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Coleção Chás para a Filosofia Volume V Maçã com Canela: produtos educacionais e outros textos Organização: Maurício Castanheira Felipe Pinto Lourdes Bastos Rafael Alvarenga

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Coleção Chás para a Filosofia Volume V

Maçã com Canela:

produtos educacionais e outros textos

Organização:

Maurício CastanheiraFelipe Pinto

Lourdes BastosRafael Alvarenga

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Copyright© 2017 Maurício Castanheira (Organizador)Esta é uma obra aberta. É permitida a reprodução total ou parcial desde que os(as) autores(as) da obra ou capítulo sejam citados(as).

Título Original: Maçã com Canela − produtos educacionais e outros textos

Editor: André FigueiredoEditoração Eletrônica: Luciana Lima de AlbuquerqueImagem da Capa: Yasmin Lima

Comissão de revisão técnica:Maurício CastanheiraFelipe Gonçalves PintoRafael AlvarengaGabriel NevesWagner de Moraes Pinheiro

COLEÇÃO “CHÁS PARA A FILOSOFIA”COORDENADOR DA COLEÇÃO: MAURÍCIO CASTANHEIRA

ORGANIZADORES DO VOLUME MAÇÃ COM CANELA: Maurício CastanheiraFelipe PintoLourdes BastosRafael Alvarenga

PubLIt SOLuÇõES EdItORIAISRua Bulhões de Carvalho, 524 – casa 3Copacabana - Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22.081-001Telefone: (21) 2525-3936E-mail: [email protected]ço Eletrônico: www.publit.com.br

M113 Maçã com canela: produtos educacionais e outros textos / organização: Maurício Castanheira, Felipe Pinto, Lourdes Bastos, Rafael Alvarenga. – Rio de Janeiro : Publit, 2017. 284 p. : il. ; 25 cm. (Chás para a filosofia, v. V)

ISBN 978- 85-525-0046-9Inclui bibliografia.

1. Educação – Estudo e ensino. 2. Filosofia. I. Castanheira, Mauricio. II. Pinto, Felipe. III. Bastos, Lourdes. IV. Alvarenga, Rafael.

CDD 370CDU 37:1

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CONSELHO EdItORIAL dA COLEÇÃO “CHÁS PARA A FILOSOFIA”:

Antonio José Caulliraux Pithon (CEFET-RJ)Antonio Martinez Fandiño (UFRRJ)Edgar Lyra (PUC-Rio e CEFET-RJ)

Eduardo Gatto (CEFET-RJ)Lélio Moura Lourenço (UFJF)

Maurício Castanheira (CEFET-RJ)Míriam Carmen Maciel da Nóbrega Pacheco (CEFET-RJ)

Mírian Paura Sabrosa Zippin Grinspun (UERJ)Patrícia Maneschy (UERJ)

Rafael Mello Barbosa (CEFET-RJ)Renato Noguera (UFRRJ e CEFET-RJ)

Roberto C. Zarco (CEFET-RJ)Úrsula Maruyama (CEFET-RJ)

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Sumário

APRESENTAÇÃO DO VOLUME V - MAÇÃ COM CANELA ...........................9Comissão Organizadora

SOBRE OS AUTORES .........................................................................................21

PREFáCIO ............................................................................................................27Edgar Lyra

EXPERIÊNCIAS dIdÁtICO-FILOSÓFICAS

PENSANDO CULTURAS AMERÍNDIAS USOS E DESUSOS DO MATERIAL DIDáTICO EM UM INSTITUTO DE APLICAÇÃO .........................................31Danielle Bastos Lopes

A FILOSOFIA ESCOLAR E A IMPORTâNCIA DAS CONCEPÇõES DE FILOSOFIA NA FORMAÇÃO DOCENTE: O CASO DA “FEIRA DE FILOSOFIAS DA UFRRJ” ....................................................................................39Wanderley da Silva, Brunno Alves da Silva, Evelyn Kellen Domingos Costa e Raquel de Oliveira Teixeira Plácido

ESTÍMULOS PARA O FILOSOFAR: BREVES EXCERTOS DE TEXTOS CLáSSICOS SOMADOS À EXPERIÊNCIA ESTÉTICA EM UMA PERSPECTIVA HISTÓRICO-TEMáTICA ..........................................................52Bruno Bahia

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PESQUISADORES-REFLEXIVOS: EFEITOS POSSÍVEIS SOBRE A PRáXIS PEDAGÓGICA ..................................63Sonia Regina Mendes dos Santos, Patricia Maneschy e Diego Ferreira

MÚSICA: A CONSAGRAÇÃO DO SILÊNCIO Parte II ......................................81Eduardo A. G. Gatto

CICLOS DE LEITURAS COMO PRáTICA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE FILOSOFIA: UMA EXPERIÊNCIA DE EXTENSÃO ........98Marcelo Senna Guimarães

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ENTREVISTAS ORAIS/EM VÍDEO VIA WHATSAPP: UMA PROPOSTA DIDáTICA PARA A SALA DE AULA DE FILOSOFIA .....................................104Fábio Borges do Rosario e Talita de Oliveira

PROdutOS EduCACIONAIS

CATáLOGO DE PERSONAGENS: MATERIAL DIDáTICO PARA AULAS DE FILOSOFIA .........................................................................................................117Rafael Alvarenga

FANZINE MARX NA ATUALIDADE: UM PRODUTO DIDáTICO DE FILOSOFIA PARA O ENSINO MÉDIO ...........................................................128Leonardo Berbat de Brito

FILOSOFIA E EMANCIPAÇÃO: DE SÓCRATES À RANCIèRE. .................138Maria de Lourdes Bastos

FILOSOFIA EM REDE .......................................................................................149Thiago Jandre Garcia

ANOTAÇõES SOBRE UMA DISSERTAÇÃO: “FILOZAPEANDO – UMA EXPERIÊNCIA FILOSÓFICA DE MEDIAÇÃO À DISTâNCIA COM O USO DO APLICATIVO DE CELULAR WHATSAPP” .............................................160Miguel ângelo Castelo Gomes

ORIENTAÇõES PARA O DEBATE CURRICULAR NA EJA: UM PROCESSO POLÍTICO-PEDAGÓGICO ..............................................................................169Wesley Damasio Siqueira

MANUAL DE INSTRUÇÃO PROGRAMADA APLICADO AOS CONCEITOS DE CRISE E COMPREENSÃO EM HANNAH ARENDT ...............................181Wagner de Moraes Pinheiro

ANOTAÇõES SOBRE A GAMIFICAÇÃO DA SALA DE AULA ....................188Gabriel Bezerra Neves e Stella de Oliveira Soares

OutROS tEXtOS

A TELEOLOGIA DA NATUREZA EM KANT – PARTE 1 A INSOCIáVEL SOCIABILIDADE ...............................................................................................199Thomaz Estrella de Bettencourt

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A CRONOLOGIA DOS DIáLOGOS PLATôNICOS: UMA NOVA PERSPECTIVA ...................................................................................................211Gabriel Cornelio Moura

ZARATUSTRA E O ESQUECIMENTO – A IMPORTANTE CONQUISTA DA PLASTICIDADE E DA FLUIDEZ PARA O PENSAMENTO ...........................220Patrícia Boeira de Souza

OS CAMINHOS DA CIÊNCIA: UMA EDUCAÇÃO REFLEXIVA A SERVIÇO DE UM NOVO AGIR AMBIENTAL ................................................................227Aline Guimarães Monteiro Trigo, José Aires Trigo e Úrsula Gomes Rosa Maruyama

ÉTICA OU CAOS E CULTURAS JUVENIS ......................................................239Mirian Paura Sabrosa Zippin Grinspum

REPENSANDO DIREITOS HUMANOS A PARTIR DAS SUBJETIVAÇõES: O “TROTE” COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO ..............................244Gabriel Cerqueira Leite Martire e Natália Caroline Soares de Oliveira

TEOgONIA E “EXPRESSIONISMO ALEMÃO” – I DUE vOLTI DELLA PAURA [AS DUAS FACES DO HORROR] .......................................................256Roberto C. Zarco Câmara e Ana Zarco Câmara

LINGUAGEM, SIGNIFICADO E VERDADE: INCERTEZAS E PILARES NA PESQUISA EM ESTUDOS DA LINGUAGEM .................................................269Talita de Oliveira

SOBRE A COLEÇÃO CHáS PARA A FILOSOFIA .........................................283

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Apresentação do Volume V - Maçã com canelaComissão Organizadora1

Tinham o hábito do chá diário. Contudo não pensem que fossem britânicos. Não, eram brasileiros mesmo. Por isso bebiam chá de capim limão, de cidreira, de camomila, de hortelã. Já lhes haviam dito que os Lordes só bebiam chá de chá, uma erva indiana. Riram todos da notícia. Mas que enrijecimento frio! Entre os trópicos chá é infusão de ervas em água quente. Que, aliás, pode ser servido frio.

Chá pode ser de fruta; pode ter especiarias; pode ser de Maçã com canela como esse que agora oferecemos. No entanto vejam bem, não se apegue a manuais fast foods para avaliar se deve ou não apreciá-lo. Há quem diga que Maçã com canela emagreça, facilite a digestão, garanta o bom sono. Nós não vamos garantir nada disso. Porque es-sas páginas não vieram exclusivamente dar respostas imediatas, elas querem perguntar, inquietar e fazer rever. Pois sim, há pessoas que dizem não gostar de chá, ainda que jamais tenham experimentado algum.

Entretanto, que não se iludam os adeptos da bebida. Pois o que servimos nessas páginas não é para que eles se vistam de fraque, bengala e cartola e posem de esnobes, porque já iniciados. Maçã com canela não tem hora tampouco mordomos para receber os paletós. Estão todos convidados a provar do aroma dessas páginas que é fluido e encantador como as idéias de um artigo atrevido.

Atrevimento, inclusive, é o que o leitor encontrará nesse 5º Volume da Coleção Chás para a Filosofia: Maçã com canela, cujo tema central é: Produtos educacionais. Pois são propostas diversas envolvendo ferramentas criadas com o intuito de ligar de maneiras inovadoras estudantes, professores e conteúdos. Atrevimento ao iniciar jovens pesquisadores no terreno da publicação acadêmica; oportunizando a vitória de não ter um texto aceito e devolver à sociedade e aos contribuintes o investimento em um programa de uma instituição pública, gratuita e de qualidade.

Como não somos lordes rígidos, não usamos cartolas e às vezes não somos pontuais, pois esperamos pelo texto que chegou atrasado. Não há problema. Nós não bebemos apenas chá de chá. Experimentamos produtos diferentes e diversos. E quem sabe não seja isso o que mantenha a Coleção Chás para a Filosofia ainda produtiva, charmosa e atraente em seu V Volume, Maçã com Canela que foi dividido em três partes como notará o leitor.

1 O texto a seguir foi tecido pela comissão organizadora a partir dos resumos elaborados pelos autores dos textos publicados.

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Na primeira parte, intitulada “Experiências didático-filosóficas”, concentram-se textos que convidam para uma reflexão filosófica sobre práticas e teorias dentro e fora das salas de aula. Já a segunda parte, “Produtos educacionais”, divulga produtos edu-cacionais criados por professores pesquisadores nos cursos de Mestrado Profissional do PPFEN (Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino) ligado ao CEFET/RJ e também do Cap/UERJ (Colégio de Aplicação). Por fim, a terceira parte, “Outros Textos”, reúne trabalhos que convidam a um passeio por questões pontuais nas obras de diversos filósofos. Embora muitos dos textos deste Maçã com canela representem trabalhos inéditos de seus autores, alguns são versões revisadas, editadas ou ampliadas de seus trabalhos então autorizados para publicação nesta Coleção.

Iniciando a leitura, na primeira parte, o artigo “Pensando culturas ameríndias usos e desusos do material didático em um instituto de aplicação” a professora Danielle Bastos Lopes analisa um caso particular – a discussão do uso do material didático em um projeto sobre ensino de culturas ameríndias em um instituto de aplicação do Rio de Janeiro. As aulas concentram em sua maior proporção alunos do primeiro segmento do Ensino Fundamental e alunos bolsistas da graduação, de disciplinas distintas - Le-tras, História, Filosofia. O envolvimento com um outro tipo de material como acervo fotográfico, artefatos e peças musicais indígenas fundamentam traços particulares do uso do material didático. Neste contexto, analisamos os usos e desusos necessários aos mesmos materiais. Argumento que há todo uma política excessiva de elaboração de livros e conteúdos didáticos que deve ser revisitada por outras formas de contato e ex-perimentação. O ensino de culturas ameríndias, suas questões híbridas de migração e a fluidez dos diferentes tipos de material que podem ser utilizados no ensino das culturas indígenas estabelecem, portanto, as bases da investigação deste artigo.

Já o texto “A filosofia escolar e a importância das concepções de filosofia na for-mação docente: o caso da “Feira de filosofias da UFRRJ”” assinado por Wanderley da Silva, Brunno Alves da Silva, Evelyn Kellen Domingos Costa e Raquel de Oliveira Teixeira Plácido apresenta considerações sobre uma atividade didático-filosófica inti-tulada “Feira de filosofias”. O objetivo da atividade foi caracterizar a importância da construção de uma concepção própria de filosofia pelos licenciandos. Como desafio, foi proposto aos estudantes da graduação apresentar suas concepções de filosofia, de maneira adequada em relação à linguagem para crianças e adolescentes de uma escola pública. Os resultados foram bastante positivos, uma vez que, tanto os graduandos, quanto os discentes da escola e todos os envolvidos puderam refletir e construir suas abordagens sobre os diversos temas apresentados. Essa experiência parece ter robusteci-do a ideia da importância do docente em filosofia ter clareza da sua própria concepção filosófica para o trabalho escolar.

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Em seguida o professor Bruno Bahia apresenta o texto “Estímulos para o filosofar: breves excertos de textos clássicos somados à experiência estética em uma perspectiva histórico-temática” no qual pretende relatar neste ensaio uma experiência desenvolvida em sala de aula aplicada às turmas de terceira série do Ensino Médio, no primeiro tri-mestre letivo de 2014, quando lecionava no Colégio Pedro II, campus Realengo. Para o estudo dos problemas relacionados à estética, ao invés de indicar textos mais longos e densos, muitas vezes desinteressantes aos alunos, foram selecionados fragmentos cur-tos de textos clássicos da tradição filosófica somados às diferentes produções artísticas. As aulas foram organizadas em seções historicamente recortadas, com a finalidade de explorarmos o tema à luz de um determinado período. Este tipo de proposta se baseia nas condições do Ensino de Filosofia apresentadas por Cerletti, Favaretto, Marcondes e Navia2 como sugestões de práticas para uma maior aproximação dos alunos de En-sino Médio com a filosofia e o filosofar. A ideia experimentada buscou motivar os alunos a observarem e compreenderem como os diversos problemas sobre o tema sele-cionado (por exemplo, o belo, o gosto, o sublime...) foram tratados em alguns períodos da história, estimulando, assim, um pensamento articulado sobre aqueles conhecidos como próprios de seu tempo, tecendo um diálogo com a tradição. A abordagem combi-nada, histórico-temática e textual-imagética, se apresentou de modo bastante eficiente com resultados positivos para o grupo. Os resultados desta pesquisa foram apresentados no II Encontro ANPOF EM, em Campos do Jordão/2014.

Logo após, o trabalho “Formação de professores pesquisadores-reflexivos: efeitos possíveis sobre a práxis pedagógica”, dos professores Sonia Regina Mendes dos Santos, Patricia Maneschy e Diego Ferreira, busca relacionar conceitos fundamentais para a profissionalização docente como o reconhecimento dos saberes advindos da prática e a concepção do trabalho docente como ancorado em processos investigativos, bem como a questão da práxis pedagógica. Mostra-se que a perspectiva da investigação dos professores como profissionais reflexivos e investigadores enfrenta distorções e críticas. É possível que a prática reflexiva e a pesquisa componham o trabalho docente? Em que dimensão a prática compõe práxis? Seria pela própria investigação-reflexão-ação? Com qual propósito? Propomos ao final alguns princípios ou argumentos que podem ser reunidos em prol de uma transformação efetiva dos sentidos que se possa dar às práticas pedagógicas, o que perpassa a mobilização coletiva de docentes e a formação de professores.

O Professor Eduardo A. G. Gatto apresenta o texto “Música: a consagração do silêncio: parte II” que é parte do relatório de pesquisa de pós-doutorado em Ciência da Literatura constante da Faculdade de Letras da UFRJ e findo em 2014. Tendo sido

2 In: KOHAN, W. Filosofia: caminhos para seu ensino. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.

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publicada a primeira parte no nosso Hortelã, neste segundo momento o autor procura estabelecer pequena investigação a partir da questão da verdade, momento esse em que mais especificamente se toma por inspiração o que diz ἀληθεία, procurando, nesse em-penho, dialogar arte, pensamento e sagrado. Os caminhos desse diálogo perpassam pelo vislumbre da etimologia como mais um campo a enriquecer as discussões. A música mais especificamente se apresentará na sequência das partes III e IV a serem publicadas posteriormente. A influência e a presença do pensamento de Heidegger se mostram no modo em que nossa investigação se direciona, evidenciando-se a liberdade interpretati-va metodológica nossa maneira de tomar de empréstimo o que o pensador nos relegou. O diálogo com outros autores e com a tradição ocidental da antiguidade (de modo especial a Grécia) é explorada de modo livre, obedecendo ao chamado e a dinâmica da própria investigação. Não há neste texto, bem como nos subsequentes, intenção ou direcionamento analítico, mas sim o propósito da busca pelas questões da música, do sagrado e do pensamento desde elas mesmas.

Temos também o artigo “Ciclos de leituras como prática de formação de profes-sores de filosofia: uma experiência de extensão” no qual o professor Marcelo Senna Guimarães descreve a prática dos ciclos de leitura sobre filosofia e ensino, como uma prática extensionista voltada para a formação de professores de filosofia. Descreve o contexto de elaboração dessa atividade, suas características principais e analisa alguns de seus resultados. O objetivo é contribuir para a área de formação de professores de filosofia por meio da análise das experiências de ciclos de leitura. A metodologia de proposição do ciclo envolveu a definição do tema na forma de um problema, a seleção e leitura conjunta de textos pertinentes ao tema e a realização de diálogos orientados para a análise dos textos, a elaboração de questões e de linhas de investigação relativas ao tema geral. Alguns dos resultados obtidos, como a possibilidade de tratar de temas importantes para os professores de forma mais detida e aprofundada, os ganhos em termos de formulação teórica e de desenvolvimento de empatia que se puderam obter indicam a necessidade de atenção a algumas demandas básicas dos professores, como a própria carência de um espaço para conversar sobre suas práticas. As referências utili-zadas são: com relação à formação de professores no Brasil, artigo de Bernardete Gatti; com relação ao ensino de filosofia, os livros de Guillermo Obiols, Silvio Gallo e Lidia Maria Rodrigo; com relação às atividades de extensão, o Plano Nacional de Extensão Universitária publicado pelo FORPROEX, o Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Instituições de Educação Superior Brasileiras.

E, fechando a primeira parte do livro, contamos com o trabalho “Entrevistas orais/em vídeo via whatsapp: uma proposta didática para a sala de aula de filosofia”, de Fábio Borges do Rosario e Talita de Oliveira, que propõe uma investigação quanto a im-possibilidade

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do emprego de entrevistas orais/em vídeo compartilhadas em ambientes virtuais, em especial pelo aplicativo e mídia social whatsapp, muitas vezes sem a assinatura de seus autores, nas aulas de Filosofia no Ensino Médio. Experimenta-se fazer a transcrição, a partir de duas diferentes abordagens, do vídeo “Definição de ética”, recebido pelos pes-quisadores. O vídeo é uma parte editada de uma entrevista transmitida pelo Programa do Jô da Rede Globo de Televisão, sendo entrevistador Jô Soares e entrevistado o filósofo Mario Sérgio Cortella. O trabalho propõe uma reflexão sobre o uso desse tipo de ma-terial na aula de Filosofia, elegendo Goffman e Derrida como principais interlocutores.

A segunda parte do livro começa com o texto “Catálogo de personagens: material didático para aulas de filosofia” assinado pelo professor Rafael Alvarenga que apresenta um catálogo de personagens cuja produção teve, como ponto de partida, uma inves-tigação envolvendo Simão Bacamarte, enquanto personagem de literatura no conto O Alienista de Machado de Assis, e o conceito de moral na filosofia de Nietzsche. Também é importante frisar que esse catálogo de personagens foi apresentado, como produto di-dático ligado a Dissertação de Mestrado Profissional defendida no PPFEN (Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino) do CEFET/RJ em 2017 intitulada: Filosofia e ensino através de personagens de literatura: um estudo de valores a partir de um catá-logo de personagens. Dissertação essa que buscou ainda responder a seguinte questão: será que Simão Bacamarte - e outros -, enquanto personagens de literatura, são filosofi-camente provocativos?

Logo após, apresentamos o ensaio “FANZINE MARX NA ATUALIDADE: um produto didático de Filosofia para o Ensino Médio” do professor Leonardo Berbat de Brito que tenciona lançar um olhar sobre o percurso por intermédio do qual se deu a confecção do fanzine Marx na atualidade. Este, a propósito, é o material didático preparado, a fim de atender a um dos requisitos básicos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia e Ensino, no CEFET/RJ. O referido produto didático se relaciona diretamente com o tema da dissertação que desenvolvemos, intitulada Uma educação transformadora à luz do conceito marxiano de práxis.

A professora Maria de Lourdes Bastos apresenta o texto “Filosofia e Emancipação: de Sócrates à Rancière.” Através do qual apresenta um produto didático elaborado para o mestrado profissional do Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN) do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ a partir da experiência vivida com professores e alunos de uma escola estadual na pe-riferia do Rio de Janeiro. Acreditando que “tudo está em tudo” (RANCIèRE, 2010), tomamos a figura de Sócrates como personagem e elaboramos uma sequência didática que visa favorecer a intervenção dos docentes. É nossa intenção que o desenvolvimento da atividade ocorra de acordo com o contexto particular onde será aplicada. Sempre

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haverá alguma coisa que o professor poderá relacionar ao problema que elegeu para provocar os alunos. Apresentamos nosso material didático como provocação e convite e desejamos que estimule e favoreça a prática da filosofia.

No texto “Filosofia em rede” o professor Thiago Jandre Garcia vem nos dizer que misturados entre o real e o virtual, entre o espaço e o ciberespaço, aí habitam os nossos alunos. Entramos em nossas salas de aula com o conhecimento em mãos, certos de que em uma aula todos aqueles ali que nos assistem sairão devidamente com os conteúdos de Filosofia aprendidos. Não duvido que aprendam ou não, aqui não posso afirmar, mas porque não fazer com eles percebam que a Filosofia está presente em todos os mo-mentos da vida deles, inclusive em Rede. O presente trabalho pretende te adicionar e convidar a curtir e compartilhar momentos que tenho vivenciado em minha pesquisa, para que na troca de postagens das Redes Sociais possamos enxergar uma nova oportu-nidade e caminho didático para o Ensino de Filosofia.

O trabalho seguinte, “Vamos filozapear” do professor Miguel ângelo Castelo Go-mes tem por objetivo apresentar parte da minha dissertação de mestrado profissional em Filosofia e Ensino, no CEFET/RJ, que foi defendida em 19/09/2016, e constitui-se como síntese de uma experiência filosófica em mediação à distância, descrita através do método de análise qualitativa e quantitativa, e que se utilizou do aplicativo de celular Whatsapp para, entre os dias 30/06/2016 e 07/07/2016, construir o grupo ‘Filozapean-do’, uma comunidade virtual de aprendizagem ativa em um contexto tecnológico que determina a atual sociedade global, especificamente na área educacional. Uma com-preensão docente da questão, por meio do método teórico-bibliográfico, tomou por referência o conceito de “Polegarzinha”, criado pelo filósofo Michel Serres ao definir a juventude contemporânea na sua relação com a tecnologia móvel, especialmente o celular, e permitiu a identificação de um novo ser e agir atuais, sugerindo a busca por uma experiência filosófica que leve mais em conta tal realidade. Assim, reafirmou-se uma perspectiva que valoriza a utilização pedagógica da tecnologia móvel, através da mediação do professor de Filosofia em interação com discentes e docentes que dialogam e debatem à distância, via aparelho de celular, conceitos como Tecnologia, Tradição, Filosofia e Edu-cação, e que provocam a busca pela construção de um conhecimento coletivo.

Por sua vez, o professor Wesley Damasio Siqueira assina o artigo “Orientações para o debate curricular na EJA: um processo político-pedagógico” no qual apresenta o pro-duto pedagógico intitulado “Caderno de Orientações para o Debate Curricular na EJA de Duas Barras” ligado à dissertação “Construção curricular da Educação de Jovens e Adultos de Duas Barras: uma análise da participação de professores e diretores” apre-sentados como requisito final para aprovação no mestrado profissional do Programa de Pós-Graduação de Ensino em Educação Básica do Instituto de Aplicação Fernan-

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do Rodrigues da Silveira, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PPGEB/CAp-UERJ. O material tem como objetivo orientar debates curriculares horizontais como forma de ampliar a democracia no cotidiano da EJA. Utilizamos como principais referências para a construção deste caderno de orientações autores como Manacorda (2010) e Freire (2013).

Com o trabalho “Manual de instrução programada aplicado aos conceitos de crise e compreensão em Hannah Arendt”, o professor Wagner de Moraes Pinheiro torna público o manual de instrução programada desenvolvido no mestrado pro-fissional do programa PPFEN para trabalhar os conceitos de crise e compreensão em Hannah Arendt..

Finalizando essa segunda parte está o artigo “Anotações sobre a gamificação da sala de aula” assinado por Gabriel Bezerra Neves e Stella de Oliveira Soares revisita os trajetos que culminaram na produção de um manual para a prática de gamificação no ensino de filosofia para o mestrado profissional do Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN) do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonse-ca – CEFET/RJ. Apesar de ser uma prática recente, a gamificação tem seus principais fundamentos cunhados em teorias acerca do papel do jogo na cultura humana, com especial destaque para o conceito de Homo Ludens elaborado por Johan Huizinga. Para tanto, exploramos os efeitos das atividades lúdicas na motivação do aprendizado dos estudantes, com a intenção de propor uma reconfiguração do modelo educacional tradicional. Por fim, apresentamos o manual de gamificação para o ensino de filosofia utilizando a Alegoria da Caverna de Platão para tratar do conceito de Realidade.

A terceira parte do livro é iniciada com o artigo “A teleologia da natureza em Kant – Parte 1 A insociável sociabilidade” do professor Thomaz Estrella de Bettencourt que desenvolve a seguinte meditação: Em Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, Kant nos propõe a tarefa de encontrar na história da espécie humana um plano oculto da natureza para o homem, isto é, uma teleologia da natureza cujo propósito seria promover o desenvolvimento máximo de suas disposições naturais. A realização de um empreendimento dessa complexidade demanda tempo e exige um fio condutor que a direcione para o seu fim. Kant argumenta que a vida do homem é demasiado curta para que ele possa desenvolver plenamente sua razão e, portanto, essa tarefa dever ficar a cargo da espécie. O problema passa a ser então como identificar o fio condutor que impulsionaria e manteria o homem no caminho correto. O problema é resolvido com a introdução da noção de insociável sociabilidade, a saber, a tendência do homem de almejar benefício pessoal em detrimento dos demais ao mesmo tempo que se vê obrigado a buscar a vida em sociedade. O antagonismo criado pela insociável sociabilidade seria o responsável por regular as relações entre homens e, de forma análoga,

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entre nações, conduzindo os Estado para a melhor ordenação de suas leis. O último obstáculo a ser ultrapassado é saída do homem da menoridade, o seu aperfeiçoamento moral. Em linhas gerais, o que faremos nesse estudo será percorrer os argumentos apre-sentados por Kant em defesa de uma teleologia da natureza para o homem. Tentaremos analisar o rigor e a coerência do ponto de vista kantiano e a sua pertinência para pen-sarmos a nossa realidade.

Já Gabriel Cornelio Moura com o ensaio “A cronologia dos diálogos platônicos: uma nova perspectiva” diz que como acontece com todos os grandes nomes da huma-nidade, a obra de Platão é alvo de intensos debates sobre as mais variadas esferas, sendo uma delas a querela acerca da cronologia de seus diálogos. Muito além de unitaristas e desenvolvimentistas, este artigo pretende examinar e criticar os modernos métodos de análise e formular uma nova perspectiva para compreender os diálogos platônicos em toda a sua grandeza.

Algumas páginas à frente nos deparamos com a professora Patrícia Boeira de Souza que escreveu o artigo “Zaratustra e o esquecimento – a importante conquista da plas-ticidade e da fluidez para o pensamento”. A autora busca mostrar que a inocência, a espontaneidade e o esquecimento ativo são elementos constitutivos do devir-criança, que Nietzsche no Zaratustra descreve como sendo a terceira metamorfose do espírito, expressão de fluididade e de vigoroso tônus fisiopsíquico. Para Nietzsche, toda a heredi-tariedade dos costumes e do sentido degeneraram, hipertrofiaram e esquadrinharam o sensualismo próprio do humano. Daí a importância de “farejar” e colocar sob suspeita os valores que vigoram; empreendendo uma investigação genealógica que estremeça as bases do absoluto, do irremovível e do até então intocado e oportunize uma eclosão de outros sentidos da história e da realidade – investimento realizado pelo filósofo alemão. Em vista disso, a autora discorre sobre a importância da resistência e da luta para com-bater a hereditariedade do dado, perscrutando valores, assim como, seguir as linhas de fuga nietzschianas e compreender a solidão como um território para a criação – a pátria de Zaratustra.

Logo após, apresenta-se o artigo “Repensando direitos humanos a partir das subje-tivações: o “trote” como instrumento de dominação” de autoria de Gabriel Cerqueira Leite Martire e Natália Caroline Soares de Oliveira cujo objetivo é contribuir com análises teóricas sobre as relações micro e macro de dominação. Para tanto, trabalhamos com o “trote” universitário e a produção de subordinações, bem como a pergunta que nos guia: como repensar direitos humanos fora das internalizações de controle sobre o sujeito? Assim, optamos por concentrar esforços na compreensão de práticas de subjeti-vação das hierarquias, a partir do que, no Brasil, se constituem os ritos de “trotes” uni-versitários. Nesse sentido, para observar, mais de perto, o jogo de sujeição entre os(as)

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nomeados(as) calouros(as) e veteranos(as), analisamos o conceito de desigualdades, que atravessam os marcadores sociais da diferença. Essas categorias específicas estabelecem a relação que pretendemos apontar na visão macro, sobre a compreensão de direitos humanos no Brasil. Para tanto, adotamos como método de pesquisa a revisão de litera-turas contemporâneas, que ajudam a entender a ideia de “trote”, e também como esse rito enreda dominantes e dominados. Por conseguinte, destacamos também alguns referenciais para problematizar a noção de direitos humanos. Visto isso, a estrutura do texto está disposta a partir dos seguintes eixos principais: a naturalização de práticas de dominação e a implicância desse contexto sobre a noção de direitos humanos no Brasil. Como resultado, aponta-se para possibilidades de construção de um olhar crítico sobre os possíveis paradoxos entre agenciamentos do “trote” e o que se espera sobre proteção dos direitos humanos, no sentido de criar mecanismos de resistências e emancipações, questionando hegemonias de poder.

O texto “Os caminhos da ciência: uma educação reflexiva a serviço de um novo agir ambiental” assinado por Aline Guimarães Monteiro Trigo, José Aires Trigo e Úrsula Gomes Rosa Maruyama vem tratar da seguinte temática: A crise ambiental agravada pela ação predatória do homem suscita profundas transformações na forma de pensar e agir. Desta forma urge a necessidade de uma educação crítica e reflexiva que ofereça oportunidades de transformação, por meio de uma mudança de comportamento rela-cionada à conservação e preservação do meio ambiente, conduzindo a novos caminhos com o apoio da articulação entre a experiência e teoria. Nesse sentido, o artigo visa discutir a relevância da Educação Ambiental como uma importante ferramenta na for-mação do indivíduo e na promoção da cidadania pela busca de uma nova racionalidade ambiental, naturalizando o conhecimento e convidando a refletir sobre as implicações de um novo agir ambiental. Para tanto se optou pelo uso da pesquisa bibliográfica, de cunho qualitativo e de caráter exploratório.

Por sua vez, a professora Mirian Paura Sabrosa Zippin Grinspum escreve o artigo “Ética ou caos e culturas juvenis” e reflete da seguinte maneira: As culturas juvenis podem ser consideradas estanques ao projeto de formação educacional? A Ética é fator de visita à formação? A resposta é quase que clara, porém na formação o que podemos detectar sobre a relação ética, formação e culturas juvenis? As observações das pesquisas sobre o cotidiano da juventude e suas manifestações vem contribuindo para pensar a formação da sociedade. Observa-se que as nuanças de comportamento e expressão provém da compreensão contextual, e sendo assim culturas juvenis são apreendidas e a formação educacional é substancial neste processo.

Já Gabriel Cerqueira Leite Martire e Natália Caroline Soares de Oliveira visam contribuir com análises teóricas sobre as relações micro e macro de dominação. Para

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tanto, trabalham com o “trote” universitário e a produção de subordinações, bem como a pergunta que os guia: como repensar direitos humanos fora das internalizações de controle sobre o sujeito? Assim, optaram por concentrar esforços na compreensão de práticas de subjetivação das hierarquias, a partir do que, no Brasil, se constituem os ritos de “trotes” universitários. Nesse sentido, para observar, mais de perto, o jogo de sujeição entre os(as) nomeados(as) calouros(as) e veteranos(as), analisaram o conceito de desigualdades, que atravessam os marcadores sociais da diferença. Essas categorias específicas estabelecem a relação que os autores pretendem apontar na visão macro, so-bre a compreensão de direitos humanos no Brasil. Para tanto, adotaram como método de pesquisa a revisão de literaturas contemporâneas, que ajudam a entender a ideia de “trote”, e também como esse rito enreda dominantes e dominados. Por conseguinte, destacaram também alguns referenciais para problematizar a noção de direitos huma-nos. Visto isso, a estrutura do texto está disposta a partir dos seguintes eixos principais: a naturalização de práticas de dominação e a implicância desse contexto sobre a noção de direitos humanos no Brasil. Como resultado, aponta-se para possibilidades de cons-trução de um olhar crítico sobre os possíveis paradoxos entre agenciamentos do “trote” e o que se espera sobre proteção dos direitos humanos, no sentido de criar mecanismos de resistências e emancipações, questionando hegemonias de poder.

O penúltimo texto Teogonia e ““Expressionismo Alemão” – I due volti della paura [As duas faces do horror]” de Roberto C. Zarco Câmara e Ana Zarco Câmara investiga como uma primeva apreensão horrorosa da existência constitui imanente percepção do Homem, bem como uma potência formadora de imagens. Para tanto ressalta as primordiais, incontornáveis e imortais imagens de horror dispostas num dos alicerces da reflexão e imaginário gregos de antanho: A Teogonia de Hesíodo. Compreendido o imagético e prístino apreender existencial dos hesiódicos versos, demonstra-se como as suas horripilantes e originárias imagens subjazem nos filmes de Horror/Terror, e, mais especificamente, naqueles do “Expressionismo Alemão”.

Por fim, o último texto desta terceira parte é “Linguagem, significado e verdade: incertezas e pilares na pesquisa em estudos da linguagem”, assinado por Talita de Oli-veira, que visa traçar linhas gerais acerca do objeto da Semântica, destacando-se os três grandes paradigmas sobre a linguagem e as noções de significado e de verdade a eles subjacentes. As perspectivas realista, mentalista e pragmática serão, aqui, apresentadas em sua ascendência histórico-filosófica e em suas abordagens mais contemporâneas. Os Estudos da Linguagem, longe de ser uma área coesa ou unitária em termos epistemo-lógicos e metodológicos, apresentam a coexistência de diversos percursos de formação, diferenciados pela visão que se tem do que seja a linguagem e o ser humano, bem como do próprio objeto a ser investigado. Será situada, aqui, a perspectiva pragmática

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como aquela que melhor se alinha aos estudos narrativos de cunho interpretativista e sócio-interacional desenvolvidos pela autora. As narrativas são aqui entendidas como centrais na constituição dos sujeitos e do mundo que os cercam e, com base no interpretativismo de Geertz, os próprios textos científicos são considerados narrativas sujeitas a reelaborações, em que não se desvelam verdades nem se buscam leis uni-versalizantes. É norteadora, no trabalho em questão, a noção de que “o significado é construído pela ação em conjunto de participantes discursivos em práticas discursivas, situadas na história, na cultura e na instituição” (MOITA LOPES, 2001, p. 57-58). Essa perspectiva situacional realça as dimensões contextuais, sócio-históricas e institu-cionais que agem sobre o discurso.

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Sobre os autores

Aline Guimarães Monteiro trigo: Chefe da Divisão de Estratégia de Sustentabili-dade Ambiental Institucional (DISAI/DIGES/CEFET/RJ). Engenheira Química pela UFRJ (1996), Licenciada em Química pela UERJ (2000). Mestrado em Planejamento Ambiental pela COPPE / UFRJ (1998). Doutorado em Planejamento Ambiental pela COPPE / UFRJ (2003). Professora do Magistério Superior do CEFET/RJ - Maracanã Campus e Presidente da Comissão Central de Coleta Seletiva Solidária CEFET/RJ - Maracanã Campus.

Ana Zarco Câmara: Possui graduação, mestrado e doutorado em Filosofia pelo Depar-tamento de Filosofia da UERJ. Tem experiência nas áreas de Estética e Filosofia da Arte; História da Filosofia; Bioética e Ética Aplicada às Ciências da Saúde; Filosofia Francesa Contemporânea. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal Fluminense.

brunno Alves da Silva: Discente do curso de Filosofia da UFRRJ.

bruno bahia: Apaixonei-me cedo pela filosofia e, posteriormente, pela educação. Gra-duei-me em Filosofia pela UFRJ e realizei os estudos de mestrado e doutorado em Educação pela mesma universidade. Lecionei em colégios privados e públicos (rede estadual e federal) de nível médio. Essa experiência foi essencial para a minha formação humana e profissional. Pesquiso profissão docente de modo geral, e tempo, experiência e identidade na docência em filosofia. Atualmente sou professor de Filosofia da Educação da UFRRJ e docente permanente do PPGEA/UFRRJ. E-mail: [email protected].

danielle bastos Lopes: Professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); doutora em Educação (PROPED /UERJ); Mestre em História Social (PPGHS /UERJ - 2011). É coordenadora do projeto de pesquisa, “Entre a terra e o céu ame-ríndio: currículo, cultura e diferença”, financiado pela FAPERJ, membro do grupo de pesquisa Currículo, Cultura e Diferença vinculado ao (PROPED / UERJ), coordenado pela Profª. Drª Elizabeth Macedo e do grupo Juventudes, Infâncias e a Liberdade do Ser Aprendiz do CAp -UERJ (GEPEJI/CApUERJ). Sua atual pesquisa concentra-se na educação entre os Mbyá (Guarani) do estado do Rio de Janeiro e aplicação da Lei 11.645/2008 na Educação Básica. As pesquisas com influência pós-coloniais e deleu-ziana abrangem as grandes áreas da Educação, Filosofia e Antropologia. Tem como interesse os assuntos dos processos de escolarização, currículo, cosmologia e sociabilidades entre os povos ameríndios viventes no território brasileiro e hispânico -americano.

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diego Ferreira: Pós-doutor em educação pela Universidade de São Paulo. Doutor e Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense.

Eduardo Gatto: Professor permanente do PPFEN (Programa de Pós-graduação em Fi-losofia e Ensino) do CEFET/RJ. Permanece em pesquisa pelas questões que envolvem as referências entre arte e pensamento, atualmente se debruçando sobre a obra homé-rica. O autor atua verticalmente na instituição, contribuindo com disciplinas eletivas e optativas (Teoria da Música Ocidental, e Violão Básico) para os cursos de Licenciatura em Física e Gestão em Turismo, e no Ensino Médio, ministrando a disciplina Educação Artística – Música. É também músico camerista, compositor e arranjador, com atuação no grupo ‘Camerata de Violões’.

Evelyn domingos Costa: Discente do curso de Filosofia da UFRRJ.

Fábio borges do Rosario: Professor de Filosofia da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC) e Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Filo-sofia e Ensino (PPFEN) no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ);

Gabriel bezerra Neves: concluiu recentemente, no CEFET/RJ, o programa de mestra-do no qual defendeu a utilização de um manual para incentivar e orientar professores na gamificação de aulas de filosofia. Graduado em psicologia pela PUC-Rio e atuante na área de design instrucional, ele acredita que a chave do progresso científico e humano está em acreditarmos e sentirmos que tal progresso é divertido. 

Gabriel Cerqueira Leite Martire: Graduado em Direito pela Unilasalle/RJ e em Ar-tes pela Escola de Belas Artes da UFRJ; professor de Artes e Direito na SEEDUC/RJ; artista plástico; especializado em Direito Imobiliário pela UCAM/RJ, em Direitos Hu-manos, Gênero e Sexualidade pelo CLAM & IMS &UERJ e em Ensino da Arte pela EAV & UERJ; mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense – PPGSD/UFF; integrante do grupo de pesquisa Se-xualidade, Direito e Democracia do PPGSD/UFF. Brasil. E-mail: [email protected]

Gabriel Cornelio Moura: Licenciado em História pela UNIRIO (2015), mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino do CEFET/RJ.

José Aires trigo: Graduado em Economia pela UERJ (1992), Licenciado em Mate-mática pela UCB (2000). Especialização em Educação Matemática pela FSJT (2002). Mestrado em Educação pela UFRJ (2005). Doutorado em Ciência Política pelo

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IUPERJ (2015). Professor da UNESA, lecionando em cursos de Graduação e Pós--Graduação. Pesquisador APQ-1 FAPERJ. Pesquisador do Programa de Pesquisa e Produtividade da UNESA

Leonardo berbat de brito: Sou professor de Filosofia na rede pública de ensino e resido, desde que nasci, em Macaé, cidade litorânea do Rio de Janeiro, famosa pelo petróleo contido em suas águas. Diferente da maioria dos macaenses, que geralmen-te escolhem uma profissão alinhada ao ramo petrolífero, apaixonei-me pelo ensino e, principalmente, pela Filosofia e sua natureza crítica, reflexiva e abrangente. Sou profes-sor, amo o que faço e acredito, francamente, que a educação transforma positivamente o indivíduo e, por conseguinte, a sociedade. Utopia ou não, creio neste ideal, sou movido por ele e pretendo que assim seja até o fim dos meus dias.

Marcelo Senna Guimarães: Professor da área de Ensino de Filosofia da Unirio, atuei como professor de filosofia no ensino médio por 16 anos. Gosto de chás, especialmente de chimarrão, mas na escola quase sempre tomava café.

Maria de Lourdes bastos: Professora de Filosofia e História da Educação Básica na Secretaria de Estado do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ), enfrento o desafio de fazer da sala de aula um espaço para a construção de conhecimento. Escolher o melhor caminho entre os obstáculos e oportunidades que se apresentam no trabalho docente implica em lidar com a insegurança, a improvisação e a criatividade. Acredito que o fazer pedagógico, tão próximo da prática filosófica, requer o conhecimento de si e o cuidado do outro. E assim tenho apostado na escuta atenta, no trabalho coletivo e na aliança entre teoria e prática como ferramentas indispensáveis à experiência com a filosofia no Ensino Médio.

Miguel Ângelo Castelo Gomes: Professor Miguel Angelo Castelo Gomes – Mestre em Filosofia e Ensino pelo CEFET/RJ; Especialista em Sociologia pelo Signorelli; Especialista em Ensino Religioso Escolar pelo Instituto Claretianos; Licenciado em Filosofia e Bacharel em Teologia pela PUC-Rio; Graduando em Pedagogia pelo Instituto Claretianos; Membro do GEPPE – Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Professor e o Ensino, na PUC-Rio.

Mirian Paura Sabrosa Zippin Grinspun: Possui graduação em Pedagogia pela Pon-tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1961), graduação em Pedagogia Li-cenciatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1962), graduação em Pedagogia Orientação Educacional pela Universidade do Estado do Rio de Janei-ro (1973), graduação em Pedagogia Supervisão Escolar e Administração Escolar pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1975), mestrado em Instituto de Estu-dos Avançados Em Educação pela Fundação Getúlio Vargas - RJ (1977) e doutorado

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em Filosofia pela Universidade Gama Filho (1984). Atualmente é professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atuando no programa de pós-graduação em Educação. Coordenadora do NUPEJOVEM, situado no PROPED/UERJ, desde 2001. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em juventude, seus valores, suas características, em especial as culturas juvenis e seu desempenho no contexto atual, a relação estabelecida entre os jovens e a tecnologia na busca da discussão/ compreensão das interferências valorativas sobre a concepção/ construção das múltiplas subjetivida-des. Atualmente estuda juventude, ética e cultura na pós-modernidade.

Natália Caroline Soares de Oliveira: Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense – PPGSD/UFF; integrante do grupo de pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia do PPGSD/UFF. Brasil. E-mail: [email protected]

Patrícia boeira de Souza: Mestranda no programa de pós-graduação em Filosofia da UFRRJ. “Procuro despir-me do que aprendi, / Procuro esquecer-me do modo de lem-brar que me ensinaram, / E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos (…) / E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem, / Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.” (Fernando Pessoa)

Patricia Maneschy: Doutora em Educação. Docente e pesquisadora acadêmica e ins-titucional da Universidade Veiga de Almeida (UVA/RJ). Professora Convidada do Pro-grama de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade do Porto/ AACILUS (Brasil/Portugal).

Rafael Alvarenga: É um sujeito que não espera pelo destino, tampouco por linhas re-tas. Torce para o Flamengo, tem um violão, mas vendeu o fusca e jamais teve uma nega chamada Tereza. Certa vez lá na vila, pobre dele, quiseram sua pele para tamborim, mas, por sorte, como estava a toa na vida um amor lhe chamou pra ver a banda passar. Sei que ele é um sujeito que só acredita em vento que assanha a cabeleira. Que nunca se sentiu longe daqui, pois nunca esteve em Londres puxando cabelo e ouvindo Celi Campelo. E assim foi se segurando malandro, pois malandro que é malandro não se demora.No entanto houve um tempo em que levava uma vida sossegada. Até que no meio do sossego aparecesse uma pedra. Precisou perder o medo da musa, da ciência. Palavras doentias, páginas rasgadas.Em 2008 esse sujeito, que prefere ser essa metamorfose ambulante, se graduou em filo-sofia pela UFRJ e em 2014 se especializou em Educação Tecnológica pelo CEFET/RJ de onde também saiu mestre em Filosofia e Ensino pelo PPFEN em 2016.

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Com a literatura, participou de livros junto a outros autores e individualmente. Seu nome esteve em concursos literários por todo Brasil e até fora dele. E suas histórias ainda correm em jornais de Resende, Búzios e Cabo Frio, bem como em um blog pela internet – www.ninhodeletras.blogspot.com.Atualmente ele fala de amor a vida! E não crê que o alvo o esteja esperando.

Raquel de Oliveira teixeira Plácido: Discente do curso de filosofia da UFRRJ.

Roberto C. Zarco Câmara: Possui graduação em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2005), graduação em Letras - Português e Grego pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2004), graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2000), mestrado em Bioquímica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense (2014) e doutorado em Ciências Biológicas pela Háskóli Íslands (2006). Atualmente é Professor EBTT no CEFET/RJ (UnEd de Nova Friburgo), também sendo membro do Corpo Docente Permanente do PPFEN (Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino de Filosofia) do CEFET/RJ, e Vice-Coordenador da Especialização em Modelagem Matemática e Educação na UnED de Nova Friburgo (CEFET/RJ).

Sonia Regina Mendes dos Santos: Doutora em Educação. Professora Associada Facul-dade de Educação da Baixada Fluminense/UERJ) e Professora Adjunta do Programa de Mestrado Profissional Ensino das Ciências da educação Básica.

Stella de Oliveira Soares: é graduada em biblioteconomia pela UNIRIO e atuou como bibliotecária universitária, observando como curiosa espectadora a relação dos estu-dantes com a busca pelo conhecimento. Observação essa que a conduziu ao esforço de pesquisar novas arquiteturas da informação - gamificação inclusa.

talita de Oliveira: Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) do CEFET/RJ, atuando como docente de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira desde 2004 na instituição, professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN) e do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER) do CEFET/RJ.

Thiago Jandre Garcia: Licenciado em História e mestrando em Filosofia, navegante de diferentes áreas do conhecimento me fiz professor. Inquieto, observador sempre acre-ditei que entender onde o me aluno(a) se encontra, como se relaciona e a afetividade construída é o melhor caminho para a aprendizagem.

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Naveguei pela compreensão da ordenação urbana, me apaixonei pelas artes visuais e agora mergulhado na Filosofia, esta que me tem conduzido durante os últimos anos no mestrado em Filosofia e Ensino do CEFET/RJ. Assim me apresento. Como um processo, como alguém em construção e busca pelo saber.

Thomaz Estrella de bettencourt: Doutor em Filosofia pela PUC-Rio (2012), Mes-tre em Filosofia PUC-Rio (2008), Bacharel e Licenciado em filosofia pela PUC-Rio (2006). Professor EBTT do CEFET/RJ e membro do corpo docente do Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN) do CEFET/RJ. Desenvolve pesquisas na área da Filosofia da Educação e da Filosofia Moderna, com ênfase em Teoria do Co-nhecimento, Ética e Metafísica.

ursula Gomes Rosa Maruyama: Responsável pela Diretoria de Gestão Estratégia do CEFET/RJ. Professora do Departamento de Administração do CEFET/RJ. Douto-randa pelo Programa de Ciências da Informação (PPGCI) IBICT / UFRJ. Mestrado em Ciências, Tecnologia e Educação (PPCTE/CEFET/RJ) com ênfase na Inovação em Educação Tecnológica. MBA em Gerenciamento de Projetos e Especialização em Ges-tão de Recursos Humanos e Administração Pública. Ela também colaborou em proje-tos pela Rede Nacional de Educação e Pesquisa para o Ministério das Comunicações, Ministério da Educação e Ministério da Saúde.

Wagner de Morais Pinheiro: As palavras “crise” e “oportunidade” me mantêm moti-vado a perguntar e ensinar. Embora o mundo esteja uma bagunça, acredito que haja uma alternativa à crise – a oportunidade. Em busca desta construção, me defino como filósofo e professor de filosofia. Tendo desenvolvido um mestrado no tema da crise e publicado capítulos de livro e apresentado comunicações sobre o tema, me encontro constantemente confrontado por esta questão.

Wanderley da Silva: Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana, e professor de Ensino de Filosofia da UFRRJ.

Wesley damasio Siqueira: Possui graduação em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2007), Especialização em Educação de Jovens e Adultos na Univer-sidade Federal do Rio de Janeiro - EJA - (2012) e mestrado pelo Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ) Programa de Pós-Graduação de Ensino em Educação Básica (PPGEB). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Políticas Públicas, Educação de Jovens e Adultos e Desenvolvimento Curricular. Atua como professor da rede municipal de Duas Barras e trabalha como responsável pelo monitoramento do PME deste município.

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PrefácioEdgar Lyra

É muito provável, dadas as reviravoltas nas políticas públicas de educação ocorri-das da segunda metade de 2016 para cá, que a proposta para o ensino de filosofia que constituía a segunda versão da Base Nacional Comum Curricular venha simplesmente a desaparecer, quanto mais não seja, como consequência direta da revogação, pela Lei 13415/2017, da obrigatoriedade desse ensino nos três anos do Ensino Médio.

Não se trata aqui, bem entendido, de defender uma proposta de cuja elaboração participei, num diálogo, tão amplo quanto à época foi possível, com os colegas professores de filosofia. O documento decerto tinha problemas e deveria seguir sen-do aperfeiçoado, sobretudo fomentando o bom debate. Sua virtude maior, assim sigo pensando, era a flexibilidade que proporcionava aos professores para, na promoção dos objetivos de aprendizagem nele prescritos, colocar em prática “aquilo que de melhor sua formação lhes permita mobilizar”.

Seja como for, entre as honestas críticas à proposta estava a de que ela demandava um professorado bem formado, bem exercitado no ensino de filosofia e certo dos hori-zontes formativos a perseguir, em outras palavras, capaz de usufruir produtiva e respon-savelmente da liberdade concedida. Sendo essa uma utopia, melhor haurir um documento mais prescritivo, que pudesse inclusive nortear a formação dos futuros colegas.

O primeiro problema dessa alternativa era a dificuldade de consenso sobre o teor desse documento mais prescritivo. O segundo senão concernia à realidade de boa parte das salas de aula espalhadas pelo grande Brasil, realidade a demandar passagem gradati-va dos presentes vácuos formativos a uma formação filosófica básica mais robusta. Isso com certeza incluía a atenção à formação inicial e continuada de docentes com repertó-rio teórico e didático; mas, não sendo possível exigir que corra quem tem dificuldades de bem caminhar, a preferência recaía sobre uma aposta simultaneamente mais humil-de e mais arriscada: incentivar e liberar os professores para perseguir, com os alunos, por meios plurais e na medida das suas possibilidades, experiências de estranhamento que levassem esses últimos a perguntar pelo sentido da educação que recebiam e do mundo em que viviam. Essa parecia ser condição primeira para qualquer real vontade de um dia filosofar de verdade.

A BNCC era, de todo modo, apenas “base curricular”. Lutava-se como podia para que o documento abraçasse outras exigências do Plano Nacional de Educação (PNE), especialmente aquelas que dizem respeito às reais condições de vida saudável e convivência

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produtiva entre professores e estudantes nas escolas. Se esse desejo pudesse ganhar cor-po, seria o caso de exigir que todas as carteiras de ferro tivessem borrachinhas nos qua-tro pés; que os banheiros estivessem limpos; que o ar fosse respirável; que o ambiente fosse minimamente acolhedor em todas as escolas públicas do Brasil; enfim, que os professores pudessem dedicar-se a uma real existência docente, por que não, reconheci-da pela sociedade que do seu trabalho muito precisa – para não mergulhar na barbárie.

Essa conversa iria bem longe, se não tivesse de ceder lugar a uma outra, de ainda maior importância. Voltando ao primeiro parágrafo deste texto, por ora nem mesmo sabemos o que será oficialmente da filosofia. É nesse cenário insólito que coleções como esta – Chás para a Filosofia – adquirem importância comparável à de uma arca em meio ao dilúvio. Meu colega Filipe Ceppas chamava atenção, no prefácio do volume Hortelã, desta mesma coleção, para o fato de que “em 2001, sete anos antes de uma perspectiva concreta de regulamentação federal sobre o assunto, 23 das 27 unidades da federação já incluiam, de um modo ou de outro, a disciplina de filosofia em seus currículos.” Significa dizer que, aconteça o que acontecer, a luta pela presença da filosofia nos cur-rículos estaduais há de continuar e dependerá, com toda certeza, de colegas capazes de convidar seus alunos ao filosofar.

Não sabemos bem, mas, nesses tempos de escola sem partido e outras diatribes contra o livre pensamento, a chuva pode demorar a passar. Só o que não pode acontecer é que se perca o quanto se construiu nesses últimos anos em termos de transformação da filosofia em algo sintonizado com o mundo, especialmente com os jovens. Parece, inclusive, que já não se trata apenas de preservar o que foi construído, mas, dadas as incertezas e as oportunidades nelas aninhadas, de intensificar a reflexão sobre como a filosofia pode se fazer em espaços outros, nas praças, nos nichos de educação popular, nas mídias sociais, nas rodas de bar ou após as seções de cinema.

A coleção Chás nasceu do quixotesco e pioneiro Mestrado Profissionalizante em Filosofia e Ensino, ofertado pelo CEFET/RJ desde 2015, mais pontualmente por ideia do professor Maurício Castanheira, que preparou com contagiante esmero o volume Erva Cidreira. A coleção chega agora à sua quinta edição, com textos de professores e alunos, juntos, a fazerem o que podem e a repartir o que têm – e o que não têm. Vou cuidando bem das minhas edições enquanto a pomba não vem com o bendito ramo de oliveira.

Rio de Janeiro, 15 de novembro de 2017.

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EXPERIÊNCIAS dIdÁtICO-FILOSÓFICAS

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PENSANdO CuLtuRAS AMERÍNdIASuSOS E dESuSOS dO MAtERIAL dIdÁtICO EM uM

INStItutO dE APLICAÇÃODanielle Bastos Lopes – CAp UERJ

Fig. 1 - Alunos do 4º ano do Ensino Fundamental - acervo do Projeto de ID -Iniciação à Docência - Pensando Culturas Ameríndias

O mais triste da arquitetura moderna, é a resistência do seu material.3

Mario Quintana

INtROduÇÃO

Este artigo estuda a utilização dos materiais didáticos e outras fontes de pesquisa durante a elaboração do projeto, “Pensando Culturas Ameríndias4”, realizado no Insti-tuto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira, mais conhecido como CAp-UERJ.

3 “Notas da Cidade”. Mário Quintana. 4 O projeto de Iniciação à Docência “Pensando Culturas Ameríndias”, iniciou no ano de 2016 com fomento pelo departamento de Estágio e Bolsas CETREINA/UERJ. Atende aos alunos do primeiro segmento do Ensino Fundamental do instituto. Foi recentemente premiado no Prêmio Fernando Sgarbi de Graduação da mesma instituição. O mesmo é vinculado ao projeto “Entre a terra e o céu ameríndio: currículo, cultura e diferença”, financiado pela FAPERJ, ambos sob minha coordenação. O projeto com-preende atualmente dois bolsistas de Iniciação à Docência e um bolsista de Iniciação Científica.

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O projeto foi premiado pela Semana da Graduação da UERJ (2017), seus sentidos, mesclas e usos serão esboçados neste artigo na tentativa de entendermos alguns pontos do ensino ameríndio. Exploro algumas atividades referenciadas no currículo do insti-tuto, assim como as últimas teses e dissertações (ALMEIDA, 2016; OLIVEIRA,2014) que analisam as particularidades do material didático nos colégios de aplicação.

O instituto CAp - UERJ foi reconhecido em 1990, como uma instituição de ex-celência no estado do Rio de Janeiro. O termo excelência implica inúmeras discussões sobre escala, parâmetro, e, consequentemente o vazio que os parâmetros não mencio-nam, como a elevada taxa de evasão e repetência a fim de ser mantido o mesmo padrão de excelência. Não avançaremos por ora nesta discussão, embora, quero sublinhar que o instituto tem uma quantidade considerável de pesquisadores que analisam as peculia-ridades e afetamento da condição de “escola de excelência”, na relação com o entorno e grupos de alunos e docentes (ALMEIDA, 2016; OLIVEIRA, 2014).

Inicialmente partirei dos aspectos pós-estruturalistas, evidenciando a discussão so-bre ensino, material e cultura. Embora, haja uma cultura da promoção de métodos eficazes e produção extensiva sobre material didático no campo da Pedagogia, neste artigo exploro as possibilidades de uma utilização “não objetificada”, ou mesmo, um desvio da produção do material didático num sentido tradicional. Utilizo como refe-rência minha aproximação com outras fontes e formas de material pedagógico - como a filmografia, a arte plumária, acervos fotográficos entre outros produtos. Todos esses materiais são entendidos como didáticos, movimentando corpos e cheiros em seu manuseio (BASTOS LOPES, 2014).

I - CuRRÍCuLO E ENuNCIAÇÃO dA dIFERENÇA

De acordo com Elizabeth Macedo (2006, 2012, 2015), currículo exprime um con-ceito determinado a partir de um acordo entre diferentes sentidos . Para a noção de currículo como “enunciação da diferença”, o termo evidencia uma perspectiva híbrida, que entende o conceito (quaisquer que sejam esses), como uma elocubração discursiva que se esforça para um acordo de sentidos, mas que nunca chegará a um acordo defi-nitivo do seu processo de significação. Em outras palavras, “currículo” (BALL, 2001, 2012) evidencia um significante fluido, negociado a partir da diferença e conflito entre os indivíduos.

A percepção da diferença interroga, portanto, duas possibilidades: interroga corren-tes teóricas que defendem uma política centrada em identidades militantes e críticas, tanto quanto teorias multiculturais que assimilam cultura como um objeto intocado pelo Ocidente (BHABHA, 1994; CHAKRABARTY 2009, 2010). Essas noções explorei

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em outros artigos, entretanto, é importante destacar que termos como “identidade” e “currículo” ressoam constantemente em espécie de território híbrido, do que estou chamando de “prática pedagógica” (APPADURAI,1996; DASS, 2011). Os termos co-muns ao campo da Pedagogia, “currículo oculto”, “formal”, “prescrito”, neste contexto, não são tão importantes no sentido de definir em que, propriamente o termo consiste.

O que constituirá um currículo será duplamente o seu aspecto relacional; e em relação com sua diferença – diferença do aluno em relação ao professor, do índio em relação ao que denominam branco, o docente ao diretor (BASTOS LOPES, 2013, 2014). As identidades, portanto, são muito mais relacionais e híbridas do que críticas ou normativas.

II - O uSO e dESuSO dE MAtERIAIS dIdÁtICOS NO ENSINO FuNdAMENtAL dO CAP-uERJ

Passemos ao desenvolvimento das aulas. O trabalho foi elaborado por todos os participantes alunos, professores e orientadores, não houve restrição por faixa etária ou outro critério seletivo aos participantes do “Pensando Culturas Ameríndias”. Como comum às aulas do instituto os alunos têm acesso a textos variados, não tendo obrigato-riamente o direcionamento ou adaptação do material à uma idade específica. Os alunos lêem artigos, tanto quanto periódicos, sites, revistas acadêmicas. A não didatização de um material objetificado, adaptado a determinada faixa etária influenciam o cotidiano do instituto, assim como as particularidades em relação ao material oferecido aos alunos e outros pesquisadores do projeto.

Trabalhamos com a concepção interdisciplinar e associação do ensino com a pes-quisa científica. Os alunos estabelecem-se em grupos, em rodas de conversas e não em fileiras (ALMEIDA, 2012; OLIVEIRA, 2014). Isso cria um ambiente que conduz uma aprendizagem por meio da negocião, estimulando expressões, estranhamentos. Além do material bibliográfico os alunos têm acesso a objetos, artefatos e arte plumária das populações guarani do Rio de Janeiro. Os grupos reunidos, manuseiam os artefatos elaborando paralelamente um trabalho de curadoria e organização com os mostruários.

Muitos praticam o arco e flecha, produzem e estudam com instrumentos musicais e elaboram estudos a partir das cestarias indígenas e outros instrumentos. O trabalho é direcionado e produzido em conjunto com o professor e bolsista. A possibilidade de estabelecer o diálogo entre a leitura e observação das peças e o acervo de obras constitui um dos pontos cruciais das atividades. A participação tem me permitido acompanhar o estranhamento e curiosidade de cada aluno ou membro da equipe. O esforço suscita não apenas o recebimento da informação, mas a reflexão do material e artefatos recebidos,

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analisados e catalogados. Mais do que reafirmar o precário e o silêncio em relação ao ensino de cultura ameríndia, observo que um aprofundamento sobre como esse mesmo universo de culturas vem sendo apresentado, repercuti um dos pontos de sedução e curiosidade em relação às civilizações seculares.

III - POSSIbILIdAdE dE MAtERIAL dIdÁtICO

Para o trabalho em sala de aula, portanto, pode ser proveitoso associar o passado com o contemporâneo. Uma boa opção é o estudo comparativo entre imagens dos grupos do período jesuítico-colonial e iconografias recentes das populações ameríndias presentes no território latinoamericano (BESSA FREIRE, 2012, 2014). O reconheci-mento da localização antiga dos territórios contrastado com a localização dos grupos atuais, permite a visualização de uma variabilidade de aspectos como a convergência ou afastamento dos grupos, assim como alterações em seus significados e inversões culturais ocorridas nos novos espaços. Neste contexto, discutimos as mudanças e o nomadismo de um grupo (BASTOS LOPES, 2013, 2014; BESSA FREIRE, 2012).

Por toda América Latina estão difusos meios de informação sobre lugares, hor-ticultura, fauna incluindo nomes de rua e bairros escritos em língua ameríndia ou africana (BARTOLOMÉ, 2010; BESSA FREIRE, 2014). O conteúdo semântico pode ser explorado em aula, evocando contextos de determinada localidade ou ensinando re--narrações do conhecimento transmitido durante os séculos, embora, despercebido em nosso cotidiano. Sites como o Pró-Índio Uerj (www.proindiouerj.blogspot.com.br), produzido pelo professor José Bessa Freire, Escritores Indígenas (escritoresindigenas.blogspot.com.br), Portal das Memórias da áfrica e do Oriente (memoria-africa.ua.pt), e o da escritora Eliane Potiguara, (elianepotiguara.blogspot.com.br) exibem indicações interessantes, com diferentes materiais, fotografias e entrevistas, tornando mais inteli-gível o acesso.

O trabalho com o material didático no CAp-UERJ particularmente foi organizado com grande parte desses sites e outros materiais interativos. Utilizamos o material fruto das pesquisas, mais do que o uso do livro didático indicado por programas nacionais5 (ALMEIDA,2016; OLIVEIRA, 2014). O fluxo do uso, portanto, aparece como pivô

5 O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), consiste em um programa financiado pelo MEC (Ministério de Educação e Cultura), onde as escolas públicas devem selecionar apenas os livros avaliados e aprovados pela equipe institucional. É incumbência dos professores e equipe pedagógica analisar as re-senhas contidas no guia do PNLD a fim de escolher os livros a serem utilizados no triênio. Os professores devem selecionar o material somente pela internet, no portal do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). A escola pode apresentar duas opções na escolha das obras para cada ano e disci-plina. Caso não seja possível a primeira opção, o FNDE envia à comunidade escolar a segunda coleção escolhida. Disponível em:< http://portal.mec.gov.br/pnld/>.

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da ideia de um currículo menos normativo e mais aberto a possibilidades do inesperado das aulas (MILLER, 2010,2014); assim como a participação dos professores, alunos e grupos envolvidos.

Essa relação com o material não objetificado é proeminente em outros anos de escolaridade e projetos do instituto. Os docentes com auxílio dos bolsistas compõem a maioria do material utilizado (BASTOS LOPES, 2013,2014; OLIVEIRA, 2014). O registro e seus produtos: anotações de campo, conferência, vídeos, saraus, compõem parte do trabalho com o material didático.

CONCLuSÃO

O instituto, portanto, é favorecido por bons trabalhos, não pela falta deles (AL-MEIDA, 2016; OLIVEIRA, 2014). Por outro lado, extensa parte dos materiais e livros de amplo acesso não trazem análises ou curadoria dos autores indígenas em programas didáticos. Estes dados apresento em trabalhos anteriores, não retomarei seus aponta-mentos com precisão neste artigo (BASTOS LOPES, 2013, 2014), embora é impor-tante observar que temos várias organizações e até editoras de autores indígenas (BA-NIWA, 2011; BENITES, 2012; S. BENITES, 2012; KOPENAWA, 2010; DA SILVA, 2013) dispersas pelo país, o que apresenta um fato considerável para suas obras estarem incluídas entre os materiais de amplo acesso.

Não estou com isso, afirmando que os autores indígenas devam ser buscados como chaves de civilizações “autênticas”. O acesso a um mundo “pronto” entendo como con-traditório (VIVEIROS DE CASTRO, 2012, 2012b) Não existe em modelos objetifica-dos, assim como qualquer outro “mundo” de cultura ocidental que tem relações híbridas e sincréticas em sua tradição (APPADURAI, 1996; CHAKARBARTY,2009, 2010).

O contato com a obra dos autores indígenas, ao contrário, abre possibilidades para outros possíveis (VILAÇA, 2013, 2015; VIVEIROS DE CASTRO,2012,2012b). O intuito, portanto, não foi objetificar os materiais didáticos, mas sim, instigar “novos possíveis” – estabelecer um levantamento extenso em diversas fontes de literatura ame-ríndia, antropológica e outros acervos (BESSA FREIRE, 2014). Todo o processo foi desenvolvido com alunos, bolsistas, assim como com o material didático.

Outro aspecto igualmente relevante, foi a construção de um acervo de artefatos e fo-tografias indígenas. Partindo dessas constatações, diria que o desafio foi o de descolonizar as formas com que estudamos culturas não ocidentais no currículo. A troca com os auto-res e pesquisadores, especialmente os ameríndios esboçou outro perspectivismo, relações assimétricas e de estranhamento. Ao meu ver, estamos experimentando, aos poucos, ou-tras didáticas possíveis, mais a aberta às possibilidades não prontas do material didático.

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REFERENCIAS bIbLIOGRÁFICAS

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BENITES, Tonico. A escola na ótica dos Avá Kaiowá: impactos e interpretações indíge-nas. Rio de Janeiro: Ed. Contracapa, 2012.

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A FILOSOFIA ESCOLAR E A IMPORtÂNCIA dAS CONCEPÇõES dE FILOSOFIA NA FORMAÇÃO

dOCENtE: O CASO dA “FEIRA dE FILOSOFIAS dA uFRRJ”

Wanderley da Silva – UFRRJBrunno Alves da Silva – UFRRJ

Evelyn Kellen Domingos Costa – UFRRJRaquel de Oliveira Teixeira Plácido – UFRRJ

1. INtROduÇÃO

A filosofia na educação brasileira, como disciplina escolar obrigatória, é uma con-quista recente. Essa novidade, que data de 2008, exigiu uma nova estrutura para pos-sibilitar o oferecimento da disciplina em todo país. Sobretudo, é urgente ainda hoje formar professores de filosofia para lecionar a disciplina, problema que ainda está mui-to longe de ser resolvido. Além da formação docente, outro problema igualmente im-portante diz respeito ao escopo da filosofia escolar, isto é, quais os objetivos da filosofia como disciplina escolar na escola básica?

Sobre os objetivos da filosofia escolar, a Legislação específica já nos orienta e, sob essa orientação, mais especificamente, sobre o entendimento que é necessário que o professor de filosofia possua claramente a sua própria concepção de filosofia, é que trata esse texto. Corroborando a ideia de que a concepção de filosofia construída pelo docente potencializa a sua prática escolar, apresentamos uma experiência didático-filosófica cha-mada de “Feira de filosofias”, que será objeto de análise a propósito da defesa dessa ideia.

Inicialmente este artigo apresenta um breve posicionamento do ensino de filosofia no Brasil, caracterizando sua oferta basicamente para as camadas médias da polução, e o período pós-ditadura militar de 1964 como momento de construção, lenta, da entra-da da disciplina no currículo escolar. Além desse posicionamento, ainda estão indicadas algumas das dificuldades estruturais que a filosofia enfrenta a partir da sua obrigato-riedade na educação básica. Após essa caracterização, será apresentada a experiência da “Feira”, como também descritas algumas das atividades, com seus objetivos e resultados.

Por fim, como síntese provisória, o texto procura ressaltar a importância de um fortalecimento da formação docente, com um maior cuidado nas atividades teórico-práticas, que não parecem estar contempladas nos currículos da graduação.

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Também ficou patente que, a experiência com crianças e adolescentes ajudou na cons-trução de um esclarecimento pessoal para os licenciandos sobre a sua própria concepção de filosofia, assim como favoreceu um ambiente de diálogo e interrogação na escola pública.

2. O ENSINO dE FILOSOFIA NO bRASIL E A IMPORtÂNCIA dAS CONCEPÇõES FILOSÓFICAS NA FORMAÇÃO dOCENtE

Não seria um exagero afirmar que, historicamente, o ensino de filosofia no Brasil esteve voltado para uma pequena parcela da população e que sofreu muitas influências políticas e conjunturais. Segundo Dalton José Alves (2002), essas influências ocasiona-ram um controle sobre a filosofia escolar e seu ensino. Alves argumenta que na história do ensino de filosofia as forças políticas instituídas permitiram a presença da disciplina na escola de diferentes formas. Inicialmente, uma “presença garantida” (no Período Colonial) monopolizada pelo direcionamento religioso, em seguida, uma “presença indefinida”, do fim do século XIX até a instituição do regime militar de 1964, pois jamais ficaria definida a presença ou ausência da filosofia no “ensino secundário” naquele período.

Com o estabelecimento da filosofia como disciplina optativa, desde 1981 em Santa Catarina e a partir de 1982 no Rio de Janeiro, cresceu lenta, porém, continuamente a defesa pela presença da disciplina no currículo. As pressões de grupos docentes organi-zados, pelo reestabelecimento da filosofia, de forma regular e permanente em todos os anos do ensino médio foi uma estratégia levada até as instâncias do poder, com o pro-cesso da chamada redemocratização. Desde meados dos anos de 1970, ainda sofrendo forte repressão dos governos golpistas de 1964 (Ditadura Militar), grupos organizados de docentes como a “Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas” (SEAF); também outros grupos reunidos em várias universidades, com destaque para Universidade Federal do Paraná (PARANá, 2008), conseguiram espaços no legislativo federal para levar adian-te algumas pautas em favor do reestabelecimento da filosofia na educação brasileira.

Esse longo caminho percorrido, culminou na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB Nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996), e, posteriormente, estabeleceram um conjunto de definições que caracterizaram a filosofia nos Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio/Ciências Humanas e suas Tecnologias (1999), PCN/ Filo-sofia e, posteriormente, nas Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio/Filosofia (2008), OCN/Filosofia.

Com a inclusão legal da filosofia como disciplina obrigatória no currículo da educação básica (2008), a educação brasileira ficou diante de uma novidade, já que a disciplina nunca havia sido obrigatória (ALVES, 2002), e de desafios. Entre esses desafios, foi

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necessário criar uma estrutura que atendesse todo território nacional, com inúmeras unidades escolares e diversidades culturais. A ausência histórica da disciplina no currí-culo escolar acarretou uma baixa procura pelo curso de licenciatura em filosofia, logo, a formação de docentes de filosofia para a educação básica era, e é ainda insuficiente no país. Segundo o Censo Escolar 2015, apenas 23% dos docentes que lecionam filosofia na educação básica são formados na disciplina (BRASIL, 2016).

Derivada da falta de tradição da disciplina de filosofia na educação básica inicia-se uma preocupação sobre quais os meios e vias para a efetivação da disciplina nas escolas de todo Brasil. Materiais didáticos, organização de horários, adaptações para cobrir a falta de professores formados em filosofia, apareceram como preocupações de ordem práticas, necessárias para o funcionamento das redes. Todavia, uma preocu-pação sobre o escopo do ensino da filosofia na educação básica, carecia de maior esforço e aprofundamento.

Que filosofia para educação básica? Seria essa uma questão que logo iria impac-tar na prática docente, e que até hoje perdura. Debates sobre uma suposta dicotomia entre ensinar “temas” ou “história” da filosofia (RODRIGO, 2004) além de pouco fecundas, omitiam outras interrogações fundamentais, a saber, quem é esse aluno do ensino médio? Quem são esses professores? Como é a formação acadêmica do docente em filosofia? Quais são os métodos e recursos didáticos disponíveis e específicos para a área? Enfim, uma grande gama de questionamentos que, mesmo que insipientes, começavam a aumentar em número e importância, devido à iminência da prática da filosofia nas escolas.

A busca por uma resposta sobre “o que é a filosofia” no ensino médio, apesar de pou-co explorada na academia, tomou força inclusive nos PCNs do ensino médio, quando defende que o docente de filosofia precisa ter clara a sua “escolha categorial e axiológica, a partir do qual lê e entende o mundo, pensa e ensina” (BRASIL, 2000, p. 48). Assim, uma marca do docente de filosofia seria o seu primeiro posicionamento sobre o que é filosofia e, em seguida, como esse professor entende a filosofia no ensino médio.

Não obstante a especificidade da filosofia, podemos considerar que também os do-centes de outras disciplinas fazem escolhas categoriais e axiológicas, de uma maneira própria à sua área. Um professor de geografia ou matemática, certamente se identifica mais ou menos com as várias corrente estabelecidas no pensamento do seu campo de conhecimento, e, também, expressam suas posições com uma prática coerente. Toda-via, o docente de filosofia, parece precisar, assim como indica o documento legal, de uma compreensão própria da sua perspectiva do conhecimento, já que o campo da filosofia é historicamente longo e multifacetado, pois isso irá interferir diretamente na sua atividade docente.

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Assim como a compreensão sobre a sua concepção de filosofia, o docente da edu-cação básica, de qualquer disciplina, é desafiado a conhecer seu aluno, o contexto e os métodos e recursos. Para o docente em filosofia, esse desafio é recente e pouco estabele-cido. Um caminho possível, acompanhado a legislação, é pensar o que seria específico da filosofia, para construir, respeitando as concepções individuais, um caminho co-mum. E, ainda, respeitando, certamente a intervenção criativa necessária para autoria do docente.

Corroborando o esforço de uma formação atenta à especificidade do ensino de fi-losofia, neste trabalho procuraremos enfatizar a importância da concepção de filosofia adotada pelos licenciandos, e como essa concepção orienta sua formação e prática. Para esse fim, iremos aqui descrever e argumentar sobre uma atividade de cunho acadêmico/prática chamada “Feira de filosofias”, desenvolvida no primeiro semestre de 2017, que teve como objetivo despertar nos discentes em formação a importância das suas con-cepções filosóficas em sua futura prática docente.

3. “FEIRA dE FILOSOFIAS”: dESAFIO à FORMAÇÃO

A filosofia escolar está quase que exclusivamente voltada para o ensino médio, to-davia, observamos uma forte distância da formação docente, nos cursos de graduação, com a prática da filosofia na educação básica. Programas como o Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) têm ajudado bastante a diminuir essa distância na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (SILVA, 2015), todavia, todos os esforços nesse sentido são importantes.

Uma das preocupações é não relegar a formação docente apenas às disciplinas liga-das diretamente à educação, seja nos seus fundamentos ou nas que inserem atividades práticas, como é o caso da disciplina de “Ensino de Filosofia”. Não obstante, ainda é necessário avançar no currículo e desconstruir práticas bacharelescas na licenciatura, empresa difícil e com poucas iniciativas. Pensando nesse desafio, foi oferecida aos li-cenciados uma proposta, uma atividade prática na disciplina “Ensino de Filosofia”: apresentar a sua própria concepção sobre a filosofia aos estudantes do 5º ao 9º ano do ensino fundamental. A Feira foi desenvolvida em uma escola municipal do município de Seropédica/RJ e contou com a participação do professor regente das turmas da edu-cação básica e com a equipe do Laboratório “Práxis Filosófica” da UFRRJ.

O desafio à formação era exatamente o de evidenciar aos próprios licenciandos qual era a sua concepção de filosofia, além de buscar uma linguagem compatível com as referencias de crianças e adolescentes. Em seguida, iremos apresentar algumas das atividades desenvolvidas, assim como o seu objetivo e resultados.

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3.1 CONCEPÇõES E LINGuAGENS dA FILOSOFIA NA ESCOLA: AtIVIdAdES

Em seguida, apresentamos algumas atividades que foram propostas e realizada na “Feira de Filosofias”. A Feira foi uma iniciativa do Laboratório “Práxis Filosófica” da UFRRJ, realizada em junho de 2017 no Centro de Atenção integral à Criança, Paulo Dacorso Filho em Seropédica/RJ, e teve a importante parceria da professora da Lilia-ne Barreira Sanchez (UFRRJ), vice coordenadora do Laboratório e coordenadora do projeto “Filosofia para crianças” que, junto com toda equipe do projeto6, apoiaram as atividades.

3.1.1 “A ARtE dO FILOSOFAR: A FILOSOFIA COMO AÇÃO-VOLuNtÁRIA-RACIONAL”

A Filosofia traz em si um problema filosófico: o de sua fundamentação. O objetivo dessa atividade foi mostrar uma das dimensões da “Ação” no pensamento filosófico. Entretanto, poderíamos criar, de acordo com certo ângulo, uma concepção capaz de abarcar o sentido de nossas práticas filosóficas, ou seja, reconstruir alguns padrões que envolvem o que se compreende como prática filosófica e buscar os termos mais adequa-dos para justificar, de certa maneira, esta proposição. Neste sentido, podemos conceber a Filosofia como: Ação-voluntária-racional. Iremos clarificar estes termos decompon-do-os para tentar entender alguns traços gerais e centrais da Filosofia.

O primeiro traço está relacionado com Ação- práxis, prática, o ato de agir, ou de fazer algo, o corpo e as ações humanas concretas, visíveis, mensuráveis e perceptíveis, mas a ação não deixa de implicar o ato de perguntar, questionar, a ação de examinar e analisar, a inserção da vírgula da suspeita e da dúvida. Ação, e não mero deslocamento espacial, mas movimento, pois enquanto humanos, somos mais do que simples objetos, daí mover-se enquanto pessoa dotada de consciência., O segundo momen-to, é sua posição Voluntária- Vontade, voluntas, o querer, a escolha, o desejo. O voluntário acoplado à ação sugere o livre, sem coação, o espontâneo “cuja origem é interna ao agente” segundo Aristóteles. Diz respeito a tudo aquilo com o qual se contribui sem constrangimento. A Filosofia envolve a liberdade, quando se contri-bui com o ato de filosofar, querendo-o. Por último, a terceira noção a ser explorada é a de Racional.

6 Fizeram parte da equipe as discentes de Pedagogia da UFRRJ, Jaqueline cunha da e Nathália Amaral Jovito – Pedagogia da UFRRJ; o Professor Anderson Eugênio Santos, da prefeitura de Seropédica; além da professora Andrea Sonia Berenblum e dos professores Bruno Bahia e Fernando Bonadia, todos do Departamento de Teoria e Planejamento de Ensino da UFRRJ.

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Nota-se que o “amor ao saber” apresentado aqui de forma simples, se desdobra em: agir, sentir e pensar, em vista do conhecimento tanto como fim, quanto como meio, pelo fato de aplicarmos nosso saber para transformarmos o mundo e a nós mesmos. Neste caso, racional implica o lugar do intelecto, a cognição, a inteligência, e por que não a reflexão?

A consciência, o juízo, o discernimento a prudência, a reta razão. Este arcabouço conceitual, no entanto, deverá estar conectado com as experiências da vida, prescindindo da pura contemplação. Esta concepção de Filosofia foi esboçada a partir de três conceitos: Ação, voluntaria, racional, analisados no interesse de entender e dar um sentido à ativi-dade filosófica, não de forma exaustiva, pois existem outras possibilidades, mas tomando como referencial alguns aspectos concernentes ao que é propriamente humano.

Uma vez estabelecia a nossa concepção observa-se que teoria e prática, são dois ele-mentos inerentes na realização do ensino. Parece que o primeiro tem certa anterioridade e prioridade. No entanto, sua concretização em sala de aula em termos mais significa-tivos, na prática, completa de algum modo estas instâncias e nos permite observar que há, na verdade, uma reciprocidade que permeia este percurso da atividade filosófica. Podemos compreender a importância de ter estabelecido uma concepção de Filosofia que serviu não como mero ponto de partida para nossa aula, mas como um conjunto de critérios em conexão com os quais nosso objetivo pode concretizado. Antes do fazer, perguntamos: o que fazer, como, onde, para quem e qual a melhor via para este fazer. Estas perguntas uma vez esclarecidas, senão exaustivamente, pelo menos em grande medida, orientou o processo e o delineamento de nossa concepção teórico-filosófica.

No contexto em que se encontram atualmente os alunos, um dos aspectos que mais nos chamam atenção é o aparato estético, no sentido do poder das imagens, mídias, os meios digitais, e o uso cada vez mais crescente de uma gama de recursos audiovisuais. Como uma forma de mediação, “A linguagem da arte fala pela aparência e se torna co-nhecimento de uma realidade social, posto que sua realização passa pelo sujeito –parte do procedimento formal que a caracteriza” (VIANA; FRANCISCATTI, 2012, p.239). Assim, dentre os sentidos mais próximos do processo psicológico, podemos citar a vi-são, pois, por meio desta, o aluno vê o texto e as imagens historicamente relacionadas como: pinturas, esculturas, e formas das mais diversas atestando toda esta criatividade artística inesgotável.

Tendo este fato em mente, nesta atividade, nosso objetivo consistiu em apresentar seis “fotos” de diferentes autores, e de períodos e significados distintos, explicando o que pode ser considerado como mais característico da prática filosófica, formulando questionamentos acerca dos conteúdos das imagens, para que o aluno pudesse compre-ender a Filosofia como um procedimento mais relacional, prático e investigativo.

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Nosso propósito foi o de despertar a sensibilidade dos alunos, e permitir que emi-tissem opiniões sobre suas impressões (VISIONI, 2005). Para desenvolver, nesta aula, a concepção defendida, foi abordada a ação, do corpo e do pensamento, mas também a liberdade, a racionalidade, o âmbito conceitual, conhecimento e compreensão. Buscamos levar em conta a Filosofia enquanto construção humana, envolvendo um procedimento reflexivo, mas também como um conjunto de atos no interior do pro-cesso educativo para extração de novas estratégias e utilização de recursos disponíveis na promoção da qualidade do ensino.

A intenção de elaborar uma aula mais interativa teve como objetivo desenvolver uma atitude na qual, os alunos pudessem investigar as temáticas apresentadas no transcurso da aula, tendo como referência alguns períodos da história devidamente selecionados. Assim, os alunos teriam acesso à “cultura filosófica” de um modo não convencional abrindo um espaço para uma problematização mais próxima do seu “mundo” permeado por ícones.

Foram apresentadas três imagens: A coruja de minerva; O pensador de Rodin; e a célebre pintura de Platão e Aristóteles, de Rafael Sanzio. Nossa discursão se deu no seguinte sentido: Inicialmente foi apresentada a imagem clássica da coruja, como “sím-bolo” da filosofia, pois na verdade, esta é mais vinculada à mitologia grega e com o conceito de sabedoria desta cultura. Outro ponto importante foi o que filósofo Hegel notou que seu voo se dá no por do sol, significando o caráter histórico-descritivo da filosofia, a capacidade de enxergar nas entrelinhas da história, e superar as sombras da ignorância, a coruja também é capaz de girar seu pescoço num angulo de 180 graus, o que mostra o alcance da sua percepção no sentido da totalidade.

Prescindindo desta etapa, avançamos para a segunda, qual seja, a apresentação da imagem do Pensador. Neste ponto, estamos mais próximos do que o anterior, da con-cepção de filosofia defendida. Nesta imagem, este se encontra solitário, sentado e nu, imerso em seus próprios pensamentos, refletindo profundamente. Ao observá-lo, suge-re alguém no âmbito das ideias, porém, imóvel, senão na mente, ao menos no corpo. Por fim, a defesa desta concepção de filosofia como pode ser explicada com a pintura de Rafael. Nesta, Platão e Aristóteles estão em diálogo, caminhando, discutindo, no centro da sociedade.

O primeiro carrega consigo o seu próprio texto, Timeu, que trata da natureza do cosmos, e o filósofo apontam com seu dedo para cima. O segundo, Aristóteles carrega a obra Ética a Nicômaco, que trata do mundo restritamente humano e po-lítico. Interessante notar que juntos, poderíamos compreender esta simbiose entre o teórico e o prático, intelecto e o corpo, na filosofia. Esta atividade possibilitou uma tentativa modesta de materializar certa concepção utilizando como recursos

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elementos simples como fotos apoiadas em espumas dispostas na frente e um pou-co acima dos alunos.

O diferencial foram os aspectos explorados e a participação ativa destes, que se envol-veram na atividade perguntando, chamando atenção para detalhes históricos, mas, sobre-tudo na percepção de aspectos inerentes à filosofia. Os alunos compreenderam qual era o foco da apresentação, e que estava relacionado com a figura central, o que não implicou na compreensão de que filosofia é filosofia clássica, e nem que arte e filosofia são a mesma coisa. Esta experiência prática por sua vez nos deu condições de corrigir alguns equívocos, principalmente o de somente pensar abstratamente a filosofia enquanto futuros docentes, em detrimento de motivações práticas objetivas para ensino propriamente dito.

3.1.2 “A PRÁtICA dA ARGuMENtAÇÃO”

Dois problemas se mostram indispensáveis para qualquer discussão e pensamento acerca do ensino de filosofia. Primeiro, entender qual o caráter próprio da filosofia e, segundo, avaliar a possibilidade de uma aplicação metodológica coerente com a filoso-fia. Alguns pensadores já tentaram e tentam responder a essas questões na intenção de propor aquilo que seria o melhor ensino de filosofia. Ou mesmo justificar a existência e permanência da disciplina de filosofia no currículo do ensino médio. Quando se entra em sala de aula sem sequer ter pensado sobre essas duas questões não há como construir um exercício pedagógico consistente e relevante, e a filosofia pode acabar às margens da educação regular, sem razão de ser.

Nesse sentido, nossa atividade teve por objetivo estimular os alunos do oitavo ano à prática da argumentação. Mais que ensinar os conteúdos programáticos previstos nos currículos históricos de filosofia, acreditamos que essa disciplina tem por princípio a capacidade de argumentar, a priori, sobre assuntos pertinentes à natureza e à vida hu-mana auxiliando os alunos em seu processo de emancipação intelectual e de formação de seu pensamento próprio. Com esse trabalho, pretendemos acolher às duas questões acima, pensando uma atividade que tivesse clara uma metodologia de ensino coerente com uma concepção de filosofia.

A fim de coadunar a atividade com essa pretensão filosófico-educacional de de-senvolver e estimular a argumentação, a atividade proposta foi um julgamento, que adaptamos para a “Feira” uma dinâmica criada por Pedro (2012), que sugere essa forma de atividade para a sala de aula. Os alunos, divididos em grupos sorteados, compuse-ram a defesa, a acusação, o júri, o réu e o juiz.

O julgado era a personagem Robin Hood. Conhecido por ser um herói às avessas, Robin Hood, depois de destituído de seus bens, vivia na floresta armando furtos aos

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ricos para depois repassar àqueles que não tinham nada, aos pobres e às crianças. A partir dessa história, propusemos aos alunos que fizessem o julgamento da personagem. Para isso, deveriam apresentar ao menos dois ou três argumentos para defendê-lo ou condená-lo, e o juiz, analisando os argumentos da defesa e da acusação mais os votos do júri deveria, ao fim, dar seu veredito igualmente justificado. Terminado o julgamento, abrimos uma plenária para discutir a máxima atribuída à Maquiavel: “os fins justificam os meios”?

A principal proposta da atividade, como mencionada acima, consistiu em encorajar e estimular o exercício de pensar argumentos coerentes para uma determinada posi-ção. Não ignorando que a argumentação filosófica pode ser um pouco mais refinada do que a atividade possibilitara, tentamos extrair ao máximo dos alunos, sem referir a nenhuma posição filosófica canônica ou a um partido dito correto, suas posições sobre o assunto, bem como suas justificações para sustentá-las. Em se tratando de uma turma de Ensino Fundamental e de uma atividade dinâmica fora do formato de aula, o cerne da atividade consistiu em trabalhar a capacidade de argumentação em detrimento de um conteúdo específico da filosofia (o que pode ser acrescentado em uma aula normal). Pretendemos promover uma argumentação fundamentada, dentro dos limites óbvios, de uma questão próxima aos alunos e às suas realidades. Uma questão que, sem que eles soubessem de início se tratar de uma pergunta feita por um filósofo, pudesse ser por eles pensada e respondida.

Os resultados da atividade foram muito positivos, apesar de algumas dificuldades evidentes. Destacamos alguns principais resultados notáveis. Percebemos que a agitação é um fator que não pode ser desconsiderado. No entanto, mais que apenas uma cons-tatação, esse elemento de dispersão deve fazer parte do planejamento do professor, seja considerando as limitações causadas por ele, seja pensando estratégias de apreensão dos alunos – através de dinâmicas e quaisquer outras formas de reiterar os alunos quanto à importância do assunto tratado.

Outro ponto notável é o papel que a figura do professor cumpre no imaginário dos alunos. É perceptível a postura inicial de não aproximação que os alunos têm com o professor. Suas primeiras posturas são de defesa e segurança, que desencadeiam em ati-tudes de desdém, raiva e impaciência. No entanto, dentro dessa atividade conseguimos, com êxito, driblar essa postura. E não o fizemos por sorte. A consideração de teorias psicológicas de comportamento e aprendizagem nos auxiliaram nessa tarefa. O que pa-rece nos indicar a importância da multi-formação de um profissional de educação, uma vez que o trabalho de educação exige não só o conteúdo da disciplina que o professor ministra, mas principalmente as suas correlações com outras áreas, e a compreensão da psique humana, das posturas e dos papéis em jogo, em suas mais variadas manifestações.

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Assim, compreendemos que lidamos com pessoas, e não com máquinas que registram conhecimentos gerais.

Com essa postura, conseguimos o desejado dos participantes: ação e posição. Não enfrentamos ouvintes passivos, mas estimulamos participantes que se impuseram nas suas posições. Conseguiram formular argumentos, mesmo sem que fosse preciso dicas ou instruções. Fizeram por si próprios.

Tendo esses resultados em vista, podemos destacar algumas conclusões pertinentes para pensarmos o ensino de filosofia e o seu papel na educação. Primeiro, acreditamos que a atividade refletiu a importante ideia de que uma educação em que a filosofia cum-pre papel protagonista pode e deve voltar-se para o aluno, para o seu desenvolvimento cognitivo e crítico e para a sua, e só sua prática filosófica. Ela permitiu que os alunos pu-dessem participar e presenciar uma discussão filosófica. Segundo, ela ressaltou a necessidade de repensarmos a forma como a filosofia é ministrada usualmente nas escolas ao conciliar um conteúdo da história da filosofia com um exercício filosófico. Talvez essa reunião deva ser mais explorada nas aulas de filosofia. Terceiro, a atividade tornou bem evidente que há, ao menos em alguns casos, uma tensão entre a figura do professor e a do aluno. Enquanto essa tensão existir será ainda mais difícil estabelecermos um ambiente escolar harmonioso e capaz de cumprir seu papel social de formar e educar pessoas para a vida.

Por fim, concluímos que a atividade nos ajuda a defender que ensinar um conteúdo filosófico é tornar possível e acessível uma transição progressiva que leve a construção de uma autonomia intelectual, da capacidade do aluno de pensar por si mesmo e de sustentar a sua posição. Nós, professores, devemos ser apenas os mediadores desse pro-cesso, promovendo a transição do aluno para a sua autonomia. Ensinar um conteúdo filosófico é dar as condições para que o aluno exerça a sua liberdade de construção de conhecimento próprio. É possibilitar ao aluno exercer, e não decorar, a filosofia.

3.1.3 “ONdE SE CONtA O quE ACONtECEu ANtES quE A OdISSEIA COMEÇASSE”: PRÁtICA REFLEXIVA E AÇÃO NA FILOSOFIA PARA O ENSINO bÁSICO”

Partindo do princípio que a filosofia, desde suas origens, é uma forma de conheci-mento que busca a totalidade, o objetivo principal envolto neste trabalho é promover uma nova concepção de ensino da filosofia, buscando um olhar diferenciado às turmas de ensino fundamental e médio.

Com o intuito de encontrar na Filosofia a compreensão e ênfase das questões hu-manas ao longo de suas diversas narrativas, essa atividade implementou uma maneira inovadora quanto à aplicação de metodologias para o ensino básico.

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Primando o estudo filosófico como demarcador, modulando uma base em incontáveis perspectivas culturais, científicas e históricas da humanidade, e predominantemente interagindo acerca da prática das ações em detrimento da razão. Nesse sentido relati-vamente às revoluções científicas, às questões éticas perpassam pelo crivo da filosofia.

Em suma, filosofar é, segundo a concepção defendida como base da atividade aqui descrita, uma prática reflexiva que envolve observação e análise, promovendo um enca-deamento de concepções e ideias e por deveras o inverso. Gerando soluções e conflitos, mas, principalmente uma análise que problematiza e confere ao estudioso um olhar paradoxalmente crítico.

Dentro da perspectiva do Projeto “Feira de Filosofias”, desenvolvido pelo Departa-mento de Teoria e Planejamento de Ensino (DTPE) da UFRRJ na disciplina de Ensino de Filosofia, foi desenvolvida uma atividade na perspectiva construtivista “Onde se con-ta o que aconteceu antes que a Odisséia começasse”. Trazendo ao cenário infantil um texto filosófico com uma abordagem lúdico-infantil. Tendo como texto base a “Odisséia” de Homero, em uma versão adaptada para crianças (ROCHA, 2000).

Em sua fase experimental a oficina foi toda desenvolvida e aplicada dentro do pro-jeto “Feira de Filosofias”, mas a ideia objetiva desta oficina é em sua parte prática a adaptação do texto da Ruth Rocha “pelas crianças” com o apoio e supervisão do pro-fessor para uma linguagem de diálogo onde as personagens pudessem ser interpretadas, confeccionadas e apresentadas por elas em uma oficina de teatro de fantoches, trabalho este que necessita tempo hábil em sala de aula para sua realização.

A “Odisseia” é a história da volta de Ulisses, o mais astuto de todos os gregos, para sua ilha Ítaca onde era Rei. Para caracterizar alguns personagens da Odisseia foram confeccionados fantoches com materiais simples (plástico) para dar materialidade à narrativa, retratando ao que se conta antes que a aventura de Ulisses começasse.

A oficina deu-se para alunos do 4º ano do ensino fundamental. Foi realizada de ma-neira lúdica e bem aceita pelos educandos. Consideramos essa aceitação, pois após uma acomodação inicial, as crianças bastante ativas se movimentando e produzindo falas so-bre assuntos paralelos, foram participando e construindo discursos a partir da proposta.

Para atender às linguagens próprias a faixa etária utilizou-se uma abordagem bas-tante lúdica e com uma narrativa objetiva; valorizando os recursos para promover um ambiente amistoso e de aprendizado.

Relativamente a uma auto avaliação, reiteramos que provavelmente dado os recursos utilizados e somado a uma maneira prazerosa de ensinar foi absolutamente satisfatória tanto pela análise dos educandos quanto à profissional. Podemos chegar a essa conclusão dos resultados pela avaliação dos discentes, que manifestaram aprovação, ao preencher fichar simples com cores (vermelho, não gostaram; amarela, indiferente; verde, gostaram),

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que foram majoritariamente satisfatórias (verde); além dos seus relatos com professores e dos próprios professores ao produzirem seus relatórios de avaliação.

CONSIdERAÇõES FINAIS

A partir dos resultados percebidos, baseados nas percepções dos discentes e pro-fessores da escola publica que participaram da atividade, assim como dos graduandos envolvidos, nos pareceu relevante reafirmar que para o professor de filosofia é bastante importante ter claro qual é a sua concepção filosófica. A concepção filosófica do docen-te irá interferir e ajudar a construir o trabalho escolar de uma forma bastante enriquece-dora, permitindo aos participantes das dinâmicas didático-pedagógicas uma formação mais interrogativa e significativa.

Outro ponto que nos pareceu positivo foi que, apesar da maior parte do campo profissional do professor de filosofia na educação básica estar voltada para o ensino médio, o trabalho com as séries anteriores, do ensino fundamental, pode ser muito pro-fícuo para que o discente em formação, e mesmo o docente em serviço, seja desafiado a usar novas linguagens para o trabalho da filosofia escolar.

As novas linguagens, adaptadas às faixas etárias, parecem favorecer a um melhor esclarecimento para o docente sobre a sua própria concepção de filosofia, já que ele precisa tornar essa concepção clara para crianças e adolescentes, que não possuem, ge-ralmente, contato com a filosofia na escola. Esse exercício de se colocar como possuidor de uma concepção própria de filosofia, ao contrário de ser um direcionamento, pode permitir ao licenciando de filosofia ou ao professor em exercício de colocar a filosofia em ação, com atividades que demonstram uma posição sobre a filosofia e permitem novas posições dos discentes, fazendo das aulas verdadeiras oficinas que exercitam o filosofar, mesmo com todas as dificuldades que a escola brasileira apresenta em sua construção histórica.

REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

ALVES, Dalton José. A filosofia no Ensino Médio: ambiguidades e contradições. Cam-pinas: Autores Associados, 2002.

BRASIL, 2016. RELATÓRIO EDUCAÇÃO PARA TODOS. http://portal.mec.gov.br/docman/junho-2014-pdf/15774-ept-relatorio-06062014/file

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Ciências Humanas e suas tecnologias. Brasília, DF, 2000.

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PARANá, Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Filosofia. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/diretrizes_208/fi-losof ia.pdf Acesso em: outubro de 2016.

PEDRO, Waldir. Dinâmicas para aulas de filosofia. Rio de Janeiro: Wak editora, 2012.

ROCHA, R. Ruth Rocha conta a Odisseia. São Paulo: Salamandra, 2000.

RODIGO, L.M. Aprender filosofia ou aprender a filosofar: a propósito da tese kantia-na, In GALLO, S. (org.) Ensino de Filosofia: teoria e prática. Ijui: Editora UNIJUI, 2004.

SILVA, W. Considerações sobre a práxis didática no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, in O PIBID da UFRRJ: formação docente e práticas pedagógicas inovadoras em sala de aula. GRA-NHA, Gustavo Souto Perdigão [et al.] (ORG.)- 1. ed. - Rio de Janeiro : Imperial Novo Milênio, 2015. p.19-33

VIANA, C.M.J; FRANCISCATTI, K.V.S. Arte e Filosofia: Conhecimento e Crítica Cul-tural a respeito da (De) Formação Cultural. Inter-Ação, Goiânia, v.37, n.2 p. 237-254, Jul/ Dez, 2012.

VISIONI, A. L. A Dimensão Filosófica da Arte: Uma Análise do Espaço Conceitual na Experiência Estética. Anais- III Fórum de Pesquisa Científica em Arte, Curitiba, 2005.

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EStÍMuLOS PARA O FILOSOFAR: bREVES EXCERtOS dE tEXtOS CLÁSSICOS SOMAdOS à EXPERIÊNCIA

EStÉtICA EM uMA PERSPECtIVA HIStÓRICO-tEMÁtICA

Bruno Bahia – UFRRJ

A experiência é uma lanterna dependurada nas costasque apenas ilumina o caminho já percorrido.

Confúcio

uM PRObLEMA FILOSÓFICO COMO CONtEÚdO

Discute-se, ainda, no âmbito da educação brasileira, a pertinência e a utilidade do estudo de filosofia com crianças desde a educação infantil até os jovens do Ensino Mé-dio. O mundo pragmático e imediatista que vivemos requer habilidades que algumas pessoas julgam desconectas dos limites reflexivos da filosofia, propostos pelos professo-res. Pensamos que seja uma conclusão perigosamente equivocada.

A prática filosófica se aproxima cada vez mais das pessoas em seu cotidiano, para além das universidades. Quando surge na mente uma simples questão, sobre a mais banal das coisas que nos cercam, o homem filosofa, pratica filosofia, até perceber que realizar perguntas e buscar as respostas necessárias, torna a vida mais interessante (e porque não “digna”, como defendeu Sócrates?) para ser vivida.

Para o filósofo austríaco Wittgenstein (2001, p. 177), “a filosofia não é uma teoria, mas uma atividade”. Pode-se pensar, sob este prisma, no caráter dinâmico da filosofia: ela não é remota, distante, estritamente teórica, permeada por abstrações deslocadas da realidade. Filosofia faz parte do viver. Os filósofos, ao longo da história, conduziram suas preocupações a partir de questões pertinentes às suas épocas para compreender a dinâ-mica de seu tempo e melhor viver. Posicionaram-se frente a uma realidade investigável.

O filósofo, segundo Marcondes (2008, p. 55), não é aquele que detém o conhe-cimento, mas sim, “aquele que busca o saber, mas tem consciência de ainda não o ter encontrado, de não possuí-lo, de estar distante dele”. Quando não se tem posse de algo essencial, como o conhecimento filosófico, lançamo-nos em uma busca, ainda que seja incansável e perene. Tornamo-nos filósofos neste movimento.

O objetivo no Ensino Médio não é tornar os jovens em filósofos acadêmicos, mas despertá-los para a filosofia espontânea que trazemos em nós. O difícil desafio,

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portanto, é fazer com que os educandos se interessem pela filosofia, compreendendo sua relevância e elaborando suas próprias críticas. Por isso, de um modo geral, procuramos partir da realidade dos estudantes, de suas experiências pessoais, suas dúvidas e incômodos para adentrarmos nesta área específica do saber (MARCONDES, 2008, p. 64-65).

Posto isto, apresentaremos uma experiência realizada no Colégio Pedro II, insti-tuição do Governo Federal, onde se privilegia o recorte temático, mas não ignora a trajetória histórica no qual ele se insere. Em outros termos, há uma articulação entre a abordagem temática e histórica, assim como também em relação às linguagens tra-balhadas com imagens / músicas / poesias, somadas ao texto e ao contexto filosófico. Apontaremos o projeto desta concepção, ilustrado a partir dos estímulos desenvolvidos para o filosofar.

Primeiramente, procuraremos traçar um panorama da experiência realizada, expon-do dados quantitativos que impactam e justificam a utilização da metodologia proposta que, posteriormente, será explicada desdobrando-se para um terceiro momento com os exemplos realizados em sala de aula. Comentaremos os trabalhos e os resultados obti-dos dentro da proposta curricular de ensino, vislumbrando as possíveis reorientações para um estudo mais dinâmico, crítico e consciente. Por fim, analisaremos os resultados com base nas atividades experimentadas.

A ORGANIZAÇÃO PEdAGÓGICO-MEtOdOLÓGICA

Observamos várias reclamações por parte dos alunos sobre o tamanho e a densi-dade dos textos estudados no curso de filosofia, durante anos seguidos como professor da disciplina. Resolvemos experimentar a utilização de textos mais curtos, recortados nas ideias centrais, mas que fossem inteligíveis e passíveis de discussão e que, ainda, pudessem despertar o interesse do próprio aluno em ir além da extensão do excerto trabalhado.

Tendo como suporte a problemática apresentada nos artigos já citados de Cerletti, Favaretto, Marcondes e Navia (2008), pensamos em traçar um panorama sobre o tema proposto exemplificando com trechos de textos de períodos históricos distintos aliados a outras linguagens que estão para além da escrita.

O tema / problema selecionado teve como parâmetro a proposta curricular do Co-légio Pedro II, onde se orienta a estética como primeiro assunto a ser trabalhado na terceira série do Ensino Médio. A partir daí, pensamos em utilizar, metodologicamente, uma turma como experimental e outras duas como controle. A escolha da turma ex-perimental partiu do seguinte princípio: uma turma que tivesse as variáveis “interesse” e “aproveitamento” medianas com a finalidade de percebermos se elas iriam se alterar

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com a nova metodologia aplicada à disciplina. Denominamos os grupos trabalhados de tuRMAS 01, 02 e 03, que nada correspondem com a real nomenclatura delas por parte do colégio.

O grupo experimental foi aquele em que desenvolvemos o novo estímulo. Este grupo foi o da tuRMA 01. Esta turma, com 32 alunos, apresentava baixo rendimento e interesse pela disciplina filosofia nos últimos dois anos. Os grupos de controle são re-presentados pelas tuRMAS 02 e 03. A primeira, com 33 alunos, apresentava um alto rendimento e interesse pela filosofia, e a segunda, com 32 alunos, baixo rendimento, mas com bom interesse pela filosofia, também nos últimos dois anos.

Assim selecionados, determinamos o que seria trabalhado com cada turma. Nas turmas de controle, trabalhamos textos mais longos de dois autores específicos: a Crí-tica da Faculdade do Juízo, de Immanuel Kant (2012), e O Nascimento da Tragédia, de Friedrich Nietzsche (1992), selecionados da seguinte forma7:

1. Primeiro momento do juízo de gosto segundo a qualidade (p. 37-47);2. Analítica do sublime (p. 88-130);3. Caps. 1, 2, 3, 10, 11, 12, 13 (p. 27-38; 69-87).

Para o grupo experimental, somados aos textos, selecionamos também alguns recur-sos que chamaremos de sensibilização estética, que constituem um conjunto de imagens, músicas, poesias, filmes, reportagens, epígrafes, que possam estimulá-los a articular o tema proposto / problema levantado por algum filósofo, com a criação artística articu-lada ao seu cotidiano.

Nem sempre conseguiremos nos apropriar de produções culturais mais próximas dos alunos, mas seguramente em algum momento essa articulação é realizada com sucesso.

Preferimos utilizar os recursos midiáticos para iniciar uma nova discussão em que uma epígrafe, uma imagem ou uma propaganda, por exemplo, possam conduzir-nos a uma reflexão sobre o tema, e ser apresentado, de forma mais instigante, o filósofo a ser trabalhado.

Após a sensibilização, ocorreu a contextualização do texto e do filósofo a ser traba-lhado. Não há como dissociarmos o pensador e sua produção de seu contexto histórico, de sua geração, da relação com seus pares. Ao estudarmos Kant (2012), por exemplo, para além das reflexões acerca do juízo de gosto, poderiam ser enunciadas as contribuições importantes que seu pensamento legou para os debates sobre ética e conhecimento, para, então estudarmos ao excerto.

7 As referências completas dos livros se encontram nas “Referências bibliográficas”.

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Nos grupos de controle, a sensibilização e a contextualização ocorreram da mesma maneira. Uma diferença importante: determinado problema / filósofo não se esgotou em uma aula, mas foram retomados em momentos seguintes. A sensibilização e contex-tualização da primeira aula, não se repetiram nas demais, tendo mais tempo disponível para a discussão dos textos.

Ao fim de cada discussão, elencamos um breve sumário com os pontos mais relevan-tes tratados em sala de aula (são diretrizes para estudos futuros). Por fim, construímos algumas questões para analisar a compreensão do que foi apresentado em sala de aula.

O MAtERIAL dE APOIO PEdAGÓGICO

Organizamos o conteúdo de cada aula pensando no tema a partir de um período determinado, permitindo que o nosso aluno tenha uma ideia do problema frente a um espaço de tempo permeado por uma mentalidade específica. Não houve a pretensão em estabelecer uma linearidade, pois sabemos o quão complexo é determinar uma sequên-cia histórica do pensamento. Os incômodos que levaram os filósofos a determinadas inquietações são diversos, e assim como eles, podemos também pensar a realidade à luz de nossa trajetória, pois, como apontou Gramsci (1999, p. 93) – “todos os homens são filósofos”.

Sob esta perspectiva, exemplificaremos como uma aula introdutória ao estudo da estética, organizada do modo como anunciamos no final da seção anterior. Podemos, então, iniciar nossos estudos problematizando a estética como área passível de discussão filosófica. Para isso, selecionamos uma epígrafe de Nietzsche (2012, 16[40] § 6-7) para o início do debate, dentre tantas outras que também poderiam ser utilizadas com a mesma finalidade: “A verdade é feia: temos a arte para não morrer da verdade”. A partir deste estímulo inicial, começamos a nos questionar sobre o que é arte e sua relação com a ideia de verdade.

Geralmente, há uma associação entre a obra de arte e a representação do belo, con-duzindo-nos a outros problemas estéticos importantes. Para fomentar a discussão entre os alunos, propusemos a utilização de uma imagem para a sensibilização, ou de uma poesia. Para esta etapa, disponibilizamos duas fontes que consideramos serem interes-santes para essa discussão: uma obra do artista brasileiro Vik Muniz, conhecido deles por ter composto uma parte da abertura de uma telenovela, composta por brinquedos usados, e os “Versos Íntimos” de Augusto dos Anjos.

Conduzimos os debates nas três turmas partindo sempre da percepção dos alunos acerca das duas obras, separadamente em um princípio, e em suas convergências, posteriormente. A arte teria como objeto somente o belo?

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Imagem 1 – “Sarah Bernhardt” (Vik Muniz, 2010)

Versos ÍntimosVês! Ninguém assistiu ao formidávelEnterro de tua última quimera.Somente a Ingratidão – esta pantera – Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!O Homem, que, nesta terra miserável,Mora entre feras, sente inevitávelNecessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!O beijo, amigo, é a véspera do escarro,A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,Apedreja essa mão vil que te afaga,Escarra nessa boca que te beija!

(ANJOS, Augusto dos. Eu / outra poesia. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.)

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Após a sensibilização inicial e a contextualização do surgimento da estética en-quanto conhecimento sistematizado, conduzimos os excertos de dois textos que tratam deste tema8.

A primeira problematização filosófica, após a sensibilização inicial, foi pensada sobre o conceito de estética fundamentado por Baumgarten (1993, p. 105), onde a estética foi definida como “a ciência do conhecimento sensitivo”, e as contribuições que estética pode oferecer para a filosofia por meio das reflexões de Dufrenne (1972, p. 23-25). O filósofo estabeleceu o contato dos seres humanos com as artes como um primeiro período de humanização, construindo, assim, uma inteligência própria. A partir daí, fundamentou-se as relações posteriores dos homens com a natureza e também entre si. E será que, no século XXI, ainda não há no homem uma “sede de beleza”?

Após um primeiro contato com o texto, onde os principais conceitos foram pontua-dos, coube-nos chamar a atenção para eles. Finalizamos cada aula com um sumário e algumas questões. O sumário sinalizou o conteúdo principal daquela aula para analisar-mos se o mesmo ficou claro para o aluno. Por exemplo, poderíamos citar: O conceito de arte; O que é estética? A questão do talento na criação artística; Função da estética; Relação entre estética e filosofia. Desenvolvemos questões para que haja uma reflexão sobre o tema, assim como também um panorama do que foi estudado naquela aula:

1. Defina com suas palavras o que você entendeu por “estética”.2. Pode-se afirmar que a arte é uma criação humana? Relacione a arte e o conceito

antropológico de cultura.3. Estabeleça a relação entre a arte e os valores.4. Qual a contribuição da estética para a filosofia?

Acreditamos que este tipo de estrutura permitiu ao aluno uma organização de suas ideias, facilitando não somente o entendimento do conteúdo, mas também o auxiliando nas articulações a serem realizadas com os problemas estéticos enxergados em seu cotidiano.

A partir dessa estrutura, sugerimos outras problematizações para o tema. O grupo experimental estudou outros autores por meio de excertos selecionados, como já ex-pusemos. É importante lembrar que esta seleção é apenas um recorte escolhido de um universo amplo da história da filosofia. O professor, frente à sua realidade de sala de aula, é quem melhor pode selecionar quais textos e filósofos são melhores trabalhados naquele contexto.

8 No colégio há uma estrutura em que podemos organizar os textos para serem fotocopiados com antece-dência e formarmos uma antologia para todos os alunos. Com os textos em mãos, eles podem relê-los, fazer anotações e encontrar as referências necessárias para buscar os textos completos.

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Na segunda aula problematizamos a mímesis no debate estético. Para tanto, recor-remos a Platão (2000, p. 438) e a Aristóteles (s/d, p. 300) como exemplos de reflexões sobre este tema como problema filosófico na Grécia Clássica. Embora a arte de imitar estivesse presente em ambas os pensamentos, os filósofos trataram o problema de modo distinto, ou seja, pode-se ter variados posicionamentos frente a um mesmo objeto. Quem estaria correto sobre o caráter imitativo da arte? Os dois? Ou nenhum dos dois?

A aula seguinte privilegiou a Crítica do Juízo, onde Kant (2012, p. 47) afirmou ser o gosto “a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um modo de representação mediante uma complacência ou descomplacência independente de todo interesse. O ob-jeto de tal complacência chama-se belo”. Aqui o belo é representado como objeto de uma satisfação universal. Os alunos animaram-se bastante para discutir essa questão justamente por discutir se há ou não um belo universal independente do gosto.

Na sequência, trabalhamos três excertos de Hegel (1996, p. 59; 274-277) para discutir a obra de arte e sua criação. Primeiramente partimos das três principais ideias relativas à obra de arte – como um produto humano, como recorrência ao mundo insensível mesmo dirigindo-se à sensibilidade do homem, e como ela possui uma fi-nalidade imanente. Posteriormente, problematizamos a criação artística, a imaginação criadora, a fantasia, para finalizarmos com o debate sobre o talento e a genialidade.

Para finalizar os estudos, trouxemos outros dois problemas que nos parecem ser essenciais para trabalharmos com os alunos em nível médio. O primeiro deles é per-ceber se a arte produz somente o belo. Para tanto, fizemos outra sensibilização com a obra guernica (Pablo Picasso, 1937) projetada em uma sala escura para que os jovens pudessem identificar na imagem aquilo que era belo e/ou não. Utilizamos os estudos de Bruyne (1930, p. 41) onde ele afirma que muitas obras-primas “representam assuntos horríveis, máscaras terrificantes, pesadelos que enlouquecem”. Será o mesmo prazer que sentimos diante de diferentes obras? O segundo problema é o da indústria cultural, trabalhado por Adorno e Horkheimer (1985, p. 99-103), que trazem para o debate vários objetos presentes no cotidiano e são passíveis de discussão filosófica estética, iluminando o nosso pensamento.

Embora as aulas tenham tido uma ordenação histórica, elas não seguiram uma linha do tempo, mas apenas alguns temas e filósofos foram trazidos à baila para alicerçarem os debates. Compreendemos que não há uma linearidade histórica do pensamento, mas quando organizamos os temas por meio de um determinado período, percebemos o quão se torna mais inteligível para o aluno determinado assunto. Ele passa a estabelecer vínculos com outras disciplinas como história, artes, literatura, sociologia, e entende que o conhecimento filosófico não é isolado, estático e absoluto.

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RESuLtAdOS

Observamos alguns resultados consideráveis em relação à metodologia aplicada no grupo experimental (turma 01).

A tabela abaixo ilustra as médias das turmas no ano de 2013 e no primeiro trimestre do ano de 2014.

Turma 01 Turma 02 Turma 031º Tri 2013 6,2 7,2 6,72º Tri 2013 5,8 7,1 7,23º Tri 2013 6,5 7,1 6,51º tri 2014 8,1 7,2 6,9

Notamos que o desempenho da turma 01 melhorou sensivelmente em relação às outras turmas de controle. Além do desempenho quantitativo, o nível de discussão das aulas e o interesse na realização de exercícios e procura pelo complemento dos textos trabalhados aumentou bastante. Outro fato interessante foi perceber que alguns alunos se interessaram em conhecer o pensamento de filósofos contemporâneos aos que foram estudados.

Por costume, o Colégio Pedro II realiza diversos trabalhos interdisciplinares e um deles, que tomamos como exemplo, é o da disciplina de Língua Estrangeira – Espanhol. O professor pediu que os alunos fizessem um cartaz sobre uma disciplina que, para eles, fosse mais relevante e que seu conhecimento fosse utilizado ao longo de suas vidas. Enquanto o grupo de controle 02, produziu dois cartazes sobre a filosofia e o grupo 03 apenas 01 (o trabalho foi realizado em grupos com quatro componentes), o grupo 01 produziu quatro cartazes, totalizando 16 alunos de uma turma de 32, 50%.

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Alguns alunos, após o resultado do primeiro trimestre, foram perguntados sobre o que acharam deste período em relação aos anteriores (os nomes são fictícios para pre-servar suas identidades):

Eu gostei muito deste trimestre. Foi mais fácil de entender a matéria e de estudar para a prova também. Dá vontade de ler mais e eu nem gosto de ler. (Mariana, 17 anos)

Agora dá pra ver que a filosofia está em todo lugar. É igual a química, tá ligado? Neste trimestre eu até li os textos. No ano passado não tinha saco. (Pedro, 18 anos)

Adorei ter contato com as obras de arte, tentar entender o que está por trás delas. Queria pensar essas coisas todas. Mas acho que o objetivo é pensar no que está aqui perto da gente. Adorei mesmo. (Jéssica, 18 anos)

9 Imagens 2 a 5 – Cartazes confeccionados pelos alunos na turma experimental (acervo do autor, 2014).

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CONSIdERAÇõES FINAIS

Descrevemos neste ensaio um breve relato de experiência sobre uma prática desenvolvida com alunos do Ensino Médio com um tema que eles julgam muito interessante – a estética. A proposta foi lançar luz e trocar experiências com a finalidade de pensarmos e construir-mos métodos para que a filosofia seja, para eles, um movimento apaixonante e interessante, assim como é para nós, sem processamentos e simplificações que podem descaracterizá-la. Neste sentido, defendemos a utilização do texto filosófico; é um acesso necessário.

Sabemos que nossa atividade docente é uma prática constante de estudo e supera-ção marcada pelo tempo presente, mas a filosofia nos remete ao movimento de voltar o olhar para uma tradição que refletiu e problematizou sua época.

O ensino de filosofia em nível médio é uma construção que não se erige de modo estanque. Talvez, nem vejamos seus resultados diretamente nos alunos. Mas sabemos da validade dessas contribuições.

Demonstramos, aqui, apenas algumas sugestões que, somadas a tantas outras, po-dem nos ajudar nos tempos difíceis onde a educação se insere. Precisamos estar todos atentos. Quando se fala em “reaprender a ver o mundo”, como apontou Merleau-Ponty (1999, p. 19), notamos o necessário – aprender a enxergar o mundo de outra maneira.

Assim como a turma experimental respondeu muito bem aos estímulos propostos, outras que virão poderão expressar tantas outras necessidades, demandas e atenções. Por isso, o espaço aberto para se pensar o ensino e o estudo de filosofia no nível médio é essencial para a Filosofia.

REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

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BRUYNE, E. Esquesse d’une Philosophie de l’Art. Bruxelas: Albert Dewit, 1930.

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DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. São Paulo: Perspectiva, 1972.

FAVARETTO, C. Filosofia, ensino e cultura. In: KOHAN, W. (org.). Filosofia: caminhos para seu ensino. Rio de Janeiro: Lamparina, 2008.

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GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere (vol. 1). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

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KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

KONDER, L. Filosofia e Educação. Rio de Janeiro: Forma & Ação, 2006.

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A FORMAÇÃO dE PROFESSORES PESquISAdORES-REFLEXIVOS: EFEItOS POSSÍVEIS SObRE A PRÁXIS

PEdAGÓGICASonia Regina Mendes dos Santos – UERJ

Patricia Maneschy – IFRJ NilópolisDiego Ferreira – USP

1. A PESquISA E A buSCA POR uMA IdENtIdAdE PROFISSIONAL dO PROFESSOR

Desde os anos vinte do século XX, a profissão docente vem sendo organizada em torno de duas dimensões; corpo específico de técnicas e conhecimentos e um conjunto de valores éticos (NÓVOA, 1987).

Esse retrato do profissional docente não ficou estático e a partir dos anos 1960 encontraremos um professor que é progressivamente afastado da concepção e mais ligado à execução, ou seja, ele não concebe o que ensina, nem os caminhos para passar o conhecimento, a didática. Nesse sentido, o professor é cada vez mais técnico, mais executor do que criador, o que impacta negativamente a atividade de ensino, o que iniciará um processo de precarização de suas carreiras nominado “desprofissionalização docente”, que marca a desvalorização de seu trabalho.

Nóvoa (1992) considera que contribuíram para este movimento as incertezas face às missões da escola e o papel que ela assumiu na reprodução cultural e na formação das elites. Na mesma linha o desencontro com a práxis se observou numa profissionalização (formação) que afastou progressivamente o professor da possibilidade de pensar sua prática em relação com o movimento teórico que o envolve.

A racionalidade técnica predominante na formação detinha conhecimentos formali-zados e interpretava a ação docente como limitada à escolha dos meios mais adequados à resolução eficaz dos problemas. Naquela visão, mais tecnicista, havia uma separação entre teoria e prática, a primeira existente na universidade e a segunda nas escolas. Esperava-se que o professor aplicasse a teoria produzida na sua prática sem o necessário reconhecimento do saber advindo da prática do professor.

A partir dos anos 1980, um novo ímpeto na profissionalização docente ocorrerá. Nele, pesquisadores importantes mostrarão que o ensino é uma atividade profissional que se apoia num sólido repertório de conhecimentos. Estes pesquisadores verão na prática um caminho para a valorização e produção de saberes. Para tanto, os professores

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são vistos como práticos reflexivos (ZEICHNER, 1993, TARDIF, 2002). A percepção dos professores vistos como uma categoria profissional de um fazer vocacionado e de formação pautada na razão técnica prescritiva é superada pelo reconhecimento da riqueza de experiências que reside na prática dos bons professores.

A partir daí, estaremos diante da visão de que a reflexão é essencial à profissão docente (ZEICHNER, 1993, SCHÖN, 2000, TARDIF, 2002). Por consequência, as pesquisas deste campo de pesquisa educacional se voltam para a maneira como profes-sores ensinam. Objetivarão, por meio delas, principalmente, oferecer ajuda para que futuros professores estejam preparados para a complexidade do ato de ensinar. Os estudos no campo educacional estimularão uma atitude investigativa dos professores.

A prática reflexiva é vista como espaço de experimentar, de investigar, de enten-der e enfrentar situações complexas, momento de confrontação entre a realidade e o conjunto de esquemas teóricos e de convicções do profissional. Por essa perspectiva, a atuação do professor rompe com a dicotomia entre pensar e o fazer, experimenta na situação a elaboração de uma nova compreensão para mudá-la. Como consequência, na área de formação de professores, aparecerão as práticas de formação-ação e formação--investigação (PEREZ-GOMEZ, 1992).

Para Schön (2000), os processos de formação deveriam pautar-se na reflexão na ação e sobre a ação. O autor indaga-se sobre qual o conhecimento intuitivo que pode descrever e analisar a intervenção realizada. Argumenta, ainda, que a prática profissio-nal não pode ser descrita segundo um sistema de normas de ação preconcebidas, as regras técnicas não são capazes de darem repostas a situações diferenciadas, inéditas. A ideia do professor reflexivo busca superar a crítica à lógica da racionalidade técnica que marcou sobremaneira a formação docente. Nessa perspectiva, a teoria é compreendida como um conjunto de princípios gerais e conhecimentos científicos e a prática como a aplicação da teoria e técnicas científicas. O fundamento necessário para os processos de formação e profissionalização estão na base reflexiva da atuação do profissional.

O que poderia significar um novo balizamento para os processos de formação, entretanto, enfrenta críticas, principalmente, pautadas na maneira como o conceito de professor reflexivo tem sido usado. A defesa da perspectiva dos professores como práticos reflexivos rejeita por completo as concepções de que os professores aplicam passivamente as reformas educacionais e proposições concebidas e ditadas por outros atores institucionais situados hierarquicamente acima. Um outro aspecto seria consi-derar que a reflexão por si só tanto no ensino como na formação resultaria num ensino melhor. Sob a bandeira da reflexão tem-se limitado o processo reflexivo unicamente às estratégias de ensino, excluindo qualquer consideração sobre as perspectivas e valores representados no que é ensinado e, com menor frequência, sobre as condições sociais

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em que ele acontece. O importante é avaliar o tipo de reflexão que deve ser incentivada em programas de formação e nas escolas identificadas com um impulso democrático e emancipador. Cabe ainda registrar a insistência de que a reflexão dos professores se realiza num diálogo solitário consigo mesmo. Se adotado como verdade absoluta, tal enfoque impõe limites à reflexão como prática social, através da qual os grupos de do-centes podem apoiar-se mutuamente; não se interrogaria o uso das práticas pedagógicas usadas pelos docentes que se revestem de movimentos não explícitos nos contextos escolares. Este último possui uma dinâmica própria, estabelecendo parâmetros de uti-lização das práticas docentes como identidade, agregando objeto diferenciado entre as escolas e as próprias identidades da prática docente. Traz a intercessão da compreensão docente advinda da formação recebida como do uso das práticas de gestão favorecedo-ras ou não das práticas docentes investigativas. Nos processos formativos, tais equívocos criam a ilusão da aprendizagem docente (ZEICHNER, 1993, p. 59).

Nessa linha, Gatti (2013) esclarece a formação enviesada pela escola e a necessidade da formação docente ser coerente com os projetos e práticas.

A preocupação com a educação escolar, com a escola, nos reporta a pensar em pessoas, em relações pedagógicas intencionais, portanto, em profissionais bem formados para isso, dentro das novas configurações sociais e suas demandas; profissionais detentores de ideias e práticas educativas fecundas, ou seja, pre-parados para a ação docente com consciência, conhecimentos e instrumentos (GATTI, 2013, p. 54).

Contreras (2002) reconhece que a concepção da prática recupera a riqueza das experiências dos professores, pouco ou nada valorizada nos meios acadêmicos. Os pro-fessores têm teorias que podem contribuir para a melhoria do ensino, no entanto, o autor destaca que a prática reflexiva não se realiza abstraindo-se do contexto social em que ocorre, e, portanto, não deve se restringir ao trabalho do professor na sala de aula.

[...] apenas reconhecendo sua capacidade de ação reflexiva e de elaboração do conhecimento profissional em relação ao conteúdo e de sua profissão, bem como os contextos que condicionam sua prática e que vão além da aula, os professores podem desenvolver sua competência profissional, entendida mais como competência intelectual que não é somente técnica (CONTRERAS, 2002, p. 84).

Em Zeichner (1993), a prática reflexiva tem como característica a tendência de-mocrática e emancipatória e o enfretamento das situações de desigualdade e injustiça dentro da sala de aula.

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Reconhecendo o caráter fundamentalmente político de tudo o que os pro-fessores fazem, a reflexão dos professores não pode ignorar questões como a natureza da escolaridade e do trabalho docente ou as relações entre raça e classe social por um lado e acesso ao saber escolar e sucesso escolar por outro (ZEICHNER, 1993, p. 26).

A prática reflexiva pressupõe uma situação institucional que conduz a ações cole-tivas, desse modo, orientadas para alterar as interações na sala de aula, na escola e na comunidade. Mesmo diante do posicionamento crítico quanto a restrição da reflexão restrita às estratégias de ensino na aula desconsiderando a influência da realidade social sobre as ações e pensamentos que condicionam a prática profissional, tudo indica que estamos cercados do “praticismo”10 (KEMMIS,1993; GIROUX, 1990; CONTRERAS, 2002). As preocupações com a prática para a construção do saber docente têm levado a uma banalização do uso do termo reflexão.

Pimenta (2002) destaca que:

[...] a superação desses limites se dará a partir de teoria(s) que permita(m) aos professores entenderem as restrições impostas pela prática institucional e histórico social ao ensino, de modo que se identifiquem o potencial transfor-mador das práticas (PIMENTA, 2002, p. 25).

Complementando essa perspectiva, Moraes (2001, apud DUARTE, 2003, p. 606) destaca a importância da apropriação teórica para a formação docente. A autora considera que o movimento que prioriza a eficiência e a construção de um terreno consensual que toma por base a experiência imediata ou o conceito corrente de “prática reflexiva” se faz acompanhar da promessa de uma utopia pragmatista, ou seja, basta o “saber fazer”. A teoria é considerada perda de tempo ou mesmo especulação metafísica.

Duarte (2003) acredita que

De pouco ou nada servirá mantermos a formação de professores nas universi-dades se o conteúdo dessa formação for maciçamente reduzido ao exercício de uma reflexão sobre os saberes profissionais, de caráter tácito, pessoal, particu-larizado, subjetivo, etc. (DUARTE, 2003, p.620)

Para Miranda e Resende (2006) o ideal da formação está condicionado a uma só-lida formação teórica cujo princípio deveria ser a fecundidade da prática social em sua estreita vinculação com a mesma teoria, sobretudo quando ela exerce seu vigor crítico.

10 Tendência que hoje se verifica de estabelecer o primado da ação sobre a reflexão, da prática sobre a teoria, da experiência sobre o pensamento.

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Mas não há crítica possível sem a mediação da teoria. Como a teoria não é algo que possa ser buscado ou constituído para um fim dado (como instrumen-to), não há alternativa senão assegurar uma formação teórica aos professores. Isso, evidentemente, custa caro, requer uma mudança cultural de gigantescas proporções, contraria os interesses da indústria cultural e, sobretudo, tem o inconveniente de gerar um professorado crítico e reivindicativo, difícil de ser administrado (Idem, 2006, p. 517).

Ainda segundo as autoras, a eventual tendência ao “praticismo” tem como consequência o “aligeiramento da formação, a descaracterização da universidade como agência de forma-ção de professores, a banalização da pesquisa, a redução das condições de autonomia e rigor para o exercício da crítica” (ibidem, p. 517). Contudo, pode-se refletir sobre até que ponto uma relação direta entre formação, crítica e reivindicação é possível.

Atrela-se a esse aspecto a constatação de que as instituições incumbidas da forma-ção inicial de professores, muitas das vezes, organizam-se sob o predomínio de um currículo montado sob a lógica disciplinar, com conteúdos fragmentados seguidos de momentos de aplicação (MELLO, 2000, BREZEZINSKY, 2008). De modo análogo, os projetos de formação continuada assumem o modelo escolar, limitados à oferta de cursos voltados à transmissão de um corpo de conhecimentos e técnicas definidos como importantes para o exercício profissional.

Mas, o que vem mudando na formação de um professor reflexivo? Gatti (2013) e Charlot (2009) consideram alguns posicionamentos que vêm na

contramão dessa perspectiva, que percebemos reducionista do perfil da formação e da prática docente constituidoras da práxis de valor agregado à repercussão do trabalho apreendido e da sabedoria associada. Os autores sinalizam que as pedagogias a partir de condicionantes de cunho ideológico fundam sentidos nas práticas pedagógicas.

Na superação dos reducionismos das práticas submissas às teorias, os professores, utilizando-se da investigação reflexiva, podem optar por apreendê-las de um modo significativo. Como? Direcionando seu olhar para aquilo que conhecem melhor do que ninguém: a relação ensino-aprendizagem. O professor que observa mais anota mais, constrói mais pontes entre o conhecimento científico e o saber escolar. Ele deve ter “po-der e desvelo na sala de aula” (NOBLIT, 1995), zelo pela turma, responsabilidade por conduzir os alunos ao melhor aprendizado possível. Isto se faz com mais registro e mais publicação do resultado de seu trabalho. Para tanto, em sua formação, o docente deve aprender técnicas básicas de pesquisa. Isto não pode faltar na sua formação. No chão da escola, a qualidade de sua prática terá, em certa medida, ligação com a sua capacidade de selecionar as melhores estratégias para os fins planejados para uma classe ou partes dela. O exercício da atividade investigativa traz elementos para a prática docente e vice-versa.

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Para que não se percam e que possam ser experimentadas essas práticas podem e devem ser relatadas, publicadas, premiadas.

Para Gatti (2013), as compreensões sobre as práticas educativas são fecundas e mo-bilizadoras da ação docente pautada na consciência, nos seus conhecimentos próprios; movimento em que os docentes devem, ao longo da ação pesquisadora, ir adquirindo os instrumentos necessários para realizar as práticas docentes contextualizadas.

Segundo Sacristan (2002) estamos diante da elaboração de uma metáfora reflexiva, que converte os professores em profissionais reflexivos, em pessoas que refletem sobre a prática, uma premissa que converte os professores em investigadores que buscam em seu próprio âmbito de trabalho, quando, na verdade, o professor que trabalha não é o que reflete, o professor que trabalha não pode refletir sobre sua própria prática porque não tem tempo, não tem recursos.

O que está em jogo efetivamente é que todas essas metáforas coincidem em um princípio que caracteriza a situação atual:

[...] não há conhecimento firme, seguro, que possibilite uma prática correta, porque a prática deve ser inventada pelos práticos. Quer dizer, a prática não pode ser inventada pela teoria; a prática é inventada pelos práticos. O proble-ma é saber o papel que cumpre a teoria na invenção da prática (SACRISTáN, 2002, p. 23).

Como alternativa o autor afirma que a ciência pode ajudar o pensamento dos pro-fessores, mas transmitir-lhes a ciência não equivale a que pensem de maneira diferente. O grande fracasso da formação de professores está em que a ciência que lhes damos não lhes serve para pensar. Entretanto, a ciência pode ajudar-nos a pensar.

É necessário distinguir o “pensar” da ciência. Pensar é algo muito mais importante para os professores do que assimilar ciência, porque pensar é algo muito mais comple-xo do que transmitir ciência. Por suposto, nem sequer as coisas que nós fazemos são ciência. No melhor dos casos, são disciplinas científicas, não ciência. Mas, em qualquer caso, creio que o professor pensa, não de acordo com a ciência, mas de acordo com sua cultura e aprende sobre o saber da forma com que compreende, categoriza, organiza e interpreta o mundo (CERTEAU, 1980). Sob essa visão, o professor, a partir de sua experiência escolar e o saber elaborado, adquire um saber diferente que lhe confere aprendizagens sob um conteúdo que pode ser da ciência – conteúdo intelectual –, e pode apreendê-lo de forma mais ampla para aplicá-lo em situações diferentes na sua atividade de ensinar.

Pelo o que pudemos observar, a literatura sobre a formação de professores tem se deslocado do preparo centrado no domínio de meios e estratégias, buscando a eficácia

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na consecução dos objetivos escolares, centrada na sala de aula, para uma formação me-tafórica da reflexão, sujeita a ser analisada com cuidado com relação às possibilidades que se colocam para a formação docente e para a gestão escolar.

O cuidado essencial é ver com rigor crítico o uso recorrente do termo “prática re-flexiva”, como se ele fosse suficiente para os desafios da prática ou pudesse dar conta dos problemas educacionais complexos. O desvio de atenção das questões estruturais educacionais pode provocar o isolamento individual dos professores, que veriam seus problemas como só deles ou dos alunos, não os relacionando à estrutura da escola e aos sistemas escolares. Um outro aspecto é desconsiderar o peso das raízes culturais, sim-bólicas dos aspectos didáticos e dos aspectos sociais, das quais se nutrem os professores para entender como atuam e por que atuam e como queremos que atuem.

O fato de a professora ser mulher introduz um viés na profissão docente. O fato de a professora ser da raça negra também introduz um viés na profissão docente etc. Não digo que isso seja negativo ou positivo, mas um viés. Isso quer dizer que o professor, antes de mais nada, é uma pessoa de uma cultura que, quando é culta, ensina muito melhor. E dizer que um professor se nutre das raízes culturais e não da ciência nos obriga a considerar os ambientes de aprendizagem, os contextos nos quais eles surgem e as condições de trabalho em que vai trabalhar (SACRISTAN, 2002, p.27).

A base reflexiva aparece na profissão colocando em jogo o reconhecimento profissio-nal da formação dos saberes profissionais para a prática docente, porém a capacidade de compreender os envasamentos das relações com os aspectos culturais, sociais, históricos e científicos da própria formação pedagógica, com ênfase na concepção intelectual, acaba por desfigurar o fazer da pesquisa e da própria capacidade investigativa, desvirtu-ando o foco para atividades do “aprender a fazer ciência” e restringindo o “aprender a ensinar” vinculado aos projetos políticos educacionais vigentes nos projetos de escolari-zação e da própria profissão docente. A prática fundada no reconhecimento da pesquisa e na capacidade de alcançar a práxis pela reflexão se confusiona à realidade escolar.

Algumas considerações sobre a discussão são relevantes de se perceber neste mo-vimento descrito. Há um mal-estar referente à compreensão entre pesquisa científica intelectual e a prática docente. A compreensão sobre a pesquisa científica se refere à investigação realizada na prática docente, enquanto a prática docente deve realizar a pesquisa sobre a própria prática, o que para a ciência pedagógica seria a fundamentação da mesma, uma vez que o objeto científico da pedagogia é a própria prática pedagógica.

Nasce a divergência em torno da ação de investigação docente que necessita do ob-jeto da reflexão sobre sua ação. Mas, como exercer a pesquisa sobre a prática docente se

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a mesma é objeto da experiência? Não somente o objeto da reflexão traria o contexto da investigação como suporte científico, tendo em vista que necessita da teoria para com-por o multirreferencial da prática docente e os objetos pedagógicos investigados. Ao mesmo tempo, a dinâmica da investigação “na” prática docente traria a capacidade de romper com a relação de dependência da teoria sobre a prática. A inversão também não seria objeto de investigação “pura”, pois a “prática pela prática” a ser pós-teorizada corre o risco de não compreender o ponto epistemológico e um método claro e específico de análise por conta da reflexão subjetiva. Este movimento entre a teoria e a prática, tem se caracterizado, da parte dos autores, por argumentações que as separam A defesa de uma postura, quase sempre, nega a outra.

Apesar disso, a investigação científica sobre a prática é objeto de pesquisa viável. Para tanto, englobando-se as discussões sobre teoria e prática deve reconhecer esta últi-ma como lócus de constante produção de conhecimento experienciado – elaborado. Por exemplo, Charlot (2010) acredita na capacidade do professor em elaborar investigações sobre sua prática, de modo a modificá-la em favor da investigação sobre o seu trabalho docente.

2. AS RELAÇõES ENtRE PRÁtICA REFLEXIVA, PESquISA E PRÁXIS

A prática reflexiva permitiu que os professores fossem reconhecidos por suas com-petências e saberes – excluídos do processo de análise técnica. O resgate da prática reflexiva como componente do trabalho docente é visto como modo de investigar, de experimentar, de refletir sobre a ação, confrontando o conhecimento acumulado e o tácito diante de uma situação problema de modo a compreender e tomar decisões.

Para Lüdke, “pelas janelas da reflexão escancaradas por Schön, entraram as ideias da pesquisa junto ao trabalho do professor e do próprio professor como pesquisador” (2001, p. 81). A pesquisa do professor revela-se repleta de dificuldades e tensões em que o consenso se limita à constatação de que a investigação deve ocupar lugar definitivo na formação docente, pelas inúmeras possibilidades que permite integrar o exercício pro-fissional à produção de conhecimentos e saberes. A própria ausência de fundamentos pedagógicos investigativos sobre as práticas docentes pode produzir o distanciamento entre o fazer educativo e o pedagógico, produzindo novamente o engessamento do sentido original do pensamento sobre a produção e o produto da prática do próprio docente. Franco (2012, p. 164) ao analisar a prática docente no cotidiano de profes-sores e os saberes produzidos por sua ação-reflexão, sustenta a frase “a insustentável leveza das práticas pedagógicas [2010] permite a presença de processos que organizam comportamentos de adaptação/renovação decorrentes das transformações inexoráveis

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surgidas das múltiplas mediações entre mundo e vida”, no espaço escolar e no espaço do fazer profissional docente.

Gaitan e Maldonado (2008) identificam alguns aspectos sobre o papel da investiga-ção na formação docente o qual destacamos: na transcendência do enfoque rotineiro da cotidianidade, na ressignificação do trabalho docente, na reconstrução da sua imagem e como estratégia de formação docente e eixo transversal do currículo. As autoras tra-tam a investigação como exercício formativo renovador da prática, sem que signifique perda de solidez teórico-metodológico própria do processo. Reconhecendo que não é suficiente fortalecer a investigação no currículo das universidades, elas apontam para outros cenários, os espaços educativos onde atuam professores. Para tal, consideram que é preciso desmistificar a investigação.

Ao mesmo tempo em que cresce o reconhecimento da pesquisa do professor, não há consenso sobre seus rumos, isso ocorre em boa parte porque está relacionada à forma como essas pesquisas alcançam legitimidade no meio acadêmico, sem serem consideradas de segunda categoria diante da falta de rigor científico (LÜDKE, 2001). Como modo de contornar tal dificuldade emergem no seio dos debates sobre professo-res pesquisadores duas perspectivas que se completam: a introdução da pesquisa-ação e as considerações em torno da pesquisa colaborativa entre universidade e professores.

De modo geral, os autores que optam pela perspectiva da pesquisa-ação en-tendem que as intervenções ditadas pela reflexão contínua visam à resolução dos problemas vivenciados, o alvo são as intervenções contínuas no sistema pesquisa-do. Como os projetos de ação são projetos investigativos que abarcam os grupos envolvidos, a pesquisa-ação emerge quase sempre das pesquisas colaborativas entre pesquisadores e professores.

Pimenta, Garrido e Moura (2001) destacam:

Uma tarefa muito importante dos pesquisadores foi a de ajudar os professo-res a desenvolver habilidades de investigar e de interpretar. Pesquisar, saber transformar uma dificuldade prática numa questão de pesquisa, tomar dis-tanciamento em relação à ação para estudá-la, sistematizar e escrever foi um aprendizado e uma conquista. Montar os projetos exigia entendimento das questões a serem investigadas, exigia seleção dos sujeitos que deveriam ser ouvidos para garantir a representação dos pontos de vista, exigia elaboração de instrumentos consequentes com os objetivos, critérios de análise e de interpre-tação dos dados. O trabalho de examinar as próprias ações exigia atitudes que os professores desconheciam: pesquisar, problematizando as situações práticas; analisando-as a partir de um olhar externo (um texto, uma teoria, o olhar dos pesquisadores); ampliando a compreensão com outras pesquisas; interpretan-do-as a partir da explicitação de seus significados mais amplos (educacionais,

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históricos, políticos, econômicos, culturais, ideológicos); desenvolvendo, en-fim, habilidades e atitudes de pesquisa (p.14).

De outro modo, Miranda e Resende (2006) analisam que há risco de fazer com que a pesquisa-ação seja convertida em estratégia de políticas públicas com a finalidade de imprimir reformas somente no campo da retórica e da ação do professor.

A instituição da pesquisa como prática comum e generalizada aos professores ou às escolas desconsidera que ela requer suporte institucional e acadêmico adequado, condições de trabalho compatíveis, além da disposição e do inte-resse dos docentes. Sem essas condições, pode-se alimentar uma retórica refor-mista que institui o imperativo de que o professor assuma sozinho a decisão e o risco de se contrapor a uma realidade que não dá sinais de pretender se transformar (p.517).

Sempre preocupadas com a compreensão incorreta a respeito da pesquisa-ação, as auto-ras alertam para a falsa noção de que a atuação deva se orientar para a solução de problemas isolados na sala de aula ou escola. As ações podem ficar condicionadas à solução de pro-blemas imediatos enfrentados individual ou coletivamente pelos professores, mascarando o fato de que efetivas soluções requerem muito mais do que soluções emergenciais e estão atreladas a mediações históricas políticas, culturais e sociais construídas coletivamente.

A preocupação com a formação para pesquisa dos autores recai na interrogativa so-bre a capacidade da formação docente dissociada da análise contextualizada da prática escolar, pois a própria formação específica à docência, observando somente o universo da sala de aula, restringe à aplicação dos estudos disciplinares em suas áreas específicas das metodologias, distanciando-se do universo da investigação epistemológica refle-xiva sobre a sociedade em seus diversos aspectos11, o que demandaria a aprendizagem conjunta dos três objetos – o fenômeno educativo e educacional como objeto episte-mológico e social; a pesquisa como objeto investigativo do próprio trabalho, reconhe-cendo o objeto da ciência, em dado espaço-tempo; e a compreensão da circularidade do conhecimento como fenômeno socioeducativo nas práticas pedagógicas e educativas realizadas em sala de aula.

Essa dinâmica é complexa e demanda formação docente de natureza praxiológi-ca12. Pimenta e Libâneo (1999) sinalizaram essa condição, nos cursos de formação de

11 Entendemos “diversos aspectos” como considerar a história, a cultura, os fenômenos socioeconômi-cos e tecnológicos.12 Praxiológica entendemos como a relação direta das práxis com o objeto cognoscente docente, de modo a produzir um conhecimento ampliado sobre os objetos da formação específica para a docência e os objetos da formação específica para pesquisa, mediados pela dinâmica da compreensão e apreensão cognitiva do conhecimento.

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pedagogos, chamando a nossa atenção ao questionar se este profissional se distribui para orientar as matrizes de formação dos demais docentes das áreas afins. Nesse caso, trazemos a problematização que pode ser estendida as demais formações, ou seja, essa condição não se tem como medir sua extensão, necessitando de estudos aprofundados sobre a formação em áreas específicas e investigando os modos de superação destas demandas pedagógicas.

Quanto à descaracterização profissional do pedagogo, subsumido ao “pro-fessor”, sua formação passa a ser dominada pelos estudos disciplinares das áreas das metodologias. Estas, ao voltarem seus estudos diretamente à sala de aula, espaço fundamental da docência, ignoram os determinantes insti-tucionais, históricos e sociais (objeto de estudo da pedagogia). Desse modo, a pedagogia, ciência que tem a prática social da educação como objeto de investigação e de exercício profissional – no qual se inclui a docência, em-bora nele se incluam outras atividades de educar – não tem sido tematizada nos cursos de formação de pedagogos (PIMENTA, 1998, apud LIBâNEO & PIMENTA, 1999, p. 245).

Nesse sentido, a despeito da valorização dos docentes advindas do conceito de pro-fessor reflexivo e da relevância das investigações conduzida na escola para a produção de conhecimento pode-se correr o risco de – limitando-se aos contextos escolares e da sala de aula – não aprofundar as contradições políticas mais amplas que determinam as relações escola e sociedade.

A sonhada profissionalização docente há de ser acompanhada por alterações sig-nificativas nos processos de gestão e organização da escola, no pleno engajamento do professor nos processos decisórios e na constituição de uma jornada de trabalho que inclua trabalho coletivo e docência. Por outro lado, é preciso reconhecer que a profis-sionalização docente está inserida num processo mais amplo de visão emancipatória da educação, o que requer reconhecer de imediato os conflitos entre os diferentes atores sociais que possuem projetos distintos de sociedade, que se apropriam material e sim-bolicamente da natureza de modo desigual. A modificação da realidade pela reflexão, pelo autoquestionamento, remetendo a teoria à prática, implica no entendimento de que a prática pedagógica é uma práxis, e como tal não se pode reduzir a sua investigação ao estudo das técnicas pedagógicas.

Para Sacristan (2002) alude-se ao pós-positivismo, tendência marcante na investi-gação sobre a formação de professores após o positivismo, alguns juízos bastante aceitos sobre a prática pedagógica. Um dos principais é o de que da “ciência” pedagógica não se pode deduzir a técnica da prática pedagógica.

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O pós-positivismo nega a possibilidade de que da ciência se deduza a técnica educativa. Quer dizer, a prática educativa não pode ser técnica pedagógica, porque não está baseada no conhecimento científico e, serei muito mais agres-sivo, não pode estar baseada no conhecimento científico. A prática pedagógica é uma práxis, não uma técnica. E investigar sobre a prática não é o mesmo que ensinar técnicas pedagógicas (p.22).

De forma a diferenciar prática pedagógica de práxis, implica em demarcar por um lado as características de um empreendimento pedagógico que se desenvolve em um tempo e num espaço que visa um efeito, mas que em nenhum momento é portador de uma perspectiva de autonomia e de outro a marca de um projeto emancipador (IMBERT, 2003, p.15).

Imbert (2003) afirma que as práticas provêm da técnica e do cálculo e buscam re-lações ótimas entre os meios e os fins e a práxis significa uma tensão, um projeto que não se deixa fixar por termos determinados, mas abre espaço para um processo inde-terminado, não dedutível, que visa alcançar a autonomia. Ao contrário da pedagogia especulativa, que lida com o objeto acabado, com a criança classificada, diagnosticada, o conceito de práxis pedagógica nos coloca diante do vir a ser não previsto. Para o refe-rido pesquisador, ela só existe em relação ao objeto inacabado, o que abre espaço para a compreensão da realidade como apreensão parcial, passível de revisão: “a perspectiva da práxis é a de um fazer criador da realidade e de sentidos novos” (IMBERT, 2003, p.18).

A práxis caracteriza-se pela relação dialética teoria e prática. Ela se apoia no saber entendendo-o como provisório, o porquê da práxis (enquanto tal) faz surgir um novo saber. Quando compreendemos seu modus operandi percebemos a formação teórica como essencial à profissionalização e à prática de ensino. Não nos deixamos, por conse-quência, confundir pelo pragmatismo e seus eventuais prejuízos para a práxis pedagógi-ca, quando do empobrecimento da relação do indivíduo com a realidade, consequência da busca por soluções alheias às possibilidades históricas constituídas ou em construção.

Nesse sentido, a práxis fundamenta a formação dos professores, fundamenta-a para que a teoria e prática se encontrem de modo crítico, descontruindo-se e reconstruindo-se nos espaços e tempos escolares.

A questão da práxis na instituição escolar será a de um projeto de autonomia que visa revolucionar uma relação com a instituição, vivida e pensada por um conjunto de práti-cas, de representações e de imagens. O projeto de autonomia implica em trabalhar com esse imaginário sobre o qual a instituição se apoia e que em troca a instituição naturaliza.

Trata-se em suma de re-historicizar a instituição, de desatualiza-la e ao fazer isso, se reapropriar tanto no nível coletivo quanto individual, das capacidades

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instituintes, ou seja, do desejo do poder de se liberar do peso das fatalidades de todos os gêneros (IMBERT, 2003, p.71).

O cenário histórico da formação de professores criou um profissional reduzido a uma educação para instrução, treinando habilidades e tornando professores ensinado-res, diz Franco (2012), ele desprestigia o fazer da análise sobre as ações educativas, retira o elemento reflexivo, a criação e o modus crítico inerente à prática pedagógica. As representações acabam por alterar a identidade dos valores educativos diante da socie-dade e distanciando a investigação político-transformadora do papel da racionalização e qualificação do ensino na perspectiva da vivência autônoma e intencional do professor.

Sacristan (2002) destaca que, por mais que pareça estranho, os professores são pessoas que pensam e querem, e não só pensam, sendo que a motivação dos professores tem estado ausente da investigação sobre a formação dos professores.

Para educar é preciso se ter um motivo, um projeto, uma ideologia. Isso não é ciência, isso é vontade, é querer fazer, querer transformar. E querer trans-formar implica ser modelado por um projeto ideológico, por um projeto de emancipação social, pessoal etc. (SACRISTAN, 2002, p. 26).

O autor avalia que se deve dar especial atenção aos motivos de ação dos professores, uma vez que temos educado suas mentes, mas não seus desejos, porém com relação à investigação sobre a formação, ele insiste na necessidade de se considerar o habitus13, como forma de integração entre o mundo das instituições e o mundo das pessoas. Ainda mais importante do que os motivos, “o habitus é cultura, é costume, é conservadoris-mo, mas é, também, continuidade social, e, como tal, pode produzir outras práticas diferentes das existentes” (SACRISTAN, 2002, p.27).

Considerar que a prática não se alcança somente em cursos de capacitação ou irá mudar porque houve uma legislação com tal finalidade. A prática vincula-se a condi-ções institucionais, concepções e compreensão e modus de compreender a realidade. Bourdieu (1983, p. 65) considera que o habitus pode ser mudado e referenciado por novas estratégias de sobrevivência aos estereótipos pré-estabelecidos na sociedade. Não obstante, a reflexão possibilita a criação de mecanismos de resistência e de enfrenta-mento do cotidiano e sua realidade.

[...] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando to-das as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas

13 O autor utiliza o conceito de habitus referenciado por Bordieu na perspectiva sociológica.

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infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas (BOURDIEU, 1983, p.65).

A condição de transformação da prática pode, assim, ser compreendida e trabalha-da na formação, a partir da elaboração de saberes investigativos partilhados e organiza-dos e processos desdobrados nas ações da práxis pedagógica.

Dessa maneira, a formação do professor reflexivo, professor pesquisador, passa pela sua própria crítica; pelo encantamento que confere à valorização dos saberes advindos da experiência docente; pela suspeita do desvio que confere ao caráter complexo diante das relações de dominação e exclusão que caracterizam a sociedade capitalista mundia-lizada e pelas inúmeras possibilidades de reconduzir as questões da práxis; uma práxis transformadora da instituição escola e dos homens.

3. à GuISA dE CONCLuSÃO

Diante das múltiplas limitações que se impõe aos docentes, no seu fazer cotidiano, a prática reflexiva, de onde emerge o professor pesquisador, pode ocultar uma nova forma de desviar a análise crítica sobre os fatores políticos e sociais que determinam as condições externas da prática docente. Ao mesmo tempo, não são abordados e modifi-cados os fatores organizacionais que controlam tempo, espaço, interações e hierarquias na escola. Os professores, mesmo sob a égide da possibilidade de autonomia e da re-tomada da qualificação profissional, veem seu trabalho marcado pela individualização, têm uma formação aligeirada e sofrem a perda status social.

Porém, em que medida a formação e a gestão do trabalho docente podem promover a práxis?

Para conduzir à práxis, Imbert (2003) compreende que é necessário comprometer-se com o trabalho de subversão do desconhecimento instituído nos campos pedagógicos, ideológicos e político no qual as pessoas e os coletivos perdem suas capacidades autô-nomas. A desocultação das articulações simbólicas e imaginárias da instituição de fato remete a mudanças no nível organizacional, ou seja, o autor explica que se trata de re-alizar novos arranjos dos seres, dos fazeres, novas combinações de elementos por vezes intocados: “de fato, uma verdadeira mudança nas articulações simbólicas da instituição, somente pode acontecer sendo simultaneamente uma mudança efetiva no registro imaginário e vice-versa” (p.73).

O autor entende que, com muita frequência, as mudanças advindas das reformas e inovações não produzem ruptura nem no imaginário dos mestres, nem na trama do sentido dos valores e das regras, o que dilui a capacidade de pensar sobre seu próprio

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trabalho e as tramas cotidianas dos projetos de escolarização lançados justamente sobre suas práticas docentes.

Um segundo aspecto preponderante diz respeito à compreensão de que a práxis como elaboração coletiva, num grupo, das práticas vividas no cotidiano, requer um coletivo articulado.

Nesse sentido, a práxis opera a ruptura com os laços arcaicos advindos das posições hierárquicas de mando, que prescinde da figura do líder. É no coletivo que os sentidos e imagens são falados, postos em circulação numa rede de trocas. Imbert acrescenta que, no entanto, esse campo coletivo somente se constrói através dos fazeres – material-mente articulados. Por assim dizer, é preciso colocar em ação instrumentos, dispositi-vos. Elementos que traduzem em palavras a troca, a rede de trocas. As teorias não serão suficientes em seus sistemas de conhecimentos educacionais construídos, pois não são expressões totais da realidade do momento educativo. O sentido das práticas, por vezes, é aleatório à compreensão do saber e das práticas realizadas pelos professores, fugindo da percepção complexa e multireferencial da ação prática educativa. A troca provoca construção do sentido sobre a prática, colaborando para a circularidade do saber aí produzido e para que se torne reflexivo para ação pesquisadora.

O projeto praxista, em confronto com a perspectiva da formação de professores refle-xivos, é um desafio. Vasculha os sentidos da prática cotidiana, remobiliza os sentidos e as imagens que lhe dão corpo; institui o grupo cujas imagens e os sentidos possam ser falados, postos em circulação numa rede de trocas; cria e elabora dispositivos que articulam os faze-res em função de novos sentidos, cuja essencialidade é a autonomia humana.

O estado atual da reflexão sobre a práxis pedagógica talvez tenha se concentrado mais sobre o gerenciamento dos fazeres docentes, dos tempos e diversos atores esco-lares, favorecendo a produção de um discurso de responsabilização do professor, por achar soluções “criativas” para as mazelas que circundam suas vidas profissionais, de seus alunos, de suas práticas de ensino e de seus esforços, não apoiados, de qualificação da transposição didática. Por fim, é possível detectar no referido movimento a produ-ção de um discurso que exime os governantes de responsabilidades e compromissos (PIMENTA, 2002, p. 47).

Para que se possa observar a superação da prática como algo que se encerraria em si mesma, os professores devem ter sólida formação teórica. Esta última deve estar em diálogo crítico com as práticas: “educar não só a razão, mas também o sentimento e a vontade” (SACRISTAN, 2002, p.27) é tanto desejável quanto possível. Em razão do exposto, cabe periodicamente que se pergunte: qual é o projeto de futuro que une e articula os professores como intelectuais? Como chegamos àquilo que somos agora? O que ainda pode ser feito no campo da escolarização para “abalar o sistema”? Maior in-

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vestimento das pesquisas e políticas educacionais em profissionais docentes pesquisado-res-reflexivos, por óbvio, superando-se os limites e aprimorando-se os avanços mencio-nados neste artigo, não nos parece ser uma linha de atuação que se possa negligenciar.

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MÚSICA: A CONSAGRAÇÃO dO SILÊNCIOParte II

Eduardo A. G. Gatto – PPFEN / CEFET/RJ

I – CONSIdERAÇõES INICIAIS

Prosseguimos aqui pelas discussões iniciadas na parte anterior em que os caminhos da verdade tomaram por referência a precisão, a correção e a adequação em referência à dimensão greco-romana passando pelo que nos apresenta, nesse esse aspecto, o pensamento de Heidegger.

II - dESENVOLVIMENtO

Ao retomar o desenvolvido no texto anterior (desde a verdade legada a nós pela tradição greco-romana e cultivada e expandida ao longo de nossa presença histórica) não podemos compreender o dizer de Walter Otto acerca das Musas antes mencionado - que pretende se aprofundar no âmbito sagrado do mundo grego – pela compreensão e experiência deste processo de desenvolvimento. A verdade pela experiência grega nos traz as Musas mostrando-se no seu esplendor, mas, para assim as percebermos, necessita-mos nos despir do modo usual de compreensão da verdade. Buscando a originariedade da palavra grega no que ela pode nos revelar, na Grécia antiga seu entendimento se dava pela experiência com ἀληθεία. Por uma tentativa de nos aproximarmos do que diz a questão para o grego, podemos ouvir o dito da Divina Comédia de Dante Alighieri nos versos de 52 a 57 do canto XVII do Purgatório, que se seguem:

Como ao sol, que deslumbra em dia ardente,Sendo-lhe véu seu lume flamejante,Senti perdida a força incontinenti.

- Espírito é celeste: vigilanteSem rogos, o caminho nos indica:O próprio brilho esconde-o fulgurante14.

14 ALIGHIERI, D. A Divina Comédia. Trad. José Pedro Xavier Pinheiro. Digitalização do livro em papel da Atena Editora, São Paulo: 1955. Versão para eBook de: eBookBrasil.com, 2003, p. 393.

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Aqui a aproximação se faz por uma conjuntura de entendimento a partir do que para o grego se mostrava enquanto real. Pelo dito dantesco vemos o brilho fulgurante que como véu flamejante esconde e mostra. No brilho que mostra encobrindo-se, se encontra a referência entre φύσις e ἀληθεία. A φύσις grega - termo bastante discutido por Heidegger15, dizendo do vigor daquilo que por si brota incessantemente e, nessa brotação constante, permanece no vigor do tempo em constante mudança e, conse-quentemente, como questão, inescrutável mistério - vem do grego φύομαι que diz: crescer, aumentar; e já provém da raiz indo-europeia *bheu, bheuә, bhǒu, bhu16, com sentido de: crescer, prosperar, florescer. Apesar de não manter relação etimológica com brilho e brilhar em grego, pode-se buscar uma proximidade por conjuntura. Brilho em grego é dito por φώς, vindo do verbo φαίνομαι, que é o aparecer de dia, fazer-se visível; cuja voz média é φαίνω que diz: fazer brilhar, mostrar-se, mostrar; provenientes ambos do indo-europeu *bhā, bhō, bhǝ17 com sentido de: brilho, luz, aparecer. Ainda como referência, podemos chamar o modo como o deus Apolo era mencionado, Φοῖβος, é assim que irá a ele se referir Homero, onde na Ilíada lemos, dentre muitas outras, a seguinte passagem, versos de 35 a 45 do Canto I, onde fala Crises, sacerdote de Apolo, na tradução de Haroldo de Campos18:

Depois, já muito de longe, ao senhorio de Apoloorou, ao filho de Latona, belas tranças:“Ouve-me, Arcoargênteo, protetor de Crisae de Cila sagrada, Esmínteo, rei de Tênedos.Se o templo que te ergui merece teu favor,se coxas gordurosas te queimei de tourose de gordas ovelhas, cumpre meu desejo:faze os Dânaos pagar meu pranto com tuas flechas”súplice assim falou. Ouviu-o Febo19 Apolo.Baixou do alto Olimpo, coração colérico,levando aos ombros o arco e a aljava bem fechada.

Também em relação a Apolo nos diz Walter Otto:

Apolo e ártemis são os mais sublimes dos deuses gregos. Já o manifestava o modo como ambos apareceram aos olhos da poesia e das artes plásticas. O

15 Como sugestão cf. os títulos de Heidegger: Introdução à metafísica; Ser e tempo; Heráclito (esp. as p. 101-102 da ed. da Relume Dumará, trad. de Márcia de Sá C. Schuback); Ensaios e Conferências; Parmênides.16 Cf. POKORNY. Op. cit., p. 146-150. 17 Idem, p. 104-105.18 HOMERO. Ilíada. Tradução Haroldo de Campos, introdução e organização Trajano Vieira – 4ª ed. – São Paulo: Arx, 2003, p. 33.19 Tradução de Phoibos, presente no original em grego, verso 43, p. 32 da edição citada.

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predicado da pureza e da santidade que lhes é peculiar já os destaca de modo especial no círculo dos divinos. De acordo com Plutarco e outros, Phoibos (Febo) significa “puro” e “santo”, e não há dúvida de que estão certos. Assim também o entenderam Ésquilo e outros poetas de época posterior, pois empre-garam essa mesma palavra para caracterizar os raios do sol e a água.20

A pureza e a santidade de Apolo se mostram também como brilho, pois Φοῖβος quer dizer puro, brilhante, radiante21. Apesar de não haver etimologia estabelecida para o epíteto de Apolo, como nos revela Chantraine, onde nos apresenta esta palavra di-vidida em duas vertentes, tendo, a primeira, ambos os sentidos de puro e brilhante e não se referindo ao deus, e na segunda, atribuída a Apolo, somente referência à pureza enquanto este é o deus purificador22. Podemos sem grande dificuldade, mesmo que por perspectivas homônimas e homófonas, perceber a ligação de ambas. O brilho e a pureza de Apolo se dispõem desde o próprio brilho de φώς como a luminosidade que assim é desde o modo de manifestação da cultura grega. Apolo somente é puro por já ser brilhante e radiante mostrando-se sagrado ao resplandecer como tal. “De coração colérico”, sua pureza fulgurante resplandece descendo do Olimpo portando “arco e aljava bem fechada”, onde a pura cólera brilha atendendo às súplicas de Crises, exterminando o deus os Dânaos por nove dias, e “almas mandando-as ao Hades” por poderosas e invisíveis flechas, fazendo subitamente sucumbir aos que delas são destino. Tal invisibilidade das flechas está paradoxalmente concernente com seu brilho fulgu-rante, chamando-se Febo. O epíteto de Apolo o mostra brilhante e puro, e tal pureza e brilho o revelam na precisão e na invisibilidade ao mesmo tempo, sendo seu brilho já na dissimulação enquanto retração de si mesmo. Sua precisão dissimulada se revela na precisão e perfeição com que divinalmente cuida do que lhe concerne, de modo a ser, desde já, por um proceder preciso, brilhante, mas ao mesmo tempo posto na dissimu-lação da invisibilidade de sua ação, pelo mistério de seu aparecimento.

Portanto, a partir de tal, entendemos se sustentarem as aproximações de sentido entre φύσις e φώς. Mas, ainda para ratificar tal perspectiva, Heidegger mostra em seu Parmênides uma proximidade radical entre φύσις e εἶδος, onde este último conceden-do-se pelo aspecto, o é desde a figura que se mostra pelo brilho concedido no aparecer e florescer próprio da φύσις 23 enquanto uma dimensão desta última, que já lhe res-guarda. Aparece como o mais importante aqui, a concepção própria em que vigora a profunda relação do homem grego com a visualidade concedida desde a manifestação

20 OTTO, W. Os deuses da grécia. Tradução de Ordep Trindade Serra, p. 54.21 Cf. Obras de referência LIDELL & SCOTT-JONES. Op. cit., p. 1947; CHANTRAINE. Op. cit., p. 1216, 1217.22 OTTO. Op. cit., p. 54.23 Cf. HEIDEGGER, M. Parmênides. Op. cit.

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do que é por si e, dá-se manifesto, sendo ao homem permitido ver pelo que se dá e se concede a ser visto, ou seja, pelo que antes de tudo é, e concede ao que é, ser. Pois, entre o aparecer do brilho e o florescer do crescimento, há já uma profunda unidade apesar de já serem formas distintas de manifestação, onde revelam modos também distintos de se referir ao mesmo. Tudo o que cresce e floresce se dá também no brilho manifestativo e fulgurante que já por si, é.

Pelas palavras dantescas poeticamente proferidas: “Como ao sol, que deslumbra em dia ardente,/ Sendo-lhe véu seu lume flamejante, (...)/ O próprio brilho esconde-o fulgurante”; temos uma indicação do paradoxo em que se resguarda φύσις e ἀληθεία como questões24. O vigor da φύσις é aquele que ao mesmo tempo em que mostra, já e constantemente se resguarda furtando-se a qualquer objetivação e compreensão em perspectivas de totalidade. O que é como lume, como a luz do sol, que aparecendo no seu brilho de esplendor, ao mesmo tempo se oculta no ofuscamento de si mesmo, nos faz perceber mais claramente a referência. Flamejante é o mostrar-se próprio do que como φύσις já oculta-se no seu próprio brilho, um brilho que se esconde na fulguração radical de seu retraimento como o descobrir-se já, e ao mesmo tempo, encoberto. O deslumbre da fulguração que flameja ofuscante é o deslumbre de manifestação e pre-sença do que é e se mostra desde si, e por si mesmo, para além de qualquer interferência que não seja ser como próprio. Esse deslumbrante brilho que fulgura flamejante, nos propõe convidando-nos e exigindo de nós uma ação desde sua irrupção prévia que flo-resce aparecendo. Uma irrupção já lançada na dinâmica da exigência de cuidar do que brilha, cuidando ao mesmo tempo da cegueira pelo ofuscamento que fulgura e dissim-ula na retração. A retração da dissimulação do brilho já revela a verdade como questão na dissimulação de si mesma enquanto profundidade. Aqui nos importa do dito dan-tesco o que ele proporciona desde o sol como imagem e questão, e não está em questão se esta comparação se dá como presença, por parte do autor, para fazer entender melhor outro que brilha como espírito angelical e que tem seu brilho comparado pelo dito do poeta ao fulgor solar.

O brilho tem uma importância radical para o grego de modo que o brilho do que é configura toda a possibilidade de ver. O homem grego vê porque o que é, desde si mes-mo, já se dá a ser visto fulgurando no brilho manifestativo. Ἥλιος sol concede-se como o descortinar-se saindo dos domínios de Νύξ, a noite negra e trevosa que, pela Teogonia de Hesíodo, unida a Ἔρεβος, a escuridão profunda, gera o Dia25, assim Ἥλιος brilha

24 Mesmo que se possa objetar que estejamos buscando a contextualização de uma questão grega pela poesia dantesca que, como tal, já seria alheia à mesma, não restam dúvidas das referências entre elas, e ainda completamos ao dizermos que a poesia e a arte se dão dentro de uma mundificação própria, trazen-do consigo, no ocidente, uma influência radical da cultura grega de modo profundo em muitos autores.25 HESÍODO. Teogonia, v. 124-125.

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concedendo a manifestação de tudo o que mostra-se já por sair da escuridão, das tre-vas. Contudo, não podemos confundir a questão da verdade para os gregos com uma interpretação desta mesma verdade tardiamente disposta desde a metafísica da luz, que mostra-se já por uma exclusão e isolamento, mas antes enquanto reunião e conjuntura - por tal é que o ofuscamento dantesco aqui revela-se.

Temos ainda que levar em consideração, que o mito, enquanto presença aqui aven-tada, não é entendido apenas no escopo narrativo, entendendo-se este último restrito à circunscrição do enredo - não que haja qualquer desmerecimento nesta observação acerca das narrativas, pelo contrário, posto ter sido nelas que estes, além de outras ma-nifestações, perduraram até nós. Mas também como narrativa, no vigor de sua presenti-ficação enquanto poeticamente este perdura, o mito revelava-se presença na experiência vivida a cada dia pelo povo grego, sem que fosse ao mesmo tempo esgotado em tal experiência. Portanto, o mito fazia parte do cotidiano grego, mas não como o que corri-queiramente deste se revela na superficialidade, mas sim no que cotidianamente já esta-va tão arraigado na vivência e experiência do homem grego que lhe era próprio por dele fazer parte, ou seja, o homem grego se mostrava pelo mito, era a si mesmo, apropriado por este. A manifestação mítica já concedia o grego enquanto aquele povo, portanto o mito dava-se e mostrava-se além de nossa compreensão esvaziada de cotidiano, mas na mais alta e profunda manifestação como verdade, na palavra e no canto do poeta, vigo-rando na vivência do povo. Por tal consolidação, de presença e ser como radicalidade e originariedade do real, da unidade como conjuntura já mostrando-se reunião, o sagra-do mítico é exigência de aparecimento enquanto referência e correspondência dialogal entre homem e ser. Exigindo assim aparecer, o que é desde si mostra-se apropriando o homem naquilo que ele é.

A respeito do sagrado, nos diz Walter Otto traçando um limite radical entre sa-grado enquanto presença, e o modo como este se dispõe a ser já uma representação vista como criação unilateral do homem, algo muito em voga na atualidade a respeito do modo como se olha para os tempos precedentes: “Somente uma época pobre de espírito poderia afirmar que os costumes e crenças religiosas dos povos nada mais representam senão o que o homem simples foi capaz de pensar e experimentar26”. Falando e reverberando o mito no âmbito do sagrado, ele é presença viva como referência e correspondência, já revelando-se a plenitude exigida pela própria con-juntura do que é, enquanto reunião, enquanto real. Somente uma visão apossada, mesmo que dissimulada, pela centralidade na subjetividade, ou ainda, centrada na visão antropocêntrica de uma coletividade ou individualidade, pode entender que os deuses, que já se dão sacros, seriam meramente criações humanas, e que o mito

26 OTTO Op. cit., p. 11.

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reverberaria como relato fantástico, ou ainda como grupos de estórias pelas quais o homem tentaria explicar o real, reverberando apenas a partir de sua finitude e par-cialidade. O mito dispondo-se sagrado é antes uma exigência, como forma de o real mesmo se dar e mostrar, de maneira que não sendo totalizado, não deixa de aparecer a partir de sua própria exigência. Portanto, o que aqui se apresenta não tem referência com capacidade, pensando-se esta a partir de posição pautada no conceito de uma pretensa evolução linear e causal. Experiência e pensamento são fundamentais para formarem e conformarem o homem naquilo que ele é, posto não haver homem fora da experiência e do pensamento. No entanto, estes se dão fora da circunscrição e re-strição para com o homem por um isolamento, mas antes nele vigoram como referên-cia com tudo o que ele mesmo não é, já dele fazendo parte. Aqui, o sagrado, já como mito e religião - sendo esta última entendida fora de um conceito moderno derivado da latinização do pensamento grego, posto Otto se referir ao modo como o homem grego vivenciava o sagrado - é o que forma e conforma o homem, nele reverberando e encontrando o destino de um envio que desde o que é, na conjuntura de ser, já se abriga e se mostra, exigindo ser assim mostrado como uma de suas múltiplas faces misteriosamente reveladas. No vigor de ser enquanto verdade radical e originária, o real concede-se mito na sacralização de sua presença que misteriosamente se dispõe, e assim já compõe o homem que não pode e não se dá fora desta referência. Por tal é que Otto prossegue dizendo “A fim de encontrar-lhes a vívida origem, é preciso as-cender a regiões mais elevadas27”. A origem, seja das religiões, seja dos homens, aqui se referem ao mesmo de modo que estes homens já o eram a partir do que, como mito, vigorava dizendo o real, não como mera construção em sentido empobrecido, mas como referência radical sendo um mergulho concedido pela própria exigência do real. Um mergulho no mistério, de modo a este mesmo mistério assim se fazer presença. A origem viva é a originariedade própria, seja do homem, seja do mito, que já o são dádivas do ser e do real, não como conhecimento, mas como presença que aqui vigoram e vigem. Por isso é que ainda nos revela Walter Otto

O divino, que nos poemas homéricos se apresenta com tanta clareza, é mul-tiforme e, contudo, sempre idêntico a si mesmo, por toda parte. Exprime-se em toda a sua forma um espírito excelso, um destino elevado. Não querem os referidos poemas aportar uma revelação religiosa ou propor uma doutrina sobre os deuses. Só querem visualizar e formar, no gozo da visão; assim em face deles se expõe o reino inteiro do mundo: terra e céu, água e ar, árvores, bichos, homens e deuses28.

27 Idem.28 Idem, p. 12.

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Aqui faremos a leitura de tal passagem trazendo dela já uma interpretação, posto que necessitamos esclarecer os ditos por querer e expressão como possibilidades de ação do poema homérico. Na conjuntura apresentada, entendemos por expressão já aquilo que os poemas por si apresentam, mostram, para além de qualquer subjetividade. Vigo-rando, como tal, anteriores a todo psicologismo e consequente centralidade no homem como entendimento de mundo e real, e consequentemente presença do homem no que ele é. Da mesma forma um querer aqui, também e somente poderia se revelar, jamais como uma humanização dessas mesmas obras, mas sim como o fato incontestável de que, enquanto obras, eles obram em mostrando-se na dinâmica de serem o que são, para além de uma circunscrição no aparente entendimento destas pela visão moderna e contemporânea de obra de arte29. Portanto, aqui os poemas homéricos expõem o reino inteiro do mundo, um mundo que já se consolida e reúne na exposição própria do po-ema que, como tal, revela o mundo enquanto exigência do ser, do real, como sagrado, como religião, como mundo que exige assim se dar e ser revelado, desencoberto na reunião do que enquanto mundo se mostra céu e terra, mortais e imortais30. O expor dos poemas homéricos a partir do dito de Otto, é já desencobrimento deste mesmo mundo que real se faz e mostra-se, onde estamos nele lançados e jogados. Aqui não vi-gora e nem mesmo se institui qualquer prova ou comprovação na medida da moderna ciência, esta é totalmente cega desde o desencobrimento aqui instaurado, até porque apenas será exigida em momento histórico posterior. A exigência do vigor e do fulgurar do mito grego é outra. Assim, o mito, enquanto sagrado, é por si verdade, vigendo, vigorando, e trazendo consigo e concedendo ao homem sua vivência e experiência. Ou seja, este não vige e vive na vivência e experiência que ao homem é concedido ter, mas antes concede ao homem sua experiência e vivência a partir da vigência e do vigor que como sagrado se revela.

Após esse pequeno desvio, que antes reverbera como parte importante do cami-nho no empenho por música, agora buscamos a partir dos étimos o que diz ἀληθεία. Provinda do grego λανθάνω que diz ser escondido, permanecer oculto, esquecer; vin-do este da raiz indo-europeia *lā- com sentido de oculto, escondido31; ἀληθεία tem grande proximidade com o esquecimento, ocultamento. Não sem sentido é que ela diz

29 Para entendimento de obra na perspectiva dinâmica como operar e pôr-se em obra, para além da visão que a compreende por suporte material, cf. no ensaio, “A origem da obra de arte” de Martin Heidegger, o trecho intitulado “A coisa e a obra”. Sugerimos cf. em português, a tradução de Idalina Azevedo e Manuel Antônio de Castro, edição bilíngue. São Paulo: Edições 70, 2010, p. 45-97.30 Cf. a questão da quaternidade/quadratura (geviert) de céu e terra, mortais e imortais, proposta por Heidegger a respeito da irrupção de um mundo, especialmente no ensaio “A coisa”, disponível em por-tuguês in Ensaios e Conferências. Trad. de Márcia Sá C. Schuback. Rio de Janeiro: Vozes, 2001 – p. 143-164.31 Cf. POKORNY. Op. cit., p. 651, cf. também CHANTRAINE. Op. cit., p. 618-619.

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literalmente desesquecimento, desencobrimento, desocultamento, ou seja, sair do véu do encobrimento, do que como condição primeira é já dando-se oculto e encoberto. Por isso é que ἀληθεία se dá aparentada com o esquecimento em que λήθη se revela. Também como um dos cinco rios infernais, o rio Λήθη, cujas águas faziam esquecer da vida pregressa àqueles que dela bebessem, encaminhando-se para um novo modo de ser, o esquecimento se faz presente pelo mesmo radical e ainda pela experiência e ma-nifestação mítica. Se nos apresenta trazendo-se referência ainda, Λήθη, filha de Ἕρις, a Discórdia, como a própria presença do Esquecimento enquanto divindade. Ἕρις sua mãe, é filha da Noite negra e trevosa, Νύξ, a que, segundo Brandão, é tempo da germi-nação e gestação32 como possibilidade radical de desencobrimento do que se dá ligado ao mistério do aparecimento, sendo esta descendente direta do Χάος originário que, pela Teogonia de Hesíodo, é o mais profundo e primordial dos deuses, onde este eti-mologicamente revela-se oriundo do verbo χαίνειν com sentido de abrir-se, entreabrir--se33; vindo de χάσκω que refere-se a abertura34, onde aqui percebemos Χάος como a abertura originaria desde a qual tudo o que é pode vir a ser e se dar vigorando. Assim, Λήθη já vigora como Esquecimento desde o encobrimento das trevas e do negrume da Noite. Descendente da Noite negra, onde não vigora a luz de Ἥλιος, não pode se sustentar o que se dá manifesto como presença. A manifestação do que é revela-se a partir do dissipar-se do véu que obscurece no negrume trevoso o que é, de modo que lá o resguarda caoticamente na originariedade de ser desde Χάος. O Esquecimento é caótico não como um demérito, mas sim como o mais profundo. É lá que se sustenta a possibilidade da verdade enquanto o desvelar-se que pode, desde o encobrimento, irromper e manifestar-se como presença que paradoxalmente traz sempre a primordia-lidade caótica de sua origem.

Por isso que Manuel Antônio de Castro nos diz que a φύσις para o grego se dava questão irrompendo-se como reunião do conhecido, do desconhecido e do mistério, mas não o mistério destinado a revelação, e sim este como o que originariamente não pode ser conhecido35, a impossibilidade radical de deixar de ser o que é: mistério, res-guardo, encobrimento. O mistério já o é pelo negrume originário tributário do caótico encobrir em que se sustenta o Esquecimento. O mistério já o é pelo Χάος como a aber-tura, sendo possibilidade primeira de toda ordenação e aparecimento do que é, enquan-to o detentor e guardião da possibilidade de ser, pela noite e pela escuridão profunda: Ἔρεβος. Donde toda manifestação provém como possibilidade radical de irrupção e

32 BRANDÃO, J. Mitologia grega, Vol. I, p. 191.33 Cf. BRANDÃO. Op. cit. Vol. I, p. 184.34 Cf. CHANTRAINE, p. 1246; cf. também LIDELL & SCOTT-JONES, p. 1981.35 CASTRO, M. A. O acontecer poético – a história literária. Rio de Janeiro: Antares, 1982, cap. I, pp. 29-31.

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acontecimento. É, portanto, daí que provém o Esquecimento que já vigora e reverbera em ἀληθεία como o que a origina. Diz-nos ainda Torrano nos trazendo importante indicação da originariedade entre verdade e esquecimento:

Como desocultação é que os gregos antigos tiveram a experiência fundamen-tal da Verdade. A palavra grega alétheia, que a nomeia, indica-a como não--esquecimento, no sentido em que eles experimentaram o Esquecimento não como um fato psicológico, mas como uma força numinosa de ocultação, de encobrimento36.

Fora do domínio do homem, o Esquecimento é força primordial que já encobre e dissimula tanto o homem de si mesmo, bem como também as coisas para este, por uma indicação própria daquilo que já lhe é anterior. A construção hoje vigo-rante, focada na centralidade de uma posição e condicionamento, nos proporciona uma cegueira prescritiva que dificulta perceber o vislumbre do Esquecimento como vigor divino, que já se dá e concede mostrando ao homem o próprio encobrimento do que é. Certamente uma cegueira diferente da que nos apresenta a Noite negra e trevosa, que divinalmente concebe, passando hereditariamente de Χάος para o Esquecimento, a condição da própria presentificação e manifestação de φύσις e ἀληθεία. Não devemos ainda esquecer que, como nos diz Hesíodo: “Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,/ gerou-os fecundada unida a Érebos em amor37.” Temos a pri-mordialidade da Noite unida à escuridão profunda, a Érebos, mostrando que o apa-recimento do Dia (Ἡμέρα), enquanto a possibilidade do irromper por onde Hélios tomará para si seu quinhão, é dependente e traz a hereditariedade da Noite trevosa e negra e a profundidade da escuridão de Érebos. Νύξ ainda deu à luz Θάνατος que, como nos diz Junito Brandão, tendo raiz no indo-europeu *duhen, dissipar--se, extinguir-se, mostra a aproximação da morte enquanto esta é já o ocultar-se, o ser como sombra38, e também a Ὕπνος, o deus Sono que faz encerrar as pálpebras levando o homem ao encobrimento do que dorme. Essas potências divinas nos concedem sua força como referência entre o homem e o real em uma exigência própria de o real mostrar-se. A manifestação epifânica das potências originárias concede e mostra ao homem o que lhe cabe, fazendo com que ele possa assim se apropriar de si mesmo.

Ainda no mesmo intento trazemos o dito do poeta Diego Braga, em palestra pro-ferida na UERJ, acerca do esquecimento: “O esquecimento, filho da Discórdia, não é a queda num estado de letargia passiva e balbuciante, mas antes um esforço de tentar

36 TORRANO, Jaa. Op. cit. p. 25.37 HESÍODO. Teogonia versos 124-125, p. 109. Trad Torrano.38 BRANDÃO. Op. cit., p. 225.

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deixar as coisas em disputa, no jogo dinâmico do fluxo da vida, da historicidade39”. Diz ainda o mesmo autor acerca de sua interpretação sobre o conto Funes, o memorioso, de Borges40, onde em decorrência de um acidente um sujeito começa a se lembrar de absolutamente tudo:

Funes, o tal personagem, lembra de tudo. É dito que ele não consegue enten-der porque as diferentes folhas de uma mesma árvore são chamadas pelo mes-mo nome, se são completamente diferentes. O cão que passa a uma determi-nada hora é completamente diferente do cão que volta pouco tempo depois. A transcrição de um único dia de suas memórias demoraria exatamente um dia. Ou seja, não há unidade, não há sentido, porquanto não há, para quem nada esquece, a insubstituível experiência de rememorar, de trazer de volta, com toda emoção e sentido que este acontecimento tem, o que estava de fato per-dido para nós. O mundo se converte em um interminável amontoado de frag-mentos sem qualquer unidade, justamente porque lhe falta o esquecimento41.

A partir do esquecimento como questão vêm e advém a unidade do que é na dispu-ta e no jogo em que, o que é, assume sua identidade e ao mesmo tempo diferença. Não podemos por tal correr o risco de entendê-lo pela subjetividade lançando a um pretenso domínio do homem o que aqui está em jogo. Não há dúvidas de que este mesmo ho-mem, essencialmente, também não pode se dar alijado e abstraído deste jogo em que, originaria e ontologicamente, o que é, já assume sua identidade no seio das diferenças em reunindo-se no mesmo. No próprio conto de Borges figura o dito “Pensar es olvidar diferencias42”. Esquecer diferenças como a possibilidade de pensar é já, e ao mesmo tempo, fazer vigorar no jogo de tensões, esquecimento e memória como nos diz Diego Braga. Esquecer diferenças é já, e ao mesmo tempo, lembrar e conformar identidades e simultaneamente diferenças. O paradoxo se instaura onde ambos, sendo o mesmo, já perfazem unidade sem que se misturem um no outro, mantendo-se cada um como próprio. Sem esquecimento a identidade não se mostra, não dá-se. Esquecer, portanto, é a possibilidade da memória irromper saindo do véu e vir à presença. A tensão origi-nária entre memória e esquecimento traz a radicalidade do limite frente ao não-limite. Esquecer diferenças é dispor-se à memória, é fazer vigorá-la. Assim Borges nos apre-senta a tensão entre permanência, como identidade, e diferença, como transformação. Mais uma vez, o fragmento 84 de Heráclito volta a vigorar e fulgurar enquanto o que

39 BRAGA, D. Poesia e Memória. Palestra proferida por ocasião do I Seminário de Educação Poética (realizada na UERJ, em 3 de outubro de 2012).40 Cf. o conto em: BORGES, Jorge L. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1984, vol. I, p. 485-490.41 BRAGA. Op. cit.42 BORGES, Jorge L. Op. cit., p. 490.

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é, transforma-se repousando. Esquecer como a possibilidade de resguardar identidade, unidade e memória, nos aproxima do que fulgurava para o grego poeticamente no vigor do sagrado: as potências divinas enquanto manifestação. O que pela experiência poética de Funes se mostra é a imagem que revela, como diferença inusitada, a con-dição humana já lançada no esquecimento, de modo que o homem se apropria de si já, e também, porque esquece, e esquecer já lhe é concedido pela dissimulação própria das coisas e do real originariamente, que desde os gregos nos são lançados questão pela manifestação da divindade para além do homem.

De modo análogo à divindade feminina do Esquecimento, na mitologia grega, Me-mória também é uma deusa, encontrando-se para além do homem. Por Hesíodo, na Teogonia, a Memória é filha da Terra (Γαῖα) e do Céu (Οὐρανός) constelado43. Sendo--lhes filha, uma das titânides, anterior em originariedade aos olímpicos, a Memória mostra-se um dos modos em que o real mesmo se dispõe na sacralização e no mistério do que diz-se, por si, sacro. Céu e Terra concebem Memória na qual o homem por, e a partir dela, chega a si mesmo. Apropriado naquilo que ele é, chega a si já podendo brilhar também como o destino do que, desde a memória, o concede ser. A Memória destinando-se ao homem, lhe entreabre a própria destinação temporal que, enquanto ser, faz-se revelar no homem vivências múltiplas do que é, sempre e constantemente, escapando no contínuo de sua presença. Reforçando-nos a ultrapassagem originária de uma centralidade psicológica, nos diz Torrano sobre Memória:

Longe de se esgotar em sua acepção psicológica, Memória é uma Potência cós-mica, que nasce da cópula do Céu e da Terra, esses fundamentos inabaláveis dos Deuses e de Tudo (...).Memória, que mantém as ações e os seres na luz da Presença enquanto eles se dão como não-esquecimento (a-létheia), gera de Zeus Pai as forças do Canto, cuja função é nomear-presentificar-gloriar tanto quanto a de deixar cair no Oblívio e assim ser encoberto pelo noturno Não-Ser tudo o que não reclama a luz da Presença44.

Diz-nos também Ronaldes de Melo e Souza:

Mnemósine, a deusa da memória, é filha da Terra como potência cosmogô-nica, que em grego se diz gaia. Apenas no contexto tardio do pitagorismo e da palingenésia, do orfismo escatológico e da gnosiologia platônica se torna possível conceber Mnemósine como uma função psicológica. (...) Mnemósine foi inicialmente a potência divina e concreta da origem que preside à gênese

43 Cf. HESÍODO. Op. cit., versos 132 – 135, p. 109.44 TORRANO, Jaa. O mundo como Função de Musas; in: Teogonia: a origem dos deuses / Hesíodo; estudo e tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 67.

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de tudo que existe, e só no fim, já desdivinizada, transforma-se na faculdade abstrata da memória(...)45.

A Memória, enquanto potência cósmica e divina que preside concretamente tudo o que é, mostra-se ontologicamente anterior ao homem. Dispomo-nos a ela entendendo--a como um consumar-se da referência entre homem e real/φύσις/ser por um lança-mento do último em direção ao primeiro, na sacralização do que se torna manifesto concretamente, como produção própria do real que reflete no homem a origem de sua constituição. Assim, o ser faz com que o homem possa apropriar-se de si por tal consumar-se. Os “fundamentos inabaláveis dos Deuses e de tudo” são os pais da Me-mória e de toda memorabilidade. “Presidindo à gênese de tudo que existe” a Memória é a própria possibilidade de tal nascimento como manifestação de mostrar e ser assim como é. Essa presença assume a possibilidade de se desvelar temporalmente de modo que, enquanto temporal, já é resguardada pela divindade. Toda memorabilidade, todo modo de se dar já enquanto o que vêm e advém no vigor de ser, revela-se e brilha sob a égide da deusa Memória já profundamente reunida com o Esquecimento, em sendo ambos, modos próprios do real/ser se desencobrir no que ele é enquanto multiplicida-de, lembrando mais uma vez Aristóteles: τὸ ὄν λέγεται πολλαχῶς 46. Os fundamentos inabaláveis dos deuses e de tudo, ainda corroboram com o sem fundo na presença e medida do caótico e originário abismo desprovido de toda solidez, mas ao mesmo tempo se mostrando toda concretude do que quer que seja. Uma tríade que revela de modo múltiplo o que como um, se dá. Estes já revelam Memória enquanto conjuntura radical de acontecimento, enquanto tempo e enquanto ser, onde é já um dispor-se para o homem, conduzindo o homem a apropriar-se de si. Por isso nos diz ainda Antônio Jardim a partir da referência entre Musas e Memória, onde ambas se reúnem enquanto modo primordial de ser, já sendo as primeiras, filhas da Memória, que: “a musa seria aquela que tem ou exerce poder junto à unidade, porque a possibilita e, mais do que isso, a manifesta47”. Assim ainda entendemos o tempo se desvelando já e também ser, na unidade memorável de presença do que é. Aqui é a Memória, pelas Musas, que manifesta a unidade. O esquecimento resguardando a unidade, é também e ao mesmo tempo reunido com a memória, que com ele também a resguarda. Ambos, na unidade de reunião do mesmo, resguardam a unidade do que é e se mostra, de modo que em sua unidade devem, cada qual por si, ao outro o seu próprio desvelamento, onde se confia o que é, a ser o que é, já na inamovível disposição radical do tempo.

45 SOUZA. Op. cit., p. 195.46 Cf. nota 1.47 JARDIM. Op. cit., p. 139.

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Profundamente arraigada ao esquecimento, a Memória nos conduz para ἀληθεία. O α privativo de ἀληθεία somente pode ser entendido assim, ou seja, como privação, condicionado por nossa noção moderna de entender o mundo, o real e o homem. O α de ἀληθεία não é privativo, mas sim afirmativo e reafirmador, confirmando a ori-ginariedade de sua primordialidade. O a- de ἀληθεία reafirma o esquecimento como toda origem do desencobrir-se para a manifestação que mostra-se e surge, portanto a verdade é já sustentada no encobrimento originário da não-verdade como própria possibilidade de aparecimento da verdade dita por ἀληθεία e φύσις. A reafirmação do esquecimento já o é também e ao mesmo tempo do próprio irromper que surge e assim se mantém desencoberto e se resguarda na senda da Memória. Ambas as potên-cias divinas coabitam a unidade de serem o que são em referência e, por conseguinte, demarcação de diferenças. Habitando o mesmo, a verdade é o advir da presença que não cessa de, em permanecendo, já revelar-se em velando-se. O auto-velamento do que já pela verdade se dá, faz vigorar no mesmo ἀληθεία, φύσις, Memória e Esquecimento. O que mostra a unidade como sentido, como presença já oculta por si desde o misté-rio do que antes de tudo é - entendendo-se tal anterioridade como primordialidade e originariedade; vigorando já fora de toda linearidade cronológica e concedendo tempo na multiplicidade de ser. A Memória resguarda a unidade que já é também manifesta enquanto φύσις e ἀληθεία, todas confiadas ao Esquecimento, resguardando a possibili-dade de ser de tudo o que é, pois que resguarda e envia o próprio homem para si mesmo o dispondo para a identidade do que é já lançado desde o ser/real, na permanência de sua transformação.

A ocultação radical disposta originariamente pelo real enquanto φύσις é a subtração de si enquanto mistério. Memória, Esquecimento e Verdade trazem para os gregos anti-gos uma unidade inequívoca que já advém desde o ser/real, na medida em que o mito, por sua força de manifestação, dava-se como a mais alta possibilidade de verdade e en-tendimento do mundo e do ser. A memória como o que concede e garante o ser daquilo que é, unida ao esquecimento, à verdade e a φύσις, revela já sendo revelada no tempo em que o sagrado vigora. Transpassando e ultrapassando originariamente qualquer des-sacralização, o que é mostra-se na poeticidade de sua presença primordial. O sagrado como mito era para o homem o que lhe garantia como tal, o que lhe conferia e permitia sua própria humanidade como devedor dos deuses e do real. Assim é que a verdade já é simultaneamente não-verdade, paradoxal e ambiguamente presença misteriosa, como questão desde tudo o que é e não é. O dizer mítico é o dizer que traz a força inaugural da própria terra e do céu desde o Χάος originário. Desse modo podemos nos referir às palavras de Otto que iniciaram essa discussão, a respeito das musas proferindo-as ao invés de “a deusa da fala verídica”, como: “A Musa é a deusa que já é por si e desde si

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mesma verdade por seu misterioso aparecimento, a Musa é a deusa que fala mostrando--se e ocultando-se verdade”. Sendo a memória como nos diz Ronaldes “a potência divina e concreta da origem que preside à gênese de tudo que existe”, a manifestação das Musas como deusas é já a manifestação da verdade enquanto desencobrimento e também mistério em tensão radical com o Esquecimento enquanto ocultação e dissi-mulação originária que resguarda a φύσις na caótica condição primeira de ser o que é. As Musas concedem o real: “o verdadeiro sentido do mundo, dos deuses, dos homens e dos entes intramundanos depende do canto das musas, as filhas de Mnemosiyne48”. Essa dependência não se dá como um a partir de, por uma linearidade causal, se assim entendemos nos isentamos do modo de manifestação em que o real aí se concede a ser pensado aparecendo como o mistério de si. A dependência aqui o é como o que reúne na unidade de ser e reafirma tal unidade em sendo já no constante paradoxo de ser, que é revelado pela memorabilidade-esquecimento em que se sustentam as Musas. Hesíodo nos concede, pela tradução de Torrano, o dito de sua Teogonia a respeito destas, os versos 36-43:

Eia! Pelas Musas comecemos, elas a Zeus paiHineando alegram o grande espírito no OlimpoDizendo o presente, o futuro e o passadovozes aliando. Infatigável flui o somdas bocas, suave. Brilha o palácio do paiZeus troante quando a voz lirial das DeusasEspalha-se, ecoa a cabeça do Olimpo nevadoe o palácio dos imortais49

As Musas dizem o tempo mostrando-o como manifestação do que é, assim podemos entender a passagem que se diz em: “Brilha o palácio do pai”, no canto que soa infati-gável e suave. Brilhar enquanto presença e aparecimento mostra que na temporalidade de ser, o que é vem a ser no canto das Musas. Dizendo o presente, o passado e o futuro, elas dizem o palácio de Zeus que aí brilha fulgurante no ofuscamento misterioso de ser resguardando-se já memória/esquecimento. O canto mostra-se detentor do poder de reunir e revelar verdade em tensão radical com o esquecimento. O que é, no canto, se revela na tensão de ser no tempo, temporalizando na transigência radical em que tudo permanece sendo, de modo que o canto instaura ser e tempo. O tempo na dimensão de presente, futuro e passado é por elas revelado fazendo brilhar o palácio e também o próprio pai, bem como todo o Olimpo e elas mesmas enquanto manifestam-se canto. O eco que espalha-se vai, nesse espalhar-se, expandindo e consolidando, concretude

48 SOUZA. Op. cit. p.196.49 HESÍODO. Op. cit., p. 105.

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radical, onde a presença do que é, assim brilha já ofuscantemente. Tal eco reverbera consolidando homens, coisas, deuses, memória, esquecimento. As Musas mostram ser e tempo assim manifestos como exigências poéticas do real, como mistério em que o pró-prio real envia-se concedendo-se Musa manifesta como temporalidade e ser. Podemos trazer também a referência originária de ser e tempo, fazendo com que se nos referencie a investigação magistral de Heidegger50. Poeticamente ser e tempo mostram-se reunião na disposição que musalmente se dispõe já retraindo-se.

Somente no brilho ofuscante disposto na primordialidade de tempo e de ser, como presença simultaneamente transiente e permanente, é que podemos entender a depen-dência que se expõe no dito de Ronaldes de Melo e Souza. Tal dependência nos concede a noção que o homem grego dispunha a respeito do real em manifestação, do que desde tal se mostrava poeticamente na sacralização de ser o que é, de uma conjuntura que se expunha enquanto possibilidade para além de qualquer domínio ou circunscrição por parte do homem essencialmente, esse que já se dava apropriando-se em referência ao que se dá manifesto em reunião.

O não controle pelo homem do que o real concede, ainda hoje vigora e reverbera, mesmo que toda uma estrutura tenha sido construída para negar tal modo de o real mostrar-se. Assim o homem, mesmo hoje distante no tempo e na compreensão do que o real lhe revela, em relação ao que os gregos de há muito já sabiam, pensavam e viven-ciavam, originariamente se depara com o que o forma e conforma, mas com a diferença de que tal formação e conformação hoje assume a maneira de se desvelar e desencobrir desde uma exigência inevitável de nosso tempo, enquanto o que revela a tudo antes pela disponibilidade como mostra Heidegger51.

De modo distinto, por ἀληθεία não há juízo ou linearidade, mas apenas a mani-festação e o mistério do real enquanto abriga e sustenta o todo. Como verdade, canto como Musa é um mostrar-se misterioso. Prestamos atenção inequívoca à dinâmica do acontecimento musical desde há muito. O poeta, o cantor Grego, compreendia a si perante a deusa enquanto uma dádiva da mesma. Não havia canto sem a invocação às Musas. O poeta as invocava para que elas se fizessem presença como canto e, assim encantassem como presença.

Cantar o canto que encanta era para o poeta a sagração e consagração do que lhe era sagrado. O poeta grego sabia que ele somente era, como tal, pelas Musas. Por elas e com elas ele participava do encantamento do canto. O poeta se percebia reunido por algo que lhe ultrapassava por ser-lhe anterior, uma anterioridade primordial. Os antigos nos mostram a reunião da música enquanto dinâmica que congrega não apenas as obras

50 Cf. ‘Ser e Tempo’; cf. também a conferência ‘Tempo e Ser’; ambos do mesmo autor.51 Cf. nota 17.

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musicais. Deles muito devemos ouvir e aprender a fim de pensarmos o que nos convoca e apropria. O que durante séculos permaneceu escondido na margem profunda que resguarda vazio, clama e convoca diálogo.

A arte já passou pela interpretação do que se dá pela dualidade de matéria e for-ma entendendo-se a partir do suporte objetivo a ser desvendado no isolamento de sua constituição conceitual52. Já se deu compreendida como possibilidade mimética na tentativa de reunir o homem e a obra enquanto possibilidade de representação referen-cial. Na esteira da tradição ocidental já passou, desde Baumgarten, pela perspectiva na centralização dos sentidos da sensibilidade pela interpretação da estética por αἴσθησις, buscando prosseguir no âmbito de uma interação referencial com o homem de modo explícito como subjetividade do sujeito, trazendo a proximidade deste para ser obje-tivada junto com a interpretação objetiva da obra. Desde há muito a história da arte entende o fenômeno artístico dentro das possibilidades representativas no âmbito da simbologia mais recentemente travestida de semiologia, ou pela objetividade na busca pela análise da obra enquanto objeto a ser decantado. Tais discursos em tensão ou complementaridade são de todo modo, maneiras de o homem se debruçar no misté-rio que constantemente o comove em direção a si mesmo desde sua resposta para a exigência do real.

Independente da compreensão ou modo de perceber o que mostra-se arte, ela já sempre se deu em constante tensão e referência para com o todo na qual poetica-mente está abrigada, pois quando se fala de arte já se fala de um mundo de relações e referências em que se revela o que é historicamente. Veja a reunião percebida pelos Gregos antes das concepções platônicas e aristotélicas e suas interpretações posteriores.

Ao se buscar um dizer a respeito da música temos de ter em consideração o que a dinâmica musical promove. Porque uma pesquisa se entenderia por chamar-se “Mú-sica: a consagração do silêncio”? O título já é estranho pelo paradoxo constante desde sua aparente incoerência. Quando se fala de música aparentemente estamos falando de sons que se consagram pelo acontecimento musical dispostos em obra. A obviedade de tal constatação faz qualquer um que se empenhe pelos caminhos musicais compre-enderem como absurda a formulação de um título de tal natureza. Muito menos uma pesquisa que se compele em tal direção. Qual silêncio poderia ser consagrado se por música entendemos a apresentação sonora do que aqui se mostra? Para além da obvie-dade devemos persistir na insistência que encaminha-se na direção que o acontecimen-to musical aponta. No âmbito do que materialmente se apresenta pelo discurso musical na dimensão das obras, questionemos.

52 Cf. HEIDEGGER. A origem a obra de arte. Op cit. pp. 61-63.

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III - CONSIdERAÇõES FINAIS dE SEGuIMENtO

O presente texto encaminha-se para sua parte III na próxima edição desta coleção.

IV – REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

Obs.: As referências relacionadas ao presente texto se encontrarão na íntegra na última parte do mesmo. Aqui se pôde dispor das mesmas em nota de rodapé ao longo do texto.

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CICLOS dE LEItuRAS COMO PRÁtICA dE FORMAÇÃO dE PROFESSORES dE FILOSOFIA: uMA

EXPERIÊNCIA dE EXtENSÃOMarcelo Senna Guimarães – Unirio / PPFEN / CEFET/RJ

INtROduÇÃO

Como mostram pesquisas recentes sobre a formação docente no Brasil, o diagnós-tico atual indica uma série de problemas a serem enfrentados: “podemos sintetizar essa formação como apresentando currículos fragmentados, com conteúdos excessivamente genéricos e com grande dissociação entre teoria e prática, estágios fictícios e avaliação precária, interna e externa” (GATTI, 2013, p. 58).

Diante desse quadro, evidencia-se a necessidade de buscar modos de realizar a for-mação docente que atuem sobre os pontos identificados como problemáticos. O campo da extensão é considerado como um campo propício para realizar experiências locali-zadas de formação cujos objetivos específicos sejam abordar um ou mais desses pontos. Dada a possibilidade de promover um encontro entre aqueles que estão trabalhando diretamente nas escolas e os que estão envolvidos na formação de futuros professores, as diversas questões relativas à pratica de ensino de filosofia podem vir à tona e serem abordadas levando em conta sua complexidade. Busca-se, assim, uma interação trans-formadora entre Universidade e outros setores da sociedade, no caso específico aqueles setores envolvidos com o ensino de filosofia na educação básica, o que inclui professores desse nível de ensino, licenciandos e professores responsáveis pela formação docente no nível superior, entre outros. Essas formulações são feitas em consonância com a Política Nacional de Extensão Universitária, formulada pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (FORPROEX, 2012, p. 15-ss). As di-retrizes aí indicadas, quais sejam, a interação dialógica; interdisciplinaridade e interpro-fissionalidade; indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão; impacto na formação do estudante; e impacto na transformação social; tentam ser abarcadas em sua totalidade em um projeto como o que se descreve adiante. Não se trata de demasiada pretensão do projeto, mas de observar que, se bem cumpridas suas diversas etapas, é possível fazer convergir todas as diretrizes, ainda que de modo localizado. Assim, no ciclo de leituras propomos uma interação dialógica com os participantes; essa interação está aberta a envolver profissionais de diferentes disciplinas e de todos os campos do trabalho em educação; ensino, pesquisa e extensão se articulam na seleção, leitura e análise de textos,

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levantamento de questões concernentes às temáticas e aos grupos envolvidos e encami-nhamentos de ações; espera-se com isso produzir efeitos na formação de licenciandos e na prática de professores, realizando algum tipo de transformação social.

MAtERIAL E MEtOdOLOGIA

Dentre as atividades desenvolvidas no âmbito do Projeto de Extensão Filosofia na Sala de Aula, trataremos especialmente dos Ciclos de Leituras, entendidos como um espaço importante para a formação de professores.

Nesses ciclos, propomos um conjunto de textos para leitura conjunta e discussão com os professores e demais participantes. Os textos tratam de diversos aspectos do ensino de filosofia e proporcionam elementos para abordar as práticas efetivas dos pro-fessores em suas escolas. São selecionados a partir da experiência e do conhecimento prévio dos organizadores do ciclo, que são os participantes do projeto de extensão. Assim, com base nas atividades já realizadas, avaliamos os temas que parecem mais oportunos para buscar nos textos elementos motivadores para as conversas e discussões. No primeiro ciclo de leituras, realizado em 2014, selecionamos um conjunto de textos que tratam do ensino de filosofia de um ponto de vista metodológico. Buscou-se le-vantar três perspectivas diferentes sobre o ensino da disciplina e propô-las como ponto de partida para as leituras e análises com os professores. Escolhemos textos de autores conhecidos na área: Guillermo Obiols, Lidia Maria Rodrigo e Silvio Gallo (OBIOLS (2002), RODRIGO (2009), GALLO (2012)). Esses textos oferecem orientações para o modo de propor as leituras e as conversas com os professores. Procuramos formular uma temática para o curso na forma de um problema, lemos trechos que destacaram aspectos desse problema e por meio de uma conversa investigativa com os participantes elabora-mos questões e linhas de investigações relacionadas ao tema geral. Selecionando alguns capítulos de cada livro, iniciamos nossa proposta de leituras e conversas sobre os textos. A divulgação foi feita com base nas listas de contatos de professores, licenciandos e outros interessados que já tínhamos recolhido a partir de atividades anteriores do projeto. Também foram produzidos novos materiais de divulgação, como um folder e um texto-convite, que foi distribuído em forma impressa e também por outros meios digitais, incluindo diversos grupos virtuais que têm a questão do ensino de filosofia como foco de interesse.

O grupo de pessoas que se dispôs para participar do ciclo de leituras não foi muito grande, num primeiro momento. Fizemos sete sessões em 2014, com a presença de cinco a dez participantes em cada uma. Em cada encontro, apresentamos brevemente os textos, selecionamos trechos para leitura e análise e abrimos a palavra para participa-ção de todos. O objetivo não é apenas a compreensão do texto, mas a abertura de um

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espaço de diálogo entre os professores. Assim, cada trecho de texto costuma suscitar uma série de comentários dos professores e dos demais participantes, que indicam suas preocupações e suas experiências com a prática do ensino de filosofia nas escolas. O diálogo que se desenvolve a partir daí é conduzido pelos coordenadores da atividade ao modo de uma investigação coletiva, tentando compreender os problemas levantados pelos professores e encaminhar, se possível, alguma solução para eles. Deve-se ressaltar que um elemento fundamental dessas rodas de leitura é a prática da escuta atenta dos participantes. Consideramos que muitos professores trabalham relativamente isolados em suas escolas, raramente contando com uma equipe de trabalho específica da dis-ciplina Filosofia e tampouco com reuniões regulares de planejamento e avaliação da prática docente. Desse modo, a atividade dos ciclos de leitura visa proporcionar uma oportunidade para os professores conhecerem outras perspectivas e outras experiências de trabalho. Essas perspectivas e experiências abrangem a proposição de programas de curso e planos de aula, a definição do currículo da disciplina, o uso de textos e de outros recursos didáticos, a metodologia das aulas, a preparação de avaliações específicas de filosofia e a participação nos rituais escolares, como reuniões de coordenação, conselhos de classe, períodos de avaliação, etc.

RESuLtAdOS E dISCuSSõES

Os resultados têm sido variados, mas apontam caminhos importantes para o apri-moramento do ensino de filosofia nas escolas. Foram abordados temas como a coorde-nação de uma equipe de professores de filosofia, os modos de trabalho com conteúdos específicos da disciplina, a prática de interdisciplinaridade com áreas como artes, língua portuguesa e história. Além dos temas que foram discutidos, alguns comentários dos participantes sobre o valor das sessões de leitura e conversa nos chamaram a atenção. Esses comentários ressaltavam a importância daquele tipo de espaço, onde as conversas podiam acontecer de modo calmo e pausado, com referências teóricas, com interlocu-tores qualificados e de experiência diversificada, espaço em que as questões levantadas tinham encaminhamentos de respostas apontados pelas diversas falas, mas que pre-servavam também a autonomia de cada participante para resolver como agir em seu contexto de trabalho ou de atuação. Esses comentários a princípio nos surpreenderam, como organizadores do ciclo de leituras. Não tínhamos ideia de que nossa proposta teria capacidade de adquirir tamanho valor para os professores e estudantes que esta-vam participando. É claro que pretendíamos contribuir para a formação de professores e licenciandos e para a prática de ensino de filosofia nas escolas, mas os comentários pareciam indicar que algo mais estava se realizando.

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Esse “algo mais” talvez tenha ficado manifesto à medida que alguns dos temas se desenvolveram. Como citamos acima, um dos temas abordados foi o tema da coorde-nação de uma equipe de filosofia. Um dos docentes presentes ao ciclo de leituras (não identificaremos aqui nem os nomes dos docentes, nem as instituições em que atuam) relatou seu trabalho em uma instituição de ensino que, ao contrário de grande parte da experiência dos professores de filosofia, conta com uma equipe de trabalho relati-vamente grande nesta disciplina. Não obstante, como ele tinha assumido o papel de coordenador da equipe, estava enfrentando várias dificuldades. Segundo seu relato, um número significativo de professores da equipe recusava-se a discutir um currículo comum para a disciplina, e mesmo quando aceitava participar das discussões, recusava--se a implementar alguma proposta de currículo combinada com os demais colegas nas suas próprias aulas. Isso gerava um problema para os estudantes da escola, pois como muitos deles estudavam em turmas cujos professores de filosofia eram diferentes de um ano para o outro, as exigências que encontravam em uma nova série não eram coerentes com as que lhes tinham sido apresentadas anteriormente. Havia uma defasagem, ou um descompasso, entre as aulas de distintos professores, o que prejudicava a produção de uma continuidade no aprendizado de filosofia entre os estudantes. Além disso, havia a recusa por parte de alguns docentes de mudar sua postura, mesmo diante das tentativas da coordenação da equipe de fazer ver a razoabilidade das demandas dos alunos, ao que se juntavam também demandas da coordenação pedagógica da escola como um todo.

Nas conversas que se seguiram, vários participantes tentaram emitir suas opiniões sobre como lidar com a situação. Alguma referência nos textos que tínhamos toma-do como base foi buscada também. Porém, não podemos dizer que chegamos a uma solução para o problema. Nenhuma das opções de atuação parecia satisfatória para o professor que tinha relatado o caso, e algumas delas já tinham sido tentadas mas não tinham tido bom resultado. Mesmo não encontrando uma solução específica para essa questão, o professor relatou que só o fato de poder expor o assunto e trocar ideias com outros colegas já tinha sido de algum proveito para ele. Por outro lado, ele também tinha encontrado outros colegas que tinham passado por situações mais ou menos pa-recidas. Isso também gerou um efeito positivo, no sentido de perceber que o problema que estava enfrentando era comum em outras instituições e em outros ambientes de trabalho. Assim, percebia que o problema não era dele, pessoal, mas talvez uma questão mais ampla, que envolvia o trabalho com ensino de filosofia em diferentes contextos. Essa percepção parecia ser um ganho para o professor, pois a questão, apesar de não re-solvida, tomava uma outra dimensão. O fato de perceber que era uma questão presente em outros locais tornava possível encará-la como algo que tinha que ser tratado em ou-tros termos, mais impessoais, e que nos levou a discutir a formação dos professores nas

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universidades, o divórcio entre a prática de professores e a prática dos pesquisadores, conforme as exigências da vida acadêmica, entre outras questões.

Um outro exemplo de tema surgido nas conversas do ciclo está relacionado com um conteúdo específico da disciplina filosofia. Uma professora relatou que estava ten-tando apresentar aos alunos o tema do mito e do pensamento mítico, em contraposição ao pensamento filosófico. Porém, tinha escolhido abordar inicialmente mitos da cultura brasileira, e não da cultura grega. Por conta dessa escolha, tinha se surpreendido com a reação dos alunos, que aparentemente manifestavam mais estranheza com as narrativas pertencentes à nossa própria cultura do que aquelas que fazem parte da tradição greco--romana ou mesmo nórdica. Essa observação gerou um problema para a professora, pois ela considerou que surgia uma necessidade de entender melhor o que se passava. Seria necessário promover o maior conhecimento de mitos de origem indígena e africana, pre-sentes em diversas regiões do Brasil? Como seria possível relacionar esse trabalho com a questão do surgimento da filosofia na Grécia, já que se trata da relação entre o pensa-mento racional, típico da tradição ocidental, e um conjunto de mitos antigos, próprios da cultura dos povos helênicos? O contato de portugueses com indígenas e africanos poderia sugerir alguma analogia para a questão do surgimento da filosofia? Não chegamos a estabelecer respostas conclusivas para todas essas questões, mas exploramos algumas possibilidades que indicavam formas de abordar esses temas com os estudantes do ensino médio. O tema da relação entre mito e filosofia é um ponto que costuma ser proposto para os currículos no início dos cursos, no ensino médio, de modo geral, se localizando no primeiro ano. Porém, é difícil tratá-lo sem recair em alguns lugares comuns que podem ser enganadores. A idéia de que o surgimento da filosofia e do pensamento racional é uma “evolução” do ser humano, uma “melhoria” em relação ao pensamento mítico, vem sendo problematizada por alguns autores. Por outro lado, a equiparação entre os dois como dis-tintas formas de pensamento, nem melhores nem piores uma que a outra, também não é aceita sem mais. Compreender o surgimento da filosofia no contexto da cultura grega, marcada pela presença do mito e da religião politeísta, é difícil para nós, em nosso contex-to marcado pelo cristianismo e pelo sincretismo entre as religiões e crenças. Em todo caso, algumas experiências que exploram os sentidos de mito inclusive em nossa cultura podem se mostrar mais efetivas para proporcionar aos estudantes uma possibilidade de refletir sobre as diversas formas de pensamento, sem absolutizar a superioridade das ciências ou do pensamento racional e filosófico sobre outras formas, mais imaginativas.

Consideramos, assim, que o questionamento sobre a coordenação dos trabalhos do-centes na formulação dos currículos de filosofia na educação básica e a identificação de temas relevantes para o ensino de filosofia nas escolas que não são amplamente oferecidas na formação do professor foram linhas de investigação elaboradas durante o processo.

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CONCLuSÃO

A conclusão que podemos apresentar agora, com relação a esse modo de atividade de extensão desenvolvida, é bastante parcial. Mas nos parece interessante perceber que a densidade das discussões havidas durante o ciclo de leituras indica a potencialidade que tem esse tipo de encontro para enriquecer a experiência e a prática de professores da educação básica e do ensino superior. Para os primeiros, o simples fato de encontrar interlocutores para suas angústias e questões geradas a partir do ofício de professor já representa um ganho em relação às condições de isolamento em que se encontram no trabalho, mesmo no caso em que compartilham seu trabalho com outros professores da mesma disciplina. Talvez a possibilidade de conversar sobre temas e problemas da escola fora do ambiente escolar seja um dos fatores que tornam essa experiência mais proveitosa. Para os professores e estudantes universitários, o contato com as situações concretas das escolas, conforme relatadas pelos professores que atuam ali, permite tor-nar mais concretos os desafios que se devem enfrentar no campo da formação docente.

Desse modo, o que pode parecer a princípio uma desvantagem se revela como o seu oposto. O fato de termos a presença de um número pequeno de participantes na ver-dade se mostrou mais produtivo. Em grupos pequenos, as conversas puderam se apro-fundar mais, os problemas puderam ser tratados com maior detalhe, uma certa empatia pode se desenvolver entre os interlocutores de modo a proporcionar uma satisfação afetiva, para além do trato das questões objetivas, didáticas ou teóricas. Entendemos, portanto, que a prática dos ciclos de leituras é uma prática promissora para as experiên-cias de formação de professores no contexto das atividades de extensão.

REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS:

GATTI, Bernardete. Educação, escola e formação de professores: políticas e impasses. In: Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 50, p. 51-67, out./dez. 2013, Editora UFPR.

PLANO NACIONAL DE EXTENSÃO UNIVERSITáRIA. FORPROEX. Encontro de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas do Brasil. Manaus, 2012.

OBIOLS, Guillermo. uma introdução ao ensino de filosofia. Ijuí, RS: UNIJUÍ, 2002.

GALLO, Silvio. Metodologia do ensino de filosofia. Uma didática para o ensino médio. Campinas/SP: Papirus, 2012.

RODRIGO, Lidia Maria. Filosofia em sala de aula: teoria e prática para o ensino médio. Campinas, SP: Autores Associados, 2009.

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ENtREVIStAS ORAIS/EM VÍdEO VIA WHATSAPP: uMA PROPOStA dIdÁtICA PARA A SALA dE AuLA

dE FILOSOFIAFábio Borges do Rosario – PPFEN / CEFET/RJ / Seeduc-RJ

Talita de Oliveira – PPFEN / PPFEN / CEFET/RJ

I. quAL ARquIVO uSAR NA AuLA dE FILOSOFIA? CONSIdERAÇõES INICIAIS

O presente trabalho experimenta fazer a transcrição do vídeo “Definição de ética”, recebido pelos pesquisadores por meio do aplicativo e mídia social WhatsApp. O vídeo recebido é uma parte editada de uma entrevista transmitida pelo Programa do Jô, da Rede Globo de Televisão, que tinha por entrevistador o apresentador Jô Soares e como entrevis-tado o filósofo e professor Mario Sérgio Cortella. Enceta-se, aqui, uma via investigativa na fronteira entre o ensino tradicional de Filosofia e novas formas de abordá-la.

A escolha do vídeo remete à questão da escolha do material a ser utilizado na sala de aula e a prescrição de se citar a fonte do material/arquivo, o local onde poderá ser loca-lizado por quem quiser conferir os dados, bem como a questão da autoria e assinatura da obra. O aplicativo e mídia social WhatsApp é conhecido por não armazenar as infor-mações enviadas/trocadas pelos usuários do aplicativo. Cabe ao professor empregar este tipo de recurso na sala de aula? Como pensar o trabalho do professor no século XXI quando “O que acontece agora ao trabalho é realmente um efeito da tecnociência, com a virtualização e a deslocalização globalizante do trabalho” (DERRIDA, 2003, p. 62).

A questão da fonte do material, do tipo de arquivo, do modo de arquivamento e da sua forma de acesso será um problema se o professor ainda estiver enclausurado na perspectiva clássica que valoriza apenas o formato livresco no acesso ao pensamento filosófico. Segundo Lévy (2015, p. 101), “as redes de comunicação e as memórias di-gitais englobarão em breve a maioria das representações e mensagens em circulação no planeta”, ou, nas palavras de Derrida (2011, p. 427), “é o caso então de pensar […] em primeiro lugar o que é “abandonar o livro”. Se o fechamento não é o fim, por mais que protestemos ou pratiquemos a demolição”.

Para além do binarismo empregar vs. não empregar outros formatos de arquivo nas aulas de Filosofia, pode-se pensar num desvio que possibilite empregar o material digital e o livro na mesma aula, pensando com os discentes que “o além do fechamento do livro não deve ser esperado nem encontrado. Está lá mas além, na repetição mas

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evitando-a. Está lá como a sombra do livro, o terceiro entre as duas mãos que seguram o livro a diferência no agora da escritura, a distância entre o livro e o livro, essa outra mão...” (DERRIDA, 2011, p. 434).

O arquivo escrito, aqui pensa-se acolhendo Derrida, pretende registrar para os au-sentes o que foi enunciado, pretende que os ausentes possam acessar o que foi enuncia-do sob a condição da manutenção do que foi arquivado, pois:

Se os homens escrevem é: 1. porque têm de comunicar ; 2. porque o que eles têm de comunicar é o seu “pensamento”, as suas “ideias”, as suas representa-ções. O pensamento representativo precede e comanda a comunicação que transporta a “ideia”, o conteúdo significativo; 3. porque os homens estão já em estado de recomunicarem e de comunicarem o seu pensamento quando, de maneira contínua, inventam este meio de comunicação que é escrita. (DER-RIDA, 1991, p. 352)

Com a escrita, foi encontrado um meio de arquivar o que foi/é comunicado, já que “o mesmo conteúdo, anteriormente comunicado através de gestos e sons, será de ora em diante transmitido pela escrita” (DERRIDA, 1991, p. 353). Compreende-se, ainda com Derrida, a escrita como disrupção da presença na marca. Critica-se o linguisticis-mo e a autoridade do código e interessa-se pela análise das formas pessoais, do presente do indicativo e da voz ativa nos performativos. Pensa-se que a autoria da enunciação aparece (tradicionalmente se identifica) verbalmente e, já na escrita, como marca da pretensão de presença, como marca de o autor ter-estado presente num agora passado (pretérito para quem acessa o arquivo assinado). Se na enunciação verbal a autoria apa-rece explicitamente pela flexão pronominal ou implicitamente pelo ato de enunciar, na escrita o autor inscreve (traça) o nome.

Com Derrida, admite-se aqui que, “numa entrevista, ainda quando se repete a mesma coi-sa, o mesmo “conteúdo”, pois bem, a situação, o contexto, a indicação, o destino, a assinatura são diferentes a cada vez, e é o imprevisto da “situação” que, suponho, o leitor ou o ouvinte espera” (DERRIDA, 2001, p. 332). Esta imprevisibilidade compreensiva marca também a leitura de um livro, pois, “noutro sentido, sempre é melhor ler os livros, permita-me repeti-lo, mais uma vez – relê-los (é também diferente a cada vez)” (DERRIDA, 2001, p.332).

II. A ENtREVIStA E A AuLA dE FILOSOFIA? uMA dISCuSSÃO à LuZ dE GOFFMAN E dERRIdA

Qual é o lugar da entrevista na aula de Filosofia? Qual arquivo deve se usar? O pro-fessor de Filosofia deve utilizar somente as entrevistas de filósofos europeus publicadas

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no formato livresco? Como podemos transcrever uma entrevista? E como pensar a entrevista na aula de Filosofia? Mais que isso, como pensar a própria entrevista em si?

Bruno (2013) propõe entender a entrevista como um momento de comunicação face a face característico da pós-modernidade em que os papéis interacionais são ricas fontes de análise. Argumenta que, na concepção tradicional de entrevista, o entrevista-do e o entrevistador assumem papéis e atribuições definidos no intuito de apreender fa-tos do mundo social e generalizá-los. Assim, o entrevistador ocupa um lugar de neutra-lidade e de organizador/condutor da entrevista, enquanto o entrevistado ocupa o lugar de repositório de informações. Segundo Bruno (2013), nas entrevistas, os participantes constroem sentido para os acontecimentos (para si e para os outros) e, nesta direção, opta pela visão de entrevista conforme a pesquisa qualitativa interpretativista. Assume, portanto, a importância da interação entre entrevistador e entrevistado, entendendo que suas convicções, perspectivas e interações anteriores contextualizam a entrevista.

A pesquisa qualitativa de base interacional enfatiza as considerações de Erving Go-ffman (2002) quanto ao negligenciamento da situação social, tida como todo ambiente que possibilite o encontro de indivíduos em face um do outro e cujo término ocorre somente quando um dos indivíduos fica só em consequência da retirada dos demais. Os encontros são regulados culturalmente e as regras determinam o comportamento dos presentes.

Na situação social, ainda que lar natural da fala, esta nem sempre ocorre. A fala, quando ocorre, é organizada dentro do arranjo social, em turnos de fala, o que Goffman chama de estado de fala. Organizada socialmente, a fala remete para um falante, para um idioma e para uma interação que a ratifica e governa. Deve-se, portanto, para Goffman, observar a fala e também os gestos funcionais que propiciam os estados de fala num encontro.

Ao analisar a mudança de footing, isto é, a mudança de enquadre dos even-tos, Goffman (2002) observa que tais mudanças são percebidas pela observação de alterações no alinhamento, porte, posicionamento, postura ou projeção pessoal do participante, e, ainda que a projeção possa ser mantida por um tempo, nota-se que o comportamento adquire importância de sentido sobre a frase gramatical. Considerado o continuum das mudanças, estas variam entre evidentes e sutis; a alternância é percebi-da pela alteração na altura, volume, ritmo, acentuação e timbre da voz. O footing ou a mudança de enquadre, assim, limita e delimita os episódios.

A análise de Goffman valoriza o olhar, o tato, etc., por entender que a gesticula-ção e o comportamento do falante e do ouvinte são partes importantes e cruciais no entendimento da interação. Assevera, ainda, que os limites e delimitações que permiti-riam rotular uma dada interação como conversa, fala, discurso, etc., são tênues e que é

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aconselhável ao analista, no momento da escolha do turno de fala a ser analisado, não preocupar-se com os rótulos, e, sim, com o percurso completo da interação.

Goffman argumenta que, na sociedade moderna, a conversa não é o único contexto de fala. Tem-se o caso dos monólogos expositivos (discursos políticos, palestras, etc.), em que o falante se posiciona numa tribuna e dirige-se a uma plateia. Neste tipo de in-teração, os ouvintes ficam afastados do falante (que ocupa a tribuna) e excepcionalmen-te são convidados a falarem; quando ampliado, o termo plateia refere-se aos ouvintes de programas de rádio e televisão. Nesses casos, o enquadre do interlocutor considera se o programa é transmitido simultaneamente (ao vivo) ou retransmitido posteriormente (gravado); a fala é modulada para atender ao enquadre, e se há uma plateia presente (no mesmo ambiente).

Derrida (2001), quando entrevistado por Antoine Spire53, esclareceu que, numa entrevista, há repetição e novidade que difere. Na multiplicação das repetições, surge o inédito, suspendendo a oposição entre tradição e renovação, memória e porvir, reforma e revolução. A entrevista, enquanto relato da trajetória, da experiência, ainda que se pretenda uma repetição dos conteúdos descobertos pelo entrevistado, é um diferendo dado o contexto, a indicação, o destino e a assinatura. Sendo todo acontecimento sin-gular, irreversível e irrepetível, a entrevista para Derrida é:

Ah, a entrevista! Sim, sempre sofri com as leis da entrevista. Após algumas décadas, devo reconhecer que, realmente, demasiadas vezes fiz o que declarei não gostar de fazer. Quanto às repetições do que foi dito, o núcleo lógico da coisa, como tantas vezes enfatizei, é que não há incompatibilidade entre a repetição e a novidade do que difere. Falando de modo alusivo e elíptico, uma diferença sempre faz com que a repetição se desvie. Chamo isso de iterabilida-de, o surgimento do outro (itara) na reiteração. O singular sempre inaugura, ele chega mesmo, de modo imprevisível, como o “chegante” mesmo, por meio da repetição. (DERRIDA, 2001, p. 331)

O emprego de entrevistas nas aulas de Filosofia remete a se pensar a aula de Filo-sofia como a experiência da hospitalidade incondicional54. A escola tradicionalmente pretende acolher condicionalmente os discentes para ensinar-lhes uma linguagem, uma memória, uma tradição, desde que se adapte às leis e normas constitucionalmente pres-critas. Sabe-se que nenhum Estado pode prescindir da hospitalidade condicionada por uma legislação sob o risco de sua soberania. Entretanto, a hospitalidade incondicional pode ser experienciada pelos discentes, desde que o docente a entenda como:

53 “Outrem é secreto porque é outro”. In: DERRIDA, 2001.54 Pensa-se aqui com e para além de Derrida (2004, p. 138-139).

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Uma hospitalidade incondicional é com certeza praticamente impossível de se viver; não podemos de modo algum, e por definição, organizá-la. O que for que aconteça, quem quer que chegue chega (ce qui arrive arrive), e isso, no fim, é o único acontecimento digno deste nome. […] Sem essa ideia de hospitali-dade pura (uma ideia que é também à sua própria maneira uma experiência), não teríamos sequer a ideia de amor ou de “convivência” (vivre ensenble) com o outro de um modo que não seja parte de alguma totalidade ou “conjunto”. A hospitalidade incondicional, que não é nem jurídica nem política, ainda assim é a condição do político e do jurídico. Justamente por essas razões, não estou seguro de que seja ético, à medida que não chegue a depender de uma decisão. Mas o que seria da “ética” sem hospitalidade? (DERRIDA, 2004, p. 138-139)

Assim, investiga-se, aqui, se a aula pode ser um acontecimento singular, irreversível e irre-petível, cujos conteúdos apresentados aos discentes operam a repetição e a novidade que difere.

Michel Peterson55, na aula inaugural em português na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 15 de março de 1995, professou uma leitura dos textos derridianos “Mochlos ou o conflito das faculdades” e “As pupilas da Universidade: o princípio de razão ou a ideia de Universidade”. Cita duas frases de Derrida: “Não há lugar neutro ou natural no ensino. Aqui, por exemplo, não é um lugar diferente”.

Peterson reflete sobre a singularidade do contexto e, a partir disso, pergunta como responder à questão “o que é uma aula?” (DERRIDA, 1999, p. 24). Peterson diz que a resposta a tal questão resultaria na escrita de inúmeras páginas e relembra que Derrida dedicou-se a esta questão por muitos anos. Enceta a profissão destacando que as pro-posições derridianas, um imperativo locativo, tratam do lugar, do espaço ocupado pelo docente, do lugar/espaço da palavra/voz do docente na aula, do lugar/espaço de onde se profere o ensino. Da mesma forma, ressalta que a reiteração e a repetição da negação na enunciação de Derrida afeta a positividade deste lugar de ensino e conclama uma decisão, um conflito, uma hostilidade, uma violência “artificial”, uma paixão, um engajamento, uma adversidade que implica a abertura do lugar/espaço do ensino para a différance que abala a responsabilidade para o espaço não-originário, um espaço em movimento e de produção econômica da responsabilidade como um não-conceito que “rompe com todas as cadeias identitárias (dos signos, dos assuntos, das famílias, dos campos, das áreas, etc.). É nesse sentido que “Aqui, por exemplo, não é um lugar indiferente”. Aqui é uma dife-rença, aqui é um lugar explosivo, aqui é um lugar em que a responsabilidade encontra sua dificuldade em querer-dizer, em querer-se-dizer” (DERRIDA, 1999, p. 25).

Partindo desse movimento que desloca a responsabilidade, como se pensar o que é uma aula? – pergunta-se Peterson:

55 “A Universidade: da responsabilidade do corpo docente”. In: DERRIDA, p. 11-80, 1999.

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A partir daí, desse movimento, como compreender o que é uma aula? Uma aula é, antes de mais nada, o que um corpo discente ao qual se ensina é obri-gado a saber. O estudante que aprende sua lição recebe uma ordem no sentido de que deve ser capaz de repetir fielmente o que lhe mandaram dizer. Assim, o docente conta com o fato de que o discente repetirá o que sabe. Disso depende o sucesso ou o fracasso do ensinado. O estudante, para ser legitimado, deve narrar, fazer a narrativa do saber. (DERRIDA, 1999, p. 25)

A aula restringe-se ao conteúdo que o estudante é obrigado a saber? A obrigação de saber um conteúdo concilia-se como rompimento das cadeias identitárias que o abalo da responsabilidade provocou? Repetir fielmente o conteúdo ensinado é uma implicação de que o conteúdo foi aprendido? Como aferir o sucesso ou fracasso do que foi ensinado? Quem afere o sucesso ou fracasso do que foi ensinado? A narrativa fiel, repetitiva é possível?

Reconhecendo que, na aula, o docente profere conselhos e preceitos, condiciona a participação do discente a um conjunto de regras de conduta, que o ensino é uma re-petição do mundo, isto é, uma fábula, Peterson acrescenta expressando intensamente a continuidade adversa. Peterson demarca que o tipo de aula que mencionara durou até o momento que professa sua aula inaugural, que a definição que apresentou na sequência ocorrerá em algum momento futuro onde “o ensino de uma aula apela para a transmis-são de uma experiência. É por isso que uma aula deve desconfiar da pureza, dos a priori e utilizar todos os sentidos, todos os recursos da sensação” (DERRIDA, 1999, p. 25).

Considera-se aqui, com e partir de Peterson, que, ao advogar que “o ensino de uma aula apela para a transmissão de uma experiência”, este aponta para o ensino como trans-missão, como ação, como a demonstração e comunicação de sentimentos que contagiam como um vírus, espalham e exalam, passam adiante a experiência, a ação de experimen-tar, adquirir praticando, aprender vivenciando a situação, testando, ensaiando, através dos sentidos, adquirir habilidades e conhecimentos, isto é, ensinar como acontecimento. Com Derrida, a aula é um acontecimento singular, irreversível e irrepetível cujos con-teúdos apresentados aos discentes operam a repetição e a novidade que difere, como a experiência da hospitalidade incondicional que abala o jurídico, o político e o ético.

III. A ENtREVIStA RECEbIdA VIA WHAtSAPP: uMA PROPOStA dE tRANSCRIÇÃO

O Programa do Jô56 é um talk-show da Rede Globo de Televisão transmitido de segunda-feira a sexta-feira após a meia-noite. Apresentado por Jô Soares, o programa

56 Dicionário da Tv globo, 2003, p. 631-633.

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é marcado pela presença bem-humorada de um sexteto de músicos e dedica-se principalmente a receber pessoas para entrevistas. Os entrevistados são escolhidos em uma reunião de pauta semanal, na qual são analisadas entre 50 e 60 sugestões selecionadas das mais de 500 sugestões recebidas pelo programa semanalmente. Os escolhidos provêm de diferentes áreas, anônimos ou pessoas “famosas” nas suas áreas de atuação.

Na entrevista “Definição de Ética”, o entrevistado é Mario Sérgio Cortella, gra-duado em Filosofia, Mestre e Doutor em Educação. Trabalhou em várias instituições de São Paulo e pesquisa sobre “Currículo, Conhecimento e Cultura” e “Currículo e Diversidade Cultural”, com ênfase na grande área de Ciências Humanas, nas áreas de Educação (subárea Currículo) e Filosofia (subáreas Epistemologia e Ética). Tem inúme-ros artigos e livros publicados e orientou dissertações de mestrado e teses de doutorado. Escreve artigos para jornais, participa de mesas redondas, programas de entrevistas, etc., em emissoras de rádio e televisão57.

Transcrevemos, a seguir, a entrevista em questão, recebida pelos autores via aplica-tivo e mídia social Whatsapp. Na transcrição 1, utilizamos um modelo de transcrição mais livre, centrado no conteúdo. Já na transcrição 2, procuramos levar em conta a situação social, segundo Goffman (2002), incluindo, nas convenções de transcrição, elementos contextuais que nos permitam um olhar mais detalhado para a interação entre o entrevistador e o entrevistado.

tRANSCRIÇÃO 1

EntrevistadorEntrevistado

E o que é a ética para você?Ética é o conjunto de valores e princípios que você e eu usamos para decidir as três grandes questões da vida, que são: quero? Devo? Posso? Isso é ética. Quais são os princípios que eu uso? Tem coisa que eu quero, mas não devo. Tem coisa que eu devo, mas não posso. Tem coisa que eu posso, mas não quero. Quando que você tem paz de espírito? Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é o que você pode e é o que você deve. Tem coisa que eu quero, mas não devo. Tem coisa que eu devo, mas não posso. Tem coisa que eu posso, mas não quero. O que é ética? É o conjunto de valores que você usa para decidir isso.

Nesta transcrição, tradicional, verifica-se a valorização do conteúdo da enunciação e se silencia o contexto da entrevista, tais como os gestos, os sons, as mudanças de footing do entrevistador e do entrevistado. Entretanto, se acolhidas as falas de Bruno, Goffman e Derrida, o pesquisador (e o professor) observará que, nas entrevistas, os participantes constroem sentidos para si e para os outros; que as convicções, perspectivas e interações

57 Ver www.lattes.cnpq.br/9036228618382563.

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anteriores do entrevistador e do entrevistado contextualizam a interação; entenderá a entrevista como uma situação social onde a fala ocorre segundo turnos de fala, com remissão para um falante e para um idioma, numa interação que ratifica e go-verna a fala e os gestos. Atentará para as mudanças de footing, isto é, de enquadre dos eventos. Tais mudanças são cruciais na compreensão do comunicado, pois, nas entrevistas, ocorrem repetições e novidades, os falantes recuperam a tradição e memórias, assim como performatizam o por vir. Como transcrever, assim, uma entrevista sem valorizar exclusivamente o conteúdo da enunciação e silenciar o gestual e o contexto geral?

O contexto maior da entrevista inicia-se com a rememoração pelo entrevistado de sua história de vida profissional/intelectual tecida num contexto institucional que valoriza a tradição filosófica europeia e cuja fala responde a uma pergunta sobre a defi-nição de um conceito (O que é ética?). O entrevistador, ao dirigir ao entrevistado uma pergunta/solicitação pela definição de um conceito, parece entender que os filósofos trabalham58 com conceitos, ideias. Destaca-se também que o vídeo, parte selecionada/editada da entrevista completa, recebido pelos pesquisadores via aplicativo e mídia so-cial WhatsApp, foi veiculado num contexto nacional de denúncias de atos de corrupção operados por gestores públicos e empresários. Parece, portanto, que a veiculação do vídeo intenta fomentar uma discussão quanto à crise ética que a nação brasileira expe-rimenta.

Outrossim, os pesquisadores interessaram-se pela aplicação/uso do vídeo nas aulas de Filosofia, tendo em vista orientar os discentes a questionarem a fonte e os arquivos tradicionalmente usados nas aulas de Filosofia, a pertinência do uso de um aplicativo/mídia social nas aulas e o rompimento/desvio com o binarismo empregar vs. não em-pregar um dado arquivo nas aulas por ser (popularmente, no senso comum) considera-do intelectualmente “inferior” ao formato livresco.

Pretendendo evitar uma valorização do conteúdo da enunciação e o silenciamento do gestual, do contexto geral, das mudanças de footing e a singularidade de cada en-trevista, acolheu-se na transcrição uma adaptação das convenções de Sacks, Schegloff e Jefferson (1974)59.

58 A fala do entrevistador rememora no pesquisador a definição dada por Guilles Deleuze em Conversa-ções (Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: 34, p. 174, 2010): “A filosofia não é comunicativa, assim como não é contemplativa nem reflexiva: ela é por natureza, criadora ou mesmo revolucionária, uma vez que não pará de criar novos conceitos”.59 [ ]- sobreprosição de falas; hhhhhh- risos; ( )- fala não compreendida; >palavra<- fala mais rápida; ...- pausa não medida; .- fim de elocução; ::- alongamento de vogal

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tRANSCRIÇÃO 2

EntrevistadorEntrevistado

E o que é a:: ética para você? [Como ( )][Ética é o conjunto] de valores e princípios que

você e eu usamos para decidir as três grandes questões da vida... que são... quero? devo? posso? Isso é ética. Quais são os princípios que eu uso?… >Tem coisa que eu quero mas não devo. Tem coisa que eu devo mas não posso. Tem coisa que eu posso mas não quero<... Hhhhh… Quando que você tem paz de espírito?... Você tem paz de espírito quando aquilo que você quer é o que você pode e é o que você deve. Tem coisa que eu quero mas não devo. Tem coisa que eu devo mas não posso. Tem coisa que eu posso mas não quero. O que é ética? É o conjunto de valores que você usa para decidir isso.

IV. O VÍdEO tRANSCRItO, A tRAdIÇÃO FILOSÓFICA E A ESCOLA POR VIR: CONSIdERAÇõES FINAIS

O que é ética? Como fundamentar a ética? O que são valores? O que é princípio? Como decidir? O que é paz de espírito? São questões elencadas da fala do entrevistado que apontam para a tradição filosófica. A leitura da transcrição pode orientar o professor de Filosofia e os discentes para a leitura de filósofos que pensaram a questão ética, tais como Platão, Aristóte-les, Imannuel Kant, Friedrich Nietzsche, Jacques Derrida, Achile Mbembe, etc. Outrossim, a leitura dos filósofos orientará para a assistência do vídeo, e vice versa. O docente tem a opor-tunidade, por exemplo, de incentivar a pesquisa pelos discentes de autores não-europeus que também refletiram sobre o tema, tais como Achille Mbembe (Crítica da razão negra60), Kwa-me Appiah (Na casa de meu pai: a áfrica na filosofia da cultura61) e Leopold Zea (Discurso desde a marginalização e a barbárie e A filosofia latino-americana como filosofia pura e simplesmente62).

Derrida falou sobre a questão do ensino em vários momentos, pois considerava que “a questão do ensino atravessa todo o meu trabalho e todos os meus engajamentos político-institucionais, digam eles respeito à escola, à universidade ou à mídia” (DER-RIDA, 2001, p. 336). Entende-se, com e a partir de Derrida, a escola como o lugar onde a desconstrução também pode ser anunciada, pois:

Outra maneira de recorrer a uma outra topologia: A Universidade sem con-dição não se situa necessariamente, nem exclusivamente, no recinto do que se chama hoje a Universidade. Ela não é necessariamente, exclusivamente, exemplarmente representada na figura do professor. Ela tem lugar, procura seu lugar em toda parte onde essa incondicionalidade pode ser anunciada. Em toda parte onde ela se dá, talvez, a pensar. Às vezes, sem dúvida, para além de uma lógica e de um léxico da “condição”. (DERRIDA, 2001, 82)

60 Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2014.61 Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.62 Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

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Assim, por entender a escola como promessa, como um por vir onde não há mais lugar para as hierarquias conceituais binárias, compreende-se a escola como o lugar do desvio, onde se experimenta a procura por caminhos que desviem da situação de domina-ção atual que condiciona a hospitalidade do discente e tendo como horizonte a acolhida incondicional de todas e todos. A utilização de entrevistas em áudio/vídeo advindas dos recursos tecnológicos contemporâneos, tais como o aplicativo e mídia social Whatsapp, pode ser uma experiência rica, de desvio, para as aulas de Filosofia nesse sentido.

REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

BRUNO, Daniela. “‘Não tem formalidade alguma. Muito pelo contrário, é um prazer’: análise de hierarquias discursivas em uma entrevista de pesquisa qualitativa. In: BAS-TOS, Liliana Cabral e SANTOS, William. A entrevista na pesquisa qualitativa: perspec-tivas em análise da narrativa e da interação. Rio de Janeiro: Quartet, 2013.

DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Tradução de Joaquim Torres Costa e Antonio M. Magalhães. Campinas, SP: Papirus, 1991.

_______. O olho da universidade. Introdução de Michel Peterson. Tradução de Ricardo Iuri Canko e Ignacio Antonio Neis. São Paulo: Estação Liberdade, 1999.

_______. Papel-máquina. Tradução de Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Li-berdade, 2001.

_______. A universidade sem condição. Tradução de Evandro Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

_______. L’ecriture et la différence. Paris: Éditions du Seuil, 1967. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2011.

GOFFMAN, “Footing”. In: RIBEIRO, Branca Telles e GARCEZ, Pedro M. Sociolin-guística interacional. São Paulo: Loyolla, 2002.

LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Folha de São Paulo, 2015.

SACKS, H.; SCHEGLOFF, E. A.; JEFFERSON, G. A simplest systematics for the organization of turn-taking for conversation. Language. Vol. 50, No. 4, Part 1. Dec., 1974.

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PROdutOS EduCACIONAIS

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CAtÁLOGO dE PERSONAGENS: MAtERIAL dIdÁtICO PARA AuLAS dE FILOSOFIA

Rafael Alvarenga – PPFEN / CEFET/RJ / Seeduc-RJ

“Bem de leve pra não perdoar“Tô estudando pra poder ignorar”

Tom Zé

I - INtROduÇÃO:

O catálogo de personagens apresentado por esse artigo é um produto didático e está associado à Dissertação intitulada: Filosofia e Ensino através de personagens de literatu-ra: um estudo de valores a partir de um catálogo de personagens. Ambos entregues ao PPFEN (Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino) do CEFET-Rio em 2016. Para sua realização foram feitas experiências práticas com duas turmas de ensino médio, envolvendo Simão Bacamarte, personagem de Machado de Assis no conto O alienista (1882) e a filosofia de Nietzsche, em busca de responder a seguinte questão: Será que Simão Bacamarte – entre outros – enquanto personagens de literatura, são filosofica-mente provocativos? A resposta positiva a questão foi fundamental para a sugestão de outros personagens e filosofias apresentados no desenrolar do catálogo.

Esse trabalho de pesquisa foi realizado usando o método genealógico de investiga-ção acerca do conceito de moral na filosofia de Nietzsche. Foram tomados, portanto, como referenciais teóricos os conceitos criados por Nietzsche para empreender sua crí-tica ao valor dos valores morais. De acordo com o filósofo: “[...] a moralidade não é outra coisa (portanto, antes de tudo, nada mais) senão a obediência aos costumes [...]” (NIETZSCHE, 2013, p.34).

Em A genealogia da moral Nietzsche afirma que há uma ocasião em que novos conceitos morais impõem-se de forma dominante numa espécie de contra-ataque aos valores existentes (NIETZSCHE, 2007, p. 31), e assim, tal como uma força que se or-ganiza, eles subjugam e pouco a pouco ganham espaço. Nesse caso, uma força aniquila outra e ressignifica os sentidos de bem e mal. Portanto, os valores não são fixos tam-pouco eternos ou nascidos em algum lugar distante e sagrado (NIETZSCHE, 2006, p. 9). Ou seja, Nietzsche afirma que os valores são fabricados neste mundo. Que é aqui, de acordo com interesses humanos, demasiadamente humanos que aprendemos, por exemplo, a julgar o lobo como mal e o cordeirinho como bom. Entretanto, o fazemos

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sem questionar qual é o valor que nos leva a creditar um tipo de comportamento como bom e outro como mal, sempre.

A isso Nietzsche faz dura crítica e estabelece uma relação entre a moral do escravo e a moral do senhor. O primeiro fraco e submisso, enquanto que o outro forte e altivo. Para o filósofo o século XIX, no qual viveu, estava impregnado pela vitória da moral do escravo e por isso os fortes eram atacados e denominados ruins, porque julgados como perigosos. Todavia, perigosos para quem?

A partir desses pressupostos o catálogo de personagens foi montado. Levando em consideração que as interpretações correntes sobre características e julgamentos atribuídos partiam sempre de valores que orientam os valores morais. Dessa forma, fazer um catálogo crítico, porque disposto a olhar por trás dos valores e interpreta-ções correntes, foi possível porque o trabalho usou a filosofia de Nietzsche como sua principal ferramenta.

II – SEÇÃO: O CAtÁLOGO ENquANtO PROdutO dIdÁtICO

No que diz respeito à pesquisa, tanto para a Dissertação quanto para o produto didático, a primeira referência foi depositada no personagem Simão Bacamarte como ponto provocativo capaz de instigar estudantes do ensino médio a participarem de uma reflexão filosófica acerca da crítica ao valor dos valores morais empreendida por Nietzsche.

Por isso, o intuito de explicar como o trabalho do personagem dependia de uma régua que, para a pesquisa, foi identificada como moral. Ora todos os sujeitos que, na opinião do Dr. Bacamarte, apresentavam qualquer desvio de comportamento, passa-vam imediatamente para o outro lado dessa régua. E, consequentemente, era taxado de doente mental, ganhando espaço na Casa verde (seu hospício). Isso leva a afirmar que é possível explanar a crítica aos valores morais realizada por Nietzsche através do personagem Simão Bacamarte. O que deve ser feito a partir da afirmação de que sem esse parâmetro moral absoluto, essencial, metafísico, o médico não encheria o hospí-cio. Deve-se, portanto, associar o que Nietzsche entende e critica como moral ao que Simão Bacamarte usa como instrumento para definir quem é ou não louco: neste caso, a ciência do século XIX representa esse instrumento.

Explanar a crítica aos valores morais feita por Nietzsche a partir de um personagem de literatura significa provocar o estudante para a reflexão filosófica através da litera-tura. Significa, portanto, mostrar que a reflexão filosófica também é praticada na arte, neste caso, literária. E que, de tal modo, essa arte é uma boa provocação para trazer até a sala de aula o conteúdo filosófico de uma forma menos acadêmica e mais próxima da

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realidade de uma escola estadual. Além disso, há o estímulo para que temas de filosofia sejam trabalhados através de outros fazeres artísticos. Pois essa junção é tanto possível quanto frutífera, ao menos no que diz respeito às reflexões que suscita em uma relação envolvendo Filosofia e Ensino.

Sendo assim, afirma-se que esta reflexão também se aproxima com o fazer e o pen-sar um produto didático. O que ocorre na medida em que se preocupa em encontrar e produzir algo que provoque a reflexão filosófica. Além disso, responder a pergunta (Será que Simão Bacamarte - e outros -, enquanto personagens de literatura, são filoso-ficamente provocativos?) é também argumentar em prol da necessidade de se pensar a produção de Material Didático para o ensino de filosofia.

Neste caso, especificamente, um blog foi criado a fim de divulgar personagens de literatura. Associando-os a problemas, questões e paradigmas filosóficos. A ideia é que o blog se transforme em um catálogo virtual - e impresso também - podendo ser acessado por professores e estudantes com abertura para uma participação ativa dentro da cons-trução de seu conteúdo, estando, dessa forma, convidados a sugerirem personagens, temas e ligações entre eles. O que daria ao catálogo uma vida pulsante, porque em constante produção, discussão e embate de ideias e interpretações.

Para produção do Catálogo de personagens, duas turmas do 3º Ano do Ensino mé-dio no Colégio Estadual Pedro Braile Neto em Resende-RJ, participaram da parte prá-tica desse processo. Nele, as aulas de filosofia foram desenvolvidas tendo como objetivo a possibilidade de trabalhar conceitos e autores com os jovens a partir de personagens de literatura.

O catálogo é um produto aberto já que disponível enquanto blog na internet atra-vés do endereço http://catalogodepersonagens.blogspot.com.br/ onde visitantes e inte-ressados podem acessar as postagens, fazer comentários, críticas e sugestões de modo a manter vivo não somente o processo de pesquisa, mas também o diálogo envolvendo personagens e temas filosóficos.

CONCLuSÃO

Tendo assim um método (genealógico), um conceito (moral), um filósofo (Nietzsche) e um personagem (Simão Bacamarte) através do qual o arcabouço teórico se aproximasse de forma mais provocativa dos estudantes, deu-se a experiência com duas turmas de 3º ano do Colégio Estadual Pedro Braile Neto – gerida pela SEEDUC-RJ, no município de Resende, região sul fluminense do estado do Rio de Janeiro.

Com esses resultados a pesquisa conclui-se afirmando que através dos personagens, neste caso, Simão Bacamarte de Machado de Assis, o professor de filosofia consegue

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explanar a crítica ao valor dos valores morais empreendida por Nietzsche. Ou seja, atra-vés de personagens de literatura os estudantes são provocados a participarem de uma determinada reflexão filosófica.

Contudo esse resultado sofre a interferência de fatores que não podem ser controla-dos pelo professor pesquisador. Cada turma apresenta um comportamento singular - e assim também acontece com cada estudante -, o que interfere no resultado do trabalho envolvendo um personagem de literatura e um conceito filosófico.

Entretanto, o projeto e seu produto didático, tampouco devem ser, por isso, desconsiderados. Uma vez que quanto mais ampla e rica forem as possibilidades de trabalho para o professor de filosofia atuante no ensino médio, melhor.

REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS:

NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. Tradução: Paulo César Pinheiro. São Paulo. Ed. Companhia das Letras, 2011.

__________. A Genealogia da Moral. Tradução: Antônio Carlos Braga. São Paulo. Ed. Escala, 2007.

__________. Aurora. Tradução: Antônio Carlos Braga. São Paulo. Ed. Escala, 2013.

__________. Além do bem e do Mal. Tradução: Lilian Salles Kump. São Paulo. Ed. Centauro. 2006.

MARTON, Scarlett. Nietzsche: A transvaloração dos Valores. 4ª ed. São Paulo. Ed. Moderna, 1993.

MOON, Fábio; BA, Gabriel. Grandes Clássicos em Graphic Novel: O Alienista de Machado de Assis. Rio de Janeiro. Ed. Agir, 2007.

ONNFREY, Michel. Nietzsche em Hq. São Paulo. Ed. Nova Fronteira, 2014.

GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche X Kant: uma disputa permanente a respeito de li-berdade, autonomia e dever. Rio de janeiro. Ed. Casa da Palavra, 2012.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro. Ed. Paz e Terra, 2014.

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Catálogo de Personagens

Personagem: Simão Bacamarte

A História: Personagem criado por Machado de As-sis (1839 - 1908) Simão Bacamarte é o médico alie-nista que dá nome ao conto lançado em 1882, no livro Papéis Avulsos. O Dr. Bacamarte é um respeita-do médico brasileiro que mesmo famoso na Europa, decide voltar para as terras tupiniquins. Mais preci-samente para Itaguaí, onde se casa com D. Evarista esperançoso por herdeiros, mas sem nenhum sucesso quanto a tarefa corpórea. Dedica-se então integralmente a psiquiatria. Ergue a Casa Verde, seu hospício, e num girar de chave, cortar de fita, enche a Casa de pacientes. Pois é capaz de provar que a loucura se encontra em qualquer esquina. Torna-se assim um obcecado pela ideia de localizar, internar, estudar e curar os loucos. Entretanto chega ao ponto de querer internar a cidade inteira, inclusive suas cercanias. Causa, em razão disso, verdadeira guerra em Itaguaí, que, para esfriar os ânimos dos revoltados, chega ao ponto de receber um reforço das forças armadas, tamanha as di-mensões que tomava o problema com as ruas cheias.

Com o tempo e as pesquisas científicas, o alienista chega a conclusão que sua teoria está como que de ponta a cabeça. Pois se todos, ou a grande maioria, têm algum defei-to, os insanos seriam aqueles cuja envergadura postural e moral não apresenta o menor dos deslises. E quem seria esse sujeito senão ele próprio. Termina o alienista trancando a si mesmo até a morte na Casa Verde.

Características: Justo, concentrado, trabalhador e honesto.

Sugestão de tema filosófico: Nietzsche e a crítica ao valor dos valores morais.

Provocações:

O alienista é um personagem moralista ou imoralista?O Alienista promove uma transvaloração como determina a filosofia de Nietzsche?Será que Machado de Assis teve contato com as ideias de Nietzsche, já que ambos são contemporâneos?

Sugestão de material:

PROENÇA, Manoel. biografia de Machado de Assis. Em: Contos Consagrados: Co-leção Prestígio. Rio de Janeiro. Ediouro, 1999.

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ONNFREY, Michel. Nietzsche em Hq. São Paulo. Ed. Nova Fronteira, 2014.MOON, Fábio; BA, Gabriel. Grandes Clássicos em Graphic Novel: O Alienista de Machado de Assis. Rio de Janeiro. Ed. Agir, 2007.GIACOIA, Oswaldo.Nietzsche. São Paulo. Ed. Publifolha, 2009.

Audiovisual: O Alienista. Direção: Jorge Furtado e Guel Arraes, 1993.

blogs e Sites:

http://tonyfernandespegasus.blogspot.com.br/2012/01/o-alienista-em-quadrinhos--um-classico.htmhttps://sempreumlivro.wordpress.com/2012/10/22/o-alienista-machado-de-assis-au-dio-livro/

Personagem: Sargento Getúlio

História:  Personagem criado por João Ubaldo Ribeiro e lançado pela primeira vez em 1971. O livro, cujo título é também o nome do personagem, apresenta o sargento da polícia militar de Sergipe, o Sargento Getúlio, como um sujeito sempre disposto a cumprir o dever. A lei ganha, mediante as atitudes do personagem, um aspecto objetivo. De modo que a obediência às ordens não é sequer ques-tionada, mesmo que para tanto se deva suprimir vontades pessoais.

Envolvido por tal conduta, Getúlio é encarregado, antes de se aposentar, como sua última missão, de levar um prisioneiro até Aracaju. Entretanto, em razão de reviravoltas políticas que acontecem no país, ele recebe a informação de que a missão deve ser abortada. Instante da narrativa em que a confusão se faz completa no universo psicológico do perso-nagem. Afinal, ele se julga e se porta, como sujeito de palavra, homem correto, cumpridor de suas tarefas. Segundo a ordem o preso deve ser libertado e Getúlio deve se afastar.

Mas a confusão cresce na cabeça do Sargento Getúlio que crê no dever de obedecer, no entanto não sabe mais a quem ou a quê. Neste processo de indecisão usa sua força para sobreviver. E, pela primeira vez na vida, se insurge contra uma ordem que lhe fora dada insistindo em levar o prisioneiro ao seu destino. Pela primeira vez na vida o Sargento age de acordo com a sua vontade, se portando contrário a ordem que lhe fora dada.

Características: Obediente, fiel, determinado e feroz;

Sugestão de tema filosófico: Utilitarismo de Jeremy Benthan; David Hume e a relação entre paixões e razão;

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Provocações:

O Sargento Getúlio, ao longo da narrativa, leva em consideração o efeito que suas ações produzem?Ao desobedecer a ordem de abortar a missão o personagem segue suas paixões em de-trimento de sua razão?O Sargento Getúlio é um moralista, mesmo desobedecendo ordens e deveres vindos de seus superiores?

Sugestão de material: 

MILL, John Stuart. O Utilitarismo. São Paulo. Ed. Iluminuras, 2000.BENTHAN, Jeremy. Os Pensadores. São Paulo. Ed. Abril Cultural, 1979.HUME, David. Tratado da Natureza Humana: uma Tentativa de Introduzir o método experimental de Raciocínio nos Assuntos Morais. São Paulo. Ed. UNESP, 2001.

Audiovisual: Sargento Getúlio. Direção: Hermanno Penna, 1983.

blogs e sites:

h t t p : / / w w w . p a p o d e c i n e m a . c o m . b r / f i l m e s / s a r g e n t o - g e t u l i o https://www.youtube.com/watch?v=z5YjBYxHHjY

Personagem: Batman

História: Personagem criado por Bill Finger e Bob Kane em 1939 nos E.U.A. Bruce Wayne, enquanto criança presenciou o assassinato dos próprios pais. Tal lembrança o fez crescer jurando vingança contra os criminosos. Para tanto ele mesmo se treina física e in-telectualmente além de criar para si o personagem do Batman, inspirado no morcego.

Bruce Wayne é um bilionário americano dono da corporação Wayne Enterprises. Seu campo de atuação é a cidade fictícia de Gotham City, onde conta com a cooperação do mordomo Alfred Pennyworth, do comissário de polícia Gordon e de seu parceiro Robin. Batman atua com o intuito de fazer justiça e é reconhecido como um super--herói que não apresenta superpoderes. É perito em artes marciais, fisicamente robusto e sempre acompanhado de incríveis artefatos tecnológicos como, por exemplo, o bat móvel.

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O personagem possui codinomes como Cavaleiro das Trevas e Homem Morcego. E embora não seja um vilão apresenta perturbações e desejos que o diferenciam de outros super-heróis. Batman é misterioso. Passeia pela noite e se necessário age com violência. Seus inimigos são diversos e a lembrança que guarda sobre a morte dos pais constante-mente perturba-lhe o pensamento.

O Batman luta contra o crime; protege os inocentes, mas é nas trevas que ele atua e chama a atenção durante décadas e gerações e fãs.

Características: Forte, inteligente, solitário, adepto do usa da tecnologia.

Sugestão de tema filosófico: Heráclito e a ideia de luta entre os opostos; Nietzsche e a ideia de “Além do bem e do mal”.

Provocações:

O Batman age apenas por vingança?O personagem pode ser classificado como Bom ou Mal? Ou ele está além disso?

Sugestão de material:

NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo. Ed. Companhia de Bolso. 2005.SOUZA, José. Coleção os Pensadores. Os Pré-Socráticos. Trad: Rubens Rodrigues Tor-res Filho. São Paulo. Ed. Abril Cultural, 1978.BURNET, John. O Despertar da Filosofia Grega. São Paulo. Ed. Siciliano. 1994.GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche e Para Além de Bem e Mal.Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 2002.GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche. Rio de Janeiro. Ed. Publifolha. 2009.MARTON, Scarlett. Nietzsche: A Transvaloração dos Valores. 4ª ed. São Paulo. Ed. Moderna, 1993.

Audiovisual:

The Batman. Direção: Lambert Hillyer, 1943.Batman: o retorno. Direção: Tim Burton e Denise Di Novi, 1992.Batman e Robin. Direção: Joel Schumacher, 1997.Batman Begins. Direção: Christopher Nolan, 2005.Batman: O cavaleiro das trevas. Direção: Christopher Nolan, 2008.

blogs e sites: http://batman-brasil.blogspot.com.br/

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Personagem: Darth Vader

História: Darth Vader é um personagem criado por George Lucas a partir da saga fílmica Star Wars, tendo sido o primei-ro filme lançado em 1977.

A história do personagem remonta a Anakin Skywalker, um jovem com grande talento tanto para pilotar aviões, quanto para engenharia e domínio de armas e lutas. Isso sen-do, os Jedi (ordem de guardiões que protegem o lado da luz da força) se interessam pelo menino, então órfão, pois ele seria o escolhido da profecia, ou seja, Anakin traria equilíbrio à Força.

Anaquin passa a ter como mestre Jedi Obi-Wan Kenobi que o treinará. No entanto, o jovem é ambicioso e ansioso. E não entende a demora para se transformar em mes-tre Jedi. Além disso, Anaquin tem uma relação amorosa com Padmé, então senadora da república. Ocorre que ela fica grávida e em um momento de grande perturbação Anaquin revela ter pesadelos terríveis onde Padmé morreria durante o parto. Disposto a evitar a morte de sua amada, Anaquin passa para o lado negro da Força se unindo aos Sith, inimigos dos Jedi.

Não demora e Anaquin, agora já atendendo por Darth Vader trava um combate decisivo contra seu antigo mestre Jedi Obi-Wan Kenobi que lhe decepa as pernas e um braço, abandonando-o em seguida até ser engolido por um rio de lava. Darth Vader tem seu corpo queimado, mas é salvo pelo Imperador Palpatine que lhe oferece um suporte de vida robótico em uma unidade médica.

Eis aí o surgimento do personagem como ficou mundialmente conhecido dentro de sua armadura negra, com sua respiração grave e seu ódio visceral já que Palpatine mente dizendo o próprio Vader em um acesso de raiva matara Padmé.

Características: Determinado, ambicioso, vingativo e impiedoso.

Sugestão de tema filosófico: Hegel e a dialética; Nietzsche e o além do bem e do mal. 

Provocações:

Darth Vader é o resultado de opostos que se aniquilam e geram algo novo?É possível pensar o personagem como representando o bem ou o mal?O processo que leva Anaquin Skywalker a se tornar Darth vader é algo possível por envolver sentimentos humanos?

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Sugestão de material:

GIACOIA, Oswaldo.Nietzsche. São Paulo. Ed. Publifolha, 2009.NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. Tradução: Lilian Salles Kump. São Paulo. Ed. Centauro. 2006.STRATHERN, P. Hegel em 90 minutos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 1998.INWOOD, M. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 1997.HEGEL, F. A Fenomenologia do Espírito. Tradução: Paulo Meneses. Petrópolis. Ed. Vozes, 1996.

Audiovisual:

Star Wars Episódio I: A Ameaça Fantasma. Dir. George Lucas, 1999.Star Wars Episódio II: Ataque dos Clones. Dir. George Lucas, 2002.Star Wars Episódio III: A Vingança dos Sith. Dir. George Lucas, 2005.Star Wars (filme). Dir. George Lucas, 1977.Guerra nas Estrelas: O Império Contra-Ataca. Dir. Irvin Kershner, 1980.Guerra nas Estrelas: O Retorno de Jedi. Dir. Richard Marquand. 1983.Star Wars: O Despertar da Força. Dir J. J. Abrams. 2015.

blogs e sites: https://starwarsblogbrasil.wordpress.com/

Personagem: Victor Frankenstein

História: Personagem criado por Mary Shelley no li-vro Frankenstein publicado primeiramente em 1818. Classificado como romance de terror gótico, o livro narra as experiências científicas de Victor Frankens-tein, um estudante de ciências naturais que cria em seu laboratório uma ‘criatura’ ou ‘monstro’.

Victor Frankenstein, após a morte de sua mãe, questiona o poder de Deus. E crê que a vida pode ser criada em um laboratório por um ser humano. Disposto a provar suas ideias investe todo seu tempo em montar o corpo de um ser humano gigantesco buscando dar-lhe vida. Em uma noite de tempestade ele consegue finalizar seu tra-balho, mas quando acordou, após uma explosão em seu laboratório, constatou que o mostro havia ido embora.

Com o tempo uma série de tragédias acontecem e Victor as atribuem a sua criatura. Por isso vai atrás do monstro a fim de destruí-lo, porém encontra um ser articulado, capaz de manipular pessoas e produzir medonhas armadilhas e fica assim encurralado,

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pois o monstro o ameaça prometendo continuar gerando o horror caso Victor não lhe crie uma companheira.

A promessa é feita e o monstro fica a espera. Mas Victor desiste da ideia. Pois segui-do de uma companheira a criatura poderia gerar uma raça monstruosa que ameaçaria a humanidade. Impulsionado por esse pensamento Victor parte em busca da criatura para matá-la. Em meio a tal perseguição ele é encontrado por Robert Walton no pólo norte. E é justamente esse último quem conta a história através das cartas que escreve para sua irmã.

Características: persistente, crente no poder da ciência e da razão.

Sugestão de tema filosófico: Thomas Kuhn e as revoluções científicas; Tomás de Aqui-no e as cinco vias da prova da existência de Deus.

Provocações:

A ciência deve ser uma atividade submetida à ética?Quem deve determinar, caso sejam necessários, os limites da ciência?Victor Frankenstein é ateu? A perda de um ente querido justifica o ateísmo?É possível conciliar a crença em Deus e a argumentação racional para defender sua existência?

Sugestão de material:

JAPIASSÚ, Hilton. As Paixões da Ciência. Rio de Janeiro. Ed. Letras Letras. 1991.OLIVA, Alberto. Filosofia da Ciência. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 2003.KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. Trad. Nelson Boeira. Rio de Janeiro. Ed. Perspectiva, 2010.SÃO TOMáS de AQUINO. Coleção Os Pensadores. São Paulo. Ed. Abril Cultural. 1984.STRATHERN, Paul. São Tomás de Aquino em 90 Minutos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 1999.

Audiovisual:

https://www.youtube.com/watch?v=--lRsUWnTsMThttp://cinemalivre.net/filme_frankenstein_1931.php

blogs e sites: https://translate.google.com.br/translate?hl=pt-BR&sl=en&u=http://frankensteinia.blogspot.com/&prev=searchT

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FANZINE MARX NA ATUALIDADE: uM PROdutO dIdÁtICO dE FILOSOFIA PARA O ENSINO MÉdIO

Leonardo Berbat de Brito – PPFEN / CEFET/RJ / IFF

“É a partir deste saber fundamental: mudar é difícil, mas é possível, que vamos progra-mar nossa ação político-pedagógica.”

Paulo Freire

INtROduÇÃO

O enfoque de nossa pesquisa, no Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino (PPFEN) do CEFET/RJ, recaiu sobre a concepção educacional libertadora, baseada no conceito marxiano de práxis. Assim, a partir do pensamento do filó-sofo alemão Karl Marx (1818-1883), procedemos à investigação de uma prática educativa de viés notadamente crítico e transformador. Aliás, uma das afirmações mais célebres do citado pensador nos serve de marcante referencial: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo” (MARX, 1974, p.59, grifo do autor).

A partir deste pressuposto, defendemos uma educação engajada na conscientização dos educandos e na luta pela mudança duma estrutura econômico-social que favorece poucos e marginaliza milhares. Nesse sentido, buscamos cooperar para o desenvolvi-mento da consciência crítico-reflexiva dos alunos, a fim de que os mesmos percebam que podem ser agentes efetivos de transformação da realidade injusta e, consequente-mente, da instauração de uma sociedade mais justa e solidária.

O PPFEN do CEFET requer que os mestrandos – além da dissertação – elabo-rem um material didático. Assim, produzimos um fanzine, publicação engendrada artesanalmente e composta de diversas ilustrações. Pensamos num material didático cujo público-alvo são professores e alunos de filosofia, que se encontram no Ensino Médio. Desejamos que o mesmo esteja em consonância com a prática educacional transformadora e que, concomitantemente, aborde certas temáticas trabalhadas por Karl Marx. Temos em mente um material em tom mais coloquial, que possa se con-verter numa alternativa aos usuais livros didáticos. Denominamos o fanzine Marx na atualidade. Neste espaço, pretendemos descrever a construção do citado produto didático, ater-nos a algumas de suas particularidades, além de expormos uma parte de seu conteúdo.

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O PROdutO dIdÁtICO: dEFINIÇÃO, EStRutuRA E ObJEtIVOS

Como outrora assinalamos, o produto didático que fizemos é um fanzine, publicação de cunho predominantemente amador, produzida de maneira artesanal e que contém ilustrações, charges, recortes de jornais, revistas, livros, etc., além de textos manuscritos e desenhos relativos a diversos temas. O fanzine não se preocupa com requintes tecno-lógicos, nem com a sofisticação do material com o qual foi confeccionado, mas com a qualidade do conteúdo e das mensagens que transmite. Renato Donisete Pinto esclarece:

O nome Fanzine é uma contração das palavras inglesas fanatic magazine e significa revista do fã. [...] Desta forma, é toda publicação feita de forma ama-dora, sem intenção de lucro. É caracterizado pela paixão de seu editor por de-terminado assunto. [...] Qualquer tema pode ser desenvolvido em um fanzine (PINTO, 2013, p.15-16, grifo do autor).

O material didático se destina aos professores e alunos de Filosofia do Ensino Mé-dio. Seu objetivo principal é ser uma ferramenta para auxiliar o educador na abordagem a temas discutidos por Karl Marx. A título de exemplo, o mesmo pode servir como introdução ao estudo da divisão de classes sociais no capitalismo, a exploração do trabalhador, a alienação e a ideologia.

Em nossa pesquisa, realizamos a análise dos temas acima citados, os quais foram objetos da investigação marxiana. Temos o interesse, no produto didático, de promover o debate em torno desses mesmos temas, porém de maneira mais lúdica e informal. O objetivo é que conceitos até certo ponto densos sejam transmitidos de modo mais acessível aos alunos do Ensino Médio, cujo contato com a Filosofia é, comumente, ainda inicial.

Aliás, a ideia de produzir este material didático surgiu da necessidade de se ofertar ao público do aludido segmento um conteúdo que comunicasse noções filosóficas num estilo mais coloquial e menos técnico. Além disso, que despertasse a imaginação e o senso crítico dos alunos. Nesse sentido, certa educadora disse:

[...] O exercício de ensinar e aprender exige que se busquem novas práticas educativas num contexto de relações interculturais, dialógicas e de integração entre os estudantes. Sob esse ponto de vista, o fanzine se configura como um dos caminhos capazes de permitir ao educando compreender o mundo, falan-do de seu tempo (NASCIMENTO, 2010, p.133).

Geralmente, os livros didáticos contêm expressões muito particulares à Filosofia, e isto faz com que os educandos não familiarizados com o vocabulário da disciplina

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se distanciem da mesma, por considerá-la difícil ou desinteressante. Ainda, os livros expõem as várias ideias dos filósofos, de modo definitivo, isto é, não abrem espaço para a intervenção dos alunos. Como o conteúdo já está dado, basta ler as páginas da obra e armazenar o que ali está registrado. De nossa parte, entendemos que tal fato não desenvolve a capacidade reflexiva do educando, tampouco estimula sua curiosidade em torno das temáticas filosóficas.

Pretendemos, com nosso material didático, que os professores tenham às mãos um recurso que lhes permita ir além de aulas somente expositivas ou da leitura de livros di-dáticos com suas turmas. Acreditamos, também, que ilustrações e charges, para exem-plificar, têm o poder de despertar mais a atenção e, por conseguinte, o fascínio pelas ideias filosóficas do que o mero acompanhamento dos textos didáticos ou dos escritos do próprio Karl Marx. Estes, por serem de natureza metódica e acadêmica, tendem a se mostrar um tanto difíceis para a apreensão dos educandos do Ensino Médio.

Temos a intenção de que os alunos, em contato com o fanzine, sintam-se desafiados a pensar e a questionar e, por consequência, a interpretar as mensagens contidas nos desenhos. O professor, por sua vez, poderá compartilhar o produto didático com os alunos de diversas maneiras, tanto em seminários e debates em grupo, quanto numa mesa-redonda ou em rodas de conversa, por exemplo. Assim, terá a oportunidade de aprofundar as questões tão pertinentes à realidade econômica e social da maioria da população, da qual seus alunos fazem parte.

Entendemos que tal expediente será proveitoso para o desenvolvimento da consciên-cia crítica e da atitude reflexiva por parte dos educandos, particularidades fundamentais para que estes assumam uma compreensão mais nítida de si mesmos e do mundo que os cerca. Ademais, são atributos imprescindíveis para que ajam como autênticos atores de significativas mudanças sociais. Endossamos o que a professora Ioneide Nascimento atesta acerca do alcance do fanzine:

[...] Além de conduzir o aprendente a uma nova percepção do mundo, per-mitirá o contato com texto e imagens, impulsionando-o a compreender os elementos constitutivos de sua cultura e, por sua vez, ver-se inserido como su-jeito integrante de sua formação. Portanto, o fanzine funciona como elemento de percepção sócio-histórico-cultural do indivíduo em seu ambiente coletivo (NASCIMENTO, 2010, p.121).

O produto didático é constituído, basicamente, de quatro seções, cada uma delas voltada para um determinado tema. Primeiramente, abordamos a divisão de classes so-ciais no capitalismo. Na segunda parte, nos atemos à exploração da classe trabalhadora pela burguesia. Em seguida, analisamos o processo de alienação do trabalhador e, por

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último, a questão da ideologia. Os teóricos a partir dos quais fundamentamos nosso material são, além do próprio Karl Marx, os professores Paulo Freire, Moacir Gadotti e Francisco Gutiérrez.

O dESENVOLVIMENtO dO FANZINE MARX NA ATUALIDADE

Conforme anteriormente pontuamos, um dos requisitos do PPFEN do CEFET/RJ, além da dissertação, é a confecção de um material didático. Ao tomarmos ciência deste fato, conversamos com nossa orientadora, a professora Taís Silva Pereira, sobre a possibilidade de prepararmos um fanzine. Ao recebermos o sinal positivo da mesma, entramos em contato com Alberto Souza, programador visual do Instituto Federal Flu-minense, em Macaé/RJ, instituição de ensino em que trabalhamos. Alberto – que nesta escola coordena um projeto, chamado IFFanzine - imediatamente aceitou o desafio de colaborar conosco na criação do fanzine, juntamente com os alunos bolsistas Sara Gaspar, Kezia Campos, Paulo José Gonçalves e Karollyne Castro. É válido frisarmos que todos eles gentilmente permitiram a utilização de seus desenhos em nossa pesquisa.

Desde então, até a finalização do material, nos reunimos cerca de doze vezes, para tratarmos do andamento do mesmo. Em nossas reuniões – que normalmente duravam duas horas -, abordamos os temas marxianos que trabalhamos na dissertação e que fundamentam o conteúdo do fanzine, tais como a divisão de classes sociais no capi-talismo, a exploração a que é submetido o trabalhador, a alienação e a ideologia. Nos encontros iniciais, lemos o livro Marx: transformar o mundo, de Moacir Gadotti, obra que se vale de linguagem acessível e que aborda o pensamento marxiano com bastante propriedade.

Em geral, adotávamos este expediente nas reuniões de que participávamos: uma reflexão de nossa parte acerca de uma temática marxiana, depois uma discussão com todo o grupo em torno do assunto e, por fim, Alberto e os alunos desenvolviam sua arte. Cumpre dizermos que em momento nenhum impusemos como deveriam ser as ilustrações. Antes, demos liberdade aos desenhistas, e incentivamos que os mesmos usassem de sua criatividade para transformar em arte os temas investigados por Karl Marx. Dessa maneira, todos os desenhos, recortes e textos que compõem o fanzine são a expressão da livre criação do coordenador e dos educandos. Na última reunião, todos nós - em conjunto e democraticamente – decidimos sobre a disposição das ilustrações, de acordo com as respectivas temáticas analisadas. Assim, teve origem o fanzine que denominamos Marx na atualidade.

É oportuno registrarmos que, para nossa experiência pessoal e profissional, os encontros foram demasiado enriquecedores. Além da notável criatividade, pudemos

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constatar o comprometimento consciente e crítico dos bolsistas – todos foram ou são meus alunos na instituição – com a realidade social, política e econômica que os cir-cunda. Ademais, foi gratificante perceber seu interesse pelo pensamento de Karl Marx e a destreza com que aplicaram as ideias do filósofo alemão ao contexto em que estão inseridos. É válido também frisarmos que, apesar do clima informal e descontraído que marcava o ambiente, sempre nos dedicamos ao trabalho com seriedade e esmero. Por essa razão, o resultado de nosso esforço e reflexão, materializado no fanzine, deixou-nos por demais satisfeitos.

CONSIdERAÇõES FINAIS

A respeito do produto didático que confeccionamos, nossa posição é a de que o mesmo, com suas charges, recortes e ilustrações, pode, sim, ser um importante recurso a ser utilizado pelo professor de filosofia do Ensino Médio. Com efeito, esperamos que o fanzine contribua substancialmente para auxiliá-lo, em suas aulas com o público deste segmento.

Como já dissemos, entendemos que o material – dotado de um teor descontraído, além de seu caráter lúdico e informal – tem a propriedade de ser uma interessante al-ternativa, ou mesmo um complemento, a uma aula expositiva que abranja temáticas marxianas. Cremos que a natureza recreativa e o tom coloquial do material serão de considerável valor para o professor, na apresentação de conceitos um tanto densos - e mesmo de difícil apreensão – para os alunos do Ensino Médio.

Ademais, estamos persuadidos de que este produto didático estimula a curiosidade, a reflexão e a criticidade do aluno. Tais predicados – em conformidade com o que prega a educação transformadora – são basilares para que o indivíduo adquira uma leitura mais perscrutadora da realidade em que se encontra inscrito e, igualmente, desenvolva uma atuação efetiva e responsável na sociedade em que vive.

Honestamente, desejamos que este material didático desperte o pensamento e a consciência crítica dos estudantes, e que suscite nos mesmos o interesse pelas questões investigadas por Marx – inegavelmente tão atuais em nossos dias. Por fim, não escondemos a aspiração que carregamos conosco: que esses educandos creiam que as circunstâncias que os tangenciam podem ser transformadas e, mais, que eles se tornem agentes concretos na construção de um mundo mais fraterno, justo e solidário.

A seguir, após indicarmos nossas referências bibliográficas, exibiremos algumas das ilustrações que fizeram parte do conteúdo do meterial didático por nós produzido.

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REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

GADOTTI, Moacir. Marx: transformar o mundo. São Paulo: FTD, 1989.

GUTIÉRREZ, Francisco. Educação como práxis política. São Paulo: Summus Editorial, 1984.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

______. Teses contra Feuerbach. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores)

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

______. O manifesto comunista. 10ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

NASCIMENTO, Ioneide Santos do. Da marginalidade à sala de aula: o fanzine como artefato cultural, educativo e pedagógico. In: MUNIZ, Cellina (org.). Fanzines: autoria, subjetividade e invenção de si. Fortaleza: Edições UFC, 2010.

PINTO, Renato Donisete. Fanzine na educação: algumas experiências em sala de aula. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2013.

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FILOSOFIA E EMANCIPAÇÃO: dE SÓCRAtES à RANCIèRE.

Maria de Lourdes Bastos – PPFEN / CEFET/RJ / Seeduc-RJ

I - INtROduÇÃO:

Este trabalho toma como tarefa da filosofia educar a partir da formação de concei-tos e defende uma educação libertária, que não adota modelos rígidos e disciplinadores, antes procura abrir novos espaços para a atividade filosófica. Assumimos a filosofia em uma perspectiva de formação, capaz de questionar as bases de nossa visão de mundo e de alterar nossa relação consigo mesmo, com as pessoas e com o mundo a nossa volta, como uma modalidade de pensamento que se constitui como uma atividade, prática ou experimentação

Pensamos no primeiro contato entre o estudante e a filosofia e no material didático como um recurso que facilite a interação entre professor e aluno. Entendemos aqui material como o resultado de uma atividade, ou produto intencional de uma ação que procura suprir uma necessidade e apresentamos um material desenvolvido com a finalidade de oferecer variadas possibilidades. Nosso tema é a ética e propomos um di-lema com o propósito de estimular a curiosidade e provocar o debate. Tomamos como cenário a morte de Sócrates, bem conhecida pelos professores de filosofia e contada em versões diferentes, com o propósito de nos afastarmos do perigo de uma história única. Pretendemos que o estudante produza um discurso a partir dessa provocação, mas não esperamos que tome uma posição definitiva, antes desejamos que perceba como o co-nhecimento aprofundado torna mais potente as suas escolhas.

Partimos de uma tradição no ensino de filosofia, difundida por Silvio Gallo (GALLO; ASPIS, 2009) que apresenta como etapas para o exercício de filosofia com os estudantes a sensibilização, um convite ao pensamento, a contextualização, que estimu-la o debate e as habilidades da oralidade, a problematização, que lança a provocação, o desafio, a interação e comunicação, que exige preparação, leitura e pesquisa, o confron-to de teses, que estimula as habilidades argumentativas, a análise dos pressupostos, que desenvolve as habilidades do pensamento e finalmente a reconceituação, que exercita a produção textual.

Enxergamos em nossa realidade o professor sobrecarregado de atividades burocráti-cas, sem tempo para planejamento das aulas e com dificuldades para conhecer o univer-so dos estudantes. Nesse contexto, materiais didáticos e sugestões de atividades podem

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auxiliar sua prática, fortalecendo sua autoconfiança e seu papel de liderança perante os alunos. Para além de técnicas didáticas ou preocupação com a transmissão do conhe-cimento, inspirados no pensamento de JACOTOT/RANCIèRE buscamos ressaltar a filosofia como instrumento capaz de afrouxar as cadeias ou permanências que repro-duzem a desigualdade. Nesse contexto, o papel do professor de filosofia é o do “mestre ignorante” que abre mão de certezas e conhecimentos adquiridos para criar espaço para a curiosidade e a procura do conhecimento. Como o filósofo, o mestre ignorante está à procura do conhecimento por uma questão de vontade ou desejo. Ensina que é preciso aprender e consegue inspirar os outros a partir de sua autotransformação.

II – ROtEIRO PARA O PROFESSOR

1ª etapa: PlanejamentoObjetivos:

Problematizar a questão da existência humana e introduzir a questão dos valores.Estimular os procedimentos argumentativos, com ênfase na escuta dos pressupostos

e valorização da enunciação.

área/Tema: Ética e Política

Delimitação do Problema: Cuidado de si e do outro, ação política e emancipação.

Observações:O tempo das atividades e o desdobramento do debate deverá ser alterado, de acordo

com a participação e envolvimento do grupo. Tempo previsto: 4 aulas de 100 minutos.

Estratégias:Utilizar recursos de oratória para despertar a empatia do grupo para como o perso-

nagem histórico.

2ª etapa: Implementação (estrutura do material didático)Introdução: 1ª aulaSensibilização: 20 minutos

Exposição oral da biografia de Sócrates até o momento em que será julgado por corromper a juventude.

Contextualização: 30 minutosRoda de Conversa sobre a cultura grega, democracia ateniense, a sofística e a im-

portância do discurso.

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Problematização: 50 minutosAnálise de fragmentos de textos com trechos da biografia de Sócrates.Solicitar aos estudantes que formem grupos de até quatro alunos. Distribuir textos

diferentes sobre a vida de Sócrates e pedir que construam um relato.

Orientações para a atividade:Apresentamos oito textos como opção para turmas com tamanhos variados. A in-

tenção é entregar apenas um modelo de texto para cada grupo de forma que nenhum deles tenha acesso à história inteira. A trajetória de Sócrates será construída como um mosaico, a partir do depoimento de cada grupo, provocando assim mais curiosidade e questionamento. O professor exercerá sua maestria caminhando por entre os grupos e instigando os mais apáticos.

Desenvolvimento: 2ª aulaInteração e Comunicação: 50 minutos

Cada grupo deve apresentar seu relato sobre Sócrates. Fazer com a turma um debate livre sobre os textos.

Questões para estimular o debate:

• Quem foi e o que fazia Sócrates?• Por que Sócrates foi levado a julgamento?• O que é mais importante, a vida pública ou os interesses privados?• Podemos escolher o momento de morrer? (“É melhor morrer do que perder a vida”

– Frase de Frei Tito no filme “Batismo de Sangue”)• Existe uma verdade única?

Apresentação da questão: Sócrates agiu corretamente ao sacrificar sua vida pelo Estado?Formação dos grupos debatedores e corpo de jurados (deve ser constituído por nú-

mero ímpar (3, 5 ou 7) alunos).

Desenvolvimento: 3ª aulaConfronto de Teses: Júri simulado: culpado ou inocente.Defesa da tese inicial. 20 min. (10 min. p/ cada grupo)Debate entre grupos. 20 min. (10 min. p/ cada grupo)Considerações finais. 20 min. (10 min. p/ cada grupo)Veredicto. 20 min. (10 min. p/ cada grupo)

Análise dos Pressupostos: 20 min.Os jurados apresentam a justificativa do veredicto

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Debate Final: 4ª aulaA partir da apresentação dos jurados abrir um debate sobre a atividade.

Tema: Conhece-te a ti mesmo 100 minutos“Uma vida não questionada não merece ser vivida”.Sócrates abriu mão de gerenciar sua fortuna ou assumir algum cargo de importân-

cia para poder ocupar-se com os outros. No entanto instiga os atenienses a ocuparem-se consigo mesmo. Ao ser acusado de corromper a juventude, manteve sua escolha sacri-ficando a própria vida para defender suas ideias.

O cuidado de si é uma espécie de princípio de agitação e movimento que serve para guiar a nossa vida. Porém ao escolher um caminho abandonamos outros.

Como conciliar na nossa vida o cuidado com nossos interesses e o desejo de contribuir para o bem coletivo?

Após o debate propor uma produção textual.

3ª etapa: Conclusão:Propostas para avaliação

Reconceituação:Produção Textual: Cuidado de si e vida pública

Criação de vocabulário:Os alunos deverão registrar no caderno ou na internet (grupo, blog ou página) um

número determinado de conceitos trabalhados na aula.

Argumentação: Participação dos alunos no júri simulado.Apresentação oral dos textos analisados

III – MAtERIAL PARA O ALuNO

A Grécia Clássica e o Rio de JaneiroOs Deuses do Olimpo Visitam o Rio de JaneiroJogos Olímpicos Rio 2016Composição: Arlindo Cruz, Rogê e Arlindo Neto

Os grandes Deuses do Olimpo chegaram na nossa cidadeE o Rio continua lindo, um Panteão de verdade.Apolo adorou o som, o pôr do sol e a tarde.

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Poseidon olhou o mar e disse: “é isso é que é felicidade!”O Hermes Mensageiro falou pro pessoalQue o Rio de Janeiro é sempre Carnaval!Até o Dionísio saiu na BateriaAfrodite era a Rainha da FoliaE Hera se encantou com a lua do ArpoadorAtenas se encantou com a vista lá do Redentor

O que os antigos gregos teriam em comum com os cariocas?

• Estavam cercados de mar e de morros.• Gostavam de beber e de uma boa conversa.• Eram comerciantes e as viagens os deixavam curiosos.

http://www.imagenswiki.com/imagens/partenon-atenas-jpg http://4.bp.blogspot.com/-Js9K1XRYmaE/UnP1uWZtX-I/AAAAAAAAAvk/5kFnj4Tx8w0/

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Para além de brincadeiras ou caricaturas, podemos dizer que aqui no Rio, como em outros estados, presenciamos atualmente muitos debates e discussões sobre política.

• Será que a Grécia clássica, tão afastada no tempo pode trazer alguma contribuição para as discussões de hoje?A política e a democracia

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http://www.coxinhanerd.com.br/wp-content/uploads/2013/11/tirinha-calvin.png

A política e a democracia, palavras tão comuns nos dias de hoje, surgiram na antiga Grécia. A pólis, cidade grega, era um estado independente e era comum a discussão sobre os rumos e problemas da cidade. Os gregos experimentaram vários tipos de go-verno: monarquia, tirania, oligarquia, aristocracia. Até que entre os séculos IV e V a. C. surgiu em Atenas a Democracia.

O discurso

Na democracia ateniense os cidadãos reuniam-se na ágora (praça principal da pólis) para discutir as leis e o destino da cidade. Os estrangeiros, os escravos e as mulheres não tinham direito a participar da discussão. Vencer uma polêmica ou ser beneficiado por uma lei era motivo de honra e prestígio. Por isso a oratória (a arte de falar em público) e a retórica (arte/técnica de construir um discurso convincente) eram importantes para ter sucesso na vida social e política.

Os sofistas

No auge da democracia ateniense (século V a. C.) os sofistas, ensinavam a quem pudesse pagar por instrução como vencer um debate. Mestres que viajavam de cidade em cidade, eram sábios que conheciam as regras para um bom discurso. Defendiam que a verdade é re-lativa a um determinado tempo e lugar, questionando as normas e hábitos da cultura grega.

Foram duramente criticados por Sócrates, Platão e Aristóteles, que buscavam verdades universais e necessárias.

textos para a aula 2

Grupo 1

Sócrates – (470-399 a.C.). A biografia de Sócrates é contada por Xenofonte e Platão principalmente nos livros Apologia de Sócrates e Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates

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do primeiro e Apologia de Sócrates e Fédon do segundo. Era Ateniense, filho de uma parteira chamada Fenarete, e de um escultor, chamado Sofronisco. Recebeu uma edu-cação tradicional e desde a juventude interessou-se pela filosofia. Conhecia o pensa-mento anterior e contemporâneo dos filósofos gregos e interessava-se pela conversa em locais públicos. Fazia muitas andanças conversando nas praças e mercados. Participou do movimento de renovação da cultura e foi um educador popular. Nunca trabalhou e só pensava no presente. Muitas vezes, só comia quando seus discípulos o convidavam para suas mesas. Foi casado com Xantipa, mas não parava em casa. Teve três filhos. Participou, como soldado, de incursões militares como as de Potideia, Delos e An-fipólis. Recebeu reconhecimento por alguns feitos de bravura, como quando salvou Xenofonte (ou segundo outras fontes Alcibíades), tombado, com seu próprio cor-po. De início, interessava-se pelos ensinamentos dos filósofos da natureza, como Anaxágoras, mas depois revoltou-se contra eles, pois eles haviam sido filósofos fí-sicos, que procuravam respostas nas causas exteriores e gerais da natureza. Achava que existe algo mais digno para se estudar, existe a psyche, ou a mente do homem. Por isso, sondou a alma humana, em questões como a da facilidade de justiça dos atenienses, porque esses lidam com tanta facilidade com a vida e a morte, honra, patriotismo, moralidade. Em que se baseiam? E o que entendem por eles próprios? Assim descobriu que o homem é sua alma, e não o corpo, pois o que manipula o corpo é a alma. Foi contra os sofistas, por achar que a verdade é apenas uma, e condenavam seu relativismo.

Grupo 2

Sócrates usava nas suas conversas com os cidadãos um método chamado maiêutica, que consiste em forçar o interlocutor a desenvolver seu pensamento sobre uma questão que ele pensa conhecer, e pô-lo em contradição. Tem uma frase famosa “Só sei que nada sei”. Já a frase “Conhece-te a ti mesmo”, apesar de muitas vezes a ele atribuída, era um dos pilares da sabedoria grega, sendo por isso inscrita no pórtico do Oráculo de Delfos. O verdadeiro filósofo sabe que sabe muito pouco, e ele se autodenominava assim. A palavra filosofia significa amizade ao saber. As etapas do saber seriam: ignorar sua ig-norância, conhecer sua ignorância, ignorar seu saber e conhecer seu saber. As opiniões não são verdades, pois não resistem ao diálogo crítico. Conversar com Sócrates podia ser expor-se ao ridículo, e ser apanhado numa complexa linha de pensamento exposta através de palavras, ficar totalmente envolvido. No diálogo Teeteto de Platão, compara sua atividade à de uma parteira (como sua mãe), que embora não desse à luz a um bebê, ajudava no parto.

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Grupo 3

Ele diz que ajudava as pessoas a parirem suas próprias ideias. Diz que Atenas era uma égua preguiçosa, e ele um pequeno mosquito que lhe mordia os flancos para pro-var que estava viva. Achava que a principal tarefa da existência humana era aperfeiçoar seu espírito. Acreditava ouvir uma voz interior, de natureza divina (um daimon), que lhe contava a verdade, e para ele só existia um deus. Era capaz de ficar horas imerso em si mesmo, em profundos momentos de reflexão. Não foi por acaso que a Pítia, do orá-culo de Delfos, o proclamou como o homem mais sábio de Atenas quando o amigo de juventude de Sócrates, Querefonte, foi interrogá-la. Sócrates foi convidado para o Se-nado dos quinhentos, e manifestou sua convicção de liberdade combatendo as medidas que considerava injustas. A democracia estava se implantando em Atenas, e Sócrates respondia qual era o melhor Estado, como poderia se salvá-lo. Os homens mais sábios deviam governá-lo, pois eles podem controlar melhor seus impulsos violentos e antissociais. Assim, nos afastaríamos do comportamento de um animal. O Estado não confiava na habilidade e reverenciava mais o número do que o conhecimento. Portanto, Sócrates era aristocrático, pois há inteligência que baste para se resolver os assuntos do Estado.

Grupo 4

A reação do partido democrático de Atenas não poderia ser outra. Em um júri de cinquenta pessoas, foi acusado, condenado por negar os deuses do Estado e por “per-verter a juventude de Atenas”. Muitos jovens seguiam Sócrates, e tornavam-se seus discípulos. Anito, um líder democrático tinha um filho discípulo de Sócrates, que ria dos deuses do pai, voltava-se contra eles. Sócrates foi considerado, aos setenta anos, líder espiritual do partido revoltoso. Foi condenado a morte, e devia tomar cicuta (um veneno). Podia ter fugido da prisão, ou pedido clemência, ou ter saído de Atenas, mas não quis. Assim, se tornou o primeiro mártir da filosofia. Não deixou nenhuma obra escrita. Sua morte nos é contada por Platão, que foi um de seus discípulos, e fiz aqui um resumo:

“(...) Ele se levantou e se dirigiu ao banheiro com Críton, que nos pediu que espe-rássemos, e esperamos, conversando e pensando (...) na grandeza de nossa dor”. Ele era como um pai do qual estávamos sendo privados, e estamos prestes a passar o resto da vida órfãos.

Grupo 5

(...) A hora do pôr do sol estava próxima, pois ele tinha passado um longo tempo no banheiro. (...) pouco depois, o carcereiro entrou e se postou perto dele, dizendo:

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- A ti, Sócrates, que reconheço ser o mais nobre, o mais delicado e o melhor de todos os que já vieram para cá, não irei atribuir sentimentos de raiva de outros homens (...) de fato, estou certo de que não ficarás zangado comigo, porque como sabes, são os outros, e não eu o culpado disso. E assim, eu te saúdo, e peço que suportes sem amar-gura aquilo que precisa ser feito, sabes qual é a minha missão - e caindo em prantos, voltou-se e retirou-se.

Sócrates olhou para ele e disse:- Retribuo tua saudação, e farei como pedes. - E então, voltando-se para nós disse:

- Como é fascinante esse homem; desde que fui preso, ele tem vindo sempre me ver, e agora vede a generosidade com que lamenta a minha sorte. Mas devemos fazer o que ele diz; Críton, que tragam a taça, se o veneno estiver preparado. (...)

Críton, ao ouvir isso fez um sinal para o criado, o criado foi até lá dentro, onde se demorou algum tempo; depois voltou com o carcereiro trazendo a taça de veneno.

http://www.nacional.edu.br/socrates.html

Grupo 6

Há 399 a.C., Sócrates, diante do tribunal popular, é acusado pelo poeta Meleto, pelo rico curtidor de peles, influente orador e político Anito, e por Lícon, personagem de pouca importância.

A acusação era grave: não reconhecer os deuses do Estado, introduzir novas di-vindades e corromper a juventude. O relato do julgamento feito por Platão (428-348 a.C.), a Apologia de Sócrates, é geralmente tido como bastante fiel aos fatos. É dividido em três partes. Na primeira, Sócrates examina e refuta as acusações que pairam sobre ele, retratando sua própria vida, procurando mostrar o verdadeiro significado de sua “missão”. Dirige aos homens palavras que contestam o enriquecimento sem virtude, afirmando que a riqueza deverá vir através da virtude. Noutro momento de sua defesa, Sócrates dialoga com um de seus acusadores, deixando-o bem embaraçado quanto ao significado da acusação “corromper a juventude”. Demonstra que está sendo acusado por Meleto de algo que este mesmo não sabe ao certo o que significa.

Grupo 7

Em nenhum momento de sua defesa - segundo o relato platônico - Sócrates apela para a bajulação ou tenta captar a misericórdia daqueles que o julgavam - linguagem de quem fala em nome da própria consciência e não reconhece em si mesmo nenhuma culpa.

“Parece-me não ser justo rogar ao juiz e fazer-se absolver por meio de súplicas; é preciso esclarecê-lo e convencê-lo. ”

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Talvez justamente por essas manifestações de altaneira independência de espírito, Sócrates foi condenado. Como era de praxe, após o veredicto da condenação, Sócrates foi convidado a fixar sua pena. Mas Sócrates, ignorando qualquer sugestão de pena mínima ou mesmo multas, se deixa condenar a morte.

Segunda parte da Apologia“Ora, o homem (Meleto) propõe a sentença de morte… Que sentença corporal ou

pecuniária mereço, eu que entendi de não levar uma vida quieta? Eu que negligenciei riquezas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na política…”.

Então Sócrates não deixa saída para os juízes. Ou a pena de morte, pedida por Me-leto, ou ser alimentado no Pritaneu, enquanto fosse vivo, como herói ou benemérito da cidade.

Grupo 8

O Que Significa Morrer?Essa é a terceira parte da Apologia que pretende ser a transcrição das últimas pala-

vras de Sócrates dirigidas aos que o condenaram. Diz, gemendo e lamentando-se:Não foi por falta de discursos que fui condenado, mas por falta de audácia e porque

não quis que ouvísseis o que para vós teria sido mais agradável, coisas que considero indignas de mim, coisas que estás habituado a escutar de outros acusados.

Nesta altura, Sócrates começa a fazer comparações com a morte:[...] Mais difícil que evitar a morte, é evitar o mal [...].[...] A morte pode ser uma dessas duas coisas: “Ou aquele que morre é reduzido ao

nada, e não tem mais qualquer consciência, ou então, conforme ao que diz, a morte é uma mudança, uma transmigração da alma do lugar onde nos encontramos para outro. Se a morte é a extinção de todo sentimento, assemelha-se a um desses sonos nos quais nada se vê, mesmo em sonho, então morrer é um ganho maravilhoso [...]”.

[...], “Mas eis a hora de partimos, eu para a morte, vós para a vida. Quem de nós segue o melhor rumo, ninguém o sabe, exceto o deus”.

Apologia de Sócrates - Resenha do livro de Platão http://charlesfonseca.blogspot.com.br/2010_09_01_archive.html

CONSIdERAÇõES FINAIS

Entendemos, com RANCIèRE (1987/2010, pp. 28,29), que a inteligência procede pelo método da adivinhação, trabalha observando e retendo, repetindo e verificando, associando o que busca aprender àquilo que já conhece, fazendo e refletindo sobre o

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que já foi feito. Esse processo se repetirá em todos os seres humanos, sem necessidade de explicações, porém é preciso lembrar que o ser humano é “uma vontade servida pela inteligência”. As crianças, os inventores e os revolucionários demonstram que se apren-de pela vontade, pela tensão do próprio desejo ou pela força da necessidade.

Finalizamos nossa tarefa com a expectativa de que esse material facilite a construção coletiva do conhecimento. Nossa escolha enquanto docente é uma dentre tantas, mas precisa ter força para submeter o estudante a procurar suas próprias razões e princípios. Assim atuamos em nossa autotransformação e inauguramos o círculo da potência, pois como diria RANCIèRE/JACOTOT “Para emancipar um ignorante, é preciso e sufi-ciente que sejamos, nós mesmos, emancipados; isso é, conscientes do verdadeiro poder do espírito humano” (RANCIèRE J., 1987/2010, p. 34)

REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS:

GALLO, S.; ASPIS, R. P. L. Ensinar Filosofia. Um livro para professores. São Paulo: Atta Mídia Educação, 2009.

RANCIèRE, J. O mestre ignorante – cinco lições sobre emancipação intelectual. Belo Ho-rizonte: Autêntica 1987/2010. 3ª Ed.

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FILOSOFIA EM REdEThiago Jandre Garcia – PPFEN / CEFET/RJ

“Ir ao encontro, ouvir, conhecer, entender e crescer junto, aí está a educação que acredito.” Thiago Garcia

INtROduÇÃO

Ensinar Filosofia enquanto um problema filosófico, enquanto um ato, tem se tor-nado nas salas de aula um importante desafio para todos os professores desta disciplina. Discussões que giram em torno da importância que deve ser dada a História da Filoso-fia ou a Filosofia Temática, ou no atual “tempo sombrio”, a ameaça da retirada desta do Currículo obrigatório do Ensino Médio. Assim, este artigo se posiciona como um ato de resistência e valorização do Ensino de Filosofia nas escolas.

Nossos alunos cada vez mais são incentivados e sentem a necessidade em estarem conec-tados em Rede e fazer uso dela para expressar seus desejos, angústias, sonhos, confrontos. Nessa perspectiva, “frases sem texto63” –em sua maioria enunciados de filósofos, escritores, jornais- são deslocados para as Redes Sociais a fim de uma afirmação e “empoderamento” social. Instantaneamente muitos curtem, muitos comentam, mas depois imediatamente tudo se esvai, a efemeridade é notória, se passa a buscar outras “frases sem texto” que de alguma maneira revelem, mesmo que momentaneamente, o que se acredita, se vive.

Pretendo então, a partir do acompanhamento das Redes Sociais, compreender por meio das postagens a (re)criação de problemas filosóficos, que poderiam ter na sala de aula um momento de (des)construção de discursos e argumentos filosóficos e partilha do conhecimento da Filosofia.

1. JuVENtudES E REdES SOCIAIS

No mundo atual é cada vez mais comum e presente na vida dos jovens a Internet, as Redes Sociais, Smartphones, diferentes tipos de aplicativos sendo estes importantes dispositivos que têm constituído, formado e modificado os modos de ser, agir e pensar das pessoas. Muitos acessam por meio deles um “mundo” de possibilidades, referência, informações como nunca antes visto.

63 “Frases sem texto” é um conceito defendido por Maingueneau (2014), estas que formam uma “enun-ciação aforizante”, ou seja, que o enunciado se apresenta com uma certa autonomia em relação ao texto de que foi retirado.

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O Facebook, e outras redes sociais, os influenciam, constroem novas subjetividades conduzindo o jovem a pensar sobre si, escolhendo o que quer que seja divulgado ou não virtualmente. Ao postarem pensamentos, enunciados, imagem-texto poderemos partir deste corpus para reflexões filosóficas, não necessariamente por meio de uma história da Filosofia, mas o questionar a si e ao outro em busca de novas compreensões. Reconhe-cer nas postagens o dialógico, a alteridade que permite a Filosofia.

As autoras Sales e Paraíso (2011) que analisaram as postagens e grupos da rede so-cial Orkut afirmaram que é uma das características do mundo contemporâneo a “inten-sa conexão entre as pessoas e as tecnologias” (p 300) Estas tecnologias têm possibilitado também uma criação de novas formas de linguagens, interações e formação de grupos com características e identidades em comum, permitindo ao jovem expor seus pontos de vista, ideias sobre diferentes assuntos que o interessam.

Ao estarmos em sociedade somos conduzidos a partilhar entre espaços públicos e privados, assumir papeis sociais desde o nascimento até a morte. Porém esses papeis não são imóveis, imutáveis e estanques. Ao contrário, Arendt (2005) afirma que o que nos torna humanos é o fato de sermos um ser social. E por meio das Redes Sociais os papeis tem sido construídos pelos jovens – nossos alunos e de nossas escolas- e compartilha-dos. Martín- Barbero (2008) afirma que “os jovens são senhores eternos do presente, assim sendo, a relação das juventudes contemporâneas com a cultura e as tecnologias digitais de forma tão notória e recorrente é um sintoma da sintonia entre os sujeitos jovens e a renovação social”

Estacionamos em uma escola com um modelo medieval e com formas disciplinares em uma “Sociedade da Informação” (CASTELLS, 2000). Todo o mundo mudando fora das paredes da escola e esta ainda convicta de suas crenças e projetos pedagógicos, que parece não mais atrair os alunos que possuem o conhecimento de diferentes formas e nem aos professores que não têm conseguido conduzir a educação dos jovens diante das evoluções tecnológicas dos últimos tempos.

A professora não se questiona quando interroga um aluno, assim como não se questiona quando ensina uma regra de gramática ou de cálculo. Ela “ensigna”, dá ordens, comanda. Os mandamentos do professor não são exteriores nem se acrescentam ao que ele nos ensina. Não provêm de significações primeiras, não são a consequência de informações: a ordem se apoia sempre, e desde o início, em ordens, por isso é redundância. A máquina do ensino obrigató-rio não comunica informações, mas impõe a crianças coordenadas semióticas com todas as bases duais da gramática (masculino-feminino, singular-plural, substantivo-verbo, sujeito do enunciado-sujeito de enunciação etc.). A uni-dade elementar da linguagem — o enunciado — é a palavra de ordem. (DELEUZE & GUATTARI, 1995, p. 11-12)

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As Tecnologias da Informação e Comunicação mudaram a forma de as pessoas pensa-rem e se comunicarem. As notícias possuem diferentes canais, meios e formas discursivas distintas, antes com um caráter mais estático; hoje as informações são simultâneas e em tempo real acompanhado por todos, por meio dos recursos tecnológicos.

A chegada cada vez mais rápida e intensa das tecnologias (como o uso cada vez mais comum de computadores, Ipods, celulares, tablets, etc) e de novas práticas sociais de leitura e de escrita (condizentes com os acontecimentos contemporâneos e com os textos multisemióticos circulantes) requerem da escola trabalhos focados nessa realidade. (ROJO, 2012, p.99)

A inserção das Redes Sociais já ocorre nas escolas, mesmo estas resistindo. Entra por meio dos equipamentos tecnológicos dos alunos, computadores das escolas, sendo um movimento que não há mais retorno, mas sim um diálogo de inserção pedagógica do mesmo. Apesar de ainda termos impedimentos, muitas vezes, institucionalizados, como a proibição do uso de celulares, bloqueio de computadores, etc. Vários são os motivos para o uso das Redes Sociais no Ensino, como: por esta ser habitat dos jovens e adolescentes, sendo um forte potencial significativo de geração de interação social, au-mento das relações que conduzem a novos debates e estes que extrapolam o nível da sala de aula, um meio cultural (cibercultura) que dá um acesso mais democrático a todos, ferramentas que proporcionam a divulgação rápida do conhecimento e dentre outros.

A inteligência coletiva que favorece a cibercultura é ao mesmo tempo um ve-neno para aqueles que dela não participam (e ninguém pode participar com-pletamente dela, de tão vasta e multiforme que é) e um remédio para aqueles que mergulham em seus turbilhões e conseguem controlar a própria deriva no meio de suas correntes. (LÉVY, 2007, p. 30)

Diante dos avanços das Redes Sociais, a escola, possui novas ferramentas para ex-trapolar e libertar a aprendizagem, descobrindo nelas novas habilidades e domínios do conhecimento. É importante entender que

o ensino via redes pode ser uma ação dinâmica e motivadora. Mesclam-se nas redes informáticas- na própria situação de produção e aquisição de conhecimentos – autores e leitores, professores e alunos. As possibilidades comunicativas e a facilidade de acesso às informações favorecem a formação de equipes interdisciplinares de professores e alunos, orientadas para a elabo-ração de projetos que visem à superação de desafios ao conhecimento; equipes preocupadas com a articulação do ensino com a realidade em que os alunos se encontram, procurando a melhor compreensão dos problemas e das situações

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encontradas nos ambientes em que vivem ou no contexto social geral da época em que vivemos (KENSKI, 2004,p 74).

O impacto das Redes Sociais pode ser extremamente positivo em disciplinas como Filosofia, pois os estudantes poderão trazer as demandas, dúvidas, questionamentos produzidos em uma linguagem com a qual já estão habituados. Assim, sentem-se mais próximos das teorias e vencem estigmas e preconceitos com a disciplina.

Muitos alegam que a Filosofia nada tem a ver com suas vidas e com seus sonhos e objetivos pessoais, que é algo antigo e desconectado, de compreensão difícil e de muita memorização a fim de demonstrar aprendizado significativo apenas em avalições.

As Redes Sociais podem favorecer um intercâmbio de ideias não restrito a espaços geográficos e a horários predeterminados, facilitando o acesso aos conteúdos, tendo uma nova forma de construção de conhecimento mais autônoma e acessível.

Segundo a professora e pesquisadora Lucia Santaella (2011), as Redes Sociais estão dando origem a aprendizagem ubíqua, conceito que reside nos processos de aprendizagem modernos, espontâneos ou mesmo caóticos, atualizados constante-mente por atos de curiosidade contingentes e das circunstâncias. Isso acontece porque o acesso à informação é cada vez mais livre e contínuo, e a continuidade do tempo se soma e se confunde a do espaço, acessível de qualquer lugar. Importante atentar que a interação digital, por ela mesma não consegue atingir um modelo produtivo de ensino, mas isso acontece quando esta potencializa e incrementa a forma de aprendizado dos alunos. Não é porque o jovem, por exemplo, que utiliza constantemente as Redes Sociais aprenderá mais, mas o que precisa ser avaliado é como se dá a atividade realizada.

Pensar em um Ensino de Filosofia para alunos do Ensino Médio que faça sentido na sua vida e no seu cotidiano, analisando a sociedade de uma forma transformadora, que enxerga nas rupturas paradigmáticas da contemporaneidade o surgimento de no-vas visões sobre os fenômenos, sobre os saberes e sobre os próprios sujeitos. O desafio de um ensino de Filosofia que supere as visões tradicionais exigirá uma reinvenção em educação, como apresentado por Freire:

Ditamos ideias. Não trocamos ideias. Discursamos aulas. Não debatamos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos com ele. Impomos-lhes uma ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhe pro-piciamos meios para o pensar autêntico, porque recendo as fórmulas que lhe damos, simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a incorporação é o resultado de busca de algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e de procura. Exige reinvenção. (2003, p.104)

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Cada vez mais se faz necessário, na prática do Ensino de filosofia, compreender a irrupção daquilo que é novo, sem esquecer que tudo se dá em uma tríade formada pela ordem social, escola e prática de ensino. Pois de acordo com Aranha (2007, p.31) “A educação não é simples transmissão da herança dos antepassados para as novas gerações, mas o processo pelo qual se torna possível a gestação do novo e a ruptura com o velho”.

Aspis (2004, p.315), afirma que “As aulas de filosofia são um lugar de estudo e produção filosóficos”, por meio de aulas diferenciadas, buscando formas diferentes do aprendizado, indo além dos muros da escola, o professor desenvolvendo uma postura filosófica provocando reflexões individuais. Conforme Benetti, (2006, p.306)

[...] o ato de pensar inclui em seu bojo algo que vai além das formas metódicas de direcionar o pensamento, ou seja, traz no seu contexto a construção/des-construção/experimentação da vida. E potencializar a experimentação da vida e dos afetos advindos da relação com conceitos filosóficos que se produzem em relação com a arte, literatura, política, entre outros.

Usar as Redes Sociais, como Facebook como ferramenta para o Ensino de Filosofia é o que proponho e chamo de Filosofia em Rede.

3. FILOSOFIA EM REdE

Apresento agora o que gostaria de chamar de um caminho e não método ou ma-terial didático. Vale ressaltar, de uma maneira objetiva, neste momento alguns pontos que são imprescindíveis quando se fala de método de ensino em Filosofia:

1- Conhecimento sobre o aluno adolescente / jovem: importante para o professor de filosofia que busca o caminho da rede social é estar próximo aos seus alunos, observá-los, entender suas formas de organização e posicionamento, conhecer e respeitar suas mú-sicas e expressões.

2- Planejamento: este momento é fundamental, pois na grande maioria das escolas pú-blicas ou particulares, principalmente no estado do Rio de Janeiro, o tempo disponível é de apenas uma aula por semana de 45 a 50 minutos. Cada minuto se torna impor-tante neste momento de elaboração da aula, para que se aproveite o tempo de troca e aprofundamento de conteúdo.

3- Métodos ou modos para ensinar Filosofia: por onde começar? Surgimento da Filoso-fia? Sigo os temas filosóficos, como a questão do Ser? Neste momento é importante ter em mente o grupo de alunos, faixa etária em que irá atuar. Minha preocupação vinha exatamente dos meus alunos, seus interesses e também a sociedade em que estão inseridos.

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Relacionar bem a escolha do método ao público e ao professor tornará o caminho mais seguro e tranquilo. Já que escolhi partir de temas, discursos que surgem nas Redes So-ciais, mais específico o Facebook, acredito que seguir por uma Filosofia Conceitual, ou como apresentada por Deleuze e Guatarri, construção de conceitos:

“E qual é a melhor maneira de seguir os grandes filósofos: repetir o que eles disseram, ou então fazer o que eles fizeram, isto é, criar conceitos para proble-mas que mudam necessariamente? (...) O conceito é um contorno, a configu-ração, a constelação de um acontecimento que está por vir. Os conceitos, neste sentido, pertencem de pleno direito à filosofia, porque é ela que os cria e não cessa de cria-los.” (DELEUZE & GUATARRI, 1995, p.56)

4- Avaliação: Todo caminho pedagógico escolhido precisa ter definido o caminho que pretende chegar e assim constituir formas de avaliar todo o processo percorrido pelos alunos. Não vale entrar aqui em ferramentas específicas, como resumos, provas ou até autoavaliação, mas o importante é que as ferramentas avaliativas escolhidas tenham coerência com o caminho percorrido.

3.1 INSPIRAÇÃO

Segundo Cerletti (2009), “o professor deve criar as condições para que os estudan-tes possam tomar própria uma forma de interrogar e uma vontade de saber.” (p.37). Iniciar uma aula de Filosofia deve ser assim, criar e despertar condições para que os alu-nos tenham o desejo pelo ato de filosofar, o desejo do saber, do conhecimento. Come-çar uma aula diretamente expondo os conteúdos, explicações expositivas e tradicionais aprisiona o aluno em seu próprio mundo.

Neste caminho a que proponho, nós – professores – deixamos as nossas certezas e verdades e “visitamos” o nosso aluno, mais específico onde eles estão, nas redes sociais e buscamos ali as ferramentas que inspirem as aulas. Ler os discursos deles, conhecer as imagens compartilhadas e curtidas, reconhecer os enunciados criados ou compartilha-dos de uma sociedade em Rede.

Ao encontrar as inspirações a aula se inicia mostrando-as a classe, estas que podem ser imagens-texto, letras de música, aforismos, memes, entre outros. Importante que esta inspiração esteja conectada a um planejamento e objetivo para o Ensino de Filoso-fia. Quão interessante para o aluno reconhecer suas próprias falas e meios no momento da aula, é sentir-se parte do processo de ensino.

Abaixo seguem algumas postagens que foram apresentadas aos alunos durante a aplicação deste método, gerado a partir de um acompanhamento dos perfis dos alunos no Facebook.

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Criar em todas as aulas este momento de inspiração tornará o ambiente e a aula diferente e com os alunos sempre aguardando os próximos momentos e temáticas que serão apresentadas. Com o caminhar e as relações estabelecidas entre professor e aluno, passa a ser interessante promover momentos nos quais o aluno é quem traz a inspiração, a “postagem” que gostaria de fazer em sala, tornando, nesta aula específica uma aula “livre” e construída por eles mesmos e conduzida pelo professor. Pude ter momentos assim em que os alunos trouxeram as inspirações e que estas também foram parar nos Grupos do Facebook.

3.2 CONtRAPONtO

Toda inspiração apresentada trará para a sala de aula a leitura e compreensão de cada aluno, melhor dizendo, cada aluno partindo da sua premissa, do seu lugar de fala destacará as “marcas” que lhe chama atenção e apresentará para o professor e colegas. Esta é a proposta do “Contraponto” que se crie um ambiente onde todos tenham direi-to a fala e a posicionar-se, ser ouvido, “publiquem em suas linhas do tempo. ”

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Os usos dos ícones presentes no Facebook ajudam a dinamizar a aula, já que são ferramentas muito comuns para os alunos. Vale antes de iniciar esta proposta construir com eles o significado destes recursos para que todos entendam quando eles forem apontados em aula. Sendo o curtir, este que se subdivide ainda em “curtir”, “amei”, “haha”, “uau”, “triste” e “grr”; o comentar que abre o espaço para se por ou se contra-por; e o compartilhar apontando o motivo que vale a pena dividir o discurso e/ou ideia apresentada pelo colega ou professor. Uma ideia que dinamizaria mais ainda é a pro-dução de plaquinhas com as imagens, assim apresentada a inspiração todos levantam e o grupo já reconhece entre si os posicionamentos, mesmo que ainda discretos, dos colegas de turma.

Acessado em: 07/2017

Este momento da aula precisa ser o momento de propostas de análise que visem desnaturalizar o que parece ser óbvio, permitindo assim desenvolver e construir olhares problematizadores da realidade. O Facebook é cheio de aforismos e discursos sobre o mundo em que vivemos, assim como ato deve-se romper aquilo que é comum é cômo-do. Cerletti (2009), afirmou que:

“A aula escolar é um enorme campo de pressupostos que, se não forem bem explorados, condenarão a filosofia, efetivamente, à trivialidade, à pedantria ou a uma muito ostensiva ‘inutilidade’ prática. É essencial que haja um lugar e um momento para que, jovens e adultos, possamos pensar o mundo que vivemos e decidir como nos situarmos nele. Em definitiva, não é outra coisa que reviver a cada ida a atitude de quem filosofa, que não dá nada por suposto e não se conforma com o que os demais pensem por ele ou por ela. ” (p.53)

O professor-filósofo ao permitir o espaço da colocação dos pontos e posiciona-mentos a partir da inspiração passará para um outro passo muito importante, este que chamarei de “Criando Raízes”.

3.3 CRIANdO RAÍZES

Neste terceiro momento da caminhada inicio explicando o sentido da expressão “criando raízes”. Este que tem como proposta incentivar que os discursos e argumentos

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desenvolvidos dos alunos tenham uma sustentação teórica, que eles saibam a que pen-sadores e leituras recorrerem para que tenham autonomia e responsabilidade em seus posicionamentos e reflexões. O processo argumentativo filosófico vem com o conteúdo, não o conteúdo pelo conteúdo, mas aquele que faz sentido para quem aprende.

Após ouvir os posicionamentos dos alunos o professor-filósofo tem em mãos muitas possibilidades de seguir com o conhecimento, sempre se preocupando em considerar a participação de todos neste processo. Trazer para os alunos o que falam/falavam os filósofos sobre os temas apresentados e discutidos tornará este momento de aula uma base e uma sustentação para todos envolvidos no processo aprendizagem.

Deixando mais claro este caminho, vejamos o exemplo 1 que traz em sua postagem a temática do “amor”. Tema bastante comum e desenvolvido por diferentes e diversos filósofos em contextos históricos diferentes, permitindo que os alunos conheçam não simplesmente o que o determinado filósofo pensava sobre o amor, mas como este pensamento influenciava/influencia as sociedades.

Filósofos como Espinosa, Hegel, Feuerbach, entre outros entendiam o amor como uma total unidade e identificação, na qual deixa de ser um fenômeno humano, pois este é finito, como aspiração de identidade e fusão como o infinito está condenado ao insucesso. Por outro lado, temos em Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino e outros o amor como uma troca recíproca entre dois seres que preservam a individualidade e a autonomia, o bem do outro como se fosse o seu próprio. Há reciprocidade e união. Interessante trazer também como outras sociedades, como as primitivas, as religiões também apresentam e entendem o amor.

Seguindo a partir do tema o professor pode, aleatoriamente, ensinar sobre áreas da filosofia, ou determinados filósofos, estabelecer comparativos de ideias entre eles, entre antiguidade e contemporaneidade, pois o fio condutor (tema) é o mais importante.

3.4 CONCLuIR SEM CONCLuIR

Um dos pontos importantes, e “tristes” para a realidade do professor-filósofo está em lidar com o tempo de aula de 45 a 50 minutos semanais. Imaginar todo o seu planejamento, participação dos alunos e embasamento teórico dentro deste período estipulado pela LDB. Diante disso, a proposta é extrapolar os limites da sala de aula e usar o Facebook como ferramenta pedagógica, neste momento os Grupos do Facebook.

Tudo o que foi discutido, iniciado em sala de aula pode ser levado para este grupo e os discursos e argumentações darem prosseguimento no ciberespaço. Porém, alguns pontos importantes devem ser levados em consideração para o estabelecimento deste espaço virtual. Primeiro, estabelecer as regras de convivência e os objetivos do Grupo,

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para que todos os seus membros entendem o espaço que foi criado e que seja, de certa maneira, uma continuidade da sala de aula, com respeito e ética. Segundo, decidir se será composto e restrito aos alunos da turma em questão ou eles poderão convidar cole-gas e amigos para comporem este espaço. Terceiro o professor-filósofo precisa entender que nesta “sala de aula virtual” as identidades se misturam, há um empoderamento maior dos alunos, o controle tempo e espaço não é o mesmo, assim um novo ritmo é traçado. Acredito que como na sala de aula todos sentirão o espaço e estabelecerão os modos de convivência.

Como um espiral a Filosofia em Rede se dará no Ensino de Filosofia, não chamarei como um ciclo, pois este tende a voltar sempre ao mesmo lugar, mas espiral, novos caminhos e vivências passam a ser experimentadas ao longo das aulas, sejam “reais” ou “virtuais”.

CONSIdERAÇÃO FINAL

O caminho sugerido neste artigo busca mudar a posição da função usual de contro-le do professor sobre o conhecimento que deve e precisa ser ensinado para os alunos. Partir do outro, que este outro seja o local de partida do que o outro sabe e pensa, em todo ensino filosófico. Se a um professor não lhe importa o pensar dos seus alunos ele se torna apenas um reprodutor de ideias que exclui os outros do processo de ensino--aprendizagem, mas específico do ato de filosofar. Como afirmado por Cerletti (2009), “Ensinar filosofia é dar um lugar ao pensamento do outro.” (p.87)

Diante de uma Filosofia em Rede a questão privada se distancia mais ainda e o diálogo se aproxima cada vez mais. O aluno vê em um meio que lhe é comum, o Fa-cebook que é possível filosofar, argumentar e aprender. Há a dúvida se eles vão desejar ou não, ter a vontade em si, cada um escolherá se filosofa ou não, mas precisam saber que podem fazê-lo.

REFERÊNCIAS

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Temas de Filosofia. São Paulo: Moderna, 2010.

ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.

ASPIS, R. L. O professor de filosofia: o ensino de filosofia no ensino médio como expe-riência filosófica. Caderno Cedes, Campinas, v. 24, n.64, p. 305 – 320, set/ dez. 2004.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

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CERLETTI, Alejandro. O Ensino de Filosofia como problema filosófico. Belo Hori-zonte: Autêntica Editora, 2009

DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 1 / Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 1 ed. Rio de janeiro: Ed. 34, 1995. 94 p. (Coleção TRANS).

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimi-do: Paz e Terra, 11ª edição, 2003.

KENSKI, Vani Moreira. Tecnologias e ensino presencial e a distância. 2ª Ed. Campinas,SP: Papirus, 2004.

LEVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 5 ed. São Paulo: Loyla, 2007.

MAINGUENEAU, D. Frases sem Texto; Trad. Sírio Possenti – 1.ed. – São Paulo: Pa-rábola Editorial, 2014.

MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hege-monia. 5 ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.

ROJO, Roxane. Pedagogia dos multiletramentos: diversidade cultural e de linguagens na escola. In: ROJO, Roxane. Moura, Eduardo (Orgs.). Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola, 2012. p. 11-31.

SANTAELLA, Lucia. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós- moderno. Revista Famecos, Porto Alegre, dez. 2003, p. 23 -32.

SALES, S.R.; PARAISO, M.A Currículo do Orkut: escrita de si na subjetivação juvenil. Ensino em Re-Vista, Uberlândia, n.2. p.535 – 548. 2011

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ANOtAÇõES SObRE uMA dISSERtAÇÃO: “FILOZAPEANdO – uMA EXPERIÊNCIA FILOSÓFICA

dE MEdIAÇÃO à dIStÂNCIA COM O uSO dO APLICAtIVO dE CELuLAR WHAtSAPP”Miguel ângelo Castelo Gomes – PPFEN / CEFET/RJ /

Seeduc-RJ

INtROduÇÃO

O rápido desenvolvimento tecnológico acompanha as necessidades de um mercado cada vez mais exigente no que se refere à for-mação continuada, demandando alto nível de qualidade em um contexto restrito de tempo e locomoção, o que acarretou em um avanço gradual da Educação à Distância (EaD), no Brasil e no mundo. Entretanto, mesmo com a mediação tecnológica, a EaD não prescindiu da função docente: elemento historicamente inserido em um contexto institucional escolar marcado de forma profunda pela disciplina, o professor, agora, por conta do novo cenário, precisará exercer com maior fundamentação o papel de mediador, atendendo, assim, a uma demanda recente da configuração subjetiva contemporânea, denominada por Michel Ser-

res de ‘Polegarzinha’, em referência à habilidade dos jovens estudantes atuais com as tecnologias digitais, especialmente no uso de seus dedos polegares com os celulares (SERRES, 2013). Desta maneira, existe uma demanda por pesquisa sobre o docente de Filosofia enquanto mediador de um processo de construção do conhecimento à distância, através das novas tecnologias da informação e comunicação, notadamente a tecnologia móvel, como o aparelho de celular (GALIMBERTI, 2006).

Há uma necessidade crescente, por parte dos estudantes, de uma experiência mais significativa com o espaço escolar, incluindo-se aqui a grade curricular. As recentes ocupações discentes das escolas cariocas, por ocasião da greve dos professores do Estado

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do Rio de Janeiro, no primeiro semestre de 2016, trouxeram mais fortemente esta questão, no tocante ao questionamento do currículo tradicional, por meio de aulas e atividades construídas a partir da escolha coletiva dos estudantes, bem diferenciadas das observadas comumente em sala de aula. Este fato corrobora a demanda tanto por um maior espaço dialógico nas escolas, e que leve em conta a voz discente, relacionada aos demais atores pedagógicos, como diretores, professores, coordenadores e mediadores pedagógicos, dentre outros, em todos os seus aspectos, quanto por uma valorização do contexto sociocultural dos estudantes, como fundamento mesmo deste diálogo (CAMPANER, 2012).

Mais: a quase inexistência de qualquer material formativo, para o professor de Filosofia da SEEDUC-RJ, que o capacite minimamente a utilizar, de maneira filosófico-pedagógica, a recente tecnologia móvel inserida culturalmente e de maneira frequente no cotidiano dos jovens estudantes, como no caso do aparelho de celular e do aplicativo whatsapp, sugere a iniciativa de um professor de Filosofia que, através de um trabalho de campo, mesmo sem qualquer experiência anterior, experimente a criação de um grupo virtual que inclua discentes e docentes, derivando deste projeto uma cartilha básica direcionada para docentes em Filosofia em sua utilização do celular enquanto ferramenta estratégica.

Há uma carência real por publicação de material didático produzido a partir de um trabalho de campo que inclua as vozes diversas presentes na área educacional, como professores, estudantes, coordenadores e mediadores pedagógicos, dentre outros, in-cluindo a tradicional academia, representada no projeto pelos membros mestrandos e pós-graduandos, traduzindo o papel de um professor de Filosofia enquanto mediador à distância de uma experiência filosófica com usuários de telefonia móvel, utilizando-a po-sitivamente enquanto ferramenta de educação à distância, a partir do aplicativo whatsapp, em um cenário tecnológico global onde o celular aparece como recente fenômeno técnico-cultural. Assim, surgiu o problema: Em um contexto tecnológico global, como os erros e os acertos de um professor-mediador em uma experiência filosófica de me-diação à distância com o uso do whatsapp contribuem para a produção de um material didático específico direcionado para os docentes em Filosofia?

Esse artigo, portanto, tem por finalidade apresentar uma reflexão sobre a cartilha de orientação aos docentes em Filosofia, como síntese de uma experiência filosófica em mediação à distância e resposta à pergunta feita, a partir do uso do aplicativo de celular Whatsapp, ocorrida no grupo ‘Filozapeando’, entre os dias 30/06/2016 e 07/07/2016, e que reuniu docentes e discentes em uma experiência filosófica, discutindo, por uma semana, temas como Ética, Tecnologia e Educação, a partir de tirinhas, vídeos, áudios, imagens e fotos, com a mediação de um professor de Filosofia da Secretaria do Estado

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do Rio de Janeiro, em um contexto tecnológico que determina a atual sociedade global, especificamente na área educacional. Tal experiência gerou minha dissertação de mes-trado em Filosofia e Ensino, a primeira a ser defendida e aprovada não só no CEFET-Rio, mas em todo Brasil, cujo tema foi “Filozapeando: Uma experiência filosófica de mediação à distância com o uso de aplicativo de celular Whatsapp”, elaborado através das metodo-logias de pesquisa bibliográfica e análise qualitativa e quantitativa.

Uma compreensão docente da questão, a partir do conceito de “Polegarzinha”, cria-do pelo filósofo Michel Serres ao definir a juventude contemporânea na sua relação com a tecnologia móvel, especialmente o celular, permite a identificação de um novo ser e agir atuais (SERRES, 2013), sugerindo a busca por uma experiência filosófica que leve mais em conta tal realidade. Assim, reafirma-se uma perspectiva positiva na utilização pedagógica da tecnologia móvel, através da mediação do professor de Filosofia em intera-ção com discentes e docentes que dialogam e debatem à distância, via aparelho de celular, a partir de questões ligadas à Ética, Tecnologia e Educação, e que provocam a busca pela construção de um conhecimento coletivo, traduzido em uma cartilha contendo 10 dicas aos docentes em Filosofia que também pretendam elaborar projetos filosófico-educativos com o aplicativo whatsapp, como parte integrante de sua estratégia didática.

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10 dicas para PROFESSORES dE FILOSOFIA conectados com a geração ‘Polegarzinha’

Apresentação

Esta é uma cartilha formativa direcionada aos professores de Filosofia baseada no conceito “POLEGARZINHA”, do filósofo Michel Serres. Participantes de uma ex-periência filosófica chamada “FILOZAPEANdO”, acontecida entre os dias 30/06 e 07/07/2016, um grupo de estudantes, professores, coordenadores pedagógicos, mes-trandos e outros profissionais de educação interagiu diariamente entre si através do aplicativo de celular Whatsapp, com a mediação de um professor de Filosofia. A partir de tirinhas, vídeos, textos e imagens, temas como tecnologia, educação e ética foram discutidos, numa construção de conhecimento coletivo e uma única identidade: o sa-ber de todos e de cada um.

Parte integrante do projeto de mestrado profissional em Filosofia e Ensino de Mi-guel Angelo Castelo gomes, do CEFET-Rio, sob a orientação do prof. Dr. Maurício Cas-tanheira, este material didático contém dicas importantes sobre mediação pedagógica online e quer contribuir com os docentes em Filosofia que, através da tecnologia móvel, desejam filosofar com seus estudantes para além dos muros da escola.

boa filozapeada!

Pra começar...

A tecnologia está cada vez mais presente na vida de cada um de nós, especialmente entre os estudantes. Po-demos inferir isto, quando eles passam portando seus celulares, brincando com seus jogos eletrônicos, curtin-do suas músicas e... ZAPEANdO!

Zapeando? Sim, zapeando. Queiramos ou não. Gos-temos ou não. A geração atual (fato!) que freqüenta nos-sas escolas e nossas salas de aula está hiper conectada. Então... Que tal filo-zapear?

Pensando esta juventude, Michel Serres criou o conceito de POLEGARZINHA, simbolizando o novo modo de ser e de agir juvenis, a partir do seu modo de usar as novas tecnologias: com um rápido e simples to-que de polegar, na tela do tablet ou celular.

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Baseada nisto, e a partir de erros e acertos observados na mediação do grupo FILO-ZAPEANdO, esta cartilha quer compartilhar com os inúmeros professores e profes-soras espalhados neste nosso imenso Brasil, 10 dicas de como mediar uma experiência filosófica através do Whatsapp.

Na internet, existe o caos organizado não pelo criador, mas pelo usuário. Por isso...

DICA 01Não imponha regras!

Pode parecer estranho, mas só parece. Regras são criadas coletivamente, de forma dialógica e a partir das necessidades identificadas ao longo das interações. Foque na criatividade!

“Diante destas transformações, sem dúvida é necessário inventar novidades inimagináveis, fora do âmbito habitual que ainda molda nosso comportamento” (SERRES, 2013).

DICA 02Seja cordial e acolhedor!

Quando a situação permitir, em todas as intera-ções. Se necessário, porém, seja firme e incisivo. Com certeza, você saberá a diferença entre as duas situações extremas.

“Espero que a vida ainda me dê tempo suficiente para continuar trabalhando nisso, na companhia desses jovens aos quais me dediquei por sempre tê-los amados de

forma respeitosa (SERRES, 2013).

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DICA 03Planeje as discussões!

Mas esteja preparado para absorver as surpresas. Cuidado para não ‘engessar’ o pensamento: fique atento para conectar as contribuições entre si, através do tema filosófico.

Mediação é A palavra!

“Com o acesso às pessoas pelo celular e com o acesso a todos os lugares pelo gPS, o acesso ao saber se abriu. De certa maneira,

já está o tempo todo e por todo lugar transmitido” (SERRES, 2013).

DICA 04Mediar também é criar pausas!

Relaxe e respire: elas são bem-vindas.Aproveite, então, pra acompanhar melhor as idéias, es-

timular interações ou mesmo para retomar uma discussão.

“O antigo espaço de concentrações se dilui, se espalha. vivemos, acabei de dizer, em um espaço de proximidades imediatas, e,

além disso, ele é distributivo” (SERRES, 2013).

DICA 05Menos é mais!

A síntese diária das contribuições reforça a memória coletiva.

“(...)’O saber’ se encontra estendido diante ‘da Polegarzinha’, objetivo, coletado, coletivo, conectado, totalmente acessível, dez vezes revisto e controlado; ela pode voltar sua atenção

para (...) a inteligência inventiva” (SERRES, 2013).

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DICA 06Valorize cada contribuição!

Por mais simples que pareça isto fortalece o cole-tivo: a construção do conhecimento se dá a partir da diversidade de saberes, mesmo os não-formais. “Agora distribuído por todo lugar, o saber se espalha em

um espaço homogêneo, descentrado, de movimentação livre. A sala de antigamente morreu”

(SERRES, 2013).

DICA 07Administre o caos!

Entenda: Desordem é um problema seu e não deles. Aprenda com as surpresas!

“Silêncio e prostração. O foco de todos na direção do estrado em que o porta-voz exige silêncio e imobilidade

reproduz, na pedagogia, o mesmo do tribunal com rela-ção ao juiz (...), da multiplicidade com relação ao um”

(SERRES, 2013).

DICA 08Repetição, repetição, repeti... NÃO!

Repetir orientações prejudica a comunicação: reitere de forma privada.

“Os corpos podem sair da Caverna em que a atenção, o silêncio e o arqueamento das costas os prendiam às cadeiras como se fossem correntes. Forçados a voltar, não param mais nos

seus lugares” (SERRES, 2013).

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DICA 09Seja breve!

áudios são cansativos. Textos longos também. Aprenda a diversificar, de forma adequada e equilibrada, o uso dos meios de transmissão da men-sagem: o aplicativo oferece opções e entendê-las fará toda diferença!

“A sala de antigamente morreu, mesmo que ainda a vejamos tanto, mesmo que só saibamos construir outras iguais” (SERRES, 2013).

DICA 10Retorne à dica 01

Reavalie desde o início. É imprescindível! Porém, não tenha medo das críticas, mesmo as negativas: seu cresci-

mento depende delas. Portanto, leve tudo em consideração, e não apenas os elogios.

“Antes de ensinar o que quer que seja a alguém, é preciso, no mínimo, conhe-cer esse alguém” (SERRES, 2013).

Agradecimentos pela Arte:

Luiz: [email protected] / (021)99902 3475Caio: [email protected]/(021)990132427

CONSIdERAÇõES FINAIS

Valeu a pena pensar as novas tecnologias para ensinar e motivar a pensar a Filosofia. No entanto, falando francamente, construir este projeto foi, além de um tremendo aprendizado, uma oportunidade para forjar, nas inúmeras dificuldades, minha inclina-ção à pesquisa acadêmica, intimamente relacionada à prática docente.

Precisei utilizar todo o período do recesso olímpico de 2016 para dar conta de fina-lização de escrita, atendimento de prazos de entrega, “sem deixar a tartaruga escapar”, como diria meu querido amigo e orientador, professor Maurício Castanheira. Aliás, seu incentivo e frases lapidares, como “menos é mais” ou “apresente sua pesquisa durante o tempo que durar um fósforo riscado”, contribuíram para que se tornasse possível o meu sonho, que se tornou realidade em setembro de 2016: ser o 1º mestre formado em Filosofia e Ensino em todo território nacional, pelo CEFET-Rio.

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As tempestades do tempo de mestrando preparam um ‘marinheiro da pesquisa’, que vislumbra atualmente com o doutorado em Educação ou Filosofia em 2018. Mais que isto, todavia, concluo este artigo com mais uma frase de efeito, desta vez, escrita na salinha de atendimento do orientador Castanheira, no 5º andar do Bloco E do CEFET--Rio, e que sintetiza exatamente o que penso desta jornada e das próximas que virão, se Deus assim o permitir: “Não adianta ter mestrado ou doutorado e não dar bom dia para o porteiro”.

REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

CAMPANER, Sônia. Filosofia, ensinar e aprender. São Paulo: Livraria Saraiva, 2012.

CASTANHEIRA, Mauricio (org.). Retratos e reflexões sobre Educação e Psicologia. Rio de Janeiro: Publit, 2010.

GALIMBERTI, Umberto. Psiche e Techne: o homem na idade da técnica. tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006.

GALLO, Silvio. Metodologia do ensino de Filosofia: Uma didática para o ensino médio. Campinas, SP: Papirus, 2012.

LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 5. Ed. São Paulo: Loyola, 2007.

___________ Cibercultura; tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999.

LEMOS, André. Cibercultura, tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2ª ed., 2004.

__________ A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo: An-nablume, 2013.

SEEDUC. Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.rj.gov.br/web/seeduc>. Acesso em: 02/08/2016.

SERRES, Michel. A Lenda dos Anjos. São Paulo: Aleph, 1995

_____________ Polegarzinha. tradução Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

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ORIENtAÇõES PARA O dEbAtE CuRRICuLAR NA EJA: uM PROCESSO POLÍtICO-PEdAGÓGICO

Wesley Damasio Siqueira – SME – Cachoeiras de Macacu

I - INtROduÇÃO

A proposta deste material é subsidiar a organização dos debates curriculares da EJA de Duas Barras a partir de uma perspectiva democrática e horizontal com o objetivo de fortalecer a modalidade como referência para a formação da classe trabalhadora bibarrense.

O produto que ora apresentamos origina-se da dissertação de Mestrado Profissional intitulada “Construção curricular da Educação de Jovens e Adultos de Duas Barras: uma análise da participação de professores e diretores”, orientada pela Professora Drª Andrea da Paixão Fernandes, no PPGEB/CAp-UERJ.

Construímos uma organização que busca colaborar com a revisão do currículo da EJA de forma aprofundada considerando desde os princípios norteadores até uma organização possível para as reuniões onde os temas serão debatidos. Estas orientações devem ser apreciadas juntamente com o blog “ejaduasbarras.blogspot.com.br” que possui materiais de apoio ao debate curricular como palestras, artigos, legislações, dissertações, teses dentre outros.

Com a finalização da dissertação e do produto observamos que este poderia ser utilizado e/ou facilmente adaptado para a realidade de outros municípios ou mesmo servir de base para a elaboração de novas propostas de construção e revisão curricular.

II - uM dEbAtE PARA ALÉM dE duAS bARRAS

O objetivo deste texto não é apresentar os resultados encontrados na análise sobre o debate curricular da EJA de Duas Barras em sua totalidade, mas apontar elementos que fortalecem a necessidade da continuidade das discussões e o diálogo entre os professores, diretores, estudantes e comunidade envolvidos com a modalidade.

Os profissionais que participaram da pesquisa apontaram a importância dos debates curriculares e seus impactos na Educação de Jovens e Adultos, dentre eles destacamos:

• O acúmulo de experiência dos profissionais com o diálogo sobre a EJA;• Organização dos Encontros Interdisciplinares da EJA de Duas Barras ENIEJA;• Primeira experiência com a construção de uma política pública de forma coletiva;

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• Abertura do diálogo entre as escolas que ofertavam a modalidade;• Integração entre os estudantes nos ENIEJA;• Crítica à gestão escolar das escolas com EJA;• Papel da Secretaria Municipal de Educação na organização e suporte3 voltado para

a EJA.

Para além destes apontamentos que surgiram na análise dos questionários aplicados durante a pesquisa para elaboração da dissertação, observamos que a realidade deste município do interior do estado do Rio de Janeiro é semelhante a maior parte das de-mais 5.570 cidades brasileiras, uma vez que estas possuem menos de 20 mil habitantes e um sistema educacional dependente financeiramente das ações do governo federal.

CONSIdERAÇõES FINAIS

O produto apresentado neste trabalho busca potencializar os arranjos curriculares de forma a incentivar as relações de coletividade, democracia, diálogo e autonomia. A utilização deste material em outras realidades municipais deve ser pensada como con-tribuição e não como um manual fechado em si. O caráter coletivo e horizontalizado das discussões pode ser considerada a base fundamental para a aplicação ou mesmo qualquer derivação deste caderno de orientações.

CAdERNO dE ORIENtAÇõES PARA O dEbAtE CuRRICuLAR dA EJA

I - PRINCÍPIOS NORtEAdORES

democracia

O princípio da democracia, aplicado a educação, pode ser encontrado em diversos documentos norteadores e legislações nos últimos 15 anos, principalmente na forma da gestão democrática, merecendo inclusive uma meta específica no Plano Nacional de Edu-cação 2014 – 2024. No campo político a discussão sobre o conceito de democracia é muito amplo. Trabalharemos com a abordagem histórica apresentada por Rosenfield (2005).

A democracia moderna ganhará um novo rosto, inaugurando um novo sen-tido do político, ao determinar-se por um espaço público de discussão, de luta, de negociação e de diálogo. A reunião de todos aqueles que constituem a sociedade numa forma de organização política aberta ao seu aperfeiçoamento dá aos cidadãos um novo sentido da comunidade, não excluindo ninguém. (ROSENFIELD 2005, p. 31)

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O levantamento histórico realizado pelo autor aponta as “idas e vindas” no desenvolvimento da democracia enquanto prática política e de organização social. Ao acompanharmos estes embates observamos que o aprofundamento das práticas democráticas é um movimento coletivo e que nem sempre parte do poder público.

Horizontalidade

Este é um princípio / conceito muito utilizado entre os movimentos sociais quando se trata da organização dos debates e reuniões deliberativas que envolvem uma diver-sidade de sujeitos com o objetivo de proporcionar uma participação cada vez mais igualitária para todos. No que diz respeito ao debate, as relações de autoridade devem se submeter à vontade coletiva, ampliando a horizontalidade nas decisões.

Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um polo no outro é consequência óbvia. Seria uma contradição se, amoroso, humilde e cheio de fé, o diálogo não provocasse esse clima de confiança entre seus sujeitos. Por isto inexiste esta confiança na antidialogicidade na concepção “bancária” de educação. (FREIRE 2013, p. 113)

Nos espaços escolares, as decisões sobre a organização do cotidiano tendem a ficar centralizadas na direção. Um modelo colegiado, com representação de todos os seg-mentos, colabora para a construção de uma relação de horizontalidade nos debates. Pensar formas de coletivização das decisões mais importantes, como os investimentos, currículo, projeto político pedagógico, regimento escolar e mesmo sobre as questões que envolvem a comunidade no entorno é fundamental para a ampliação do exercício democrático.

Considerando a conjuntura histórica e política bibarrense, vislumbramos que im-plementar um debate horizontal com ampla participação dos segmentos da escola, comunidade e SME, seja o maior desafio para a construção de um currículo libertador.

dialogicidade

O diálogo pode ser considerado como um dos princípios mais importantes, uma vez que fundamenta a organização curricular em todos os sentidos, desde a meto-dologia da construção curricular até as práticas pedagógicas cotidianas. Retiramos o conceito da obra de Paulo Freire, e este apresenta o diálogo como fenômeno humano e pertencente a todos.

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Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verda-deira sozinho, ou dize-la para outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais.O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pro-nuncia-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. (FREIRE 2013, p.109)

Para que o processo de revisão curricular ocorra de forma a construir uma proposta libertadora e coletiva este princípio deve ser posto em prática o quanto antes e, este deve ser o tema a ser estudado como prioridade. A organização do debate tem como objetivo contemplar todas as partes envolvidas apesar de considerarmos fundamental o protagonismo dos professores da EJA.

Interdisciplinaridade

O princípio da interdisciplinaridade constitui, para além de uma ferramenta peda-gógica, uma ruptura com o positivismo presente na pulverização do conhecimento, que associado à falta de diálogo entre as disciplinas, colabora para distancia entre os sabe-res científicos e escolares dos desafios concretos da humanidade. Este distanciamento compromete o desenvolvimento dos saberes desde os centros de pesquisas até a escola.

A fuga para a frente das disciplinas isoladas, cada uma afundando-se na inco-erência, manifesta a perda de sentido do humano, o desaparecimento de toda imagem reguladora que preservaria a figura do homem num mundo a sua escala. A fonte exclusiva da descoberta dos fatos projeta o homem num vazio de valores. O positivismo pretende instalar a humanidade no deserto pulve-rizante dos fatos, como se a tarefa da epistemologia não fosse a de ressituar no humano as contribuições incoerentes das disciplinas cuja divergência não cessa de aumentar sob efeito de uma espécie de força centrífuga. Toda verdade científica deve constituir o objeto de uma dupla crítica porque possui uma dupla validade: sua verdade intrínseca pode ser colocada em questão do ponto de vista de sua significação para realidade humana. Em outros termos, todas as ciências, até mesmo as mais abstratas ou as mais materiais, são ciências do homem. (JAPIASSU 1979, p.24)

A interdisciplinaridade se apresenta como desafio para todos os envolvidos, uma vez que exige dos profissionais uma mudança de postura que vai além das práticas pedagógicas, pois representa uma maior aproximação entre os envolvidos no processo educativo através do diálogo em uma dimensão política.

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Omnilateralidade

Este princípio busca orientar a construção curricular no sentido de ampliar a for-mação dos jovens e adultos para além das necessidades do mercado considerando os aspectos políticos, técnicos, artísticos, dentre outros elementos fundamentais para gerar transformações na realidade concreta. O conceito de Omnilateralidade64 foi apresen-tado por Manacorda (2010). O autor reúne as considerações feitas por Marx sobre a educação relacionada à organização do trabalho.

A onilateralidade é, portanto, a chegada histórica do homem a uma totalidade de capacidades produtivas e, ao mesmo tempo, a uma totalidade de capaci-dades de consumo e prazeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo daqueles bens espirituais, além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado excluído em consequência da divisão do trabalho. (MANACORDA 2010, p. 96)

A Omnilateralidade aparece como contraponto a Unilateralidade gerada pela divi-são social do trabalho e pelas múltiplas formas de exploração gerada pelo capitalismo que busca limitar a formação da classe trabalhadora ao adestramento necessário as constantes transformações e modernizações dos processos de produção.

O princípio de uma educação omnilateral busca colaborar para formação de su-jeitos críticos e dispostos a aprender e compartilhar os conhecimentos historicamente construídos pela humanidade em diversas áreas. Um currículo elaborado a partir deste conceito fundador tem como objetivo potencializar os conhecimentos aplicados à vida concreta por jovens e adultos organizados coletivamente e autônomos.

O homem omnilateral não se define pelo que sabe, domina, gosta, conhece, muito menos pelo que possui, mas pela sua ampla abertura e disponibilidade para saber, dominar, gostar, conhecer coisas, pessoas, enfim, realidades – as mais diversas. O homem omnilateral é aquele que se define não propriamente pela riqueza do que o preenche, mas pela riqueza do que lhe falta e se torna absolutamente indispensável e imprescindível para o seu ser: a realidade exte-rior, natural e social criada pelo trabalho humano como manifestação humana livre. (JUNIOR 2009, s/p.)

Uma EJA empoderada passa pela construção coletiva do currículo por profissionais dispostos a desenvolver um debate e aproximar os estudantes de “modelos” de organi-zação que incentivem e promovam a discussão sobre temas relevantes da sociedade

64 O autor usa o termo onilateralidade que pode aparecer em outras obras como omnilateralidade.

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II – MEtOdOLOGIA

Formação da comissão organizadora do debate

O debate curricular da EJA de Duas Barras é uma tarefa complexa, uma vez que busca definir a proposta municipal para a formação dos jovens, adultos e idosos traba-lhadores. Para dar conta dos desafios de reunir os múltiplos segmentos que se relacionam com a modalidade, propõe-se que a coordenação da EJA deve convocar representações para formar uma comissão organizadora.

Um grupo de profissionais organizados pode revindicar junto ao conselho muni-cipal de educação a formação da comissão ou mesmo assumirem junto à comunidade e escolas a responsabilidade de mover o debate curricular ainda que a SME se recuse a participar.

A comissão organizadora se constituirá como instância de acompanhamento do debate curricular e da organização dos encontros bienais sendo composta por representações de professores, direção, estudantes, equipe pedagógica da escola e SME (Inclusão, EJA, Supervisão, Merenda e Administração). O objetivo dessa comissão é viabilizar e dina-mizar o debate curricular que ocorrerá nas escolas.

Outros segmentos como conselhos (Tutelar, FUNDEB etc..), sindicatos, associa-ções de moradores, associações de pais dentre outros podem ser convidados a participar diretamente da comissão. Caso não seja possível reunir todos os segmentos, deverão ser convidados para a plenária de culminância da proposta.

A coordenação da EJA será a principal responsável por convocar a comissão organi-zadora, que terá como tarefas:

• Pensar a formação dos participantes do debate;• Organizar o calendário dos debates curriculares;• Sistematizar um conjunto de materiais de consulta como legislações, calendário

anual, PME, recursos disponíveis, PPP dentre outros;• Propor a organização da plenária final para aprovação da proposta;• Apontar fragilidades da proposta curricular em vigor para serem debatidas nas

escolas.

Como veremos mais adiante, os encontros específicos para os debates curriculares terão a duração de um ano e culminarão em uma plenária onde a sistematização da proposta será lida e apreciada por todos os envolvidos. A comissão organizadora terá duração de um ano, sendo dissolvida após a aprovação do documento final.

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duração do debate e calendário

O debate curricular nas escolas pode ser um desafio, uma vez que o tempo para os encontros é muito reduzido pelas limitações do calendário escolar e da disponibilidade de participação dos professores e estudantes. Considerando estas dificuldades e a com-plexidade da tarefa, propomos a realização de encontros mensais nas unidades escolares duração mínima de um ano.

Para elaboração do calendário, a comissão organizadora deve considerar os múltiplos fatores que envolvem a participação dos profissionais nos espaços e tempos de debate.

• Previsão das reuniões na montagem do calendário letivo (reunião mensal de 4 ho-ras) – relação entre a coordenação da modalidade e a Supervisão;

• No caso de impossibilidade de garantia dos dias de debate no calendário a saída possível são reuniões quinzenais de 2 horas com manutenção do dia letivo – esta opção exigirá mais de todos os envolvidos;

• Possibilidade de um rodízio de dias considerando os outros vínculos dos professores;• Oferta de uma declaração assinada pelo(a) secretário(a) de educação constando a

participação no debate curricular.;• Carta de pedido aos outros locais de trabalho dos profissionais envolvidos solici-

tando a liberação dos mesmos nos dias dos debates curriculares – coordenação da modalidade;

• Termo de compromisso dos professores da modalidade com o debate curricular.

A participação dos professores, diretores e equipe pedagógica deve garantir o debate pedagógico considerando elementos tais como: a organização das atividades, conhecimen-tos historicamente produzidos, avaliação e demais objetivos pedagógicos. A colaboração dos estudantes neste campo pedagógico será discutida mais adiante.

Mobilização dos estudantes

O município de Duas Barras não possui um histórico de grêmios estudantis nas escolas municipais, principalmente porque a maioria dos jovens tem menos de 15 anos de idade. No caso da EJA o desafio está em reunir os diferentes sujeitos em torno de uma plenária para debater a própria formação. Esse exercício de participação em pro-cessos de decisão deve ser pensado em um momento anterior ao início dos debates curriculares, como uma fase preparatória.

Como forma de estimular o exercício democrático entre os estudantes deve-se ini-ciar um processo contínuo de atividades que dependam de decisões coletivas além de

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propor tarefas dentro do cotidiano escolar, que possam ser assumidas pelos estudantes. Com pelo menos um semestre de antecedência a equipe deve pensar na preparação dos estudantes para o debate curricular. Para colaborar com este momento temos como propostas:

• Apresentação da proposta de forma clara e objetiva;• Separar um momento semanal para debater em todas as turmas sobre os desafios

que envolvem a convivência na escola;• Identificar as demandas dos estudantes;• Construir coletivamente o papel das representações por turma;• Trabalhar diferentes formas de intervenção como cartas as lideranças políticas,

abaixo assinado, visitas as sessões da Câmara Municipal dentre outras;• Identificar projetos paralelos de interesse dos estudantes como festas, campeonatos

de futebol e pequenos mutirões;• Estabelecer um mural organizado pelos estudantes;• Envolver os sujeitos no processo de coleta de dados sobre a escola e comunidade.

As práticas devem variar de acordo com as escolas, equipe responsável e coletivo de estudantes envolvidos, mas é fundamental que essa etapa seja trabalhada de forma a estimular o rompimento do silêncio frente às estruturas de poder e espaços de debate.

Levantamento de dados como tarefa coletiva

Em concomitância com a preparação dos estudantes, deve-se iniciar a coleta de dados quantitativos sobre a realidade escolar e a comunidade do entorno. Cada uni-dade escolar, a partir das demandas apresentadas, poderá elaborar seu próprio banco de dados. Os professores serão fundamentais nesse momento, pois poderão construir questionários e registros junto aos estudantes, direção e coordenação da modalidade.

A partir da leitura de Gadotti e Romão (2012) consideramos como dados funda-mentais a serem levantados:

• Identificação da escola (física, jurídica e socialmente);• Estrutura física (em detalhes);• Mobiliário, equipamentos e recursos naturais;• Recursos humanos (todos);• Recursos financeiros (PDDE, cantina, festas dentre outros);• Matrículas e evolução da demanda;• História e projetos desenvolvidos na escola;

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• Gestão e administração (modelo e estrutura de decisões);• Deficiências e potencialidades;• Características da comunidade (conjunto de bairros que a escola atende).

O montante de dados a serem recolhidos, que é proposto por Gadotti e Romão (2012), apesar de extremamente valiosos para a escola, não pode ser um entrave para o início dos debates curriculares. Um primeiro volume de dados pode ser coletado no semestre em que os estudantes estiverem se preparando para o debate curricular. Como proposta, sugerimos que os primeiros questionários e pesquisas documentais conside-rem as seguintes temáticas:

• Sujeitos da EJA (características sociais, econômicas e culturais) – questionário;• Recursos humanos diretamente envolvidos na EJA (currículo vitae em detalhes e

atualizado);• Deficiências e potencialidades da EJA;• Comunidades atendidas;• Recursos financeiros e materiais disponíveis.

Esse trabalho deve ser realizado por equipes que envolvam professores e estudantes com apoio da direção e coordenação da modalidade que devem colaborar em todas as etapas além de disponibilizar os recursos necessários para a execução da tarefa. O regis-tro dos dados pode ser realizado de várias formas se utilizando de programas específicos como Excel ou mesmo em tabelas e gráficos no Word.

debate nas Escolas

O debate curricular é o momento de avaliar e pensar as transformações necessá-rias à luz dos dados previamente recolhidos na etapa de preparação dos estudantes. Neste momento presenciamos dois cenários possíveis segundo o tempo disponível nas escolas:

1 – Com os dias de debate previamente inseridos no calendário da EJA, as reuniões terão a duração de 4 horas e serão mensais. Os estudantes representantes deverão com-parecer juntamente com professores, diretores, apoio, funcionários administrativos, equipe pedagógica e representações da SME, os demais estudantes que não participa-rem, deverão cumprir planos de estudos culturais com temáticas relacionadas aos temas participação e democracia, além de participarem como ouvintes em uma sessões da câmara de vereadores, ou outra tarefa relacionada.

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2 – No caso de os dias não estarem previamente inseridos no calendário da EJA, as reuniões terão a duração de apenas 2 horas e deverão ser quinzenais. Os estudantes representantes deverão comparecer as duas primeiras horas de aula e depois a reunião. Os demais poderão realizar uma tarefa complementar relacionada à temática buscando desenvolver aspectos relacionados ao estimulo e à organização. Neste caso os estudantes representantes, professores, diretores, apoio, funcionários administrativos, equipe pe-dagógica e representações da SME deverão conduzir os debates de forma a otimizar o tempo e controlar as falas.

Respeitar o tempo dos debates é fundamental, pois 04 horas mensais, é o míni-mo para manter uma regularidade nas discussões. Durante este período as questões pedagógicas cotidianas deverão ser tratadas de forma a manter os projetos e propostas do ano anterior funcionando. As novas demandas de maior importância entrarão na pauta preliminar da reunião ao passo que as mais corriqueiras serão encaminhadas aos respectivos responsáveis.

O calendário de encontros deve ser articulado junto com a comissão organizadora e a coordenação da modalidade para que as reuniões não ocorram ao mesmo tempo nas duas principais escolas com turmas de EJA do município. As demais representações da SME devem ser convocadas por demanda para resolver questões específicas relaciona-das a cada setor, como merenda, transporte, pedagógico dentre outros.

Alguns pontos devem ser considerados para dinamizar os encontros:

• Convocação e preparação dos participantes – todos os participantes devem ser avisados com um mês de antecedência e receber um material básico para participar do debate preparado pela comissão organizadora;

• Metodologia dos encontros – a comissão organizadora deverá propor uma dinâmica para a reunião que contemple os princípios da democracia e horizontalidade. Mais a frente apresentaremos algumas contribuições para a organização das reuniões.

• divisão de tarefas – a divisão das responsabilidades será de fundamental impor-tância para o cumprimento das demandas pertinentes ao debate curricular, uma vez que os demais afazeres pertinentes a cada função ainda permanecem.

• deliberações – as deliberações debatidas nas reuniões devem ser registradas devi-damente e cumpridas dentro dos prazos, à eficiência no cumprimento das tarefas pode determinar o sucesso ou fracasso nos debates.

Organização de reuniões e debates

1. Preparação das reuniões:• Explicitar a tarefa;

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• Objetivo da reunião;• Combinar calendário (local, data e hora);• Fazer a convocação;• Garantir um local;• Preparar a pauta;• Arrumar o material necessário;• Cada sujeito deve possuir seu próprio material de registro;

2. Pauta:• Apresentar os assuntos (prévia impressa e/ou e-mail);• Andamento dos trabalhos anteriores;• Avisos e comunicados;• Rodada entre os setores e coordenações;• Definir o tempo (teto normal e teto máximo);• Definir ordem e tempo estimado para cada assunto.

3. durante as reuniões:• Escolha de um coordenador – rodízio • Controlar os assuntos;• Controlar o tempo da fala – 3min;• Atentar para as inscrições – lista simples;• Chamar a atenção das conversas paralelas;• Atenção – “passar a palavra” – “inscrição para fala” – “controle do tempo de fala”.

• Escolha de um secretário – rodízio • Anotar os assuntos debatidos;• Destacar as decisões;• Sistematizar e socializar a ata das reuniões por e-mail.;• Atualizar um quadro de encaminhamentos.

4. Postura nas reuniões:• Não faltar sem justificativa;• Não se atrasar;• Ao chegar, se acomodar sem atrapalhar;• Evitar conversas paralelas;• Falar ao telefone somente se necessário e fora do local de reuniões;• Não trocar mensagens nas redes sociais sem justificativa;• Não desviar o assunto até que ele termine; • Escutar todas as falas;

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• Respeitar a opinião de todos (respeitar não é o mesmo que concordar);• Estar atento ao tempo da fala;• Anotar em instrumento próprio.

bLOG

Na ausência de uma plataforma de formação com maior quantidade de recursos, o Blog pode ser uma ótima ferramenta para concentrar os materiais de preparação para o debate curricular como textos, legislações, artigos, palestras e documentários. As postagens com fotos, textos e mesmo vídeos vão colaborar para o registro do debate, propostas, dados coletados e resultados.

O Blog em questão foi criado como parte deste material de apoio e o responsável pela atualização é a coordenação da EJA podendo vir a se tornar uma das funções a serem partilhadas com a comissão organizadora. A atualização do blog é uma tarefa constante e, portanto tem o potencial de se tornar uma fonte de registro público sobre a modalidade no município que poderá perpassar por mais de um governo.

A transparência dada ao debate curricular da EJA tem como objetivo proporcionar aos estudantes, professores e comunidade participar com comentários sobre os docu-mentos criados, práticas e dados publicados. A possibilidade de tornar público os mate-riais produzidos na EJA de Duas Barras colabora para o fortalecimento da modalidade e contribui para a formação de uma identidade para a modalidade no município.

Endereço do Blog: ejaduasbarras.blogspot.com.br

V - REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013

GADOTTI, M.; ROMÃO J. E. (orgs.).Autonomia da escola: princípios e propos-tas. São Paulo: Cortez, 2012.

MANACORDA, M. A. Marx e a pedagogia moderna. Campinas: Alínea, 2010

MOREIRA, A.F.; SILVA, T. T. Currículo, Cultura e Sociedade. São Paulo: Cortez, 2000.

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MANuAL dE INStRuÇÃO PROGRAMAdA APLICAdO AOS CONCEItOS dE CRISE E COMPREENSÃO EM

HANNAH ARENdtWagner de Moraes Pinheiro – PPFEN / CEFET/RJ

I – INtROduÇÃO

Este trabalho mostrará o manual de instrução programada desenvolvido para a turma de graduação em administração do CEFET durante o curso de Mestrado profissional em Filosofia e Ensino. Para tal, se fará uma breve introdução ao material e como usá-lo em sala de aula. Com o trabalho pretende-se divulgar a metodologia da instrução programa-da como uma alternativa para o ensino de filosofia para graduações estranhas à filosofia.

II – APRESENtAÇÃO AO MAtERIAL

O manual de instrução programada, no ensino da filosofia, faz parte de um processo de problematização de uma questão qualquer. Sua origem estaria na Grécia, com o método socrá-tico. Foi, no entanto, com a segunda guerra, com o treinamento dos soldados americanos, por meio de vídeos e fichas que o método de ensino tomou a forma conhecida hoje (MONICA, 1977 p.54). O psicólogo americano que é considerado pai deste método, B. F. Skynner, busca em pequenos passos seguidos do reforço, a maneira de condicionar o indivíduo da maneira oportuna. O manual, assim, é um modo de aprender por meio de condicionamento, ou seja, o aluno se condiciona a aprender o conceito pouco a pouco. E esse aprendizado deve ser au-tônomo, uma vez que é individualizado. Baseado neste princípio, Skynner tem a convicção de que, ao preencher suas “máquinas de aprender”, o aluno não haveria como nenhum aluno algum depender de outro indivíduo para aprender. Ao preencher o manual de instrução, ele aprende de forma gradualmente de modo independente. Cada aluno, a seu tempo, com as fichas e preenche este novamente, caso haja algum erro relevante ou qualitativamente. As questões geralmente possuem 3 alternativas (a, b ou c), podendo variar em suas abordagens.

No ensino de Filosofia, o manual de instrução programada não possui a proposta ape-nas de apresentar ou inserir um conteúdo. O manual, neste sentido, em dois momentos. O primeiro momento, serve de efetuador, estabelecendo a base conceitual; e introdutor, proporcionando que os conceitos sejam assimilados pelos alunos da forma mais autônoma o possível – dentro destes padrões –, a fim de que sejam debatidos num segundo momento.

O material baseia-se em questões que são respondidas individualmente. Essas questões são divididas em pequenos passos, o que torna o aprendizado individual e a assimilação

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dos conceitos condicionada. Na experiência da pesquisa vivenciada na dissertação, o ma-nual de instrução serviu como uma preparação para debates, estabelecendo uma base firme para o conteúdo a ser colocado em debate na sala de aula.

O tema da compreensão e da crise foi usado no manual para, num momento poste-rior ser colocado em debate. A proposta, então, é mostrar como a compreensão é uma resposta crítica para a crise em dois momentos – pelo manual e por meio dos debates.

É importante frisar que não há respostas corretas para o manual, uma vez que este não é uma avaliação. A construção do conhecimento de cada aluno ao preencher o manual também é individual na diferença de suas respostas, e isto também deve ser valorizado pelo professor de filosofia ao retornar com o material didático num segundo momento, seja por meio de um debate ou por uma aula expositiva que aprofunde o tema.

III – COMO uSAR O MAtERIAL EM SALA?

O material é distribuído de forma individual, e as instruções já seguem no mesmo. Não é necessário comunicação com o professor ou colega. A pesquisa se dirigiu a alunos de adminis-tração, propondo questões éticas e políticas no cenário das organizações. Entretanto, o modelo é aplicável a alunos do ensino médio e outras áreas como engenharia, psicologia, etc.

IV – ObJEtIVO GERAL

1. Fornecer aos estudantes, base conceitual da autora Hannah Arendt, partindo dos conceitos de crise e compreensão.

V – ObJEtIVOS ESPECÍFICOS:

1. Entender os conceitos de crise e os três conceitos que definem a resposta crítica a esta.2. Buscar um caminho próprio para apontar o papel da reflexão a tradição e ação na crise.3. Relacionar esses três conceitos com o exercício de compreensão.4. Reconhecer a diversidade da crise e a necessidade de se estar em diálogo com esta

de modo crítico em seus diversos espaços.5. Defender sua visão num debate de modo crítico, e, especificamente, sobre o tema

da crise em Hannah Arendt, sem buscar um caminho de outrem, mas, sem se per-der do esquema conceitual de Arendt. Ser capaz de defender sua apropriação da autora e relacioná-la com sua opinião a respeito do debate65

65 Sugere-se que o debate seja temático, dividindo-se grupos e representantes e a partir dessa divisão se reserve momentos para que os outros participantes, por meio do falante, ou em momentos especiais, venham a dar suas contribuições. Há modelos de debates competitivos, debates abertos, e esses podem ser aproveitados de acordo com o perfil da turma.

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MANuAL dE INStRuÇÃO PROGRAMAdA – A CRISE NA EduCAÇÃO EM HANNAH ARENdt

INSTRUÇõES PARA O MANUAL:1. Esse manual não é uma prova, é um instrumento de aprendizado, por isto é escrito

de maneira incomum.2. Cada página é formada por quadros.3. Cada quadro apresenta uma informação solicitando, geralmente, uma ou várias

respostas.4. Leia cada quadro cuidadosamente, cobrindo a coluna da esquerda de alguma forma.5. Não havendo pergunta, leia atentamente o texto e siga em frente para o próximo

quadro.6. Caso houver pergunta, escreva-a no lugar correspondente, ou marque a letra, con-

forme for o caso. 7. Após ter escrito sua resposta, você poderá tirar o anteparo para conferir a resposta.8. As respostas que não corresponderem ao gabarito serão problematizadas ao final do

exercício.9. Há palavras que estão entre colchetes. São palavras-chave. Uma sugestão é montar um

esquema mental com essas palavras para guiar seu aprendizado ao longo do manual.10. Neste programa, o aprendizado é individual. Portanto, o modo como a lógica do

texto se apresenta pode ganhar sentido gradativamente, ou rapidamente se apresen-tar um entendimento do texto.

11. Termine o manual no tempo que precisar.

Leia atentamente o texto abaixo:

Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas, mas, de qualquer modo julgamentos diretos. Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão (ARENDT, 2011 p.223)66.

[Agora que você leu o texto não deve voltar para ele enquanto preenche o manual]

66 Hannah Arendt : Entre o passado e o futuro, Ed. Perspectiva. 2011 p. 223/ “A crise na educação”

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dilema MoralSegundo instituto de pesquisa, 80% dos funcionários assumiram que agi-riam de forma antiética em ambiente de trabalho, dependendo das condi-ções67. Se a corrupção ocorresse dentro da sua empresa de forma sistemáti-ca. Aos poucos, você percebe que o comportamento nos setores ao seu redor na empresa, é generalizado, e que há uma abertura para que seu proceder seja antiético.Ao saber que sua equipe está desmotivada, seu chefe oferece para a equipe benefícios com o objetivo de alcançarem metas mais rápido. Seus colegas saem na frente e já apresentam metas alcançadas ao chefe. Em resposta, você:

ir para 2.1 ( ) Aceita a propostair para 1.1 ( ) Não aceitair para 2.1 ( ) Preciso pensar mais a respeito

1.1

Não precisa responder

1.:O que é crise?

1.1 Para Hannah Arendt, a crise é a [Perda] das estruturas que dão base ao sujeito e [ruptura] daquilo que liga ele com a tradição. E assim, ele se perde do [passado] e do [futuro].

1.2

Crise

Futuro

1.2 A tradição é abandonada pela ______, pois vive-se, como diz Hannah Arendt entre um passado esquecido e um _____ incerto. Assim, a crise nos deixa [sem critérios] para compreender nosso tempo.

1.3

oportunidade

1.3 Para um olhar [compreensivo] desse momento, devemos aproveitar a crise como uma ___________ para a reflexão. De modo que, apesar de tirar as [bases] que sustentam as certezas do indivíduo, a crise mostra-se como um momento fértil para transformações.

1.4

reflexão novo

1.4 A [oportunidade] para _______ e surgimento do [novo] é um lado positivo da [crise], e para aproveitar esse lado é preciso dar a resposta exigida pela crise, ou seja, uma resposta crítica.

2.1:

críticas

crise

preconceituosa

2.: Quais as possíveis respostas à crise?

2.1 As respostas [preconceituosas] e as _____ são alternativas para se responder à ___________. A resposta __________ desperdiça a oportunidade deixada pela crise. A resposta crítica aproveita esta.

67 Cf. http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/pesquisa-revela-falta-de-etica-entre-funcionarios-no-pais

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Sim: ir para 2.3

Não: ir para 1.1

2.2 Entendeu o conceito de crise em Hannah Arendt?

2.3

Reflexão

tradição

crise

2.3[Compreensão] é o diálogo com a crise. Parte de uma __________ que resgata a _______ que foi esquecida pela _________

2.4

passado.

2.4 [Refletir] sobre a tradição, em diálogo com a crise é importante para tornar presente aquilo que ficou no __________.

3.1

Compreensão

Tradição

3: Como dar uma resposta crítica à crise?

3.1 A reflexão sobre a crise é uma resposta que parte do indivíduo ou do grupo. Assim, a ___________ é o diálogo interminável de um grupo, ou indivíduo. A busca de novas respostas são construídas pela presentificação da ____________, por meio de novas reflexões e o embate de diferentes ideias.

4.1

Crítica

refletir

debater

crise

4:Como estabelecer um diálogo com a crise?

4.1 A compreensão é o diálogo com a crise. E se estabelece pela resposta _________ à crise. Essa resposta parte de uma iniciativa do indivíduo, de não terceirizar suas respostas, ao ___________ sobre elas e também __________ com pessoas de diferentes ideias em busca de uma resposta para a _______.

4.2

tradição

reflexão

4.2 Na crise é preciso resgatar o diálogo com esta, para tornar o passado presente no contexto da crise pela ________. Portanto, pensar traz a possibilidade de um novo presente, e, assim, um novo início.

4.3

Oportunidade

Reflexão

4.3 Diferentes opiniões surgem numa crise. Para aproveitar a _________ para um novo início, e para _______ deixada pela crise deve se usar o espaço da política, onde há multiplicidade de discursos e diálogo.

5.

preconceituosa

oportunidade

5. As consequências das respostas à crise:

5.1 A resposta ___________ desperdiça a __________ dada pela crise, e apenas aguça os problemas deixados por ela.

5.2

(não precisa responder nada)

5.2 A reflexão está em diálogo com a tradição, movida pelo diálogo com a crise. O espaço da reflexão permite diferentes discursos e oportuniza novos inícios

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5.3

(Ação)

5.3 (____) é toda decisão, discurso, atitude, que é inaugural no âmbito humano. A (_____) propicia novas possibilidades de existir e se relacionar.

5.4

diálogo com a crise

oportunidade

preconceituosas

5.4 Por um lado, a compreensão é o_____________, que aproveita a________ para a reflexão deixada por esta. Por outro lado, a doutrinação ideológica produz respostas ______________, e aguça a crise.

6.1

reflexão

crítica

6. O que são respostas preconceituosas?

6.1 O preconceito é eximir-se do exercício da ________, ou seja, quando não há uma resposta _______para a crise.

7.1

doutrinação ideológica

debate

7: O que faz a doutrinação ideológica?

7.1: A _______________ terceiriza a resposta à crise com respostas prontas, não havendo espaço para _________ e multiplicidade de opiniões, prevalecendo, assim, um pensamento único.

8.1

pensar/refletir

crise

novas

tradição

8: o que produz um novo início

8.1 A resposta deve partir da autonomia de _______ a crise. A educação crítica propõe que a pessoa assuma sua responsabilidade de fazê-lo. Isso é positivo, pois numa ______, a resposta de cada um é importante por suas individualidades, buscando ______ respostas. Essas surgem do diálogo com a crise e a ______. Em suma, os outros.

8.2

Não precisa responder nada

O novo início oportunizado pela crise é visto por Arendt como o momento original e criativo desta. A [ação] é o que indica o novo início. Se teve dificuldade em compreender o conceito de ação, volte em 5.2 e 5.3

9.

letra b)

9. reconhece-se a crise de diferentes formas nas empresas. Como reagir a elas? a) de forma preconceituosa e de forma acrítica b) em diálogo com a crise c) de forma esclarecida e antiética

a)__(resposta)___________

b)_(resposta)___________

10: Volte ao dilema. Coloque-se no lugar do funcionário da empresa que está numa crise ética e moral. Qual seria o posicionamento, segundo Arendt, que aprofundaria a crise? E qual aproveitaria a oportunidade trazida por ela?

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PESquISA quALI-quANtItAtIVA (marque a opção desejada):

1. Agora que você terminou o manual, releia o trecho do texto de Arendt. A sua per-cepção a respeito do texto mudou? Se sim, quanto?(sim)(não)(não sei)-----------(muito)(pouco)

Obs.:_______________________________________________________________________________________________________________________________

2. Você teve dificuldade em alguma questão? Qual?_____________________________________________________________________________________________

3. Você acredita que esse manual pode ser melhorado? Em que aspecto?____________________________________________________________________________________________________________________________________

4. Você acredita que esse programa ajudou você a compreender o problema levantado por Arendt na discussão do tema da crise?____________________________________________________________________________________________________________________________________

5. O que você acha desse tipo de material numa aula de filosofia para futuros adminis-tradores?(útil)(inviável)Por quê?: ____________________________________________________________________________________________________________________________

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ANOtAÇõES SObRE A GAMIFICAÇÃO dA SALA dE AuLA

Gabriel Bezerra Neves – PPFEN / CEFET/RJStella de Oliveira Soares

INtROduÇÃO

O modelo educacional tradicional já é pouco condizente com as exigências de um mundo cada vez mais rápido e caótico em suas transformações. Ao partir da premissa de que a forma como inspiramos o aprendizado em sala de aula é tão determinante quanto o conteúdo que desejamos que seja alvo de reflexão, propomos o uso de elemen-tos estruturais existentes em jogos aplicados em atividades que não são consideradas lúdicas, por exemplo, as que tomam lugar sala de aula.

Interessa distinguir “aprendizado” de “ensino”, pois embora as lições escolares pos-sam ser oferecidas de forma igual a todos os estudantes, o que cada indivíduo apreende e instrumentaliza em sua própria vida é muito distinto. A gamificação, não sendo uma técnica objetiva, depende de elementos que sejam capazes de alcançar características tácitas do indivíduo, fazendo uso dessa subjetividade para que sua visão da atividade se torne algo motivador, portanto, em alinhamento com o que se pretende com o apren-dizado (NEVES, 2017).

Tornou-se uma tradição entendermos coisa divertidas como o oposto de coisas sé-rias, como uma regra que nos faz evitar características lúdicas em circunstâncias de alto valor estratégico por considerarmos como um risco, uma distração indesejada. No entanto, Huizinga (2007) esclarece que nossas atividades sempre se assemelham às regras de um jogo, o que implica que o jogo não é diretamente oposto à seriedade, sua existência assume a pré-condição de que o jogador está disposto e ansioso a seguir regras, tal qual um adulto que segue as instruções de um líder ou como um estudante determinado a aprender como algo funciona. Neste aspecto, a gamificação não se pro-põe a alterar os conteúdos a serem ensinados, mas sim a forma como se trata o ensino e o subsequente aprendizado disso. O apelo da gamificação de atividades que não são consideradas lúdicas é reforçada por McGonigal (2012), que parte da dicotomia jogos virtuais e mundo real para elaborar sobre a transposição dos fundamentos dos jogos para a resolução de demandas da realidade.

Gallo e Aspis (2009) descrevem o ensino de filosofia como oportunidade para que os estudantes entrem em contato de forma “ativa e criativa” com a formação de con-

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ceitos e a prática da filosofia. A gamificação em filosofia propõe ter um apelo para o máximo de grupos existentes em sala de aula, sem menosprezar a história e os conceitos filosóficos que legitimam a aula, mas também não sacrificando a oportunidade dos alunos exercerem a verdadeira aprendizagem filosófica, que só pode ocorrer quando é ativa, voluntária e espontânea, sendo também livre da obrigação do professor como figura que é capaz de ensinar com a certeza do aprendizado de seus estudantes. Sendo assim, apresentamos o manual de gamificação para o ensino de filosofia como um es-forço de inovação do modelo educacional, assim como para estímulo do aprendizado do conteúdo com uma relação próspera com as aspirações do estudante.

Material didático: Os sete passos para gamificação da aprendizagem

I. Faça conexões emocionais

O mito da caverna de Platão é uma lição sobre sabermos mais do ambiente do que sobre nós mesmos e ficarmos confortáveis com isso. O desconforto dos prisioneiros não está nas correntes, mas na ausência das mesmas. Gamificar a sua aula é, antes de tudo, investir na conexão entre a lição e as razões e emoções do estudante.

Para isso:

Estabeleça uma conexão direta entre a metáfora da caverna com uma situação fácil de ser reconhecida pelos estudantes.

Exemplo:

Filmes, revistinhas, livros e jogos conhecidos pela turma servem para facilitar a compreensão de uma nova ideia. Um bom caso disso é a revistinha Turma da Mônica, criado por Maurício de Souza, onde uma de suas histórias retrata a alegoria da caverna. Há também o filme chamado “Matrix”, das irmãs Wachowski.

Mostre esses exemplos para a turma e seguida peça que eles apontem outros exem-plos que eles conheçam que sirvam, independente da origem.

dica: Traga as suas lições para território que seja familiar e intenso para estudantes. Os exemplos que eles trouxerem trazem junto reforços sentimentais para a interpre-tar a alegoria da caverna.

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Reconheça a diferença entre “ensinar” e “aprender”

Apresentar aos estudantes o significado do mito, sua mensagem metafórica ou a visão política de Platão não é o suficiente se o que você ensina não puxar o interesse de aprender da turma. As lições do mito da caverna devem ser apresentadas como mais do que matérias para prova, mas também como ferramentas para a solução de problemas pessoais e, mais que isso, fontes de inspiração para o indivíduo a se sentir forte o bas-tante para se arriscar a encarar os desafios do mundo. Desta forma nos aproximamos de ensinamentos que reverberam com o desejo de aprender.

Para isso:

Trabalhe com simulações de situações diversas nas quais as turmas precisam incor-porar perspectivas alheias.

Exemplo:

Assuma o papel de antigo prisioneiro da caverna e fale sobre sua experiência de saída e retorno a caverna. Diga em seguida que seus antigos companheiros não lhe aceitam mais e, ainda mais grave, querem que você seja sentenciado a morte por gerar abalos gravíssimos.

Cabe então a turma fazer o julgamento, formando uma equipe de defesa e acusa-ção, assim como juiz, testemunha e quaisquer outros papéis necessários a esse evento. Lembre-se que os prisioneiros da caverna também devem ser representados!

dica: Quebre a expectativa do estudante, conduza a turma a assumir responsabilida-des diversas que sejam relacionadas com os personagens e situações da alegoria. Um julgamento requer reflexão para formar um argumento vencedor, este conflito fará com que a turma estude sem perceber!

III. Apoie-se no fracasso

Implantar a gamificação na sua aula requer uma revisão do nosso julgamento sobre sucesso e fracasso. Nem todo estudante irá cooperar ou animar com as suas tentativas, assim como nem todos os seus planos serão compreendidos pelos estudantes. Você deve desde o primeiro dia estabelecer o convite para a turma se sentir à vontade com os erros e, mais que isso, entender que é apenas com a ajuda do fracasso que alcançamos níveis mais altos.

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Para isso:

A partir do mito da caverna do Platão, crie um banco de desafios. Este conjunto de desafios devem ser desafiadores a ponto de o estudante nutrir um desejo para solucioná--lo ao longo de tentativas e erros.

Exemplo:

Crie 10 questões complexas que servirão de desafios sobre o tema da caverna. Estes desafios devem ser apresentados a turma como um preparo para a conclusão da disci-plina, sendo trabalhado por grupos de 3 estudantes. Cada grupo deve “adotar” um dos desafios e investir tempo dentro e fora de sala para “nutrir” a reflexão, ou seja, trazer comparações das questões com o dia a dia deles.

dica: Em jogos, fracassar não é um termo devastador, ele é apenas parte de uma jor-nada. É nos fracassos, failures, game overs e “tente de novo” que o jogador encontra a oportunidade de conviver e aprender habilidades. E assim também deve ser em uma aula gamificada.

IV. A jornada é mais importante que o destino

O mito da caverna é mais do que uma história, ela é uma enorme fonte de materiais para a modelagem de novos conhecimentos. Cada estudante começa do zero, ouvindo o mito pela a primeira vez, as respostas dos colegas, provocações feitas por você a eles. Não é apenas uma questão de chegar ao fim da lição, mas crescer como pessoa nesta jornada. Com isso, ofereça a eles uma forma de marcar a distância que eles percorreram nesta longa estrada.

Para isso:

Ofereça a turma oportunidades para que eles possam demonstrar a você as novas experiências que eles obtiveram, seja pessoalmente, caixa de mensagens, e-mail, rede social ou o que você tiver a sua disposição.

Recompense seus estudantes com títulos que são conquistados quando se al-cança um determinado nível de conhecimento e domínio sobre o mito da caverna de Platão.

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Exemplo:

Estabeleça uma gradação de pontos que ilustra o progresso de conhecimento sobre o tema da alegoria da Caverna. Pode ser algo como:

0 pontos: Iniciante 1 a 3 pontos: Aprendiz 3 a 6 pontos: Intermediário7 a 9 pontos: Veterano10 pontos: Mestre

Após criar uma tabela semelhante, com pontuação e títulos a serem alcançados, gere pontuações para as atividades em sala, sejam estas atividades programadas ou não (recompense a iniciativa da turma).

dica: Seja equilibrado na recompensa de pontos, não é motivador quando ganhar pontos é muito ou pouco difícil. Experimente com diferentes valores e oportunida-des para potencializar o interesse da turma.

V. Vox Populi

Até aqui você fez alterações que partem da sua parte como professor, porém a ga-mificação na aula se intensifica quando consegue se tornar realidade uma das realidades preferidas do estudante (o jogador), onde tem voz na decisão sobre como enfrentar o desafio de aprender. Você como professor vai propor lições a serem aprendidas, os estu-dantes vão lhe propor como demonstrar esse conhecimento.

Para isso:

Ofereça aos estudantes a oportunidade de escolher como vão comprovar os seus aprendizados.

Prepare diferentes períodos nos quais você possa negociar com a turma os métodos decididos, assim como separe a janela de tempo para as devidas apresentações.

Exemplo:

Abra para que os estudantes escolham suas próprias formas de demonstrarem co-nhecimento. Prepare-se para receber propostas como:

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Trabalho escritoVídeos editadosApresentação na frente da turmaInterpretações teatrais / musicaisQualquer coisa que uma mente criativa possa imaginar

Uma vez que o estudante escolha uma forma de apresentar, lembre-o que é um compromisso assumido, mas ajude nas ocasionais dificuldades que eles possam vir a ter.

dica: Oferecer a liberdade para escolher uma forma de trabalhar não deve ser con-fundido como facilitar o caminho.

VI. Incentive Conexões

Ensinamos na alegoria da caverna que o homem liberto é morto pelo grupo que não o entendeu. Portanto, neste momento deve entrar em ação um esforço para os estudantes exercitarem o aprendizado do trabalho em grupo, reconhecendo e sendo reconhecido como elementos importantes do grupo, mas ao mesmo tempo livres e independentes para sobreviver conflitos.

Para isso:

Crie uma rede de troca de habilidades em sua sala, que ao mesmo tempo fa-cilite a criação de grupos, assim como valorize as habilidades individuais de seus estudantes.

Permitir que um mesmo grupo fique junto permanentemente, mas não deixe de incentivar que os estudantes se arrisquem em novas e diferentes associações.

Exemplo:

Crie um espaço no quadro de avisos da sala (ou na internet) para que seus estudan-tes possam por anúncios sobre suas habilidades, assim como propostas de trabalhos que necessitem habilidades específicos. Pode ser algo assim:

[PROCURANDO] Pessoas que gostem de ficção científica, saibam editar vídeo ou que ilustrem, para montar um vídeo animado sobre o mito da caverna em cenário futurista.

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dica: Com a internet é cada vez mais comuns cursos gratuitos online, aumentando em muito o repertório de habilidades dos estudantes. Abra oportunidades para que eles façam uso disso.

VII. Última Fase

Enfim o momento em que o homem chega a porta da caverna, seus olhos doendo, pernas bambas e a mente desejando voltar para o conforto da corrente. Seus estudantes se encontram em posição semelhante a esta, expostos a um método novo e desconhe-cido, mas sentindo que há algo nisso que vale a pena se esforçar. O último passo para a gamificação é demonstrar o quanto a turma ganhou ao longo de seus feitos.

Para isso:

Separe um período de duas semanas, no qual você aplicará a questão mais complexa de todas, aquela que requer todas as lições ensinadas trabalhando em conjunto.

O desafio, embora mais complexo, deve ser permitido repetidas tentativas em prol de se obter nota máxima.

Exemplo:

Anuncie que nas próximas duas semanas (as duas últimas do semestre) os estudan-tes devem concluir um desafio, sozinhos, que os recompensará com um ponto final, que os dá acesso ao título de mestre. O desafio, embora complexo, pois requer todo o conteúdo discutido ao longo do programa, pode ser repetido dentro das duas semanas até ser concluído positivamente.É o enfrentamento principal entre aquilo que a turma praticou, com a sua própria vontade de acertar.

O desafio em si deve ser complexo, mas alinhado com o que foi debatido em sala. Uma sugestão é que cada estudante proponha uma conexão, feita por ele mesmo, entre o mito da caverna com o que foi ensinado em outra disciplina. Outra possibilidade, a turma deve escolher uma situação fora de sala e investigar as semelhanças da mesma com a alegoria da caverna.

dica: A fase final é o momento de dar espaço ao estudante que crie seus próprios questionamentos, sem muita interferência da figura do professor. Você o preparou com conteúdo, mas apenas eles podem decidir questionar a partir deles.

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CONSIdERAÇõES FINAIS

Salas de aula não devem ser ambientes sem regras ou direção de um professor com seus planos de aula. A gamificação não opera na ideia de anarquia ou em uma rendição incondicional aos humores da turma, mas em alterar as estruturas tradicionais da es-cola. Nossos estudantes têm cada vez mais buscado significados maiores em seus feitos no mundo, as consequências de seus atos, e essa fome por não vem sendo saciada nos modelos que incentivam uma maior passividade em sala de aula.

A gamificação não possui forma fixa, não está presa ao formato de qualquer jogo específico, pois a forma da gamificação é inteiramente única, própria ao professor, a sua experiência e aos estudantes que formam a turma. Como ferramenta educacional, permite que a experiência do estudante interfira na sua relação com o ensino do profes-sor e que sua aprendizagem sirva ao estudante a partir de seus interesses e anseios (em oposição a algo padronizado e indistinto). A gamificação é, então, esta ferramenta que se compromete a algo subjetivo, uma série de sugestões que produzem resultados em cima das experiências individuais de cada professor, em cada região e em cada situação.

Portanto, a gamificação acaba por ser passível de ser apoiada por um manual, mas cabe ao próprio professor desejar utilizar suas experiências sobre o que lhe é lúdico e compartilhar esta visão com sua turma, agindo como um mediador para equilibrar os diferentes gostos em sua sala.

REFERÊNCIAS bIbLIOGRÁFICAS:

GALLO, S.; ASPIS, R. P. L. Ensinar Filosofia: um livro para professores. São Paulo: Atta Mídia Educação, 2009.

HUIZINGA, J. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2007.

MAMEDE-NEVES, Maria Aparecida; CASTANHEIRA, Maurício. As coisas são coi-sas até que os jovens em rede provem o contrário. Rio de Janeiro: Arara Azul, 2008.

MCGONIGAL, J. Realidade em jogo: por que os games nos tornam melhores e como eles podem mudar o mundo. Rio de Janeiro: Best Seller, 2012.

NEVES, Gabriel Bezerra. Manual para gamificação do ensino de filosofia: usando o lúdico em sala de aula. 2017. 90 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Filosofia e Ensino) – Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rio de Janeiro, 2017.

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OutROS tEXtOS

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A tELEOLOGIA dA NAtuREZA EM KANt – PARtE 1A INSOCIÁVEL SOCIAbILIdAdE68

Thomaz Estrella de Bettencourt – PPFEN / CEFET/RJ

I - INtROduÇÃO:

O objetivo deste estudo é investigar a formulação kantiana acerca de um discurso sobre o sentido necessário da história (Weltgeschichte). Com este intuito, seguiremos a ordem dos argumentos apresentados por Kant em Ideia de uma História Universal de um Ponto de vista Cosmopolita (a partir de agora abreviado por IHu) - texto em que o autor aborda diretamente a questão. Todavia, não nos restringiremos ao escrito, visto que o tema aparece em outras obras cuja importância não deve ser subestimada. Ignorá--las, mais do que empobrecer nossa visão, seria não atentar para a representatividade desta Ideia dentro do sistema Kantiano, isto é, ignorar-se-ia a real dimensão concedida pelo autor à questão. Sempre que oportuno, apresentarei novos escritos em que Kant reformula ou estende sua análise, ou mesmo, quando apenas procura descrevê-la por novo ângulo.

O que investigarei será a proposta kantiana acerca da possibilidade de se pensar a natureza enquanto um sistema teleológico e qual o papel e a importância do homem dentro deste jogo. Em outras palavras, se seria possível empreender uma tentativa filo-sófica de elaborar a história universal do mundo segundo um plano oculto da natureza para estabelecer uma sociedade regulada por uma constituição civil perfeita, interna e externamente, que promovesse a perfeita união civil da espécie humana num Estado cosmopolita, em que a natureza pudesse alcançar o seu fim, a saber, o desenvolvimento completo de todas as suas disposições.

Veremos, na primeira pare desse artigo, como Kant fundamenta sua busca pelo fio condutor da história do homem e, consequentemente, do mundo. O movimento se-guinte será analisar a possibilidade de se pensar os antagonismos presentes na natureza através de uma relação de oposição real e não lógica, isto é, uma oposição cujo resul-tado não seja nulo. Com base nessa concepção, examinaremos o que seria a noção de insociável sociabilidade para Kant e qual o seu papel para o desenvolvimento da espécie humana.

68 Este texto foi elaborado inicialmente como trabalho de conclusão de graduação em filosofia pela PUC-Rio, em 2005. A versão original foi revisada e dividida em duas partes para esta publicação.

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II - O FIO CONdutOR dA HIStÓRIA dO MuNdO

Para compreender o ponto defendido por Kant devemos seguir seus argumentos na Ideia de uma História Universal de um Ponto de vista Cosmopolita. A Primeira Pro-posição — “Todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a um dia se desenvolver completamente e conforme um fim” (KANT, 2003, p. 5) ― é confirmada, argumenta o filósofo, tanto pela observação externa quanto pela interna (ou anatô-mica), isto é, não há nenhuma disposição natural que não deva ou não possa atingir seu fim. Neste sentido, a ideia de uma teleologia da natureza é imprescindível para pensarmos a possibilidade do desenvolvimento da razão humana. Contradizê-la impli-caria em defender que a natureza não é regulada por leis e não tem uma finalidade. A inexistência de um fio condutor para direcionar a razão acarretaria a impossibilidade de determinar seguramente o seu desenvolvimento.

A vida de um homem é demasiadamente curta para que ele possa desenvolver in-teiramente todas as suas disposições naturais de forma a compreender e fazer uso ple-no delas. Com isso, no homem, “(...) aquelas disposições naturais que estão voltadas para ouso de sua razão devem desenvolver-se completamente apenas na espécie e não no indivíduo” (KANT, 2003, p. 5). Segundo Kant, a razão se desenvolve no sentido de ampliar o poder e o alcance das forças humanas para além do instinto natural e não reconhece nenhum limite para o seu projeto. Neste empreendimento, a razão não recorre apenas ao instinto, ela promove tentativas, exercícios e ensinamentos para se desenvolver (progredir), aos poucos, de um grau de inteligência a outro, valendo-se das disposições naturais do homem que contribuem para esse movimento. Como temos um curto tempo de vida, conclui-se, são exigidas inúmeras gerações que transmitam seus conhecimentos umas às outras. O processo é necessário para que a espécie alcance o grau de desenvolvimento que é completamente adequado ao propósito da natureza, isto é, no qual o homem possa fazer pleno uso de suas disposições naturais. Afirmar o contrário, tratar as disposições naturais como inúteis ou sem finalidade, seria abolir todos os princípios práticos, e com isso a própria natureza, pois, sustentar-se-ia que os homens enquanto parte dela podem não seguir suas leis, o que é evidentemente contraditório.

Kant ressalta que “A natureza quis que o homem tirasse inteiramente de si tudo que ultrapassa a ordenação mecânica de sua existência animal e que não participasse de nenhuma felicidade ou perfeição senão daquela que ele proporciona a si mesmo, livre do instinto, por meio da própria razão” (KANT, 2003, p. 6). A natureza concedeu a razão ao homem e a liberdade da vontade que nela se funda, como a natureza não faz nada verdadeiramente desnecessário ou sem um propósito, cabe ao homem desenvolver

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a razão e as suas habilidades da máxima rudeza à máxima destreza e à perfeição interna do modo de pensar. Contudo, ele deve fazer tudo através do próprio trabalho, de sua criação, com as disposições que a natureza lhe concedeu. Entende-se que, se a natureza dotou o homem de razão, isso não seria um sinal para que ele se guiasse apenas pelo instinto ou que fosse ensinado pelo conhecimento inato.

Ao fim deste processo, o homem deve ter o mérito exclusivo do que alcançou, como se fosse grato somente a si mesmo e como se a felicidade obtida apontasse mais para a autoestima racional do que para o bem-estar ―“parece que a natureza não se preocupa com que ele (o homem) viva bem, mas, ao contrário, com que ele trabalhe de modo a tornar-se digno, por sua conduta, da vida e do bem-estar” (KANT, 2003, p. 6). Esta-belecer-se-ia, então, uma crítica à natureza: se sua verdadeira finalidade é a felicidade do ser, o seu comportamento e suas ações deveriam ser regidos pelo seu instinto, que parece mais adequado para esta tarefa, e não por sua razão que submete a vontade. A ex-periência mostra que quanto mais cultivamos a razão, mais nos afastamos da verdadeira satisfação. O homem que exercita e desenvolve essa faculdade percebe, forçosamente, que seu empreendimento não é direcionado à felicidade e muitas vezes inveja aqueles que não percorreram este caminho e que relegam ao instinto natural o governo de seus atos. É necessário admitir que à razão não compete promover a felicidade, entretanto, assim o é também que à razão cabe uma intenção mais digna da existência, à qual se subordina preponderantemente a intenção individual.69

Todavia, parece estranho que gerações passadas tenham ingressado neste empreendi-mento em nome das gerações futuras, sem poder desfrutar completamente, ou mesmo abdicando da felicidade, quer dizer, que indivíduos de inclinação egoísta contribuam para uma realização que não se dará no seu tempo de vida, e mais, que exigirá deles um grande esforço. No entanto, enquanto dotada de razão, mesmo sendo todos os seres desta classe mortais, a espécie é imortal e deve, necessariamente, atingir a plenitude do desenvolvimento de suas disposições. Então como o homem, mesmo a contragosto, serve a este propósito da natureza? Ou melhor, como a natureza, sem ferir a autonomia humana, leva a cabo o seu projeto? Kant responde: “O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo das mes-mas na sociedade, na medida que ele se torna ao fim à causa de uma ordem regulada por

69 Posto que a razão não seja a mais indicada para comandar a vontade no que diz respeito à busca pela felicidade, mas constitui uma faculdade prática que regula a vontade, e concordando que os demais dons e faculdades a natureza repartiu com precisão, é coerente acreditar que à razão compete produzir uma vontade boa em si mesma. Essa vontade há de ser o bem supremo e a condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração à felicidade. A natureza, contudo, não contraria sua finalidade, pois, mesmo que inclinações tendam para outro fim, a razão determina a intenção fundadora da boa vontade e somente ao alcançá-la conforma-se a satisfação à sua própria índole. (Cf. KANT. Fundamentação da Metafísica dos Costumes).

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leis desta sociedade” (KANT, 2003, p. 8). O antagonismo relativo à espécie humana é a insociável sociabilidade, isto é, a tendência dos homens de se organizarem em sociedade e o impulso dos mesmos de dissolverem-na.

III - A NOÇÃO dE GRANdEZA NEGAtIVA

Para entender o sentido do termo antagonismo na concepção kantiana é válido ter em mente o conceito de grandeza negativa apresentado no Ensaio para introduzir a noção de grandezas negativas em filosofia. No texto, é estabelecida uma distinção entre oposição lógica e oposição real como alternativa à monadologia, ― encontra-se aqui o início do que resultará posteriormente na crítica ao intelectualismo leibniziano. De acordo com a doutrina leibniziana das substâncias, as mônadas são substâncias simples sem partes, isto é, não são extensas à maneira dos átomos. Elas são indivíduos que não se distinguem entre si pelas aparências, mas pela representação e pelo grau de re-presentação. “As mônadas “não tem janelas”; são em si mesmas, universos, expressões diferentes de uma mesma realidade total. Sua diferença é a diferença de representação que cada uma tem do universo” (MORA, 2001, p. 1713), análoga às diferenças entre as figuras geométricas, que podem ser relacionadas por uma equação ― uma pode ser convertida na outra mediante uma regra determinada. Ainda que, enquanto ser existente, a substância seja atividade, ação, o seu agir é entendido como um aumento do grau de perfeição de sua percepção ou, de acordo com Giannotti, no que respeita as mônadas, “ação nada mais é do que o esmiuçar dos predicados atribuídos a uma substância, previamente definida de um ponto de vista lógico” (GIANNOTTI, 1979, p. 32). Em sentido rigoroso, de um ponto de vista metafísico, nenhuma substancia age sobre outra ou sofre a ação de outra.

Todavia, de acordo com a regra de identidade, Kant concebe que uma consequência deriva de um princípio que passa somente a explicitar o que já contém. Como então pensar uma oposição que não seja pelo princípio da contradição, cujo resultado não seja absolutamente nada? Através da introdução da noção de grandezas negativas na filosofia, não no sentido lógico - que poderia nos levar a crer que são negações de gran-dezas -, mas como “algo em si mesmo verdadeiramente positivo, algo que apenas se opõe a outra coisa” (KANT, 2005, p. 56). Uma oposição é caracterizada pela supressão por um daquilo que é posto por outro. Por uma oposição lógica é estabelecida uma contradição, enquanto por uma oposição real não. Quando afirmamos e negamos algo ao mesmo tempo de uma única e mesma coisa, a consequência é absolutamente nada, como determinado pelo princípio da não-contradição. Estamos diante então de uma oposição lógica. Entretanto, quando dois predicados de uma mesma coisa são opostos

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não pelo princípio da contradição, aqui nos referimos a uma oposição real. A diferença é que pela segunda, apesar de também ser suprimido algo que é posto pelo outro, a consequência é algo (cogitabile).

A força motriz de um corpo que se dirige a uma região, bem como um es-forço igual do mesmo corpo na direção oposta, não se contradizem e, como predicados, são possíveis ao mesmo tempo num corpo. A consequência disso é o repouso, que é algo (representabile). Tem-se aí, contudo, uma verdadeira oposição, pois o que é posto por uma tendência, se ela atuasse isoladamente, é suprimido pela outra, e as duas tendências são predicados verdadeiros de uma e mesma coisa, que // lhe pertencem ao mesmo tempo. A consequência disso é também nada, porém num outro sentido que o da contradição (nihil privatium, repraesentabile). Doravante queremos nomear tal nada zero = 0, e sua significação é a mesma que a de uma negação (negatio), ausência [Mangel], carência [Abwesenheit] — termos de uso corrente entre filósofos —, apenas como uma determinação mais precisa. (...) Vê-se facilmente: esse zero é um nada relativo [verhätnissmässiges Nichts], apenas na medida em que não compareceu uma certa consequência, (...) no exemplo citado acima, um certo movimento; ao contrário, na supressão pela contradição, não há absolutamen-te nada. Por conseguinte, o nihil negativum não pode ser expresso por zero = 0, pois esse não possui contradição alguma. (KANT, 2005, p. 58).

O conceito de oposição real aparece na matemática representado pelos sinais + e –, mas isso não significa que, isoladamente e por si só, a subtração seja negativa, na me-dida em que os sinais servem apenas para estabelecer uma oposição, ou seja, se referem a uma relação que estabelecida pela reunião de duas grandezas suprimem-nas no todo ou em parte. Uma grandeza na matemática só é negativa em vista de outra quando é apenas possível reuni-las por uma oposição, de forma que não podemos falar uma grandeza absolutamente negativa. Como uma está em conflito com a outra, ambas não podem ser negativas, pois, nenhuma delas poria algo que pudesse ser suprimido pela outra. Desta forma, em toda oposição real os predicados têm de ser ambos positivos e, ainda, na sua conexão num mesmo sujeito, devem produzir consequências que se suprimam reciprocamente. Portanto, as coisas entre as quais se estabelece este tipo de oposição são positivas, quando consideradas por si mesmas fora desta relação. A negação, consequência de uma oposição real, é denominada por Kant de privação (privatio); en-tretanto, qualquer negação que não resulta deste gênero de repugnância é denominada ausência (defectus, absentia). Essa última não exige nenhum fundamento positivo e sim a ausência dele; a primeira, por outro lado, possui um fundamento de posição verda-deiro e um fundamento igual que lhe é oposto. Por esta análise, o repouso num corpo

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é somente a ausência, como negação do movimento por não haver força motriz, ou privação, quando há força motriz e a consequência, a saber, o movimento, é suprimido por uma força oposta.

Um exemplo tirado da filosofia em que aparece o conceito de grandeza negativa é a doutrina da alma. Por ela procuramos determinar se o desprazer é somente uma ausên-cia de prazer ou um algo que provoca sua privação, sendo em si mesmo positivo e que lhe é oposto em sentido real, e não apenas o contrário contraditório do prazer, podendo, em consequência, ser denominado como um prazer negativo. Mas para que este con-ceito tenha validade é preciso demonstrar que o desprazer não é uma simples ausência e sim uma sensação positiva. E ainda, que além de positiva se opõe realmente ao prazer. Kant argumenta que a ausência de prazer é algo permanente em seres limitados, visto que há sempre algum prazer possível de que não desfrutam. Além disso, a ausência de prazer não é um fundamento de um sentimento, pois quando bebemos água, por exemplo, po-demos sentir o prazer de matar a nossa sede, mas a ausência do prazer provocada pela não excitação do paladar não constitui um desprazer. Para mostrar que o desprazer se opõe realmente ao prazer, Kant serve-se do exemplo de uma mãe espartana que é comunicada de que seu filho combateu heroicamente por sua pátria. Ao receber a notícia, tem a alma locupletada por um sentimento de prazer, ao qual poder-se-ia atribuir a grandeza repre-sentada por 4a. Em seguida, ela descobre que seu filho teve uma morte honrada, o que imediatamente diminui o sentimento inicial de prazer. Se então atribuíssemos um valor (a) para o desprazer provocado pela segunda notícia, poderíamos assim estabelecer que o resultado final seria 4a – a = 3a. Ora, se o desprazer fosse apenas uma negação seu valor seria 0, o que subtraído da grandeza representativa do prazer inicial 4a não provocaria ne-nhuma mudança no prazer total, isto é, não mudaria o humor da mãe, pois 4a – 0 = 4a. Como nesta relação a grandeza referente ao desprazer é precedida pelo sinal de subtração, ela é considerada como negativa (KANT, 2005, p. 66-69).

IV - A INSOCIÁVEL SOCIAbILIdAdE

O Antagonismo a que Kant se refere na quarta proposição é o meio pelo qual a na-tureza se serve para levar a cabo todas as suas disposições naturais. Ele não diz respeito somente às disposições naturais da espécie humana, mas a todas presentes na natureza, contudo, estas têm sua causa de ordenação nas oposições reais presentes no homem e manejadas por ele:

Isso explica por sua posição [do Homem] como fim último da natureza, que o dota da capacidade transformar todas as coisas em meios de sua sobrevi-vência. Não só tudo é posto em função do homem, mas encontra nele sua

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determinação completa, de sorte que a própria natureza se serve de uma de suas características para alcançar o arredondamento de suas determinações. (GIANNOTTI, 1979, p. 32).

O antagonismo próprio à espécie humana, a insociável sociabilidade, é responsável por subordinar todas as outras oposições reais, sendo causa de uma ordenação regular da sociedade e do seu desenvolvimento no sentido de se chegar a uma constituição civil perfeita. O homem tende a associar-se, pois assim se sente mais como homem, pelo desenvolvimento de suas disposições naturais, diz Kant, mas também tem uma tendên-cia a se separar, visto que encontra em si uma qualidade isolável que o leva a fazer tudo em proveito próprio e, consequentemente, esperar oposição de todos os lados, como ele está disposto a fazer aos outros. A todo impulso de socialização é contraposto um impulso de in-socialização, contudo,

Convém sublinhar que não temos apenas duas forças contrárias atuando num mesmo plano e que poderiam se anular e confinar cada indivíduo em um imobilismo. O instinto de sociedade força o indivíduo a se associar com outro e, em contraparte, é o indivíduo como um todo racionalmente existente que domina suas tendências e as põe em função de seus interesses egoístas. De um lado, um simples vetor; de outro, uma atividade reflexionante e totalizante, que se opõe à tensão do instinto. (...) O caráter completo dessas resistências, defini-do pelo lugar que o homem ocupa na hierarquia da criação, provoca o movimento da cultura: cada procura tirar de si mesmo os talentos com os quais enfrentará a resistência alheia; trata, em consequência, de se aproveitar de toda forma de experiência, própria ou de um terceiro que lhe venha aumentar sua capacidade de agir. Este paulatino aperfeiçoamento das capacidades propicia o raciocínio e a emergência da vontade como razão prática. (GIANNOTTI, 1979, p. 33-32).

Em última análise, esta é motivação que desperta todas as forças do homem e o faz vencer a preguiça e concordar em se manter sob as regras da sociedade. A insociável socia-bilidade tem um papel fundamental na promoção do desenvolvimento da espécie huma-na, pois é ela, e não a razão, que leva o homem neste primeiro momento a dar então os primeiros verdadeiros passos que levarão da rudeza à cultura, que consiste propriamente no valor social do homem. Neste sentido, complementa Ricardo R. Terra no seu texto “Algumas Questões Sobre a Filosofia da História em Kant”: “A concorrência tem um resulta-do altamente positivo, salientado na metáfora da árvore isolada que cresce completamen-te torta e as árvores da floresta que, na concorrência pelas sombras e pelo ar, crescem retas e sadias” (KANT, 2005, p. 62). Kant considera que sem as qualidades da insociabilidade o homem não se organizaria na direção de seu fim enquanto natureza racional, pois sem as pretensões egoístas, sem a ganância, sem a vaidade que gera a inveja competitiva e sem

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o desejo sempre insatisfeito de ter e de dominar, viveria em perfeita concórdia, no conten-tamento e amor recíproco e consequentemente não se desenvolveria —

(...) sem eles [atributos da insociabilidade] todas as excelentes disposições na-turais da humanidade permaneceriam sem desenvolvimento num sono eter-no. O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe mais o que é melhor para a espécie: ela quer a discórdia. (KANT. 2003, p.9).

Enquanto o homem espera por uma vida fácil e prazerosa, a natureza o obriga a abandonar a indolência e a ociosidade para trabalhar e progredir, desenvolvendo suas disposições naturais à plenitude. As fontes da insociabilidade e de toda oposição são a origem de diversas dificuldades, problemas e males, mas, ao mesmo tempo, também são as responsáveis por um maior desenvolvimento das disposições naturais. Neste sen-tido, Kant considera que o contrato social é um acordo extorquido patologicamente, ou melhor, cuja origem provém de uma qualidade negativa.

O homem por meio de sua razão obtém para si a civilização, a cultura, mas apenas na imortalidade da espécie o homem realiza a plenitude de suas disposições naturais e progride no sentido de iluminar-se (aufklärung). Neste contexto, “aufklärung” sig-nifica iluminar-se, ou promover o esclarecimento, no sentido de seguir a empreitada do desenvolvimento das disposições naturais do homem, da razão, até chegar ao que Kant acredita ser o propósito da natureza, que é o pleno desenvolvimento e compreen-são destas disposições naturais. Esse processo deve, necessariamente, fundar um modo de pensar que possa transformar progressivamente as “toscas disposições naturais para o discernimento moral em princípios práticos determinados e assim transformar um acordo extorquido patologicamente para uma sociedade em um todo moral” (KANT, 2003, p. 9). É necessário ressaltar que o desenvolvimento pensado por Kant, difere da noção iluminista, segundo a qual o desenvolvimento alcança seu termo em sua própria época. Pela proposta kantiana, a razão não conhece nenhum limite para seus projetos e, por consequência, o processo teleológico se perpetua indefinidamente. No texto “Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento?”, Kant indica que nada mais é exigido para impulsionar o esclarecimento senão a liberdade do homem, uma vez que este movimento consiste aqui, segundo denominação própria, em uma saída da menor idade para a maior idade, isto é, da incapacidade de fazer uso do uso do seu entendimento sem a intervenção de outro indivíduo para a auto determinação pelo próprio entendimento — “Que porém um público se esclareça [aufkläre] a si mesmo é perfeitamente possível, mais do que isso, se lhe for dada a liberdade, é quase inevitável” (KANT, 2005, p. 65).

Entretanto, somente em uma sociedade que permita a máxima liberdade, marcada pelo antagonismo geral de seus membros, resguardada pela mais precisa determinação

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de seus limites, isto é, determinada sob leis exteriores de forma a coexistir com a liber-dade dos outros, é que ocorrerá o desenvolvimento completo das disposições da natu-reza. Neste sentido, a quinta e a sexta proposições do IHu indicam, respectivamente: “O maior problema para a espécie humana, cuja solução a natureza a obriga, é alcançar uma sociedade civil que administre universalmente o direito”, porém, “Este problema é, ao mesmo tempo, o mais difícil e o que será resolvido por último pela espécie humana” (KANT, 2003, pp. 10-11). Kant acredita que o antagonismo — a insociável sociabilidade —, de certa forma, se reproduz e regula o comportamento e as relações entre as nações. O mais alto propósito da natureza, isto é, o desenvolvimento total de suas disposições naturais, só pode ser alcançado em uma sociedade cuja constituição civil seja perfeita-mente justa, e essa última, por sua vez, deve ser “a mais elevada tarefa da natureza para a espécie humana” (KANT, 2003, p. 10).

O homem tende, por inclinação, a ultrapassar os limites de sua liberdade quando essa se encontra em oposição à liberdade de outro. Por conseguinte, uma união com base na liberdade selvagem não parece estabelecer algum fundamento seguro para o desenvolvimento de uma sociedade. Dito de outro modo, somente sob o cerco de uma união civil as inclinações do homem, que se não respeitassem nenhuma regra poderiam ter um caráter meramente negativo, desempenham um papel fundamental no desen-volvimento de suas disposições naturais ―

Toda cultura e toda arte que ornamentam a humanidade, a mais bela ordem social são frutos da insociabilidade, que por si mesma é obrigada a se discipli-nar e, assim, por meio de um artifício imposto, a desenvolver completamente os germes da natureza. (KANT, 2005, p. 11).

Mesmo que um povo não fosse levado pelas disputas, discordâncias e oposições in-ternas a submeter-se à regulamentação de leis, ele o seria frente à ameaça representada pelos povos vizinhos, a fim de proteger-se. Todavia, diz Kant na Paz Perpétua, a cons-tituição civil dos Estados deve ser republicana, uma vez que é a única perfeitamente adequada ao direito dos homens:

A constituição fundada em primeiro lugar, segundo os princípios da liberdade dos membros de uma sociedade (enquanto homens); em segundo lugar, em conformidade com os princípios da dependência de todos em relação a uma única legislação comum (enquanto súditos); e, em terceiro lugar, segundo a lei da igualdade dos membros (enquanto cidadãos) é a única que deriva da ideia do contrato originário, em que se deve fundar toda a legislação jurídica de um povo — é a constituição republicana. (KANT, 2004, p. 128).

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Mas porque Kant vaticina que este problema é o mais difícil e o que será resolvido por último pela espécie humana? O Homem é um animal e como tal, quando vive em sociedade, tem a necessidade de um senhor. A sua racionalidade o leva a concordar e até mesmo desejar uma lei que assegure a liberdade de todos, no entanto, sua inclinação animal o leva a querer extrapolar sua liberdade em detrimento da liberdade alheia.

V - CONSIdERAÇõES FINAIS

Para guiar o homem no sentido de estabelecer uma união civil perfeita, como é o propósito da natureza, ela se vale de um fio condutor. Kant propõe uma teleologia da Natureza, isto é, a natureza deve ter um plano, um fim último. Segundo o autor, “De um ponto de vista metafísico, qualquer que seja o conceito que se faça da liberdade da vontade70, as suas manifestações (Erscheinungen) ― as ações humanas —, como todo outro acontecimento natural, são determinadas por leis naturais universais” (KANT, 2003, p. 3). Quem se ocupa do relato dessas manifestações é a história, portanto, atra-vés da observação dos mecanismos e das constantes do exercício da liberdade da von-tade humana, deve procurar descobrir algum curso regular no que à primeira vista pareceria um conjunto desordenado de acontecimentos ― “o que se mostra confuso e irregular nos sujeitos individuais poderá ser reconhecido, no conjunto da espécie, como um desenvolvimento continuamente progressivo, embora lento, das suas disposições gerais” .(KANT, 2003, p. 3).

A natureza realiza o seu propósito na Humanidade na medida em que, absorvidos em suas ambições particulares e buscando se beneficiar, frequentemente em detrimento de outros, os homens seguem inadvertidamente ― como a um fio condutor ― o pro-pósito da natureza, mesmo sem conhecê-lo. Esta afirmação parece absurda ou impossí-vel. Como podem seguir um propósito, um plano, como se se direcionassem para um fim, as incoerentes e desconexas ações humanas? Ainda mais em vista da conduta hu-mana posta no cenário mundial? Contudo, não podemos pressupor nenhum propósito racional próprio nos homens e em seus jogos, mas devemos descobrir na natureza um propósito para este curso “absurdo” das coisas do homem ― “um propósito da natureza que possibilite todavia uma história segundo um determinado plano da natureza para criaturas que procedem sem um plano próprio” (KANT, 2003, p. 4).

70 A livre vontade dos homens influi em todas as suas ações, todavia, transfere-se a suposta imprevi-sibilidade de uma decisão individual para toda a espécie. Tem-se como aleatório o conjunto formado pela reunião de todas as ações humanas quando não é isso que podemos observar, exemplifica Kant, nas estatísticas anuais de grandes países, referentes a casamentos, nascimentos e mortes, que demonstram se-guir leis naturais constantes. Da mesma forma, as inconstantes variações atmosféricas, que apesar de não poderem ser determinadas previamente, não deixam de manter um fluxo dos fenômenos e das interações naturais em um curso uniforme e ininterrupto.

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A partir da noção de insociável sociabilidade, resta-nos ainda verificar como seria possível superar as dificuldades que se apresentam no caminho para a construção de uma sociedade regida por uma constituição civil perfeita. Kant espera que um historiador-filósofo possa des-crever uma história da humanidade segundo este ponto de vista, revelando o quanto nos apro-ximamos ou nos distanciamos do fim ultimo da espécie humana, a saber, da busca pela mais perfeita constituição política. Veremos, na segunda parte desse artigo, que a análise sobre curso da história do homem deve permitir identificar um acontecimento que sinalize a tendência moral da espécie humana e garanta a progressão para a melhor conformação social.

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A CRONOLOGIA dOS dIÁLOGOS PLAtôNICOS: uMA NOVA PERSPECtIVA Gabriel Cornelio Moura – PPFEN / CEFET/RJ

I - PLAToNIS oPERA

A importância de Platão para a humanidade tem sido demonstrada há muito tem-po, seja pelas suas contribuições a diversos campos do conhecimento, seja pelo seu próprio pensamento que nos foi legado através de séculos de análises e interpretações acerca de sua vasta obra. Como acontece com todos os grandes nomes da humanidade, a obra de Platão é alvo de intensos debates sobre as mais variadas esferas, sendo uma delas a querela acerca da cronologia dos diálogos platônicos.

Porém, antes de adentrar na altercação acerca da cronologia, cabe aqui fazer uma breve introdução sobre um assunto também de grande relevância para o entendimento da obra platônica. Existe um debate entre inúmeros autores sobre uma pretensa forma “correta” de ler e compreender os diálogos. Essa contenda apresenta duas interpretações: de um lado o que se chama de visão unitarista, de outro uma visão desenvolvimentista.

II – ENtRE uNItARIStA E dESENVOLVIMENtIStAS

Os adeptos da primeira visão, chamados unitaristas, entendem que os diálogos de Platão só podem ser compreendidos “dentro de uma ligação filosófica com as demais obras do autor […] [pressupondo] desde o primeiro instante, uma unidade espiritual que nelas se vai desentranhando gradualmente” (JAEGER, 2013, p. 602). Um grande expoente dessa visão é Schleiermacher71. Para ele, os primeiros diálogos apresentam as bases das discussões dos diálogos posteriores. Para o autor existe uma ordenação e uma sequência natural e necessária entre os diálogos para revelar “que as diversas questões apresentadas por Platão obedecem uma ordem lógica de desenvolvimento e exposição” (MATOSO, 2016, p. 82). Ordem essa que avança em direção a completa apresentação de um sistema esboçado desde o início.

A tese de Schleiermacher se tornou um marco nas interpretações da obra platôni-ca desde a antiguidade. Contudo, não se pode deixar de notar que a visão unitarista apresenta falhas estruturais de compreensão dos diálogos platônicos. A primeira delas é ver o diálogo como algo isolado de uma conjuntura de produção, ou seja, ver o autor

71 Principalmente sua obra: Introduction to the Dialogues of Plato. Translated by William Dobson. Cambridge, The University Press, 1836.

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Platão distante ou até mesmo estanque do cidadão ateniense que se relacionava com filósofos e políticos e tinha grande capacidade de reflexão. Outra crítica é a suposição de que Platão manteve uma linha de pensamento durante toda a sua vida, e de que seus primeiros escritos já continham um sistema filosófico fechado, esquecendo que Platão “não raramente parece se contradizer” (ROWE, 2011, p. 37). Há ainda a falta de referência a eventos históricos e políticos que ajudaram, de sobremaneira, Platão a escrever seus diálogos.

Assim, a visão unitarista se apresenta como simples ponto de início para compre-ender uma visão desenvolvimentista. Essa interpretação considera que Platão passou por diversas situações, internas e externas, que o ajudaram a moldar sua filosofia e que demonstram o desenvolvimento do pensamento do autor. Seguindo essa linha de inter-pretação, a organização dos diálogos serve para “identificar o posicionamento final de Platão acerca destes temas e os momentos em que uma tese é abandonada e substituída por outra” (MATOSO, 2016, p. 80). Essa organização necessária para a compreensão da obra de Platão é conseguida através da data de composição dos diálogos, legando à cronologia um papel fundamental para o entendimento de todo o Corpus Platonicus.

Contudo, a visão desenvolvimentista também suscita críticas. Em primeiro lugar, parece ser psicologicamente impossível que Platão inicie o abandono dos pressupostos socráticos nos diálogos da maturidade, mas continue a utilizar Sócrates como perso-nagem principal; uma segunda crítica se deve justamente à ordenação dos diálogos em três grupos herméticos, estipulando uma importância desmesurada à cronologia.

III – AS “FORMAS” CRONOLÓGICAS

Muitos estudiosos já se debruçaram sobre o tema, e continuam fazendo-o72. Grosso modo, uma visão mais tradicional73, para não dizer paradigmática, sobre a cronologia das obras de Platão tende a dividir os trabalhos em 3 grandes grupos: diálogos socrá-ticos ou da juventude, diálogos da maturidade e diálogos da senectude ou da velhice. Essa divisão apresenta os diálogos através de uma suposta chave interpretativa chamada Sócrates. Assim, os diálogos do grupo “da juventude” seriam as obras feitas sobre a ex-trema influência socrática, onde Platão apenas dava vazão aos ensinamentos do mestre. Os diálogos “da maturidade” apresentam um Platão mais autoral, mais dono de sua própria filosofia, porém ainda mantendo pequenos vínculos com o pensamento socrá-tico; segundo especialistas é nessa fase da vida que Platão cria os principais pressupostos

72 Cf. Field (1967), Stefanini (1932/35), Ross (1951), Crombie (1962/63), Guthrie (1975), Vlastos (1991), Vlastos (1994), Kahn (1996), Thesleff (1982), Brandwood (1990), Brandwood (1976) e Ledger (1989).73 Visão estabelecida pelos estudiosos do século XIX que praticamente se tornou uma unanimidade no século XX.

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de seu pensamento metafísico. E nos escritos “da velhice” Sócrates é apenas um figuran-te. Platão com controle sobre o que escreve inicia um processo de contestar sua própria filosofia. Vale ressaltar que há problemas sérios nessa ordenação dos diálogos, pois “a divisão em grupos é ela própria incerta e sujeita a controvérsias.” (ROWE, 2011, p. 37)

Contudo, para além dessa visão esquemática fechada, outras formas de definir a cronologia do Corpus Platonicus têm sido consideradas. Entre elas, as que mais se destacam, são: histórico-evolutiva; crítica literária; considerações filosóficas; eventos históricos e análise estilométrica. Apesar disso, ainda existem sérias divergências entre os estudiosos sobre a cronologia correta. Apresentaremos abaixo, em linhas gerais, as principais discussões que pretendem atingir uma “cronologia platônica perfeita”.

Karl Friedrich Hermann74 iniciou os estudos da corrente histórico-evolutiva. Nesta linha interpretativa, os acontecimentos da vida de Platão tiveram grande influência so-bre seus escritos. Assim, os primeiros diálogos teriam sido escritos com Sócrates ainda vivo. Por exemplo, o diálogo Protágoras “tem um tom tão otimista e alegre que é difícil acreditar que ele pode ter sido composto depois de uma catástrofe como a morte de Só-crates foi para Platão” (LONBORG, s.d., p. 146). Após o julgamento e a condenação de Sócrates, é sabido através de outros autores que Platão e alguns discípulos de Sócrates buscaram refúgio em Mégara. Hermann reconhece, então, traços de teorias megárias e eleatas no grupo de diálogos que formam o grupo intermediário, como Teeteto, Crátilo e Parmênides. E para o último período de vida de Platão, Hermann entende que o gru-po formado por República, Timeu e Leis expõe “um conjunto de teses que formam um sistema filosófico mais completo e compreensivo.” (MATOSO, 2016, p. 87)

Porém, a interpretação histórico-evolutiva considera que Platão deliberadamente modificou sua forma de escrever após incidentes ocorridos em sua vida. O exame mais detalhado dessa corrente de interpretação revela outro erro primordial: as virtudes tra-tadas nos diálogos, conhecidos como “socráticos”, ou seja, do período da juventude platônica, são consideradas como investigações éticas e colocam esses primeiros diálo-gos em uma fase puramente ética do pensamento de Platão. “A valentia, a prudência e a piedade são as virtudes examinadas nos diálogos menores e formam o objeto de cada uma dessas conversações” (JAEGER, 2013, p. 603), contudo, ao analisarmos o diálogo Protágoras e o Livro I da República, vemos claramente que o objetivo de Platão era traçar um paralelo entre cada virtude e a arte política. Dessa forma, reconhece-se que “tudo o que desde o primeiro instante ele tem em mente não é outra coisa senão o Estado.” (JAEGER, 2013, p. 605)

As considerações de caráter literário dos trabalhos platônicos são outra forma de tentar apresentar uma cronologia adequada. Porém, esta se mostra muito superficial,

74 HERMANN, K. F. geschichte und System der Platonischen Philosophie, I. Winter, Heidelberg. 1839.

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tratando os diálogos como textos fechados em si, sem relação com as demais obras. A criação de epítetos como “maturidade de estilo” e “poder artístico” não fornecem uma base muito sólida e confiável para distinções cronológicas, como afirma Guthrie: “a única característica literária que pode ser atribuída a Platão sem qualificação é a versa-tilidade.” (GUTHRIE, 1975, p. 205)

Considerar os temas filosóficos para definir uma cronologia correta é o que pre-tende essa corrente de interpretação. Os argumentos de Charles Kahn75 nessa esfera apresentam a circularidade a que esse tipo de método de pesquisa é propenso. As consi-derações sobre sequência filosófica dos diálogos “não podem ser usadas para estabelecer uma cronologia correta se essas afirmações dependerem de pressupostos cronológicos.” (HOWLAND, 1991, p. 205)

Já a utilização de eventos históricos encontra alguns obstáculos intransponíveis, como o fato de que ao citar um evento histórico em um diálogo, Platão pode estar distante do evento e apenas citá-lo para compor o texto, fazendo uma referência a um evento do passado, o que não implica que tal evento seja de sua geração. De outra for-ma, a proximidade temporal, caso exista, com o evento histórico mostra apenas quando Platão finalizou o texto. Sobre esse aspecto é importante ressaltar que alguns autores acreditam que Platão não seguia uma ordem cronológica para escrever alguns diálogos. Por exemplo: no Fedro, as formas de persuasão e sedução “derivam dos anos 380 [a.C.] [...] mas a crítica da escrita em prosa na última parte, e várias referências ao passar para a dialética, as formas, a cosmologia e a psicologia sugerem os últimos anos dos 370 [a.C.].” (THESLEFF, 1989, p. 19) Assim, Platão pode citar eventos próximos a ele ocorridos em duas décadas, o que abre a possibilidade para importantes divergências cronológicas.

Dentre os métodos mais utilizados atualmente a estilometria se apresenta como um campo bem vasto de estudos. A estilometria pretende, através da ocorrência de certos tipos de palavras, identificar estilos de escrita, criando grupos situados cronologicamen-te. Por exemplo, Constantin Ritter

mostrou por meio de estatísticas, que certas palavras e construções comuns ao primeiro período, apareciam cada vez mais raramente no segundo e desa-pareciam no terceiro, e como, por outro lado, palavras e construções que não se encontraram no primeiro período, apareceram de tempos em tempos no segundo e completamente no terceiro. (LONBORG, s.d., pp. 142-143)

75 KAHN, Charles. Plato and the Socratic Dialogues. The Philosophical Use of a Literary Form. Cambrid-ge: Cambridge University Press, 1996.

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Nesse sentido, Dittemberger76, ao analisar a expressão τί μήν77, nos fragmentos de Epicarmo e Sophron, concluiu que essa expressão era um coloquialismo de Siracusa. Portanto, a aparição dessa expressão nos diálogos comprova que estes só foram escrito após a primeira viagem de Platão à Siracusa, por volta de 388 a.C.. Assim, supostamen-te, diálogos como República, Fedro, Leis, Teeteto, Parmênides e Sofista já apresentariam uma datação aproximada. Nesse caso, críticos apontam para o fato de que Banquete e Timeu são comprovadamente dessa mesma época e não possuem a expressão τί μήν, ratificando as falhas nesse aspecto de interpretação.

Os estudiosos que utilizaram a estilometria para consolidar uma cronologia78 apre-sentam um consenso com relação aos últimos diálogos, contudo, a maneira que se apro-ximam dos supostos diálogos aporéticos, ou socráticos, essa concordância desaparece e dá lugar a uma verdadeira colcha de retalhos de interpretações. Considerando essas disparidades, é aceito atualmente que “a relação estilométrica entre os dois primeiros grupos de diálogos nunca ficou estabelecida de maneira precisa, sendo esta a principal limitação do método estilométrico.” (MATOSO, 2016, p. 99)

O método estilométrico repousa sobre uma suposta evolução de estilo. E um exemplo dessa suposta evolução está no uso do hiato79. Assim, Platão utiliza os hiatos nos diálogos socráticos, como no Fedro, mas evita em obras notadamente da velhice, ou seja, há uma evolução na escrita de Platão que sugere uma medida temporal para essa evolução. Nesse sentido, Janell afirma que Platão estava preo-cupado com o uso do hiato apenas nos seus últimos seis diálogos (Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias e Leis) nos quais, “[de acordo com] seu novo estilo de escrita isocrateano ele evitou cuidadosamente um certo hiato, ou seja, aqueles definidos como ‘censuráveis’” (JANELL, 1901, p. 272).

Dessa forma, para tirar conclusões sobre a cronologia dos diálogos seguindo a es-tilometria, “o investigador […] deve subscrever a hipótese geral da evolução estilística e é obrigado, além disso, a pressupor a existência de uma regra ou princípio específico suficiente para explicar essas diferenças” (HOWLAND, 1991, p.208). Contudo, acei-tar esses pressupostos significa desconsiderar que as mudanças estilísticas podem fazer parte de requisitos particulares do contexto onde estão inseridas. Assim, o uso da esti-

76 DITTEMBERGER, W. Spachliche Kriterien fur die Chronoloyie der platonischen Dialoge. Hermes, nº188.77 Traduzida por Sim, porque não!, ou, Sim, é claro!78 Cf. Blass (1874), Brandwood (1990), Campbell (1867), Dittemberger (1881), Guthrie (1975), Lutoslawski (1897), Ritter (1910).79 O hiato consiste na sucessão imediata de duas vogais em palavras separadas. Para evitar este tipo de sucessão, que constantemente surge na formação e inflexão das palavras, diversos recursos podem ser em-pregados: a crase, a elisão e a aphaeresis, além da escolha vocabular. Cf. SMYTH, H. W. greek grammar. Cambridge: Harvard University Press, 1920, p.18.

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lometria implica a subordinação da capacidade de entender o caráter e a complexidade de cada diálogo como uma conversa viva e incompleta, que se integraliza nas múltiplas conexões entre essas conversas e uma τέχνη (techné)80 calculada, semelhante à διαιρεσις (diairesis)81.

Ademais a todos esses métodos, outros autores ainda supõem outras possibilidades relevantes para interpretar uma suposta cronologia das obras platônicas. Um exemplo ilustrativo pode ser visto em Holger Thesleff. Ao considerar que a sociedade grega anti-ga não tinha a escrita como uma de suas principais preocupações e ocupações, Thesleff defende que Platão e seu círculo interno de amigos e alunos “sempre consideraram as discussões orais como uma parte mais essencial do filosofar do que a produção de tex-tos escritos.” (THESLEFF, 1989, p. 23) Assim, muitos diálogos escritos no tempo da Academia são, na verdade, transcrições feitas por amigos e alunos próximos das aulas ministradas por Platão. Outra tese do autor diz que esses trabalhos que procediam da Academia tinham dois públicos bem definidos, e que eles não devem

ser lidos como tratados filosóficos explícitos expondo a posição filosófica de Platão no momento da escrita, mas, na maioria dos casos, como dramas de prosa com uma função dupla: principalmente, como memorandos e exercícios intelectuais para o iniciado [tratado esotérico]; e, secundariamente, como in-trodução de tópicos acadêmicos e modos de pensamento para os não iniciados [protrépticos exotéricos] (THESLEFF, 1989, p. 23).

IV – uMA NOVA PERSPECtIVA CRONOLÓGICA

Dessa forma, diante da miríade de possíveis interpretações acerca da cronologia platô-nica, e de suas recorrentes refutações e críticas, entendemos que a organização cronológica dos diálogos platônicos é irrelevante para buscar a compreensão do pensamento e da filosofia de Platão. Estes se encontram acima de qualquer debate sobre cronologia para fazer sentido de ter relevância. Defendemos neste artigo o ponto de vista de Miller82 e Griswold83, que “contradizem claramente a visão padrão” (HOWLAND, 1991, p. 213), ao não fazer grandes distinções cronológicas entre os diálogos da juventude, da maturidade e da velhice. Tornando a Platonis Opera mais fluida e aberta.

80 Techné entendida no sentido de técnica, ou seja, um procedimento, ou conjunto de procedimentos, que têm como objetivo obter um determinado resultado.81 Diairesis é aqui apresentada como uma forma de classificação que serve para sistematizar conceitos e chegar a definições.82 MILLER, Mitchell. The Philosopher in Plato's Statesman. The Hague, 1980.83 GRISWOLD. Philosophy, Education, and Courage in Plato's Laches. Interpretation, nº14, 1986, pp.177-193.

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Concluímos, junto com Howland, que “enquanto insistimos em trazer distinções cronológicas para o estudo dos diálogos, os textos que confrontamos continuarão a re-fletir os compromissos de esquemas interpretativos extrínsecos” (HOWLAND, 1991, p. 214). Assim, não estaremos analisando Platão, e sim métodos analíticos estruturais que buscam encontrar padrões e normas para os textos platônicos. Pois Platão não é um filósofo “que trabalha o texto filosófico de uma forma convencional, tratadística, siste-mática” (FRANCO, 1997, p. 8), mas um filósofo que expõe seu pensamento através de diálogos exuberantes e vivos.

REFERÊNCIAS bIbLIOGRàFICAS

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ZARAtuStRA E O ESQUECIMENTo – A IMPORtANtE CONquIStA dA PLAStICIdAdE E dA FLuIdEZ PARA

O PENSAMENtOPatrícia Boeira de Souza – PPGFIL / UFRRJ

I – CONSIdERAÇõES INICIAIS

Esse trabalho percorrerá alguns dos discursos do Zaratustra84 em que a questão da solidão e da criação se inter-relacionam e tornam-se determinantes na compreensão da abundância de forças que atravessam Zaratustra ao longo do processo de ressig-nificação de si e do mundo. Há desassossego nessa travessia, mas Zaratustra torna-se dançarino, e nem mesmo o fado do pensamento mais abissal é impedimento para amar o destino(amor fati) - a “fórmula para a grandeza no homem” (NIETZSCHE, 2003, p.43). Dada a direção-geral, outro aspecto que emerge nesses discursos e que tornar-se-á um conceito elementar e indispensável nesse investimento é a capacidade do esqueci-mento. Intenciona-se discorrer sobre essa questão dada a importância atribuída por Nietzsche a ela no processo para a transformação das crises em possibilidade de criação, alertando a todos e a ninguém que aqueles que sabem esquecer, não ficam a consumir-se e a perder “presentes”.

Compreender então a dimensão psicológica que percorre a fina trama dos discursos do Zaratustra é um empreendimento árduo, mas que possibilita ver a coisa em seu limi-te; necessária àqueles que se arriscam na corda bamba do lançar-se além das convicções e empenham-se em desvelar enigmas, em não cultuar ídolos a reboque, uma vez que toda idealidade pode e precisa ser tocada a fim de que nos afastemos das venerações e não repitamos como fantoches e tagarelas a moralidade estanque erigida no Ocidente. Isso não significa dizer que o processo de ressignificação seja uma tarefa simples. En-contrar, conquistar o princípio autônomo do corpo, a eclosão de sentido, para então saltar, transmutar e vir a superar individual e historicamente tanto o pensamento meta-físico como o niilismo enquanto doença que assola e consome o destino do Ocidente é um exercício de liberdade. Esta foi uma das tarefas empreendida por Nietzsche: “fare-jar”, investigar acerca da ordenação moral do mundo, declinar e não sucumbir à lucidez oriunda de ter colocado sob suspeita todos os valores vigentes por considerar que nem tudo que nos contaram é tão absoluto, irremovível e intocável.

84 Discursos da primeira parte do Zaratustra: Das três metamorfoses; Das moscas da Feira; Do caminho do Criador. Discurso da segunda parte: Do superar a si mesmo.

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A tradição metafísica na compreensão do filósofo alemão esculpiu seus dogmas e grosseiramente rebaixou a vida terrena e corpórea, assim, diz-se que o sentido metafísi-co escondeu e ainda esconde a verdade sobre estarmos a sós no mundo, obscurecendo e dificultando o acesso ao real. Fato é que, esse estar a sós, essa solidão fustiga sim, angustia o homem, todavia, aquele que não aceita a finitude, a grandeza e a dure-za de encontrar-se a sós não pode ser dono de seu próprio destino. Nas palavras de Nietzsche: “a dor não serve de objeção contra a vida”(NIETZSCHE, 2003, p.11), e portanto, é preciso afirmar-se tanto no gozo como na dor de existir, é a partir daí que o sentido da terra se abre, e é possível encontrar-se com seu próprio sentido. No livro Ecce Homo, quando Nietzsche se refere a Zaratustra o classifica como um “ditirambo à solidão”(NIETZSCHE, 2003, p.39), de profundeza abismal, que caminhando como um dançarino se embrenha na radicalidade da solidão gozando-a e ao mesmo tempo suportando com altivez o alarido daqueles que vociferam contra tal experiência. Se Zaratustra traz consigo o grande anseio de superar o homem e a representação de mun-do dominante é porque vislumbra o super-homem, que ainda e sempre será humano e destinado à imanência e à errância..

II–AS MEtAMORFOSES dO ESPÍRItO

Se a degeneração fisiopsíquica do homem ocidental detectada por Nietzsche como um estado prejudicado de digestão – ou seja, sua assimilação psíquica (NIETZSCHE, 2003, p.43) dificultada dada toda hereditariedade dos gestos, dos bons costumes, das formas, da representação clássica, do sentimento de dívida com as divindades e com a moral estabelecida que esquadrinhou o sensualismo próprio do humano, assim como uma hereditariedade do sentido85 e da linguagem86 – é de fato um dos empecilhos que hipertrofiou sua mobilidade para os tempos vindouros, operar a transvaloração dos valores é um risco e também um salto do espírito, “necessários para a saúde de um indivíduo, um povo e uma cultura” (NIETZSCHE, 2003, p.11), pois “o que uma tal natureza não subjuga, ela sabe esquecer” (NIETZSCHE, 2003, p.10).

Para Nietzsche o que está em jogo nessa empreitada, sendo a existência um processo de criação de si mesmo, de “tornar-se”, de vir a ser, é a possibilidade de inovação, um sa-crifício em vista de mais poder, pois desgarrar-se do dado é jogar-se na indeterminação, lembrando que essa é uma zona propícia para a criação.

No discurso “Das três metamorfoses” que abre o livro Assim falou Zaratustra, a questão da hereditariedade aparece como aquilo que precisa ser superado a partir do

85 Para melhor compreensão dessa questão do sentido consultar Gilles Deleuze. Nietzsche e a filosofia, pg.3.86 Para melhor compreensão dessa questão sobre a linguagem consultar Nietzsche, verdade e Mentira no sentido extramoral, pg. 10.

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processo de transformação do espírito, em que os três símbolos, imagens (camelo, leão e criança) representam esse processo de transvaloração no qual a derradeira forma do espírito é representada pela imagem da criança.

A primeira metamorfose do espírito é representada pela imagem do camelo – o que suporta o peso dos valores, mas é justamente sua força que deseja esse peso. Trata-se de pôr a prova a sua própria força, assim, essa tal busca pelo fardo não é uma resigna-ção penitente e obediente, é uma experiência da potência, para testar sua força. Não a toa todas as perguntas-sujestões que aparecem no próprio discurso que expressam a radicalidade e a grandeza do espírito de suportação pois seria aquele que, por exemplo: “deixar luzir sua loucura para escarnecer sua sabedoria”, outro exemplo: “estar doente e mandar para casa os consoladores e fazer amizade com os surdos, que nunca ouvem o que queres?”, essa experiência não é humilhação e passividade, mas sim a dimensão trágica, ou melhor, o heroísmo trágico. Para melhor explicar isso, no livro Crepúsculo dos Ídolos no aforismo 24 do “Incursões de um extemporâneo” ele diz:

A valentia e liberdade de sentimento ante um inimigo poderoso, ante uma sublime adversidade, ante um problema que suscita horror – é esse estado vi-torioso que o artista trágico escolhe, que ele glorifica Diante da tragédia, o que há de guerreiro em nossa alma festeja suas saturnais; aquele que está habituado ao sofrimento, o homem heróico exalta a sua existência com a tragédia – apenas a ele o artista trágico oferece o trago desta dulcíssima crueldade. (NIETZSCHE, 2006, p.63)

No que diz respeito a isso que ele chama atenção como a busca pelo sofrimento ser uma experiência heroica fica mais claro ainda a partir da distinção entre os tipos de sofredores, no aforismo 370 de A gaia ciência Nietzsche diz o seguinte:

Existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de abundância de vida, que querem uma arte dionisíaca e também uma visão e compreensão trágica da vida – e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que buscam silêncio, quietude, mar liso. (NIETZSCHE, 2012, p.245)

Enfrentar os jugos, rumar para a solidão de seu próprio deserto e conquistá-lo, co-locar a prova a própria força, para que se possa alegrar-se dela.

Ainda assim, é preciso operar a transformação de camelo para leão, já que o leão é aquele que opera uma ruptura com o próprio dever, ele “quer conquistar, como presa, a sua liberdade e ser senhor TAMBÉM em seu próprio deserto” (NIETZSCHE, 2011 p.51). É então, nesse solitário deserto que o dragão de escamas surge, e essa é a imagem que Nietzsche utiliza como uma alegoria para os mandamentos, para os valores mile-

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nares, para o “tu deves” que o leão vai enfrentar. O dragão é aquele que diz afirmativa-mente que: “Todo valor já foi criado, e todo valor criado, é isso que sou. Em verdade não deve haver mais nenhum ‘eu quero’”. Mas o leão o desafia dizendo: “eu quero”, pois ele é já uma nova força, ou seja, depois de ter sido camelo e ter enfrentado, testado e aumentado sua força, ele quer a vida novamente, ele diz SIM. Contudo, e ainda, a mensagem de Zaratustra é a seguinte: “criar novos valores – isso o leão ainda não pode fazer; mas criar para si a liberdade (dar lugar) de novas criações – isso a pujança do leão pode fazer” (NIETZSCHE, 2011, p.52). Daí surge a possibilidade de tornar-se então senhor em seu “próprio deserto”.

A terceira metamorfose do espírito é a manifestação derradeira da transformação. A criança simboliza a inocência87 e o esquecimento.

Quando o leão confronta-se com aquilo que foi herdado, com a história que hipertrofia(isso não quer dizer negar a história, o passado, mas não deixar-se soterrar--se por eles), com o conhecimento que não vivifica ele limpa, amplia e oportuniza a “implantação de um novo hábito, um novo instinto” (NIETZSCHE, 2003, p.31) que faz nascer novos valores. O Leão representa uma atitude, um movimento heroico de “fazer-se livre”, uma façanha nobre, que oportuniza um novo começo: o devir criança, que, segundo Barrenechea:

Afasta-se da conservação e da rejeição. Aquele que vivencia o pathos da criança não está atrelado ao passado, não depende dos valores da tradição. Eis uma bela imagem, uma metáfora do criador, daquele que se abre ao novo, instaura avaliações inéditas. Na imagem da criança, Nietzsche valoriza o esquecimento como condição fundamental de criar. Só esquecendo o que “já foi”, podemos habitar o presente. A criança é presentificação, espontaneidade, valoriza o aqui e o agora (…) Ela glorifica o esquecimento, a afirmação do instante, a recusa dos pesos milenares de uma memória vinculada a culpas e torturas. A criança situa a memória em face do futuro e da criação. Lembrar, nesta perspectiva singular, liga-se não ao pagamento de dívidas, mas à leveza de reter apenas o necessário para gerar o novo.(BARRENECHEA, 2005, p.70)

Sendo assim, o devir-criança é manifestação ativa, qualidade superior das forças. Entretanto, é importante considerarmos que a imagem da criança não representa um télos mas sempre “um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer ‘sim’” (NIETZSCHE, 2011, p.53). E esse sa-grado sim, que é justamente a leveza da criança que não é facilmente contagiada pelos

87 “A inocência é o jogo da existência, da força e da vontade. A existência afirmada e apreciada, a força não separada, a vontade não desdobrada, está é a primeira aproximação da inocência.” (NIETZSCHE, F. vP, III, 457·496).

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deveres, e pelo “tu deves” é outra expressão máxima de sua filosofia trágica. A criança não está presa ao passado, não há nada que precise negar e nem mesmo conquistar mo-ralmente, não considera e não sabe conjugar o erro. Seu estar sendo é semelhante ao do animal, atua a-historicamente, se instala no presente e existe sem enfado, “é um limite, uma fronteira, um salto, um intervalo, um mistério” (LARROSA, 2009, p.97).

Neste sentido, a efígie da criança simboliza uma abertura para o desconhecido, e se o homem em seu constituir-se não é um constructo inabalável e nem apenas um sujeito que assujeita-se e que não possa rever convicções e crenças – mesmo que o devir reativo das forças seja mais imperativo e preponderante, ou seja, um sintoma que nasce, cresce e se expande na história e na cultura – ultrapassar, ir além no sentido de crescer e lutar por mais potência é uma atividade complexa, séria, pois há um grau de dificuldade em subtrair-se a constituição herdada (transmutar-se, saltar de camelo para leão e de leão para criança).

III– SOLIdÃO, ESquECIMENtO, CRIAÇÃO E SAÚdE.

A criança é inocência e esquecimento, e o esquecimento é uma capacidade ativa que desobstrui e não “uma força inerte” (NIETZSCHE, 2010, p.45) adverte Nietzsche em sua segunda dissertação da genealogia da Moral. Assim, se essa é uma disposição do corpo para fluidez e plasticidade no pensamento o exercício genealógico de reflexão a cerca daquilo que se petrificou no âmbito dos valores é necessário, rigoroso e vigoroso, pois oportuniza arejar a memória e a consciência que ao longo do processo histórico se agigantaram. Para o filósofo alemão, esse é o caminho para cito: “uma nova saúde, uma saúde mais forte, mais afinada, mais tenaz, mais ousada, mais divertida do que todas as saúdes conseguiram até agora” (NIETZSCHE, 2012, p.258).

Assim, para que a existência possa vir a ser mais produtiva e tornar-se um afazer de grande estilo a relação memória e esquecimento precisa ser harmoniosa, ou ter em vistas a fluidez. Mesmo que Nietzsche problematize esse agigantamento da memória como um fardo que pode vir a imobilizar o pensamento, ambas assumem importância real na constituição de sentido, de um sentido mais ativo e feliz, para um bom funcio-namento do corpo.

Dito isso, o projeto de transvaloração e de elevação do homem a um território subjetivo mais ativo, a uma fisiologia mais vigorosa e afirmativa, a uma memória social com mais fluididade e a uma história que vivifique é uma justificativa do empreendi-mento crítico de Nietzsche, mas esse processo de transmutações e ressignificação, esse ir além não significa também um abandona à míngua as memórias, os feitos, o dado, nem sequer há um fundo que intenciona produzir subjetividades líquidas e capitalísticas.

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Zaratustra, no discurso Do superar a si mesmo, expressa-se falando: “ainda prefiro o meu ocaso a renunciar a essa única coisa; e, em verdade, onde há ocaso e cair de folhas, sim, é ali que a vida se sacrifica – pelo poder” (NIETZSCHE, 2011, p.146), sendo im-portante dar seguimento, encaminhar-se a outros encontros, sem maldizer a existência. Assim, questionar sob que condições e circunstancias se erigiram determinados valores como supremos é uma tarefa, um empreendimento que não se pode renunciar. Minar o excesso de confiança na moral é resistir a um resignar-se, é também experiência de so-lidão, sentir cansaço, ver a altivez dobrar-se, a coragem ranger os dentes e gritar: Estou só (NIETZSCHE, F. pg.90) e ainda assim seguir a travessia experienciando a existência tragicamente, sem exilar-se. Essa zona de indeterminação, de susto, de ruptura, que é a experiência da solidão, oportuniza o salto, a força produtiva para autocriação e liberdade. É dar uma nova imagem para o pensamento.

IV – CONSIdERAÇõES FINAIS

Por fim, angariar uma melhor digestão fisiopsíquica – para evitar a acumulação, o excesso, o “entupimento” das vias do pensamento-corpo (fisiologia nietzschiana, aspectos fisiopsíquicos) e facilitar a fluidez do movimento, do pensamento; ter linhas de fuga para que a memória não seja apenas um reservatório de formas e modos de se ser que impossibilitam a espontaneidade – é não render-se a míngua dos estados doentios e reativos, é constantemente estar atento, ser malabarista e buscar caminhos para um “plus de potência”, por uma saúde alegre e audaz, por uma memória ativa e fluida, que retorne, mas que não embote. “A vantagem de uma memória ruim é poder fruir as mesmas coisas boas várias vezes pela primeira vez” (NIETZSCHE, 2015, p.250).

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OS CAMINHOS dA CIÊNCIA:uMA EduCAÇÃO REFLEXIVA A SERVIÇO dE uM

NOVO AGIR AMbIENtALAline Guimarães Monteiro Trigo – CEFET/RJ

José Aires Trigo – UNESAÚrsula Gomes Rosa Maruyama – CEFET/RJ

I - INtROduÇÃO

O conceito de “ciência” está associado a questões geográficas e temporais. As percepções acerca do que deve ou não ser considerado como científico continuam divididas, mas um elemento está subjacente em qualquer ótica, a curiosidade natural dos seres humanos. Pode-mos também entender que essa curiosidade é a vontade de conhecer, construindo categorias de pensamento, com o intuito de “ler o mundo e transformá-lo” (FREIRE, 2004, p. 85).

Não se devem construir categorias de pensamento como se elas existissem a priori, independentemente do sujeito que conhece. Ao conhecer, o sujeito do conhecimento reconstrói o que conhece. No entanto, só é possível levar esse intento a cabo, quando se deseja, quando se quer e quando nos envolvemos profundamente com o que busca-mos. Por isso, esta curiosidade pode dar origem também a outros caminhos que não os científicos, tais como o mítico e o religioso. As distinções entre conhecimento científico e conhecimento vulgar, e entre natureza e pessoa são pontos centrais da ciência moder-na, a qual questiona sistematicamente as evidências da experiência imediata. Apesar de não estarem pautados em critérios rígidos e sistemáticos, os mesmos têm sua validade histórica e todos os caminhos citados são uma busca por respostas às curiosidades hu-manas. Mas a busca por respostas à curiosidade é apenas o início de uma jornada pelo conhecimento e que tende a seguir pela identificação de um problema e a percepção do caminho a seguir. O positivismo e o estruturalismo demarcam tal postura e, à som-bra das ciências naturais, entendem ciência como descoberta das relações necessárias à construção do conhecimento (LEVI-STRAUSS, 1977).

Partindo do ponto de vista de que a ciência tem como proposta descobrir es-truturas, dadas às diversidades próprias de cada indivíduo, apoiamo-nos na ótica de Descartes, de que o bom senso é o mesmo que razão, e que este bom senso é o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, sendo essa habilidade igual em todos os Homens, pois, “a diversidade de nossas opiniões não se deve a uns serem mais racionais que os outros, mas apenas a que conduzimos nossos pensa-

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mentos por vias diversas e não consideramos as mesmas coisas.” (DESCARTES, 2006, p.37).

Com base nessas conjecturas, um indivíduo que queira chegar à verdade, tem de procurar em si próprio, pois, para o mesmo autor, a dúvida deve ser cultivada como for-ma de estar em constante questionamento em relação às próprias certezas, até encontrar algo indubitável e evidente. Para tanto, a razão tem dois aspectos fundamentais no mé-todo cartesiano; a primeira seria a intuição intelectual, ou as ideias inatas e a segunda seria o poder de raciocinar e construir cadeias de deduções seguidas de demonstrações.

Para trazer maior rigidez na busca pela verdade, Descartes criou “as regras do méto-do”, a saber: A Regra da evidência que consiste em só considerar algo como verdadeiro se não houver nenhuma consideração em contrário; a Regra da divisão, que argumen-ta que o mais difícil deve ser separado em parcelas pequenas para se tornar mais fácil de conhecer; a Regra da síntese que alega que devemos começar por conhecer as coisas mais simples e fáceis e ir gradualmente até conhecer as mais difíceis e, finalmente, a Regra da enumeração a qual apresenta a necessidade de se fazer uma revisão geral para ter a certeza que nada foi omitido.

De forma geral, o método científico busca quantificar e delimitar, progressivamen-te, o grau de complexidade do seu objeto de forma a dividir e classificar, com vistas a “desocultar” relações sistemáticas.

Na visão de Kant, as “fronteiras” entre conhecimento científico e conhecimento vulgar estão assinaladas pelas perguntas fundamentais da teoria do conhecimento: Que podemos saber? Que devemos fazer? Que nos é lícito esperar? Distinguiram-se a partir daí as duas formas de saber: o conhecimento empírico, associado às percep-ções dos sentidos, isto é, posteriori à experiência. E o conhecimento puro, o qual independe dos sentidos, ou seja, é anterior a experiência, ou seja, à priori, que está relacionado a uma afirmação universal e que para ser válida, não depende de nenhuma condição específica.

Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, porque, com efeito, como haveria de exercitar-se a faculdade de se conhecer, se não fosse pelos objetos que, excitando os nossos sen-tidos, de uma parte, produzem por si mesmos representações, e de outra parte, impulsionam a nossa inteligência a compará-los entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis para esse conhecimento das coisas que se denomina experiência? [...] nenhum conhecimento precede a experiência, todos começam por ela. [...] Surge desse modo uma questão que não se pode resolver à primeira vista: será possível um conhecimento independente da experiência e das im-pressões dos sentidos? Tais conhecimentos são denominados “a priori”, e

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distintos dos empíricos, cuja origem é a “posteriori”, isto é, da experiência. (KANT, 2009, p. 36)

Assim, em seu ponto de vista, as condições oferecidas pelas ciências matemáticas e naturais levam à negação de uma metafísica que se apoia na mesma objetividade e universalidade dessas ciências. Destarte, a razão teórica ficaria limitada ao âmbito da experiência, pois, só podemos conhecer os fenômenos que nos são acessíveis pelos sentidos, já a liberdade, a imortalidade da alma e Deus, temas da metafísica, não são objetos de conhecimento.

Mais tarde, em seu livro Crítica da Razão Prática, Kant ilustra a ideia de que a razão pura é prática por si mesma, ou seja, ela dá a lei que alicerça a moralidade, pois, a ra-zão fornece as leis práticas que guiam a vontade. Tais preceitos são engendrados como princípios práticos objetivos, sendo regras válidas para todo ser racional. “Admitindo-se que a razão pura possa encerrar em si um fundamento prático, suficiente para a deter-minação da vontade, então há leis práticas, mas se não se admite o mesmo, então todos os princípios práticos serão meras máximas.” (KANT, 2003, p. 31).

No pensamento Kantiano, o homem dispõe de dois mundos; o mundo da causa-lidade, no qual não é possível antever o grau de liberdade para um fenômeno físico e, o mundo da liberdade, que é o campo da razão prática no qual é possível autonomia. Consequentemente, os conhecimentos devem estar limitados à percepção, sintetizada, entre a sensibilidade e as categorias do entendimento. Já no âmbito prático:

[...] a razão se aplica a motivos determinantes da vontade, enquanto faculda-de de produzir objetos correspondentes, podendo determinar-se a si mesma, engendrando sua própria causalidade, na sua atuação em relação a si mesma. (MARTINI, 1993, p. 114).

Temos então que a ciência moderna procurou, através de ajustamentos metodológicos, anular a interferência dos valores humanos ou religiosos no objeto de conhecimento; mesmo assim, as crenças e os juízos de valor estão imbricados com o pensamento cien-tífico. Um elemento ponderável é a percepção de que a Ciência, tal como exposta até aqui, pode estar se privando de conjecturas que, por não terem um caráter estritamente científico, não dão azo à atenção da academia.

[...] suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é simulta-neamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada, temível materialidade. (FOUCAULT, 2006, p. 9)

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A questão do discurso está relacionada à validação das ideias, tangenciando os quesi-tos: quem fala; de onde fala e em que circunstâncias. Assim, o esvaziamento ou a propa-gação de um ideário tem ligação com a existência de pares que se disponham a discutir o assunto, sob determinado ponto de vista. Essa limitação do discurso, na visão de Foucault (2006), tem um elemento de grande importância, que é o conceito de disciplina.

[...] uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de mé-todos, um corpo de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos: tudo isto constitui uma espécie de sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que o seu sentido ou a sua validade estejam ligados ao seu inventor. (Ibidem, p. 30)

O recorte oferecido pela análise Foucaultiana de disciplina, tem como objetivo de-linear os componentes discursivos necessários para a construção de novos enunciados. “Nesse sentido, a abordagem de Foucault difere da de Kuhn. Formação discursiva não é o mesmo que paradigma.” (ARAÚJO, 2007, p. 10).

O termo “paradigma”, cunhado por Thomas Kuhn (2003), relaciona-se com as rea-lizações científicas que dão origem a modelos que, por período mais ou menos longo e de modo mais ou menos explícito, norteiam o desenvolvimento posterior das pesquisas exclusivamente na busca da solução para os problemas por elas suscitados.

Na transição entre paradigmas, a ciência normal, a qual está firmemente baseada em uma ou mais realizações cientificas passadas e consideradas como válidas pela co-munidade científica por algum tempo, começa a mostrar sinais de falhas na busca por respostas suscitadas pelo modelo em voga. À medida que os instrumentos proporciona-dos por um paradigma passam a não dar sustentação à resolução dos problemas defini-dos por este, a ciência move-se com menor rapidez, suscitando a necessidade de renovar os instrumentos. Então, a crise apontada pelo enfraquecimento das regras, até então tidas como orientadoras do modelo científico revelam a emergência de um novo paradigma.

O paradigma contribui no progresso da ciência, embora, ao restringir o campo de estudo de uma ciência, acaba levando a investigação a seguir um caminho mais minu-cioso de uma determinada parcela do real.

Assim, apesar de no inconsciente das pessoas, a Ciência ser rígida e irrefutável, o processo de construção do conhecimento científico perpassa pelas etapas de: curiosida-de, a qual impele os indivíduos à reflexão na busca por respostas, sendo que as possíveis respostas estão inscritas em modelos limitados de compreensão da realidade, os quais levam a um conhecimento transitório da verdade.

Nesse sentido, considerando a crise ambiental que se apresenta, a ciência passa por um profundo processo de equilibração, que na visão de Piaget (2003) ocorre por adap-

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tação e por reorganização. Dentro desse cenário, nosso planeta vem se ressentindo de problemas ambientais associados à ação predatória do homem, fazendo urgir a necessi-dade de uma educação crítica e reflexiva que ofereça oportunidades de mudança. Para tanto, Fritjof Capra (2006) justifica a práxis educacional de arregimentar estratégias que instiguem uma mudança de comportamento relacionado à conservação e preserva-ção do meio ambiente. Depreendemos desta forma, do pensamento de Capra (2006) que: “Toda educação é educação ambiental [...] com a qual por inclusão ou exclusão ensinamos aos jovens que somos parte integral ou separada do mundo natural.” (p. 70).

II - NOVO AGIR AMbIENtAL

A Educação Ambiental é uma importante ferramenta na formação de um novo agir social, moral e ético, permitindo a esse indivíduo conhecer, compreender e enfrentar os graves desafios ambientais, como gastar menos energia e água, gerar o mínimo de resíduos sólidos e adquirir produtos que causem menos danos ambientais. Aliado a isto, as crises dos valores éticos, o ressurgimento dos conflitos étnicos e religiosos, o terro-rismo internacional, os problemas provocados pela revolução científica tecnológica e a intensificação da pobreza mundial revelam a necessidade de redefinição dos modelos e das políticas de desenvolvimento vigentes.

Essa situação de crise, que perdura desde a década de 70 e se acentua com a globalização da economia, anuncia, em contrapartida, a existência de capacidades técnicas, econômicas, sociais e políticas que possibilitam o advento de soluções práticas que suplantam os proble-mas conjunturais e permitem manter a esperança de construir um bem estar global. Para isso, é necessário que se invista num “processo de construção de uma sociedade sustentável, democrática, participativa e socialmente justa, capaz de exercer efetivamente a solidariedade com as gerações presentes e futuras” (MEDINA, 2009 apud MIRANDA et al., 2013, p. 7).

A Educação Ambiental se inclui em um processo de desenvolvimento de uma nova forma de pensar e agir no mundo.

[...] propicia às pessoas uma compreensão crítica e global do meio ambiente. Chave para elucidar valores e desenvolver atitudes, que permitam adotar uma posição crítica e participativa frente às questões relacionadas com a conserva-ção e a adequada utilização dos recursos naturais, com vistas à melhoria da qualidade de vida, a eliminação da pobreza extrema e do consumismo desen-freado. (BRASIL, 2002, p.103)

A Educação Ambiental é a conexão entre a inquietude da sociedade e a aplicação de políticas governamentais, que garantam a promoção da sociedade às informações sobre as questões que permeiam e decorrem dos temas ambientais.

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O saber ambiental se orienta por fins práticos para a resolução de problemas concretos e para a implementação de políticas alternativas de desenvolvimento e emerge como uma consciência crítica e avança com um propósito estraté-gico, transformando os conceitos e métodos de um conjunto de disciplinas científicas, construindo novos instrumentos teórico-práticos para implemen-tar processos de gestão ambiental. (FERREIRA, 2004, p.12)

Por ser de responsabilidade de todos, a Educação Ambiental se tornou um tema transversal, uma preocupação de todos, das escolas às universidades e de toda a comu-nidade onde o indivíduo se insere.

O marco da Educação Ambiental surge em 1977, com a Conferência Intergoverna-mental sobre Educação Ambiental aos Países Membros realizada em Tbilisi, Georgia, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNES-CO) e Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), definindo os princípios para o desenvolvimento da Educação Ambiental no mundo (DIAS, 2004).

Quadro 1: Princípios da Educação Ambiental

• Considerar o meio ambiente em sua totalidade, ou seja, em seus aspectos naturais e nos criados pela espécie humana, sejam tecnológicos, sociais, econômicos, políticos, técnicos, histórico-culturais, morais e estéticos;

• Constituir-se num processo contínuo e permanente, começando pelo ensino pré-escolar e continuando através de todas as fases da aprendizagem formal e não-formal;

• Aplicar um enfoque interdisciplinar, aproveitando o conteúdo específico de cada discipli-na, de modo a se adquirir uma perspectiva global e equilibrada;

• Examinar as principais questões ambientais do ponto de vista local, regional, nacional e internacional a fim de desenvolver uma percepção global e equilibrada;

• Concentrar-se nas situações ambientais atuais, tendo em conta também a perspectiva histórica;

• Insistir no valor e na necessidade da cooperação local, nacional e internacional para pre-venir e resolver os problemas ambientais;

• Considerar, de maneira explícita, os aspectos ambientais nos planos de desenvolvimento e de crescimento;

• Ajudar a descobrir os sintomas e as causas reais dos problemas ambientais;• Destacar a complexidade dos problemas ambientais e, em consequência, a necessidade de

desenvolver o senso crítico e as habilidades necessárias para resolver os problemas;• Utilizar diversos ambientes educativos e uma ampla gama de métodos para comunicar e

adquirir conhecimentos sobre o meio ambiente, acentuando devidamente as atividades práticas e as experiências pessoais.

Fonte: DIAS, 2004, p.112-125.

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Dá-se início a indicação desta temática no ensino formal, que é um dos eixos fundamentais para se atingir os objetivos nela estabelecidos, que são cunhados pela Conferência de Tbilisi (1977).

•Promoveracompreensãodaexistênciaedaimportânciadainterdependênciaeconômica, social, política e ecológica;•Proporcionaratodasaspessoasapossibilidadedeadquirirosconhecimentos,o sentido dos valores, o interesse ativo e as atitudes necessárias para proteger e melhorarem o meio ambiente;•Induzirnovasformasdeconduta,nosindivíduosenasociedade,arespeitodo meio ambiente. (DIAS, 2004, pp.109-110)

Consolidando e reconhecendo a importância da assimilação da Educação Ambiental nos sistemas educacionais dos diversos países, ocorre em 1987, em Moscou, a Conferên-cia Internacional da UNESCO-PNUMA sobre Educação e Formação Ambiental, que teve o intento de avaliar as conquistas e dificuldades na área da Educação Ambiental.

Após a ECO-92, formalizou-se a Carta Brasileira para a Educação Ambiental que demonstrou a necessidade de um compromisso real em níveis nacional, estadual e mu-nicipal para o atendimento à Educação Ambiental. Uma das propostas surgidas foi o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, que reforçou a “importância da Educação Ambiental como meio indispensável para elaborar e desenvolver, de fato, formas menos prejudiciais de interação do homem com a natureza.” (TELLES et al., 2002, p.31).

No contexto da Educação Ambiental, a promulgação da Lei nº 9.394/1996, que aprova a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, estabelece que no processo de formação básica do cidadão, devem-se adquirir conhecimentos para a compreensão do ambiente natural e social.

A Educação Ambiental avança na construção de uma cidadania responsável, estimulando interações mais justas entre os seres humanos e os demais seres que habitam o Planeta, para a construção de um presente e um futuro susten-tável, sadio e socialmente justo. (BRASIL, 1996, sem paginação)

A Educação Ambiental é vista como a identidade que define o campo de valores, atitudes e práticas, mobilizando os atores sociais comprometidos com a prática política--pedagógica. É uma oportunidade de discutir a relevância da Educação Ambiental e alcançar não apenas os alunos, mas também seus pais e/ou responsáveis.

A Política Nacional de Educação Ambiental (Lei nº 9.795/1999) delega aos atores sociais as seguintes funções.

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(I) ao Poder Público definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental, promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e o engajamento da sociedade na conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente; (II) às instituições educativas, promover educação ambiental de maneira integrada aos programas educacionais que desenvolvem; (III) aos ór-gãos integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente - Sisnama, promo-ver ações de educação ambiental integradas aos programas de conservação, recuperação e melhoria do meio ambiente; (IV) aos meios de comunicação de massa, colaborar de maneira ativa e permanente na disseminação de infor-mações e práticas educativas sobre meio ambiente e incorporar a dimensão ambiental em sua programação; (V) às empresas, entidades de classe, institui-ções públicas e privadas, promover programas destinados à capacitação dos trabalhadores, visando à melhoria e ao controle efetivo sobre o ambiente de trabalho, bem como sobre as repercussões do processo produtivo no meio ambiente; (VI) à sociedade como um todo, manter atenção permanente à for-mação de valores, atitudes e habilidades que propiciem a atuação individual e coletiva voltada para a prevenção, a identificação e a solução de problemas ambientais (BRASIL, 1999, art. 3).

O contexto fortalece o reconhecimento do papel transformador e libertário da Edu-cação Ambiental, exigindo uma revisão da referência da transversalidade e da interdis-ciplinaridade contida na sua normatização para o ensino formal, além de uma nova organização dos tempos e espaços da escola e adequação da matriz curricular.

No que tange à interdisciplinaridade, o Ministério da Educação orienta que:

I – a Interdisciplinaridade, nas suas mais variadas formas, partirá do princípio de que todo conhecimento mantém um diálogo permanente com outros conhecimentos, que pode ser de questionamento, de negação, de com-plementação, de ampliação, de iluminação de aspectos não distinguidos (BRASIL, 1998, art. 8).

Na atribuição do Estado em promover a Educação Ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente (BRASIL, 1988, art. 225 § 1º inciso VI), é essencial que as Diretrizes Curricu-lares Nacionais para Educação Ambiental, encaminhada ao Conselho Nacional de Educação – CNE venham a convergir com os seis pontos fundamentais da sustentabilidade.

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Quadro 2: Os seis pontos fundamentais da sustentabilidade

• Promoção do enfoque da sustentabilidade em seus múltiplos aspectos, por meio de ati-vidade curricular/disciplina/projetos interdisciplinares obrigatórios que promovam o es-tudo da legislação ambiental e conhecimentos sobre gestão ambiental, de acordo com os cursos de bacharelado, tecnologia, especialização e extensão das instituições públicas e privadas de nível superior voltadas para a formação de profissionais que atuam nas dife-rentes áreas.

• Fomento a pesquisas voltadas à construção de instrumentos, metodologias e processos para a abordagem da dimensão ambiental que possam ser aplicados aos currículos inte-grados dos diferentes níveis e modalidades de ensino.

• Acompanhamento avaliativo da incorporação da dimensão ambiental na educação supe-rior de modo a subsidiar o aprimoramento dos projetos pedagógicos e a elaboração de diretrizes específicas para cada um de seus âmbitos.

• Fomento e estímulo à pesquisa e extensão nas temáticas relacionadas à educação ambiental.• Incentivo à promoção de materiais educacionais que sirvam de referência para a educação

ambiental nos diversos níveis de ensino e modalidades de ensino e aprendizagem.• Participação em processos de formação continuada e em serviço de docentes.

Fonte: BRASIL, 2012, sem paginação.

Deste modo, não há como negar o importante papel das instituições de ensino no caráter formativo para a emancipação e exercício da cidadania, o de “atuar como agente promotor e articulador de debates que contemplem os diversos aspectos da vida social e conduzam a propostas capazes de melhorar as condições de vida da comunidade” (IPES, 2001 apud SOUSA et al., 2011, p. 5).

III - CONSIdERAÇõES FINAIS

Como exposto até o presente momento, a Educação Ambiental percorreu uma lon-ga trajetória, a qual, como política pública, vem se solidificando em função de sua base legal – Política Nacional de Educação Ambiental – que é resultado, principalmente, de um processo de mobilização social. Entretanto, apesar da existência de diversos docu-mentos orientadores, no aspecto formal, a efetivação dessa política ainda não ocorre a contento, necessitando, portanto, que sejam potencializadas ações que gerem resultados mais efetivos, de modo a perpetuar em nosso país.

Nesse sentido, a Educação Ambiental vem consolidar uma nova racionalidade am-biental e estabelecer diretrizes para a reflexão em torno dos grandes desafios ambientais apresentados pelo estilo de desenvolvimento dominante, que conduzem os ecossistemas mundiais ao limite de sua capacidade de renovação.

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Para tanto, a compreensão da origem do ideário proposto e do contexto atual aguça a percepção de que, as teorias que hoje aparecem de forma apurada são os resultados de desafios enfrentados e do aprendizado reunido ao longo do tempo. O caminho percor-rido, desde a concepção da ideia, passando pela reflexão das possibilidades inicialmente apontadas, até estabelecer as conclusões legadas, traz consigo a relevância dos sucessos e dos fracassos dessa trajetória. Assim, o homem que busca resolver um problema especí-fico delimitado pelo conhecimento e pela técnica existentes não se limita simplesmente a contemplar a realidade à sua volta, pois o momento de crise do modelo de desen-volvimento econômico em voga, causado pelo uso irracional dos recursos ambientais, suscita a necessidade de trilhar novos caminhos com o apoio da articulação entre a experiência e teoria permeada pelos reflexos de uma nova racionalidade.

Reconhecer a importância das marcas deixadas por essa trajetória, para melhor compreender os novos caminhos, naturaliza o conhecimento e convida a refletir sobre as implicações de um novo agir ambiental, tanto para a sociedade atual quanto para o benefício das gerações futuras.

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ÉtICA Ou CAOS E CuLtuRAS JuVENISMirian Paura Sabrosa Zippin Grinspum – NUPEJOVEM / UERJ

INICIANdO A CONVERSA...

Em uma análise etimológica dos termos encontramos que a ética – proveniente do latim ethos que tem a ver com princípios, normas e estabelecimento de valores; caos provem. Dos gregos khaos e está relacionada a confusão de todos os elementos, antes de se formar o mundo. Personifica um espaço vazio e intermediário como era antes da cria-ção do mundo viril. As culturas juvenis podem e devem ser vistas sob duas abordagens: a primeira como uma categoria especial- a juventude e seu grande grupo, formando uma cultura própria, identificada por determinado perfil, com características específicas e a segunda, como sendo as culturas juvenis resultado das culturas de diferentes grupos sócio-culturais. Passemos, então, a refletir sob os pontos principais da ética, caos e das culturas juvenis e posteriormente tentaremos tecer os fios que entrelaçam essas aborda-gens, no que diz respeito, em especial à educação.

A  ÉtICA

A questão da conduta ou do valor da ação humana a ciência positiva não resolve, nem está em condições de resolver. Os conceitos de ética e moral, na realidade, se confundem, sendo a ética vista como uma reflexão crítica sobre a moralidade, sobre a dimensão do comportamento humano. Ética vem do grego, éthos, e significa, segundo Vásquez(1987) caráter, modo de ser, forma de viver, adquirida ou conqu istada pelo homem. Ele afirma que:

A ética não é a moral e, portanto, não pode ser reduzida a um conjunto de normas e prescrições; sua missão é explicar a moral efetiva... A ética pode servir para fundamentar uma moral sem ser, em si mesma, normativa ou preceptiva. (p13).

Moral é uma palavra que provém do vocábulo latino mos ou mores e significa costume, costumes adquiridos, hábitos. Heller (1989) chama de moral, a ética como motivação interior. A moral vai aparecer através dos valores, normas e conduta de uma sociedade e como ocorre a livre escolha de atitudes do indivíduo perante às questões da sociedade.

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Para Vasquez (1987) a Moral surge a partir do momento em que o homem conquis-ta a natureza social, percebendo-se membro de uma coletividade.  Ele a define como:

... um sistema de normas, princípios e valores, segundo o qual são regulamen-tadas as relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas de um caráter histórico e social sejam acatadas livres e conscientemente, por uma convicção íntima, e não de uma maneira mecânica, externa ou impessoal. (p.69)

Kant dizia que a liberdade consiste na obediência às leis que o próprio sujeito mo-ral impõe, enquanto Sartre (1973) dizia que o “homem é livre, o homem é liberdade, ...porque é responsável por tudo quanto fizer”.(p.15)

A liberdade vai nos remeter para a questão da vontade ,resultante de uma consciência da obrigação moral em contraponto à questão do desejo, como um ato involuntário. Como não podemos atender todos os desejos, a moral surge como um controle do de-sejo, não como uma repressão, mas como uma conscientização de suas ações e de seus limites. Para Kant, o limite à liberdade humana, coloca-se em.. “agir aquela máxima que possa ser objeto de si mesma como lei universal”.

O indivíduo quando age, quando escolhe está continuamente aceitando ou contra-riando algo que tem valor. Ao observarmos a existência de valores na história, a obje-tividade desses valores implica num dever, na medida que no fundo obedecemos a nós mesmos, em nosso significado universal de homens. O dever ser dos valores provém da fonte que eles se originam.  Torna-se, pois, evidente a relação entre a Cultura e a Ética.

A cultura vai ser o “pano de fundo” onde a moral vai emergir, correspondendo a algo constitutivo, então, da sociedade. O grande impasses na questão da ética é a dis-cussão, a reflexão sobre a possibilidade de termos uma ética universal, independente de onde ela se firma e se desenvolve. Nesse sentido, fica em aberto se os valores como o Bem, Bom, Beleza, Bondade... podem ter apenas uma única interpretação/representação para toda a humanidade.

O CAOS

Na sociedade que se designou chamar de pós-moderna, em virtude de mudanças muito significativas que trouxeram novas realizações, novos acontencimentos, novos resultados, a crise – que pode levar ao caos tem se manifestado com muita frequência em diversos setores, em diferentes Instituições. Podemos destacar a questão da globali-zação, para tentativa da busca de uma globalização econômica, as novas tecnologias e as próprias características desta sociedade pós moderna onde a incerteza, o consumo, o

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imediatismo, o sucesso, entre outros pontos tomaram conta da realidade e do iamginá-rio das pessoas. Estamos vivendo, na educação, em determinados momentos um caos proveniente da interrelação desses fatores na escola em consonância com os valores que pretendemos alcançar. Pretendemos encontrar as soluções para uma formação do aluno que vá para muito além da escolaridade, da aprendizagem. Queremos e devemos ter um projeto que vise formar o sujeito, formar o cidadão.

Porém há de se admitir que esse caos é saudável no sentido de desafiar os rumos para o pensamento e as ações humanas, demandando sim, o fator ética como suporte, em uma proposta interessante como nos diz Moran (2002) a proposição de uma Moral Provisória, a ética pode ser realizada por meio dessa Moral Provisória. Que propõe ao homem analisar os contextos de uso da ética e da contrução de uma moral que atenda temporariamente as necessidades. Não deixa de ser desafiador.

CuLtuRA JuVENIL

Ao  falar em cultura juvenil dois aspectos se fazem presentes nesta análise: a cultura em si relacionada aos jovens como um todo, como uma classe, com uma determinada faixa etária, ou eu posso estar falando de cultura juvenil ou culturas juvenis, desdobrando os diferentes grupos de jovens pertencente a uma determina-da sociedade, determinada cultura.

Para Pais (1993),

Por cultura juvenil, em sentido lato pode entender-se o sistema de valores so-cialmente atribuídos à juventude (tomada como conjunto referido a uma fase da vida, isto é, a valores que aderirão jovens de diferentes meios e condições sociais. Por exemplo ao considerar-se o fenômeno da moda através do uso de pares de variáveis como “identificação- diferenciação” e “inovação- passi-vidade” os jovens valorizam os extremos dos contínuos que apontam para a diferenciação e a inovação, isto é, a moda seria entendida pelos jovens (por todos eles?) como uma possibilidade de expressividade, de auto-realização, de relativa independência de controle social (PAIS, 1993, p.54-55)

A cultura juvenil está relacionada ao espaço tempo onde elas são desenvolvidas e, portanto, recebem e influenciam o contexto maior onde elas se realizam. Geralmente, em se tratando de um cultura juvenil com características próprias ela nesse sentido, ao trabalharmos a tríade ética ou caos - e culturas juvenis, podemos afirmar que  aposta-mos  muito mais na ética trabalhada, argumentada, vivenciada, do que esperar pelo caos e o surgimento de uma nova produção; quanto às culturas juvenis precisamos lembrar que  elas não absorvem ou usam a ética por que está sendo apresentada e

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sim, elas  fabricam, desenvolvem, produzem  uma ética que pode ser específica de seus grupos, mas também podem interferir em outros códigos de ética já estabelecidos. As próprias ações advindas das culturas juvenis podem ou não serem agregadas aos costu-mes da própria juventude ou serem perpassada por “dentro’ da constituição do tecido social sem que sejam percebidas, e serão futuramente desdobradas. As culturas juvenis apresentam-se de forma temporária, caso a ação profunda da mesma fique somente na lembrança como uma ação ou reação. O que compreender a costura da mesma na sociedade se dá conforme a compreensão social do fato historiado e apresentado de forma cultural.

CONCLuINdO

Esta análise nos leva a refletir sobre os principais tópicos:

- os problemas que temos na nossa sociedade não são frutos, apenas de um setor, de um espaço definido e sim de uma série de fatores que se entrelaçam e se envolvem de maneira sistemática, ou não; - as discussões/análises com os jovens não devem ser acompanhadas de uma  liturgia do certo-errado, bom - mau, feio-bonito, etc., e sim explicando, exerci-tando, promovendo o exercício da dualidade da argumentação dos valores; -as reflexões sobre culturas juvenis devem apreender tanto o conceito das culturas geracionais, como as de classe, segundo Pais (1993), isto é as que pertencem a uma determinada geração de um tempo histórico definido (os hippies, por exemplo) como as de classe que apresentam grupos/culturas de classes diferentes dentro de uma mesma sociedade (cultura funk, rap, entre outras);- os debates e propostas sobre a participação dessas culturas juvenis, de suas contribui-ções na sociedade não devem ser vistas como algo isolado e distante e sim como uma realidade real concreta que possui uma enorme criatividade e uma sabedoria própria.

A educação permeia a vida dentro e fora da escola, sistematizar culturas não é prer-rogativa da educação, mas é sim uma relevante compreensão da consubstanciação das mesmas. Essa imbricação faz parte de uma formação que pode ser associada à escolari-zação. Vários projetos sobre a aprendizagem da ética foram propostos às escolas nos di-ferentes níveis do sistema educacional, mas se pergunta, também, no fundo da filosofia, há como ensinar ética? A convivência é relevante para esse entendimento. Uma resposta é sábia, a escolarização não pode prescindir da ética e da moral.

Acredito, então que o principal caos será em não participarmos dessa amplitude de valores advindo da cultura juvenil, procurando ir em busca de uma ética que acima de tudo respeite e valorize o outro e caminhe para um mundo mais solidário e fraterno.

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REPENSANdO dIREItOS HuMANOS A PARtIR dAS SubJEtIVAÇõES:

O “tROtE” COMO INStRuMENtO dE dOMINAÇÃOGabriel Cerqueira Leite Martire – UFF

Natália Caroline Soares de Oliveira – UFF

I – INtROduÇÃO

O conceito de democracia parece sublinhar, cada vez mais, a noção de direitos hu-manos aceita atualmente no Brasil. Isso porque, o contexto brasileiro apresenta diversos desafios, dentre os quais se encontram as necessidades de superação dos obstáculos que ocultam as desigualdades existentes. Com efeito, isso tudo pressupõe uma constância relativa de certas estruturas de poder, sustentadas e movimentadas, seja de modo cons-ciente e/ou inconsciente, por variadas formas de relação.

Assim, nosso olhar, em termos de direitos humanos, volta-se não só a observar como as capilaridades podem nutrir estruturas maiores de dominação como também podem vivenciar consideravelmente aquilo que alimentam. Por conseguinte, essa análise pode sugerir algumas reflexões para se repensar a própria noção de direitos humanos na construção de caminhos direcionados a uma política democrática radical. Isso porque, as propostas para se alcançar a igualdade exigem esforços críticos e contextuais constan-tes sobre as estratégias de efetiva participação, diante das condições de vida.

A partir dessas ideias iniciais, o “trote”, como objeto de pesquisa, pode ajudar a compreender os mecanismos práticos de subjetivação das hierarquias que ocorrem nas universidades brasileiras. Porém, não pretendemos escavar as origens do “trote” no Brasil, mas sim mapear suas formas de naturalização através das condições de subordinação.

Talvez essas configurações possibilitem repensar direitos humanos a partir da pro-blematização das internalizações de controle sobre o sujeito, ao se recriarem significa-ções por meio de alternativas que as próprias relações de poder oferecem. Nesse sentido, buscamos explorar as possibilidades de ressignificação das práticas e dos discursos por meio de alguns conceitos sobre marcadores sociais da diferença88.

Isso envolve uma abordagem voltada à temática das violências simbólicas e outras, que reforçam estruturas maiores de poder, para além da constituição entre “calouros” e “veteranos”. Nesse tocante, entender as produções verticalizadas de poder e as violên-

88 As teorias que trabalham com marcadores sociais da diferença desenvolvem conceitos buscando mostrar as marcas incorporadas pelos sujeitos e nos sujeitos, tal como a noção de raça socialmente sentida e percebida.

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cias permeadas nas relações entre pessoas nos “trotes” universitários são centrais para buscar mecanismos efetivos contra às desigualdades sociais.

Assim, diante dessa abordagem, pretende-se observar: a) como são definidos os conceitos associados às produções verticalizadas de poder e de violências ocorridas em universidades; b) como alguns conceitos ajudam a esclarecer discursos que corporificam e fixam determinadas características aos sujeitos, explorando também nessa temática as categorias de gêneros, de sexualidades, de classes e de raça, por exemplo; e, c) como são produzidos os agenciamentos do “trote” para se pensar configurações de poder horizon-talizadas, contribuindo para alargar a ideia de direitos humanos.

Para tanto, a metodologia utilizada foi desenvolvida através de referenciais teóricos contemporâneos, que buscam fundamentar conceitos para compreender os funcio-namentos das relações de poder, o que aqui será apresentado por meio do “trote” nas representações em notícias de jornal, em entrevistas, em relatos de experiência e em cenas de vídeos on-line seguidas de comentários.

Uma vez apresentadas as nuances centrais a serem trabalhadas, será realizada uma breve contextualização das violências simbólicas e concretas provocadas pelo “trote”, re-sultando na assunção de identidades dentro de uma lógica de dominantes e dominados, que consiste no assunto da próxima seção.

II – A VIOLÊNCIA dO “tROtE”: A SubJEtIVAÇÃO dO(A) dOMINAdO(A) E dO(A) dOMINANtE

As origens das práticas de trote são antigas89. Contudo, há regras que per-manecem relativamente uniformes nessas relações, como a manutenção da or-dem hierárquica, sempre direcionada dos(as) ditos(as) “veteranos(as)” para os(as) “calouro(as)”. Seguindo essa ideia, a subordinação dos(as) “calouros(as)” aos(às) “veteranos(as)” se estabelece a partir do ingresso recente daqueles nas universida-des. Assim, o que autorizaria a pratica dos “trotes” pelos “veteranos(as)” seria o fato deles/delas já estarem em curso na universidade, como se para a configura-ção desse pertencimento, ou seja, dessa aparente identidade, dependesse o “ser” experiente. Nesse sentido, poderíamos dizer que “calouros(as)” receberiam como sinônimos serem “inexperientes”, enquanto os(as) “veteranos(as)” seriam os(as) “experientes”90.

89 GIAROLA (1999, p. 127); TOMMASINO e JEOLáS (2000, p. 30); COSTA [et al] (2013, p. 354) apontam para o surgimento dessa expressão desde a Idade Média.90 Cabe esclarecer que preferimos colocar algumas palavras entre aspas, para evitar que elas de fato se apresentem como fixas de significação, visto que, ao longo do texto, elas podem ganhar outros significa-dos. Além disso, buscou-se escapar da gramática estruturante do gênero masculino.

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Visto tais esclarecimentos, seguimos com a análise de alguns estudos realizados com estudantes universitários, acerca da opinião da participação nos “trotes”. Nesse estudo, realizado por COSTA [et al] (2013), os resultados sinalizam que a maioria das pessoas não veem grandes problemas nas relações de submissão entre “calouros(as)” e “veteranos(as)”. Tal vínculo hierárquico só é percebido como submissão, caso haja a configuração de uma imposição direta do(a) “calouro(a)” ao “trote”. Mas, o resultado também aponta que o constrangimento – ligado indiretamente ao trote – não se apre-senta para estudantes como forma de imposição forçada.

Assim, essas técnicas de poder parecem ocultar a submissão, que acaba ocorrendo através de vias indiretas. Tais mecanismos parecem, muitas vezes, mais sutis, contudo não menos violentos. Isso porque, eles agem como forma de inclusão e exclusão seleti-va para determinados convívios sociais, ocultando formas de resistência. É como se as pessoas fossem levadas, inconscientemente, pela correnteza, sem perceber a força que as impulsiona.

Nesse sentido, as universidades brasileiras vêm constatando um cenário de cons-tantes práticas de violências direcionadas às categorias de gêneros, de sexualidades, de classes e de raça, que se encontram, na maioria dos casos, em situações de desvantagem (SIQUEIRA, et al, 2012, p. 147).

Geralmente, essas práticas de trote se resguardam sob as vestes de variadas justifica-tivas. Uma delas é que o “trote” é considerado uma forma de “troco”. Isso significaria que ao recebê-lo, tudo aquilo que foi vivenciado poderia ser passado adiante com as novas pessoas. Outro fundamento seria tratar-se de uma forma de “brincar”, “divertir--se” com “calouros(as)”. Essa observação é abordada por vários(as) autores(as), sem des-considerar as naturalizações das violências, quando as práticas se voltam ao(à) outro(a) em condição de inferioridade [GIAROLA (1999); TOMMASINO e JEOLáS (2000); COSTA, et al, (2013, p. 355); SIQUEIRA, et al, (2012)]. Além disso, não se pode dei-xar de notar que o(a) outro(a) acaba se tornando o meio a serviço de determinado fim.

Ademais, sabe-se que muitos casos de violência são ocultados pelas vítimas, teme-rosas não só pelas consequências da exposição pública como também pelo desamparo de um adequado atendimento por parte das instituições (ALMEIDA, “G1” on-line, 2014).

Essa dificuldade de acolhimento encontrada pelas vítimas ao denunciarem abusos costuma ser tão grande, que muitas delas desistem de perseguir a punição dos autores. Além disso, muitas situações de abuso sequer chegam às Ouvidorias, por medo de não haver proteção adequada às pessoas que denunciam.

Essa naturalidade da violência pode ser percebida ao analisar alguns vídeos publica-dos no meio virtual – YouTubeBR – onde se destacam alguns dos funcionamentos desses agenciamentos da violência sobre humilhação direcionada a determinadas categorias.

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Em um vídeo de 2014, observamos que o cometimento de práticas de trote consi-deradas humilhantes, ao se somarem às técnicas de filmagem em cortes e sem os sons das falas – o que foi substituído por uma música de fundo –, faz parecer que tudo é uma grande brincadeira. Nesse vídeo constam 14.323 visualizações, e praticamente todos os comentários dos internautas são favoráveis às práticas.

Já em uma matéria filmada pela Rede Globo de T.V., publicada no mesmo canal, em 2010, com 117.224 visualizações, notam-se práticas semelhantes às descritas acima, sendo que em algumas delas existem agravantes. O temor e repúdio de internautas fo-ram muito intensos, debulhando comentários lastimáveis às práticas de trote.

Para fazer uma comparação desses agenciamentos visuais violentos com seu opo-sitor, uma busca rápida por práticas solidárias em trotes no YouTubeBR resultou em poucos vídeos, sendo que a maioria deles contêm poucas visualizações de internautas, não chagando a mil.

Cabe destacar que o contexto promovido pela máquina mercantilista nas universi-dades infiltra formas de poderes específicos de dominação. Estes poderes tangenciam novas modelagens ao “trote”. É comum ver cartazes apelando para ordens que reforçam a preferência de um universo heterossexista (horror às sexualidades que não se encaixam em um modelo heterossexual) em murais e paredes das universidades.

Mas, isso não ocorre de forma homogênea, existem singularidades em termos de inferiorização ou marginalização do que representaria o feminino ou mesmo outras categorias estereotipadas e estigmatizadas, reforçando as desigualdades no plano con-creto. Todas essas práticas discursivas se acoplam aos imperativos e códigos estruturais. Por certo, quando se percebe um risco de desvantagem econômica, aqueles que condu-zem o mercado se apropriam dos novos códigos, invertendo a lógica e criando outras estruturas para se debruçarem.

Assim, os(as) operadores(as) do mercado, investem em qualquer empreendimento que propicie lucro. Essa é outra tangente de poder que age e modela os corpos. Não se trata de pensar a igualdade material ou mesmo de empoderamento de categorias desfa-vorecidas, mas sim de buscar vantagens econômicas em qualquer prazer/desejo que gere o lucro (SIQUEIRA, et al, 2012, p. 151). Como forma de ilustrar o funcionamento dessas práticas discursivas no “trote”, vejamos um exemplo no chamado “pedágio”:

A atividade do pedágio envolve um considerável planejamento, pois ocorre ao mesmo tempo em vários bairros da cidade. Os corpos dos(as) calouros(as) são pintados com diferentes símbolos que frequentemente transmitem mensagens sexuais. Algumas calouras usam pouca roupa e/ou roupas provocantes, como no caso de uma menina da Farmácia que – pintada de vaca – exibia as palavras à venda escritas na barriga, com uma flecha apontando para seu órgão sexual.

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Enquanto os(as) calouros(as) cumprem sua tarefa, os(as) transeuntes fazem insinuações, os veículos param, ressoam assobios, etc. Futuramente, todo o dinheiro arrecadado será utilizado na produção de uma chopada, que é o ponto culminante do trote. (SIQUEIRA, et al, 2012, p. 152).

Quando os corpos se tornam a superfície das práticas discursivas, eles não só são atravessados pelo poder, mas também sustentam o poder. Esses efeitos podem se subje-tivar e se naturalizar, à medida que se reiteram ao longo do tempo. Assim, esses poderes, podendo se instaurar no inconsciente, exercem certo domínio através de sentidos e sig-nificados próprios. Chega a ser preocupante saber até que ponto tais práticas discursivas influenciam as ações violentas perpetradas em festas universitárias. Como exemplo, em matéria divulgada no “El País” on-line,por MARTIN (2015), foram apontados núme-ros em torno de 143 mil estupros cometidos por ano em universidades, mas que so-mente 35% das vítimas costumam denunciar. Segundo MARTIN (2014), “as violações constituem somente a ponta de um iceberg de uma cultura na qual não só as mulheres são ultrajadas, mas também são reprimidos os alunos homossexuais e negros”.

Sobre esse contexto, em resposta a uma das perguntas direcionadas à ALMEIDA (2014) sobre como ela caracterizaria o problema da violência, especificamente, da for-ma como ocorreu na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, ela discorre:

O caso da Medicina ganhou muito destaque porque juntou esse tipo de trote com a violência sexual das festas, os estupros. Nem sempre eles estão associa-dos. Isso permite que alguns desses casos sejam realmente vistos como gra-víssimos. Isso vai permitir, e é muito importante isso, que a Universidade se repense (ALMEIDA, “Jornal do Campus” on-line, 2014).

Para ilustrar como a dominação simbólica pode se enraizar no corpo, Marina, ví-tima do abuso sexual da referida Universidade, relata que: “durante muito tempo eu me culpei por ter bebido e não ter oferecido resistência suficiente, por ter confiado”; “mas hoje me parece ridículo que não possa embebedar-me em uma festa da minha faculdade com meus colegas de classe, pois podem estuprar-me” (MARTIN, “El País” on-line, 2015).

Assim, essas formas de poder conseguem sobreviver articulando-se e ganhando cor-po através de constantes tramas tecidas entre as relações micro e macro de dominação. O “medo” que paira em algumas direções de universidades, para abrir discussões sobre todas essas violências, poderia ser uma dessas evidências. Isso porque, muitas universida-des silenciam-se com base nos supostos riscos que “escândalos” poderiam provocar em termos de desprestígio para as instituições. Nesse sentido, veremos na seção a seguir como surgem tais naturalizações e o que elas implicam para os marcadores sociais da diferença.

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III – quANdO NÃO SE quER, O quE SE quER?: ObSERVANdO COMO AGEM AS NAtuRALIZAÇõES

Ao ler algumas falas constantes nos vídeos do YouTubeBR, analisados no tópico an-terior, foi possível perceber como a maioria dos internautas repudia veementemente as violências praticadas no “trote”. Contudo, dificilmente consegue-se reverter o cenário de “submissão” aos(às) “calouros(as)” nas universidades. A dificuldade de tal situação implica em combater o que pressupomos estar atrelado às naturalizações.

Essa ideia está intimamente relacionada com as formas de perceber as identidades. Visto que, as reiterações discursivas constroem as “aparências” de sujeitos e de “verdade imutável” sobre as identidades. Desse modo, certas categorias, na expressão de Corrêa:

[...] nos parecem naturais porque são permanentemente reiterados nos dis-cursos e práticas culturais e institucionais: a nomeação, as insistências nas di-ferenças anatômicas, as leis, a separação dos espaços e funções. Ou, como disse Bourdieu em seu clássico “A Dominação Masculina”, traços que estão nos modos de pensar, nas palavras, nos espaços, nos objetos, nos modos de ver e de experimentar a corporalidade. Butler recorre à figura da drag queen, da tra-vesti, da pessoa trans, como figura filosófica que desestabiliza essas construções naturais (CORRÊA, on-line, 2016, p. 218).

Essas “aparências de verdade”, conforme Souza (2004), que causam a “impressão da naturalidade”, estão presentes no “ser” e na forma como são construídos. Desse modo, a relação entre discursos e fabricação de sujeitos requer a contextualização do processo de construção social de tais conceitos. O que se entende por “veteranos(as)” e “calouros(as)” está rodeado por uma série de atravessamentos91, marcando e formando socialmente sujeitos de maneiras muito distintas. Sobre o tema, por exemplo, diversas pesquisas foram elencadas por Moutinho (2014).

Assim, ao se falar sobre marcadores sociais da diferença, trabalha-se com o conceito de marca socialmente gravada no corpo. Isso ocorre não só através de códigos sim-bólicos reiterados discursivamente, mas também, por meio de práticas incorporadas pelos sujeitos – seja de forma consciente ou inconsciente. Em razão disso, é importante ponderar acerca de alguns cuidados na abordagem desse assunto. Isso porque, entra em questão o lugar de fala, que carrega consigo um conjunto complexo de fatores a serem observados. Autores como Butler (2003), Corrêa (2016), Souza (2004) e bell hooks (2008) chamam a atenção para esse ponto, evitando que se caia em uma série de

91 Atravessamento representa um dos sinônimos para o conceito de interseccionalidade, que trabalha com as imbricadas formas de sobreposições de marcadores sociais da diferença. Preferiu-se pela utilização do termo “atravessamento”, pois, didaticamente, sua compreensão parece ser mais direta.

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riscos sobre a construção de definições que poderiam padronizar sujeitos, reduzindo--os a determinadas visões, produzindo e reproduzindo determinantes imutáveis sobre a constância do “ser”.

Mas, por que tais estudos seriam relevantes para este trabalho, e qual seria o proble-ma em cristalizar sujeitos em determinadas classificações reducionistas? Ora, primeira-mente, quando se definem “veteranos(as)” e “calouros(as)” no interior de uma lógica binarista, criam-se obstáculos para se perceberem as possibilidades complexas do “ser”. Nesse sentido, há aí um problema. Para Butler (2003) e outros(as) pensadores(as), a genealogia do sujeito demonstra que sujeitos seriam “efeitos” de instituições, discursos e práticas, e não suas causas. Ao se produzirem “verdades” sobre as definições de su-jeitos, aqueles que não se enquadram às estruturas pré-definidas, por sua vez, estariam excluídos de direitos, de proteção, e assim por diante.

Porém, ao se assumir a construção das identidades, também é possível falar na ressignificação delas sob formas, inclusive, que subvertam as estruturas dominantes. Consequentemente, repensar tais processos possibilita enxergar a dinamicidade e com-plexidade dos fenômenos.

Desse modo, em que sentido seria interessante romper com as estruturas pré-cons-tituídas de sujeitos? Nesse sentido, o que é possível revelar quando as categorias são desestabilizadas? Ao observar como funcionam os marcadores sociais da diferença nos atravessamentos entre gêneros, sexualidades, classes e raça, é possível compreender melhor como diferentes combinações podem compor um universo infinitamente complexo sobre identidades. Também é possível observar como o lugar de fala das “categorias dis-sidentes” podem questionar o “sujeito abstrato universal”, o “ser” homem ou mulher, o “ser” qualquer, imóvel no tempo e no espaço.

Essas novas perspectivas também são defendidas para se refletir sobre o sentido e a importância simbólico-prática do ritual do “trote” em nossa sociedade. Desse modo, TOMMASINO e JEOLáS (2000) fazem algumas críticas às abordagens antropoló-gicas reducionistas sobre o assunto, ao defenderem que a perspectiva cultural deve ser observada a partir de sua dinamicidade e porosidade de significações. Por isso, “a análise do que representa o trote atualmente, e a violência com que tem se revestido em algu-mas universidades, deve levar em consideração o contexto da sociedade brasileira atual, com todas as contradições aí presentes” (TOMMASINO e JEOLáS, 2000, p. 30).

Por conseguinte, afirmar que o “trote” se caracteriza um “rito de passagem” é um risco. Isso porque, os tradicionais “ritos de passagem” caracterizam-se como ritos de iniciação. Nesse sentido, haveria a morte simbólica e o renascimento do sujeito por leis que marcam o corpo para a igualdade social. Não há um vínculo hierárquico, de submissão, mas sim uma nova fase de integração, em que o corpo é a memória do co-

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nhecimento. Logo, o poder não se separa do corpo e do social, que é um só “ser”. Tais dimensões e significados não se assemelham às “sociedades modernas”.

Até mesmo as zombarias são diferenciadas no “trote” moderno, que ao invés de inverter papeis sociais, reforça marcadores sociais da diferença, tornando estereótipos pontos de referência. Desse modo haveria na “sociedade moderna” uma “fragmentação e pulverização dos rituais”, como argumenta TOMMASINO e JEOLáS (2000, p. 37-40).

A partir dessa exposição, seguimos com alternativas para se combaterem as desi-gualdades a partir da ressignificação do “trote”, no avanço do Direito Humanitário em termos de uma estratégia político-democrática radical, assunto a ser tratado na próxima seção.

IV – RESSIGNIFICAR A PARtIR dE dENtRO É POSSÍVEL?: uMA EStRAtÉGIA POLÍtICO-dEMOCRÁtICA RAdICAL

Sobre orientações e políticas de atendimento e proteção, ALMEIDA (“Jornal do Campus” on-line, 2014) preleciona que a transformação deve partir não só de uma ação institucional92, mas também das relações interpessoais e do fortalecimento dos coleti-vos feministas – em seu sentido amplo de ação. Isso significa combater as estruturas de poder que se (re)inventam e se (re)produzem de diversas formas.

Para isso, existe a necessidade de abertura de espaços de discussão e reflexões críti-cas sobre o assunto, que abordem sobre as “piadinhas machistas”, as “humilhações”, as práticas de trote, dentre outras relações de poder. Assim, não basta que as universidades simplesmente proíbam as práticas de trote com a finalidade de resolver o problema, porque proibir, no caso, é reduzir as possibilidades de construção de uma política de-mocrática radical.

Nesse sentido, pensar sobre as formas de construção e manutenção das violências pode ajudar a criar estratégias para se ressignificarem as relações de poder a partir do seu interior. Como exemplo dessas estratégias, a primeira, concerne às forças econô-micas. Assim, fornecendo meios de vida sustentáveis no sentido político-democrático de participação. Essa perspectiva possibilita que novos valores possam integrar a pauta sistemática da economia, rompendo com a hegemonia de valores tradicionais e forne-cendo às pessoas condições mais igualitárias de acesso às necessidades reais. Daí que as ações sociais deveriam se incluir nas abordagens do sistema econômico, visto que suas causas interferem diretamente no desequilíbrio e nas desigualdades políticas que se constituem no seio social.

92 Sobre a criação de uma legislação específica para a criminalização do trote violento no Brasil, chegou a ser aprovado na Câmara dos Deputados, em 2009, o Projeto de Lei 1.023.

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A segunda estratégia seria combater os enquadramentos sociais que marcam as pes-soas, no que se refere às diferenças. Isso não significa destruir as identidades, mas pensá--las como processos e possibilidades. Nesses termos, é preciso “observar o modo como as fábulas de gênero estabelecem e fazem circular sua denominação errônea de fatos naturais” (BUTLER, 2003, p. 12). Desse modo, “se a universalidade não se impõe, a diferença não se inibe; sai à luz” (FLORES, in: WOLKMER, 2004, p. 375).

Contudo, essas ideias necessitam inspiração crítica constante sobre os conceitos, por meio de mecanismos de resistência e descentralização. Pois, a diversidade, em suas múl-tiplas nuances, requer um Direito criado por pessoas reais e para pessoas reais. Por certo, “[...] a universidade deve ser vista como um espaço de criação, de pensar democrático e que, mais que formar profissionais, tem como um dos principais objetivos produzir solu-ções para melhorar a sociedade na qual está inserida” (MENDONÇA, et al, 2002, p. 13).

Como forma de exemplificar essa estratégia, observamos o projeto “Trote Cidada-nia”. Este teve como apoio a Fundação Educar, a Consultoria Neurônio e a Faça Parte (Instituto Brasil Voluntário), com incentivo da Organização das Nações Unidas. Para alcançar os objetivos do projeto, foi realizado um concurso com premiações, estimulando diversas pessoas em universidades a participarem de ações sociais. Tais propostas deram outro significado ao “trote”. Assim, foi possível perceber outra forma de dominação, afinal, continuamos com a relação de hierarquia entre os(as) ditos “veteranos(as)” e “calouros(as)”, porém, existe uma outra forma de agir e formar simbolicamente as sub-jetividades, revertendo humilhações, estigmas e exclusões em práticas e discursos de integração e fortalecimento social, o que pode oferecer possibilidades de alcance pela igualdade social. Isso porque, as políticas forçam o “eu” e o “nós” a pensar melhores condições de vida.93

Logo, seria possível construir outros mecanismos de formação jurídica e direitos humanos pensando a partir dos efeitos das relações micro e macro de dominação. Isso porque, essas redes de conhecimento correm pelas pontes culturais, políticas e econô-micas, através de estratégias de troca e ação social.

93 Nesse exemplo, uma das Universidades que ganhou o prêmio “Trote Cidadania” em 2002, a Universi-dade da Amazônia (UNAMA) expôs o seguinte: “no dia 02 de março, embalados pelo slogan “Na UNA-MA os Calouros Ensinam Primeiro”, realizou-se o trote social da universidade. Para torná-lo possível, professores, alunos e funcionários não mediram esforços para beneficiar nove entidades pré-selecionadas, vizinhas ao campus Alcindo Cacela e Senador Lemos. Estiveram envolvidos nas atividades 350 calouros e 120 veteranos, pertencentes aos mais diversos cursos da universidade. A UNAMA ofereceu uma série de serviços, realizou atividades culturais e pedagógicas, além de arrecadar e doar cinco toneladas de alimen-tos para 221 famílias carentes. Dentre as ações realizadas estavam: distribuição de cestas básicas, emissão de documentos (certidão de nascimento, carteira de identidade e de trabalho), fotografias, corte de cabe-lo, prevenção de surdez infantil, atendimento médico pediátrico, além de orientações sobre hipertensão arterial, saúde bucal, vocal e sexual, e vacinação. Ao todo, foram beneficiadas, pelo Trote da Cidadania UNAMA, 1.891 pessoas” (MENDONÇA, et al, 2002, p. 17).

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CONSIdERAÇõES FINAIS

Em suma, buscamos contribuir com algumas reflexões para se repensar relações de poder e de dominação. Para isso, observamos de perto o funcionamento dessas forças agindo nas práticas e nos discursos. Nesse sentido, trabalhamos com diferentes pers-pectivas de significação do “trote”. Assim, ora percebemos o “trote” como reforço ou sinônimo de desigualdades, ora como força para construção das igualdades.

Além disso, repensar as possibilidades subversivas exigiu certo esforço para reler as hierarquias e as naturalizações, observando categorias para além de identidades fixas de sujeitos. Por conseguinte, entender sujeitos como processos em transformações e atra-vessamentos diversos nos corpos implica uma visão complexa dos fenômenos.

Nesse jogo de significação e ressignificação seria possível refletir sobre possibilidades de se repensar direitos humanos dentro das internalizações de controle sobre o sujeito, já que há caminhos para a reconstrução de sujeitos. Isso demanda trabalhar com um olhar crítico e autocrítico constante, colocando em ação formas de agenciamentos no sentido de criar mecanismos de resistências e emancipações.

Por fim, a sugestão que pareceu a mais efetiva não seria, somente, aceitar dispositivos de proibição das práticas violentas do “trote”, mas também reprimi-lo por meios mais eficazes e duradouros. Por isso, agir através de uma política democrática radical, ou seja, na raiz do problema, impedindo a formação de violências simbólicas ou não, demanda trocas e ações sociais. Desse modo, parece que inverter o sentido da correnteza seria o mais coerente. Contudo, restam muitos obstáculos para colocar tudo isso em prática.

REFERÊNCIAS

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TEogoNIA E “EXPRESSIONISMO ALEMÃO” – I DUE voLTI DELLA PAURA [AS duAS FACES dO HORROR]

Roberto C. Zarco Câmara – PPFEN / CEFET/RJAna Zarco Câmara – UFF

1. ovERTURE: A HÉLAdE E O HORROR ESSENCIAL dO HOMEM.

Dentro do cenário do Pensamento, e, ainda mais especificamente, na Filosofia, poucas culturas e civilizações detiveram uma importância tão grande para o espectro de construções problemáticas, sondagem axiológica e formação de dilemas conceitu-ais hodiernos que a Grécia Antiga, compreendida entre o início de sua “Era Arcaica” (circa IX a. C.) e o término do “Período Helenístico” (circa III d. C.)94. A influência grega posta-se tamanha para formação não só das “Ciências que tratam do Homem” [Ciências Humanas], mas também na constituição do que se compreenderia funda-mentalmente como o “próprio ao Homem per se”, conforme o entendamos Ocidental e hodiernamente:

[A] civilização Grega é creditada pela criação de muitos dos paradigmas intelectuais do Ocidente. A filosofia moderna, ciência, e tecnologia, muitos argumentam, ocorrem no término da trilha primeiramente assentada na anti-ga Atenas. (SHANKMAN; DURRANT, 2000, p. 1)

Levando-se em conta este apanágio da cultura grega antiga, aquele de compor o substrato originário de muitas das percepções, reflexões e assunções axiológicas da Hu-manidade como hoje a compreendemos, acessamos e circunscrevemos em nós mesmos de forma Ocidental e atinável, poder-se-ia assumir, sem prejuízo conceitual e no esteio de notórios historiadores e filósofos, que nos dispomos como herdeiros “espirituais” irresilíveis do modo de apreensão existencial-geral do grego d’outrora. De todo este manan-cial proveniente da antiga Hélade, o segmento que porventura melhor se constituiria

94 Cronologicamente, existe uma discordância entre as correntes genéricas das contemporâneas His-tória e História da Filosofia acerca do que se entenderia por “helenístico”. Historicamente, o “Período Helenístico” principiaria com a morte de Alexandre, o Grande (323 a.C.) e findaria com a emergência do Império Romano, tendo como o seu marco a “Batalha de Actium” (31 a.C.). Já do ponto-de-vista histórico-filosófico, o “Período Helenístico” desvendar-se-ia dadas as preleções e obras aristotélicas em IV a.C. até a emergência do Neoplatonismo por volta de III d.C.. No presente artigo, adota-se a con-cepção histórico-filosófica para o período, pois trata-se dum artigo filosófico, o qual detém como fio--condutor temporal conceitos mais filosóficos e da História das Idéias do que elementos historiográficos ou histórico-factuais.

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como fulcral à edificação de uma acurada e duradoura cognição daquilo que desde priscas durações constituir-se-ia na, “Humana demasiado humana”, mirada existencial do Homem tratar-se-ia daquele articulado às imagens, mitos e símbolos provenientes de primordiais experiências sacras e poéticas. Tais experiências dos âmbitos sagrados e poéticos sedimentam suas validades como sólidos princípios de estudo ao inexorável e constante mirar existencial Humano, graças às próprias qualidades imorredouras destas instâncias sacro-poéticas, ou, imagético-religiosas:

Começa hoje a compreender-se uma coisa que o século XIX nem sequer podia pressentir: que o símbolo, o mito, a imagem, pertencem à substância da vida espiritual, que se pode camuflá-los, mutilá-los, degradá-los mas que nunca se poderá extirpá-los. (ELIADE, 1979, p. 12)

Seguindo o liame acima disposto, e confirmado por Mircea Eliade, surdinar-se-ia um seguro e apropriado campo de estudo apegar-se às variáveis da mitologia, imagética e simbolismo sagrados dos gregos antigos para um melhor adensamento “daquilo que permanece”, de nossas herdadas, e ainda em vigência, cognições existenciais. Destarte, a compreensão dos mistagogos, dos formadores de juízo das mais imanentemente gre-gas idéias e conceitos acerca do sagrado, permitiria um compreender similar daquilo mesmo que se legou ao Homem de hoje em seu basilar substrato. Neste senso, trata-se de valiosa uma colocação de Heródoto, a qual desvela quais seriam, entre os antigos habitantes do Egeu, os mais famigerados formadores destas “mitológico-sagradas percepções existenciais”:

οὗτοι δὲ εἰσὶ οἱ ποιήσαντες θεογονίην Ἕλλησι καὶ τοῖσι θεοῖσι τὰς ἐπωνυμίας δόντες καὶ τιμάς τε καὶ τέχνας διελόντες καὶ εἴδεα αὐτῶν σημήναντες. (HERÓDOTO, Histórias, II.53.2)Estes [Hesíodo e Homero] são aqueles os quais alicerçaram uma teogonia para os Gregos e os que forneceram aos deuses seus apelos, distribuíram suas honras e habilidades, e explanaram suas formas. (Tradução Nossa)

Dentre tais mentores, forças/indivíduos formadores do grego solo mitológico e, larga medida, principais agentes da παιδείᾱ [paidéia (formação; educação)] do Homem grego, Hesíodo compor-se-á aquele que melhor circunscreverá as gregas apreensões/aflições existenciais. Hesíodo será o autor principal de toda helênica pletora de imagens e símbolos sacros face um universo que tende ao monstruoso, horripilante e àquilo próprio do suscitar da paúra. Portanto, apesar de toda fecundidade ético-filosófica dos versos homéricos, os hesiódicos versos melhor se dispõem a um tratamento filosófico que tenha, como o presente artigo, entre os seus objetivos reportar a imagens, símbolos

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e forças articuladas a um imo pavor do Homem. Horror intenso perante um existir que o sobrepuja e detém em sua origem a Noite, o Caos e todo um conjunto de potestades monstruosas. Em tempo, confirmará esta perspectiva o insigne tradutor de Hesíodo, Jaa Torrano, na Introdução de sua tradução da Teogonia:

O que se lerá neste livro [Teogonia] é um discurso sobre o nefando e sobre o inefável, (...) um discurso sobre o que não deve e não pode ser dito, quer por ser motivo do mais desgraçado horror (o Nefando), quer por ser motivo e objeto da mais sublime vivência (o Inefável). (TORRANO, 2001, p. 13)

Pospostas as colocações supra, Hesíodo postar-se-á dentre os primeiros constituin-tes da παιδείᾱ grega, e, primevamente, também daquela do Homem hodierno, naqui-lo concernente a uma Humana “aflição horripilante face ao Todo”. Em inesquecíveis versos, o aedo favoravelmente fornece tratamento mítico, simbólico e imagético a toda uma apreensão “existencial nefanda”, conforme se atesta ao trazermos à baila os vv. 116 e 123 de sua Teogonia. Ambos os versos arranjam-se modelares na colocação do hor-ror/medo no cerne da criação: (...) ἦ τοι μὲν πρώτιστα Χάος γένετ᾽. (...) ἐκ Χάεος δ᾽ Ἔρεβός τε μέλαινά τε Νὺξ ἐγένοντο95 (HESÍODO, Teogonia, vv. 116; 123).

No momento primordial, o que está em jogo é o Caos, entendido, hesiódica e gre-gamente falando, como o Abismo, o infinito espaço, a infinita escuridão96. Dessarte, as potências criativas e primordiais rebentam dum elemento assombroso, abissal e vago donde tudo que se seguirá provém. A raiz do âmbito propriamente Humano, o qual se apensará ao κόσμος [cosmo; ordenação; arranjo] do luminoso, distinto e antropomór-fico panteão olímpico, atrela-se de modo irremediável a um possível caótico, princípio ilimitado de cisão e diferenciação, prenhe de bestiais e ciclópicas monstruosidades, uma lacuna aonde nenhum pisar é possível (MOST, 2006, p. xxxi).

Delineia-se, portanto, o horrorífico e o inominavelmente pavoroso como partes irradicáveis e inexoráveis do existir. Através de Hesíodo protrai-se a reflexiva afirmação e disposição da condição existencial destituídas de toda historicidade, como se, dis-tintamente da “Idade de Ouro”, a qual sempre se apresenta ameaçada em sua vigência onírica, os horrores fossem uma presença constante por se encontrarem no berço de tudo o que há. As práticas e cogitações religiosas gregas de antanho amiúde confirmam o inexorável do horror trazendo, mesmo para o interior do aparentemente alumiado do panteão olímpico, e práxis religiosa articulada, uma assombrada necessidade.

95 [(...) pois, primeiro de tudo, o Caos veio-a-ser. (…) do Caos, Erebos e a negra Noite vieram-a-ser. (tradu-ção nossa)].96 Cf. LIDDELL, Henry George, SCOTT, Robert. An intermediate greek-english lexicon. 90ª ed. Oxford: Clarendon Press, 1996, p. 1976.

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Diversos ritos e práticas religiosas propalados entre os gregos antigos findaram por lograr uma necessária transposição do horror, e demais forças de paúra, para os seus cernes. O horror torna-se tão inalienável ao ser-Homem que se filtrara nos recessos da religião popular da Hélade, em seu cultuar dos mais diversos numes olímpicos que, numa superficial percepção, representariam o oposto do terroroso e horrendo. Enquan-to exemplo extremo ter-se-ia o Λυκαία [Lykaia], ritual em glória a Zeus ocorrido em seu santuário no monte Λύκαιον [Lykaion] onde sacrifícios humanos e infantricídios, envolvendo surtos de licantropia, eram marcantes e macabras presenças97. Outro si-nistro exemplo, desvelar-se-ia o δαὶς ὠμόφαγος98, festival dionisíaco no qual os par-ticipantes alimentavam-se da carne crua de um touro, ou, dependendo da região, um cabrito-montês, imolado em honra a Dionísio99. Todas estas manifestações, ocorridas no seio da cultura grega olímpica, usualmente associada à temperança, luminosidade e proto-racionalidade, demonstram uma disposição na qual o terrível, o assustador e o monstruoso estão incorporados no fenômeno existencial mitologicamente edificado. Antes mesmo de qualquer procura artística de estabelecer uma encenação teatral, o δρᾶμα100, capaz de causar uma coletiva catarse, consolo metafísico ou espetáculo gi-rando entorno das pulsões trágicas de um Homem tornado excelente, o Herói, o grego toma para si a mitologia desvendada pela Teogonia. Mitologia teogônica transposta como prática religiosa, enquanto uma hierofania macabra na qual se atualizavam as percepções essenciais da Existência em todo o seu lado noturno, abissal e bestial.

2. ALLEMANDE: O HORROR ESSENCIAL dO HOMEM E O CONtEMPORÂNEO (tEMPO CINEMAtOGRÁFICO).

Na contemporaneidade, o templo de Ζεύς-Λύκαιος [Zeus-Lobo] encontra-se coberto de mirto, os cultos dionisíacos regrediram às ctônicas escuridões do olvido. Todavia, por mais que o Homem d’hoje não realize lutuosas e pagãs-clássicas práti-cas religiosas que lhe ratifiquem de como inextricavelmente o horror, e demais forças duma primordial paúra, imiscuem-se ao existencial, ainda assim as potências caóticas, abissais e sobre-horrendas ilustradas por Hesíodo encontram expressão. A Arte será o

97 Cf. BURKERT, Walter. Homo necans: the anthropology of ancient greek sacrificial rituial and myth. Berkeley: University of California Press, 1983, pp. 84 – 93.98 Omófaga refeição solene e religiosa em que todos os convivas são iguais [cf. MALHADAS, Dai-si, DEZOTTI, Maria Celeste Consolin et alii. Dicionário grego-português. v. 1. Cotia: Ateliê Editorial, 2006, p. 195].99 Cf. HARRISON, Jane Helen. Themis: a study of the social origins of greek religion. Cambridge: Cam-bridge University Press, 1912, pp. 118 – 9.100 Peça de teatro; drama; efeito teatral; cena trágica; acontecimento trágico. [MALHADAS, Daisi, op. cit., p. 251].

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locus opportūnus [local favorável, oportuno] atual para o expor da paradoxal condição do Homem em sua eleição, a priori mitologicamente comprovada e visível, do horror/medo como o imanente existencial. A Humana e inviolável busca por articular-se a horripilantes “infra-estruturas” metafísico-essenciais instalar-se-á num vir-a-ser artís-tico que não se subsume à edulcorada fruição, diletantismo ou simples culto ao Belo. Mas, sim, a uma expressão artística, amiúde imagética, que se surdine como a apresen-tação das agruras e dilemas do Homem perdido em-si-mesmo, à guisa dum princípio que exprime e define o Homem per se, algo que

devemos sim, por nós mesmos, aceitar que nós já somos (...) imagens e proje-ções artísticas, e que a nossa suprema dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte - pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente -, enquanto, sem dúvida, a nossa consciência a respeito dessa nossa significação mal se distingue da consciência que têm, quanto à batalha representada, os guerreiros pintados em uma tela. (NIET-ZSCHE, 1992, p. 47)

Alçado a uma condição estético-existencial inexorável, como mesmo corrobora a citação nietzschiana supra, o Homem contemporâneo imiscui-se a um processo de des-velar de si-próprio por meios artísticos, tanto quanto o grego do passado far-lo-ia pelos ritos e práticas religiosas. A exibição do fero fundo comum que une os gregos d’outrora e os Ocidentais d’hoje se dá pelo fenômeno estético. Através duma Arte que enquanto estetizar de si e do seu entorno trazem em seu bojo o grego que conheceu, sentiu e in-tuiu os horrores do existir numa primitiva teogonia titânica.

Das múltiplas possibilidades de expressões artísticas, o Cinema, e mais especifi-camente o filme de Horror/Terror, revela-se aquela mais adequada a trazer à tona o recôndito cris do Homem, e sua existencial apreensão primal, ao mesmo tempo que os atualiza a partir da co-participação do espectador no horrífero. A estrutura fílmica do cinema de Horror/Terror é aquela apta a, repentina ou paulatinamente, tornar o Mundo, ou, melhor dizendo, à sua Humana e ordinária vorstellung101, estranha, sinis-tra... extraordinária! O acontecimento da película de Horror/Terror desempana algo que Não esta ordem impecável, não este patrão, que se vestia impecavelmente e era impe-cavelmente polido102 (BÖLL, 1983, p. 5). Enquanto movimento imaginal, esse gênero artístico-fílmico traz uma vigência outra, aonde toda substância, a qual se julga possuir acesso de modo prosaico, não pode mais ser percebida, experienciada e atualizada à medida que se torna simples presença.

101 Idéia, concepção, ilusão, imaginação, representação.[Cf. WAIBL, Elmar, HERDINA, Philip. Wör-terbuch philosophischer Fachbegriffe Englisch. München: K. G. Saur Verlag, 1997, p. 330].102 Nicht diese makellose Ordnung, nicht diesen Chef, der makellos gekleidet und makellos höflich war (…).

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Presença pálida como a chama vacilante duma vela num aposento escuro como breu, numa instância na qual o extraordinário é o todo da vigência e a sombra não mais subjacente. Tudo a priori tido como fantasmagórico, assombramento, não mais à servi-ço dos ditames claros e regulares de impecáveis, diurnas e racionais ordenações que não lhe concediam, e concebiam, um desvendar autônomo e status primevo. A intrínseca e intangível estranhez, o indizível do mistério, a horrorosa sugestão, não mais domados e velados pela metáfora e a alegoria. A extraordinária película de Horror/Terror não é me-tafórica ou alegórica, porque é o trazer para superfície da imagem aquilo que se ajuízava ctônico, umbral, domado pela segurança das alegorias ou a positividade das metáforas.

A alegoria com o seu intuito em representar pensamentos, idéias, qualidades sob formas figuradas, em que cada elemento funciona como um disfarce dos elementos da idéia representada, não encontra espaço para uma criatura como o, hesiodicamente monstruoso, Nosferatu e sua Sinfonia dos Horrores [Symphonie des grauens]103. Distinta-mente do Drácula de Bram Stoker, coberto de várias camadas alegóricas onde, ocultas sob o texto literal, jazer-se-iam significações morais e concepções intelectuais ligadas a temas sexuais, o terroroso filme de Murnau em nada se assemelha ao alegorismo do romance gótico: Nosferatu é nada mais que o calamitoso descortinar de ratos, peste e morte – o horror em seu mais bruto e antediluviano estado.

Não há na obra fílmica de Horror/Terror metáfora alguma. É-lhe incabível o metafórico com sua positividade e verossimilhança por designar objetos e qualidades mediante palavras, imagens e expressões que designam outros objetos ou qualidades que têm com os primeiros uma relação de semelhança. O Horror/Terror jamais se abre ao metafórico por ser apartado de toda comprehensiō104, o seu possível colossal, singular e inominável capaz de Humanamente se entrever não se desentranha de maneira alguma apreensível em sua totalidade. Horrorificamente se manifesta incapaz de gerar qual-quer conhecimento apoderável, não engendra uma compreensão factível aos Homens. O Horror/Terror trata do hediondo, da ocorrência aonde todo o significado colapsa, porque todo o sujeito que concebe o significativo, aquele que permite a construção de sentidos ordinários numa ordem impecável de elementos capazes de interligarem-se em redes semânticas, de chofre se descobre diante dalgo radicalmente excluído do seu usual e vivente espaço. Há a extraordinária vigência do grito defronte daquilo que não deve, e não pode, ser dito. A baldada associação com nada que não a incomprehensibilis [não-comprehensiō] dos maltratados, enfermos, desesperados e derruídos panoramas ter-

103 Nosferatu, eine Symphonie des grauens. Dir. F. W. Murnau. Prana-Film, Alemanha, 1922.104 Ação de agarrar com as mãos; ação de apoderar-se dalguma cousa, apreensão; compreensão; conhe-cimento; argumento compreensivo; agrupar de palavras classificando-as numa mesma dimensão. [Cf. LEE, G. M. (ed.). Oxford latin dictionary. Oxford: Clarendon Press, 1968, p. 381].

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restres desfraldados pelas sortílegas e bruxuleantes lentes de Murnau em Fausto105. O manifestar-se do congelante pavor frente ao que, por ser motivo do mais desgraçado hor-ror, ameaça toda a vida ordinária e subjetivamente concebida ao postar todos em leteu resguardo, viajando através do ar, com o diabo [Mefisto], que destelha todos os telhados, desencerra todos os mistérios (HOFMANNSTHAL, 1978, p. 151).

Nas exposições supra de como o ctonicamente extraordinário da película de Hor-ror/Terror só pode protrair alegorias frustradas e metáforas negativadas, de forma não aleatória ou gratuita lucilaram duas fitas oriundas da vereda cinematográfica do Ex-pressionismo Alemão106. O “Expressionismo Alemão”, quando não amiúde enredado em obras totalmente submersas nos gêneros de Drama, Thriller ou Ficção-Científica, sobressaiu-se por uma farta e pioneira produção de filmes de Horror/Terror que até hoje surpreendem como ilustrativos desse gênero fílmico. E, outrossim, tanto quanto os versos de Hesíodo e a religião grega do passado, as películas de Horror/Terror do “Expressionismo Alemão” desentranham e atualizam o horror essencial do Homem. Por seus tons imorredouros e formacionais na filmografia do Horror/Terror e poder artístico para exprimir o primordial, indelével e aterrador “Tártaro” tão inalienável ao ser-Homem, o “Expressionismo Alemão” merece um escrutínio na contextura do pre-sente artigo.

3. gIgUE: CONtRAPONtÍStICA CONCLuSÃO – O “EXPRESSIONISMO ALEMÃO”.

As películas de Horror/Terror do “Expressionismo Alemão” concebem, assim como os versos hesiódicos, que sob, subjacente, basilar à Terra, no espaço-tempo onde-quando se dá a presença da possibilidade diurna e a ordem impecável através da qual o Homem crê sempre se mover quotidianamente, descansa a vigência do sombrio e sem-fundo Tártaro. Um impossível de ser palmilhado abismo vasto/poderoso [χάσμα μέγ᾽], no qual turbulento tufão após tufão [θύελλα θυέλλῃ ἀργαλέη]107 chacoalham e silenciam todos

105 Faust – Eine deutsche volkssage. Dir. F. W. Murnau. UFA, Alemanha, 1926.106 Trata-se de debate intenso entre historiadores, filósofos e especialistas em Cinema sobre quais produções inserir-se-iam no conjunto “Expressionista Alemão”, ou ainda, o que se poderia de fato compreender como o característico desse movimento estético-fílmico (Cf. SCHEUNEMANN, Dietrich. Activating the differences: Expressionist film and early Weimar Cinema. In: SCHEUNEMANN, Dietrich (org.). Expressionist film: new perspectives. Rochester: Camden House, 2003, pp. 1 – 31). Aqui, adotou-se uma perspectiva bem ampla e, em geral, pouco problemática em termos de reflexiva tecnicidade: O “Expressionismo Alemão” inicia-se com O gabinete do Dr. Caligari [Das Cabinet des Dr. Caligari. Dir. Robert Wiene. Decla Film-Gesellschaft, Alema-nha, 1920], e finda-se com Metrópolis [Metropolis. Dir. Fritz Lang. UFA, Alemanha, 1927], perfazendo um total de 23 filmes. Esta filmografia pode ser consultada, em: BORDWELL, David, THOMPSON, Kristin. Film history – an introduction. 2ª ed. New York: McGraw-Hill Higher Education, 2003, p. 104.107 Cf. Hesíodo, Teogonia, vv. 740 – 3.

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que se põem sob a sua vigência, sempre a ameaçar o seu especular e aposto reflexo – o impecavelmente polido espaço-tempo terreno em todas as suas regularidades, demarca-ções e apolíneas formas. Serão tais turbulentosos ventos abissais, que vem debaixo da imagem projetada, a energia destrutora a moldar a cenografia das películas de Horror/Terror do “Expressionismo Alemão”.

As entortadas edificações e torre-do-cabalista no guetto judeu em Golem108, a desa-fiarem as aparências superficiais e aparentemente retilíneas imaginadas para tais cons-truções, trazem ao imediato da imagem o “anima distorcido” do horror típico dos “furacões do Tártaro”. A cidade de O gabinete do Dr. Caligari com suas casas e obras de engenharia arqueadas, quiçá bambas, e enxutas, quase “descarnadas” pela falta de usual perspectiva tridimensional, evocam subversivas imagens. Abomináveis projeções dignas de uma antecâmara do Inferno de tudo considerado Humanamente natural, como se um trigueiro véu cobrisse toda visão no sentido de volume e profundidade. O solo, no qual se assentam as tendas do pesadelar “circo” de O gabinete..., inclina-se fortemente para cima, alcantilando-se, movido por um brutal e subterrâneo movimento que verga tudo que tenta, debalde, manter-se em reta e equilibrada verticalidade.

O dispositivo cênico do “Expressionismo Alemão” é o duma extraordinária e pavo-rosa “superfície” arremetendo como uma destruição de um espaço plástico, uma vasta empresa de demolição, que começa por se desvencilhar dos cardeais, dos nenúfares (PAU-LHAN, 1970, p. 53) e das hipóteses idílicas da Tradição, dos tratados de perspectiva da experiência imaginal. O horror das imagens cenográficas que se experimenta na articulação com as lentes de Murnau, Wiene ou Wegener arranja-se o da destruição do mais triste zoológico que se pode imaginar (PAULHAN, 1970, p. 93). O zoológico, aquele espaço repressor e cotidiano onde se dá a quadricular martirização das linhas, cores, superfícies planas, até que elas dêem a ilusão de profundidade, ou sei lá qual equivalente mesquinho do infinito (PAULHAN, ibid.). Cenográfica e imaginalmente aniquiladas cada página dos tratados de perspectiva, essas prisões, modelos repletos de cubos, alguns dos quais se apresentam de frente, outros de perfil, de três quartos, dois terços (PAULHAN, ibid.), e assim sucessivamente, desenterram-se todos os horrores ínferos e oriundos do Tártaro, tal como o monstruosidade chamada Tifeu109. Horrores que, libertos de quais-quer amarras, transbordam para todos na contigüidade da imagem desfraldada.

O vasto abismo que caracteriza o Tártaro espraia-se em horrípila soberania no “Ex-pressionismo Alemão”. A composição visual de suas películas de Horror/Terror, nas antípodas de filmes clássicos e tradicionais de gêneros outros, não dispõe o Homem como o elemento mais expressivo, espécie de antropocêntrico farol ou ponto-de-fuga

108 Der golem, wie er in die Welt kam. Dir. Paul Wegener & Carl Boese. PAGU, Alemanha, 1920.109 Cf. Hesíodo, Teogonia, vv. 820 – 852.

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a coagir a convergência de todo o entorno. Inexiste em tais películas pintadas com es-curidões sanguíneas, o interesse em compelir os cenários, figurinos e iluminação a po-sições hierárquicas inferiores às figuras Humanas, porventura subjugando as linhas do primeiro plano à antropomórfica importância e sua fabricada profundidade. O abismal e nigérrimo sem-fundo desconstrói a percepção da profundidade, vige tão-só o inson-dável de atros devires graficamente esparramados na tela bidimensional. Amiúde, não há como discernir entre a cenoplastia e os “agentes”, os “atores” que figuram na ambi-ência fílmica. A perturbação, destruição e distorção cenoplásticas invadem os “atores” tornando-os, igualmente, perturbados, destruídos e distorcidos nesta fusão: Ele [ator] fundir-se-á no milieu representado, e ambos (cenário e ator) mover-se-ão no mesmo ritmo (VEIDT, 1924, p. 3). Destarte, não só a cenografia funciona quase como um orgânico componente da ação e manifestação hórridas da fita, mas o corpo do ator torna-se um articulado elemento visual.

Desta forma, a demoníaca e animada estátua de golem, interpretada pelo próprio diretor, Paul Wegener, possui uma textura que o funde com as retorcidas edificações do guetto judeu: Ambas parecem serem feitas de barro, frutos de malévola e inatural demiurgia. A heroína de O gabinete..., Jane Olsen (Lil Dagover), a percorrer as ruelas abertas entre as tendas do macabro “circo” confunde-se com a cenoplastia onirodínica e alongada, como se de mesma matéria fossem feitas. A feiticeira genuine110 (Fern An-dra) evoca uma cadenciada dança funesta com os seus movimentos espasmódicos que se assemelham às, igualmente exageradas e surreais, pinturas do aposento em que se encontra, enquanto tenta enfeitiçar o frágil Florian (Hans Heinrich von Twardowski) a suicidar-se como uma derradeira e desvairada mostra de amor.

As propriedades emergentes do noturno e letal Tártaro, por certo, não se restrin-gem aos dispositivos cênicos e aos “atores” que se movem no mesmo ritmo soturno. O extraordinário Tártaro traz, devido a sua genealogia111, um aparentar-se e aproximar-se íntimo com o χάος [Caos]. O que lhe permite, assim como o seu “caótico genitor”, alastrar-se por cissiparidade que difunde as potências tenebrosas imanentes a toda “li-nhagem abismal”, o espraiar das forças de negação da ordem e da vida positivo-luminosa para a totalidade da Natura na imagem fílmica do “Expressionismo Alemão”. Exemplos desta esquizogênese mencionada abundam na filmografia expressionista alemã, sendo um dos seus mais nítidos, ainda que a película em-si-mesma seja em geral subestimada e desconhecida, O Cavaleiro Pétreo112: O contorno corporal da feminina personagem, ascendendo a rochosa montanha, estende a sua forma à árvore desfolhada em taciturna congruência; o Schloss [palácio] do tirânico Herr vom Berge (Rudolf Klein-Rogge), es-

110 genuine - die Tragödie eines seltsamen Hauses. Dir. Robert Wiene. Decla-Bioscop, Alemanha, 1920.111 Cf. Hesíodo, Teogonia, v. 119.112 Der steinerne Reiter. Dir. Fritz Wendhausen. Decla-Bioscop, Alemanha, 1923.

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culpido como uma saliência nas montanhas, integra-se ao petroso entorno propagando uma contínua frialdade, tenebrosidade e ameaça a todos abaixo de sua colossal sombra. Porém, a mais propalada exemplificação deste fenômeno horroroso-cissíparo a subsu-mir a Natureza, encontrar-se-á em Nosferatu:

A Natureza participa na ação [de Nosferatu]: sensível montagem faz com que as ondas pululantes pressageiem a chegada do vampiro, a iminência da morte prestes a tomar a cidade. Sobre todas as paisagens – cômoros escuros, densas florestas, céus rasgados por nuvens tempestuosas – paira o que Balázs chama a grande sombra do sobrenatural. (EISNER, 1973, p. 99)

Será exatamente esta grande sombra do sobrenatural, o extraordinário primitivo e horrendo a ameaçar a totalidade existencial, que trará uma vigência “vasta-abissal” e “turbulenta-redemoinhada” às imagens da φύσις [Natura] e dos ἄνθρωποι [Homens] a priori organizadas em ordem impecável, e impecavelmente polidas, e “vestidas”. Nos filmes de Horror/Terror do “Expressionismo Alemão”, o Ταρτάρου ἠερόεντος [Tártaro nevoento] converte-se na única e nebulosa planura a arremessar tudo sob a sua perti-nência nos Νυκτὸς δ᾽ ἐρεβεννῆς οἰκία δεινὰ (...) νεφέλῃς κεκαλυμμένα κυανέῃσιν113 (HESÍODO, Teogonia, vv. 744 – 5). Não se encontrará mais, portanto, na visibilidade de realistas e genuínas cenas em movimento (GUNNING, 1990, p. 56), mas nos domí-nios do “Outro subterrâneo-especular”, do insólito, da matéria-prima do misterioso e extraordinário, daquilo que se julgava impossível por a priori ser “invisível”.

Subitamente, perde-se num, para usar uma expressão de Gorki, Reino das Som-bras114 em que o seqüencial, o óbvio iminente e o presente anuviam como tudo o mais: Descobre-se em meio a profanos rituais na enevoada e infernal câmara do notável e desesperado cabalista judeu, o rabi Löw (Albert Steinrück), localizada num guetto ju-deu do séc. XVI115. Esfumaça-se o próprio espaço considerado concreto e diário, onde os Homens movem-se nas suas atividades em vigília e consciência: Perde-se no sono pesadelar e confuso do pintor Percy (Harald Paulsen), na superfície pictórica que não é mais μίμησις [mímesis; imitação], porém vivificado delírio e bruxedo a pervagar “su-perficialmente”, livre da profundidade e da limitação espacial da hiper-crosta, à guisa dum fantasma num vórtice incorpóreo116.

Rapide duma suíte barroca, o horror primordial toma a imagem, completa “su-perfície”, da película de Horror/Terror do “Expressionismo Alemão”. Nada se vendo

113 terríveis palácios da trevosa Noite (...) ocultos por nuvens negras. (tradução nossa).114 Cf. LEYDA, Jay. Kino: a history of the russian and soviet film. London: George Allen & Unwin Ltd, 1960, pp. 407 – 9.115 Cf. golem, wie er in die Welt kam. Dir. Paul Wegener & Carl Boese. PAGU, Alemanha, 1920.116 Cf. genuine - die Tragödie eines seltsamen Hauses. Dir. Robert Wiene. Decla-Bioscop, Alemanha, 1920.

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livre de sua abissal, vasta e sinistra vigência oriunda do χθόνιος [na/sob/abaixo da ter-ra] da própria “ontologia” Humana, do inapagável do ser-Homem. Cinematográficas “imagens-movimentos” dos prístinos e, paradoxalmente, hodiernos versos de Hesíodo com suas buscas por verbalizar os horrores que espreitam incessantemente a vida no tempo e no espaço (LOVECRAFT, 2000, p. 54 – 5) a partir de palavras-conceitos, como: χάος [Caos], Τάρταρος [Tártaro] e Νύξ [Noite]. Esfumaçadas e visuais passacailles [passa-cales] do frenesi torvo dos rituais noturnos sob as sombras do templo de Zeus-Liceu acalentadas pelos uivos, ganidos e rosnados dos licantropos – atualizações dum imo horror existencial. Mais que um vazio e contemplativo acontecimento, a película do Horror/Terror, mesmo vertida para fora dos limites do “Expressionismo Alemão”, faz--se uma assombrada ocorrência a ratificar que a “tortura dos malditos” é infindável. As super-pungentes tragédias vitais do Homem dispostas como ininterrupto basso continuo a promover calafrios até às raias da loucura, desenterrando penumbrosas instâncias povoadas de vampiros, demônios, feitiçeiras, golens, noctâmbulos...

bIbLIOGRAFIA

BORDWELL, David, THOMPSON, Kristin. Film history – an introduction. 2ª ed. New York: McGraw-Hill Higher Education, 2003;

BURKERT, Walter. Homo necans: the anthropology of ancient greek sacrificial rituial and myth. Berkeley: University of California Press, 1983;

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EISNER, Lotte Henriette. The haunted screen: Expressionism in the german Cinema and the influence of Max Reinhardt. Berkeley: University of California Press, 1973;

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HERODOTUS. History. Tradução: A. D. Godley. New York: G. P. Putnam’s Sons, 1921. t. 2 (Col.: Loeb Classical Library);

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HESIOD, Theogony; Works and Days; testimonia. Cambridge: Harvard University Press, 2006;

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. 4ª ed. São Paulo: Editora Iluminuras, 2001;

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LEYDA, Jay. Kino: a history of the russian and soviet film. London: George Allen & Unwin Ltd, 1960;

LOVECRAFT, Howard Phillips. O chamado de Cthulhu. 2ª ed. Paraná: Campanário, 2000;

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FILMOGRAFIA

Das Cabinet des Dr. Caligari. Dir. Robert Wiene. Decla Film-Gesellschaft, Alemanha, 1920;

Der steinerne Reiter. Dir. Fritz Wendhausen. Decla-Bioscop, Alemanha, 1923;

Der golem, wie er in die Welt kam. Dir. Paul Wegener & Carl Boese. PAGU, Alemanha, 1920;

Faust – Eine deutsche volkssage. Dir. F. W. Murnau. UFA, Alemanha, 1926;

genuine - die Tragödie eines seltsamen Hauses. Dir. Robert Wiene. Decla-Bioscop, Ale-manha, 1920;

Metropolis. Dir. Fritz Lang. UFA, Alemanha, 1927;

Nosferatu, eine Symphonie des grauens. Dir. F. W. Murnau. Prana-Film, Alemanha, 1922.

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LINGuAGEM, SIGNIFICAdO E VERdAdE: INCERtEZAS E PILARES NA PESquISA EM EStudOS

dA LINGuAGEMTalita de Oliveira – PPFEN / PPRER / CEFET/RJ

1- INtROduÇÃO

A Semântica é uma área de conhecimento, residente na fronteira entre os estudos linguísticos e os filosóficos, de intensa disputa teórica e de objeto instável e disperso. Não é de hoje que a preocupação com o significado das palavras e dos enunciados se faz presente. Mesmo quando ainda não havia um estudo sistematizado (logo ‘científi-co’) acerca do objeto da linguagem, a temática do significado já comparecia em textos fundadores do pensamento ocidental, em especial nos escritos de filósofos da Grécia Antiga. Reflexões acerca do significado e da linguagem emanavam dos escritos de sofis-tas e socráticos (entre estes, Platão e Aristóteles), ainda que viessem a reboque de outras preocupações, como a natureza do ser e do conhecimento.

O significado, entretanto, sempre foi um território de incertezas e instabilidades nos estudos sobre a linguagem. Com Saussure (1969), inaugura-se a Linguística, que, como ciência da linguagem, buscava um objeto circunscrito de estudo cuja análise dar--se-ia por meio de um método objetivo, típico de uma área do conhecimento que se pretende ser ‘ciência’. O discurso inaugural de Saussure, apesar de sua “revolucionária concepção não-substancialista” (MARTINS, 2005, p. 470) da linguagem, privilegiou fenômenos relacionados à forma linguística, dada a própria natureza deslizante e pro-blemática do significado. Historicamente, os estudos linguísticos operacionalizaram dicotomias a fim de tentar superar essa resistência do significado: o sentido da palavra habitaria dentro ou fora da letra? O significado seria universal ou definido cultural-mente? Quais os limites entre o literal e o figurativo? Seria o significado transparente ou opaco? Até hoje, o significado é motivo de controvérsia e disputas teóricas, o que nos leva a voltar nossas atenções para o próprio papel de destaque que a linguagem tem ocupado contemporaneamente.

O presente trabalho visa traçar linhas gerais acerca do objeto da Semântica, desta-cando-se os três grandes paradigmas sobre a linguagem e as noções de significado e de verdade a eles subjacentes. Ao percorrer essas três vertentes, procurarei focalizar duas reincidentes polêmicas em torno do significado: as dicotomias universal vs. cultural e imanentismo vs. conhecimento de mundo. A seguir, procurarei situar a perspectiva que

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melhor se alinha aos estudos, de cunho interpretativista (GEERTZ, 1989), que venho desenvolvendo em minhas pesquisas.

2- tRÊS INFLuENtES PARAdIGMAS

O surgimento da Semântica como área de conhecimento autônoma ocorre no final do século XIX. Entretanto, reflexões acerca da natureza da linguagem e do significado datam do século V a.C, quando, na Grécia Antiga, filósofos debruçados sobre indaga-ções relativas ao ser e à verdade já demonstravam interesse pela linguagem. Os textos desses filósofos, apesar de não tratarem a linguagem como eixo central de discussão, constituem um corpus embrionário para a compreensão do fenômeno linguístico em sua complexidade (MARTINS, 2005).

Na busca pela demarcação desse espaço referente ao logos (à verdade), haverá uma polarização entre duas correntes de pensadores: de um lado, os socráticos; de outro, os sofistas. Nesse embate, mais que uma simples divergência de ideias, reside uma tensão ontológica fundamental. Pelo lado dos socráticos, defende-se que as coisas possuem uma essência fixa e perene; já os sofistas sustentam que “o homem é a medida de todas as coisas” (como diria Protágoras). Essa cisão implicará diferentes concepções acerca da natureza da verdade e do papel da linguagem. Enquanto os socráticos compreenderão a linguagem e o significado sob uma perspectiva essencialista e representacionista, os sofistas adotarão uma abordagem relativista e pragmática, voltada para os efeitos do discurso na práxis.

Do embate teórico entre socráticos (especialmente na voz de Platão e Aristóteles) e sofistas, nascem as três grandes vertentes para a compreensão contemporânea do fe-nômeno linguístico, a saber: a) a perspectiva realista, para a qual a linguagem significa quando reconhece/descreve parcelas do real; b) a perspectiva mentalista, para a qual a linguagem significa quando representa conceitos e/ou imagens mentais; c) a perspectiva pragmática, para a qual a linguagem significa no uso, nas práticas e em sua dimensão constitutiva.

2.1- A VERtENtE REALIStA

Pode-se dizer que o embrião de uma perspectiva realista sobre a linguagem encon-tra-se nos escritos de Platão. Insurgindo contra a democracia grega e o privilégio que esta concedia aos consensos (em detrimento da ‘verdade’), Platão investe, com vigor, na formulação de uma teoria que delimite, com clareza, o território da verdade e o da falsidade. O ponto de partida de Platão é a chamada ‘Teoria das ideias’. Segundo tal formulação teórica, há um mundo sensível e experiencial (‘aparente’) em oposição

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ao mundo das essências ou ideias, onde habitam as coisas ‘originais’ (portanto ‘reais’, ‘verdadeiras’). Essas formas ‘originais’ de existência seriam dotadas de uma essência, uma unidade autônoma e universal. Trata-se, portanto, de “um real de coisas invisíveis, perfeitas e eternas” (MARTINS, 2005, p. 454).

Nesse sentido, caberia à linguagem o papel de representar a parcela dessa realidade exterior ao homem e descrevê-la de forma objetiva. Opondo-se ao relativismo instau-rado pela retórica dos sofistas, Platão funda uma teoria objetivista e representacionista acerca da função da linguagem, cujo atributo primordial, para o autor, seria alcançar esse real de essências verdadeiras. De acordo com a abordagem platônica, a linguagem teria sido ‘inventada’ com uma determinada finalidade. Em Crátilo, Sócrates indaga Hermógenes, seu interlocutor, acerca da função dos nomes e, construindo argumentos com base na oposição entre verdade e mentira, estabelece uma curiosa analogia entre a linguagem e o tear. Assim como o tecelão necessita de um instrumento, o tear, para exercer a ação de tecer (separar os fios), o falante utiliza-se do nome para dizer o real: “VIII – Sócrates – O nome, por conseguinte, é instrumento para informar a respei-to das coisas e para separá-las, tal como a lançadeira separa os fios da teia” (Crátilo, p. 126). Assim, estamos diante de uma perspectiva instrumentalista da linguagem: o nome é considerado, por Platão, um artefato, um instrumento inventado com o propó-sito único de representar a realidade. Platão também alude à figura mítica do legislador, o inventor da linguagem.

É notório, na perspectiva platônica, um apelo substancial a duas questões centrais relativas à linguagem e ao significado: o universalismo e o imanentismo. Ao manter-se firme na ideia de um real fixo, Platão assume que as coisas (as verdades) são únicas, por-tanto universais. Simultaneamente, ao elaborar a figura de um legislador da linguagem, o filósofo localiza na estrutura das palavras a morada do significado linguístico. Ou seja, já que o significado é imanente à letra, cabe ao legislador criar os nomes adequados para designar a parcela do real ao qual almeja nomear.

Sem dúvida, estamos diante de uma tradição de pensamento que, definitivamente, fundou os pilares do pensamento ocidental, especialmente no campo das ciências. O objetivismo platônico tem ecoado ainda hoje, triunfante, e vários autores têm sido orientados por essa tradição. No âmbito dos estudos linguísticos contemporâneos, Fre-ge (1976) pode ser considerado um herdeiro do realismo representacionista formulado por Platão. Partindo de um pensar sobre o funcionamento da linguagem com base nas operações do raciocínio lógico, Frege defende a ideia de que deveria haver uma relação biunívoca entre o sinal e o sentido, entre a palavra e o significado do objeto nomeado.

Certamente deveria corresponder, a cada expressão, que pertença a uma to-talidade perfeita de sinais, um sentido determinado; mas, frequentemente, as

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linguagens naturais não satisfazem a esta exigência e deve-se ficar satisfeito se a mesma palavra tiver sempre o mesmo sentido num mesmo contexto. (FRE-GE, 1976, p. 63)

A desconfiança de Frege quanto à imperfeição das línguas naturais leva-o a criar uma espécie de língua de tradução, uma metalinguagem lógica que dê conta dessa biu-nivocidade necessária entre o sinal e o sentido. Assim como Platão, Frege trata a lingua-gem como instrumento de representação do real, aproximando-se de uma perspectiva objetivista centrada no valor de verdade dos enunciados.

2.2- A VERtENtE MENtALIStA

A ascendência histórico-filosófica da perspectiva mentalista acerca do significado na linguagem remonta ao pensamento de Aristóteles, mormente em seus tratados sobre a Lógica. Assim como Platão, Aristóteles conjuga da ideia de que a palavra serve para representar alguma coisa; entretanto, a coisa representada não reside em um mundo exterior (o mundo platônico das essências), mas no interior do próprio sujeito. Em De interpretatione, Aristóteles afirma que “[16a 3] Os itens na elocução são símbolos das afecções na alma, e os itens escritos são símbolos dos itens na elocução.” (p. 35)

Essas ‘afecções na alma’ corresponderiam a conceitos mentais, representações inter-nas que, para Aristóteles, seriam iguais para todas as pessoas. O caráter universal dessas afecções na alma constituiria uma base sólida para a articulação racional do pensamen-to e para a comunicação humana. É nesse sentido que a Lógica ocupa um lugar central nos escritos de Aristóteles: para o filósofo, a linguagem está subordinada à racionalidade humana e, desse modo, o binômio platônico linguagem-real é substituído por uma ca-deia simbólica em que “a linguagem simboliza o pensamento, que por sua vez simboliza o real” (MARTINS, 2005, p. 467).

É possível reconhecer em Aristóteles um interesse pela linguagem advindo de uma preocupação anterior (quiçá maior) pela compreensão das leis do raciocínio lógico hu-mano e sua relação com o conhecimento. Ao estudar a linguagem como representação de entidades mentais, Aristóteles elege os enunciados declarativos e literais como o foco da linguagem (por conseguinte, da lógica), uma vez que tais enunciados ambicionam “dizer o verdadeiro e o falso” (De interpretatione, [16b 33], p. 37). Ainda que reconhe-ça que nem toda frase ergue pretensão de verdade, Aristóteles delimita o território de interesse da Lógica e, portanto, o núcleo do fenômeno linguístico: “[17a 4] Assim, portanto, sejam deixadas de lado as outras frases – pois a inspeção é mais apropriada à retórica ou à poética –; por sua vez, a frase declarativa pertence ao presente estudo” (De interpretatione, p. 38).

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O mentalismo de inspiração aristotélica deixou herdeiros nos estudos contemporâ-neos sobre a linguagem, sobretudo em áreas como a Linguística cognitiva. Os estudos de Pinker (2002), por exemplo, ancoram-se na concepção de que, antes de uma pessoa falar qualquer língua, há um mentalês, uma linguagem do pensamento cuja lógica de funcionamento seria refletida nas variadas línguas existentes. Pinker defende a posição de que o pensamento é autônomo em relação à linguagem e critica abordagens rela-tivistas advindas de estudos linguístico-antropológicos (como em Whorf, 1998). Para Pinker (2002, p. 64), “a ideia de que as línguas moldam o pensar parecia plausível quando os cientistas nada sabiam sobre como funciona o pensamento e como estudá-lo”.

Os pensamentos de Platão e Aristóteles, resguardados seus pontos de dissonância, conservam uma série de interseções, mormente no que tange à formulação de um ide-ário objetivista bastante influente no mundo ocidental. A linguagem, em ambos os fi-lósofos, é entendida como forma de representação, como instrumento para representar algo exterior a ela própria.

2.3- A VERtENtE PRAGMÁtICA

Com os sofistas, artífices da Retórica na Antiguidade grega, a linguagem assume uma posição estelar e passa a ser entendida como práxis que institui a existência hu-mana no mundo da história e da cultura. O principal legado deixado pelos sofistas é o relativismo, para o qual seria impossível “estabelecerem-se verdades universalmente válidas, autônomas com relação às circunstâncias concretas, contingentes e variáveis da experiência humana” (MARTINS, 2005, p. 450). Os sofistas, portanto, derretem a no-ção solidificada de uma verdade dura, única, e, consequentemente, afastam-se de uma perspectiva imanentista acerca do significado das expressões linguísticas.

Há que se destacar, entretanto, a difícil tarefa em se estudar o pensamento dos sofistas em virtude de dois motivos: primeiramente, restaram poucos fragmentos de textos originais desses filósofos; em segundo lugar, muito do que se sabe a respeito dos sofistas foi aprendido pelos escritos de seus principais rivais (os socráticos). Assim, o que normalmente se tem é um retrato do sofista atravessado pela ótica socrática de se conceber a verdade, a linguagem e o significado. Historicamente, a imagem do sofis-ta ficou associada ao estereótipo pejorativo de um charlatão, um orador inescrupulo-so, um impostor não comprometido com a verdade. Platão, em O sofista, enumera as características desse “imitador ilusionista” (p.18), dentre as quais podemos destacar: “mercador de conhecimentos para a alma”; “retalhista desses mesmos conhecimentos”; “fabricante de conhecimentos que ele mesmo vende”; “atleta nos certames da palavra e por demais habilidoso na arte das disputas” (p. 15).

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A fim de não incidirmos sobre afirmações simplistas a respeito do pensamento dos sofistas, adotaremos um olhar que os perceba como defensores de uma verdade fluida, mutável e múltipla. Nesse sentido é que a linguagem desempenha um papel crucial, no que tange à instauração de verdades plurais, de consensos instáveis e de efeitos de significado instituídos no curso das práticas humanas.

Um dos textos mais emblemáticos do pensamento sofista é Elogio de Helena, de Gór-gias. A fim de inocentar Helena de uma acusação injusta, o orador sofista embrenha-se na tarefa de, por meio do discurso, “mostrar a verdade e dar fim à ignorância” (p. 294). Gór-gias apoia-se na ideia de que, pelo fato de a linguagem não representar um real objetivo e único, o discurso pode ser deslocado por processos de persuasão. Assim é que Górgias caracteriza a linguagem como um verdadeiro deus capaz de instaurar efeitos poderosos.

o discurso é um grande soberano que, por meio do menor e do mais inapa-rente dos corpos, realiza os atos mais divinos, pois ele tem o poder de dar fim ao medo, afastar a dor, produzir a alegria, aumentar a piedade. (GÓRGIAS, Elogio de Helena, p. 296-297)

Reconhece-se, nesse sentido, um laço inextricável entre a linguagem e as práticas humanas. Para os sofistas, a palavra significa no fluxo das ações, ao invés de, biunivoca-mente, ligar-se a um real exterior. O real é compreendido como aquilo que se manifesta como real no uso da linguagem, na práxis discursiva. Daí falarmos em uma vertente pragmática acerca do significado na linguagem. Nas palavras de Martins,

os sofistas abrem o caminho para pensarmos que as expressões significam não porque representam algo por si sós, não por possuírem qualquer sentido ima-nente, mas antes porque, jamais dissociando-se dos assuntos humanos de que tomam parte, inscrevem-se circunstanciadamente no fluxo dessas práticas, com efeitos possíveis muito variados, efeitos que podem talvez ser estimados mas nunca garantidos de antemão. (MARTINS, 2005, p. 453, grifos da au-tora)

Estamos, assim, diante de uma abordagem anti-objetivista, anti-representacionista, anti-universalista e anti-imanentista de se conceber a linguagem. O triunfo do pensamento de orientação platônico-aristotélica no nosso mundo pode levar-nos a desconfiar da eficácia e operacionalidade da perspectiva pragmática, herdada histórica e filosoficamente dos sofistas. Por vezes, pode parecer desconcertante e desconfortável assumir uma postura pragmática e radicalmente relativista acerca da linguagem e do significado, visto que a própria língua que usamos sedimenta uma metateoria de or-dem representacionista. Como Whorf (1998, p. 269) aponta, “toda língua contém

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termos que alcançam um escopo cósmico de referência, que cristalizam neles próprios os postulados básicos de uma filosofia não formulada”. Ainda assim, alguns autores contemporâneos têm investido no questionamento da forte tradição de inspiração platônico-aristotélica, como é o caso de Austin (1961) e Foucault (2006).

Austin elabora uma crítica ao que denominou “falácia descritiva” (Austin, 1961, p. 234) nos estudos sobre os enunciados linguísticos. O autor problematiza os critérios comumente utilizados para a classificação de enunciados, afirmando que são poucas as ocasiões em que as frases serão consideradas exclusivamente verdadeiras ou falsas. A noção de ‘proferimentos performativos’ é cunhada, então, pelo autor para, de algum modo, dar conta das múltiplas ocasiões em que, ao usarmos a linguagem, não somen-te dizemos algo, mas fazemos uma determinada ação no mundo social. Nas palavras do autor, “se, então, afrouxarmos nossas ideias de verdade e falsidade, veremos que as sentenças, quando relacionadas aos fatos, não são tão diferentes de conselhos, alertas, veredictos, entre outros” (Austin, 1961, p. 251).

Em Foucault (2006), é notória a preocupação do autor em historicizar o percur-so do discurso dito verdadeiro desde a Antiguidade grega e em apontar para o modo como nossa “vontade de saber e de verdade” (Foucault, 2006, p. 14) foram erguidas por meio de sistemas de exclusão e de poder. Para o autor, quando “o sofista é enxotado” (Foucault, 2006, p. 15) da sociedade grega, instaura-se “a soberania do significante” (Foucault, 2006, p. 51). O autor chama atenção, ainda, para o modo como o próprio fazer científico ocidental, por séculos, teve que se amparar em padrões conceituais li-gados ao verossímil. A proposta de Foucault é questionar e ressignificar nossa vontade de verdade, bem como destituir de seu trono o significante (uma veemente crítica ao imanentismo) e a concepção universalista do sentido.

3- EStudOS dA LINGuAGEM: uM CAMPO NAdA COESO

A área de Estudos da Linguagem, longe de ser coesa ou unitária em termos episte-mológicos e metodológicos, apresenta a coexistência de diversos percursos de formação, diferenciados pela visão que se tem do que seja a linguagem e o ser humano, bem como do próprio objeto a ser investigado. Diferentes perspectivas em relação ao fenômeno linguístico são herdeiras de um debate teórico já presente no cenário da Antiguidade grega. Entendo que essa heterogeneidade de perspectivas na área contribui para um rico debate não apenas em relação à linguagem propriamente dita, mas, notadamente, em relação à produção do conhecimento científico no campo.

Desde os meus estudos de mestrado (em Linguística Aplicada, na UFRJ) e doutora-do (em Letras - Estudos da Linguagem, na PUC-Rio), venho atuando em uma vertente

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dos Estudos da Linguagem norteada pelo que Rampton (2006) denomina Linguística da prática, compreendendo que não se pode isentar a linguagem de sua carga ideoló-gica, dissociá-la do seu uso, nem ignorar os efeitos que emergem dessa prática. As pes-quisas que venho empreendendo têm se baseado na adoção de um olhar que privilegia a observação da interação face a face, bem como a dinâmica da vida social. É notório, portanto, o alinhamento entre esse tipo de pesquisa com a perspectiva pragmática e não-objetivista acerca da linguagem e do significado. O núcleo central de interesse dos meus estudos, no campo dos estudos sócio-interacionais, tem sido as narrativas orais, entendidas como forma de organização básica da experiência e da memória humanas. Advoga-se a centralidade das narrativas na constituição dos sujeitos e da realidade so-cial (cf. BASTOS, 2005; BAUMAN, 1986; BRUNER, 1997; LINDE, 1993), uma vez que, para se compreender o mundo social, é preciso ouvir e estudar as histórias das pessoas que vivem nesse mundo. Do mesmo modo, ferramentas teórico-metodológicas advindas da tradição interpretativista de pesquisa nas Ciências Sociais (destacando-se o trabalho de Clifford Geertz) nos são bastante caras no que tange ao fornecimento de uma melhor compreensão sobre a complexidade do uso da linguagem e sobre a produção do conhecimento científico.

3.1- NARRAtIVAS E A ORGANIZAÇÃO dA EXPERIÊNCIA HuMANA

No mundo contemporâneo, as narrativas têm sido, cada vez mais, entendidas como um importante paradigma de se fazer pesquisa e como uma forma de organização bási-ca da experiência e da memória humanas. Segundo Brockmeier e Harré (1997, p. 266), “toda cultura que conhecemos é uma cultura que conta histórias”, daí a importância que tem sido atribuída aos diversos enredos de que somos personagens na contempora-neidade. As narrativas correspondem a produções culturais que muito dizem a respeito de nós mesmos: contar histórias é uma prática discursiva que constitui significados e que está intimamente ligada às nossas marcas sociais. Contamos histórias que fazem sentido do mundo e do nosso papel enquanto seres sociais produtores de significados. Nas palavras de Bruner (1997, p. 54), “nós sabemos, a partir da nossa própria experiên-cia de contar histórias consequentes sobre nós mesmos, que há um lado inelutavelmente ‘humano’ na produção de significado” (grifos do autor).

Segundo Fabrício (2006, p. 192), “narrar seria, assim, um processo instaurador de realidades sociais”. Nesse sentido, dada a centralidade das narrativas na constru-ção daquilo que somos, cabe destacar, aqui, dois aspectos notórios: a) a narrativa como auto-construção; e b) a narrativa como forma de legitimação de sentidos nas instituições.

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Segundo Linde (1993, p. 85), a narrativa corresponde à “unidade que desempenha o mais importante papel na construção da história de vida”. Nesse sentido, o ato de nar-rar serve como espaço para que o próprio narrador se constitua, uma vez que este conta uma história sobre si mesmo. Investimos em narrativas autobiográficas na tentativa de projetar coerência sobre nosso senso de identidade e de reivindicar/negociar nosso pertencimento a um determinado grupo social (LINDE, 1993). A história de vida de um é, na verdade, uma história coletiva produzida por muitos ou, conforme apontam Bamberg e Andrews (2004, p. 5), “a ‘minha autobiografia’ jamais pode ser apenas sobre mim mesmo, já que vivemos e respiramos histórias e influências de que nem sempre temos consciência”.

Certas narrativas são criadas a fim de legitimar determinados significados e iden-tidades em detrimento de outros. As chamadas narrativas dominantes (BAMBERG e ANDREWS, 2004, p. 3) oferecem “às pessoas um modo de identificação que é tomado como uma experiência normativa”, o que provoca um silenciamento, uma exclusão das identidades ditas diferentes ou estranhas. Nas instituições, por exemplo, certos senti-dos são legitimados e reproduzidos de forma a produzir certas formas de socialização institucional consideradas tradicionais. Vinculamo-nos (ou somos vinculados) a uma tradição discursivo-institucional, quando ela própria não está imune a mudanças. O que se considera tradicional ou desviante dentro das instituições é, na verdade, uma fa-bricação, uma construção discursiva. Nas palavras de Sarup (1996, p. 4-5), “a tradição é fluida, está sempre sendo reconstruída”.

3.2- A INtERLOCuÇÃO COM O INtERPREtAtIVISMO dE GEERtZ

Construtos teórico-metodológicos advindos da Sociolinguística Interacional ou da Análise narrativa sem dúvida constituem um ferramental analítico importante. Além disso, faz-se importante a observação direta, cuidadosa e prolongada do universo em investigação, com o intuito de compreender melhor a dimensão simbólica das situações sociais, perceber o estabelecimento de padrões de interação e comportamento do grupo e ter um íntimo conhecimento sobre a vida local.

É nesse sentido que métodos de pesquisa advindos das Ciências Sociais (em espe-cial, a Antropologia) para a geração e análise de dados podem nos ser bastante ricos na área dos Estudos da Linguagem à qual me filio. A observação participante (VELHO, 2008 [1981]), a gravação de entrevistas e interações espontâneas, a confecção de diários de campo, o contato direto com os participantes discursivos são alguns dos instru-mentos utilizados pela tradição interpretativista que dão ênfase ao processo de uso da linguagem em contextos particulares de ação. As diretrizes do Interpretativismo foram

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traçadas pelo antropólogo Clifford Geertz (1989) na obra A interpretação das culturas. Influenciado por suas leituras nas áreas da Filosofia e das Letras, Geertz defende uma epistemologia à procura do significado; assim, os textos científicos são considerados por ele interpretações, ou seja, narrativas sujeitas a reelaborações em circunstâncias discursivas específicas. Geertz entende que, no ato da pesquisa, não há uma verdade a ser revelada, nem se buscam leis universalizantes.

Em A interpretação das culturas, Geertz (1989) volta-se para duas temáticas centrais nas Ciências Sociais: a) cultura, descrita a partir de uma perspectiva semiótica; e b) et-nografia, entendida como texto narrativizado, ou seja, como relato, como construção. De início, já é possível notar um afastamento do autor em relação à tradição represen-tacionista de linha platônico-aristotélica. Ao invés disso, veremos em Geertz um autor embrenhado na tessitura de uma teoria anti-universalista a respeito das culturas, bem como do próprio fazer científico e do processo de produção do conhecimento.

Geertz (1989) define cultura como uma teia pública e complexa de significados. Para o autor, cultura é entendida como sistema de signos que torna compreensíveis as práticas sociais de que participam os seres humanos. “Ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade” (GEERTZ, 1989, p. 10). O conceito semiótico de cultura implicará mudanças no pró-prio fazer científico em Antropologia. A ciência passa a ser entendida como aquilo que os cientistas fazem, por isso é uma produção e não pode ser tida como neutra e isenta.

Geertz atribui à etnografia um caráter narrativo (textual), não no sentido de que as interpretações do antropólogo sejam não-factuais, mas no sentido de que o próprio texto etnográfico pode ser reinterpretado. Segundo o autor, o conhecimento produzido na etnografia é, inevitavelmente, situado e sujeito a releituras: “trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são algo construído, algo modelado” (GEERTZ, 1989, p. 11). Com base no conceito semiótico de cultura e na concepção de etnografia como relato, Geertz, então, atribui ao fazer antropológico quatro características centrais: a) a descrição etnográfica é interpretativa; b) ela interpreta o fluxo do discurso social; c) a interpretação daquilo que é ‘dito’ é fixada em formas pesquisáveis; e d) a descrição apresenta natureza microscópica.

Percebo uma série de conexões entre os trabalhos que venho desenvolvendo em Estudos da Linguagem e o Interpretativismo de Geertz, mormente no que diz respei-to ao tipo de pesquisa realizada e à visão de discurso adotada. Ao invés de buscar um conhecimento científico objetivo e generalizável, validado e demonstrado por um viés correspondentista de causa e efeito, a pesquisa interpretativista assume que o conheci-mento é relativo e que o pesquisador está intimamente imbricado no ato da pesquisa e no saber que produz. O foco é colocado no processo de uso da linguagem em contextos

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particulares de ação. Daí se justifica pensar o problema estudado sob a perspectiva dos participantes envolvidos no processo, ou seja, à luz das diversas subjetividades e inter-pretações ali presentes. Pensar com os participantes da pesquisa, assim como propusera Geertz, é fundamental para considerar a multiplicidade de olhares durante a investi-gação e, consequentemente, “iluminar o dinamismo interno das situações, geralmente inacessível ao observador externo” (LÜDKE e ANDRÉ, 1986, p. 12).

4- CONSIdERAÇõES FINAIS: A LINGuAGEM E A PESquISA COMO PRÁXIS

Vimos que o objeto da Semântica, o significado, corresponde a um território de in-certezas no âmbito dos Estudos da Linguagem. A Antiguidade grega já remonta a deba-tes teóricos acerca da natureza do significado e da verdade que influenciarão, de modo decisivo, nas teorizações inaugurais e contemporâneas sobre o fenômeno da linguagem. São três os grandes paradigmas para se entender a linguagem: realismo, mentalismo e pragmatismo. O berço em que nascem essas três abordagens pode ser reconhecido nos pensamentos de Platão, de Aristóteles e dos sofistas, respectivamente. Na retórica platônico-aristotélica, identificamos uma visão objetivista da linguagem, para a qual a palavra representaria uma entidade exterior a ela própria. Defende-se a existência de verdades universais e fixas, não suscetíveis a mudanças culturais ou contextuais. Além disso, a palavra é tida como a morada do significado, configurando, assim, uma perspectiva imanentista acerca do sentido. Já a retórica sofística parte da noção de que, entre a linguagem e o ‘real’, haveria um abismo, o que nos levaria a uma abordagem relativista da linguagem. Para os sofistas, não há essências para as coisas e a verdade, ao invés de universal, é tida como móvel e forjada na práxis discursiva. Assim, o significa-do é construído no próprio uso da linguagem, não residindo, portanto, no signo.

Em seguida, sinalizei certos alinhamentos entre meus estudos, no campo dos Estudos da Linguagem de orientação sócio-interacional, e a vertente pragmática de compreensão da linguagem e do significado. Apresentei as narrativas como importantes produções culturais para se observar como os seres humanos operam na cultura e criam suas iden-tidades. A seguir, referi-me à pertinência de as pesquisas que venho desenvolvendo serem orientadas por uma abordagem interpretativista, advinda das Ciências Sociais, a fim de que seja lançado um olhar atento para os significados construídos nas práticas discursivas. O Interpretativismo de Geertz (1989) foi ilustrado e duas dimensões im-portantes para o estudo da vida social foram consideradas: a) a forte imbricação entre as escolhas epistemológicas do pesquisador e as implicações políticas e éticas dessas es-colhas; b) o modo como, por meio de uma descrição densa, microscópica da realidade social, “fatos pequenos podem relacionar-se a grandes temas” (GEERTZ, 1989, p. 17).

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É norteadora, aqui, a noção de que “o significado é construído pela ação em con-junto de participantes discursivos em práticas discursivas, situadas na história, na cul-tura e na instituição” (MOITA LOPES, 2001, p. 57-58). Essa perspectiva situacional realça as dimensões contextuais, sócio-históricas e institucionais que agem sobre o dis-curso. Por estarmos inseridos em uma cultura (no sentido semiótico de Geertz), agimos no mundo social em condições sócio-históricas específicas que criam inteligibilidade sobre projetos políticos e sistemas de crenças dessa cultura. Em outras palavras, “não há discurso que ocorra em um vácuo social” (MOITA LOPES, 2001, p. 58). Esse olhar enfoca a dinâmica da vida social, permite vislumbrar transformações na socieda-de e concebe o próprio ato da pesquisa como suscetível a constantes reinterpretações e ressignificações. É patente, portanto, a aproximação com a perspectiva pragmática da linguagem e do significado.

Essa abordagem, entretanto, é, de certa forma, minoritária no âmbito dos Estudos da Linguagem. Não são raras as veementes críticas advindas de correntes mais tradi-cionais, pelas quais somos acusados, inclusive, de não estarmos produzindo ciência. Ao concebermos a ideia de que a verdade é múltipla, não estamos pregando um ‘vale-tudo’ epistemológico. Compreendemos que a verdade e o significado adquirem certo grau de estabilidade dentro de processos sócio-históricos e nas práticas de uso da linguagem. Se focalizamos nosso olhar para verdades não-universais, isso não as torna menos válidas, ou menos científicas. E se olhamos para a práxis discursiva, isso implica dizer que o ser humano ocupa um lugar estelar em nossos estudos.

5- REFERÊNCIAS

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Sobre a Coleção Chás para a Filosofia

A Coleção Chás para a Filosofia foi criada no primeiro semestre de 2015 por ini-ciativa do professor Maurício Castanheira junto aos alunos da disciplina de Produção Social do Conhecimento, mestrandos do curso de Mestrado Profissional em Filosofia e Ensino (PPFEN-CEFET/RJ). O título do primeiro volume da Coleção, votado pelos mestrandos da disciplina, foi “Capim Limão: Ensaios sobre produção do conhecimento, material didático e outros textos", e seu tema principal foi a produção de conhecimento e o ensino de filosofia. O segundo volume da Coleção tem como título “Erva Cidreira: Textos sobre produção do conhecimento, produção de material didático e outros ensaios” e passou por um processo semelhante de elaboração, tendo como organizadores Mauricio Castanheira, Taís Silva Pereira e João André Fernandes. Os livros foram subdivididos numa parte com textos de docentes e outra de estudantes com a intenção de discutir a Produção de Material Didático. Como característica da coleção, abrimos espaço para outros temas na sessão “outros ensaios”. O terceiro volume da Coleção Chás para a Filosofia, o “Camomila: Métodos de Filosofia e outros textos”, organizado por Maurício Castanheira, Lourdes Bastos e Rafael Alvarenga, foi produzido de junho a outubro de 2016 e passou pelo mesmo processo de elaboração, tendo início com os mestrandos inscritos na disciplina “Métodos de Filosofia” do professor Castanheira. Já o quarto volume da Coleção foi intitulado “Hortelã: Textos sobre formação de professores em Filosofia e outros ensaios”, organizado por Felipe Gonçalves Pinto, Lourdes Bastos, Maurício Castanheira e Rafael Alvarenga foi lançado no primeiro semestre de 2017. Quanto aos seus textos foram divididos em três seções: Formação de professores em Filosofia: experiências e conceitos, Formação de professores e Outros textos.

Portanto, em sua existência, a Coleção oferece agora seu quinto Chá: Maçã com canela: Produtos educacionais, experiências didático-filosóficas e outros textos. Volume esse que tem como temática central expor um recente desenvolvimento de Produtos Educacionais tanto no PPFEN, quanto em outros cursos de Mestrado Profissional.

É importante ainda ressaltar que a Coleção prima pelo envolvimento de pesquisa-dores, professores e outros profissionais que trabalham com o processo educativo a fim de incentivar a produção de conhecimento. De tal modo oportunizamos um espaço de cultivo àqueles que ainda não haviam publicado um texto. Estimulando assim que pro-fissionais, desde os que se encontram em pós-graduações de Universidades até aqueles que batalham exclusivamente sobre o chão das salas de aula, estabeleçam uma trama para dialogar sobre teorias e experiências práticas.

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Dessa forma, essa Coleção mais convida que exige. E é com esse intuito de convidar para as primeiras experiências e de publicizar a produção textual dos que se dedicam a pesquisar sobre e para o ensino de Filosofia que já publicamos 97 artigos de 80 autores em 1378 páginas até agora (incluindo este Volume).

Vamos continuar convidando para uma xícara de Chá que pode ser quente ou ge-lada, dependerá da época do ano. Porém, mais do que isso, queremos sim atrair para a participação do cultivo como um todo, desde o recebimento dos textos até a divulgação de cada Volume. Queremos agregar e alentar. Pois sabemos que há mais pessoas que gostam de Chá do que aquelas que até agora vieram conosco apreciar uma xícara.

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