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ESTUDOS AVANÇADOS 17 (47), 2003 237 ESDE A Antigüidade Clássica até a segunda metade do século XIX, a democracia sempre foi tida, entre os pensadores políticos, como um re- gime político subversor da hierarquia social. Montesquieu sustentava que, numa sociedade democrática, as mulheres, as crianças e os escravos já não se submeteriam a ninguém; não haveria mais bons costumes, amor à ordem, virtu- de enfim 1 . James Madison, por sua vez, sublinhou que a democracia, por ele entendida como “a sociedade consistente num pequeno número de cidadãos que se reúnem e administram o governo diretamente”, incentivaria o espírito de facção, pondo em constante risco a ordem social 2 . No mundo contemporâneo, contudo, o juízo de valor que se faz sobre a democracia é exatamente o inverso. Com raras exceções, já nenhum partido ou movimento político ousa dizer-se antidemocrático. Todos, ao contrário, esfor- çam-se por se apresentar como os únicos verdadeiros defensores do “governo do povo, pelo povo e em prol do povo”. Essa unanimidade atual, construída em torno do conceito de democracia, é evidentemente suspeita. Ela revela, sem sombra de dúvida, uma formidável confusão semântica, ao fazer do elogio universal do regime democrático um simples chavão do jogo político. O povo, que afinal, pelo próprio sentido etimológico, seria o principal beneficiário dessa forma de organização política, parece ter sérias dificuldades em entender, exatamente, o que está por trás das palavras encantatórias da propaganda. Numa pesquisa realizada em 1999 com mais de cinqüenta mil pessoas em sessenta países, citada no Relatório das Nações Unidas de 2002 sobre o Desenvolvimento Humano, apurou-se que apenas dez por cento dos entrevistados reconheceram que o governo do seu país obedecia à vontade do povo 3 . Ora, Portugal e Brasil – que sofreram durante o último século regimes autoritários e ditatoriais por dezenas de anos – têm hoje o seu Estado organizado segundo o vigente padrão consensual do regime democrático: ambos contam com governantes eleitos pelo voto popular, em pleitos livres e multipartidários, e ostentam uma separação formal de Poderes. Mas seria esta, efetivamente, a per- cepção que os nossos povos têm do regime político em vigor? Reconheceriam Obstáculos históricos à vida democrática em Portugal e no Brasil FÁBIO KONDER COMPARATO D

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    ESDE A Antigidade Clssica at a segunda metade do sculo XIX, ademocracia sempre foi tida, entre os pensadores polticos, como um re-gime poltico subversor da hierarquia social. Montesquieu sustentava que,

    numa sociedade democrtica, as mulheres, as crianas e os escravos j no sesubmeteriam a ningum; no haveria mais bons costumes, amor ordem, virtu-de enfim1 . James Madison, por sua vez, sublinhou que a democracia, por eleentendida como a sociedade consistente num pequeno nmero de cidadosque se renem e administram o governo diretamente, incentivaria o esprito defaco, pondo em constante risco a ordem social2 .

    No mundo contemporneo, contudo, o juzo de valor que se faz sobre ademocracia exatamente o inverso. Com raras excees, j nenhum partido oumovimento poltico ousa dizer-se antidemocrtico. Todos, ao contrrio, esfor-am-se por se apresentar como os nicos verdadeiros defensores do governo dopovo, pelo povo e em prol do povo.

    Essa unanimidade atual, construda em torno do conceito de democracia, evidentemente suspeita. Ela revela, sem sombra de dvida, uma formidvelconfuso semntica, ao fazer do elogio universal do regime democrtico umsimples chavo do jogo poltico. O povo, que afinal, pelo prprio sentidoetimolgico, seria o principal beneficirio dessa forma de organizao poltica,parece ter srias dificuldades em entender, exatamente, o que est por trs daspalavras encantatrias da propaganda. Numa pesquisa realizada em 1999 commais de cinqenta mil pessoas em sessenta pases, citada no Relatrio das NaesUnidas de 2002 sobre o Desenvolvimento Humano, apurou-se que apenas dezpor cento dos entrevistados reconheceram que o governo do seu pas obedecia vontade do povo3 .

    Ora, Portugal e Brasil que sofreram durante o ltimo sculo regimesautoritrios e ditatoriais por dezenas de anos tm hoje o seu Estado organizadosegundo o vigente padro consensual do regime democrtico: ambos contamcom governantes eleitos pelo voto popular, em pleitos livres e multipartidrios, eostentam uma separao formal de Poderes. Mas seria esta, efetivamente, a per-cepo que os nossos povos tm do regime poltico em vigor? Reconheceriam

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    eles, contra a maioria esmagadora dos consultados na pesquisa mencionada, que osseus respectivos governos cumprem, zelosamente, os ditames da vontade popular?

    A indagao parece pertinente e importante, se se quiser sair do terrenopantanoso das fices polticas. O que se pretende trazer aqui, neste breve excurso,no evidentemente uma resposta cabal pergunta, mas apenas alguns elemen-tos de reflexo sobre a matria.

    Comecemos, segundo a boa lgica, por precisar os conceitos.

    Democracia e Feudalismo:o contedo histrico dos conceitosDemocracia: voltando s origensUm dos grandes princpios metodolgicos das cincias humanas o do

    carter histrico dos conceitos. Nesse vasto campo do saber, os conceitos no re-fletem, como em matria de cincias exatas, a essncia abstrata e invarivel da rea-lidade; eles exprimem antes, de modo sinttico, determinada experincia histrica.

    Temos, pois, que, para examinar o carter democrtico ou no da vidapoltica portuguesa e brasileira, indispensvel cotej-la com o modelo de de-mocracia criado originalmente em determinado momento histrico, e ao qualtodos os desenvolvimentos ulteriores se referem. Esse modelo , incontestavel-mente, o regime ateniense de governo popular, que durou pouco mais de doissculos (de 501 a 338 a.C.).

    A classificao dos regimes polticos, no pensamento grego clssico, adotoudesde cedo, como critrio de ordem, o nmero de titulares da soberania oupoder poltico supremo (kyrion). De acordo com esse critrio, reconheceu-se aexistncia de trs grandes regimes primrios, conforme o poder supremo fosseatribudo a uma s pessoa, a poucos cidados ou a todos eles4 . Cada um dessesmodelos, por sua vez, comportava uma modalidade pura, em que o titular dopoder supremo governava em vista do bem comum, e outra correspondentemodalidade degenerada, na qual o soberano, de modo exclusivo ou preferencial,exercia o poder no seu prprio interesse. Teramos, assim, em contraposio realeza, a tirania; como degenerao da aristocracia (em que o poder supremopertence aos melhores, aristoi), a oligarquia (soberania dos ricos); e, finalmente,como desvio daquele que, mngua de um termo especfico, Aristteles denomi-nava genericamente organizao ou constituio poltica (politia), a democracia5 .

    No tocante diferena entre oligarquia e democracia, Aristteles insistiuna necessidade de se analisar a realidade com o mtodo filosfico (methodosphilosophounti), o que significa, segundo a lio que o estagirita recolheu de seumestre Plato, buscar a essncia das coisas, sem se contentar com o simples as-pecto prtico (me monon apobleponti pros to pratteo); ou seja, satisfazendo-se coma mera a aparncia. A oligarquia, observou ele, ao contrrio do que o sentidoliteral da palavra insinua, no propriamente o regime poltico em que a sobera-

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    nia pertence a poucos, mas sim aquele em que os titulares do poder supremoformam a classe rica (os que tm riqueza, oi tas oussias ekhontes); ao passo que,na democracia, soberana a classe dos pobres (aporoi), ou, segundo uma frmu-la eufmica, os que no possuem muitos bens (oi me kektemenoi plethos oussias)6 .

    evidente que essa classificao dos regimes polticos conforme ao nme-ro de detentores da soberania significa, implicitamente, o reconhecimento deque h uma escala decrescente de concentrao de poderes pessoais, da monar-quia oligarquia e desta democracia. Ora, tanto Plato como Aristteles, fiis sua concepo de que a realidade tica deve ser considerada conjuntamente peloaspecto objetivo e subjetivo (as instituies e os homens), e aplicando a cada umdos regimes polticos a sua viso contraditria ou dialtica entre a boa e a mmodalidade, entendem que o melhor (ou mais divino: theiotatos)7 de todos osregimes a realeza. Todavia, como a corrupo do timo sempre o pssimo8 ,a tirania , de modo correspondente, o pior deles. Ou seja, quanto maior a con-centrao pessoal de poder poltico, mais deletrio se torna para a plis o exerc-cio desse poder no interesse do prprio titular.

    Da decorre que, para Aristteles, a democracia o menos malfico dosmaus regimes, ou, como prefere qualificar o filsofo, o mais moderado (metrio-tatos) deles9 . Nessa mesma linha de anlise, sustentou tambm que a politia,por ele classificada entre as boas formas de organizao poltica, nada mais seriado que um misto de oligarquia e democracia, com predominncia das institui-es democrticas10 .

    Em suma, no pensamento do grande estagirita, se o timo inimigo dobom, se no se pode organizar a plis da melhor maneira para propiciar a felicida-de geral, prefervel optar por uma constituio em que se reduza ao mximo apossibilidade de abuso de poder. E essa constituio , inequivocamente, a denatureza democrtica, pois nela, ao deter cada cidado igual prerrogativa de par-ticipar diretamente da vida poltica, em especial o igual direito de manifestaonas assemblias do povo (isegoria), o eventual abuso de poder s se torna gravequando praticado conjuntamente pela maioria dos cidados. Contra essa eventuali-dade, de resto, a democracia ateniense dispunha de um antdoto eficaz: a sobera-nia da lei (nomos), em lugar da soberania do demos. O sentido e a importnciapoltica que os clssicos atribuam ao nomos eram incomparavelmente mais am-plos e profundos que os conferidos pela lei moderna. Juridicamente, tratava-semuito mais de uma norma de nvel constitucional, irreformvel pelo povo, doque de uma lei ordinria.

    Alm disso, o poder dos governantes, pelo menos na democracia praticadaem Atenas por mais de dois sculos, foi estritamente limitado por um complexode instituies de cidadania ativa, graas s quais o povo, pela primeira vez naHistria, pde governar-se a si mesmo. As grandes decises polticas a introdu-o de novas leis, a declarao de guerra, a concluso de tratados de paz ou dealiana eram tomadas diretamente pelo conjunto dos cidados reunidos na

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    Ekklsia. E quanto aos rgos do que chamamos hoje Poder Executivo, eleseram singularmente fracos: os principais dirigentes polticos, os estrategos, de-viam ter suas funes confirmadas, todos os meses, pelo Conselho (Boul).

    Por isso mesmo, como reconheceu Aristteles, a democracia o regimeem que se garante a maior liberdade e a maior igualdade de todos os cidados11 .

    O que o filsofo, porm, no discutiu, foi a questo que ocupa, hoje, umlugar central na anlise poltica e que, efetivamente, domina todo o debate sobrea possibilidade de eficiente funcionamento das instituies democrticas em pa-ses subdesenvolvidos: a igualdade bsica de condies sociais de vida umpressuposto de existncia da democracia, ou, diversamente, representa um objetivoa ser alcanado pelo regime no curso do tempo?

    Feudalismo e senhorio na Idade Mdia: a distino necessriaO mesmo cuidado metodolgico, lembrado acima para o uso do conceito

    de democracia, deve ser aplicado agora no tocante ao conceito de feudalismo. que este ltimo, como bem advertiu um autor, tornou-se, desde os em-

    bates revolucionrios contra o ancien rgime, mais uma invectiva do que a desig-nao geral de um sistema de instituies sociopolticas12 . Os lderes do movi-mento de 1789 assimilaram, abusivamente, o feudalismo monarquia absoluta,quando, na verdade, as instituies feudais s puderam prosperar na Europa napoca de esfacelamento do Estado, conseqente extino do Imprio Romanodo Ocidente. A civilizao feudal provocou, por conseguinte, o exato oposto deuma concentrao do poder poltico: a sua fragmentao em todo o territrio daEuropa Ocidental.

    A razo de ser desse desvio semntico foi uma lamentvel confuso a qualpersiste de forma subentendida at hoje entre feudalismo e senhorio, duasinstituies que conviveram e se interligaram durante um certo perodo histri-co, mas que eram perfeitamente distintas em suas origens e em sua estrutura.

    O feudalismo organizou-se em torno da relao vasslica de natureza pes-soal, fundada na homenagem (do latim brbaro hominium ou homagium) e nafidelidade (fides), ao passo que o senhorio era simplesmente uma posio dominan-te sobre servos ou clientes, estribada na posse de terras. O senhor, alm dos po-deres econmicos decorrentes da propriedade, gozava ainda de prerrogativaspolticas, como a jurisdio sobre todos os que viviam em suas terras, o direito deportar armas e o de cobrar tributos.

    O pacto de vassalagem, celebrado entre duas pessoas livres, compreendia,de um lado, o reconhecimento da superioridade moral (reverentia) de uma delassobre a outra e, em contrapartida, a obrigao de auxlio (militar e material) dosuperior ao inferior.

    Conforme o grau de predominncia de uma dessas instituies sobre aoutra, a organizao social como um todo recebeu um molde bem diverso. En-quanto na sociedade predominantemente feudal, as pessoas, embora em posio

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    desigual, mantinham relaes de direitos e deveres recprocos, a sociedade pre-dominantemente senhorial foi toda estruturada em torno do poder do proprie-trio, diante do qual no h propriamente sujeitos de direito, mas simples depen-dentes.

    Temos, assim, que na organizao feudal o rei primus inter pares, noexercendo poder sobre os outros senhores do estamento nobre. Era-lhe vedado,tal como numa organizao federativa, invadir a esfera de competncia territorialde cada titular de feudo. Philippe de Beaumanoir registrou, em sua compilaosobre o direito costumeiro vigente na baronia francesa de Beauvais, no sculo XI,que cada baro soberano em sua baronia, sendo o rei soberano sobre to-dos13 . No senhorio, em contraste, o proprietrio no estava obrigado, no inte-rior de seu domnio, a respeitar os direitos de ningum. Os vilos mantinhamrelaes individuais com o senhor, do qual dependiam integralmente para a suasubsistncia e, por isso, jamais conseguiram desenvolver relaes de solidariedadeentre si. Fora dos limites de suas terras, o titular do senhorio via, nos demais senho-res, unicamente rivais, cujo apetite de conquista precisava ser sempre refreado.

    O elemento histrico de ligao (e tambm de confuso) entre o contratovasslico e o senhorio foi, sem dvida, o fato de que o vassalo costumava receberdo seu superior, para seu sustento e tambm para permitir-lhe suportar os nusdos servios de vassalagem, um feudo, isto , a concesso de um bem patrimonialsob a forma de domnio til, reservando-se o superior para si o domnio eminen-te. Esse feudo geralmente consistia num trato de terra, mas nem sempre: haviatambm feudos de bolsa ou feudos-penses, de natureza mobiliria. Sejacomo for, o contrato de vassalagem, em si, nada tinha de econmico. Ele s deumargem a lucros tardiamente, por incontestvel desvio de seu sentido primitivo,com a transformao dos feudos em senhorios autnomos14 .

    Na verdade, os senhorios j existiam de h muito, antes de se iniciar aIdade Mdia. Os latifundia romanos, que prosperaram em toda a extenso doimprio, eram posies de senhorio, no fundo e na forma. Com o enfraqueci-mento dos laos de vassalagem, os antigos feudos tornaram-se autnticos senho-rios, os quais subsistiram ainda por vrios sculos aps o desaparecimento dofeudalismo, e acabaram por transformar-se, com a abolio da servido pessoal ea simplificao dos direitos reais, na propriedade rural regulada pelos Cdigos dosculo XIX.

    Foi justamente por confundir feudalismo com senhorio, que Karl Marxpde sustentar que as relaes feudais constituram uma etapa intermdia entre oescravismo antigo e o capitalismo moderno. Ora, como a histria de Portugal ede suas colnias no-lo confirma de modo cabal, o regime capitalista desde cedotransformou a antiga servido da gleba, tpica do regime de senhorio, em escra-vido pura e simples, organizando-a empresarialmente na produo de gnerosagrcolas para o mercado.

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    Seja como for, o que importa salientar para os propsitos desta exposio, que, enquanto o feudalismo foi uma organizao social de fracionamento e, emcerta medida, de equilbrio de poderes (confiram-se, por exemplo, as estipula-es da Magna Carta de 1215), o senhorio rural, bem ao contrrio, representouo modelo e a fonte de um tipo de organizao poltica com absoluta concentra-o de todos os poderes na pessoa do titular do domnio.

    A formao da sociedade portuguesae os obstculos vida democrticaEstrutura da sociedade portuguesa medievalNo preciso grande esforo de anlise histrica para perceber que a socie-

    dade portuguesa apresentou, durante todo o perodo crucial de formao nanacionalidade (1096-1325), caractersticas distintas, no s em relao s regieseuropias situadas alm dos Pirineus, como at mesmo em comparao comLeo e Castela. E as razes para tanto foram basicamente quatro, a saber:

    1. predominncia da posio senhorial sobre as relaes feudo-vasslicas;2. importncia crescente da escravido, relativamente servido territorial;3. precoce concentrao de poderes feudais e senhoriais na pessoa do rei;4. marcada orientao mercantil da dominao poltico-social.

    inegvel que, em Portugal, os vnculos de vassalagem sempre foram tnues,fragmentrios e instveis, e nunca chegaram a ligar os grandes senhores entresi15 . Relaes feudo-vasslicas s existiram, em plenitude, entre o rei e a nobreza.Foi o que levou alguns historiadores de vulto, a comear por Alexandre Hercu-lano, a sustentar a tese extremada de que nunca houve autntico feudalismo emPortugal16 .

    Em contraste com essa debilidade das instituies propriamente feudais, oregime do senhorio sempre foi pujante em terras portuguesas. Deve-se observarque ele deita razes na colonizao romana da pennsula, com a criao de mlti-plos latifndios atribudos aos chefes militares como prmio de campanha. sabido que a Espanha foi a provncia mais romanizada do Ocidente e, dentrodela, especialmente a Btica e as plancies da Lusitnia17 .

    Pois foi nesse largo espao senhorial que se desenvolveu, muito antes dasdemais regies da Europa, a escravido ligada agricultura. Assim que, se osservos da gleba j eram uma categoria quase que totalmente extinta na poca dafundao da nacionalidade portuguesa, a partir de meados do sculo XI o nme-ro de escravos mouros cresceu constantemente, na medida da progressiva recon-quista do territrio18 . O aumento constante da mo-de-obra escrava, obviamen-te, influiu poderosamente sobre o trabalho livre. isto que explica a antecipadatransformao dos pequenos lavradores, proprietrios ou arrendatrios, em assa-lariados agrcolas, quando se compara Portugal com as demais regies ocidentaisda Europa. J em 1253, ao baixar o regimento dos preos, Afonso III imps um

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    tributo sobre os salrios pagos a todos os trabalhadores agrcolas, o que denota arelativa importncia da economia salarial poca19 .

    A economia fundada no trabalho escravo j existia h pelo menos doissculos, quando a partir de 1444 iniciou-se o trfico regular de negros africanos,o qual iria crescer extraordinariamente com o estabelecimento dos primeirosengenhos de acar no litoral brasileiro, na centria seguinte. Com o incremen-to substancial da escravido africana, o assalariado agrcola, que havia sido preco-cemente introduzido na pennsula, quase que desapareceu.

    Em pouco tempo, o trfico de escravos africanos tornou-se uma das maisimportantes fontes de receita para o tesouro rgio, com a multiplicao de tribu-tos de efeito cumulativo, denominados donativos, subsdios, preferncias,alcavalas. Em 1473, as Cortes pedem ao monarca que estabelea a proibiode levar para fora os negros oriundos da Guin, porque s com eles se faziamterras novas, rompiam-se as matas e drenavam-se os pntanos20 . Mas o interessepecunirio da Coroa, diretamente beneficiada pela arrecadao desses impostos,falou mais alto.

    A terceira grande marca estrutural de formao da sociedade portuguesafoi a precoce concentrao de poderes na pessoa do rei.

    A verdadeira causa do fenmeno foi, sem dvida, a guerra de reconquistaterritorial aos mouros, seguida pela luta de independncia contra os espanhis.O monarca portugus, desde cedo, assumiu as funes de chefe militar supremo,transformando os antigos nobres em comandados, dos quais exigia, mais que afidelidade vasslica, a estrita obedincia castrense.

    Asssinale-se que as famosas leis de Afonso II, de 1211, anteciparam pionei-ramente na Europa a instituio da soberania monrquica, quer em relao nobreza, quer perante a autoridade eclesistica. O rei dispensa, nesses ditames, oplural majesttico e fala na primeira pessoa, como um general comandante adirigir-se aos seus subordinados.

    O rei era, tambm, naqueles primeiros tempos, o principal senhor de terrasno reino. Os lucros da terra em cultura, como salientou um historiador, forma-vam a parte permanente e mais segura das rendas do soberano21 . Os privilgiosusufrudos pelos demais titulares de senhorios no se consideravam como funda-dos em direito prprio, mas como resultantes de atos gratuitos do rei, suscet-veis, por isso, de revogao. Foi o que fez D. Joo I, seguindo o alvitre de Joodas Regras, quando reconheceu o estado de dilapidao do seu patrimnio. Asterras que ele havia cedido aos nobres (dentre eles o prprio Condestvel doReino), em recompensa pelos feitos militares na guerra contra os espanhis, fo-ram retrocedidas ao monarca mediante o estipndio de um soldo permanenteaos expropriados. O mesmo fez D. Duarte, ao promulgar a Lei Mental. E ulterior-mente, D. Manuel, com a reforma dos forais, avanou no mesmo sentido. Comose sabe, o sistema de doao de senhorios territoriais pelo monarca foi desdelogo aplicado no Brasil, quando se resolveu superar a fase de economia extrativa

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    da madeira e dar incio ao empreendimento colonial pela explorao agrcola:foram as capitanias hereditrias.

    Tudo isso contribuiu para moldar, duradouramente, a estrutura da socie-dade portuguesa em torno do poder monrquico. Os senhores, em lugar deautnticos vassalos, ligados por um pacto de honra ao soberano, reconheceram-se desde cedo como clientes deste, reproduzindo-se com isso a situao vigoran-te na sociedade romana em torno do latifundirio. Com a passagem do poderpessoal do rei ao poder impessoal do Estado moderno, a velha clientela tornou-se burocrtica, capturando para si empregos, rendas pblicas ou privilgios denegcio.

    O processo de centralizao absoluta do poder poltico na pessoa do reino se limitou, porm, a reduzir a autonomia dos nobres em seus respectivossenhorios. Ele se estendeu tambm Igreja. Desde o sculo XIII, instituiu-se opadroado, pelo qual o soberano se reservava o poder exclusivo de nomeao deprocos e abades, primeiro nas igrejas rgias e em seguida em todas as igrejas emosteiros que at ento no tinham senhor conhecido. mesma poca, maisexatamente a partir de 1266, reduziu-se a liberdade de eleio de bispos, passan-do o monarca a ter influncia direta sobre a sua nomeao.

    Um ltimo ponto a assinalar para a recapitulao do processo de reforocontnuo do poder monrquico, no quadro da organizao poltica do Portugalmedievo, a limitao da autonomia dos concelhos, como rgos de administra-o municipal. Desde o incio, a criao de municpios dependeu do reconheci-mento rgio, estabelecendo-se a necessria contrapartida de sua sujeio ao po-der do monarca22 .

    Com a conjugao de todos esses fatores, formou-se uma sociedade cujoequilbrio orgnico pendia inteiramente da cpula, em vez de se fundar na base;ou seja, o exato oposto da estrutura social que enseja o funcionamento do regi-me democrtico.

    Como conseqncia da predominante estrutura senhorial e dessa persis-tente macrocefalia poltica, nas sociedades ibricas em geral, e na portuguesa emparticular, como j foi tantas vezes observado, nunca houve coeso ou solidarie-dade na base. A ordem sempre exaltada como valor supremo, mas trata-se deuma ordem que nada tem em comum com o kosmos pitagrico, no seu sentido deordenao harmnica do universo. A ordem naturalmente concebida pelos po-vos ibricos corresponde sujeio completa dos comandados aos comandantes,tanto na vida privada, como na pblica. Vale dizer, uma relao de obedinciaanloga que se estabelece no seio dos corpos militares. O princpio socialunificador no foi nunca a colaborao em nvel horizontal entre indivduos,famlias e grupos sociais mais vastos, mas sim a dependncia de uns em relao aoutros na dimenso vertical da imposio de ordens, a exigir estrita e cega obedin-cia. Da a razo decisiva, como salientou com argcia Srgio Buarque de Ho-landa23 , pela qual a histrica poltica dos povos ibricos sempre oscilou entre a

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    anarquia dissolvente e a rigidez mecnica do despotismo. No foi, pois, reconhe-a-se, por mera coincidncia histrica que a companhia inaciana, fundada nolema da submisso ao chefe perinde ac cadaver, tenha sido concebida na mentede um ibrico.

    A monarquia portuguesa ps-medieval e o capitalismoEncerrada prematuramente a Idade Mdia portuguesa j em fins do sculo

    XIV outra caracterstica original da monarquia lusitana em comparao com osdemais reinos do Ocidente europeu a organizao poltica sofre a influnciadecisiva dos grandes empreendimentos martimos, moldados em termos nitida-mente capitalistas.

    O monarca torna-se, desde logo, o primeiro mercador do reino. Ele nos o maior negociante de escravos africanos e o monopolista da pimenta, comoser, mais adiante, o beneficirio exclusivo do estanco do tabaco.

    Sob D. Joo II, entre 1486, ano em que se fundou a Casa dos Escravos,departamento rgio integrado Casa da Mina e Tratos da Guin, e 1493,registrou-se a entrada no reino de 3.589 escravos da Guin, de propriedade dacoroa. No sculo seguinte, em apenas trs anos, de 1511 e 1513, passaram pelaCasa dos Escravos, segundo as contas do Almoxarife, 1.265 escravos de ambos ossexos, pertencentes ao rei. Esses cativos, atribudos em propriedade ao soberano,provinham umas vezes do negcio direto por conta dele com os negreiros ind-genas, outras vezes de rendas cobradas em espcie. Assim que, em 1510, foramarrematados os direitos de cobrana das rendas rgias razo de novecentos milreais por ano, pagveis em negros. O trfico, de resto, era estritamente reguladopelo monarca em seu prprio benefcio24 .

    A introduo em massa de escravos no pas era imprescindvel em razo daaguda carncia de mo de obra agrcola, provocada pela aventura martima. O reisempre foi o principal interessado no negcio de exportao de escravos,notadamente para Castela. No reinado de Afonso V as Cortes pediram para quefosse proibida a sada de cativos para o estrangeiro, pois a agricultura careciaagudamente de braos. O monarca rejeitou liminarmente a splica, pois ela vi-nha contrariar os seus interesses patrimoniais25 .

    Com o progressivo enfraquecimento do comrcio com o Extremo Orien-te, o imprio ultramarino portugus concentra-se no Atlntico Sul, onde Por-tugal exerceu, efetivamente, uma dominao econmica exclusiva, graas aotrfico de africanos26 . Entre Angola e Brasil, teceu-se uma forte rede de interes-ses mercantis, sob a proteo poltica de Lisboa. Angola fornecia o grande eindispensvel fator de produo para o tipo de agricultura desenvolvido noBrasil: o brao escravo. E a exclusividade desse fornecimento permitia, ao mes-mo tempo, o controle de toda a economia em terras braslicas. Entre a fricaOcidental e o Brasil estabeleceram-se, durante trs sculos, fortes laos eco-nmicos e polticos.

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    Quanto malagueta, seu comrcio no tardou a ser institudo monoplioda coroa, o que tornou o soberano portugus conhecido depreciativamente emtoda a Europa como o rei da pimenta, ou le Roi-Epicier, como disse FranciscoI de D. Manuel, o Venturoso.

    Na verdade, a febre especulativa j de h muito tomara conta dos nobres,empenhados em comprar habitualmente gneros de consumo para revend-loscom lucro. O que fez com que, j nas Cortes de Leiria de 1372, os representan-tes dos povos os increpassem, todos eles, de mercadores e regates 27 . E emborapersistisse bem viva a anima verso da plebe por todos os que, intitulando-sefidalgos, faziam da mercancia o seu modo de vida habitual, o pendor mercantilda nobreza, equiparvel ao da burguesia, permaneceu inabalado nos sculos pos-teriores, tendo sido vivamente reacendido com a explorao colonial. Nas colnias,alis, a pretensa fidalguia confundia-se em regra com a riqueza pessoal. Viver lei da nobreza, segundo a expresso consagrada, significava, pura e simples-mente, ser homem de posses.

    Nos demais grupos e classes superiores da sociedade colonial, a cupidezpraticamente no conhecia limites. Entre os governantes, fossem eles civis oumilitares, era normal complementar os estipndios ou soldos com toda sorte a detraficncias e exaes patrimoniais. Escrevendo do Rio de Janeiro em 6 de no-vembro de 1710 ao Duque de Cadaval, Frei Francisco de Menezes observou:Sua Majestade deu liberdade aos governadores para negociarem [...] At agorasempre governavam e negociavam, mas era com receio; sempre tinham mo emsi, agora vo pondo isto em tais termos que j no h negcio seno o seu28 . Deonde a conhecida diatribe de Vieira no Sermo de Santo Antnio aos Peixes:Porque os grandes, que tm o mando das Cidades e das Provncias, no secontenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos, a poucos,seno que devoram e engolem os povos inteiros. Ou, de maneira mais incisiva,ao saudar em julho de 1640, o Marqus de Montalvo, novo Vice-Rei do Brasil,que acabara de chegar Bahia: Perde-se o Brasil, senhor (digamo-lo em umapalavra) porque alguns ministros de Sua Majestade no vm c buscar nossobem, vm c buscar nossos bens29 .

    Nem mesmo o clero fugia desse padro mercantil de vida. A atuao dosclrigos no contrabando ou descaminho de ouro, diamantes e tabaco no Brasilcolonial bem sabida. E contraditoriamente, ao mesmo tempo em que se entre-gavam, contra a mais autorizada tradio eclesistica, faina mundana do tratocomercial, os padres seculares e as diferentes ordens religiosas timbravam eminvocar contra o Fisco o privilgio medieval da imunidade tributria. Quando,em 1656, a Coroa baixou ordens estritas para que os religiosos assumissem a suaparte contributiva no pagamento dos impostos lanados para fazer face s despe-sas militares na campanha contra os holandeses no Brasil, a Cmara de Salvadorqueixou-se, em ofcio apresentado a Sua Majestade, que as ordens clericais, quepossuam na capitania vastas propriedades agrcolas, abastecidas com gado e abun-

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    ESTUDOS AVANADOS 17 (47), 2003 247

    dante escravaria, alm de muitos engenhos de acar, persistiam na recusa dopagamento desses impostos, de tal maneira que o peso tributrio recaa sobre orestante da populao, j por demais onerada30 .

    No h dvida de que o longo conbio entre poltica e comrcio em Por-tugal teve incio na segunda metade do sculo XIV, antes mesmo do advento dadinastia de Aviz ao trono real, com a edio por D. Fernando portanto quasetrs sculos antes de Cromwell! das leis destinadas a estimular a indstria nacio-nal da navegao e do seguro martimo. O apoio da burguesia do Porto e deLisboa ao Mestre dAviz em 1385 a primeira revoluo burguesa no Ocidente fez com que o soberano portugus passasse a gerir o reino como se fora a suaprpria casa de comrcio, empregando seus ministros como autnticos prepostosdo estabelecimento rgio.

    Ora, mais do que provvel que o precoce nascimento e a rpida expansodo capitalismo em Portugal vincule-se estrutura predominantemente senhorialda sociedade durante toda a Idade Mdia. Nesse sentido, nunca demais salien-tar que o capitalismo, ao contrrio do sistema feudal, conduz inevitavelmente concentrao de poder na sociedade. Ao contrrio, pois, do que comumente sepensa e divulga, o sistema capitalista, pela sua prpria natureza, visceralmentecontrrio ao funcionamento de um autntico regime democrtico, dado que asoberania do povo representa, em si mesma, a disperso do poder poltico, inclu-sive e notadamente o de regulao das atividades econmicas no seio dacoletividade.

    Com a expanso colonial do reino, a figura do rei mercador vai sendo, pou-co a pouco, substituda pela impessoalidade do Estado capitalista, empenhado di-retamente na explorao em monoplio do comrcio ultramarino. Enquanto aCorte ensejava, por vezes, burguesia mercantil a compra do ttulo de nobreza lembre-se que nas companhias de comrcio pombalinas o titular de mais de dezaes tornava-se nobre de pleno direito a classe senhorial como um todo aban-donou sem pesar a antiga condio de vassalagem ao rei, para assumir a posio,muito mais lucrativa, de cliente do Estado monrquico e depois republicano. Emlugar dos tradicionais privilgios, surgem novas rendas de situao, fundadas emrelaes contratuais exclusivas e ligaes pessoais com o estamento burocrtico.

    O lamentvel mal-entendido da democracia representativaA partir de 1578, com o desastre de Alccer Quibir, tem incio o longo pe-

    rodo de agonia do poder real. As remisses experimentadas com a Restauraode 1640, ou o despotismo modernizante de Pombal, mal encobriram a fatalidadeda molstia: o pas estava em vias de perder, definitivamente, o seu ponto deequilbrio, tradicionalmente situado na cpula do edifcio social. No toa quea mentalidade popular deixou-se embalar, durante sculos, pelo mito consoladordo sebastianismo: o heri nacional haveria de ressuscitar, como Cristo, para sal-var o seu povo.

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    ESTUDOS AVANADOS 17 (47), 2003248

    Portugal entrou, assim, no sculo XIX inteiramente despreparado paraenfrentar as transformaes polticas e econmicas provocadas pela ascenso daidia democrtica e o desenvolvimento do capitalismo industrial. Faltava-lhe oprotagonista, capaz de levar avante a formidvel empresa de modernizao dasestruturas sociais: uma burguesia voltada para o futuro, desafiadora do risco,bem preparada tecnologicamente e consciente de que o estado de miserabilidadeem que se encontravam as massas proletrias era um empecilho expanso donvel geral de consumo, sem a qual o sistema capitalista no pode subsistir.

    Na verdade, a idia de democracia representativa, introduzida na vida po-ltica pela vez primeira com a Revoluo de 1820, no passou, para usarmos daexpresso famosa de Srgio Buarque de Holanda para o caso brasileiro, de umlamentvel mal-entendido31 . Imaginou-se que o regime poltico, em que o povosoberano aceita exercer o poder por meio de representantes livremente escolhi-dos em eleies peridicas, podia funcionar numa sociedade marcada por pro-fundas desigualdades e habituada h sculos a respeitar situaes objetivas depoder sem reivindicar direitos civis e polticos. O resultado que, nos brevesmomentos em que o sistema atuou, a vida poltica e administrativa desenrolou-seno equvoco. Sob a gide do empenho e do compadrio, o povo fingia votar, osdeputados proclamavam-se legitimamente eleitos, os juzes confundiam domi-nao com justia e os funcionrios pblicos recebiam estipndios sem saberexatamente onde estava o bem pblico.

    Numa sucesso de revoltas e proclamaes revolucionrias, do setembrismoao cartismo, do levante da Maria da Fonte proclamao da Repblica em 1910,passando por todo o movimento dito regenerador, iniciado em 1851, o pas vaide tropeo em tropeo at reencontrar o antigo ponto de equilbrio na longasubmisso ditadura salazarista. Mas, encerrada esta, com a Revoluo dos Cra-vos de 1974, Portugal viu-se enfim claramente confrontado com a questo de-mocrtica, j no podendo confiar na tradicional soluo macroceflica. A re-construo do venerando edifcio nacional em runas h de fundar-se doravante,inevitavelmente, nos princpios da soberania popular efetiva e no respeito inte-gral aos direitos humanos.

    O caso brasileiro: democracia impossvel?Na formao da sociedade brasileira, vemos reproduzidos e adaptados

    realidade tropical os mesmos fatores que representaram, no Portugal metropoli-tano, um claro obstculo instaurao da vida democrtica. Tocqueville obser-vou, em certa passagem de seu estudo sobre o antigo regime e a revoluo fran-cesa32 , que nas colnias que se pode melhor julgar da fisionomia do governoda metrpole, porque a que de ordinrio todos os traos que a caracterizam seencontram ampliados e tornam-se mais visveis.

    Vejamos.

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    Soberania senhorial v. soberania estatal durante o ImprioFoi no Brasil que, desembaraado do ornamento feudal que o ataviava na

    metrpole, o regime do senhorio desenvolveu-se em toda a sua pujana.Graas farta distribuio de sesmarias, desde cedo despidas da obrigao

    de cultivo da terra, e precoce organizao da economia colonial no sentido damonocultura agrcola dirigida exportao, o territrio brasileiro foi desde logopartilhado em grandes domnios rurais, cujos proprietrios concentravam em suapessoa a plenitude dos poderes, tanto de ordem privada, como poltica, assim osde natureza civil, como os de ndole eclesistica. Pode-se afirmar, sem risco deexagero, que do senhor dependia o presente e o futuro de todos os que viviamno territrio fundirio, fossem eles familiares, agregados, clientes ou escravos.

    O sacerdote, representante oficial da Igreja, no passava no grande dom-nio rural de um agregado domstico, autorizado pelo senhor a celebrar missa,batizados e casamentos na capela da casa grande, bem como a sepultar os mortosno cemitrio da fazenda.

    A grande propriedade rural brasileira, que economicamente vivia em regi-me quase autrquico, era uma espcie de territrio soberano, onde o propriet-rio, como nos velhos senhorios europeus, fazia justia e mantinha fora militarprpria, para defesa e ataque. Entre o senhor e as autoridades do Estado, comono plano internacional, estabeleciam-se relaes de potncia a potncia, funda-das na conveno bilateral de que o Estado se comprometia a respeitar a autono-mia local do senhor, ao passo que este, como coronel da Guarda Nacional33 ,obrigava-se a manter a ordem na regio, emprestando autoridade pblica oconcurso de seus homens de armas para a eventual guerra contra o estrangeiro,ou a episdica represso aos levantes urbanos.

    No meio urbano, justamente, a classe dos que se dedicavam ao grandecomrcio de exportao e importao, tanto quanto os principais banqueiros,atuavam em estreito relacionamento com o grande senhorio rural.

    Numa anlise linearmente marxista, dir-se-ia que o conjunto da mquinaestatal nada mais seria do que o simples reflexo dessas classes dominantes, atuandosempre por conta e no benefcio exclusivo delas. Em sentido diametralmenteoposto, como foi sustentado por Raymundo Faoro34 , a burocracia estatal, antese depois da independncia do pas, formaria uma espcie de estamento weberiano,dotado de plena autonomia de mando.

    A realidade, contudo, parece ter sido bem mais complexa do que essesesquemas unidimensionais supem. Entre as classes dominantes e o Estado, tan-to antes, como depois de 1822, estabeleceu-se uma co-relao de foras, em queambas as partes se confrontavam periodicamente, de modo aberto ou oculto,naquilo que o historiador Jos Murilo de Carvalho35 , utilizando-se de uma ex-presso do socilogo Guerreiro Ramos, denominou com razo a dialtica daambigidade. Nem as classes dominantes podiam impor quando quisessem a sua

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    vontade ao Estado, nem este era livre de agir, como bem entendesse, contra ointeresse econmico daquelas. Durante todo o seu longo reinado, D. Pedro IIusou com prodigalidade do seu poder constitucional de conceder ttulos, hon-ras, ordens militares e distines em recompensa de servios feitos ao Estado(Constituio de 1824, art. 102, XI), para conquistar pessoalmente a lealdadedas classes dominantes. Assim que, do total de ttulos nobilirquicos outorga-dos durante o segundo reinado, 77% foram de baro, sabendo-se que o baronatoera reservado pelo imperador, quase que exclusivamente, aos grandes propriet-rios rurais e aos comerciantes de maior cabedal. Quando, em 1888, o MinistrioJoo Alfredo preparava-se para fazer votar a abolio da escravatura, ao sentirque se multiplicavam as defeces dos grandes senhores rurais do sudeste noapoio ao regime monrquico, ainda tentou em vo reter a lealdade do Conse-lheiro Antonio Prado Coroa, concedendo-lhe o ttulo de Visconde de So Pau-lo, por ele recusado.

    Mas por Estado, como dito acima, em se tratando do Brasil imperial,deve-se entender mais exatamente o Poder Executivo e, dentro dele, como bvia, a figura do imperador. Neste ponto, fomos e continuamos sendo legti-mos herdeiros de Portugal. o trao saliente do nosso sistema poltico,enfatizou Joaquim Nabuco a propsito da vida poltica no imprio, essaonipotncia do Executivo, de fato o Poder nico do regime36 .

    Seja como for, o resultado do confronto permanente entre os senhoreslocais e o governo central dava satisfao, ora a uma parte, ora a outra.

    Durante toda a fase da monarquia imperial, o Estado logrou impor a suavontade sem dvida laboriosamente, ao cabo de mais de meio sculo de esfor-os em matria de trabalho escravo. Mas no tocante ao regime da propriedadefundiria, o senhorio rural obteve plena satisfao de seus interesses. A Lei doVentre Livre de 1871 s pde ser aprovada porque a Cmara dos Deputados eracomposta, em sua maioria, de funcionrios pblicos e magistrados, uns e outrosestritamente dependentes do Governo. J na votao da Lei de Terras, em 1850,as principais propostas governamentais, notadamente a criao do impostoterritorial rural, foram derrotadas.

    Em ambos esses episdios, como em todas as demais decises legislativasque interessavam nao como um todo, as classes inferiores foram tratadascomo um elemento perfeitamente suprfluo do jogo poltico. O Brasil, obser-vou um viajante francs no final do sculo XIX, dava a estranha impresso de umpas desprovido de povo37 .

    A primeira fase da democracia republicana: 1889-1930Enquanto vigorou o regime monrquico, a democracia foi tida por todos,

    corretamente, como a anttese da autocracia. Por isso mesmo, a elite dirigente dopas, a comear, escusa diz-lo, pelo prprio monarca, considerou o regime de-mocrtico como uma clara subverso da ordem poltica.

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    Menos de um ano aps a independncia, quando se elaborava a Constitui-o do novo Estado, o jovem imperador lanou, em proclamao datada de 19de julho de 1823 sobre o procedimento de vrias cmaras, um brado de alerta:

    Algumas Camaras das Provincias do Norte deram instrues aos seus De-putados, em que reina o espirito democratico. Democracia no Brazil! Nestevasto, e grande Imperio um absurdo; e no menor absurdo o pretende-rem ellas prescrever leis, aos que as devem fazer, comminando-lhes a perda,ou derogao de poderes, que lhes no tinham dado, nem lhes compete dar.

    Sem dvida, o sistema de concentrao do poder poltico no governo cen-tral, como emanao da vontade pessoal do imperador, foi um fator decisivo paraque se lograsse vencer a tendncia separatista, manifestada em vrias regies dopas na primeira metade do sculo XIX, bem como para a defesa da nao contrao inimigo externo.

    Finda a guerra do Paraguai, porm, e com a crescente prosperidade dacultura do caf na regio sudeste, as oligarquias rurais passaram a contestar opoder central e a reivindicar maior autonomia de atuao local, tanto no terrenoeconmico, como no poltico.

    a partir desse momento que a idia de democracia, ou de repblica de-mocrtica, v-se recuperada como frmula poltica e purgada de suas conotaesnegativas. Em vez de favorecer a anarquia, apregoa-se, ela assegura o estabeleci-mento da ordem e d mais eficincia ao dos Poderes Pblicos no plano local.

    A palavra democracia e expresses cognatas, como solidariedade democr-tica, liberdade democrtica, princpios democrticos ou garantias democrticas,aparecem nada menos do que 28 vezes no Manifesto Republicano de 1870. Umdos seus tpicos intitulado a verdade democrtica.

    Uma anlise menos superficial do documento, no entanto, mostra que osprceres republicanos entendiam por democracia no exatamente o regime dasoberania popular (expresso substituda, no Manifesto, por soberania nacional),mas sim a federao, tomado este conceito em sentido diametralmente opostoquele com que fora empregado pelos constituintes de Filadlfia em 1787. Comefeito, federao, para os brasileiros, no queria dizer unio de unidades polticasanteriormente soberanas, mas sim a descentralizao de poderes num Estadounitrio. O Manifesto, alis, encerra-se, segundo o estilo farfalhante da poca,arvorando resolutamente a bandeira do partido republicano federativo, e noa bandeira do partido republicano democrtico.

    O que, na verdade, constitua a razo de ser desse movimento descentra-lizador, o documento de 1870 fez questo de deixar na sombra: nenhuma pala-vra disse sobre aquilo que a elite poltica da poca denominava, eufemisticamente,a questo do estado servil.

    O partido republicano paulista, contudo, no pde prosseguir por muitotempo nesse jogo poltico sem abrir as cartas. No manifesto lanado por ocasiodo encerramento de seu congresso de 1873, os republicanos de So Paulo, evi-

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    tando ladinamente uma tomada de posio sobre o mrito da questo, assim sepronunciaram:

    Fique portanto bem firmado que o Partido Republicano, tal como conside-ramos, capaz de fazer a felicidade do Brasil, quanto a questo do estadoservil, fita desassombrado o futuro, confiado na ndole do povo e nos meiosde educao, os quaes unidos ao todo harmonico de suas reformas e do seumodo de ser ho de facilitar-lhe a soluo mais justa, mais pratica e modera-da, sellada com o cunho da vontade nacional.Parece que esta declarao seria sufficiente para apagar todas as duvidas.A questo no nos pertence exclusivamente porque social e no politica:est no dominio da opinio nacional e de todos os partidos, e dosmonarchistas mais do que nossa, porque compete aos que esto na posse dopoder, ou aos que pretendem apanhal-o amanh, estabelecer os meios doseu desfecho pratico.[...]Entretanto como quer que seja, se o negocio fr entregue a nossa delibera-o, ns chegaremos a elle do seguinte modo:1 Em respeito ao princpio da unio federativa cada provincia realizar areforma de accrdo com os seus interesses peculiares mais ou menos lenta-mente, conforme a maior ou menor facilidade na substituio do trabalhoescravo pelo trabalho livre.2 Em respeito aos direitos adquiridos e para conciliar a propriedade defacto com o principio da liberdade, a reforma se far tendo por base a in-demnizao e o resgate.

    Oito anos depois, ao discursar na Cmara dos Deputados, o republicanopaulista Prudente de Morais, futuro Presidente da Repblica, preferiu, em lugarde defender a introduo do regime republicano, propor a federalizao do im-prio, segundo o modelo alemo da poca. Uma adequada distribuio de com-petncias s provncias, argumentou, excluiria o perigo, que ele pressentia imi-nente, de que uma maioria de deputados, eleitos pelas provncias j desembara-adas de escravos, impusesse a abolio da escravatura a todo o pas38 .

    Derrubada a monarquia, o Governo Provisrio, em seu primeiro decretode 15 de novembro de 1889, declarou proclamada como forma de governo daNao Brasileira a Repblica Federativa, omitindo toda e qualquer referncia democracia.

    Ora, enquanto o povo assistiu a tudo aquilo bestializado, segundo aexpresso famosa de Aristides Lobo, as oligarquias locais, aparentemente vitorio-sas no seu primeiro apelo aos quartis, tiveram que atravessar alguns anos degrave incerteza e apreenso, diante do carter centralizador e autoritrio dosprimeiros governos militares. O episdio repetir-se-ia, trs quartos de sculodepois, com a derrubada do governo Joo Goulart. Com a diferena de que,nessa quadra poltica, o regime militar no durou apenas cinco, mas vinte anos.

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    A Constituio de 1891 organizou, efetivamente, o Estado sob a formafederativa, como queriam os republicanos histricos. Mas no tocante forma degoverno, em lugar de seguir o alvitre parlamentarista do Manifesto de 187039 ,preferiu instituir, segundo o modelo norte-americano, o sistema presidencial degoverno.

    Ora, o que parecia, a princpio, a mera reproduo da frmula ianque,acabou por revelar-se, com o tempo, o regresso integral velha tradio luso-brasileira, com a concentrao macia de todos os poderes na pessoa do Chefe deEstado.

    O processo de retorno macrocefalia estatal no se deu, porm, de um sgolpe e sim em duas etapas.

    Durante a primeira delas, que perdurou at 1930, o Presidente da Repbli-ca atuou como rbitro supremo das rivalidades entre os Estados federados, assimcomo cada Chefe do Poder Executivo estadual incumbia-se de arbitrar os confli-tos entre os senhores locais. A chamada poltica dos Governadores desdobra-va-se, pois, num pacto coronelista em cada unidade da federao. Em ambas assituaes, estabelecia-se uma espcie de contrato poltico bilateral. No plano dafederao, o Presidente da Repblica comprometia-se a dar mo forte aos gover-nos estaduais, desde que estes sufragassem o candidato sucesso presidencialindicado por ele prprio, Presidente. No plano estadual, os senhores rurais,atuando ou no, oficialmente, como coronis da Guarda Nacional, faziam sem-pre dos candidatos governistas os vencedores dos pleitos eleitorais, obrigando-seos Governadores, em contrapartida, a garantir, mediante o concurso da Polcia,da Magistratura e do Ministrio Pblico, a soberania de cada senhor no territriode sua propriedade40 .

    Analisada, assim, em toda a sua crueza, preciso reconhecer que a demo-cracia federativa estabelecida pela Repblica Velha estava longe de ser o lamen-tvel mal-entendido de que falou Srgio Buarque de Holanda. A elite polticada poca jamais se deixou iludir sobre o sentido real dos conceitos de soberaniapopular ou de direitos de cidadania. A retrica democrtica, nos seus escritos ediscursos, no passava de grosseiro disfarce ideolgico.

    Esse equilbrio sinalagmtico entre as oligarquias locais e o poder central, revelia do povo, foi afinal vencido, no de dentro, mas de fora, com o advento dadepresso econmica mundial desencadeada pela quebra da Bolsa de Nova Yorkem 1929. O setor de exportao de produtos primrios, no campo e nas cidades,duramente golpeado pela crise, retirou seu apoio a ambos os pactos, o estadual eo federal, e o sistema poltico veio abaixo.

    Avatares da democracia republicana a partir de 1930A marginalizao, que se acreditava temporria, das classes dominantes li-

    gadas agricultura de exportao, deixou o Estado brasileiro como ator nico nacena poltica. Ora, aps a revoluo de 1930, o aparelho estatal submeteu-se ao

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    poder incontrastvel do chefe do governo provisrio, rapidamente legitimadocomo Presidente da Repblica. Investido nessa posio, o novo Chefe de Estadops desde logo em marcha, com a poltica de industrializao substitutiva deimportaes, um processo de reestruturao das posies de mando na socieda-de brasileira, ao criar de toutes pices uma nova classe dominante: o grupo dosempresrios industriais.

    O restabelecimento do confronto poltico entre Estado e sociedade civil,ou, se se quiser, segundo os conceitos da anlise gramsciana, entre o grupohegemnico e a classe dominante, fez-se, porm, com um acrscimo de monta: oChefe de Estado criou junto nova classe industrial, como delegado pessoaldele, Presidente da Repblica, o tambm novo setor do sindicalismo oficial.

    O povo, todavia, continuava a ser o que sempre fora: o grande ausente. Suaentrada em cena s viria a dar-se com a queda do ditador em 1945, seguida dareconstitucionalizao do Estado no ano seguinte. Iniciou-se, ento, um novojogo poltico, caracterizado agora pelo regular funcionamento daquilo que umlargo setor da intelectualidade considerava e ainda considera como a quinta es-sncia da democracia: separao oficial entre os Poderes do Estado, eleies li-vres e pluralidade partidria.

    No difcil demonstrar que, em pases afetados por uma abissal desigual-dade, como o caso do Brasil, o cumprimento formal desses rituais democrti-cos nada tem que ver com a efetiva soberania popular e o integral respeito aosdireitos humanos.

    Seria, contudo, um grave erro de anlise pretender que o povo, quandochamado a eleger periodicamente seus representantes, figura como elementomeramente passivo no quadro geral da ao poltica. Da mesma forma que adominao social de classe no significa, ipso facto, o controle absoluto do apare-lho estatal, assim tambm a aliana da classe dominante com a elite dirigente noEstado tampouco significa uma manipulao mecnica do voto popular nas elei-es. Por mais eficazes que sejam hoje os mtodos de direo da opinio pblica,subsiste sempre um grau mais ou menos elevado de incerteza nas decises eleito-rais. O sistema , portanto, deficiente, quer para levar, por si s, o povo ao exer-ccio do poder soberano em seu benefcio, quer para garantir a plena satisfaodos interesses das classes dominantes.

    Foi, sem dvida, essa incerteza nsita em todo regime de democracia for-mal que levou as classes dominantes nacionais, apoiadas pelo governo norte-americano, a suspender, a partir de 1964, o funcionamento do sistema. Ele sveio a ser recomposto, ao ser promulgada, em 1988, com a Constituio atual-mente em vigor. Mas, ento, o quadro mundial j se achava inteiramente modi-ficado, com o rpido avano do processo de globalizao capitalista. Em todos ospases da chamada periferia do globo, os dois agentes tradicionais da poltica oEstado nacional e as classes dominantes internas foram singularmente enfra-quecidos, seno afastados de todo.

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    Restou, pois, o povo, em funo do qual no se esquea foi cunhada hvinte e cinco sculos, na Grcia, a denominao clssica do regime poltico. Sa-ber o povo, hoje, assumir o efetivo exerccio daquele poder supremo sobre to-dos os cidados (to kurion tn polen)41 , que a teoria lhe reserva?

    o que se passa a conjecturar per summa capita, guisa de concluso.

    ConclusoComo vimos na primeira parte desta exposio, Aristteles considerava a

    democracia como corrupo do regime poltico em que o conjunto dos cidadosexerce a soberania em funo do bem comum (pros to koinon supheron), regimeesse que, mngua de denominao especfica, ele preferiu chamar pelo gneroorganizao da cidade (politia). A corrupo democrtica consistiria no exer-ccio do poder supremo pela maioria pobre em seu exclusivo benefcio.

    Ora, a realizao do bem comum do conjunto dos cidados supe a elimi-nao da desigualdade social no tocante s condies de uma vida digna, enten-dida esta como o comum respeito ao conjunto dos direitos humanos, tanto os denatureza civil e poltica, como os de ordem econmica, social e cultural. Se ajustia fundamentalmente uma relao de igualdade, a sua realizao socialcorresponde, como bvio, supresso de toda desigualdade preexistente.

    Segue-se da que a ao poltica dirigida a elevar as camadas mais carentesdo povo, de forma a equipar-las, em matria de direitos humanos, s classesmais ricas e poderosas, vai claramente no sentido do bem comum.

    Na verdade, o critrio mais adequado para a classificao dos regimes pol-ticos no parece ser o do nmero de sujeitos que exercem a soberania, comopensaram os clssicos, mas sim o da finalidade objetiva com que esta exercida.De acordo com este critrio, a verdadeira essncia da democracia consiste naao prioritria dos Poderes Pblicos em favor das classes pobres e dominadas,ou seja, a realizao sistemtica da justia proporcional (to dikion anlogon),como a denominou Aristteles42, na qual os que tm menos recebem mais evice-versa.

    Com efeito, numa sociedade marcada por profundas desigualdades de n-vel e de qualidade de vida, o conjunto dos mais pobres no se acha em condiode exercer autonomamente os seus direitos de cidadania. No caso brasileiro, essasituao ainda mais grave, em razo da tradicional carncia de coeso social noseio do povo43, oriunda, como vimos, da persistente dominao senhorial, desdeos tempos medievais em Portugal. As classes social e economicamente domina-das encontram-se numa situao semelhante das pessoas juridicamente incapa-zes para o exerccio dos atos da vida civil: elas carecem de proteo legal, peladesignao de pessoas ou rgos incumbidos de exercerem, em seu nome e be-nefcio, os poderes inerentes aos seus direitos subjetivos.

    Tal significa dizer que a ao poltica prioritria em favor dos fracos e po-bres, numa autntica democracia, supe a existncia de um Estado forte e bem

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    organizado, constitucionalmente competente para impor a sua vontade s classesdominantes no interior do pas e s potncias dominantes no plano internacio-nal. Ou seja, exatamente o oposto do Estado subserviente, engendrado peloatual capitalismo globalizante.

    Ao contrrio do que postula uma certa anlise marxista, como assinaladoacima, o poder das classes dominantes nunca chega a anular completamente aautonomia dos rgos estatais. E bem por isso que, em sua maior parte, osgolpes de Estado contemporneos tm sido fomentados pelas classes ou gruposeconomicamente fortes, com o oportuno auxlio dos agentes do poder capitalis-ta internacional.

    Todavia, como ningum ignora, o fortalecimento imprudente do poderestatal acaba fatalmente por suscitar o despotismo, com a supresso das liberda-des civis e polticas.

    Uma soluo para esse dilema poderia ser encontrada a partir do princpiofundamental de que a funo precpua do Estado, numa democracia, consiste noamparo econmico e na formao cvica das classes e grupos mais pobres do pas,a fim de que eles se tornem capazes de exercer, de modo pleno e autnomo, asua cidadania.

    Essa ao pedaggica dos governantes, to enfatizada por Aristteles noltimo livro da Poltica, obedeceria a duas diretrizes.

    De um lado, a ampliao da competncia dos rgos estatais, cujo preen-chimento no est sujeito influncia direta das classes dominantes, como oJudicirio e o Ministrio Pblico, para que eles imponham ao Executivo e aoLegislativo a elaborao e aplicao de polticas pblicas destinadas realizaodos direitos econmicos, sociais e culturais.

    De outro lado, a criao de instncias de participao popular obrigatriano funcionamento do Estado, em todos os nveis, fundadas logicamente no pres-suposto da prvia aprovao por referendo da Constituio e suas emendas. Soexemplos dessa participao ativa dos cidados no exerccio do governo a autori-zao popular para a tomada de decises polticas de longo e profundo alcance,como a celebrao de tratados internacionais instituidores de zonas de livre co-mrcio ou mercado comum; a desoligarquizao do sistema eleitoral, mediante aaprovao, por referendo popular, das suas linhas diretrizes; o controle social dosmeios de comunicao de massa; a elaborao conjunta de oramentos com osrgos de representao popular; a ampla legitimao de agir em juzo atribudaa associaes civis, na defesa dos direitos econmicos, sociais e culturais; o refor-o da ao popular cvel e a reintroduo da ao popular criminal44 ; a dissoluopor sufrgio popular de assemblias parlamentares, ou a destituio pelo mesmomecanismo de chefes do Poder Executivo.

    Em suma, a civilizao humanista com que sonhamos no pode contentar-se com o medocre programa de fazer da democracia o menos mau dos regimes

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    polticos. Seria um escrnio se os espritos autenticamente democratas se confor-massem, hoje, com a supremacia mundial do sistema capitalista, reservando aosEstados nacionais e s organizaes internacionais humanitrias, to s, a tarefaancilar de pensar as chagas que esse sistema de explorao econmica abriu nahumanidade. A misso poltica que nos incumbe bem outra, muito maisexaltante: trata-se de construir um mundo novo, em que todos os seres huma-nos, em qualquer parte do globo terrestre em que se encontrem, possam, enfim,nascer e viver, livres e iguais em dignidade e direitos.

    Notas

    1 Montesquieu, De lesprit des lois, livro VIII, cap. 2.2 James Madison, The Federalist, n 10.3 Human Development Report 2002 Deepening Democracy in a Fragmented World,

    Oxford, Oxford University Press, p. 1.4 Plato, Repblica, livro I, 338 d.5 Plato, O Poltico, 302 c e ss.; Aristteles, A Poltica, 1279 a, 25 e ss.6 Idem, 1279 b, 11 e ss. No mesmo sentido, sempre na Poltica, 1281 a, 12-19; 1289

    b, 29-32; 1290 a, 30; 1290 b, 20; 1291 b, 2-13; 1296 a, 22-32; 1296 b, 24-34; 1315a, 31-33; 1317 b, 2-10; 1318 a, 31-32.

    7 Aristteles, A Poltica, 1289 a, 40.8 Xenofonte, Memoriabilia, IV, 1, 3.9 Idem, 1289 b, 5.10 Idem, 1293 b, 34-41.11 Idem, 1290 b, 1.12 Guy Fourquin, Senhorio e Feudalidade na Idade Mdia, Lisboa, Edies 70, p. 12.13 Philippe de Beaumanoir, Coutumes de Beauvaisis, ed. por Am. Salmon, t. 2, Paris,

    Alphonse Picard et Fils, 1900, n 1043.14 Cf. Marc Bloch, A Sociedade Feudal, 2 ed., Lisboa, Edies 70, p. 254.15 Vejam-se as judiciosas consideraes feitas pelo grande historiador portugus Jos

    Mattoso, Identificao de um Pas Ensaio sobre as origens de Portugal, t. I, 5 ed.,Lisboa, Referncia/Editorial Estampa, pp. 224 e ss.

    16 Cf. Da existencia ou no existencia do feudalismo em Portugal, in Opsculos, tomo V,Controvrsias e estudos histricos, tomo II, 4 ed., Lisboa Rio de Janeiro, Bertrand/Francisco Alves, pp. 189 e ss.

    17 Cf. Michel I. Rostovtseff, Histoire conomique et sociale de lempire romain, Paris,Robert Laffont, 1988, pp. 165-166.

    18 Jos Mattoso, op. cit., t. I, pp. 260-261.19 J. Lcio de Azevedo, pocas de Portugal Econmico Esboos de histria, 4 ed.,

    Lisboa, Livraria Clssica Editora, p. 18.20 Idem, p. 20.

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    21 Idem, p. 32.22 Idem, p. 165.23 Srgio Buarque de Holanda, Razes do Brasil, 5 ed., Livraria Jos Olympio, Rio de

    Janeiro, p. 11.24 Cf. J. Lcio de Azevedo, op. cit., pp. 70 e ss.25 Idem, p. 74.26 a tese sustentada por Luiz Felipe de Alencastro, em O trato dos viventes formao

    do Brasil no Atlntico Sul, sculos XVI e XVII, So Paulo, Companhia das Letras.27 J. Lcio de Azevedo, op. cit., p. 82.28 Citado por C. R. Boxer, The Golden Age of Brazil, 1695 -1750, University of California

    Press, 1962, p. 393, nota 4 ao captulo V.29 Sermo da Visitao de Nossa Senhora, in Sermes, Porto, Lello & Irmos, 1951,

    vol. IX, p. 346.30 Cf. C. R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire 1415-1825, Carcanet, em associa-

    o com a Fundao Caloute Gulbenkian e a Comisso Os Descobrimentos, Lisboa,1991, p. 328.

    31 Srgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 119.32 Alxis de Tocqueville, LAncien Rgime et la Rvolution, Paris, Gallimard, 1952, p.

    286.33 A Guarda Nacional, criada por lei de 18 de agosto de 1831 como auxiliar do Exrci-

    to, foi uma revivescncia da antiga corporao das ordenanas, existente durante apoca colonial. Todos os cidados brasileiros maiores de dezoito anos eram obrigato-riamente inscritos na Guarda Nacional. A corporao tornou-se, no final do imprio,meramente decorativa ou honorfica. Sobre o assunto, cf. Victor Nunes Leal,Coronelismo, Enxada e Voto, 3 ed., 1976, pp. 211 e ss.

    34 Raimundo Faoro, Os Donos do Poder A formao do patronato poltico brasileiro, 3ed., So Paulo, Globo.

    35 Jos Murilo de Carvalho, I A Construo da Ordem, II Teatro de Sombras, 2 ed.,Rio de Janeiro, UFRJ/Relume Dumar.

    36 Joaquim de Nabuco, Um Estadista do Imprio, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, Bibli-oteca Luso-Brasileira, Srie Brasileira, p. 239.

    37 La situation fonctionnelle de cette population peut se rsumer dun mot: le Brsil napas de peuple. Apud Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, 34 ed., Rio de Janei-ro e So Paulo, Record, p. 35.

    38 Cf. Robert Conrad, Os ltimos anos da escravatura no Brasil, 2 ed., Rio de Janeiro,Civilizao Brasileira, p. 267.

    39 A soberania nacional s pde existir, s pde ser reconhecida e praticada em umanao cujo parlamento, eleito pela participao de todos os cidados, tenha a supre-ma direco e pronuncie a ultima palavra nos publicos negocios.

    40 Veja-se a monografia, ainda insuperada, de Victor Nunes Leal, citada na nota 29.41 Aristteles, A Poltica 1279 a, 27-28.42 tica a Nicmaco 1131 a, 29-30.

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    43 Cf. Srgio Buarque de Holanda, op. cit., cap. I; Caio Prado Jr., Formao do BrasilContemporneo, 16 ed., So Paulo, Brasiliense, pp. 341 e ss.

    44 Deve-se lembrar que a Carta Poltica de 1824 admitia que por suborno, peita,peculato e concusso, pudesse ser intentada contra os juzes ao popular, peloprprio queixoso, ou por qualquer do Povo (art. 157).

    Fbio Konder Comparato professor-titular da Faculdade de Direito da USP. Doutorem Direito da Universidade de Paris e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.