, não podemos negar que a inserção da Arquivologia nos

programas de pós-graduações em Ciência da Informação14 trouxe para área uma

enorme contribuição, “a associação com a Ciência da Informação parece ser uma

característica da evolução da área arquivística”. (FONSECA, 2005, p.101).

Sendo assim, a Ciência da Informação e a Arquivologia irão estabelecer

relações de natureza aproximativas, não no sentido de “dependência” uma com a

outra, mas, no aspecto informativo e social, “é a informação registrada e,

diferentemente de outro tipo de informação, é mantida como estoques

informacionais em razão de sua utilidade ou missão e que passa a ter uma

existência institucional e, portanto, social”. (SMIT; BARRETO, 2002, p. 21). Logo, a

Ciência da Informação tem essa potencialidade aproximativa, de dialogar com outros

campos do conhecimento, de fomentar dentro desses campos meios que

possibilitem uma reestruturação conceitual e metodológica em seu interior:

A Ciência da Informação é um campo dedicado às questões científicas e à prática profissional voltadas para os problemas da efetiva comunicação do conhecimento e de seus registros entre seres humanos, no contexto social, institucional ou individual do uso e das necessidades de informação. No tratamento destas questões são consideradas de particular interesse as vantagens de modernas tecnologias informacionais. (SARACEVIC, 1996, p. 47).

14

Para González de Gomes (2000): A ciência da Informação surge, no horizonte de transformação das sociedades contemporâneas que passaram a considerar o conhecimento, a comunicação, os sistemas de significado e os usos da linguagem como objetos de pesquisa científica e domínios de intervenção tecnológica. Poderíamos dizer que ao mesmo tempo em que entravam em crises alguns dos pressupostos epistemológicos que legitimavam a imagem da ciência moderna, começava a se formar esse novo campo científico que assumiria uma parte importante do meta-discurso ocidental.

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A Ciência da Informação desempenha uma característica extraordinária nas

questões que envolvem os fluxos e os processos informacionais. Na concepção

teórico-metodológica, a Ciência da Informação oferece e orienta uma análise e um

compromisso que permeia diversas áreas da produção do saber e uma delas é a da

Arquivologia com a vertente informação15. Logo, entre ambas existe um nicho

relacional que é auferido por esse canal informacional.

A Arquivologia trouxe para a Ciência da Informação não apenas um rico acúmulo de técnicas, conceitos e visões sobre os documentos arquivísticos, mas também ideias sobre a organicidade e o ciclo de vida dos documentos, sobre patrimônio e memória, sobre a historicidade dos registros do conhecimento humano para todas as disciplinas científicas pertencentes ao campo das ciências humanas e sociais afinal, a historicidade é uma marca distintiva de todos os fenômenos humanos, portanto, dimensão incontornável de todas as ciências sociais e não apenas da História. (ARAÚJO, 2011, p. 10).

Com efeito, notamos a congruência entre a Ciência da Informação e a

Arquivologia através do viés informacional, assim, a Ciência da Informação atua de

forma umbilical na produção do saber de áreas que trabalham com a organização, o

acesso e o uso da informação. Logo, para uma melhor compreensão das discussões

configuradas nesta pesquisa, a organização estrutural do texto se apresenta da

seguinte forma:

A parte introdutória contextualiza aspectos conceituais, as trilhas teóricas

necessárias para o desenvolvimento do texto e faz uma delimitação dos aspectos de

pesquisa, como problemáticas, objetivo geral e objetivos específicos, justificativa. E

delineia o nicho relacional da Ciência da Informação com a Arquivologia.

15 Acredita-se que o conceito de informação de Buckland (1991), que vem sendo

introduzido na Arquivística, seja relevante para se compreender a relação entre os conceitos documento/informação e a relação entre os conceitos informação/conhecimento. Apesar de esse conceito não se referir à informação orgânica, ele demarca a face tangível e a intangível da informação registrada presentemente nos arquivos. Por outro lado, também demonstra que a Arquivística, mesmo que timidamente, vem abrindo espaço na agenda para dialogar com campo da Ciência da Informação. (SILVA, 2012, p. 156).

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No “spie16” metodológico, discorremos sobre os sinais que fundamentam esse

estudo e nele abordamos a investigação teórica, qualitativa e bibliográfica, por meio

de uma relação entre o método indiciário e a hermenêutica. No nosso entendimento

essa escolha configura como a base adequada para uma investigação minuciosa da

pesquisa, pois analisamos a dicotomia entre ciência e técnica na Arquivologia sob o

prisma epistemológico.

Em “A intelecção paradigmática na Arquivologia: um diálogo entre o clássico e

o contemporâneo”, abordamos epistemologicamente os princípios arquivísticos

dentro de um contexto de relevância, apontando a evolução histórica dos arquivos e

da Arquivologia, de modo a fundamentar o pertencimento dessa pesquisa no campo

da Ciência da Informação e na Linha de Pesquisa “Memória, Organização, Acesso e

Uso da Informação.

“Ciência como razão legitimadora: da revolução das luzes à crise de

paradigmas na modernidade”, discute a contextualização histórica que caracterizou

a evolução do significado do termo “ciência” para diversas áreas do conhecimento, e

principalmente no cenário da Arquivologia.

“Conhecimento e interesse: o lugar das Ciências Sociais Aplicadas, discorre

sobre as consequências da razão instrumental na Arquivologia, sobretudo os efeitos

da técnica como ideologia que influenciaram profundamente a Arquivologia no seu

processo de historicização.

O capitulo 6 trata de compreender os estilhaços da “ciência arquivística” aonde

tecemos algumas considerações sobre a dicotomia ciência e técnica na

Arquivologia.

16 Para Espada (2006, p. 333) “Spie é antes de mais nada a tentativa de propor uma

‘genealogia’ da história, ligando-se a outras formas de saber que partilhavam em ela a mesma atenção pelo indício e pelo conhecimento indireto.”

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2 “SPIE” METODOLÓGICO

Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (FREIRE, 2008, p. 29).

A epígrafe introdutória deste capitulo anuncia a excepcionalidade da pesquisa

e suas constatações mais significativas na produção do conhecimento. Sendo

assim, adentrar no universo metodológico é compreender os caminhos da

construção do saber científico, é pensar em suas múltiplas variáveis, questionando,

problematizando e apontando soluções a determinados “projetos” (pesquisas). Desta

feita, “cada abordagem tem seus pontos fortes e fracos, e cada uma é

particularmente adequada para um determinado contexto”. (BELL, 2008, p. 15).

Nesse sentido, a pesquisa indiciária social/qualitativa tem essa funcionalidade

inclusiva, de esmiuçar as pistas, de imaginar os variados substratos sociais e

culturais, dos quais a estrutura da pesquisa parte das concepções e abordagens

teórico-metodológicas de entender as conjecturas dos fenômenos a serem

estudados. Nesse sentido, “o movimento de investigação qualitativa baseia-se em

uma profunda preocupação com a compreensão do que os outros seres humanos

estão fazendo ou dizendo” (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 205). Para Habermas

(1987), a pesquisa social qualitativa é emancipatória e autorreflexiva em um estofo

transcendental de compreensão:

As discussões metodológicas em sentido mais restrito sobre a construção lógica de teorias e sobre a relação de teorias com a experiência foram ultrapassadas por investigações (epistemológicas) acerca da construção lógico-transcendental do mundo de sujeitos possíveis e acerca das condições da intersubjetividade da compreensão. (HABERMAS, 2009, p. 144).

A rigor, esse fenômeno requer do pesquisador um “sacerdócio” imprescritível,

porque através das facetas estruturantes de seu olhar, ele terá um potencial

investigativo no desenvolvimento de seu estudo, que é produzido nas entrelinhas do

saber científico, “o método científico nos dá a certeza de que toda e qualquer

pergunta, desde que formulada suficientemente exaustiva, deve acabar encontrando

uma solução definitiva” (HABERMAS, 1987, p. 111). Nesse aspecto, o método é

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essencial para entendermos o universo da pesquisa, por meio dele nos

aproximamos da problemática desenvolvida, essa que é proposta na dicotomia

sujeito/objeto, assim, a partir do método adequaremos à realidade a ser investigada

e não aos interesses individuais de quem investiga.

Dentre os perfis teóricos de investigação da pesquisa qualitativa utilizamos o

método indiciário e a abordagem (hermenêutica) como base interpretativa dessa

pesquisa, onde essa ação reflexiva se tornou fundamental para contextualizarmos

os sinais do fenômeno com um olhar compreensivo e crítico. A hermenêutica busca

equacionar o sentido condescendente e elucidativo dos fenômenos através das

interpretações e provocações existentes em determinados contextos, “o que

chamamos de hermenêutica é assim uma forma de experiência e, ao mesmo tempo,

uma forma de análise gramatical”. (HABERMAS, 1987, p.173). Assim, Habermas

(1987) se volta não para as práxis metodológicas do estado positivo, mas para o

método hermenêutico e interpretativo das ciências do espírito, ou seja, das ciências

humanas (Geisteswissenschaften).

A compreensão hermenêutica não pode penetrar sem preconceitos na coisa, mas é incontornavelmente marcada de antemão pelo contexto, no qual o sujeito compreensivo adquiriu de início os seus esquemas interpretativos. (HABERMAS, 2009, p. 299).

De fato, o “ilustrar hermenêutico” vem contribuir para a observação do

fenômeno a ser estudado, uma vez que abarcamos compreender o possível

universo científico da Arquivologia, as genealogias especulativas que sustentam e

afirmam uma “autonomia” científica na literatura arquivística, tornando fundamental

uma averiguação densa dessa realidade, “a autonomia é a única ideia de que somos

senhores, no sentido da tradição filosófica” (HABERMAS, 2009, p.144).

Segundo Habermas (2009), a reflexão sobre aquilo que faz a hermenêutica

precisa clarificar previamente o que precisa ser pensado efetivamente sobre o

processo de constituição, no qual algo espiritual se objetiva, e o quão complementar

é o ato da autofundamentação.

Segundo o ponto de vista metodológico, a compreensão de sentido é problemática, quando o que está em questão é a apropriação de conteúdos significativos legados pela tradição: “o sentido”, que deve

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ser explicitado, tem o status de um fato, de algo empiricamente encontrado de antemão. (HABERMAS, 2009, p. 142).

Com isso, o estudo do método científico traz essa característica intrínseca da

compreensão, do que pode e o que não deve ser investigado. A metodologia tem

esse escopo produtivo e elucidativo de buscar entender as vertentes mensuráveis

que são construídas no campo científico, “o método da pesquisa tem-se revelado, de

fato, como sendo o de maior sucesso” (HABERMAS, 1987, p.135).

Genericamente, a pesquisa qualitativa começa a ser construída a partir da

necessidade de entender a conjuntura da prática do cotidiano, que em inúmeras

vezes é produzida para compreender a significação do “outro”, e isso, se dará

através da crítica interpretativa em um contíguo de práxis, “a hermenêutica equivale

à maneira científica do agir interpretativo do cotidiano” (HABERMAS, 1987, p. 185).

Nesse viés, o questionamento hermenêutico reivindica uma habilidade no sentido

exegético e intencional oriundo das práticas do cotidiano, das relações,

interpretações e vivências da experiência pessoal.

O andamento simultaneamente tortuoso, caprichoso e severo do ensaio pode parecer incompatível com o rigor de um test, mas talvez essa mesma flexibilidade tenha êxito em captar configurações que tendem a escapar às malhas das disciplinas institucionais. (GINZBURG, 2004, p.13).

De modo semelhante, o pesquisador indiciário reconstitui e costura os

estilhaços que são deixados dentro das incertezas investigativas dos fenômenos.

Assim, o indiciário faz uma imersão na elaboração de sinais multifacetados e

pseudoparadigmáticos, tudo isso para entender o fenômeno em questão que é

alinhavado e sobreposto em diferentes narrativas que são concebidas através do

olhar divinatório a partir de uma relação de força daquilo que se pretende analisar.

Desse modo, “autorreflexivo” com relação a seu próprio papel e aos dos outros

pesquisadores em geral no processo de criação do conhecimento e da realidade

(KINCHELOE; BERRY, 2007, p.22).

De igual modo, ao imergirmos na metodologia indiciária, procuramos sob à luz

interpretativa responder às nossas inquietações, pois o pesquisador indiciário

interpreta e vivencia novos procedimentos na prática da pesquisa metodológica,

compreendendo e auferindo múltiplos sentidos na interação da produção do saber:

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O progresso do conhecimento na dimensão das ciências, bem como o da crítica, funda a esperança de que seja possível adquirir, pelo trabalho científico, um saber sobre a realidade do mundo através do qual possamos aumentar nosso poder e em vista do qual possamos organizar nossa vida. (HABERMAS, 1987, p. 297).

Em meio a isso, os emblemas e sinais proporcionaram uma análise crítica das

especificidades que são elaboradas na relação humana do “eu” com os fenômenos

(projetos). O pesquisador com seus indícios incorpora uma multiplicidade consciente

de enxergar as diversas possibilidades das variáveis pesquisadas, ou seja, na

pesquisa buscamos entrelaçar o sentido “caçador17” do pesquisador indiciário, com o

poder de interpretação da hermenêutica crítica:

Os acontecimentos anômalos e imprevistos, as variáveis ou fatores estranhos são sempre bem vindos, já que o objetivo prioritário dessa estratégia não é construir teorias consistentes e organizar sua comparação, mas mergulhar na complexidade do mundo real do caso concreto que queremos estudar, bem como refletir sobre as observações, os registros, as informações e as perspectivas dos envolvidos [...] Tais fatos emergentes são ocasiões "de ouro" para compreender o funcionamento da realidade, já q ue alteram a rotina e põem a descoberto conflitos, interesses, necessidades e comportamentos, habitualmente oculto s e soterrados . (PÉREZ GÓMEZ, 1998, p. 160, grifo nosso).

Essa “evidência” (crítica e interpretativa) é um efeito que sobrevém somente

após o estabelecimento daquilo que apontamos como uma sintonia indiciária

metodológica, em que o pesquisador indiciário se torna um “detetive metodológico”,

que através das várias maneiras de investigar acaba adotando o aspecto “intrínseco

da subjetividade” e da alteridade ontológica e dialógica, pois a consistência do

método indiciário incide em ecoar uma ação de investigação pautada nas pistas, nas

sintonias e indícios entre o observador e o objeto a ser analisado, nesse caso,

captamos os aspectos e as pistas que apontam a existência de uma “ciência

arquivística”.

17 “O caçador teria sido o primeiro a ‘narrar uma história’ porque era o único capaz de ler,

nas pistas mudas, uma série coerente de eventos. ‘Decifrar’ ou ‘ler’ as pistas dos animais são metáforas”. (GINZBURG, 1989, p. 152).

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Quando examinamos minuciosamente o método indiciário, percebemos que

configura uma metodologia significativa e contributiva, porque o indiciário detém uma

flexibilidade extraordinária na construção do seu modo de traçar as pistas no

processo da pesquisa. Nesse sentido, consideramos esse pesquisador,

resguardadas as devidas proporções, como uma “ave de rapina” que voa em

diferentes ambientes e múltiplos contextos, porém, na maioria das vezes, ele

sempre buscará o caminho mais adequado para responder às suas necessidades

mais emblemáticas, ou seja, o pesquisador indiciário é um “revelador metodológico”

que faz um emaranhamento conceitual para contrapor suas inquietações; quer dizer,

ele adentra de fato nas suas convicções, em sua subjetividade, modelando e

explicitando profundamente uma invocação investigativa a partir de dados que foram

negligenciáveis no processo da pesquisa:

Mas, o mesmo paradigma indiciário pode ser usado para elaborar formas de controle num instrumento para dissolver as névoas da ideologia que, cada vez mais, obescurecem uma estrutura social como a do capitalismo maduro. Se as pretensões de conhecimento sistemático mostram-se cada vez mais como veleidades, nem por isso a ideia de totalidade deve ser abandonada. Pelo contrário: a existência de uma profunda conexão que explica os f enômenos superficiais é reforçada no próprio momento em que se afirma que um conhecimento direto de tal conexão não é pos sível. Se a realidade é opaca existem zonas privilegiadas – sin ais, indícios que permitem decifrá-la . (GINZBURG, 1989, p.177, grifo nosso).

Ginzburg (1989) enfatiza a circunstacialidade e imprevisibilidade dessa

metodologia, tornando-se indispensável uma improvisação no ato de pesquisar o

fenômeno, na medida em que os rastros poderão ser encontrados a partir de uma

ação subjetiva, pois o pesquisador indiciário interroga o sentido das coisas, dos

problemas e das evidências mais abstratas. Para Ginzburg (1989), a percepção dos

indícios podem se tornar mais reveladores para se chegar a resultados satisfatórios

em um processo de intuição ou faro:

O objeto no fenômeno não é mais imediatamente constituído por categorias da intuição e do entendimento, mas por meio de uma realização transcendental tangível na própria esfera da sensibilidade: por meio da criação de símbolos sistematicamente ordenados, que emprestam às impressões sensoriais objetividades. (HABERMAS, 2009, p. 17).

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Habermas (2009) entende que o quadro metodológico da pesquisa e do

fenômeno com a função aplicativa dos resultados da pesquisa só poderá ser

explicado, se conseguir tornar conscientes os interesses investidos, que são

diretrizes para o próprio saber e que estão presentes nas abordagens

metodológicas.

De todo modo, o método indiciário se comporta também como complexo, pois

exigirá do pesquisador um olhar condescendente do objeto, logo, desconstruindo as

cosmovisões reducionista e objetivista do universo científico que criticam a utilização

dessa metodologia. Notamos, então, que, “os dados, vistos de outra perspectiva ou

questionados a partir de alguém com formação distinta podem evocar interpretações

diferentes”. (KINCHELOE; BERRY, 2007, p. 21).

Kicheloe e Berry (2007) apontam o desafio da metodologia, visto que o

pesquisador indiciário procurará responder as suas perguntas e até mesmo suas

incertezas, sobretudo para uma melhor compreensão interpretativa do fenômeno.

Sendo assim, esse pesquisador por ter essa característica peculiar e que está

relacionada a uma ação “volátil” traz, para o universo de sua pesquisa, mecanismos

que possibilitarão sua efetivação enquanto projeto.

Às vezes, um dado singular não tem aparentemente uma explicação para sua ocorrência; é idiossincrático, diferente e, muitas vezes, estranho. O trabalho do analista será o de justificar sua ocorrência, buscando compreender os fenômenos que e stão por trás dele . Para isso, é importante que [...] a maneira como determinado dado possa ter aparecido seja objeto de reflexão para o analista. (DUARTE, 1998, p. 62, grifo nosso).

Ainda nesse estudo, lançamos mão além dos indícios, mitos e emblemas, da

abordagem compreensiva, como a hermenêutica crítica para compreendermos os

indícios da possível cientificidade na Arquivologia, sendo preponderante a

compreensão da influência das ciências empírico-analíticas18, ou seja, aquela do

18 As ciências empírico-analíticas exploram a realidade na medida em que esta se

manifesta no raio da atividade instrumental; enunciados nomológicos acerca desse domínio do objeto estão assim presos, de acordo com seu sentido imanente, a um determinado contexto de aplicação; eles apreendem a realidade em vista de uma disponibilidade técnica que, em condições específicas, é sempre e em toda parte possível (HABERMAS, 1987, p. 216-217).

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agir funcional instrumental (técnica), e as histórico-hermenêuticas para averiguar a

complexidade histórica do ato interpretativo, porque a partir dessa análise

construímos um arcabouço mais sólido de concordância ou não com essa afirmação

de uma cientificidade na Arquivologia:

Devemos usar os métodos que melhor possibilitam responder a nossas perguntas sobre um determinado fenômeno [...] Essa subversão aceita o fato de que a experiência humana é marcada por incertezas e que nem sempre a ordem é estabelecida com facilidade. (KINCHELOE; BERRY, 2007, p. 18).

De acordo com essa representação, o método indiciário tem a possibilidade de

fazer uma interpretação daquilo que buscamos, pois ao analisarmos os dados

pretendemos mostrar as perspectivas distintas que são inerentes ao estudo,

sobretudo com as variações da abordagem compreensiva (hermenêutica), “a busca

pela compreensão é um aspecto fundamental da existência humana, pois o encontro

com o não familiar sempre exige a tentativa de fazer sentido, de compreender”

(DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 287).

Nessas conjunturas interpretativas os fenômenos são analisados de maneira

que direcionem uma maior compreensão dos processos, das características e

peculiaridades marcantes da realidade a ser analisada. Com isso, o pesquisador

qualitativo que adentra no universo da hermenêutica e em sua multiplicidade,

constrói uma ponte com o contexto histórico daquilo que é investigado, ou seja, uma

tarefa interpretativa do circulo investigativo. Esse círculo hermenêutico cumpre-se

por objetos teóricos mediante um apelo analítico e exaustivo do problema a ser

analisado, “a hermenêutica concebe a mediação daquilo que o intérprete traz

consigo com aquilo de que ele se apropria como um desenvolvimento contínuo

daquela tradição cuja apropriação está em questão para o intérprete.” (HABERMAS,

2009, p. 237).

Dessa forma, a interpretação das pistas dos vestígios propicia pensar nas

múltiplas variáveis epistemológicas e conceituais que poderão ser observadas, ou

seja, o objeto da investigação. Nesse sentido, Habermas (1987) adentra nesse

universo interpretativo, para compreender principalmente a verticalidade da

intersubjetividade edificada pelo “si próprio”, assim, ele traz a ideia do desenho

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hermenêutico, a qual utilizamos para identificar os traços e sinais da possível

autonomia científica da Arquivologia.

Dentro dessa perspectiva, Habermas (1987) aponta que o interesse

interpretativo está ligado aos seres humanos em todo seu processo cíclico que

ganha forma na subjetividade ancorada na racionalidade, ou seja, a hermenêutica se

refere a uma competência (“Vermögen”) através das experiências em um canal

linguístico comunicável na prática relacional do cotidiano.

Notamos, então, que para esse autor a pesquisa é a forma de reflexão em um

processo de aprendizagem mensurável, “nos processos de aprendizagem, se

adapta às suas condições externas de vida; que se exercita, mediante processos

formativos, no nexo de comunicação de um modo social da vida” (HABERMAS,

2009, p. 143). Desse modo, os sinais do processo investigativo são compreendidos

na ação indiciária que visa a pressupostos em uma realidade teórica que se constitui

na autoconservação:

• Ele isola o processo de aprendizagem do processo vital, é por isso que o exercício operatório fica reduzido aos controles seletivos, próprios àquela atividade que se orienta no sucesso. • Ele garante a precisão e a confiança intersubjetiva, é por isso que a atividade assume a forma abstrata do experimento, mediatizada que está por operações mensuráveis. • Ele sistematiza a progressão do conhecimento; é por isso que se torna possível integrar não poucas hipóteses universais em conjuntos teóricos relativamente simples. Estes possuem a forma de sistemas enunciativos com caráter hipotético-dedutivo. (HABERMAS, 1987, p.140).

Segundo Habermas (1987) o sujeito em pesquisa se constitui na base de uma

intersubjetividade que extrapola o conjunto transcendental da atividade instrumental,

quer dizer, o sujeito da pesquisa deve mostrar um assaz autocompreensivo,

contextualizado, articulado e transposto em uma teoria exegética, porque a partir

dessa ação indiciária, buscamos uma relação de força, entre o sujeito e o objeto a

ser investigado.

Embasados nessa construção da ponte hermenêutica, os pesquisadores críticos em um círculo hermenêutico (um processo de análise no qual os intérpretes buscam as dinâmicas históricas e sociais que influenciam a interpretação textual) engajam-se no vaivém do estudo das partes em relação ao todo e do todo em relação às partes. (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 288).

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Desse modo, os indícios são atos reflexivos onde o sujeito falante perceberá

suas “liberdades ou dependências” e suas conexões com o contexto da relação

autocompreensiva, visto que aprenderemos a “dominar” nossas próprias

pressuposições inconscientes ou elaboradas de investigador, ou seja, uma reflexão

sobre o contexto historicizado e que será assegurada ou interpretada pela

hermenêutica, “mas somente através de uma reflexão sobre o contexto histórico que

desde sempre vincula o sujeito que conhece seu objeto” (HABERMAS, 1987, p. 35).

De igual modo o desenhar hermenêutico vem assumir uma reflexão

interpretativa que será desenvolvida pela ação do cientista, este filtrará o contexto

histórico, que por sua vez, consistirá no ponto de partida do que venha a ser

investigado. Dessa maneira, a hermenêutica proposta por Habermas (1987) se

constitui em um eixo fundamental na universalidade pretensiosa entre o método e

coisa a ser investigada, ou seja, seus sinais mais complexos.

Com outras palavras, Denzin (2006) aborda que a hermenêutica central de

muitos trabalhos qualitativo-críticos envolve as interações entre pesquisa, sujeito(s)

e essas estruturas sócio-históricas que têm a função de situar. Nessa conjuntura

histórica, Habermas (1987) tenta construir uma verdade crítica e que revela os

limiares autocompreensivos que são revelados para a linguagem do mundo vivido e

da vida social. Sendo assim, ele elenca algumas posições criteriosas do fazer

hermenêutico, a saber:

1º A hermenêutica é capaz de descrever as estruturas da reconstituição da comunicação perturbada.

2º A hermenêutica, e nisso seu juízo coincide com o de Gadamer, está necessariamente referida à práxis.

3º A hermenêutica destrói a autossuficiência objetivista das ciências do espírito assim como vêm tradicionalmente apresentadas.

4º A hermenêutica tem importância para as ciências sociais, na medida em que mostra que seu domínio objetivo está preestruturado pela tradição e que elas mesmas, bem como o sujeito que compreende, têm seu lugar histórico determinado. (HABERMAS, 1987, 107-108).

De qualquer modo, a pertinência de compreender a peculiaridade dicotômica

na Arquivologia se encontra atrelada a uma proposta investigativa e indiciária, ou

seja, uma análise emblemática em seus fundamentos, considerando que alguns

princípios são tidos como “a pedra preciosa da possível cientificidade da

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Arquivologia”. De todo o modo, os indiciários percebem a centralidade sócio-

histórica que envolve o fenômeno, na tentativa de elucidar os significados

identificados na realidade problemática do campo de estudo.

Habermas (2009) compreende que a hermenêutica é feita para clarificar uma

possível autorreflexão da ação dos grupos sociais que partem das tradições, assim,

ela não pode mais estar posicionada absolutamente nas tradições culturais

enquanto tal.

Logo, esse “Spie” metodológico teve como provocação: examinar os indícios,

as pistas e as sintonias dessas características que são atribuídas ao universo

da Arquivologia, porque suspeitamos ser problemátic a a existência de fato de

uma “ciência arquivística” . Apreciando esses efeitos, a hermenêutica

(interpretação) e o método indiciário nos ofereceram uma vertente investigativa ao

pensarmos no fenômeno e, assim, assumirmos uma postura em relação ao que se

propõe investigar, “a hermenêutica crítica cita o mundo como parte de um esforço

mais amplo de avaliá-lo e de melhorá-lo” (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 292).

Destarte, essa flexibilidade da hermenêutica permitiu um diálogo com o método

indiciário que emprega múltiplas estratégias de concepção e investigação dos dados

a serem analisados. Sendo assim, a metodologia indiciária exige do pesquisador

uma sensibilidade, mas, ao mesmo tempo, pondera uma postura crítica e exegética

ao esmiuçar o objeto.

A par disso, ao utilizarmos o método indiciário procuramos ter uma estratégia

múltipla de compreensão do fenômeno, ou seja, como exposto anteriormente,

esmiuçar e não negligenciar nenhuma pista. Nesse sentido, a pesquisa indiciária

tem essa peculiaridade interpretativa que permitiu interrogar a transparência da

relação entre ciência e técnica na Arquivologia:

Todas as situações em que a unicidade e o caráter insubstituível dos dados são, aos olhos das pessoas envolvidas, decisivos. Em situações como essas, o rigor flexível do paradigma indiciário mostra-se ineliminável. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição. (GINZBURG, 1989, p. 177).

Com efeito, o método indiciário propõe uma ação detalhada do fenômeno,

trilhando lastros perigosos, suspeitos e arriscados, mas que heuristicamente nos

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permitiu traçar ou encontrar pistas para os possíveis vestígios da pesquisa. Por

conseguinte, o método indiciário associado às bases ou fundamentos da

hermenêutica possibilitou analisar a possível cientificidade da Arquivologia.

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3 A INTELECÇÃO PARADIGMÁTICA NA ARQUIVOLOGIA: um di álogo entre o clássico e o contemporâneo

Desde a mais alta antiguidade, o homem demonstrou a necessidade de conservar sua ‘própria memória’, inicialmente sob a forma oral, depois sob a forma de grafitti (sic) e desenho e, enfim, graças a um sistema codificado. A memória assim registrada e conservada constitui ainda a base de toda atividade humana: a existência de um grupo social seria impossível sem o registro da memória, ou seja, sem os arquivos. A vida mesma não existiria – ao menos sob a forma que a nós conhecemos – sem ADN, ou seja, a memória genética registrada em todos os primeiros arquivos. (LODOLINI, 1993, p. 233).

A Arquivologia em seu advento estava atrelada ao surgimento de algo que se

tornou inovador e essencial para humanidade, a memória registrada, sendo

representada pela própria manifestação do homem através da escrita. A rigor, essa

forma de registrar e de se comunicar ao longo dos tempos proporcionou mudanças

na Arquivologia e nos arquivos, “a origem dos arquivos dá-se, pois, naturalmente,

desde que a escrita começou a estar a serviço da sociedade humana” (SILVA et al.,

2009, p. 45).

Silva et al. (2009), entendem que os povos sempre manifestaram interesse

pela comunicação, através da fala e dos signos ancorados em suportes, reunindo e

organizando as informações. Toda essa necessidade traz consigo um meio prático

de intervenção. Assim, para Silva et al. (2009, p. 45), “a origem de acervos

documentais radica uma motivação de índole pragmática. Daí que a constituição dos

primeiros arquivos tenha obedecido a uma fórmula intuitiva, alheia a qualquer

vertente técnica ou conceptual”. Portanto, entendemos que os arquivos estavam

totalmente voltados para as instituições que produziam os documentos.

Nesse sentido, entender o clássico na Arquivologia é tramitar nas

temporalidades e cronologias da História, procurando e evidenciando as diferentes

maneiras de registrar, organizar e inventariar o arquivo.

O rei Hammourabi mandou inventariar o arquivo do palácio e terá levado consigo a correspondência internacional, para depois a usar como instrumento do seu próprio jogo diplomático. Os arquivos não eram concebidos como meros depósitos ou reservas inertes as placas de argila. Eles constituíam já um complexo sistema de informação. Para além, dos documentos em si, havia uma estrutura organizacional, um critério seletivo de preservação e a

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disponibilização de um serviço, determinado tanto pelo valor informativo das placas, como pela pertinência e rigor da sua integração sistêmica. O papel instrumental dos arquivos e a necessidade do conhecimento da sua estrutura estão bem patentes na atitude de Hammourabi (SILVA, et al., 2009, p.48, grifo nosso).

De igual modo, para Silva et al. (2009), nessa cronologia já existiam modelos

de organização dos documentos e a própria variação documental. Os arquivos na

Antiguidade exerciam funções bem determinadas e pragmáticas.

Em suma estamos perante uma estrutura sistêmica, cujo objeto e cuja práxis assentam já em princípios intuitivamente assumidos. Embora de origem pragmática e precisamente por esse motivo, eles virão a tornar-se de aplicação universal, chegando aos nossos dias configurados em normas de organização e arquivos. (SILVA, et al., 2009, p. 52).

Diante disso, a tradição clássica está embrionariamente ligada às unidades

administrativas, essas estruturas que atualmente parecem fazer parte do cotidiano

da Arquivologia. .Nesse sentido, é essencial visualizar que os documentos na

grande maioria tinham seu advento de produção e conservação para atender às

necessidades da própria administração. As práticas de organização estavam

presentes desde o surgimento das civilizações antigas.

Nos séculos XVII e XVIII, intensificou-se a procura dos arquivos, em função do chamado valor secundário da documentação. O impacto desse movimento vai fazer-se sentir em duas direções, de sentido contrário, no que respeita ao desenvolvimento da realidade arquivística. Por um lado, ele encontra-se em oposição à tendência redutora do conceito estreitamente jurídico e administrativo dos arquivos, pressionando assim a abertura destes a outro tipo de funções. A descoberta da sua múltipla riqueza informativa levará também, nesta época, a um amplo movimento de elaboração de instrumentos de pesquisa. (SILVA, et al., 2009, p. 95).

De modo semelhante, isso nos mostra que a Arquivologia clássica influenciou

os princípios e fundamentos, haja vista que a Arquivologia custodial tem grande

aproximação com a administração, ou seja, com as instituições.

As diversas funções atribuídas aos arquivos, os tipos de documentos produzidos, os suportes que servem para registrar a informação e os locais de conservação constituem outros tantos aspectos que favorecem o conhecimento e mediram o grau de integração na vida administrativa das diferentes épocas. Ao longo dos anos, a

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proliferação das instituições, a massa de informação e de documentos produzidos sob forma de documentos administrativos e o interesse por outros tipos de arquivo para além dos arquivos governamentais (os arquivos privados, os arquivos econômicos, os arquivos de igrejas, os arquivos sociais) trouxeram uma produção acrescida de informações e uma maior utilização da informação. (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 42).

Nessas conjunturas, o método custodial de organização de documentos

centraliza-se na administração, no documento em si, então, não percebia o teor

informacional que aquele documento poderia oferecer, servindo em grande parte

para a pesquisa através da ligação com a História. No entanto, é de se pensar o

corte epistemológico que a Arquivologia custodial provocou com aquela rotulação de

disciplina auxiliar da História.

Desse modo, Silva (2011)19, chama-nos atenção para compreendermos esse

fluido da Arquivologia clássica custodial, e percebemos que ao longo do tempo a

custodialidade teve seu grau de importância para a Arquivologia, procurando romper

com outras disciplinas. Fonseca (2005, p. 55) também argumenta sobre o objeto da

Arquivologia clássica, o qual “era identificado pelo conjunto de documentos

produzidos ou recebidos por uma dada administração; era o arquivo custodiado por

uma instituição arquivística”. Assim a autora vem reforçar os argumentos que aqui

foram discutidos acerca dessa custodialidade.

Já no final do século XX, por meio do avanço tecnológico começou a ser

pensado o que se vinculou nomear de Arquivologia pós-custodial, que propõe uma

nova roupagem nas práticas do saber-fazer da Arquivologia. Segundo Silva (2011),

“o deslocamento de objeto e alteração metodológica configurariam a Arquivologia

pós-custodial e pós-moderna nascida no Canadá na década de noventa, final do

século XX”. Nessa mesma linha de pensamento, essas mudanças emergentes

trouxeram diferentes perspectivas na maneira de pensar sobre Arquivologia a partir

da abordagem “pós-moderna” ou “pós-custodial”.

Conforme afirma Cook (1997, p. 15-16):

O pós-moderno desconfia da idéia de verdade absoluta baseada no racionalismo e no método científico. O contexto por trás do texto, as

19 Palestra proferida pelo professor Armando Malheiro no XV Encontro Nacional de

Estudantes de Arquivologia realizado em 2011 na Universidade Estadual da Paraíba, as citações feitas foram retiradas da exposição do autor através de slides.

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relações de poder que conformam a herança documental lhe dizem tanto ou mais que o próprio assunto que é o conteúdo do texto. Nada é neutro. Nada é imparcial. Tudo é conformado, apresentado, representado, simbolizado, significado, assinado por aquele que fala, fotografa, escreve ou pelo burocrata governamental, com um propósito definido, dirigido a uma determinada audiência. Os pós-modernistas procuram desnaturalizar o que presumimos natural. Os pós-modernistas toma tais fenômenos naturais, seja o patriarcalismo, o capitalismo, a religião ou, poderia eu acrescentar, a ciência arquivística tradicional, e afirma que são “antinaturais” ou “culturais” ou, no mínimo, “construções sociais” de um tempo, lugar, classe, gênero, raça e etc..

Então, essa mudança de paradigma também mudaria o rumo e

intencionalidade da Arquivologia, que na fase custodial seria o documento em si, no

entanto, agora é a informação arquivística. Para Silva et al. (2009, p. 203, grifo

nosso), “os grandes tratados de arquivística incidem, regra geral, em questões de

natureza prática e raramente descem à pesquisa sobre a essência da disciplina e

as causas da sua presença no campo das Ciências da Informação”. Assim, a

Ciência da Informação tem como característica:

A ciência da Informação vem com o propósito de condensar os estudos científicos sobre a informação, assim como contribuir para aprimorar disciplinas como a documentação, a Biblioteconomia, a Arquivologia, a Museologia e a Gestão da Informação em tratos específicos com a informação e os documentos, de acordo com as necessidades científicas, disciplinares, profissionais e cotidianas de cada região, país ou continente. (CARVALHO, 2011, p. 62, grifo nosso).

Silva et al. (2009) são enfáticos ao afirmarem que há uma carência nos moldes

de se pensar o lugar da Arquivologia, e isso decorre, pela natureza

operacionalizadora e prática dos arquivos e pela falta de pesquisa. Segundo Silva et

al. (2009, p. 203, grifo nosso): “isto tem levado alguns autores a duvidar da

possibilidade de se encontrar bases científicas para o saber arquivístico”. É

necessário que apareçam a pesquisa e as próprias problematizações acerca do

universo metodológico da Arquivologia.

A par dos progressos da arquivística descritiva, dentre os quais merece destaque o contributo promovido pelo conselho internacional de arquivo no campo da normalização, temos assistido, nos últimos anos, ao aparecimento de artigos avulsos em revistas especializadas, os quais elegem como tema a formulação de um

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corpo teórico animado por novas bases científicas e que ousam delinear, ainda muito vagamente, os contornos de um saber arquivístico situado numa zona fluída, a que alguns autores chamaram era pós-costudial (SILVA et al., 2009, p. 208).

Podemos, pois, pensar que os avanços da tecnologia afetaram a Arquivologia

em seus princípios paradigmáticos, como a pós-custodialidade. Silva et al. (2009)

debatem esse termo pós-custodial de forma bem acentuada no campo da

Arquivologia. Segundo Silva (2011), “é no âmbito deste paradigma emergente que a

Arquivologia pós-custodial surge e busca afirmar-se, ainda que se nos afigure difusa,

sendo mais um ponto de partida”.

Entendemos que quando o autor traz esse pano de fundo emergente, tenta

explanar de forma indireta os termos referentes às supostas “ciências pós-

modernas” e sua relação com a Arquivologia pós-custodial, principalmente tecendo

críticas às análises de Cook. Silva (2011) novamente torna-se enfático ao afirmar

que “uma nova pauta de reflexões lançada pela Arquivologia pós-custodial não leva,

só por si, ao fortalecimento como campo disciplinar autônomo e independente”.

Para o autor, essa demanda acrescida pelos aparatos analógicos se interessa

não apenas pelo documento em si, porém, esse olhar multidimensional dessa nova

realidade tem que ser discutido. Então, essa discussão é bastante problematizada

na Arquivologia contemporânea, porém, mesmo com essa nova maneira de

abordagem, o sentido autônomo e independente da Arquivologia não é refletido,

ainda continua o mesmo, ou seja, com aquela velha querela do pragmatismo, o que

muda agora é só o local em que a informação está registrada, o seu suporte.

De acordo com Silva (2011) essa nova Arquivologia (pós-custodial) deixava de

analisar as propriedades e características dos documentos individualizados para

analisar as funções, os processos e as transações que geram a criação de

documentos e séries, a par disso, urgia a reformulação de conceitos e de princípios

arquivísticos devido à presença do eletrônico que veio com outras vertentes

conceituais e de suporte.

De certo modo, essa nova nuança debatida de forma coesa por Silva (2011)20

fez-nos pensar os princípios norteadores da Arquivologia, como o princípio de

20 Citações retiradas dos slides de apresentação, realizada pelo Prof. Armando Malheiro da

Silva, no XV Encontro Nacional de Estudantes de Arquivologia, no Ano de 2011.

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proveniência, de respeito aos fundos e o da ordem original ou interna entrelaçando-

se nessa nova dimensão paradigmática.

Principio da Proveniência, ordem original, registro de documento, fundo não traduz mais a realidade estática, mas a realidade dinâmica formada pelos documentos eletrônicos, arranjo, descrição, avaliação e (macro-avaliações das funções), preservação (emulação e transferência de software) e arquivo. (SILVA, 2011).

Nesse sentido, Silva (2011) faz dura crítica aos ideais de Terry Cook, em que

este não teria relacionado à Arquivologia com a Ciência da Informação. Com isso o

autor quer se afastar dessa conjuntura pós-custodial e remete seu pensamento a

uma transdisciplinaridade.

Ser pós-custodial difere da condição de disciplina pós-moderna. Para ser pós-custodial a Arquivologia teria de transitar de paradigma, evoluir do custodial, patrimonialista, historicista e tecnicista, formatado ao longo de quase dois séculos XIX e XX, para um paradigma novo e emergente em que, entre outros aspectos, haveria a mudança ou ampliação do objeto e a busca de um método científico, não meramente técnico ou eivado do senso comum (SILVA, 2011, grifo nosso).

Para compreendermos melhor tudo isso, faz-se necessário analisar os

princípios da Arquivologia, avaliando se de fato a mudança de paradigma, as

implicações das tecnologias, e a suposta ligação com a “pós-modernidade”21,

contribuiriam para a Arquivologia ostentar um método científico e não técnico nos

seus formatos.

Assim sendo, Silva (2011) mostra receio a pós-custodialidade uma vez que, ela

traz consigo o apelo do novo, do diferente e do “pós-moderno”, o autor de forma

clara e objetiva diz que são procedimentos distintos. Segundo Lyotard (1998, p. 15),

“a pós-modernidade designa o estado de cultura após as transformações que

afetaram as regras do jogo da ciência, da literatura e das artes a partir do final do

século XIX”.

21 Entendemos que a pós-modernidade quis uma ruptura drástica com a modernidade,

trazendo consigo mudanças na forma de se pensar a Ciência, no entanto, trouxe mais impasses do que soluções.

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É pertinente ressaltar que relacionar a Arquivologia contemporânea com a

adjetivação de “pós-moderna” acarreta um risco eminente, visto que o campo ainda

absorve muito a custodialidade e, além disso, o próprio termo “pós-moderno” é

colocado de forma genérica ao de pós-custodialidade, “a arquivística funcional ou

pós-moderna, desenvolvida no Canadá na parte inglesa, tem como foco os

processos e os contextos de criação dos documentos, e as relações dos usuários

com os criadores dos documentos” (TOGNOLI, 2010, p. 13).

Silva (2011) confirma o exposto quando questiona a pós-modernidade

canadense e seu ciclo revestidos de valores que sintetizam e habitam o cotidiano da

Arquivologia.

Sendo pós-modernista ela se subjectiviza e fica ao serviço das boas causas , valorizando, por exemplo, no processo de avaliação, as funções sociais do criador dos documentos, programas e atividades, sendo escolhidos os documentos que melhor sintetizam e espalham essas funções. (SILVA, 2011, grifo nosso).

Isso significa para o autor que a pós-custodialidade poderia ser pensada de

forma coesa, se representasse um ganho em termos de cientificidade. Ele nos

indaga ainda como pensar nessa pós-custodialidade, se a Arquivologia ainda se

atrela à forma custodial de manutenção e preservação dos documentos, além disso,

questiona a quem iria interessar esse modelo.

A proposta de transdisciplinaridade de Silva (2011) traria para a arquivística o

perfil da pesquisa, distanciando-se da querela e fragmentação das três idades do

arquivo, tornando-se um profissional da informação.

Colocando-se a ênfase mais na informação que nos aspectos físicos e estáticos dos documentos, e se tivermos em conta que um indivíduo agrega, naturalmente, junto de si diferentes tipos de suporte e de informação, não é ousado admitir que as relações da Arquivologia e a Biblioteconomia, a Documentação, a Information Science e até a Museologia ultrapassam a interdisciplinaridade e inscrevem-se claramente em nível transdisciplinar (SILVA, 2011).

Contudo, trazer essa dicotomia clássico/contemporâneo é de certo modo

procurar entender as características e peculiaridades da Arquivologia, que no Brasil

está muito presa à herança custodial, administrativa. Por fim, é necessário que as

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universidades formem pesquisadores e não apenas “intérpretes de modelos

práticos” já existentes.

3.1 O Princípio da proveniência

Adentrando no universo prático e descritivo, alguns conceitos e princípios

foram criados para tentar extrair a Arquivologia do senso comum. Sendo assim, a

evolução da Arquivologia no que diz respeito aos seus fundamentos mais

específicos, trouxe a ideia basilar de uma teoria, ou seja, de modelos que seriam a

edificação de uma estrutura ou método científico aparecendo como base, “a

metodologia arquivística se fundamenta em princípios básicos, como o da

proveniência e da ordem original, formulados no final do século XIX” (CARMONA,

2004, p. 36).

De igual modo, o princípio da proveniência22 é posto na literatura como uma lei

que rege e fundamenta as intervenções teóricas da Arquivologia, alicerçando as

operações teóricas da arquivística. Essas sistematizações da proveniência e de

seus fundos foram sendo apontadas como pilares epistemológicos no cotidiano das

práticas arquivísticas, “o que chamamos de proveniência [...] deve ser a base de

toda classificação bem entendida” (MARTÍN-POZUELO, 1996 apud FERREIRA,

2012, p. 29).

Segundo Bellotto (2004), o princípio da proveniência constitui a pedra angular

da ciência arquivística, na medida em que essa proveniência define a posição do

22

O princípio da proveniência é a base teórica , a lei que rege todas as intervenções arquivísticas. O respeito deste princípio, na organização e no tratamento dos arquivos qualquer que seja sua origem, idade, natureza ou suporte, garante a constituição e a plena existência da unidade de base arquivística, a saber, o fundo de arquivo. O princípio da proveniência e o seu resultado, o fundo de arquivo, impõem-se à arquivística, uma vez que esta tem por objetivo gerir o conjunto das informações geradas por um organismo ou por uma pessoa no âmbito das atividades ligadas a missão, ao mandato e ao funcionamento do dito organismo ou ao funcionamento e à vida da referida pessoa. Pense-se na criação, avaliação, aquisição, classificação, descrição, comunicação ou na conservação dos arquivos: todas as intervenções do arquivista devem ocorrer sob o signo do princípio da proveniência e, a partida, do reconhecimento do fundo de arquivo como unidade central das operações arquivistas. (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 79, grifo nosso).

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documento no seu fundo. A autora é enfática ao afirmar e relacionar a Arquivologia

como uma ciência, porém, não podemos comungar de tais afirmações, porque a

Arquivologia necessita de metodologias e epistemologias coesas que fortaleçam o

campo. Para que isso aconteça de fato, a Arquivologia teria que sair do rol de

dependência administrativa e pragmatista que ao longo de sua história está atrelada

através de princípios e fundamentos como o da proveniência:

[...] reunir os documentos por fundos, isto é, reunir todos os títulos (todos os documentos) provindos de uma corporação, instituição, família ou indivíduo, e dispor em determinada ordem os diferentes fundos. Documentos que apenas se refiram a uma instituição, corporação ou família não devem ser confundidos com o fundo dessa instituição, dessa corporação ou dessa família. (DUCHEIN, 1982, 1986, p.16).

Na contramão a este entendimento defendemos que essa “pedra angular da

ciência arquivística”, ou seja, o princípio da proveniência, não pode ser

diagnosticado como base teórica, uma vez que como não foi pensado para

beneficiar a Arquivologia e sua essencialidade enquanto campo do conhecimento

científico, mas sim as instituições administrativas com um olhar organizacional, “a

aproximação do enunciado teórico do princípio de proveniência deu-se em torno de

6 de abril de 1819, o que mais tarde viria a ser a nova teoria sobre a organização e

ordem interna dos arquivos”. (MARTÍN-POZUELO, 1996, apud FERREIRA, 2012,

p.22).

Além do mais, seria complicado afirmar que esse princípio seria o precursor de

uma ciência, pois o que vai caracterizar uma ciência é a sua maneira de lidar com os

problemas e de solucioná-los de forma enfática dentro e fora de seu campo de

atuação, então, o princípio da proveniência se apresenta mais como um modelo que

separa “criador e criatura” no interior dos arquivos, que uma base teórica enquanto

tal.

Por proveniência, portanto, se entende toda coleção existente ou que existe [a] para formar um arquivo, e na qual se compreendem os documentos cujos assuntos participem da mesma unidade, ou que podem interessar a um estabelecimento, corporação ou família mais imediatamente. (MARTÍN-POZUELO 1996 apud FERREIRA, 2012, p. 27).

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Para Silva et al. (2009), sem uma terminologia de arquivo perfeitamente

estruturada e sistematizada não é possível caminhar com segurança para uma

arquivística com respaldo científico. Logo, pensar o princípio que ficou na página

anterior como o caminho à cientificidade da Arquivologia é, no mínimo, contraditório

e complexo.

Para Rosseau e Couture (1998, p. 52):

O princípio consiste em deixar agrupados, sem misturar com outros, os arquivos, provenientes de uma administração, de um estabelecimento ou de uma pessoa física ou moral. O conteúdo de uma circular que promulga que daí em diante os documentos que provenham de um corpo, de um estabelecimento, de uma família ou de um indivíduo deverão ser agrupados e não misturados com aqueles que apenas dizem respeito a um corpo de ou uma família.

Esse método logrou o aval em muitos países, visto que o processo organizativo

da documentação administrativa ganharia a utilização desse princípio como critério

de ordem interna, com a premissa de separar e não misturar os documentos. Nesse

caso, o princípio da proveniência atravessou as barreiras de territorialidades,

aplicando-se às instituições e aos diferentes profissionais arquivísticos de países

como a França que começou a utilizá-lo.

Nesse sentido, Fonseca (2005, p. 43) argumenta:

Assim se estabelece o principio da proveniência, que até hoje representa, apesar de algumas releituras, o paradigma da disciplina arquivística. Criam-se daí, princípios de classificação e organização próprios para os acervos arquivísticos, subordinados àquelas características inerentes aos conjuntos arquivísticos, especialmente as que se referem à organicidade e à totalidade.

Presumimos que o princípio da proveniência quando foi criado, teria que ser

aplicado nas instituições que geravam os documentos, assim, esse princípio ficaria

muito preso aos preceitos administrativos. Mais adiante Rousseau e Couture (1998,

p. 82, grifo nosso) esclarecem que:

O princípio da proveniência, que comporta duas vertentes, define-se como; o princípio fundamental segundo o qual os arquivos de uma mesma proveniência não devem ser misturados com os de outra proveniência e devem ser conservados segundo a ordem primitiva , caso exista, ou o princípios segundo o qual cada documento deve ser colocado no fundo donde provém e, nesse fundo, no seu lugar de

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origem. Tanto de um ponto de vista prático, a aplicação do princípio da proveniência garante, por um lado, a ordem estreitamente administrativa que preside à organização dos documentos nas unidades e que estes devem conservar e, por outro, o valor de testemunho que alguns deles têm. Este princípio exprime a própria essência do valor de testemunho de que falara Baldassare Bonifacio no século XVII ou da evidential volue posteriormente explicada por Sir Hilary Jenkinson, T. R. Schellenberg e muitos outros.

Diante do exposto, os autores contextualizam as variações de graus a respeito

do princípio da proveniência, explicando os procedimentos adquiridos com os

fundos, ou seja, as entidades distintas que produzem documentos.

No seu primeiro grau, o da proveniência leva-nos a considerar o fundo de arquivo como uma entidade distinta. Assim, é aplicado ao primeiro grau o princípio da proveniência quando se deixam juntos ou quando se agrupam, se tiverem sidos dispersos, todos os documentos de arquivo como plano do seu valor secundário. No segundo grau, o da proveniência exige que todos os documentos de um fundo de arquivo ocupem um determinado lugar que tem de ser respeitado ou restabelecido, caso, a ordem primitiva dos documentos activos e semiactivos, esta proposta parece perfeitamente natural desde que tenha sido modificada por qualquer razão. (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 83).

Sendo assim, o princípio da proveniência surge como direcionador na prática

organizativa da Arquivologia, essa ideia de separar quem produziu a documentação

nos conduz aos processos técnicos que ainda são adotados, não apenas na

Arquivologia brasileira, porém, de um modo mais amplo.

A aplicação do princípio da proveniência maximiza o processo de gestão dos arquivos. Para cada uma das funções arquivísticas, o princípio da proveniência fornece grandes eixos, um quadro geral de intervenção baseado nas características e nas atividades da pessoa moral ou física a que se refere. Além disso, o princípio da proveniência permite aplicar o princípio de universalidade, tão caro aos arquivísticas e que tem a sua aplicação prática naquilo a que se decidiu chamar a noção do geral ao particular. A aplicação do princípio da proveniência e o seu resultado, o fundo de arquivo, levam igualmente o profissional da arquivística a considerar grandes conjuntos de documentos em vez de documentos à peça. (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 85).

Não podemos desconsiderar a importância do princípio da proveniência na

Arquivologia, porém, esse mesmo princípio não pode assumir-se como fundamento

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científico da Arquivologia, uma vez que, só deu ênfase aos meios instrumentalistas

no processo de organização de documentos nos arquivos:

O princípio de proveniência ou respeito a origem determinará a clara delimitação do fundo, como agrupamento comum e mais geral dos documentos de arquivo de qualquer instituição ou pessoa fora do qual só existirá a artificiosidade das coleções. Determinará a estrutura hierárquica de cada fundo, no qual seguiremos. Seremos obrigados, consequentemente, a manter a unidade e a independência institucional de cada fundo e buscar sua integridade intelectual. (HEREDIA HERRERA, 2003, p.6).

Assim sendo, o princípio da proveniência criado pelo historiador Natalis Wailly23

traria autonomia e independência à Arquivologia como científica? Entendemos ser

problemática essa ideia, pois ocorre exatamente o contrário tornando a Arquivologia

mais atada aos procedimentos administrativos e institucionais do campo como

científico, “[...] hoje, o princípio da proveniência é a base para a arquivística, seja no

âmbito da teoria, seja na prática” (DUCHEIN, 1982, 1986, p. 16).

Nesse sentido, a proveniência é o modo de classificação documental que

ocorre no interior dos arquivos, ou seja, através de uma gestão documental que

consiste na obediência direta aos fundos e as entidades produtoras que geram a

documentação em duas instâncias de primeiro e segundo grau como podemos

notar:

O princípio de proveniência, tanto no primeiro como no segundo grau, pode ser aplicado a priori enquanto os documentos em plena fase ativa responderem ao seu valor primário ou a posteriori, no momento em que os documentos são adquiridos pelo serviço de arquivos devido ao seu valor de testemunho. Neste último caso, o arquivista deve proceder a uma reconstituição porque os documentos foram transferidos em desordem ou porque uma ordem qualquer

23

O método de trabalho elaborado pelo historiador francês Natalis Wailly (1805-1886) e aprovado pelo ministro da tutela T. Duchâtel revelou-se, posteriormente, muito mais do que um simples modo de fazer. Numa circular emitida a 24 de Abril de 1841, Natalis de Wailly, então chefe da divisão administrativa dos arquivos departamentais do Ministério do Interior, propunha: [...] agregar os documentos por fundos, isto é, reunir todos os títulos [documentos] provenientes de um corpo, de um estabelecimento, de uma família ou um individuo, e dispor segundo uma determinada ordem os diferentes fundos. Natalis Wailly acabava de fazer sair a arquivística da anarquia e, mais importante, instalava-a sobre uma base sólida que lhe permitiria, posteriormente, evoluir normalmente para o estatuto de uma disciplina. Aliás, é interessante verificar que os arquivistas do Estado da Prússia adotaram o Provenienzprinzip. (ROUSSEAU; COUTURE, 1998, p. 79-80).

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substituiu a ordem primitiva. Quando é preciso reconstituir um ou mais fundos ou então restituir a ordem interna de um fundo, a aplicação do princípio da proveniência assume plenamente ao seu sentido oneroso, árduo e delicado, visto que se está a praticar uma arquivística de sobrevivência. (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 84).

Com efeito, na literatura arquivística o princípio da proveniência aparece com

uma essência metodológica que põe a arquivística num caráter científico, no

entanto, a natureza proveniente de respeitar os fundos necessita de uma discussão

que extrapole a necessidade organizativa do agir funcional instrumental (técnica),

“[...] o princípio da proveniência é a base para a arquivística , seja no âmbito da

teoria, seja na prática ”. (DUCHEIN, 1982,1986, p. 17, grifo nosso).

Por conseguinte, não negamos a relevância desse princípio para a

Arquivologia, porém, é preponderante a compreensão que esses fundamentos

arquivísticos foram pensados como proposta instrumentalizadora de ação imediata,

ou seja, de “solução do caos” da documentação nos arquivos, em uma emergência

que não beneficia a discussão teórica e epistemológica de fato, mas esbarra em um

saber-fazer que beneficiará as instituições. Por isso, a teorização na Arquivologia

deve ir além desses canais organizacionais que se coadunam com imediatismo, mas

sim, pensar esses princípios e fundamentos de forma mais exegética.

3.2 O Princípio da ordem interna ou original e o pr incípio de respeito pelos fundos

Assim como o princípio da proveniência, o da ordem interna ou original também

é considerado o aparato teórico e epistemológico da Arquivologia. Esse princípio (o

da ordem original ou interna) teve seu advento a partir das contribuições dos

arquivistas holandeses em 189824, quando vislumbraram que era necessário ter uma

organicidade no interior dos fundos. Logo, ocorreu uma enorme repercussão nos

anseios da Arquivologia, visto que a organização dentro do acervo se faz por uma

24 É a vez dos arquivistas holandeses S.Muller, J.A.Feith e R.Fruin, que, em 1898, afirmam:

o sistema de organização dos documentos [leia-se o sistema que serve para a classificação e depois para a ordenação do documentos no interior dos fundos] deve basear-se na organização primitiva do fundo de arquivo que corresponde em linhas gerais à organização da administração donde é proveniente (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 80).

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ordem. Nesse sentido, na literatura da área o princípio da ordem interna ou original

tem um sentido complexo, uma vez que ele aparece ora como desdobramento do

princípio da proveniência em seus dois graus25 estabelecidos pelos canadenses, e

ora como dissociado.

O princípio foi rapidamente adotado por variados países da Europa, consagrando-se o conceito através do termo fundo. O princípio de respeito pelos fundos tem sido considerado como o f undamento essencial da arquivística, em contraposição à ordenação por assuntos defendida no tempo dos iluministas. (SILVA et al, 2009, p. 107).

Silva et al. (2009) destaca que esse termo logrou e avançou juntamente com o

da proveniência e, logo, foram aceitos pela comunidade arquivística após Revolução

Francesa. Segundo Rousseau e Couture (1998, p. 92, grifo nosso): “o fundo de

arquivo que tem sua origem na aplicação do princípio da proveniência é uma pedra

de toque da prática arquivística. ” Com efeito, esses dois princípios aparecem na

literatura da área como sendo aportes teóricos da Arquivologia. Em suma, na

medida em que esses conceitos avançam são sustentados como base teórica da

Arquivologia.

Diante disso, Bellotto (2004, p. 128) traz uma definição de fundo:

[...] conjunto de documentos produzidos e/ou acumulados por determinada entidade pública ou privada, pessoa ou família, no exercício de suas funções e atividades, guardando entre si relações orgânicas, e que são preservados como prova ou testemunho legal e/ou cultural, não devendo ser mesclados a documentos de outro conjunto, gerado por outra instituição, mesmo que este, por quaisquer razões, lhe seja afim.

25 O respeito deste primeiro grau é essencial para que os documentos de arquivo conservem

a sua plena utilidade administrativa, uma vez que os documentos ativos e semiativos de uma unidade formam uma entidade própria que não pode ser misturada com os documentos de uma ou várias outras unidades. Por outro lado, este primeiro grau é também indispensável à plena existência do valor de testemunho do documento de arquivo, visto que o próprio fundo de arquivo, de que depende seu valor, procede diretamente desse respeito. No segundo grau, é aqui que entra em linha de conta o papel essencial dos quadros de classificação para os documentos ativos e cuja aplicação perdura quando os documentos se tornam semiativos ou arquivos definitivos. Nestes casos, o arquivisa que agiu a montante terá apenas de assegurar o respeito dessa ordem, que virá, aliás, a constituir um elemento suplementar em relação ao valor de testemunho. (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 83).

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Desse modo, para produzir um fundo é necessário cumprir algumas etapas e

critérios de definição e produção no entremeio dos arquivos, portanto, deve prezar

por alguns procedimentos a serem adotados na constituição e atribuição de um

fundo:

a) Para produzir um fundo de arquivos, no sentido atribuído ao termo pela Arquivística (isto é, um conjunto indivisível de arquivos), um organismo, seja público ou privado, deve assumir denominação e existência jurídica próprias, resultantes de um ato (lei, decreto, resolução, etc) preciso e datado; b) Deve possuir atribuições específicas e estáveis, legitimadas por um texto dotado de valor legal ou regulamentar; c) Sua posição na hierarquia administrativa deve estar definida com exatidão pelo ato que lhe deu origem; em especial sua subordinação a outro organismo de posição hierárquica mais elevada deve estar claramente estabelecida; d) Deve ter um chefe responsável, em pleno gozo do poder decisório correspondente a seu nível hierárquico. Ou seja, capaz de tratar os assuntos de sua competência sem precisar submetê-los, automaticamente, à decisão de uma autoridade superior. (Isto não significa, evidentemente, que ele deva gozar de poder de decisão em relação a todos os assuntos; certos assuntos importantes podem ser submetidos a decisão do escalão superior da hierarquia administrativa. (Entretanto, para poder produzir um fundo de arquivos que lhe seja próprio, um organismo deve gozar de poder decisório, pelo menos, no que disser respeito a determinados assuntos); e) Sua organização interna deve ser, na medida do possível, conhecida e fixada num organograma. (DUCHEIN, 1982,1986, p, 21).

Observamos que o autor define várias etapas para a criação de um fundo, no

entanto, não contextualizou de forma clara como o princípio de respeito aos fundos

se tornaria base para consolidação de um campo teórico na Arquivologia. Além

disso, é necessário compreender que ocorre um choque epistemológico nessas

questões conceituais.

O fundo, portanto, deve ser visto primeiramente como “uma construção intelectual”. O fundo não é só a entidade física em arquivos, como também é o conceito sumário da descrição de entidades físicas no nível das séries ou menor, e descrição do caráter administrativo, histórico e funcional do criador(es) dos arquivos – bem como a descrição dos processos-criadores dos arquivos (metadados). O fundo é o conceito do “todo” que reflete o processo orgânico na qual o criador de arquivo produz ou acumula séries de arquivo que apresentam uma unidade natural baseada na mesma função, atividade, forma ou uso. É no coração deste processo de relacionamento que liga o criador ao arquivo que a essência da proveniência ou respeito aos fundos pode ser

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encontrada e deve ser protegida. Além disso, neste coração funcional é que o sistema de descrição arquivística deve visar sistemas estruturados e padronizados (COOK, 1993, p. 33, grifo nosso).

É preciso ponderar que a ideia de fundo está mais atrelada à demanda técnica

de organização, do que como um princípio que traria epistemologia e autonomia ao

campo do saber arquivístico. Em suma Rousseau e Couture (1998, p. 95) afirmam:

Finalmente, estamos agora aptos a julgar a necessidade incontestável do princípio da proveniência tanto no plano da organização e do tratamento dos arquivos para fins administrativos como no da sua organização e tratamento para fins patrimoniais ou de investigação. Insistindo no caráter orgânico do fundo de arquivo, esta definição autoriza-nos a não distanciar o tratamento arquivístico dos fundos conforme estes se encontrem ainda na instituição onde foram criados, tenham já passado para um serviço de gestão com fins administrativos (estádio de pré-arquivagem em arquivos intermédios), ou que tenham já entrado definitivamente num depósito encarregue da sua conservação permanente. Enfim, é na prática cotidiana que o princípio da proveniência e o fundo de arquivo que dela decorrem se revelam verdadeiramente, em todo o seu esplendor e complexidade e com toda a importância que têm para a disciplina.

Com uma preocupação intrínseca no que tange aos procedimentos desses dois

princípios como base teórica da Arquivologia, esses ideais deixam lacunas, uma vez

que quando falamos em princípio da proveniência e da ordem original ou interna,

deparamo-nos com conceitos que se coadunam nas suas próprias definições, ou

seja, se atrelam aos procedimentos administrativos “tanto de um ponto de vista

teórico como de um ponto de vista prático, a aplicação do princípio da proveniência

garante, por um lado, a ordem estritamente administrativa” (ROSSEAU; COUTURE,

1998, p.82).

O princípio da ordem original ou interna e o de respeito pelos fundos tinham

uma essência classificatória e geograficamente demarcatória, pois sua utilização

gira em torno de um processo de classificação organizativo. Nesse sentido, no

princípio de manutenção da ordem original os documentos são agrupados quando

provindos da mesma localidade. Sendo assim, o princípio de respeito pelos fundos

tem sua representatividade na bifurcação do sítio arquivístico de uma determinada

localidade cartograficamente concebida. Já o princípio de ordem original traz as

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peculiaridades e ferramentas para que essa bifurcação aconteça no interior de cada

fundo arquivístico:

Podemos [...] entender os princípios de respeito aos fundos e o da ordem original como princípios de divisão ou de classificação naturais, pois são atributos essenciais e permanentes ao conjunto (arquivo) a ser dividido. [...] a origem [do] conjunto de documentos é sua marca indelével, inseparável, é o que lhe dá inteligibilidade e identidade. (SOUSA, 2003, p 251).

Destarte, a premissa desses princípios aplicados à Arquivologia ainda

configura-se como um modelo prático de organização, no entanto, é preciso ter

cuidado ao considerá-los alicerce científico para o campo, porque a sua utilização

estar à mercê das instituições administrativas, sendo fundamentos técnicos de

organização nos arquivos, “em um contexto organizacional, a ação considerada visa

a resolver problemas de ordem aparentemente mais técnica”. (THIOLLENT, 1996, p.

14-15). Com isso, é necessário ir além dessa ação utilização técnica desses

princípios.

No plano do valor classificatório a aplicação desses princípios praticará uma

ação de gestão documental, na qual o arquivista terá que respeitar a procedência

dos documentos, nessa intervenção é que aparece a atividade funcional

administrativa, pelo tratamento de todos os documentos e suas variadas

proveniências.

O outro princípio que fundamenta as ações de classificação de informações arquivísticas é o princípio da ordem original. Para Rousseau e Couture (1998, p.83), essa vinculação é representada, inclusive, na denominação adotada para os princípios: primeiro grau do princípio da proveniência e segundo grau do prin cípio da proveniência. Este último visa o respeito ou a reco nstituição da ordem interna do fundo . (SOUSA, 2003, p. 257, grifo nosso).

Esses princípios foram cruciais em um dado momento, no entanto, não

podemos comungar da ideia de base teórico-científica, pois ainda estão vinculados

diretamente aos padrões operatórios das instituições que os geraram, e não podem

conferir status de independência à Arquivologia como ciência.

A grande figura da teoria arquivista no âmbito dos arquivos permanentes é o fundo. Ele é a marca de diferenciação de aglomerados documentais de outra espécie, dada a especificidade

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de sua natureza. A teoria da natureza do material arquivístico deriva da análise de suas relações com o organismo produtor, com as funções e atividades deste organismo e com os direitos e obrigações que interagiram com ele. (BELLOTTO, 2006, p.162-163).

Bellotto (2006) novamente vem explicar as peculiaridades conceituais de fundo

interligando com os organismos produtores. Aproximando da conjuntura

internacional, a autora configura os fundos como a grande base teórica na

Arquivologia. Segundo Bellotto (2006, p. 170): “a reintegração de fundos faz-se

necessária por se tratar da mais comezinha justiça arquivística”.

Por conseguinte, os profissionais contemporâneos da Arquivologia devem estar

envolvidos nessas discussões, pois é fundamental que o campo consiga se

desprender do saber-fazer técnico que se vincula às instituições geradoras e

produtoras de documentos através desses princípios tidos como pilares

epistemológicos da área, porém, que não se sustentam enquanto tal. O interessante

é analisarmos que na literatura arquivística esses princípios são incorporados e tidos

como o caminho a uma “liberdade” conceitual.

3.3 A Teoria sistêmica e o rompimento da ordem: a crise paradigmática da Arquivologia

A teoria sistêmica exerceu consideráveis influências não apenas para a

Arquivologia, mas, a diferentes áreas do conhecimento. Desse modo, na

Arquivologia não é diferente quando Silva et al. (2009) chama-nos atenção para a

ideia de sistema em arquivo, ou seja, um sistema de informação a partir de partes

interdependentes entre si na estrutura do arquivo. Logo, visualizamos esse fluido

sistêmico através das peculiaridades paradigmáticas da área.

Influenciada pela visão contemporânea, a Ciência da Informação (CI) vai mais além. Ela aplica as noções de sistema desde a integração e conexão oriundas de disciplinas como a Biblioteconomia, a Documentação e a Arquivística – e agora com a Gestão da Informação, ao buscar operacionalizar de forma holística, um conhecimento integral do fenômeno info-comunicacional e sua aplicação dos instrumentos tecnológicos para gestão, com os sistemas de informação eletrônicos. (LIMA et al., 2011, p. 3, grifo nosso).

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Nesse sentido, percebemos que esse fluxo do sistema em arquivos se tornou

importante para a Arquivologia, através das características e dos significados dos

documentos de arquivo. Um exemplo claro de que as considerações feitas por Silva

et al (2009) sobre sistema são pertinentes, é se compreendermos o inter-

relacionamento através do qual um documento de arquivo está interligado a outro

em um processo. Isso demonstra uma realidade sistêmica e peculiar da

Arquivologia, pois as partes estariam entrelaçadas formando uma teia causal, na

medida em que cada componente do próprio sistema estabelecer uma ligação direta

ou indireta.

Observou-se a necessidade de se criar uma Teoria Geral dos Sistemas26 (TGS) devido à acentuada situação sociológica da ciência. Afirmava Boulding (1956) que a crise na ciência ocorreu devido à dificuldade crescente de um diálogo proveitoso entre cientistas como um todo. Na sua concepção, os objetivos da TGS podem estar relacionados à variedade dos níveis de ambição e confidência. Organismos ou sistemas naturais, biológicos e sociais ao propor uma teoria de princípios universais aplicáveis aos sistemas em geral, de natureza física, biológica ou sociológica, criando fundamentos básicos da interdisciplinaridade (BERTALANFFY27, 2008). Já a Teoria Cibernética, do matemático Wienner, não surgiu com a preocupação de reprodução da natureza inanimada, mas sim como uma proposta de construção de sistemas que reproduzissem os mecanismos de funcionamento dos sistemas vivos. (LIMA et al. 2011, p. 4).

Assim, no inter-relacionamento os documentos estabeleceriam uma relação

sistemática no decorrer das transações para as quais tiveram sua própria criação.

Então, o documento fica interligado a partir de sua criação na produção e no

recebimento, estabelecendo, assim, um exemplo direto da forma sistemática por

meio das características dos documentos de arquivo.

26 Para Bertalanffy (2009, p. 53) “é necessário estudar não somente as partes e os

processos isoladamente, mas também resolver os decisivos problemas encontrados na organização e na ordem que os unifica, resultante da interação dinâmica das partes diferentes quando estuda isoladamente e quando tratado no todo”.

27 Biólogo austríaco, autor da Teoria Geral dos Sistemas e unanimemente reconhecido

como um dos teóricos pioneiros dos sistemas em que se podem distinguir duas recentes tendências básicas na “ciência dos sistemas” – que ele chama de “mecanicista” e “organicista” – as quais distingo como duas vertentes teóricas. (VASCONCELLOS, 2002, p. 186).

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A rigor, Carvalho (2011, p. 69, grifo nosso) vem dar uma contribuição para

entendermos a Teoria Sistêmica da informação, a partir da qual a Arquivologia está

inserida através dessas relações estabelecidas.

A iminência da Teoria Sistêmica da Informação a realidade das identidades pós-modernas mostrando as incertezas de um fenômeno dentro de uma estrutura. É sabido que a noção biológica prevê que cada fator tem um papel específico dentro de uma estrutura macro. Porém, muitas vezes não é possível saber quais os elementos que vão surgir, acabar ou renovar. No caso de bibliotecas, arquivos e museus cada um desenvolve seu papel específico diante de uma ação informacional na sociedade, mas isso não quer dizer que estará distribuído, de forma que possa contemplar o acesso a todos ou pelos menos a maioria da sociedade e de suas comunidades de usuários.

A mudança de paradigma na Arquivologia caracteriza-se por diversos formatos

e alguns aqui já foram debatidos. Pensar nessa crise é entender as variações e

modelos da própria Arquivologia, sua evolução e suas mudanças mais

contundentes. Uma dessas transformações que se relacionam com a Teoria

sistêmica é a da “informação”, que abarca um novo contexto na Arquivologia

tentando romper com a custodialidade e se inserir em uma nova realidade, a da

informação.

Então, as noções paradigmáticas na Arquivologia envolvem diversas

problemáticas que estão correlacionadas desde seu nascedouro. Diante disso, se

antes, a centralidade encontrava-se no documento em si, agora a informação terá

um papel importante para entendermos esse paradigma, que muda constantemente,

a ideia de sistema está apresentada da seguinte forma:

Concluíram que toda a estrutura é simultaneamente estruturada (o seu estado deriva dos elementos integrantes) e estruturante (o seu estado condiciona o dos elementos) e ainda as noções de estrutura e de sistema, não sendo coincidentes, correspondem antes a uma concepção analítica e a uma síntese na observação dos elementos inter-relacionados. (SILVA; RIBEIRO, 2002, p. 95).

A teoria sistêmica está presente nas discussões acerca da pós-modernidade

com suas variações e crises. Com isso, essa crise chega à Arquivologia de forma

muito densa através das mudanças ocorridas nos séculos XX e XXI que são os

novos modelos de tecnologia e dinamicidade da informação.

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Os sistemas de informação são sempre pensados a partir da lógica os processos de entrada (entrada de dados, com a aquisição de itens informacionais, a seleção destes itens para a composição de determinado acervo), de processamento (os itens informacionais que dão entrada num sistema de informação precisam ser descritos, catalogados, classificados, indexados) e de saída (pelo acesso aos informacionais por parte dos usuários, na forma de disseminação, entrega da informação, empréstimo), etc. (ARAUJO, 2009, p. 5).

A ideia de sistema no século XXI está em toda parte, principalmente com as

tecnologias de informação, “a moderna teoria dos sistemas, embora aparentemente

tenha surgido de modo original do esforço realizado na última guerra, pode ser

considerada a culminação de um amplo movimento” (BERTALANFFY, 2009, p. 35).

Na Arquivologia Silva et al. (2009) tecem sobre o sistema de arquivo, em que, o

todo se entrelaçaria às partes. Assim, os autores compreendem o arquivo como um

sistema informacional distanciando-se da custodialidade clássica.

Relacionados entre si e de tal forma que ele apresente características próprias, (b) que o estado de cada elemento dependa pelo menos de um outro e acabe condicionado pela estrutura toda, (c) esta, se assumir ou modificar o próprio estado, afecta os seus elementos, assumindo cada um deles um dado estado ou sofrendo uma modificação de estado e (d) todos os elementos são necessários para formar aquela estrutura (SILVA; RIBEIRO, 2002, p. 95).

De igual modo, a teoria sistêmica aparece como uma vertente interdisciplinar,

focalizando na investigação científica, ou seja, na “teoria geral para os sistemas”,

visando a uma unidade da ciência que trabalha em uma “organização cíclica”.

Identificando a interação com o problema central em todos os campos da ciência, o conceito fundamental da investigação científica seria o de “sistema” e essa teoria interdisciplinar seria uma “teoria geral para os sistemas”. O objeto proposto para essa teoria foi a formulação de princípios válidos para os sistemas em geral, independentemente das entidades que o constituam. Portanto, aqui não se falaria mais entidades físicas, químicas, ou outras, passando-se a falar das totalidades que essas entidades constituem, da organização desses sistemas. Assim, a Teoria Geral dos sistemas se propõe como uma ciência da totalidade, ou como uma disciplina lógico-matemática aplicável a todas as ciências que tratam de “todos organizados”. (VASCONCELLOS, 2002, p. 196).

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A teoria sistêmica propõe uma dinamicidade na interação entre as partes e o

todo, ou seja, entre a periferia e o centro, para Bertalanffy (2009) essa teoria

permitiria uma ação científica, ou seja, o seu objetivo era ter uma disciplina que

funcionasse e que fosse aplicável: “O todo é mais que a soma das partes, consiste

simplesmente em que as características constitutivas do todo não são explicáveis a

partir das características das partes isoladas” (BERTALANFFY, 2009, p. 83).

A rigor, a ideia sistêmica na Arquivologia vem a reboque das discussões

acaloradas iniciadas pelos canadenses e que estariam coadunadas à mudança

paradigmática de uma organização custodial (tradicional) interligada com o suporte

papel, a uma pós-custodial interligada com a informação em um suporte analógico.

Nesse sentido, a informação se organizaria em uma simetria sistêmica entre as

partes em uniformidades estruturais, apresentando uma pluralidade de elementos

que acabam modificando e condicionando os elementos da própria modificação de

estado das partes.

A ideia de organização tem uso bastante amplo na Teoria Geral dos Sistemas. Bertalanffy propõe a concepção do “mundo como organização”. Porém, concebe o mundo como uma enorme ordem hierárquica de entidades organizadas, numa superposição de muitos níveis, indo dos sistemas físicos e químicos aos biológicos e sociológicos (sendo a unidade da ciência possibilitada) pelas uniformidades estruturais dos diferentes níveis da realidade. Pode-se assim pensar em sequências, tais como: dos átomos às moléculas, das moléculas as células, das células aos organismos, destes grupos sociais. (VASCONCELLOS, 2002, p. 204).

Por conseguinte, a concepção de interações sistêmicas conduz à

estruturação do sistema com seu ambiente, onde o ambiente sistêmico na

Arquivologia é o informacional em uma rede dinâmica e fluída.

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4 A CIÊNCIA COMO RAZÃO LEGITIMADORA: da revolução das luzes à crise de paradigmas na modernidade

A abundância de nossa própria experiência permite-nos imaginar e compreender, através de um tipo de transposição, uma experiência análoga fora de nós, até nas proposições mais abstratas das ciências do espírito o real, representado no pensamento é vivência e compreensão. (HABERMAS, 1987, p. 160).

A ciência induziu o homem a trilhar novos horizontes, outra forma de pensar e

agir. A ciência apareceu como uma “solução” do caos, da desordem e do

improvável. Para Calderon (2011, p. 58), a palavra ciência vem do latim “scientia” e

significa conhecimento. Já segundo Habermas (1987, p. 106), “a ciência é algo

assim como um marco inicial, o qual não pode ser transposto por uma reflexão sobre

as condições da objetividade da ciência”. Nesse ponto ele crítica o caráter

objetivista da ciência moderna que se baseava em “grandes narrativas lógicas” e

que se subvertia em transfigurações especulativas.

O despertar da ciência e seu progresso contribuíram de alguma forma para

perverter nossos costumes, hábitos e finalidades. Logo, tornando-se evidente, pois a

razão traz o sujeito cognoscente28 para dentro de si mesmo, fazendo uma reflexão

de si, dos outros e dos contornos circunscritos nas relações cotidianas.

Destarte, a ciência traz em sua realidade uma nova forma de se raciocinar o

meio social entre as verdades constituídas daquilo que aparenta ser o que é

enquanto tal. A ciência moderna trouxe o paradigma da racionalidade a partir dos

aparatos da revolução científica instaurada no século XVI e que foram reformuladas

nos séculos posteriores principalmente no século XIX com o positivismo, e na

Arquivologia no período moderno ocorreu uma complexificação do Estado no

aumento considerável de produção documental.

A crise de paradigma da ciência moderna tem sua justificativa através do

componente teórico e das situações condicionais do fator social, ou seja, da

extremidade do homem em buscar uma explicação sobre si. A ciência moderna

28 “O sujeito cognoscente é, ao mesmo tempo, parcela de um processo a partir do qual o

mundo cultural se impõe como realidade própria. Nesta medida o sujeito compreende cientificamente as objetivações de cujo surgimento também participa” (HABERMAS, 1987, p. 163).

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queria fazer surgir uma nova ordem científica, apontada pela epistemologia e

metodologia do próprio conhecimento científico. O que, de acordo com Ingram

(1994), aconteceria à medida em que a sociedade poderia dispensar certas formas

de autoridade educacional e política, especialmente aquelas baseadas na

experiência, na tradição e na retórica, ou seja, fazendo refletir sobre essa ação da

ciência por um constructo filosófico crítico e interpretativo exegético.

A ciência moderna estabeleceu no sujeito uma roupagem que deslocou o

entendimento do antigo pensamento (dogmático) e passou a pensar

aprioristicamente uma nova maneira definidora de saber que não mais estava preso

ao “imprevisto sobrenatural” das incertezas do “eu” cognoscível, “a crítica da

ideologia deve ser complementada por uma crítica que redima o presente à luz das

possibilidades utópicas do passado entre as pessoas e a vida que compartilham”

(INGRAM, 1994, p. 225).

Nesse sentido, Gadamer (2007), através da hermenêutica, compreende que a

ciência despontará com novos vieses, novos objetos definidores para entendermos

as complexidades nas relações cotidianas. Para Gadamer (2007), o que constitui a

essência da ciência, agora, é aquilo que pode ser explicado e construído a partir das

leis racionais compreensivas. Dessa maneira, tornava-se necessário a constituição

de algo que justificasse aquilo que se afirmava, o empirismo parecia perder espaço

para essa nova essência calcada em metodologias bem demarcadas em um a priori

crítico. A rigor, a ciência moderna surge como um objeto específico de investigação

experimentalista e construiu um método pelo qual o sujeito tenha um “controle” do

próprio conhecimento, ou seja, assumindo um novo contexto metódico que gera um

saber tecnicamente utilizável.

A ciência moderna assume, neste contexto, uma função peculiar. Diferentemente das ciências filosóficas de tipo antigo, as modernas ciências experimentais desenvolvem-se desde a era de Galileu, num marco metodológico de referência que reflete o ponto de vista transcendental da possível disposição técnica. As ciências modernas geram por isso um saber que, pela sua forma (não pela sua intenção subjetiva, é um saber tecnicamente utilizáve l, embora as oportunidades de aplicação, em geral, só tenham surgido posteriormente). Até ao fim do século XIX, não existiu uma interdependência de ciências e técnicas . (HABERMAS, 2009, p. 66-67, grifo nosso).

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Do ponto de vista conceitual, cada ciência tem uma intenção nos seus métodos

rigorosos de investigar, de colher, de comprovar a finalidade das suas próprias

regras, caminhos, descaminhos e pressuposições. Nesse sentido, no século das

luzes os iluministas queriam questionar a própria autonomia dessas racionalidades

(sujeitos) e da própria ciência. Através da razão os iluministas contestavam os mitos,

os dogmas e a fé divina, pois era necessário que o homem se emancipasse dessas

“verdades” constituídas e universais para que seu saber pudesse ser fortalecido em

uma teia compreensiva.

O iluminismo perseguiu o objetivo de trazer aos homens doutrinas que apregoassem o desenvolvimento da inteligência cognitiva, da aprendizagem, da produção do conhecimento. Não há dúvida alguma de que, para o movimento, a pretensão era fortalecer o saber racional, reconhecendo como a propulsão da superioridade do homem diante da limitação das imagens explicativas da realidade. (MEDEIROS, 2008, p. 88).

Na cronologia moderna representada por essas inquietações iluministas os

sujeitos teriam maiores respostas para os fenômenos naturais, não mais aquela de

um ser divino e supremo, agora, o homem categorizado pelas racionalidades

legitimadas pela ciência irá pensar as explicações para esses mesmos fenômenos

de forma mais fundamentada. Nesse sentido, o iluminismo29 mantinha sua fé

linearmente na ciência, porém, era imprescritível um controle social no processo da

pesquisa.

Para adentrarmos na crise paradigmática da modernidade é pertinente

entendermos o que seria a própria modernidade. Então, a modernidade poderia ser

contextualizada como uma ação de racionalização; para Habermas (1999), a

modernidade é um projeto racional e expansivo de reconstrução de valores comuns 29 “Concepção filosófica de acordo com a qual o conhecimento se dá em função das luzes

da razão e que só o conhecimento racional crítico e a cientificidade emancipam o homem da superstição e do dogma, promovendo seu progresso em todos os campos. Por extensão, é todo movimento político, literário, cultural que se apoia nesta visão” (SEVERINO, 1994, p. 108). “A razão esclarecedora do iluminismo passa, assim, a ser concebida como o reverso de seus próprios intentos, ou seja, torna-se dialeticamente negativa e radicalmente combatida como um princípio caótico que só serviu para destruir o homem”. (MEDEIROS, 2008, p. 92).

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entre os sujeitos, na medida em que o processo de modernização das sociedades é

controlado pelos interesses do capital e é considerado como perspectiva dirigida e

conturbada, decretando a fase radical da racionalização.

Com a modernidade os indivíduos distanciaram-se das querelas tradicionais do

sagrado, visto que os indivíduos agora vão estruturar-se de forma racional,

universalizante, reflexiva e autocompreensiva.

Nos tempos ditos “modernos”, cujo marco vem desde o Século XVIII30, o ocidente apostou numa acepção de racionalidade, aliada aos interesses científicos e instrumentais, como promessa para a resolução dos grandes problemas da humanidade. O velho mundo grego irradiou para toda a cultura ocidental “faíscas” paradigmáticas, influenciando da filosofia clássica à ciência contemporânea, que impulsionou uma ordem do pensamento instaurada para definir fenômenos naturais e humanos, definido as leis e suas relações. (MEDEIROS, 2008, p. 55).

Todo esse avanço da ciência vai eclodir numa crise com a própria

modernidade. A compreensão de paradigma leva-nos a refletir que as relações

cotidianas começavam a ser pensadas de forma diferente, a quebra das “verdades”

pré-estabelecidas daria espaço a questionamentos, a provocações, a modelos de

coesões capazes de romper com alguns procedimentos que eram tidos como

certezas imutáveis. Diante disso, “considero paradigmas as realizações científicas

universalmente conhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e

soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (KUHN,

2003, p. 13).

Ao utilizar o termo paradigma, Kuhn (2003) vem propor um modelo de

experiência e percepção, ou seja, uma linguagem comum que a disciplina

30 A partir da segunda metade do século XVIII, a historiografia positivista passa a

influenciar, de forma decisiva, o desenvolvimento das práticas arquivísticas, tendo em vista a natureza probatória e testemunhal dos documentos antigos, concebidos como fonte de investigação para a História. Com a aproximação entre arquivistas e historiadores, os arquivos passam a ser considerados como os “laboratórios de história”. A influência da perspectiva historicista, a partir de então, passa a ser tão intensa que os arquivos perdem a primitiva função administrativa e incorporam a função de servir à História (RIBEIRO, 1998). Depois do século XVIII, se reconhece que “não basta conservar, é necessário organizar a documentação para constituir verdadeiramente um arquivo” (CASANOVA, 1928, p. 356).

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desenvolve estruturada em uma consequência social que parte do sujeito na

compreensão das “histórias científicas”.

Ao introduzir o funcionamento e a percepção de um paradigma, o autor aponta

que um paradigma nos conduz a mutações nas estruturas sociais em um processo

de transformação: “Kuhn valorizou as decisões (muitas vezes não intencionais, não

racionais, mas não se devendo ao caso ou sendo irracionais) pelas quais uma

disciplina toma sua forma histórica” (FOUREZ, 1995, p. 118).

Nesse sentido, essa ideia de paradigma proposta por Kuhn (2003) retoma a

questão da necessidade de aprender uma visão de mundo reflexiva, que

proporcionará um sentimento mais amplo, indistinto e cheio de sentidos, então, o

paradigma “é base hermenêutica de uma ciência de um dado período” (KUHN, 2003,

p. 270). Com efeito, esse sentido paradigmático é marcado por essa atividade que

influencia o cotidiano de diversos campos do conhecimento. Diante disso, as

revoluções científicas despertam uma nova modelagem de pensamento

estabelecendo uma relação tácita com a matriz disciplinar:

Envolvem descobertas que não podem ser acomodadas nos limites dos conceitos que estavam em uso antes de elas terem sido feitas. A fim de fazer ou assimilar uma tal descoberta, deve-se alterar o modo como se pensa, e se descreve algum conjunto de fenômenos naturais. (KUHN, 2003, p.25).

Com efeito, notamos essa dualidade no desenvolvimento científico que se

configurou no universo de diferentes campos, como o da Arquivologia que sempre

vem remetida a um modelo paradigmático. Desse modo, a ação paradigmática na

Arquivologia está circunscrita em todo seu contexto, através dos princípios

arquivísticos.

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61

Figura 1 : A dual visão do sentido “paradigma” na ciência

Fonte: Construção do autor com a utilização do software Cmaptools31 e com base em

Vasconcelos (2002).

Dessa maneira, o paradigma determina um âmbito reflexivo e interpretativo

através da racionalidade. Assim, um paradigma estará interligado com uma

mudança significativa na complexidade do problema, “a força da ciência provém de

que os seus paradigmas simplificam suficientemente o “real” a fim de poder estudá-

lo e agir sobre ele” (FOUREZ, 1995, p.122). A noção de paradigma em Kuhn (2003)

torna-se muito peculiar na literatura da Arquivologia: de uma clássica ou tradicional

(vinculada ao documento a uma pós-custodial32 fundada na informação e sua

31 Software utilizado para elaboração de mapas conceituais.

32 A corrente de pensamento pós-custodial apresenta, então, contributos singulares porque nos leva a fazer uma reflexão teórico-epistemológica do objeto da Arquivística, ou seja, a informação enquanto fenômeno e processo social. Nesta concepção, o conceito

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“virtualidade”). Porém, é necessário entender que os paradigmas remetidos a

Arquivologia necessitam de um teor exegético e crítico em sua construção enquanto

tal. Pois, essa noção paradigmática e ao mesmo tempo dicotômica, impregnou-se no

entremeio literário da Arquivologia no Brasil.

Um paradigma estabelece uma ruptura com os projetos da vida cotidiana, e permite eliminar uma série de questões que não serão mais consideradas como pertinentes. Poder-se-á, por exemplo, eliminar do estudo das cidades todas as aldeias. É essa “ruptura epistemológica ” que delimitará o objeto e conferirá, também, sua “objetividade” a uma disciplina científica (FOUREZ, 1995, p. 107-108, grifo nosso).

Com a noção de paradigma, Kuhn (2003) auferiu que os conteúdos científicos

são estruturados em torno de preceitos que estão presentes no cotidiano, nas

relações, ou seja, nas interações sociais. Por conseguinte, a matriz disciplinar na

Arquivologia deve ter um embasamento mais fundamentado teoricamente, para uma

constituição científica do campo, ou seja, deverá encontrar uma definição da sua

imagem enquanto “ciência”, intensificando a reflexão que levará ao questionamento

e as rupturas epistemológicas dentro da área.

4.1 Racionalidade e século das luzes: liberdade, igualdade e fraternidade

A racionalidade foi o caminho encontrado pelos iluministas para vencer as

trevas, superar os limites mais profundos da humanidade, sobretudo nas inferências

acerca da existência dos sujeitos em seu mundo comum e categorizado pelo “si

próprio”, ou seja, pela intersubjetividade:

A história iluminista é dominada pelos conceitos de sistema e de totalidade. Ela é a realização de um sujeito universal, de um sujeito coletivo, que sabe de si e quer saber cada vez mais de si. O sujeito consciente é movido por um desejo de totalização de si, de autoconsciência. Em busca de uma consciência total de si, ele

de documento, enquanto elemento estático passa a ser visto pela dinâmica da informação, inerente a qualquer registro e em qualquer suporte. É nesse sentido que poderá contribuir na reformulação do objeto de estudo e de trabalho da Arquivística (SILVA, 2012, p. 45, grifo nosso).

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realiza ações totais, visando obtê-la aceleradamente (REIS, 2006, p. 69).

Destacamos, pois, que a razão instaurou uma nova ordem de pensar o mundo,

visto que a universalidade, a individualidade e a autonomia acabaram difundindo-se

em diversos lugares da Europa33. A partir daí começa-se a pensar em críticas ao

próprio Estado Absolutista. Segundo Habermas (1987, p. 232), “aquilo que

chamamos de razão se aprende no momento em que ela enquanto tal, se executa

como autorreflexão”. Essa reflexão estará interligada nos anseios dos intersujeitos.

Desse modo, o iluminismo vincula-se à lógica da razão a serviço da crítica do

presente, de suas estruturas e realizações históricas. Assim, as características

iluministas emancipariam os homens das especulações marcadas pelas

improvisações dos dogmas da Idade Média e reportaria ao homem um sentido

“progressivo” sobre si mesmo.

A racionalidade provocou uma grande transformação nas relações cotidianas,

os homens aflorados por essa razão crítica queriam se desvincular daquilo que os

prendiam como os dogmas e a fé. Então, nas luzes esses homens travaram uma

luta racional por liberdade provocando uma ida vertiginosa ao futuro, ou seja, contra

o passado subordinado a uma teologia da fé utópica, “o projeto iluminista legitima

toda a violência contra o passado-presente, encarado como entrave, obstáculo à

liberdade, e propõe uma ida vertiginosa ao futuro” (REIS, 2006, p. 69).

Com base no exposto, Reis (2006) faz refletir que o instrumento da liberdade

humana se separa de um passado-presente e aufere uma visão futurista que se

distancie do passado dogmático, no entanto, é necessário recuperar o impulso

crítico que acenou ao homem possibilidades de construir racionalmente seu próprio

destino, seu percurso enquanto tal, “a autorreflexão é percepção sensível e

emancipação, compreensão imperativa e libertação da dependência dogmática

numa mesma experiência” (HABERMAS, 1987, p. 228).

33

Para Bellotto (2002, p. 14) “com a criação e evolução dos estados modernos na Europa, na idade moderna (1453 a 1889), surge a centralização do poder e passam a existir grandes arquivos reais (os chamados “tesouros do rei” e também os arquivos notorais organizados”.

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64

Sendo assim, toda essa ânsia de liberdade configurou-se no seio da

Arquivologia, pois antes da Revolução Francesa de 178934 os arquivos de um modo

geral, não eram permeados por uma centralização organizativa, ou seja, cada setor

ministerial tinha sua própria forma de organização dos documentos. Com efeito, já

difundido o processo revolucionário, a Arquivologia não seria mais como era antes,

pois nessa mesma Revolução foi edificada uma “comissão de arquivo”, leis foram

criadas para separar a documentação da Idade Média feudalista da administrativa.

Segundo Silva et al. (2009, p. 96), “o iluminismo deu veste cultural à

Arquivística, mas foi também germe de consideráveis desvios”. Os autores tecem a

respeito das influências que a Arquivologia sofreu com o iluminismo, visto que essa

roupagem trazia consigo o “vício” do positivismo na realidade da própria linguagem

documental, e nos seus valores intrínsecos.

Na transição do século XIX para o século XX e durante os primeiros anos deste século, assiste-se a uma consolidação definitiva das ideias da Revolução Francesa, quanto ao modelo arquivístico. É a afirmação inequívoca da perspectiva historicista e positivista, que se desenvolveu na Europa ao longo de Oitocentos. Tal modelo assenta na proliferação e desenvolvimento de arquivos com uma finalidade, que poderemos considerar exógena, relativamente aos fins específicos que determinam a própria formação dos arquivos. (SILVA et al., 2009, p.115).

34

A partir da Revolução Francesa ocorrem muitas mudanças na Europa, especialmente no âmbito dos arquivos, e essas se expandem aos outros continentes. É nesse contexto que a realidade dos arquivos é alterada nos seguintes termos: estruturam-se os arquivos em um sistema nacional; o conceito de arquivos de Estado é alterado para arquivos nacionais; e, ainda, os documentos de instituições extintas passam a incorporar os arquivos históricos e ficam à disposição para consulta (CRUZ MUNDET, 2003). Surgem os primeiros passos para uma divisão dos arquivos em históricos e administrativos e isso marcará de forma bastante significativa a profissão do arquivista, o qual passa a se dedicar com afinco aos arquivos históricos, deixando a gestão administrativa à margem da sua atividade profissional. (CALDERON, 2011, p.33).

Nesse mesmo sentido, Bellotto (2002, p. 14) endossa apontando que: “a Revolução

Francesa, é uma baliza na história dos arquivos. Isto porque ocorre uma certa abertura dos arquivos públicos aos cidadãos e se procede a à reunião da documentação oficial dispersa, em Paris, criando-se um arquivo nacional. “O uso, no entanto, prosseguia sendo o jurídico-administrativo, isto é, os documentos servindo somente como instrumentos de informação administrativa e domo artesanal de testemunho das relações Estado-Nação”.

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65

Dessa maneira, para Reis (2000, p. 190), “Habermas insiste nos conceitos

iluministas de sujeito e consciência, que seriam fundados numa linguagem estável,

que possibilita o diálogo e a ação legitima pelo discurso”. De todo modo, essa

vertente de pensamento em longo prazo faz os iluministas terem confiança e

esperança na razão.

Ainda conforme Reis (2000, p. 166), “os iluministas acreditam ter decifrado o

segredo da história e recomendam a produção vertiginosa de eventos que o

concretizem”. Essa concretização só aconteceria de fato quando o homem se

enxergasse como partícipe do processo histórico, ou seja, “razões porque devemos

entender as ações do iluminismo como a tentativa de testar, em circunstâncias

dadas os limites de exequibilidade do conteúdo utópico, próprio ao patrimônio

cultural” (HABERMAS, 1987, p. 297). O iluminismo trouxe outra veste para o

contexto histórico, ou seja, a categorização da racionalidade.

A Europa ocidental não é mais o que era antes (presa a uma herança

dogmática), começa a decifrar novas formas de se pensar a história dos sujeitos, ou

seja, o interesse emancipatório.

O conceito de “modernidade”, portanto, assim como o próprio processo que ele designa revelam uma tensão: no inicio, nos séculos XIII-XVI, representara a ruptura com o passado de universalismo cristão e abrira um presente secularizado, com suas conseqüências – racionalização da ação e fragmentação da vida interna do homem ocidental (REIS 2006, p. 28).

A ideia de uma vida abundante e caracterizada pelo progresso vem de algum

modo exprimir essa nova situação do homem, suas realizações futuras e suas

profecias mais absurdas. As luzes vão romper com a religião, afetando a maneira do

saber, de entendimento e consciência. Para Reis (2006, p. 32), “as luzes se

separam da religião por cisão, colocando-se ao lado dela. Houve uma cisão da fé e

do saber que as luzes são incapazes de superar seus próprios meios”.

Observamos, pois, que a vertente da religiosidade ainda se fazia presente

nessas discussões e na relação com a ciência moderna. De todo modo, era

fundamental substituir as validades explicativas das legitimações impregnadas pela

fé, ou seja, a esfera do conhecimento por longos períodos históricos:

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66

A substituição representativa do sagrado, sobre o qual se validam as explicações das coisas, pelas legitimações comprovadas da ciência, filiadas à racionalidade, fez do século XVIII um período impregnado de fé na unidade e imutabilidade da razão. É assim que a racionalização passa a ser esfera imprescindível da modernidade, visto que a função unificadora do pensamento iluminista passou a ser função fundamental da razão. (MEDEIROS, 2008, p. 90).

Medeiros (2008) compreende que essas variações iluministas de pensar a

história da humanidade têm uma ideologia que anseia incondicionalmente pela

busca do que venha posteriormente acontecer, porque é fundamental a ida ao futuro

para compreender seu significado. Os iluministas acreditavam crer numa razão que

assegurasse um mundo com seus parâmetros, ou seja, era preponderante que a

humanidade tivesse um significado provindo das próprias vivências e estrutura

enquanto intervetor e construtor de pensamentos e aspirações peculiares.

Então, os meios reais estão sempre em mudança, em transformação. As

construções singulares em busca da “liberdade” se acentuam, e tudo passa a ser

manobrado e pensado a serviço do próprio homem. Para Reis (2000, p. 167), “a

grande narrativa iluminista garante a legitimidade da intervenção radical da

realidade”.

Nessa realidade que se aflorou com a Revolução Francesa as tendências de

mudança se tornaram necessárias para que o homem não ficasse estagnado em si

mesmo, em uma luta obscura, descontínua e sem rumo. Com efeito, os iluministas

fortaleceram o saber racional, queriam a todo custo vencer as trevas, ou seja,

aquela antiga propulsão dogmática da “verdade suprema e inviolável”.

Medeiros (2008) esclarece que o iluminismo desenvolveu uma relação

profunda com o sujeito cognoscente. De todo modo, para Reis (2006, p. 41, grifo

nosso): “as luzes geraram dois tipos de conhecimento histórico: a história como

consciência crítica de uma época, reformista e disc ursiva, e a história como

consciência crítico-prático, uma arma de combate”.

Diante dessas características iluministas, observamos diferentes olhares e

intenções sobre os procedimentos unidimensionais atestados pela ciência, o

interesse prático da lógica instrumental era validado pela vitalidade do empirismo:

Ao passo que o saber é valorizado, há também uma supervalorização da técnica como fim último, que aumenta os

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investimentos para obrigar o conhecimento empírico a se renovar. A racionalidade técnica se torna a racionalidade da dominação. Saber e conhecimento, com isso, são sinônimos de poder; de um poder universal e onipresente como é a razão instrumental . (MEDEIROS, 2008, p. 93, grifo nosso).

Concordamos com Medeiros (2008) que essa racionalidade técnica se

transformaria em uma dominação35, essa “ação de dominação” na Arquivologia

acabou se generalizando. Então, parece-nos que com a utilização da racionalidade

os homens chegariam e atingiriam diversos lugares e progresso, e isso se confirma

em 1789 com a revolução, “o fim do século XVIII, como vimos, foi uma época de

crise para os velhos regimes da Europa e seus sistemas econômicos, e suas últimas

décadas foram cheias de agitações e de movimentos coloniais em busca de

autonomia” (HOBSBAWM, 2010, p. 98).

A Revolução Francesa de 1789 assinalou profundamente a história da

humanidade, nesse período os cidadãos estavam esgotados com o autoritarismo

monárquico, representado pelo absolutismo do rei. Nessa ocasião, a população não

aguentava mais ser massacrada pela cobrança de impostos abusivos, visto que a

bonança era sempre remetida à nobreza e ao alto clero.

Como vimos, esse evento revolucionário teve repercussão no universo da

Arquivologia através dos arquivos e da ligação direta com as instituições e

principalmente depois da Revolução, pois o acesso aos arquivos era considerado

um direito civil conquistado, além disso, surgiu a Fundação do Archives Nationales:

Em decorrência desse fato, ocorre a anexação da massa documental dos arquivos privados aos depósitos do Estado (RIBEIRO, 1998, p. 28), juntamente com as apropriações desordenadas dos bens materiais, livros e documentos em um só depósito. Com a promulgação do Decreto de 18 de Brumário (1789), criam-se os Archives Nationales na França com a finalidade de conservar e manter os documentos oficiais nos quais se passava a assentar o novo regime do Estado-Nação (SILVA, 2012, p. 29).

35 Para Habermas (2009, p. 47), “a racionalidade da dominação mede-se pela manutenção

de um sistema que pode permite-se converter em fundamento da sua legitimação o incremento das forças produtivas associado ao progresso técnico-científico, embora, por outro lado, o estado das forças produtivas represente precisamente também o potencial, pelo qual medidas, as renúncias e as incomodidades impostas aos indivíduos estas surgem cada vez mais como desnecessárias e irracionais”.

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Com isso, a população não estava mais interessada em aceitar ou obedecer às

ordens e regras dessa nobreza, e essa insatisfação só fez aumentar, quando houve

um grave aumento fiscal, “a Revolução Francesa pode não ter sido um fenômeno

isolado, mas foi muito mais fundamental do que os outros fenômenos

contemporâneos e suas consequências foram, portanto, mais profundas”

(HOBSBAWM, 2010, p. 99). Nessa temporalidade foram criados os arquivos

nacionais36, um legado que visa a uma ideia identitária de “nação”. Logo, esses atos

de liberdade eclodiram na Arquivística.

Durante o século XIX a Arquivologia sofreu a ação do modelo paradigmático

histórico-tecnicista que era auferido pelo saber-fazer da racionalização do agir

funcional instrumental (técnica), “os arquivos da Revolução Francesa agrupam, em

primeiro lugar, os documentos das instâncias governamentais” (ROSSEAU;

COUTURE, 1998, p. 37). Devido a isto, os documentos no período da Revolução

Francesa eram considerados básicos para a manutenção de sociedades antigas, ou

seja, preservar para ações futuras.

Nesse sentido, Schellenberg (2007, p. 27) aponta:

Durante toda a Revolução Francesa, os documentos foram considerados básicos para a manutenção de uma antiga sociedade e para o estabelecimento de uma nova. Os documentos da sociedade antiga foram preservados principalmente e, talvez, sem essa intenção, para usos culturais. Os da nova sociedade foram preservados para a proteção de direitos públicos. O reconhecimento da importância dos documentos para a sociedade foi uma das grandes conquistas da revolução.

Desse modo, foram surgindo arquivos que configuravam uma praticidade

organizativa da documentação administrativa, os documentos tinham uma

vinculação institucional muito acentuada e que era concebida nas realidades dos

arquivos:

36 Durante o século XIX, foram nascendo os arquivos nacionais, nos distintos países

(inclusive o nacional brasileiro, em 1828, então imperial, todos destinados a recolher e organizar a documentação inativa inexistente nas diversas dependências governamentais) (BELLOTTO, 2002, p. 15).

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● Criação de ‘arquivos históricos’ concebidos para conservar, gerir e possibilitar o acesso à documentação, essencialmente de carácter patrimonial, cuja finalidade primeira é a de fonte para a historiografia; ● Existência de um organismo estatal coordenador da política arquivística, voltada acima de tudo para a salvaguarda e difusão do patrimônio documental; ● Princípios ditos ‘teóricos’ baseados na evidência e no pragmatismo os conhecidos ‘princípio de respeito pelos fundos’ ou ‘princípio da proveniência’ e ‘princípio da ordem original’ -, não passíveis de confirmação ou refutação pelo trabalho de investigação científica, uma vez que não se inserem num contexto de teorização cabalmente fundamentado; ● Adopção de pretensas ‘teorias’ como base de opções práticas meramente operatórias, como seja a chamada ‘teoria das três idades’, a qual tem servido para justificar separações artificiais do que são os arquivos, aduzindo a aplicação de técnicas e métodos diferenciados no tratamento da informação de diferentes idades, como se de realidades distintas se trate; ● Valorização da componente técnica de uma forma exce ssiva, tendendo a confundir operações e procedimentos como , por exemplo, a descrição arquivística com o método da d isciplina e enfatizando a normalização, numa perspectiva reduto ra, que muitas vezes provoca desvios grosseiros na própria representação da realidade dos arquivos; ● Assunção do ‘documento’ como objecto material constitutivo do arquivo, patente nas expressões ‘gestão documental’ ou ‘ciências documentais’, o que denota uma perspectiva com uma forte carga patrimonialista e historicista (não esqueçamos a frase ‘a História faz-se com documentos’), que não se ajusta aos novos desafios postos pela sociedade da informação, em que actualmente se inserem os arquivos (RIBEIRO, 2002, p.100-101, grifo nosso).

Diante o exposto, os termos liberdade, igualdade e fraternidade tornaram-se o

slogan da Revolução Francesa de 1789, visto que os cidadãos lutavam pelo fim da

servidão à nobreza e travaram uma luta por direitos e garantias, por leis que

favorecessem ao povo e não a nobreza.

Declaração dos direitos homens e do cidadão de 1789: a) “Os homens nascem e vivem livres e iguais perante as leis” b) “Somente no terreno de utilidade comum”. c) “Todos os cidadãos têm o direito de colaborar na elaboração das

leis” (HOBSBAWM, 2010, p. 106).

Com a Revolução Francesa de 1789, algumas inquietações começam a se

estruturar principalmente através das racionalidades, das quebras com as verdades

dogmatizadas. Então, o povo identificado e instigado pela ideia de “nação”

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reivindicava de forma revolucionária seus direitos comuns, atacando o autoritarismo

e as subversões do poder absolutista que impregnava um poder abusivo.

No contexto das conquistas do iluminismo, que surge da Revolução Francesa e da Reforma Protestante a ideia do universalismo que assume o apogeu de seu grande ideário utópico: liberdade, igualdade e fraternidade. Essas linhas de ação são vertentes políticas que agem como princípios subjetivos em esfera coletiva, o que retirou o paradigma da subjetividade como parâmetros de maior destaque da modernidade. Na perspectiva da subjetividade, o iluminismo não restringe sua compreensão ao esclarecimento de uma matéria, mas valoriza a posição que cada pessoa exerce frente ao entendimento de si mesma(MEDEIROS, 2008, p. 91, grifo nosso).

A episteme moderna tem toda essa criação formada pelas narrativas

filosóficas, calcadas em conceitos, rompendo com pensamentos e correntes que se

monopolizavam como a fé e que determinavam regras. Segundo Medeiros (2008),

na ciência moderna a razão é o meio que constitui o sentido profundo da existência

humana, pois nela a inteligência é chamada a procurar livremente as soluções

capazes de oferecer um sentido pleno à vida.

Então, os discursos que muitas vezes foram criados têm essa idealização do

homem como obra pensante de si mesmo, porém, na maioria das vezes tornam-se

seres condicionados, por questões sócio-econômicas, “a ideologia do mundo

moderno atingiu as antigas civilizações que tinham até então resistido as ideias

européias inicialmente através da influência francesa. Esta foi a obra da Revolução

Francesa” (HOBSBAWM, 2010, p. 98).

A Revolução Francesa do final do século XVIII teve profundas consequências

no século XIX marcando assim a história da humanidade, esse evento tornou-se

uma revolução além de seu tempo, espalhando-se pelo mundo, ou seja, a

Revolução Francesa não foi só da França, mas serviu-se de modelo para as

aspirações dos cidadãos e para a redescoberta da história e todo seu apogeu

cronológico.

A principal consequência da Revolução Francesa, durante o século XIX, foi uma mudança profunda na percepção do tempo, que levou à redescoberta da história. Esse evento complexo revelou a história em duas direções: do presente ao passado, do presente ao futuro. A história foi redescoberta como produção do futuro, seja como reconstrução do passado. O revolucionário tempo burguês, acelerado em direção ao futuro, utópico, confiante na razão e na capacidade dos homens de fazerem a história, encontrou a

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resistência de um tempo aristocrático, desacelerado, retrospectivo, reflexivo, meditativo, contemplativo, que desconfia da razão e suspeitava dos seus pretensos portadores e parteiros do futuro (REIS, 2006, p. 207).

Para tanto, a Revolução Francesa instigou o sentido reflexivo e contributivo

do trabalho humano baseado numa sociedade racional, moral e relacional não presa

aos dogmas imutáveis da temporalidade passada. Ademais, essa razão só poderá

ser desenvolvida quando tiver um caráter ou uma vertente histórica manifestada na

exatidão do “eu” que por sua vez é envolvida profundamente em diferentes grupos

que compõem o cotidiano. Essa Revolução mobilizou e provocou uma nova forma

de enxergar as prerrogativas que cada ser humano exerce na sociedade, buscando

reivindicar seus direitos.

A Revolução Francesa instigou os homens a olharem para si mesmos e

concentrarem forças para derrubar as ambições do absolutismo, das violações por

liberdade, igualdade e por direitos de escolherem seus rumos, desejos, sentidos.

Ademais, a Revolução provocou o espírito coletivo, em um fio condutor que gerava

uma força inigualável, ou seja, a força da voz que ecoava nos sentimentos, nas

lutas, nas quebras com as verdades imperativas do “absoluto”, cativando uma ação

fraterna entre os sujeitos que não queriam estar mais à mercê das imposições

alheias do “domínio” Absolutista.

4.2 O poder da razão na modernidade: a redenção da ciência

O século das luzes influenciou profundamente a razão na modernidade através

da racionalização, os sujeitos tornaram-se mais críticos com sua realidade. Na

modernidade essa razão irá se aflorar de forma enfática, visto que os indivíduos

queriam avançar enquanto sujeitos racionais, rompendo com as antigas tradições

dos dogmas e assim abrindo mais possibilidades de entender as complexidades do

cotidiano. A modernidade nesse sentido caracteriza-se pelo processo de

racionalização37, ou seja, por uma nova maneira de interpretar o cotidiano e as

práxis das quais os sujeitos fazem parte.

37

O limiar da modernidade caracterizar-se-ia, então, por esse processo e racionalização que se iniciou com a perda da “intocabilidade” do marco institucional pelos subsistemas

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Segundo Reis (2006, p.28), “a razão trataria a reunificação da humanidade,

substituindo a religião, ao se dar como finalidade a construção de uma sociedade

moral”. Essa sociedade pensada pelo homem com seu olhar interpretativo e ao

mesmo tempo crítico de sua condição traria um novo sentido na compreensão da

realidade.

Nessa “sociedade moral”, o indivíduo começa a enquadrar-se como construtor

direto da racionalidade, um arcabouço que se voltava para o próprio homem, na

medida em que procurava algo que reunificasse seus pensamentos e hábitos.

Segundo Reis (2006, p. 29), “o século XVIII, europeu, passou a pensar

filosoficamente a história universal da humanidade, a elaborar os direitos universais

do homem, atribuindo-lhe o sentido da realização de uma finalidade moral”.

Diante disso, a humanidade começa a ter outro viés com a razão, não mais

aquela direcionada pela fé, no entanto, o homem começa a autocrítica de sua

existência enquanto sujeito racional e subjetivo:

O século XVIII criou o pensamento específico da modernidade, as filosofias da História, que seriam uma legitimação da história universal não mais baseada na fé. Elas são modernas porque têm a forma de uma elaboração racional da história, de uma interpretação sistemática da história da humanidade universal, estabelecendo um princípio que procurava reunificar a sucessão dos acontecimentos em um sentido fundamental. Em sua segunda fase, a modernidade através das filosofias da história recolocaria à história a questão do sentido histórico e da história universal, que retornaria ainda implicações teológicas , mas oferecendo a perfectebilidade moral neste mundo profano no lugar da salvação do outro (REIS, 2006 p. 29).

Tomando por base a afirmação de Reis (2006), percebemos que a

modernidade buscou o novo, o perfeito, aquilo que não se distancia de uma “moral

racional” que se assenta na liberdade e na ruptura desse passado condicionado pela

soberania divina. O mundo profano começa a ter força como um lugar que exige

da ação racional dirigida a fins. As legitimações tradicionais tornam-se criticáveis ao compararem-se com os critérios da racionalidade própria das relações fim-meios; as informações provenientes do âmbito do saber tecnicamente utilizável imiscuíram-se nas tradições e compeliram a uma reconstrução das interpretações tradicionais do mundo. (HABERMAS, 2001, p. 84).

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valores e consciências contínuas. Segundo Reis (2006, p. 29), a “razão que governa

o mundo seria o esforço moderno, profano, de talvez reencantar o mundo”.

Essa modernidade tão demarcada tem afeição pelo novo, por aquilo que de

alguma forma consiga se render a novos padrões de pensamentos, de uma

reintegração consistente dessa racionalização, sendo assim, os termos modernos

são particularizados por algumas pretensões justapostas (princípios)38 que foram

definidas nas ações de consciências.

A ideia de liberdade vem contribuir para a evolução dessa sociedade racional,

de maneira que os indivíduos sejam reflexos de si, tornando mais desenvolvida a

busca pela condição de sujeito, ou seja, de suas necessidades, carências,

finalidades, desejos, sentimentos e características peculiares que diferenciam de

outros seres que compõe a realidade.

Desse modo, as estruturas de racionalidade irão ser edificadas por um fio

condutor característico do agir racional que envolve o homem em todo seu

entremeio relacional configurando-se na praticidade do agir comunicativo que vai

regulando os aspectos identitários de intersubjetividade.

Esses critérios de liberdade são fundamentais para compreendermos as

relações cotidianas e as estruturas de racionalidades que estão sendo edificadas por

esse sujeito subjetivo e racional:

A razão é o novo soberano absoluto intolerante, totalitária, universalista, absolutista. A violência revolucionária é inocente, pois racional e moral contra a violência pura do Estado. As filosofias da história garantem a legitimidade da intervenção radical na realidade histórica, pois esta é expressão da razão e produtora de liberdade. Elas opõem a razão moral ao rei, a igreja e ao passado (REIS, 2006, p. 34).

A produção da moralidade, da liberdade e da justiça irá se enquadrar nos

discursos ideológicos cientificistas sobre os interesses do Estado, “Habermas deseja

recuperar a razão ao acreditar que só ela mesma, autocriticando-se, refletindo sobre

38 Para Habermas, os tempos modernos são marcados por quatro princípios : a) o

individualismo (a singularidade infinitamente particular que faz valer as suas pretensões; b) o direito a crítica (cada um só pode aceitar o que lhe parecer justificado; c) a autonomia da ação (somos responsáveis por nossa ação; d) a filosofia idealista (que apreende a idéia que a consciência tem dela mesma). O sujeito é soberano, crítico, livre e reflexivo e faz valer seu discernimento individual (REIS, 2006, p. 32).

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si mesma, poderia superar seus próprios desvios. A razão moderna possui meios

para a sua autocrítica e autossuperação”. (REIS, 2006, p. 50).

O avanço das ciências contribui para purificar ou modelar os costumes, as

crenças mais imediatas e as necessidades humanas em sua cadeia evolutiva. A

ciência moderna emerge em um contexto muito peculiar, de contraponto entre um

modelo que se predominava e que detinha uma explicação para a existência das

coisas e dos sujeitos. A centralidade se encontrava no poder divino, ou seja, a igreja

é que determinava a figura divina como explicação e comprovação dos

acontecimentos, “a modernidade deu um golpe de desvalorização nas formas de

esclarecimento, que tinham emprestado também às teorias um resto de força

unificadora dos mitos originários” (HABERMAS, 2001, p. 26).

Nesse sentido, a ciência moderna passa por uma transformação técnica e

social que acaba atingindo o cotidiano. Então, faz-se necessário compreender esses

novos modelos impregnados pela razão39, uma racionalidade que se modela como

estratégia de reunificação da humanidade.

Com efeito, essas estruturas normativas representadas pelas éticas formalistas

do Estado, também sofrem mudança no alicerce de racionalidade, das relações

cotidianas e de toda sua extensão:

As ciências modernas, finalmente, permitem explicações nomológicas e justificações práticas, com o auxilio de teorias e construções passíveis de revisão e controladas com base na experiência. “O progresso das ciências modernas e o avanço da formação de vontades político-morais não são mais prejudicados por uma ordem certamente fundamentada, mas colocada como absoluta” (HABERMAS, 1983, p. 19).

O espírito científico é essencialmente retificação do saber, um alargamento

estruturante do próprio conhecimento, então, a ciência moderna se renderá a uma

racionalidade, a um pragmatismo que formaliza a busca constante por novos meios

39 Segundo Reis (2000, p. 190), “Habermas defende uma razão autocrítica contra a razão

instrumental, manipuladora e violadora do real e do outro. Ele acredita e defende uma razão comunicativa, intersubjetiva, ético-prática”.

“Racionalizar significa a superação de tal comunicação sistematicamente distorcida. A racionalização do agir não tem efeitos apenas sobre as forças produtivas, mas também, de modo autônomo sobre as estruturas normativas” (HABERMAS, 1983, p. 31).

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de integração de um saber prático-moral, em que o homem consiga observar seus

próprios limites cognoscentes. Observamos que essa ciência estipulada e difundida

como moderna adquire formas de conhecimento através da especialização

específica, ocorrendo uma dicotomia bem determinada entre a exatidão e a

ressalva, tornando uma disciplinização dos meios de se pensar a ciência.

Os cientistas não vão descobrir receitas pré-determinadas ou supostamente já

estipuladas, porém, irão criar as explicações da realidade, dos meios, ou seja, uma

crença naquilo que se afirma que está sendo desenvolvido empiricamente. De todo

modo, é como ocorresse uma funcionalidade do conhecimento e posteriormente do

mundo em que vem evoluindo as expectativas de conseguir mais instrumentos de

sobrevivência, diferentemente da fé em que se esperava a cura e explicações

através das respostas divinas.

Desta feita, é imprescindível compreender esses paradigmas que envolvem a

racionalidade, os discursos de cientificidade em torno dessas questões tão

complexas. A ciência é uma atividade que impulsiona a uma racionalidade, a

modelos que venham a enaltecer a capacidade compreensiva do homem. Através

dela o indivíduo se questiona, problematiza, evidencia os fatos mais contundentes,

emblemáticos e incompreensíveis. Sendo assim, a ciência traz várias interpretações

acerca das complexidades dos fenômenos.

A história da ciência, afinal de contas, não consiste simplesmente em fatos e conclusões extraídas de fatos. Também contém ideias, interpretações de fatos, problemas criados por interpretações conflitantes, erros e assim por diante. Em uma análise mais detalhada, até descobrimos que a ciência não conhece, de modo alguma fatos nus , mas que todos os fatos que tomamos conhecimento já são vistos de certo modo, e são, portanto, essencialmente ideacionais. Se é assim, a história da ciência será tão complexa, caótica e repleta de enganos e interessante quanto as ideias que encerra, e essas ideias serão tão complexa, caóticas, repletas de enganos e interessantes quanto a mente daqueles que a inventaram (FEYERABEND, 2007, p. 33, grifo nosso).

Na modernidade, a razão se divide em racionalidades, em situações que se

proliferam em âmbitos específicos, a razão dá ordem aos conteúdos, organiza os

procedimentos materiais das realidades cotidianas.

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Medeiros (2008, p. 86) é enfático ao dizer que:

Por modernidade, entendemos a chegada do sujeito a uma época que se contrapõe à tradição do saber homologado pelo não questionamento. Trata-se da descoberta de um novo mundo, do renascimento para uma vida fundada na sabedoria compartilhada e na abertura de investimentos para reposicionar o “homem moderno” na nova estrutura social da razão.

Diante disso, para Reis (2006, p.33), “a modernidade é marcada pela busca do

novo, do melhor e mais perfeito, que são criações do homem”. Assim, a ciência

moderna vem propor uma busca acelerada para explicar as coisas inexplicáveis e

verificar os graus de complexidade dos acontecimentos. O panorama da ciência terá

sua redenção nessas construções de padrões tão demarcados, uma vez que a

ciência emerge como uma atividade capaz de entender os formatos e os sentidos

das necessidades específicas dos indivíduos.

Por conseguinte, Reis (2006, p. 69) entende que “a crítica racional torna-se

impiedosa e intransigente em relação aos irracionalismos e privilégios da tradição”.

A tradição que é mantida por uma consciência irracional dos fatos, da realidade, da

maneira de enxergar a gravidade dos acontecimentos na realidade cotidiana. Então,

todo esse artefato de cientificidade tem que ser debatido para podermos

compreender melhor a possível cientificidade da Arquivologia, suas necessidades

mais emblemáticas, suas carências e dependências e seu contexto enquanto campo

do saber ancorado em uma suposta cientificidade.

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5 CONHECIMENTO E INTERESSE: o lugar das Ciências So ciais Aplicadas

Onde é que nos encontramos hoje? Como são justificadas as exigências da ciência? Que motivos racionais existem – se de fato existe algum – para que uma pessoa concorde com as doutrinas das ciências modernas? Será que os que trabalham em outras disciplinas deveriam se esforçar para fazê-la mais parecidas com a ciência, ou será que as pessoas que trabalham em ciência deveriam finalmente capitular e reconhecer que, de um ponto de vista epistemológico, as exigências de seu conhecimento não são mais seguras do que aquelas mais geral, quais são as implicações dos trabalhos revolucionários em filosofia da ciência nas últimas três ou quatro décadas, para a conduta de pesquisa nas ciências sociais e “puras” e “aplicadas” (PHILLIPS, 1987, p. 3-4).

O final do século XVIII e início do XIX foram marcados por diversos

acontecimentos na história da humanidade, como revoluções, guerras e o avanço

nas relações cotidianas entre os sujeitos categorizados pela racionalidade da ciência

moderna. Então, nas discussões da ciência moderna percebemos que a

subjetividade e a racionalidade tornaram o homem mais “crítico” com sua realidade,

com seu “eu” mais profundo:

Ainda no século XIX, as disciplinas que se conformaram como ciências sociais e humanas, também seguiram esse modelo para a explicação dos fenômenos relativos aos comportamentos humanos e desenvolvimento social. Buscavam leis regularidades, determinações na evolução e transformação dos indivíduos ou das sociedades. Teorias sociais tão diferentes entre si como o positivismo, o marxismo, e o funcionalismo, surgiram como parte dessa mesma visão, ainda que no final do século XIX começasse a ser questionada a viabilidade de uma ciência social objetiva, que adotasse o método e o estatuto das ciências naturais (VAITSMAN, 1995, p. 2).

Para Vaitsman (1995), esse questionamento tinha uma relação com o objeto

das Ciências Sociais e Humanas40, esse artefato é caracterizado pelo homem

pensante, subjetivo e racional. Dessa maneira, todos esses fatores colocavam as

40 Chauí (2000) descreve a classificação sistemática das ciências como: ciências

matemáticas ou lógico-matemáticas (aritmética, geometria, álgebra, trigonometria, lógica, física pura, astronomia pura, etc.); ciências naturais (física, química, biologia, geologia, astronomia, geografia física, paleontologia, etc); ciências humanas ou sociais (psicologia, sociologia, antropologia, geografia humana, economia, lingüística, arqueologia, história, etc); ciências aplicadas (todas as ciências que conduzem ao desenvolvimento de tecnologias para intervir na natureza, na vida humana ou na sociedade, como o direito, as engenharias, medicina, arquitetura, informática, etc.).

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ciências sociais em uma situação complicada, por terem como objeto um ser

complexo, contraditório e inconstante, diferentemente das ciências naturais

objetivadas. As ciências humanas41 produzem uma realidade observável que é

identificada pela peculiaridade humana no ato relacional transcendental, propiciando

uma possibilidade consistente e reveladora, estabelecendo desta forma um sentido

que permeia e ultrapassa a realidade das coisas no mundo.

As ciências humanas são marcadas pelas racionalidades e intersubjetividades

do próprio homem, que é categorizado por várias formas e contextos que passaram

a ser construídos pela racionalidade intersubjetiva:

As ciências humanas se fundamentam necessariamente em uma experiência natural da intersubjetividade e no modo de ser que essa experiência implica ao homem, isto é, no modo ou conjunto de experiências e de teses que toda vida em comum suscita efetivamente, quer disto tenham consciência ou não, isto quer dizer que essa realidade revela-se e manifesta-se ao cientista como a ativação de algumas formas e variáveis de algumas possibilidades fundamentais ligadas a toda vida humana, possibilidades cujo significado só poderá alcançar relativamente a uma experiência efetiva de intersubjetividade, experiência efetiva que o próprio cientista vive (GILES, 1979, p. 103).

No âmbito de nossa discussão, percebemos que o homem racional

categorizado pela separação dogmática quer compreender melhor sua circularidade

social e seu lugar enquanto sujeito, criando meios que permitam explicar sua

existência em um mundo rodeado por dúvidas, incertezas e imprevistos. Nesse

sentido, as ciências humanas e especificamente as sociais aplicadas surgem para

atender às demandas e necessidades dos homens, seja através da reflexão ou da

eficácia produtiva do saber-fazer.

As Ciências Sociais Aplicadas emergem para atender às necessidades mais

contundentes dos sujeitos, os homens irão criar ferramentas para responder suas

41 As ciências humanas mostram que o homem é antes de tudo uma realidade observável

entre outras realidades que compõem o universo, que é ser-no-mundo. Mas sua presença é, ao mesmo tempo, uma relação transcendental, pois o homem é simultaneamente presença a si mesmo e vai além de si mesmo, em direção a uma realidade que não se identifica com ele; é projeto prático e teórico, efetivo e potencial sobre si e sobre as coisas. É o comportamento que revela essa realidade do homem; é o comportamento que propicia ao homem a possibilidade de se revelar como realidade consistente e de estabelecer um sentido que o ultrapasse como realidade consistente em si, pois o homem é doador de sentido às coisas. (GILES, 1979, p. 104).

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inquietações mais complexas. Então, a aplicação desse saber vem responder a essa

ânsia do homem, suas variações, suas necessidades, suas relações com os

serviços e produtos.

O conhecimento produzido no contexto das Ciências Sociais Aplicadas é um

“saber prático/produtivo” que leva a uma competitividade imediata, orientada pelas

predominâncias e instâncias auferidas na dicotomia serviço/uso, ou seja, a relação

com o produto. Desse modo, elas desenvolvem em seu escopo um conhecimento

que beneficia às necessidades mais contundentes da sociedade. Ainda determinam

um conhecimento voltado à solução das lacunas consentidas pelas ciências mais

teóricas, principalmente quando está relacionado a uma objetividade prática na

produção do saber.

Figura 2: O esboço científico da divisão da ciência

Fonte : Pires apud Almeida (2009).

Logo, as Ciências Sociais Aplicadas produzem um efeito mais imediato na

solução de problemas na sociedade e que se configura como uma aplicabilidade,

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que decifra as necessidades mais pontuais do setor social, ou seja, as fragilidades,

lacunas e carências mais plausíveis.

Diante o exposto, percebemos que as Ciências Sociais Aplicadas indicam uma

produção de saber subjacente que leva a uma relação dicotômica na relação

serviço/uso:

As Ciências Aplicadas atuam na adaptação e transferência dos conhecimentos originados nas ciências mais gerais, com a finalidade precípua de aplicar estes conhecimentos através das ciências menos teóricas, as ciências aplicadas por situações e casos isolados. (ALMEIDA, 2009, p. 189).

No campo das Ciências Sociais Aplicadas relacionadas com o saber

arquivístico, parece haver uma inter-relação da aplicabilidade dos princípios e

fundamentos na produção normativa da área, principalmente para atender uma

demanda administrativa. Sendo assim, os “produtos arquivísticos” representados por

essa aplicação são desenvolvidos de modo a equacionar e solucionar o problema

documental existente no sítio institucional. Da mesma forma, são deslocados para

condensar uma projeção organizativa no fluxo incontível da incorporação

administrativa.

No espaço circunscrito da Ciência Social Aplicada, os profissionais são

formados em um tipo de conhecimento especializado, direcionado a resolver os

anseios imediatos da sociedade. Assim, podemos perceber que essa formação tem

um teor funcional/pragmático e que tem seu estofo voltado para solucionar os

enigmas contundentes, emblemáticos e sólidos da sociedade.

De modo geral, as Ciências Sociais Aplicadas têm essa característica

pragmática na sua formação, em seu entremeio e na sua finalidade. Contudo, elas

levam a uma imediaticidade prática a serviço das necessidades mais problemáticas

da sociedade.

5.1 A constituição de um campo científico

“A mais profunda compreensão do campo é fornecida pelo estudo das pressuposições filosóficas subjacentes” (HJORLAND, 2000, p. 527).

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Um campo científico se constitui primeiramente pelo teor da pesquisa, da

investigação, da busca por saberes, metodologias e explicações acerca de um

determinado conhecimento. Logo, esse campo científico encontra-se atrelado a uma

rigorosidade que foi condicionada na ciência moderna e depois com o próprio pós-

positivismo. Então, essa cientificidade está ligada a uma racionalidade e a um

“falseamento”, pois o “homem” quer desconstruir o que construiu e criar o que não

foi criado:

Toda construção, teorização e explicação científica envia, eventualmente, através de uma série de intermediários que a análise pode revelar, a uma experiência do mundo vivido da percepção. Não que essa explicação não possa pretender outra coisa diferente daquilo que essa experiência mostra, mas no sentido de que o saber científico é necessariamente explicitação de um momento na experiência do mundo vivido (GILES, 1979, p.103).

De todo modo, esses meios referencialmente afirmados por Giles (1979) estão

referidos nos conceitos, nas teorias e nas hipóteses da própria ciência moderna, que

fez do homem um ser mais “crítico” na separação com os dogmas da Idade Média. A

rigor, é primordial compreender esses critérios investigativos e coesos nos seus

fundamentos e princípios do campo científico e disciplinar de uma ciência, para

assim se distanciar das “verdades práticas”:

O saber científico é fundado sobre o fato irrecusável de que não estamos na situação de fatos como um objeto no espaço objetivo, pois ela é para nós princípio de curiosidade, de investigação, de interesse para outras situações, enquanto variantes da situação atual. Chamar-se-á ciência a tentativa de construir variáveis ideais que objetivem e esquematizem o funcionamento dessa comunicação efetiva (GILES, 1979, p. 106).

Dessa maneira, o conhecimento é edificado pelo interesse imediato daquilo

que se pretende conhecer. Logo, o campo científico é caracterizado pela busca não

de uma “verdade disciplinar” e imutável, mas por rupturas com os dogmas das

verdades pré-concebidas que foram condicionadas por um passado transcendental

que determinava os caminhos pelos quais os homens deveriam percorrer.

Para Bourdieu (1983, p. 122-123):

O campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores) é o lugar, o espaço de

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jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira inesperável, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos o monopólio da competência científica compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado.

De fato, o campo científico de qualquer área do conhecimento necessita de

uma discussão epistemológica para fortalecer suas bases teórico-metodológicas.

Nesse sentido, o campo do saber arquivístico deve produzir um assaz crítico dentro

do seu próprio universo. Assim, a partir dos círculos reflexivos e do sentido inverso

do agir funcional instrumental a Arquivologia desenvolverá um trópico denso das

suas práticas, porque é imprescindível se organizar enquanto uma comunidade

científica, produzindo, questionando, refletindo e determinando seu interesse

conceitual. De todo modo, a comunidade científica se estrutura por interesses

determinados, ou seja, por questões econômicas necessárias ao seu

funcionamento.

Compreendemos que, o campo científico não poderá ser estudado de forma

dispersa e intencional, no entanto, esse campo tem que problematizar e buscar as

realidades dos fenômenos a serem analisados, visto que nesse contorno teórico a

Arquivologia teria mais embasamentos conceituais que poderiam contribuir para o

avanço conceitual da área. O conhecimento científico no nosso entendimento

acontece e perpassa pela pesquisa, pelas problematizações e questionamentos,

especialmente pelas epistemologias42.

Sendo assim, Rousseau e Couture (1998, p. 72) apontam que “a arquivística

deve claramente definir sua esfera de atividade para escolher em seguida as suas

alianças com as disciplinas contributivas”.

Segundo Silva et al. (2009), a arquivística pode e deve ser uma ciência para

além do meramente instrumental ou técnico para desde logo, obriga a substituir o

42 “A postura epistemológica clara possibilita ao pesquisador reconhecer o que é válido, e o

que não é valido na pesquisa sobre a organização do conhecimento, essa postura favorece ao estudioso o uso de fontes “aceitáveis”, provas (apresentar conhecimento), gerando também resultados “aceitáveis” na pesquisa” (TENNIS, 2008, p. 103).

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primado fazer pelo do conhecer, ou seja, é necessário que a Arquivologia tenha um

olhar teorizado, problematizando epistemologicamente seu próprio saber.

Nessa esfera de pensamento concordamos com Silva et al. (2009) sobre a

necessidade de olhar profundamente os conceitos da Arquivologia, suas carências

epistemológicas que esbarram num instrumentalismo prático do agir funcional

instrumental (técnica), necessitando de um dispositivo coeso que viabilize uma

melhor compreensão dos seus princípios. O que dificulta uma teorização são as

diferentes formas de se pensar a Arquivologia, os detrimentos entre diversos países

que lutam para demonstrar a melhor forma de manusear e gerenciar as

documentações no espaço arquivo desde o século XIX:

O século XIX caracterizou-se pela ocorrência de novas deturpações sobre as funções dos arquivos e sobre os princípios de organização. Por influência conjugada das correntes positivista e historicista, os arquivos são relegados para uma posição instrumental relativamente à Paleografia e a Diplomática, transformando-se a Arquivística também numa disciplina auxiliar da História (SILVA et al, 2009, p. 206, grifo nosso).

Dessa forma, para que um campo científico se sustente é necessário que ele

tenha um teor reflexivo nas suas bases teórico-metodológicas, porque um campo

científico é marcado por diversas fases que vão se modificando, visto que o próprio

objeto irá se fortalecendo em uma dialogicidade com outros campos científicos:

O cientista aprende teorias, métodos e critérios, e é por esse motivo que uma modificação de modelo implica modificações nos critérios que determinam a legitimidade de problemas e soluções. O cientista adota novos instrumentos e olha novas direções. O cientista sabe quais os dados do problema, e os conceitos relevantes para a sua interpretação (GILES, 1979, p. 301).

A comunidade científica de qualquer disciplina se constitui nas relações entre

os pares e os díspares, ou seja, é necessário fortalecer o campo científico interno,

com uma boa metodologia e um objeto43 epistemológico bem definido. De todo

modo, o objeto da Arquivologia deve existir antes da conceituação do campo como

43 O objeto de uma disciplina não existe, portanto, antes da existência dessa própria

disciplina; ele é construído por ela. Ou, como diz Heidegger (1958) a ciência não atinge mais do que aquilo que o seu próprio modo de representação já admitiu anteriormente como objeto possível para si. (FOUREZ, 1995, p. 106).

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ciência, ele deve ser construído e atingir mais do que sua representatividade como

ciência e não ficar coadunado ao princípio burocrático de poderes institucionais, que

acabam influenciando toda a estrutura científica do campo.

A Arquivologia está pautada nas práticas organizativas funcionais no interior

dos arquivos. Ademais, é necessário que os arquivistas busquem teorias e não

“receitas” para assim pensar em um corpus científico. Logo, esse tear científico

poderá trazer para o universo da Arquivologia um sentido mais coeso, mais

contributivo e definidor, pois o campo Arquivístico se teorizado e consolidado de fato

poderá “desprender as amarras” da normalidade funcional/pragmática da

aplicabilidade instrumentalizadora.

5.2 Manifestações das Ciências Sociais Aplicadas: O que são? De onde vêm?

As ciências, de modo geral, têm seu grande apogeu nos séculos XVIII e XIX

surgindo, devido a isso, novas maneiras de facilitar as relações cotidianas. Nos

capítulos anteriores percebemos que a racionalidade voltava-se para o homem

categorizado por ela. Nessa referida cronologia a Arquivologia sofreu mudanças

profundas, tanto na sua realidade interna de organização documental, como também

na interlocução no campo das Ciências Sociais Aplicadas44:

A partir da Revolução Francesa foram postos em causa não apenas os padrões administrativos tradicionais, mas também certa hierarquia de valores já há muito consagrados. Isto teve drásticas repercussões na organização arquivística, cuja instabilidade obrigou a uma meditação mais profunda sobre seu próprio objeto e a definição de um método que respeitasse a sua autonomia (SILVA et al., 2009, p. 100).

Com isso, percebemos as diversas transformações no campo do saber

arquivístico, ou seja, seus aparatos estruturantes que presidem a herança deixada

44 A noção de ciência pura e aplicada deve-se, em parte, a uma imagem surgida no

Ocidente no século III d. C. a da árvore da ciência de Porfírio. Segundo esta concepção, os conhecimentos assemelhar-se-iam a uma árvore, no sentido de que certos conhecimentos mais fundamentais formariam o tronco, o qual se separaria em grossos galhos que, por sua vez, se ramificaram abundantemente. Haveria por exemplo, o tronco da filosofia natural, separado em ramos como a física, a biologia, a matemática, a medicina etc., até chegar aos ramos das ciências aplicadas. (FOUREZ, 1995, p. 201-202).

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pelos positivistas que invadiram a realidade das práticas arquivísticas, as quais

estavam interligadas com as proeminências dos arquivos administrativos em uma

atividade pragmática de organização documental (patrimonialista). Nesse sentido, a

Arquivologia emerge com a tutela de dependência instituída pelo processo

cronológico e que se transformou posteriormente a partir dos elementos da

formação em uma aplicação prática.

Do ponto de vista histórico, verificamos as mutações ocorridas em torno da

ciência. Grande parte dos cientistas positivistas procuravam suas inspirações nas

ciências naturais, por outro lado, aqueles classificados como marxistas estavam

direcionados sob o ponto de vista das ciências sociais, “a história científica do século

XIX, embora tenha se esforçado para escapar-lhe, continuava ainda sob a influência

da filosofia” (REIS, 2000, p. 38).

A analogia social terá sua ênfase no diálogo, nos fatos com objetos densos,

transcendentes e de difícil compreensão que são auferidos em constructo social,

cotidiano e relacional na ação do homem enquanto interssujeito, “o objeto das

ciências humanas não é o homem que trabalha, fala e vive: é o homem que, dentro

dessas realidades, produz representações de suas necessidades” (REIS, 200, p.

40). Desse modo, as peculiaridades do homem enquanto sujeito representativo de

seus atos e realidade constituem-se por suas vontades, desejos, relações individual

e coletiva, que compreendem um olhar revelador e ao mesmo tempo ambíguo e

fronteiriço sobre si:

Na afirmação grega, “o homem é um animal racional, que se pode traduzir por o homem é um irracional racional” que revela seu caráter ambíguo, fronteiriço, dividido, a filosofia dava ênfase ao aspecto “racional”; a nova ciência social dará atenção ao aspecto “irracional” (REIS, 2000, p.41).

Essa “irracionalidade” ganha atenção principalmente na área da psicologia,

procurando um entendimento significativo para compreender esse universo tão

complexo que é o sujeito. Segundo Reis (2000, p. 41), “objetivo final das ciências

sociais, embora não confessado, é reencontrar a consciência e restituir ao homem a

sua posição de sujeito”. Dessa maneira, o sujeito age, interpreta e vivencia um

possível controle sobre si.

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O que torna emblemático é que as situações objetivas não colocam o indivíduo

compreensivo de si próprio, ocorrendo ainda uma série de fatores que tornam seu

lugar cotidianamente complicado. Nesse ponto de vista, o surgimento das ciências

sociais traz três escolas fundamentais45, o positivismo, o marxismo e o historicismo

que influenciaram historicamente a sociedade.

Então, esses fatos categorizados anteriormente se tornam evidentes

justamente pela representação que o homem irá estabelecer, ele torna passível de

análise, de investigação, de desejo por uma explicação descontinua de sua própria

existência. Na sociedade o homem é pensado por sua heterogeneidade, ele constitui

e se funda em uma individualidade contínua, com propriedades mais densas e

complexas.

Essa pluralidade de personalidade faz da sociedade um campo minado,

perigoso e instável. Nessas circunstâncias as construções de convívio e de relações

tornam-se muitas vezes complicadas e perversas, porque essa ciência social

procurará um caráter marcado pelas circunstâncias objetivas e edificadas pelo

próprio sujeito.

Com base nisso, é possível entendermos que as Ciências Sociais Aplicadas

surgem como uma identidade demarcada por diferentes áreas do conhecimento,

pois a abrangência e a complexidade do termo “humano” determinam variações de

conceitos. De todo modo, pensar em lugares específicos de investigação, partindo

da ideia de identidade das manifestações que partem de cada área que compõe a

sociedade nos faz compreender essa realidade complexa da Arquivologia:

A afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e excluir. Como vimos, dizer “o que somos”. A identidade e a diferença traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer significações distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre nós e eles (SILVA, 2000 p. 82).

45 Essas três escolas possuem em comum a condição de inauguradoras das ciências

sociais que: não tratam tanto da consciência de si, isolada, mas das suas relações com as condições objetivas que, para uns, positivistas, a determinam, para outros, historicistas, a condicionam; para o marxismo, constituem-se reciprocamente. (REIS, 2000, p. 43).

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Nesses meandros, é necessário compreender as relações sociais da própria

Arquivologia, sua “identidade” enquanto disciplina e sua inserção nesses cenários

demarcados anteriormente da Ciência Social Aplicada e sua objetividade prática

estabelecida na relação serviço/uso e produto.

Diante disso, Bunge (1980, p. 28) aponta que “a Ciência Aplicada pode ser

definida como o conjunto das aplicações da ciência básica (ou pura)”. Entendemos

que a ciência pura se caracteriza por ser mais básica, mais simples, já a ciência

aplicada traz em seu escopo a solução imediata desenvolvida por uma técnica mais

aprimorada, “chama-se de ciências puras, ou também ciências fundamentais, a uma

prática científica que não se preocupa muito com as possíveis aplicações em um

contexto societário, concentrando-se na aquisição de novos conhecimentos”

(FOUREZ, 1995, p. 196).

As Ciências Aplicadas legitimam soluções/repostas à sociedade. Dessa

maneira, o possível interesse social da Arquivologia enquanto Ciência aplicada seria

de terminar o caos da massa documental das instituições público-privadas,

estabelecendo fundamentos organizacionais através da gestão de documentos que

foram instituídos no processo de historicização, “as instituições produzem uma

intermediação dos valores orientadores da ação com disposições inerentes à

necessidade” (HABERMAS, 2009, p. 126).

Problematizar estas questões é essencial e pertinente para compreender essa

dicotomia da ciência pura/aplicada no contexto da Arquivologia. Bunge (1980, p. 31,

grifo nosso) aponta-nos a diferença entre a ciência básica ou aplicada e a técnica:

A diferença entre Ciência (básica ou aplicada) e técnica resume nisso: enquanto a primeira se propõe a descobrir leis que possam explicar a realidade em sua totalidade, a segunda propõe a controlar determinados setores da realidade , com ajuda de todos os tipos de conhecimento, especialmente os científicos. Tanto uma quanto outra parte de problemas, só que os problemas científicos são puramente cognoscitivos, enquanto que os técnicos são práticos . Ambas buscam dados, formulam hipóteses e teorias, e procuram provar idéias por meio de observações, mediações, experiências ou ensaios. Porém, muitos desses dados, hipóteses e teorias empregados na técnica são tirados da ciência e se referem sempre a questões controláveis, tais como estradas ou máquinas, pradarias ou bosques, minas ou rios, consumidores ou doentes, empregados ou

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soldados, e a sistemas compostos por homens e artefatos, tais como fábricas ou mercados, hospitais ou exércitos, redes de comunicação ou universidade, etc. Ao técnico, não interessa o universo todo, e sim o que represente recurso natural ou artefato.

Nessa perspectiva, a funcional do agir instrumental (técnica) está diretamente

relacionada aos meios práticos, não diferente da atual configuração da Arquivologia

com seus instrumentos descritivos e organizativos no espaço arquivo.

A evolução técnica 46 obedece a uma lógica que corresponde à estrutura da ação racional teleológica e controlada pelo êxito e isto significa à estrutura do trabalho, então, não se vê como poderíamos renunciar à técnica isto é, à nossa técnica , substituindo-a por uma qualitativamente distinta, enquanto não se modificaria a organização da natureza humana e enquanto houvermos de manter a nossa vida por meio do trabalho social e com a ajuda dos meios que substituem o trabalho (HABERMAS, 2009, p. 52, grifo nosso).

Então, as Ciências Sociais Aplicadas têm esses vieses práticos de dar

respostas contundentes e rápidas para a sociedade. Segundo Silva (2011), “é

preciso ter cuidado com certas subtilezas como a de fugir ao debate sério da

cientificidade metendo a Arquivologia no rol das ciências instrumentais ou

aplicadas”. Por conseguinte, é preponderante pensar nessas subtilezas que foram

lançadas e postas no universo da Arquivologia em seu processo de historicização;

as ciências instrumentais colocaram o saber arquivístico preso a uma praticidade

que com as Ciências Sociais Aplicadas se transformou em imediticidade prática na

dicotomia serviço/uso.

5.3 A técnica como ideologia do pensar-agir: do pragmatismo ao funcionalismo

A racionalidade da ciência moderna problematiza o sentido da existência do

homem como objeto de si mesmo, quebrando aquela visão de fé absoluta da Idade

Média da obra divina “dogmatizada”, porém, com a ruptura o homem desenvolveu

46

Para Habermas (2009, p. 52) “a evolução técnica ajusta-se ao modelo interpretativo, segundo o qual o gênero humano teria projetado, uma a uma, ao nível dos meios técnicos, aos componentes elementares do círculo funcional da ação racional teleológica, que inicialmente radica o organismo humano, e assim ele seria dispensado das funções correspondentes”.

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seus próprios meios de sobrevivência na prática do cotidiano, pois ele constitui um

sentido profundo sobre sua existência, oferecendo um sentido pleno a sua

complexidade de “ser”, já que a ciência moderna tornou-se impiedosa ao questionar

as circunstancialidades da vida humana que não estavam mais atadas a uma visão

aleatória que determinava os fatores existenciais, ou seja, a ciência moderna trouxe

uma racionalização objetivada.

A sociedade moderna “obedece” às leis da reconstrução do mundo por meio das ciências naturais e sociais que se transformaram em técnicas; a calcificação e autonormatividade da civilização científica e científico-industrial moderna suspendem a possibilidade de produção de um efeito por parte da personalidade dirigida por ideias, assim como a sociedade de se compreender historicamente na ação e na intervenção política e social (HABERMAS, 2009, p. 34-35).

A ciência moderna traz essa disposição técnica, principalmente pela própria

racionalização do homem nas formas de produtividade no trabalho e convívio. Para

Habermas (2009, p.53), “a disposição da técnica existente, o projeto de uma

natureza como interlocutor, em vez de objeto, refere-se a uma estrutura alternativa

da ação racional teleológica”. Com efeito, a natureza não é objeto a ser destruído,

no entanto, deve haver essa relação de respeito entre o homem e a natureza.

As culturas superiores encontram-se estabelecidas sobre a base de uma técnica relativamente desenvolvida e de uma organização do processo de produção social, mediante a divisão do trabalho, que torna possíveis produtos adicionais, por conseguinte, uma excedente de bens para além da satisfação das necessidades imediatas e elementares. Devem precisamente a sua existência à solução do problema que só surge com a produção de um excedente, isto é, o problema de distribuir de modo desigual e, no entanto, legítimo, a riqueza e o trabalho segundo outros critérios diversos dos que um sistema de parentesco tem a sua disposição (HABERMAS, 2009, p. 61).

Desse modo, a técnica aparecerá como instrumento a ser desenvolvido de

maneira que possibilite dar mais “poder” ao próprio homem. Segundo Habermas

(2001, p.55), “se a técnica se transforma na forma englobante da produção material,

define então uma cultura inteira; projeta uma totalidade histórica, um mundo”. De

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todo modo, essa repercussão do progresso técnico-científico47 engloba todo um

sistema de sociedade, as estruturas e os comportamentos racionais.

O dilema da razão se encaixa nessas discussões do homem como interlocutor

desse novo modo de conviver, ou seja, as da racionalidade que legitimam uma

relação de produção ou um retorno à inocência do próprio técnico-científico. Nesse

sentido, esse avanço de modernização dos meios sociais traz estratégias e regras

técnicas bem determinadas gerando um saber pela sua própria forma, ou seja, sua

intencionalidade.

Nessas discussões, adentramos no universo do pragmatismo para

entendermos os aspectos da formação pragmática na Arquivologia. Para Habermas

(1987, p. 90), “à medida, porém, que o positivismo dogmatizava a fé das ciências

nelas mesmas, ele assume a função proibitiva de blindar a pesquisa contra uma

autorreflexão em termos de teoria do conhecimento”. Para o autor positivismo

violava a estrutura do saber e todo o seu processo evolutivo, porque era necessário

que houvesse um caráter reflexivo e autofundamentado, ao qual ele denominou de

teoria crítica. Essa teoria crítica era auferida e contextualizada pela hermenêutica.

Diante disso, o pragmatismo48 assumiu os formatos do empirismo

tradicionalista americano. Esse mesmo empirismo tradicional estava hermeticamente

direcionado à experiência progressiva das formas de observações passadas ou

presentes. O pragmatismo percebia que essa mesma experiência tinha que ser

posta ou pensada a longo prazo, logo, para o futuro:

O pragmatismo é o princípio que diz que todo juízo teórico, possível de ser expresso numa proposição indicativa, é uma forma confusa de um pensamento cujo único sentido – cabe aqui se possa falar em

47 A racionalidade peculiar da ciência e da técnica que, por outro lado, caracteriza um

crescente potencial de forças produtivas excedentes, o qual constitui uma ameaça permanente para o enquadramento institucional e que, por outro lado, proporciona também o critério de legitimação das próprias relações de produção, a cisão de tal racionalidade não pode representar-se adequadamente nem por uma historicização do conceito, nem por um retorno à concepção ortodoxa, nem ainda a partir do modelo do pecado original ou da inocência do progresso técnico-científico (HABERMAS, 2001, p. 54, grifo nosso).

48 Como exposto anteriormente, termo que apareceu no século XIX, liderados por Charles

Peirce e William James, esse modelo de Filosofia tem grande aproximação com o positivismo e influenciou os princípios de organização dos documentos na realidade dos arquivos.

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sentido – está em sua tendência de assegurar validade a uma máxima prática correspondente, a qual deve ser formulada como enunciado condicional e cuja apódese está posta em forma indicativa (PEIRCE apud HABERMAS, 1987, p. 137).

Nesse sentido, essa vertente que tentava se firmar ganhará várias definições e

atribuições, principalmente quando relacionada como um método. O pragmatismo é

um esforço que age no âmbito das organizações concebíveis e alcançáveis a partir

dos artifícios metódicos:

O pragmatismo é método para alcançar a clareza das ideias que temos dos objetos. E esse método nos impõe considerar quais efeitos práticos concebíveis essa ideia pode implicar, quais sensações podemos esperar e quais reações podemos esperar e quais reações devemos preparar. Nossa concepção desses efeitos, tanto imediata como remota, é então toda a concepção que temos do objeto, enquanto ela tiver significado positivo. (REALE, 2005, p. 85, grifo nosso).

Rendilhando sobre a maneira de se organizar e direcionar os arquivos, o

pragmatismo traz uma ideia de um método de organização imediato, prático. Então,

sem anacronismo parece-nos que esse pragmatismo se entrelaça às ideologias

progressivas e práticas do positivismo do século XIX. Essa máxima pragmática tem

um sentido expressivo sob uma ótica científico-experimental, ou seja, as funções do

agir funcional instrumental (técnica), “se este método é a única garantia para se

adquirir enunciados verdadeiros, tais regras possuem, enquanto determinação de

um método, funções correspondentes às condições transcendentais” (HABERMAS,

1987, p. 135).

O pragmatismo que teve seu advento e contextualização mais enfática nos

Estados Unidos é diferente da filosofia hermenêutica de Habermas, que

problematiza a essência das interpretações em cadeias bem mais filosóficas e

exegéticas, conceituais e reflexivas. O pragmatismo exerceu uma profunda

influência nos preceitos da Arquivologia historicamente falando:

A filosofia pragmatista e a filosofia hermenêutica situam, de fato, a dúvida quanto às pretensões de fundamentação e autofundamentação do pensamento filosófico a nível mais profundo do que os críticos que se colocam na linhagem de Kant e Hegel. Pois elas abandonam o horizonte no qual se move a filosofia da consciência com seu modelo do conhecimento baseado na

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percepção e a representação dos objetos. No lugar do sujeito solitário, que se volta para objetos e que, a reflexão, se torna a si mesmo por objeto, entra não somente a idéia de um conhecimento linguisticamente mediatizado e relacionado com o agir, mas também o nexo da prática e da comunicação cotidiana, no qual estão inseridas as operações cognitivas que têm desde a origem um caráter intersubjetivo e ao mesmo tempo cooperativo. Quer esse nexo seja tematizado como forma de vida ou mundo da vida, quer como prática ou como interação linguisticamente mediatizada, quer como jogo de linguagem ou de diálogo, quer como pano de fundo cultural, tradição ou história dos efeitos, o decisivo é que esses conceitos ocupam agora uma tradição que até aqui estava reservada aos conceitos básicos epistemológicos, sem que devam, todavia funcionar da mesma maneira como antes (HABERMAS, 1989, p. 24-25).

Esse pragmatismo anglo-americano propunha tirar o empirismo tradicional do

descrédito enquanto modelo de investigação, a intenção era dar veste

comprobatória através do progresso científico.

Rousseau e Couture (1998) afirmam que a Revolução Francesa49 teve um

grande impacto nos arquivos. No que diz respeito aos locais de armazenamento, a

principal inovação foi, sobretudo, de ordem ideológica e exprime-se pelo desejo de

centralização dos documentos. Logo, essa centralização estava diretamente

relacionada com as instituições e com as ações funcionais administrativas.

Com isso alguns arquivistas da época perceberam que poderiam colocar a

Arquivologia como um “campo científico” respaldado pelo progresso científico do

pragmatismo, o saber-fazer:

A quando da Revolução Francesa, a primeira assembléia elegeu Armand Gaston Camus, deputado de Paris, arquivista dos Archives nationales de France com a responsabilidade de conservar os arquivos da assembléia. A revolução reconhecia assim, de maneira oficial, que a conservação e o testemunho dos seus actos e a sua acessibilidade constituíam uma parte importante da missão de um

49 A Revolução Francesa não foi feita ou liderada por um partido ou movimento organizado,

no sentido moderno, nem por homens que estivessem tentando levar a cabo um programa estruturado. Nem mesmo chegou a ter “líderes” como as revoluções do século XX, até o surgimento da figura pós-revolucionária de Napoleão. Não obstante, um surpreendente consenso de ideias gerais entre um grupo social bastante coerente deu ao movimento revolucionário uma unidade efetiva. O grupo era a “burguesia”; suas ideias eram as do liberalismo clássico, conforme formuladas pelos “filósofos” e “economistas” e difundidas pela maçonaria e associações informais” (HOBSBAWM, 2010, p. 105).

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governo, e confiava essa responsabilidade a um dos deputados. Alguns anos mais tarde, um funcionário ocupará este cargo. Contudo, o impulso foi dado e, doravante, a França terá sempre o seu arquivista nacional (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 44).

A expansão dos ideais da Revolução Francesa como delineados anteriormente

tiveram reflexo nos preceitos da Arquivologia e nos seus princípios norteadores

como o da proveniência e o da ordem interna ou original.

As classificações adotadas para organização dos arquivos, em consequências das concentrações em massa e de concepções teóricas racionalistas (sistema que passou a vigorar em variados países, por influência francesa), na prática, não contribuíram para qualquer aperfeiçoamento arquivístico; pelo contrário, levaram à adulteração dos arquivos, pois não respeitaram a organicidade original, que espelhava uma prática administrativa com as suas características próprias. (SILVA et al, 2009, p. 104, grifo nosso).

Esse pragmatismo assolou a prática do saber-fazer na Arquivologia e, assim,

pensar a configuração do campo científico arquivístico a partir dessa corrente se

torna problemático, uma vez que a Arquivologia está coadunada aos modelos do

progresso técnico-científico do pragmatismo50, ou seja, às instrumentalizações e

operacionalizações nas organizações internas dos documentos nos arquivos.

Essas ações são expressamente práticas, isto é, os fundamentos de

organização, os princípios da proveniência, de respeito aos fundos e o da ordem

interna ou original configuram um teor pragmático/funcional administrativo.

Rosseau e Couture apontam (1998, p. 52):

Há em arquivística três princípios que constituem o fundamento da disciplina. Trata-se do principio da territorialidade, do princípio do respeito pelos fundos ou princípios da proveniência e da abordagem

50 Com o pragmatismo, é possível integrar pontos fundamentais da obra de Peirce,

considerados no âmbito da organização da informação e do conhecimento, desconexos e dificilmente aplicáveis. Somente com essa perspectiva é que se poderá, com maior segurança, efetivar futuras contribuições de Peirce para organização da informação e do conhecimento no que tange ao estudo da linguagem e da Terminologia especializadas. Por pragmatismo subentende-se uma defesa do realism o e a crença de que os gerais são também reais. Portanto, a terceiridade é a categoria fenomenológica de vital importância para a compreensão do pragmatismo de Perice. Relações entre os individuais são consideradas universais e têm uma existência positiva no universo” (ALMEIDA, 2009, p. 340, grifo nosso).

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das três idades. Utilizados desde o final do século XIX e, sobretudo no século XX, constituem a própria base da arquivística moderna.

Esses princípios influenciaram também a Arquivologia principalmente no que

se refere aos processos instrumentais da Gestão de Documentos51 e na relação

interna dos arquivos, ou seja, a prática de organização dos documentos que estava

associada ao empirismo, o saber-fazer. Sendo assim, a abordagem das três idades

veio em larga escala confirmar o modelo prático e técnico nos arquivos:

A distinção criada entre várias fases da vida dos documentos, fazendo corresponder tipos diferentes de arquivos a cada uma delas, alertou para a existência de um processo contínuo, mas não trouxe qualquer contributo metodológico ou teórico para o desenvolvimento da Arquivística. Os arquivos intermédios ou pré-arquivos começaram a ser depósitos centrais das administrações, mas vieram a tornar-se arquivos mistos (intermédios e históricos), pois o envelhecimento da documentação e os limites da política concentracionista bloquearam necessariamente o modelo previsto . Os arquivos intermédios acabaram por constituir instrumentos de desarticulação da cadeia documental na sua natura evolução (SILVA et al, 2009, p.136, grifo nosso).

Partindo das afirmações dos autores entendemos que as etapas de vida

documental, os instrumentos de pesquisa e os modelos de organização interna dos

arquivos caracterizam um processo operacionalizador de guarda dos documentos.

Ainda a partir dessa ideia apresentada percebemos através do processo de

interpretação (hermenêutica) que a Arquivologia relaciona-se com a

administração/institucional, tanto na produção como na guarda dos documentos.

Segundo Rosseau e Couture (1998, p. 53):

Os princípios arquivísticos são, pois, muito recentes. Eles mostram o desenvolvimento inequívoco da disciplina que tinha necessidade de assentar as suas práticas em bases mais teóricas. Por sua vez, estes princípios serviram para alimentar o refinamento dos métodos e favoreceram a estruturação deles.

51 A gestão documental vem identificar os tipos documentais produzidos, recebidos e

acumulados, definindo os prazos de eliminação ou de preservação ao arquivo permanente.

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Essa afirmação veio confirmar, em certa medida, que os meios funcionalistas e

tecnicistas adentraram em alguns modelos organizacionais da Arquivologia como o

das três idades do arquivo, por exemplo.

Com o agravar da situação, após a Segunda Guerra Mundial, generalizou-se o apodítico princípio das três idades do arquivo, que pode ter tido origem em Itália, no início do século XX, por meras razões práticas de instalação dos documentos. Se é certo que esta pretensa teoria parece apontar para uma cadeia relativamente ininterrupta no ciclo de vida dos documentos, a verdade é que gerou um efeito perverso, ao levar à criação de serviços e de depósitos, a maior parte das vezes desarticuladas entre si, provocando, assim, distorções contranaturam em unidades sistêmicas que, desde há milênios, possuíam uma sólida coerência interna (SILVA et al, 2009, p. 207, grifo nosso).

Essa forma pragmatista de organização documental e os procedimentos

funcionais administrativos em larga escala provocaram um grande efeito no que

concerne à Arquivologia, já que as três idades52 dos arquivos vêm de forma

hermética apresentar um ciclo que se torna perigoso, pois os arquivos correntes, os

arquivos intermediários e os arquivos permanentes colocam a Arquivologia

condicionada a aspectos descritivos e extremamente práticos na realidade funcional,

através de princípios arquivísticos53 que são apontados como pilares

epistemológicos.

52 Para Bellotto (2002, p. 26) “a teoria das três idades é a sistematização do circulo vital dos

documentos de arquivo. Este ciclo compreende três idades que desde o ponto de vista da administração, seriam a dos documentos ativos, semi-ativos e a dos inativos. Mas a denominação mais funda é a que corresponde aos usos desses documentos: correntes, ou de gestão, ou setoriais, intermediários ou semicorrentes; e permanentes ou históricos (ou idade histórica). Alguns teóricos vêem, no entanto, uma idade a mais: a dos arquivos centrais, onde se juntariam, ainda em idade corrente, os documentos originados dos setoriais”.

53 “Princípio da proveniência: Fixa a identidade do documento, relativamente a seu

produtor. Por este princípio, os arquivos devem ser organizados em obediência à competência e às atividades da instituição ou de uma pessoa devem manter a respectiva individualidade, dentro de seu contexto orgânico de produção, não devendo ser mesclados a outros de ordem distinta. Princípio de organicidade: as relações administrativas orgânicas se refletem nos conjuntos documentais. A organicidade é a qualidade segundo a qual os arquivos espelham a estrutura, funções e atividades da entidade produtora (acumuladora em suas relações internas e externas). Princípio da Unicidade : Não obstante forma, gênero, tipo ou suporte, os documentos de arquivos conservam seu caráter único, em função do contexto em que foram produzidos. Princípio da Indivisibilidade ou integridade arquiv ística: os fundos de arquivo devem

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Esses princípios em sua maioria aparecem na literatura arquivística como

bases teórico-metodológicas do saber arquivístico, porém, eles sofreram a influência

da racionalização da funcional do agir instrumental (técnica) na realidade pragmática

da formação:

No campo instrumental do agir controlado pelo êxito são organizadas experiências que motivam evidentemente as interpretações linguísticas e podem alterar padrões de interpretação legados pela tradição sob uma coerção operacional (HABERMAS, 2009, p. 265).

Na citação o autor esclarece a distinção entre o campo de produção científica,

ele faz severas críticas ao positivismo e sua herança empírico-analítica, ou seja, a

primazia do processo de instrumentalização (técnica), que configurou em diversos

setores do cotidiano, na Arquivologia atrelou-se ao operacionalismo prático do

saber-fazer pragmático a partir de seus princípios, “o pragmatismo sempre concebeu

regras metodológicas como normas da práxis de pesquisa” (HABERMAS, 2009, p.

145).

Desse modo, notamos que a funcional da racionalidade instrumental adentrou

nos princípios e preceitos arquivísticos, onde a racionalização tecnicista aparece

como uma unidade pragmática, herança do manto das ciências empírico-analíticas

que condicionou de forma concisa o avanço teórico do saber arquivístico, que ficou

coadunado a esse víeis da razão instrumental em suas entrelinhas da produção do

saber:

No estado atual das forças produtivas, as relações entre o progresso técnico e o mundo da vida social não podem mais encontrar um

ser preservados sem dispersão, mutilação, alienação, destruição não autorizada ou adição indevida. Este princípio é derivado do princípio da proveniência. Princípio da Cumulatividade : o arquivo é uma formação (a sedimentação, de Lodolini) progressiva, natural e orgânica. Princípio de Imparcialidade : (em sua criação): derivada do fato de que não foram criados para “dar contas” à posterioridade. Os documentos administrativos são meios de ação e relativos a determinadas funções, caso contrário, os procedimentos aos quais os documentos se referem não funcionarão, não terão validade. Autenticidade: (nos procedimentos): ligada ao continiuum da criação, tramitação uso e guarda. Os documentos são criados dentro dos procedimentos regulares estabelecidos pelo direito administrativo; se assim não fosse, não seriam adequadamente cumpridos as razões que lhes deram origem. Naturalidade: (na acumulação): os documentos não são colecionados e sim acumulados, naturalmente, no curso das ações, de maneira continua e progressiva”. (BELLOTTO, 2002, p. 20-25).

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97

equilíbrio natural como tinha acontecido até aqui. Cada novo avanço do saber-fazer técnico que irrompe de maneira descontrolada em antigas formas da práxis vital acirra o conflito entre resultados de uma racionalidade intensiva e tradições levadas de roldão pelo progresso: é possível que este estado de coisas se mostre uma liberação civilização técnico-científica em relação à história em geral (HABERMAS, 2009, p. 36, grifo nosso).

Nesse sentido, o saber-fazer instrumental se racionalizou no processo de

transformação da Arquivologia, ou seja, os princípios arquivísticos foram

estruturados em uma atividade funcional que se traduz em uma consciência prática

operacional inserida nas condições dos meios técnicos e que teria se autonomizado

na própria clarificação ideológica da área.

Para Habermas (2009), um saber tecnicamente utilizável deste tipo repousa

sobre o conhecimento de uniformidades empíricas (experiência experimental); esse

conhecimento é a base para explicações causais que possibilitam, sob a forma de

prognósticos condicionados, a disponibilidade instrumentalizadora e que na

Arquivologia foi auferida na praticidade de seus próprios princípios, onde, esses

fundamentos adentraram na realidade da Arquivística em diferentes lugares como o

Brasil. Logo, a ação instrumentalizadora na Arquivologia pode ser identificada a

partir de uma racionalização do agir instrumental, desse modo, podemos notar

através da ilustração tear operatório da Arquivologia.

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98

Figura 3: Rationalizierung (racionalização) do agir funcional instrumental na Arquivologia

Fonte : Construção do autor com a utilização do software Cmaptools

Com efeito, notamos que os aspectos funcionalistas contextualizaram as

práticas arquivísticas por meio das instituições, das ações administrativas, nas

ordenações e nos modelos de organizações documentais, “o funcionalismo permite,

em uma palavra, a análise de contextos de ação sob o ponto de vista duplo do

sentido subjetivamente determinado e do sentido objetivo”. (HABERMAS, 2009, p.

287).

Os sistemas funcionais se mantêm na continuidade estrutural das práticas

arquivísticas em um colapso que desintegra o campo do saber arquivístico ficando

condicionado a uma praticidade das ações que permeiam os métodos e os

princípios arquivísticos, como o ciclo vital de documentos, “Habermas acredita que o

funcionalismo sociológico não pode estabelecer condições de continuidade

estrutural sem primeiro abandonar seu manto empírico-analítico, e se revestir com a

teoria crítica iluminada pela hermenêutica” (INGRAM, 1994, p. 179).

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99

Silva et al. (2009) já questionavam essa realidade tridimensional de ciclo

vital54 funcional, que acarretava sérios prejuízos para a própria Arquivologia, haja

vista que nessa circularidade vital o interesse era beneficiar apenas as instituições a

partir da gestão documental:

A chamada teoria das três idades, encarada de uma forma simplista, passou a acarretar um risco, que foi o de se confundir um mero estrategema operativo com um princípio que consagra e, para muitos, passou a justificar a separação efetiva do que não é estruturalmente divisível. Ao ser elevada ao estatuto de teoria , a invocação das várias idades arquivísticas pode induzir que se está a falar não apenas de fases etárias de uma entidade, mas sim entidade distintas, cuja distância temporal lhes confere conteúdos diversos e determina a metodologias próprias. Daí decorre que o objeto da Arquivística não seja claro e que se confunda o método com meras aplicações técnicas . (SILVA et al., 2009, p. 155, grifo nosso).

Daí decorre a necessidade de discutir uma forma mais interessante a respeito

das atividades da Arquivologia e seus possíveis moldes, diagnosticando e

procurando seu teor científico, assim, possibilitando a distância do canal funcional

das ações institucionais do agir instrumental:

A questão de saber se a arquivística era uma técnic a ou uma ciência , se não ia além de um mero catálogo de práticas com alguma doutrina feita ou se, pelo contrário, estava já dotada de princípios e teorias para a caracterizar como ciência , estava com sua intervenção a ilustrar de forma clara o impasse epistemológico que tem prevalecido na arquivística. (SILVA et al., 2009, p.230, grifo nosso).

54

“Composto por três períodos, o ciclo de vida transcende o trabalho de qualquer arquivista, bem como os suportes de informação e forma o pano de fundo no qual se apoiam as intervenções arquivísticas. Esta maneira de abordar a realidade da organização e o tratamento dos arquivos tem adesão unânime dos especialistas que a eles se referem quando falam das três idades. A arquivística reparte assim a vida do documento de arquivo em três períodos: os de actividade, de semiactividade e de inactividade. Para este especialista, ter em cena o ciclo de vida dos documentos e as três idades que o compõem permite uma repartição essencial dos grandes conjuntos que formam o arquivo de uma pessoa física ou moral. Ele tornou-se uma especificidade da sua disciplina. O conceito de ciclo de vida transforma um conjunto de documentos quantitativamente demasiado importante, desmedido em relação aos meios de que se dispõe para se lhe fazer face, em subconjuntos que apresentam diferentes características. Isto facilita uma redistribuição dos documentos que compõem o conjunto e deixa entrever uma problemática que é então possível abordar com pragmatismo e alguma hipótese de sucesso”. (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p.111).

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100

Diante o exposto, apontamos que esse impasse epistemológico que a

Arquivologia sofreu ao longo do tempo está diretamente coadunado a esse passado

marcado por eventos, como o pragmatismo, o funcionalismo, o empirismo e o

próprio positivismo. Como exposto anteriormente, o ciclo de vida dos documentos é

representado por três períodos distintos aos quais nomeamos como os da 1º

atividade funcional (corrente), os da 2º atividade funcional (intermediários) e os da 3º

atividade funcional (permanente). Desse modo, Habermas (2009) esclarece esse

percurso funcional, onde esta abordagem teria a vantagem de apreender de maneira

sistemática contextos objetivos e intencionais.

Essa prática traçada na Arquivologia e na circularidade exaustiva acarretou

danos teóricos ao campo do saber arquivístico. Para tanto, é fundamental se

desprender dessa realidade tecnocrata, porém, é necessário que o arquivista chame

a responsabilidade e se torne um questionador do seu próprio campo de atuação

para assim, possibilitar o avanço epistemológico da área, “o ciclo de vida dos

documentos de arquivo apresenta-se como um dos fundamentos da disciplina

arquivística” (ROSSEAU; COUTURE, 1998, p. 125).

O ciclo vital traz uma atividade que preconiza a ação instrumental, porque

demonstra a utilização de um interesse que se justifica na organização documental

na estrutura administrativa e nas circunstâncias institucionais que o cercam, “a

metodologia da identificação fundamenta-se nos princípios teóricos da proveniência,

da ordem original, e no ciclo de vida dos documentos”. (SILVA, 2012, p. 56). Desse

modo, a concepção prático-vital orienta uma ação do saber-fazer do agir funcional

instrumental, em uma circularidade que se baseia em diretrizes e que se subdivide

em três ações do ciclo vital no processo operatório da Arquivologia, as quais podem

ser compreendidas como idades documentais.

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101

Figura 4 : A concepção do ciclo prático-vital na Arquivologia

Fonte : Construção do autor com a utilização do software Cmaptools

Nesse sentido, é comum encontrarmos na Arquivologia atual aspectos que se

relacionam com os procedimentos operatórios e pragmáticos, onde esse

pragmatismo expressa um teor funcional e que está ligado aos padrões do agir

funcional instrumental:

Na medida em que a máxima pragmática regula o sentido das expressões autorizadas sob uma ótica científica experimental e

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102

limita, assim, a aplicação de tais expressões do agir instrumental, o sentido da validade de enunciados autorizados sobre esta área do objeto é indiretamente também interpretado em termos pragmatistas, a saber: estes enunciados abarcam a realidade em vista de uma disponibilidade técnica, sempre e em toda parte possível sob condições específicas (HABERMAS, 1987, p. 349-350).

Ademais, é preponderante que os arquivistas se percebam como “construtores

epistemológicos” e “artesãos teóricos” no sentido complexo da proliferação e do

embasamento que o campo necessita, ou seja, é necessário que o saber

arquivístico consiga a autofundamentação crítica e a consolidação epistêmica e

teórico-metodológica de fato.

5.4 Ciências empíricas e ciências histórico-hermenê uticas: crítica de Jürgen Habermas

Adentrando nessa realidade epistemológica buscamos entender o significado

das ciências empíricas55 que se interessam por um conhecimento mais técnico, e de

outro lado, das histórico-hermenêuticas56 que intervêm como interesse prático do

conhecimento, “a compreensão hermenêutica visa três classes de manifestações

vitais: as expressões verbais, as ações e as experiências vivenciais” (HABERMAS,

1987, p. 175).

A hermenêutica corresponde a um feixe interssubjetivo e que é retificado pelo

homem através da sua experiência pessoal na práxis social. Sendo assim,

Habermas (1987) tece sobre a classificação da produção do conhecimento

nomológico, reflexivo e interpretativo. Assim, a produção do conhecimento e

55 “As ciências empírico-analíticas, o sistema de referência, que pré-avalia o sentido de

possíveis proposições científico-experimentais, estabelece regras não só para a construção de teorias, mas também para sua comprovação crítica. O saber empírico-analítico é, por conseguinte, um saber prognóstico possível, o empirismo gostaria de assegurar a aparência objetivista nas observações expressas nas proposições básicas: deve aí dar-se fidedignamente algo que seja evidente de modo imediato e sem acrescentarmos subjetivos”.

56 “As ciências histórico-hermenêuticas obtêm os seus conhecimentos num outro

enquadramento metodológico. Aqui, o sentido da avaliação de enunciados não se constitui no sistema de referência de disposição técnica. As esferas da linguagem formalizada e da experiência objetiva ainda não se encontram diferenciadas; pois, nem as teorias estão construídas de modo dedutivo, nem as experiências se encontram organizadas em vista do êxito das operações” (HABERMAS, 2009, p. 137-138).

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103

interesse por parte desse autor se estrutura em um emaranhado exegético

constituído por uma ação questionadora e provocativa, porque o interssujeito é

cercado por uma bagagem transcendental da autofundamentação. Desse modo,

esboçamos parcialmente como se estrutura a atividade interpretativa da pesquisa

em Habermas (1987) em seu ciclo investigativo.

A hermenêutica vem compreender as interpretações das fontes escritas em

diferentes épocas e lugares, trazendo um teor de análise crítica. Essa análise

possibilita pensar o campo por diversos canais. Então, a hermenêutica tem esse

sentido interpretativo e questionador das realidades fazendo com que as

provocações e questionamentos sejam lançados como forma de entendimento,

contribuindo assim para a compreensão dos fenômenos, uma vez que a

hermenêutica assume um sentido interpretativo e filosófico:

A compreensão hermenêutica é a interpretação de textos a partir do conhecimento de textos já compreendidos; ela conduz a novos processos de formação a partir do horizonte de processos de formação já realizados; trata-se de um novo processo de socialização, que se articula com uma socialização já percorrida, na medida em que ela se apropria da tradição, ela dá prosseguimento à tradição (HABERMAS, 1987, p. 237-238).

Destarte, através dos sinais interpretativos, a produção do conhecimento

habermasiano se configurou como fundamental, principalmente no diálogo entre a

ciência e técnica na Arquivologia, pois esse aprofundamento epistemológico

possibilitou uma contextualização do fenômeno estudado.

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104

Figura 5: A produção do conhecimento e interesse em Jürgen Habermas

Fonte: Construção do autor com a utilização do software Cmaptools

Essa dimensão das interpretações hermenêuticas também está direcionada

com aquela racionalidade, em que o homem consciente de si mesmo traduz toda

sua experiência enquanto sujeito comunicativo e interacionista. As ciências sociais

demarcaram as subjetividades entre os sujeitos interssubjetivos, nas relações

traduzidas através da linguagem e da ação do agir comunicativo:

Nas ciências humanas sociais, encontra a frente o desafio de não decretar uma verdade como certeza, mas alarga os limites da compreensão para que a experiência da verdade não se resuma à aplicação metódica das ciências empírico-analíticas, visto que o caráter interpretativo do método hermenêutico reconhece a interpretação como decorrente do componente histórico em que o

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105

sujeito (agente) e o objeto fenômeno se situam (MEDEIROS, 2008, p.67).

Para Medeiros (2008), as relações sociais são demarcadas por complexidade e

por objetos diferenciados, ou seja, por buscas múltiplas que podem refletir em

diferentes contextos desafiadores, alargando a compreensão dos fatos na

circunstancialidade do saber, “as questões que devemos direcionar para a filosofia

não podem ser respondidas através da afirmação de um a priori epistemológico,

mas através de um procedimento histórico fundamentado na totalidade do nosso

ser” (DILTHEY, 1989, p. 51).

Desse modo, a grande ênfase é perceber que as ciências histórico-

hermenêuticas não buscam somente a objetivação dos fenômenos interpretativos da

realidade, mas, buscam também as metodologias baseadas nos significados, nas

circunstâncias e nos processos que têm um possível significado para o mundo.

Para Ricoeur (1990), a interpretação é a réplica desse distanciamento

fundamental constituído pela objetivação do homem em suas obras de discurso,

comparáveis à sua objetivação nos produtos de seu trabalho e de sua arte. Logo, o

importante da hermenêutica é sua contribuição para as discussões em diferentes

campos das ciências, em suas diversas modalidades, sejam elas ciências humanas,

sociais aplicadas ou duras, “a experiência hermenêutica traz à consciência a posição

do sujeito falante em relação à linguagem” (HABERMAS, 2009, p. 288).

O caráter interpretativo é provocativo, ousado e híbrido, pois podemos

estabelecer elementos sobre os fundamentos que balizam o próprio saber, “querer

saber o que é e como é algo são os dois elementos que estão na base de uma

investigação e podem ser traduzidos num só. O ser de algo é sempre composto pelo

o que algo é e como ele é” (STEIN, 1996, p. 46).

Diante disso, a hermenêutica perpassa por uma ação crítica e analítica na base

investigativa do conhecimento, logo, a atividade interpretativa se ligará às ideologias

e aos modelos das práxis sociais. Assim, a Arquivologia compreende uma técnica do

saber-fazer, necessitando de recursos técnico-operacionais na organização interna

dos arquivos:

Que explicações causais (as quais se apóiam sobre um saber empírico-analítico) possam ser em princípio convertidas em um saber tecnicamente aproveitável, e explicações narrativas (as quais

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106

se apóiam em um saber hermenêutico) em um saber prático, permaneceria um fenômeno apenas curioso, caso não pudéssemos explicar e fundamentar esta circunstância como transcendentalmente necessária, a partir da inserção condicional do saber teórico em uma conexão universal de interesse (HABERMAS, 1987, p. 345).

Sendo assim, a hermenêutica tece uma objetividade nos seus atos

interpretativos e na maneira de entender as complexidades dos fenômenos, os

procedimentos a serem adotados e direcionados, ou seja, onde queremos chegar e

o que pretendemos alcançar ao olharmos aquele objeto, o conhecimento

autorreflexivo possibilitará um interesse emancipatório do conhecimento. Nesse

sentido, a hermenêutica assegura e provoca uma autoconcepção interssubjetiva que

pervade a atividade do agir comunicativo 57 dos indivíduos nas relações cotidianas:

A consciência hermenêutica é o resultado da autorreflexão na qual o sujeito falante percebe as suas liberdade e independências peculiares em relação a linguagem. A autorreflexão esclarece experiências que ocorrem com o sujeito falante no uso de sua competência comunicativa (HABERMAS, 2009, p. 303).

Diante desse quadro, tornar-se necessário entender os processos que formam

o sujeito enquanto tal, com suas características peculiares e complexas. A

hermenêutica tem essa função e direcionamento de interpretar as conjunturas

complexas de diferentes grupos sociais, “uma interpretação não pode atingir e

perpassar um objeto senão na proporção em que o intérprete reflete o objeto e, ao

mesmo tempo, a si mesmo, como momento de um conjunto objetivo” (HABERMAS,

1987, 191).

Com efeito, entendemos a compreensão a partir da ideia do autor de algo que

está relacionado com as experiências, com os históricos do processo comunicativo e

com a objetividade que também está relacionada ao conhecimento e toda sua

57 A compreensão hermenêutica tem de acordo com sua estrutura, o objetivo de assegurar

no seio das tradições culturais, uma autoconcepção dos indivíduos e dos grupos, susceptível de orientar a ação e o entendimento recíproco de diferentes grupos e indivíduos. Ela possibilita a forma de um consenso espontâneo e o tipo da interssubjetividade indireta; dela depende a atividade pertinente a comunicação (HABERMAS, 1987. p. 186).

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107

complexidade conceitual. Assim, o proceder interpretativo consiste em explanar uma

compreensão satisfatória na manifestação vital em certas mudanças na base das

ciências, “a compreensão só pode assumir uma função explanatória em sentido

rigoroso se a análise da significação não se entregar apenas à aplicação de uma

competência linguística aprendida, mas se deixar guiar por hipóteses teóricas”

(HABERMAS, 2009, p. 314).

Desse modo, apreender as configurações da hermenêutica é buscar um

entendimento dessas questões que estão vinculadas com a Arquivologia, sobre seus

princípios tidos como base teórico-metodológico do campo. Segundo Habermas

(1987, p.186), “as ciências hermenêuticas estão embutidas nas interações

mediatizadas pela linguagem ordinária, da mesma maneira como as ciências

empírico-analíticas estão inseridas no setor da atividade instrumental”.

Com isso, enaltecemos a afirmação de Habermas (1987) acerca das ciências

empírico-analíticas, visto que estão relacionadas com a Arquivologia nos seus

processos descritivos de classificação dos documentos a exemplo das três idades

do arquivo, da proveniência, do respeito aos fundos e da ordem original ou interna.

Logo, os métodos empírico-analíticos apreendem uma disponibilidade técnica que

procede em uma ação normativa, pragmática no seio das tradições de diferentes

grupos e indivíduos na sociedade.

O método interpretativo deve ter seu efeito no universo de qualquer campo que

se ver como “ciência”, não dá para falar de avanço de um campo sem antes

compreender o que ele quer passar. Por isso, é necessário entender a relevância da

hermenêutica, pois através dela podemos fazer nossas escolhas ao olharmos o

fenômeno, “a hermenêutica renuncia à pretensão de verdade absoluta e anuncia

nossa presença nas circunstâncias discursivas, dialógicas, comunicativas,

inaugurando uma diversidade de possibilidades interpretativas” (MEDEIROS, 2008,

p. 77).

De igual modo, a dimensão técnica e instrumental da Arquivologia, está

entrelaçada a esses procedimentos das ciências empírico-analíticas, ou seja, da

instrumentalização de um interesse técnico aproveitável, “a pesquisa empírico-

analítica é a continuação sistemática de um processo cumulativo de aprendizagem o

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qual se exerce, ao nível pré-científico, no círculo funcional do agir instrumental”

(HABERMAS, 1987, p. 212).

Nesse sentido, o modelo empírico-analítico está coadunado aos padrões de

organização do agir funcional instrumental (técnica) no cenário da Arquivologia

contemporânea. A rigor, Habermas (1987) chama-nos atenção para os interesses

técnicos que assolaram a lógica mediatizada pela ciência moderna, o interesse da

disponibilidade técnica empirista e experimentalista:

Falamos, portanto, de um interesse técnico ou prático na medida em que, através dos recursos da lógica da pesquisa, as conexões vitais da atividade instrumental e das interações mediatizadas pelos símbolos pré-molduram o sentido da validade de enunciados possíveis de tal forma que estes, enquanto representam conhecimentos, não possuem outra função se não aquela que lhes convêm em tais contextos vitais; serem aplicáveis tecnicamente ou serem praticamente eficazes (HABERMAS, 1987, p. 217, grifo nosso).

Habermas (1987) aponta o interesse técnico e suas aplicações no universo dos

sistemas sociais, ou seja, seus elementos constitutivos que são estrategicamente

produtos de uma ação intencionada e arraigada de sentidos, validades,

exaustividades e enunciados, “o interesse técnico do conhecimento define o quadro

das ciências empírico-analíticas” (HABERMAS, 1987, p. 188).

O agir funcional instrumental é caracterizado por questões que pervadem as

forças produtivas, como a construção de máquinas que exerciam a condição de

controle e subvertiam-se em um assaz emblemático na relação do círculo funcional

da atividade instrumental:

O conceito de razão técnica é talvez também em si mesmo ideologia. Não só a sua aplicação, mas, já a própria técnica é dominação metódica, científica, calculada e calculante (sobre a natureza e sobre o homem). A técnica é, em cada caso, um projeto histórico-social; nele se projeta o que uma sociedade e os interesses nela dominantes pensam fazer com os homens e com as coisas (HABERMAS, 2009, p. 46-47).

Como vimos anteriormente, a Arquivologia foi influenciada por correntes que

projetavam uma “dominação” estruturante nos seus princípios e fundamentos.

Ocorria um interesse dominante no qual os “arquivos serviam” para atender as

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demandas imediatas das instituições, “as instituições encontram-se em uma

conexão funcional, se é que elas são demarcáveis como um sistema (com valores

de controle e condições internas), em relações às condições externas do meio”

(HABERMAS, 2009, p. 126). Assim, notamos que a racionalização mede-se por um

sistema que se legitima nas forças produtivas do operacionalismo tecnocrata.

A reflexão exigida tem que ir além da produção de saber técnico e da clarificação hermenêutica das tradições; estende-se à introdução de meios técnicos nas situações históricas, cujas condições objetivas (potencial, instituições, interesses) se interpretam, respectivamente, no enquadramento de uma autocompreensão determinada pela tradição (HABERMAS, 2009, p. 96-97, grifo nosso).

Dessa maneira, a produção do saber técnico está imersa e coadunada nas

especificidades do saber arquivístico. Para Habermas (2009, p. 101), a técnica é: “a

disposição cientificamente racionalizada sobre processos objetivados; referimo-nos

assim ao sistema em que a investigação e a técnica se encontram com a economia

e a administração e são por elas retro-alimentadas”. Ademais, o processo da

produção do saber tecnicamente aproveitável se manufatura em uma troca de

valores sobre um controle das forças produtivas, “um tal saber reflexivo, que se

sintetiza na consciência hermenêutica, distingue-se evidentemente do saber-fazer

que caracteriza a compreensão e o próprio discurso disciplinado” (HABERMAS,

2009, p. 302).

Segundo Habermas (1987), a técnica servia para dispensar o sujeito de suas

próprias interpretações de interssubjetividade, porque era necessário explicar

narrativamente as dimensões de autocompreensão desse sujeito:

A interpretação urgente que se estende até a inserção de meios técnicos no mundo da vida social precisa realizar as duas coisas ao mesmo tempo: ela precisa analisar as condições objetivas de uma situação, as, técnicas disponíveis e factíveis, assim como as instituições existentes e os interesses efetivos, e, ao mesmo tempo, interpretá-los no âmbito de uma autocompreensão de grupo sociais determinada pela tradição. (HABERMAS, 2009, p. 37).

Por conseguinte, é necessário compreender que a “cientificação da técnica”

acarreta incertezas para o contexto da Arquivologia, porque os procedimentos

operatórios instrumentais definiram todo o “universo teórico” da área. Assim, torna-

se assaz que os teóricos na Arquivologia comecem a (re) pensar o campo para uma

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110

ação autofundamentada em metodologias teóricas mais sólidas e que se distanciem

das cosmovisões tecnocratas/administrativas que encontramos na realidade da

Arquivologia.

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111

6 TÉCNICA OU CIÊNCIA? A CONFIGURAÇÃO AXIOMÁTICA NA ARQUIVOLOGIA

Por um lado, há os que continuam a ver a Arquivística essencialmente confinada à problemática dos arquivos históricos, considerando o records management como uma área distinta; por outro, há os que, invocando a “era da informação”, se afastam dos princípios estruturantes da disciplina e vêem a Arquivística como um corpo de doutrinação empírica (ou somatório de técnicas), cujo único objectivo é responder pragmaticamente às solicitações informativas da sociedade; finalmente, ainda, surgem os defensores de uma nova corrente que encontra na informação arquivística uma individualidade própria, articulada com um modelo teórico preciso – é a defesa da Arquivística como Ciência da Informação. (SILVA et al. 1999, p. 156).

A Arquivologia de um modo geral necessita de discussões acerca de seu

universo transcendental, de seu objeto, de sua metodologia e de sua “identidade”.

Ao longo do tempo, o campo do saber arquivístico sempre foi tido como coadjuvante

em um processo que o condicionou e o marcou com o adjetivo de “auxiliar”, desse

modo nunca apareceu de forma autônoma e independente. Diante disso, discutir

esse “vazio” epistemológico da Arquivologia, é acima de tudo, provocar a realidade

da área, principalmente por suas carências como campo do conhecimento

autônomo, e com forte indício do empirismo tradicional, que foi marcado pelo viés do

funcionalismo/pragmatismo no processo de historicidade.

Em meio a isso nos capítulos anteriores vimos o princípio da proveniência e o

da ordem interna ou original tidos como o arcabouço teórico da Arquivologia.

Todavia, o procedimento adotado através da técnica interna de organização dos

documentos ganhava cada vez mais instrumentos nessa elaboração organizativa.

De todo modo, é pertinente entendermos a racionalidade técnica58.

Em suma Brennand (1999, p. 78).

A racionalidade técnica sobrepô-se à ordem política, procurando neutralizar o processo de inovação de qualquer ingerência de caráter ideológico. Essa é uma posição obviamente ilusória, dado que a técnica não é aplicada no vazio, mais num determinado contexto histórico-econômico-político e no contexto da atividade humana,

58 Quando referimos à técnica estamos relacionando com os procedimentos adotados como

critério funcionalista de organização interna nos arquivos, ou seja, o do agir funcional instrumental.

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logo, sujeita a reformulações e a leitura subjetiva. A pretensa neutralidade técnica busca camuflar, pela racionalidade das decisões, o fortalecimento de estruturas de poder e subsidiar o caráter dialético da participação social pela decisão de poucos. A ingerência externa exacerbada assume a forma de um imperialismo cultural que busca moldar, a cultura aos anseios da internacionalização cultural e da indústria cultural.

A autora de forma articulada contextualiza os procedimentos técnicos a partir

do contexto histórico, econômico e político. Dessa forma, essa tríade encaixa-se

perfeitamente na realidade da Arquivologia no processo de organização documental

no espaço arquivo. As influências tecnicistas de organização documental, como

arranjo, descrição, classificação, instrumentos de pesquisa, dentre outros,

condicionaram o fazer técnico dentro da realidade dos arquivos. Para Medeiros

(2008, p. 93), “Habermas reconhece a técnica como produto e a ciência como

processo ideológico da racionalidade técnica que, por sua vez, manipula o

conhecimento através de interesses que servem aos fins de quem controla a própria

técnica”.

Todavia, a Arquivologia mergulha em princípios e fundamentos que se voltam

para a prática do saber-fazer da ordenação documental através de vários

instrumentos de organização.

Os primeiros documentos escritos surgiram não com a finalidade, posteriormente, se fazer com eles a história, mas com objetivos jurídicos, funcionais e administrativos, documentos, que o tempo tornaria históricos. O desenvolvimento da vida econômica e social, por sua vez, também originou os documentos necessários às transações, e tudo isso veio a constituir fontes documentárias custodiadas pelos arquivos. Estes são, assim, desde a Antiguidade, “fonte direta, fundamental e indiscutível, à qual todo historiador deve recorrer”. Os arquivos permanentes devem, pois, estar munidos de um retrato credível de seu acervo, o que é conseguido através dos respectivos meios de busca (BELLOTTO, 2006, p. 175, grifo nosso).

Bellotto (2006) aponta-nos algo que está diretamente relacionado com as

práticas operacionalizadoras nos arquivos, que foi o funcionalismo, através de vários

instrumentos, como a descrição documental, o arranjo, a classificação, e os métodos

de arquivamento que são veementemente tecnicistas. Segundo Bellotto (2006, p.

180) “o processo da descrição consiste na elaboração de instrumentos de pesquisa

que possibilitem a identificação, o rastreamento, a localização e a utilização de

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dados”. Dessa forma, os meios de organização de documentos através dos modelos

organizativos tornaram a Arquivologia atada aos seus princípios e às instituições.

Nesse sentido, nas entrelinhas da Arquivologia percebemos que os procedimentos

técnicos condicionados por vários motivos que aqui já foram debatidos, deixam essa

“identidade” em uma situação complicada.

A rigor, os processos históricos relacionados à Arquivologia remetem a essa

“identidade”, e a uma possível soberania que esbarra nas suas próprias

construções, marcada por uma perversa condição de “auxílio” a diferentes

segmentos e áreas do conhecimento. Então, quando falamos em técnica na

Arquivologia remetemos aos procedimentos adotados na organização dos

documentos nos arquivos.

A técnica possui algumas características que a diferem da ciência. A técnica utiliza o conhecimento científico para planejar suas ações. A diferença é que o objetivo da pesquisa científica está destinada a conhecer e explicar algumas questões, enquanto a técnica utiliza o conhecimento científico, bem como outros tipos de conhecimento para atuar em uma situação prática de algum grupo social. (CARVALHO, 2011, p. 46).

Nesse sentido, percebemos que na Arquivologia alguns procedimentos

tecnicistas, eram tidos como respaldados em cientificidade, onde a “razão prática”

traria autonomia. Então, pensamos que a técnica, na Arquivologia, não faz da área

um campo com características científicas de forma independente, por vários motivos

que aqui já foram discutidos.

O pesquisador que trabalha com a ciência em sim pode formular e reformular suas teorias e abordagens de pesquisa, de acordo com as suas necessidades subjetivas, enquanto a técnica precisa primar pelo problema imediato de uma determinada realidade (objeto) a fim de estruturar as bases para desenvolver suas aç ões (CARVALHO, 2011 p. 46, grifo nosso).

Por conseguinte, através dessa dicotomia ciência/técnica, visualizamos que a

Arquivologia e os arquivistas necessitam dessa discussão reflexiva, para assim

desenvolver suas ações e trilhar uma concepção teórica de fato.

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6.1 O esforço da abordagem europeia: a perspectiva sistêmica dos arquivos

A ideia de sistema em arquivos, através dos processos informacionais, é

colocada de forma profícua por Silva et al (2009), visto que a dimensão de arquivo

não se resume apenas numa mera soma de fundos articulados entre si.

A figura mostra-nos os processos informacionais e as mudanças de paradigma

na Arquivologia. Diante disso, Silva et al (2009) fazem um panorama acerca dessa

realidade ao longo do processo histórico.

Figura 6: A evolução informacional ao longo da história

Fonte : Silva et al. (2009)

Para Silva et al. (2009, p.209), “o arquivo é um sistema de informação e sendo-

o, oferece-se como realidade concreta à construção de um conhecimento específico.

Por outras palavras, instaura-se como objeto cognoscível”. O autor de forma

específica contextualiza que o arquivo pode configurar-se como um sistema

interligado em sua realidade.

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Nesse sentido, o arquivo, antes da Revolução Francesa, tinha sua

caracterização clássica, possuindo forte ligação com os meios institucionais e

funcionais, e com o documento em si. Na fase sincrética definida pelo autor

percebemos alguns vínculos que ainda estão presentes no cotidiano da Arquivologia

como o vínculo com a História.

Já no século XIX como exposto anteriormente, a Arquivologia era influenciada

por vários movimentos ocorridos no processo histórico, como o positivismo, o

historicismo, as revoluções industriais, políticas e sociais. No final do século XIX e

início do XX, surge a fase técnica custodial, principalmente pelas formas de

organização dos documentos, através dos arquivos históricos e administrativos,

ocorrendo uma reformulação de seus princípios como o fundo que era o grande

fundamento teórico da área.

No transcorrer do século XX a sociedade mundial sofre várias e densas

transformações, em diferentes segmentos sociais, em consequência do processo de

globalização e de industrialização ou da chamada “sociedade da informação”. Em

meio a essas mudanças de uma Arquivologia clássica, coadunada ao documento

em um sentido tradicional, há uma fase pós-custodial que aparecerá com o teor da

“informação arquivística” instigado pela tecnologia:

A partir dos anos 80, a nova revolução tecnológica e social, ilustrada pela vertiginosa evolução em curso, sobretudo, no domínio do audiovisual e da telemática forçou a emergência de uma situação transitória, anunciadora de um novo ciclo, concretamente para as disciplinas, como a Arquivística, relacionados com o fenômeno social da informação (SILVA et al., 2009, p. 208).

Com isso, Silva et al. (2009) questionam-nos acerca de um método que seria

possível através de um sistema de arquivo, desvinculado daqueles traços dos

arquivos institucionais, administrativos e históricos.

A arquivística é uma Ciência da Informação social que estuda o arquivo enquanto sistema (semi-)fechado, não através de um dispositivo metodológico fragmentário virado só para a componente funcional/serviço, isto é, transferência e recuperação da informação, através de um dispositivo coeso, retrospectivo e prospectivo, capaz de problematizar em torno de leis formais ou princípios gerais, a atividade humana e social implicada no processo informacional arquivístico (SILVA et al., 2009, p. 211).

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Silva et al. (2009) problematizam que o arquivo deve ser pensado como um

sistema informacional, através da ruptura funcionalista com a realidade interna de

organização dos documentos, além disso, através de ampliação sistêmica o objeto

cognoscível será alargado. Assim sendo, para esses autores, o arquivo deve ser

pensado de forma mais ampla, não reduzida a uma mera soma de fundo, de

proveniência ou organicidade instrumental:

O arquivo não é uma mera soma de fundo (conjunto orgânico de documentos [...], mas, serviço (instituição ou serviço responsável [...], soma essa, aliás, negada pela simples observação empírica: as partes assim somadas acabam, paradoxalmente, por constituir uma perspectiva quase funcionalista, em que a componente serviço exclui, na prática, a componente fundo (orgânica). Se o arquivo é uma mera soma, pode e deve ser uma unidade integral e aberta aos contextos dinâmicos e históricos que a substancializam. Entra, assim, repleta de oportunidade a noção sistema, ajustada ao fenômeno da informação social e definida, genericamente, como o conjunto de elementos identificáveis, interdependentes por um feixe de relações, e que se perfilam dentro de uma fronteira (SILVA et al., 2009, p. 213, grifo nosso).

Com efeito, é necessário que o arquivo, em sua realidade interna, distancie-se

cada vez mais da forma empírica, ou seja, da prática do saber-fazer através dos

princípios de organização documental. Silva et al (2009) ao trazerem a realidade do

sistema, refletem que a Arquivologia teria sua “autonomia metodológica” a partir

dessa vertente, pois abandonaria o “vício” da organização administrativa

funcionalista que através do sistema de informação começaria a incorporar um perfil

científico.

Entendemos que enquanto o arquivo estiver condicionado ao processo

institucional de serviço e uso, estará sujeito às demandas administrativas. Já na

realidade defendida por Silva et al. (2009), o arquivo deve ter essa visão unilateral

entre as partes, pois o processo de informação teria uma maior fluidez caracterizada

principalmente pelo processo do sistema informacional.

Nessa articulação de sistema, a informação arquivística teria mais mobilidade e

diálogo, quebraria, então, os processos operacionalizadores de recuperação da

informação pragmática na realidade do arquivo. Além disso, Silva et al (2009) são

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enfáticos ao afirmarem que o arquivo, como sistema (semi) fechado de informação,

assume duas configurações precisas:

Unicelular é todo o sistema que assenta numa estrutura organizacional de reduzida dimensão, gerada por uma entidade individual ou coletiva, sem divisões setoriais para assumir as respectivas exigências administrativas. Note-se que este tipo de sistema é permeável a uma forte pressão integradora, que leva à constituição de sistemas patrimoniais complexos, onde a informação arquivo se interliga com a informação biblioteconômica e com a museológica. Pluricelular é todo o sistema que assenta uma média ou grande estrutura organizacional, dividida em dois ou mais setores funcionais, podendo mesmo atingir uma acentuada complexidade. No caso de algumas entidades industriais, financeiras e governamentais surgem subsistemas dotados de certa autonomia orgânico-funcional, com reflexos no modo prático de gestão da informação. Note-se, contudo, que se podem, também, formar subsistemas, tendo por base estruturas unicelulares é o caso das pessoas e de certas famílias (SILVA et al., 2009, 214-215, grifo nosso).

Nessa dinâmica representada pelo sistema, o arquivo iria desempenhar

algumas funções, primeiro diferenciando-se das formalidades do arquivo clássico

custodiado e que tem uma finalidade bem determinada na realidade do arquivo.

Segundo, poderia ser pensado em metodologias no trajeto da Arquivologia e a sua

possível natureza científica:

Existem dois fatores que contextualizam e definem a formação dos sistemas de arquivo: a estrutura orgânica e a funcionalidade do serviço. Através da conjugação das diversas mobilidades de estrutura e de serviço poderão originar-se quatro tipos fundamentais de arquivo. (SILVA et al., 2009, p. 218).

Desse modo, ilustramos na figura uma concepção dinâmica do método

quadiprolar na Arquivologia, na qual essa ideia poderia ser utilizada para pensarmos

na condensação e formulação de uma dinamicidade teórica na Arquivologia através

da ligação morfológica, uma vez que esse conceito inaugura a denominada fase

pós-custodial e daria um passo aos aspectos de cientificidade na Arquivologia, ou

seja, com teorias e metodologias bem alinhavadas.

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Figura 7 : A dinamicidade quadripolar na Arquivologia

Fonte: Construção do autor com a utilização do software Cmaptools e com base em Silva et

al. (2009).

Percebemos que os autores estão chamando atenção para essa formação do

sistema de arquivo e do processo informacional que são inerentes à Arquivologia

através da magnitude do esboço quadripolar59, pois a representatividade teórica da

Arquivologia necessita dessa aplicação, “sistema de informação é uma entidade

complexa, organizada que capta, armazena, processa, fornece, usa e distribui

informação” (ROBREDO, 2003, p.110). Nessa linha de pensamento, Silva et al.

59 Para Robredo (2003, p. 136-137) “O método arquivístico é afirmado, desenvolvido,

consolidado e aperfeiçoado pela dinâmica de uma investigação quadripolar que se opera e se repete continuamente no respectivo campo do conhecimento”. O método quadripolar inclui quatro pólos de análise: o da forma (morfológico), o da abordagem operacional (técnico), o dos princípios (teóricos) e o da problematização científica (epistemológico).

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(2009) lançam a ideia de método arquivístico que estaria diretamente relacionado

com a investigação, em que esse processo indiciário passaria por quatro pólos de

análises, aos quais podemos comungar como um passo importante para a

configuração de um sentido científico na arquivística:

No pólo epistemológico , instância superior imbricada no aparato teórico e institucional, a comunidade científica dos arquivísticas, as suas escolas, institutos, locais de trabalho, com seus referentes políticos, ideológicos e culturais. As crenças e os valores partilhados por um grupo de investigadores, dos paradigmas e dos critérios de cientificidade, objetividade, fidelidade e validade que norteiam o processo de investigação. Pólo teórico manifesta-se a racionalidade predominante do sujeito que conhece o objeto. Neste pólo à investigação arquivística, emerge, como a racionalidade indutiva a luz do paradigma de cientificidade. Pólo técnico o investigador toma contato, por via instrumental com a realidade objetivada. No domínio da arquivística descritiva, desenvolvida ao longo deste século, acumularam-se procedimentos técnicos canalizados para a representação formal da documentação arquivística, dita histórica. Pólo morfológico aqui assume por inteiro a análise dos dados recolhidos e se parte não apenas para a configuração do objeto científico, mas também para a exposição de todo o processo que permitiu a sua construção, relativamente à função comunicação (SILVA et al., 2009, p 221-24).

A abordagem europeia de sistema teve aqui um papel crucial, principalmente

através da contribuição de Silva et al. (2009) que tecem a respeito dessa

dinamização informacional que a Arquivologia poderia desempenhar. No entanto,

para que isso aconteça de fato, a Arquivologia tem que se desprender dos formatos

descritivos de organização e da dicotomia serviço/uso:

Um sistema é um todo integrado cujas propriedades não podem ser reduzidas às propriedades das partes, e as propriedades sistêmicas são destruídas quando o sistema é dissecado. Entretanto, as características de todo tendem a se manter, mesmo que haja substituição de membros individuais. Os componentes não são insubstituíveis. De acordo com essa noção de todo integrado, o “comportamento de todo é mais complexo do que a soma dos comportamentos das partes”, de modo que “os acontecimentos parecem implicar mais que unicamente as decisões e ações individuais”. As unidades individuais ou membros do sistema existem em relações e o sistema impõe coerções sobre o comportamento das partes: os graus de liberdade para o comportamento de cada elemento são restringidos pelo fato de ele integrar um sistema. Assim, um elemento não exibe todas as suas características em todos os sistemas de que possa fazer parte e, então, nesse sentido,

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costuma-se dizer que o todo é menos do que a soma d as partes (VASCONCELLOS, 2002, p. 200, grifo nosso).

Para Silva et al. (2009, p. 225) “à arquivística no seu ciclo paradigmático, a

possibilidade de desenvolver uma dinâmica de investigação quadripolar como, por

exemplo, a oposição quantitativo/qualitativo ou empirismo/cienticismo”. Os autores

compreendem que a Arquivologia começará a ter um constructo teórico quando

articular essa ação quadripolar representada por esses quatro polos em uma

circularidade interpretativa, ou seja, é necessário questionar o saber-fazer e partir

para autofundamentação exegética do conhecer.

Por conseguinte, fazer tais discussões acerca desse esforço é, sobretudo,

mostrar que estão surgindo novas possibilidades de se pensar a Arquivologia

através de sistema de informação arquivística que poderá ultrapassar as barreiras

de funcionalidades dos arquivos, porém, compreendemos que é necessário a

“autorreflexão” epistemológica, pois a abordagem sistêmica nos arquivos não traz

em si um componente autocompreensivo enquanto tal.

6.2 Os laços do pensamento funcional sob a formação pragmática

O funcionalismo desempenhou grande influência na Arquivologia, uma vez que

se aproxima do positivismo, ou seja, da realidade interna dos arquivos, de seus

princípios, métodos e das relações com o documento. O laço do funcionalismo fica

claro na Arquivologia através das instituições, e das estruturas burocráticas nas

fases de criação e circulação documental, bem como na criação de leis de arquivo,

como, por exemplo, no Brasil, a 8.159 de 199160.

Nesse sentido, o funcionalismo levou a Arquivologia a um “ritual” muito

complexo, que é a aproximação com os meios institucionalizadores, afetando a

organização documental e os próprios fundamentos arquivísticos através de seus

princípios, criados a partir de relações funcionais diretas com a burocracia

administrativa. Então, a função básica de organização de documentos interessa

diretamente às hierarquias administrativas.

60 Esta lei é muito comentada no cenário da Arquivologia brasileira. A lei dispõe sobre a

política Nacional de Arquivos públicos e privados.

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Dessa maneira, a discussão sobre o funcionalismo, relacionando-o diretamente

com a Arquivologia, e sua relação com as partes administrativas, recebeu influência

direta do positivismo de uma “razão prática” muito acentuada.

Essa “razão prática” ganha força a partir dos meios de organização e

ordenação dos documentos, surgindo diversas formas de expressão da “razão

prática”, principalmente pelo sistema ou método de arquivamento, caracterizando

ainda mais essa simbiose pragmática.

Nesse aspecto, esses métodos de arquivamento são o exemplo claro dos

meios funcionais na realidade do arquivo. Então, os laços funcionais e pragmáticos

ainda deixados pela herança positivista se fazem presentes na realidade dos

arquivos nacionais ou internacionais, de modo os que países desempenham

maneiras e meios de organização documental com especificidades, porém, essa

funcionalidade parece que se impregna e transborda as barreiras de territorialidade.

Nessa discussão funcionalista na realidade da Arquivologia e posteriormente

dos arquivos, pontuamos que esses mesmos espaços estão ainda muito presos a

uma hierarquia administrativa, seja ela pública ou privada, através da qual a “razão

prática” e os tipos de arquivamento vieram de alguma forma ser o fio condutor entre

esses dois extremos, colocando ainda mais a organização documental nos arquivos

atrelada aos meios tecnicistas e empiristas.

Na literatura da Arquivologia brasileira, esses tipos de arquivamentos surgem

como facilitadores à vida dos profissionais da Arquivologia indissociáveis à gestão

documental acarretando o funcionalismo.

A tarefa de classificar documentos para um arquivo exige do classificador conhecimentos não só da administração a que serve, como da natureza dos documentos. Cada ramo de atividade exige um método diferente, adequado às suas finalidades. O método de arquivamento é determinado pela natureza dos documentos a serem arquivados e pela estrutura da entidade (PAES, 2007, p. 60-61).

A autora define as etapas e os meios de organização dos documentos dentro

das instituições, através de padrões de organização que para nós estão

relacionados aos meios instrumentais e operacionais, colocando o laço funcional dos

arquivos a uma demanda de operações totalmente práticas.

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É desse modo que as amarras pragmáticas se fazem presentes na realidade

dos arquivistas no Brasil, primeiro por sua formação, cujos os conteúdos curriculares

são desenvolvidos a partir de uma ligação funcional e prática. É necessário, pois,

que essa realidade comece a mudar, e para que isso aconteça os arquivos precisam

se desprender dessa herança positivista/funcionalista tornando-se pertinente que os

próprios arquivistas questionem e problematizem a natureza de sua profissão.

Portanto, os meios funcionais nos arquivos são representados por uma

natureza técnica que se correlaciona à Arquivologia através de princípios e

fundamentos que têm vertentes práticas, um saber-fazer advindo da lógica do

controle estabelecido pelas forças produtivas, pelos benefícios e pela funcionalidade

muito mais administrativa (razão do agir funcional instrumental) do que

epistemologicamente arquivística, no sentido de constituição de sua autonomia

científica.

6.3 A negação da autoimagem: os estilhaços da “ciência arquivística”

A Arquivologia e os arquivos assumiram um papel muito complexo no processo

histórico, e isso se deu por vários fatores: a) primeiro por essa raiz administrativa

que perverteu e condicionou seus próprios fundamentos e princípios a uma forma

empírica de organização documental, logo, ocorrendo uma “sujeição” acentuada por

parte das instituições, principalmente a partir das relações de poder (possuidores

dos arquivos, dos documentos, “das verdades”); b) Segundo, essa negação da

autoimagem acontece porque ainda faltam na Arquivologia metodologias e objetivos

claros, pois nos parece que as formas custodiadas de organização dos arquivos

estipularam processos descritivos dotados de práticas, por meio de uma

circularidade nos moldes de arquivamento de instâncias lineares que estão

imbricadas no processo do saber-fazer e das praticidades objetivadas.

Esses estilhaços pré-estabelecidos ocorrem por diferentes condições, um deles

tem sua grande contribuição através dos próprios profissionais da Arquivologia, que

são formatados pelo saber-fazer, condicionados a um modelo prático e técnico. É

inegável, pois que a Arquivologia está vinculada a padrões que não vão além do

modelo “imediatista” e pragmatista.

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“A ciência arquivística” existe? Entendemos ser complexo afirmarmos que sim,

pois, há uma carência, não de princípios ou fundamentos, mas de axiomas (teorias

estruturadas) que consigam fundar um campo do conhecimento independente no

cenário da rigorosidade do campo científico.

Esses fragmentos precisam ser pensados e debatidos, de forma que seja

apontado um caminho que faça a Arquivologia trilhar o rumo da alta reflexão, da

emancipação e autofundamentação. Ora, essa negação se dá principalmente pela

formação técnica que o arquivista tem, tornando-se necessário despertar o

arquivista para um perfil indiciário, investigativo e reflexivo. Trazendo esses

estilhaços para a realidade da Arquivologia brasileira, pensamos que leis foram

criadas ao longo do tempo, como um sustentáculo inviolável da aplicação

prático/funcional do saber arquivístico. No entanto, é de se pensar que essas leis

ajudaram a estilhaçar ainda mais a Arquivologia, pelas formas funcionalistas e

positivistas de sua criação. É necessário que os arquivistas reflitam não apenas as

estruturas de imutabilidade e de veracidade das leis, mas, também sobre o jogo de

interesse do Estado que levou à criação dessas estruturas na Arquivologia em seu

“modelo prático” e funcional/pragmático do cotidiano administrativo das instituições.

Dessa forma, entendemos ser preciso ir além da dicotomia do serviço/uso e

sua aplicabilidade no cotidiano, porque a literatura da Arquivologia necessita de mais

discussões no seu entremeio, de forma que não venha apenas ensinar as

praticidades do saber-fazer, dos “modelos práticos” de organização documental;

para Habermas (2009, p. 135), “imperativos técnicos entram em cena na posição

lógica, assumida pelas máximas hipotéticas nas teorias do agir estratégico”. Nesse

sentido, o ato de compreensão na Arquivologia é retraduzido por esse canal

objetivado que é marcado por uma afeição elementar no interior de funcionalidade

da Arquivologia. Com isso, a atividade exegética da pesquisa pode ser ilustrada de

acordo com a figura.

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Figura 8: A relação hermenêutica da pesquisa

Fonte : Construção do autor com a utilização do software Cmaptools.

Através da figura, percebemos que há uma necessidade de discutir na

literatura os formatos e as estruturas mais complexas da Arquivologia. Sendo assim,

enquanto ela através da organização interna nos arquivos for entendida apenas

como soma de fundos, será difícil fazer uma reconstrução de suas bases teórico-

metodológicas, haja vista que sua própria autoimagem foi negada ao longo do

processo histórico.

Nessa perspectiva, entendemos que a Arquivologia está “sufocada” por um

canal estreito que determina os moldes de organização a partir daquela instituição

que gera o documento, ou seja, quem administra. A priori, devemos pensar nos

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fundamentos tidos como “verdade”. Desta feita, é necessário uma (re) construção

epistemológica, uma (re) formulação de seu status.

A autoimagem da Arquivologia é negada, principalmente por um passado

perverso, que deixou marcas profundas tanto na realidade do arquivo (lócus), como

na Arquivologia. Assim, torna-se crucial que os profissionais arquivistas

contemporâneos reconstruam os estilhaços deixados pelo agir funcional instrumental

(positivista, prática do saber-fazer, histórico-hermenêutica e empirista). Desse modo,

para que isso aconteça realmente esse profissional deve incorporar esse perfil de

pesquisador, de construtor de saberes, e não apenas ficar “acorrentado” a uma

hierarquia administrativa.

O caminho para (re)construir a “ciência arquivística” de seus próprios estilhaços

é árduo, porque as estruturas já estão edificadas e a autoimagem permanece

negada por questões socioeconômicas e culturais. A formação continuada através

de conteúdos curriculares dos cursos de Arquivologia no Brasil deve ser (re)pensada

e não apenas adequar-se às novas tendências e modelos advindos das tecnologias.

Isso implica dizer que a (re)formulação deve tratar do profissional como um indiciário

que questiona, reivindica e que necessita se desprender da operacionalização

contínua e uniforme. Por conseguinte, torna-se fundamental analisar os ditos, as

revelações auferidas na literatura da área de uma genealogia discursiva que é

marcada por uma suposta cientificidade.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sujeito também precisa poder contar a sua própria história; pois o estado final de um processo de formação não é alcançado antes que o sujeito só lembre dos caminhos de identificações e alienações, nos quais ele se constituiu. Em um processo de formação, nós só aprendemos sobre o mundo aquilo que experimentamos ao mesmo tempo em nós mesmos como sujeitos que aprende m (HABERMAS, 2009, p. 283, grifo nosso).

Ao longo dessa pesquisa tentamos compreender a constituição de um possível

campo científico na Arquivologia, principalmente a partir da contribuição da Ciência

da Informação, acompanhando as principais discussões acerca desse pensamento,

suas diretrizes e desenvolvimento, buscando entender a partir dos princípios e

métodos da Arquivologia a sua possível (não) emancipação como saber autônomo,

“a Arquivologia não conseguiu desenvolver, ao longo dos anos, um corpo de

conhecimentos propriamente científico. O conhecimento produzido no âmbito da

Arquivologia era marcadamente tecnicista” (ARAÚJO, 2011, p. 8).

Para um melhor entendimento desses fenômenos se tornou imprescindível a

utilização das interpretações indiciárias e hermenêuticas, cujas reflexões fez-nos

pensar que um dos principais problemas da Arquivologia se relaciona aos moldes

tecnicistas e de respaldo positivista (funcional/pragmático) e hipercontrolado pelos

interesses de uma sociedade altamente administrativa:

A teoria arquivística evoluiu através de amplas fases da história social e as refletiu: do positivismo europeu do século XIX ao “administrativismo” do New Deal americano e, mais recentemente, do macluhanismo centrado na mídia dos anos 1960 ao historicismo pós-moderno. Se reconhecida, essa natureza mutante da teoria arquivística será sua força, e não sua fraqueza (COOK, 1997, p. 26).

Percebemos o quanto se faz necessário trazer para o cenário acadêmico tal

problematização, uma vez que a atividade do “saber-fazer” (razão prática)

condenou, de forma muito negativa, a Arquivologia no transcurso do seu próprio

processo histórico. Com isso, não é por acaso que os arquivos são os alvos diretos

da razão instrumental, já que os aspectos de funcionalidade são bem demarcados

nesses espaços, sendo o arquivista muito mais um artífice do que um partícipe,

integrado, mas não incluído, mandado muito mais do que agente. Logo, podemos

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notar a interação do “saber-se” instrumental da Arquivologia, a partir de um saber

prático internalizado, caracterizado pelo procedimento operatório na realidade dos

arquivos, e um saber prático global que circunscreve todo esse procedimento

instrumental.

Figura 9 : O “saber-se” instrumental na Arquivologia

Fonte: Construção do autor com a utilização do software Cmaptools.

Em razão disso, estamos convencidos, de acordo com a hipótese da pesquisa,

de que a Arquivologia ainda necessita de sinais metodológicos mais claros, para

assim poder se constituir como saber emancipado e estruturado enquanto tal.

Segundo Araújo (2011), devido à aproximação com a Ciência da Informação a

Arquivologia teria alastrado seu “corpus científico”, produzindo assim,

conhecimentos que vão além da dimensão historicista e tecnicista que se impregnou

na Arquivologia no processo de historicização, “a Ciência da Informação ofereceu à

Arquivologia possibilidade de construção de conhecimentos propriamente científicos,

indo além da dimensão de produção de manuais de “como fazer” (ARAÚJO, 2011, p.

9). De todo modo, não concordamos com o autor, pois a Arquivologia, mesmo com

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essa aproximação com a Ciência da Informação, ainda está ligada a um saber-fazer

instrumental. Logo, a Arquivologia se contorna como uma área que requer mais

discussões internas, tornando essencial que se distancie das querelas

administrativas como finalidade imediata e última.

Nessas conjunturas, chegamos a apontar através dos indícios da pesquisa

que para obter esse caráter de cientificidade a Arquivologia teria que definir os seus

próprios métodos, entendendo que os arquivos não são apenas espaços a serviço

das instituições que geram documentos, mas, o arquivo também deve ser

representado e pensado como uma entidade de responsabilidade social através do

componente “informação”.

As contribuições de Habermas foram cruciais para entendermos esses

procedimentos operacionais e tecnicistas que transformaram os arquivos ao longo

da história, justamente naquilo que se torna mais emblemático: lugar dos segredos e

não da memória. Segundo Medeiros (2008, p. 215), “Habermas acredita que as

dimensões históricas e utópicas da consciência caracterizaram o próprio espírito do

tempo”.

Apontar a necessidade de uma metodologia e de um objeto é trazer a reflexão

de que a Arquivologia tem que ser mais discutida pelos próprios arquivistas,

tornando primordial uma restauração dos estilhaços que foram quebrados por

diversas influências no relacionamento com os documentos no processo de

organização dos arquivos.

Percebemos que a “construção” de uma teoria e de uma metodologia mais

contextualizada poderá trazer “saídas” para as incertezas epistemológicas em que a

Arquivologia se insere hoje, e para que isso aconteça de fato deve ocorrer mais

aproximação entre os arquivistas, através da pesquisa e dos questionamentos que

são bases essenciais em qualquer área do conhecimento. Medeiros (2008, p. 218-

219) vem tecer um pouco sobre o exposto quando aponta: “quando os agentes da

interação tornam-se competentes, do ponto de vista comunicativo, a mobilização de

suas capacidades linguísticas nem sempre se deve ao potencial da racionalidade

embutida nos discursos formais, instituídos sobre o pensar e o agir”.

Nesse sentido, a Arquivologia sofreu a influência de várias correntes como o

positivismo, o pragmatismo, o funcionalismo que, de certa maneira, chegam à

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realidade do arquivo de forma muito acentuada, impregnada ainda hoje na realidade

da Arquivologia internacional e nacional. Assim, é preciso que os arquivistas venham

discutir tais características, rompendo com as influências reducionistas que só fazem

ainda mais conferir o caráter tecnicista e funcional à Arquivologia.

É possível compreender que os procedimentos da razão técnica sobre os

arquivos, através dos princípios e fundamentos arquivísticos, condicionaram a

Arquivologia a uma ideologia do controle, ficando difícil de visualizá-la como uma

ciência independente e autônoma. Para Medeiros (2008, p. 220), “não há como a

emancipação desenvolver-se em um contexto dependente de um modo de pensar e

agir impregnado de racionalidades técnico-instrumentais”.

Em decorrência disso, as formas adotadas de organização documental nos

arquivos abarcam procedimentos técnicos, legitimados por princípios tidos como

base teórica da Arquivologia, como da proveniência e o da ordem interna ou original,

exemplos da técnica instrumentalizadora na Arquivologia. A ciência procura

entendimento e compreensão acerca dos fenômenos, primando por sinais de uma

reconstrução dos objetos investigativos.

Com isso, um ponto importante que percebemos ao longo da construção desse

trabalho é que há uma carência ainda na literatura, pois poucos autores adentram

nesse universo de cientificidade, e no caso do Brasil ainda é mais grave, pois quase

não há registro. Em razão disso, é oportuno fazer tais discussões, buscando

parâmetros como forma de esclarecer que há uma necessidade de pesquisas na

Arquivologia, possibilitando assim que vá mais além da ação operatória, adentrando

na premissa do conhecer.

Em vista disso, a Arquivologia foi atrofiada aos modelos da “razão prática” no

processo de organização de documentos. Nosso intuito, portanto, foi dimensionar a

carência epistemológica da Arquivologia em torno de uma cientificidade, apontando

seus limiares e destacando, principalmente, os aparatos tecnicistas inscritos em

suas bases.

Mesmo que a formação em Arquivologia no Brasil ainda mantenha suas

referências na pós-custodialidade, esta ainda não oferecerá o status de

cientificidade à área, haja vista que o modelo canadense (pós-custodial) se interessa

pelos aparatos da “tecnologia” e do novo na ligação com a pós-modernidade.

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Porém, é de se pensar que o mecanismo desses “pós” esbarra nas necessidades e

na falta de um objeto visível e bem formulado.

A Arquivologia vai avançando ao longo do tempo, no sentido de novos meios,

novos suportes, no entanto, as práticas descritivas ainda são as mesmas. Torna-se

primordial na Arquivologia não pensar apenas nessas custodialidades e suas

ramificações, “tradicionais” e “pós-tradicionais”, é necessário entender a dinâmica

metodológica da própria área, a definição de seu objeto, o fortalecimento do

conhecimento (epistemologia) e seus interesses intrínsecos, e assim pensarmos em

uma metodologia de pesquisa em Arquivologia que supere essa ação da funcional

do agir instrumental em seus procedimentos e adquirir uma intelecção mais voltada

para o conhecimento axiomático.

A rigor, nesse cenário que se torna desafiador na e para a Arquivologia, discutir

seu status de cientificidade é provocar que esta deve ir além de normas, princípios e

fundamentos. Devemos pensar na criação de metodologias e objetos

epistemológicos mais coesos para a arquivística. É pertinente para que isso

aconteça ir além do rol de dependência e sujeição. Então, o “enforcamento” da

Arquivologia enquanto ciência caracteriza por esses traços burocráticos e

institucionalizadores impregnados pela “razão prática” e tecnicista ancorados pelo

pragmatismo e funcionalismo do Estado.

Ademais, a chama da esperança deve sempre estar acessa para que

possamos contribuir ainda mais para o avanço da Arquivologia brasileira. Então, que

sejamos propagadores e divulgadores de um futuro para a Arquivologia, que

depende de cada um de nós. Por conseguinte, sejamos anunciadores de uma

Arquivologia aos moldes como necessitamos, que “sirva” à administração e a

sociedade, ao privado e ao público, e ao contexto acadêmico e que, sobretudo,

possa (re)configurar sua própria autoimagem e se consolidar cada vez mais

epistemologicamente e indagar-se a si mesma.

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