Comparato - Declarações de Direito Da Revolução Francesa

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CAPITULO 52 AS DECLARA<;OES DE DlREITOS DA REVOLU<;AOFRANCESA Essa mesma acep~ao do vocabulo aparece entre os norte- americanos por ocasiao da independencia. Uma interpreta~ao ana- cronica da palavra revoluc;iio, influenciada retroativamente pela Revolu~ao Francesa, procura mostrar 0 sentido inovador da fun- da~ao dos Estados Unidos da America como na~ao independen- te. Essa inova~ao existiu sem duvida, objetivamente, com a ins- taura~ao de algumas institui~5es pioneiras, como a separa~ao de Poderes. Mas, no espirito dos Pais Fundadores, a assim chamada "revolu~ao americana" consistiu, tal como na Inglaterra de 1688, na restaura~ao das antigas e costumeiras prerrogativas dos sudi- tos norte-americanos da coroa britanica. E significativo, alias, que toda a argumenta~ao da Declara~ao de Independencia visou a demonstrar nao que 0 regime monarquico fosse essencialmen- te injusto, mas que 0 rei Jorge III havia decaido de sua soberania sobre os povos norte-americanos, pelo fato de se ter transforma- do num tirano, ao negar as liberdades tradicionais de que goza- yam seus suditos do outro lado do Atlantico. o grande movimento que eclodiu na Fran~a em 1789 veio operar na palavra revoluc;iio uma mudan~a semantic a de 180°. Desde entao, 0 termo pas sou a ser usado para indicar uma reno- va~ao completa das estruturas sociopoliticas, a instaura~ao ex novo nao apenas de urn governo ou de urn regime politico, mas de toda uma sociedade, ~ conjunto das rela~5es de poder que comp5em a sua estrutura)Os revolucionarios ja nao sao os que se revoltam para restaurar a antiga ordem politic a, mas os que lutam com todas as armas - inclusive e sobretudo a violencia 3 - para induzir 0 nascimento de uma sociedade sem preceden- tes hist6ricos. Compreende-se, nessa perspectiva, que a palavra restaura- C;iio tenha entrado no vocabulario politico frances com uma A ideia de revolu~ao mud a de sentido . .Revolutio, em latim, eo ato ou efeito de revolvere (volvere slgmfic.a vo~ver ou girar, com 0 prefixo re indicando repeti~ao), no sentldo literal de rodar para tras e no figurativo de volver ao ponto de partida, ou de relembrar-se. Copernico, na obra famo- sa de 1543, com a quallan~ou as bases do sistema heliocentrico (D~ revolutionibus orbium coelestium), usou 0 substantivo para deslgnar 0 movimento dclico e necessario dos astros, notada- mente 0 movimento orbital dos planetas em torno do sol. .0 uso politico do vocabulo come~ou com os ingleses, no sentldo de uma volta as origens e, mais precisamente, de uma restaura~ao dos antigos costumes e liberdades. A ideia, portan- t~, nao se afastava muito da astronomia e implicava 0 reconhe- Clmento de que a hist6ria politica e dclica ou repetitiva. 0 ter- mo revolution e assim usado, pel a primeira vez, para caracteri- zar a restaura~ao monarquica de 1660, ap6s a ditadura de Cromwell. Vinte e oito anos depois, 0 epis6dio da derrubada da dinastia StUaI1,com a conseqtiente entroniza~ao do duque de Orange e sua mulher, ficou definitivamente marc ado nos rela- tos hist6ricos como a Glorious Revolution. No Bill of Rights de 1689 1 , de resto, a ideia dominante, expressa ja no preambul0, e a da restaura~ao das antigas prerrogativas dos suditos diante do monarca, numa tradi~ao hist6rica que remonta a Magna Carta c . 3. "A fon;:a", escreveu Karl Marx em 0 Capital, "e parteira de toda sociedade velha que traz uma nova em suas entranhas" (na tradw;;ao de Reginaldo Sant' Anna. 16' ed., Rio de Janeiro, Civiliza,<ao Brasileira, 1998, livro primeiro, v. II, p. 864). 1. Cf. capitulo 3 Q , supra. 2. Cf., supra, capitulo l Q

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CAPITULO 52

AS DECLARA<;OES DE DlREITOS DAREVOLU<;AOFRANCESA

Essa mesma acep~ao do vocabulo aparece entre os norte-americanos por ocasiao da independencia. Uma interpreta~ao ana-cronica da palavra revoluc;iio,influenciada retroativamente pelaRevolu~ao Francesa, procura mostrar 0 sentido inovador da fun-da~ao dos Estados Unidos da America como na~ao independen-te. Essa inova~ao existiu sem duvida, objetivamente, com a ins-taura~ao de algumas institui~5es pioneiras, como a separa~ao dePoderes. Mas, no espirito dos Pais Fundadores, a assim chamada"revolu~ao americana" consistiu, tal como na Inglaterra de 1688,na restaura~ao das antigas e costumeiras prerrogativas dos sudi-tos norte-americanos da coroa britanica. E significativo, alias,que toda a argumenta~ao da Declara~ao de Independencia visoua demonstrar nao que 0 regime monarquico fosse essencialmen-te injusto, mas que 0 rei Jorge III havia decaido de sua soberaniasobre os povos norte-americanos, pelo fato de se ter transforma-do num tirano, ao negar as liberdades tradicionais de que goza-yam seus suditos do outro lado do Atlantico.

o grande movimento que eclodiu na Fran~a em 1789 veiooperar na palavra revoluc;iio uma mudan~a semantic a de 180°.Desde entao, 0 termo pas sou a ser usado para indicar uma reno-va~ao completa das estruturas sociopoliticas, a instaura~ao exnovo nao apenas de urn governo ou de urn regime politico, masde toda uma sociedade, ~ conjunto das rela~5es de poder quecomp5em a sua estrutura)Os revolucionarios ja nao sao os quese revoltam para restaurar a antiga ordem politic a, mas os quelutam com todas as armas - inclusive e sobretudo a violencia3

- para induzir 0 nascimento de uma sociedade sem preceden-tes hist6ricos.

Compreende-se, nessa perspectiva, que a palavra restaura-C;iiotenha entrado no vocabulario politico frances com uma

A ideia de revolu~ao mud a de sentido

. .Revolutio, em latim, eo ato ou efeito de revolvere (volvereslgmfic.a vo~ver ou girar, com 0 prefixo re indicando repeti~ao),no sentldo literal de rodar para tras e no figurativo de volver aoponto de partida, ou de relembrar-se. Copernico, na obra famo-sa de 1543, com a quallan~ou as bases do sistema heliocentrico(D~ revolutionibus orbium coelestium), usou 0 substantivo paradeslgnar 0 movimento dclico e necessario dos astros, notada-mente 0 movimento orbital dos planetas em torno do sol.

.0 uso politico do vocabulo come~ou com os ingleses, nosentldo de uma volta as origens e, mais precisamente, de umarestaura~ao dos antigos costumes e liberdades. A ideia, portan-t~, nao se afastava muito da astronomia e implicava 0 reconhe-Clmento de que a hist6ria politica e dclica ou repetitiva. 0 ter-mo revolution e assim usado, pel a primeira vez, para caracteri-zar a restaura~ao monarquica de 1660, ap6s a ditadura deCromwell. Vinte e oito anos depois, 0 epis6dio da derrubada dadinastia StUaI1, com a conseqtiente entroniza~ao do duque deOrange e sua mulher, ficou definitivamente marc ado nos rela-tos hist6ricos como a Glorious Revolution. No Bill of Rights de16891

, de resto, a ideia dominante, expressa ja no preambul0, e ada restaura~ao das antigas prerrogativas dos suditos diante domonarca, numa tradi~ao hist6rica que remonta a Magna Cartac.

3. "A fon;:a", escreveu Karl Marx em 0 Capital, "e parteira de toda sociedadevelha que traz uma nova em suas entranhas" (na tradw;;ao de Reginaldo Sant' Anna.16' ed., Rio de Janeiro, Civiliza,<ao Brasileira, 1998, livro primeiro, v. II, p. 864).1. Cf. capitulo 3Q

, supra.2. Cf., supra, capitulo lQ•

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conota~ao diametralmente oposta a restoration dos ingleses.Na hist6ria politica francesa, 0 termo designa 0 restabelecimentodos Bourbons na Fran~a, ap6s a derrota de Napoleao; ou seja, 0retorno ao Ancien Regime, com a supressao de todas as inova-~6es revoluciomirias.

A consciencia de que a Revolu~ao Francesa inauguravaurn mundo novo tomou conta dos espiritos desde as primeirasjornadas revoluciomirias. Victorine de Chastenay, em suasMemorias (1771-1815), ao comentar a tomada da Bastilha re-,produziu toda a emo~ao que 0 extraordinano acontecimentosuscitara:

sembleia Constituinte que inaugurou 0 regime republican06. Ao

mesmo tempo, operaram a imediata substitui~ao dos pesos emedidas, vigorantes ha seculos e que variavam de regiao a re-giao e mesmo de cidade a cidade, pelo novissimo sistema me-trico decimal, fundado no calculo matematico. Se 0 novo calen-dario deixou de vigorar com 0 terminG da Revolu~ao, 0 sistemametrico acabou sendo adotado definitivamente em quase todoo mundo.

Foi esse aspecto de inova~ao radical, como salientouMichelet, que revelou a influencia inconsciente, exercida pelavisao crista do mundo no espirito dos revolucionarios 7

• Assimcomo 0 cristianismo operou uma recontagem do tempo hist6ri-co a partir do suposto ana de nascimento de Jesus Cristo, assimtambem imaginaram os pr6ceres da Revolu~ao Francesa que aHist6ria recome~aria a partir da proclama~ao do novo regimerepublicano (mas nao da tomada da Bastilha, como se poderiasupor).

Efetivamente, a oposi~ao essencial entre a prega~ao de Je-sus de Nazare e a tradi~ao honrada pelos grupos religiosos maisinfluentes de seu tempo centrou-se na diferen~a de sentido his-torico. Enquanto fariseus e saduceus voltavam-se para 0 passa-do, concentrado na lei mosaica, Jesus anunciou uma nova vidae urn homem novo, que avan~a confiante em dire~ao ao Reinode Deus. No tenso dialogo com Nicodemos, narrado no Evan-

"Sim, a Revoluc;ad. A palavra foi consagrada na-quele dia, e essa palavra, que supunha uma ordem in-teiramente nova, uma refusao completa, uma cria~aototal, acelerou 0 movimento das coisas e nao deixousubsistir mais nenhum ponto de apoio"5.

A convic~ao de fundar urn mundo novo, que nao sucedia 0antigo, mas a ele se opunha radicalmente, levou alias os revolu-cionarios a destrui~ao sem remorsos de urn numero colossal demonumentos hist6ricos e obras de arte, em todo 0 territ6rio doreino. Para os lideres intelectuais da revolu~ao, esses bens naoapresentavam nenhum valor cultural, mas eram, bem ao con-trano, contravalores.

as lideres revolucionanos estavam tao convencidos de queacabavam de inaugurar uma nova era hist6rica que nao hesita-ram em abolir 0 calendario cristao e substitui-lo por urn novo,cujo Ano I iniciou-se em 22 de setembro de 1792, dia seguintea data da instala~ao dos trabalhos da Conven~ao, a nova As-

4. Pa1avra grifada e com inicia1 maiuscu1a, no texto original.5. Apud Stephane Rials, La declaration des draits de l'homme et du citoven.

Paris, Hachette, 1988, p. 54. . .

6. 0 ca1endario republicano foi criado par decreto da Convenc,;ao de 24 de ou-tubro de 1793. 0 ana comec,;ava no equin6cio de outono e era dividido em 12meses de 30 dias cada um, mais 5 ou 6 dias complementares, consagrados it ce1e-brac,;ao das festas republicanas. Cada mes era dividido em tres decadas ou gruposde 10 dias. 0 ca1endario republicano vigorou ate 1Q de janeiro de 1806; mas desde2 de dezembro de 1804, quando Napo1eao foi sagrado imperador, a Franc,;aja haviadeixado de ser oficia1mente uma republica.

7. Histoire de la Revolution Franr;aise, t. I, Introduc,;ao, Primeira Parte, Paris,Gallimard, 1952, p. 21 e s.

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gelho de Joao8, a questao central e justamente a do renascimento

do homem. Dai 0 sentido mistico do batismo, como imersaonas aguas lustrais, uma esp6cie de reingresso do ne6fito no ute-ro materno, de onde nasce para uma vida nova.

Sao Paulo, na Epistola aos Romanos (6, 1-11), enfatizouessa significa~ao do batismo como uma especie de cesura his-t6rica entre 0 homem velho - pecador - e 0 homem novo,resgatado do pecado pela morte de Cristo.

A grande diferen~a 6 que a Revolu~ao Francesa, desde logo,apresentou-se nao como a sucessora de urn regime que desapa-recia por morte natural, mas como a destruidora vo1untaria doregime antigo por morte violenta. E essa violencia, doravanteligada quase que indisso1uvelmente a ideia de revo1u~ao, repre-sentou, sob muitos aspectos, ao longo da hist6ria, a nega~aodos direitos humanos e da soberania popular, em cujo nome seabrira 0 movimento revo1ucionario.

Para esse resultado negativo muito contribuiu 0 raciona-lismo abstrato dos grandes lideres revolucionarios de 1789.Muitos deles estavam, sinceramente, mais preocupados em de-fender a pureza das ideias do que a dignidade concreta da pes-soa humana. A critica reacionaria da epoca, de resto, nao dei-xou de assinalar esse desvio. "A Constitui~ao de 1795", escre-

veu Joseph de Maistre9, "tal como as suas irmas mais velhas, efeita para 0 homem. Ora, nao ha homem no mundo. Em minhavida, vi franceses, italianos, russos etc. Sei ate, gra~as aMontesquieu, que se pode ser persa10

: mas quanta ao homem,declaro que nunc a 0 encontrei em toda a minha vida; se eleexiste, eu 0 ignoro completamente" (( s 'it existe, c' est bien amon insu "). Edmund Burke, no mesmo diapasao, comentou:"Qual a utilidade de se discutir 0 direito abstrato do homem acomida ou ao remedio? A questao toda gira em torno do meto-do para obte-los e fornece-los. Eu aconselharei sempre que seconvoque 0 auxilio de urn agricultor e de urn medico, antes queo de urn professor de metafisica" 11.

Mas a verdade e que foi unicamente gra~as a esse "espiritode geometria" da razao abstrata, sempre a mesma em todos ostempos e lugares, e que veio substituir 0 imperio da tradi~ao,variavel de povo a povo, que as ideias revolucionarias puderamser levadas, em pouco tempo, a quase todos os quadrantes domundo.

8. Eis 0 epis6dio narrado em 3. 1-4. na versao da Biblia de Jerusalem: "Havia.entre os fariseus. urn membra do Sinedrio chamado Nicodemos. Veio ele. a noite.ter com Jesus e Ihe disse: Rabi, sabemos que vens da parte de Deus como urnmestre, po is ninguem pode fazer os sinais que fazes, se Deus niio estiver com ele.Jesus the respondeu:

Em verdade, em verdade te digo:quem niio nasce do altoniio pode ver 0 Reino de Deus.

Disse-lhe Nicodemos: Como pode urn homem nascer, sendo ja velho? Poderaentrar uma segunda vez no seio de sua miie e nascer? Respondeu-lhe Jesus:

Em verdade, em verdade te digo:quem niio nasce da agua e do Espiritoniio pode entrar no Reino de Deus.

o espirito universal da Declara~aode 1789

o estilo abstrato e generalizante distingue, nitidamente, aDeclara~ao de 1789 dos bills of rights dos Estados Unidos. Osamericanos, em regra, com a notavel exce~ao, ainda ai, de ThomasJefferson, estavam mais interessados em [mar a sua indepen-dencia e estabelecer 0 seu pr6prio regime politico do que emlevar a id6ia de liberdade a outros povos. Alias, 0 sentido queatribuiam a sua revolution, como acima lembrado, era essenci-

9. Considerations sur la France. Editions Complexe. 1988. p. 87.10. Alusao as Lettres Persanes de Montesquieu. onde 0 narrador conta que a

revela"ao de sua origem causava grande emo"ao entre os franceses: "Ah' ah! 0senhor e persa? E algo muito extraordinario! Como se pode ser persaT' (OeuvresCompletes. t. 1, Gallimard. p. 176-7).

11. Reflections on the Revolution in France. Penguin Books. p. 151-2.

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almente 0 de uma restauras;ao das antigas liberdades e costu-mes, na linha de sua propria tradis;ao historica.

Os revoluciomirios de 1789, ao contrario, julgavam-se apos-tolos de urn mundo novo, a ser anunciado a todos os povos eem todos os tempos vindouros. Nos debates da AssembleiaNacional Francesa sobre a redas;ao da Declaras;ao de Direitosdo Homem e do Cidadao, multiplicaram-se as intervens;6es dedeputados nesse sentido12

• Demeunier afirmou, na sessao de 3de agosto, que "esses direitos sao de todos os tempos e de todasas nas;6es". Mathieu de Montmorency repetiu, em 8 de agosto:"os direitos do homem em sociedade sac etemos, (...) invaria-veis como a justis;a, etemos como a razao; eles sac de todos ostempos e de todos os paises". Petion, que foi maire de Paris,considerou normal que a Assembleia se dirigisse a toda a hu-manidade: "Nao se trata aqui de fazer uma declaras;ao de direi-tos unicamente para a Frans;a, mas para 0 homem em geral".

Foi Duquesnoy, porem, que explicou, com toda clareza, arazao do carMer universal da declaras;ao que ia ser votada:

"Uma declaras;ao deve ser de todos os tempos ede todos os povos; as circunsHl.ncias mudam, mas eladeve ser invariavel em meio as revolus;6es. E precisedistinguir as leis e os direitos: as leis sac analogas aoscostumes, sofrem 0 influxo do carater nacional; os di-reitos sac sempre os mesmos".

gos e os estrangeiros em irmaos; ou antes, ela formou, acimade todas as nacionalidades particulares, uma patria intelectualcomum, da qual os homens de todas as nas;6es puderam tomar-se cidadaos"13. Urn fenomeno semelhante so voltou a ocorrercom a Revolus;ao Russa de 1917.

E, efetivamente, 0 espirito da Revolus;ao Francesa foidifundido, em pouco tempo, nao so na Europa, como tambemem regi6es tao distantes quanta a India, a Asia Menor e a Ame-rica Latinai4

Na conspiras;ao baiana de 1798, verificou-se que as ideiasrevolucionarias francesas ja haviam conquistado os oficiais eartesaos mais humildes15. 0 alfaiate pardo Joao de Deus, urndos insurgentes executados, e que no momento de sua prisaopossuia em tudo e por tudo 80 reis de patrimonio, pretendia que"todos (os brasileiros) se fizessem Francezes, para viverem emigualdade e abundancia" [..,]. Propunha "destruir ao mesmotempo todas as pessoas publicas, atacar os Mosteiros, franquearas portas aos que quisessem sahir [...] redusindo tudo a humainteira revolus;ao, que todos ficarao ricos, [...] tirados da miseriaem que se achavao, extincta a differens;a de cor branca, preta eparda, porque uns e outros seriao sem differens;a chamados eadmitidos a todos os ministerios e cargos". Nos manifestos afi-xados nas igrejas e pras;as public as de Salvador, em 12 de agos-to de 1798, lia-se: "cada hum soldado he cidadao, mormente oshomens pardos e pretos que vivem escomadose abandonados,

Foi em razao desse espirito de universa1ismo militante queTocqueville considerou a Revolus;ao Francesa mais proxima dosgrandes movimentos religiosos do que das revolus;6es politi-cas. "Vimo-Ia (a Revolus;ao Francesa) aproximar ou separar oshomens, a despeito das leis, das tradis;6es, dos temperamentos,da lingua, transformando por vezes os compatriotas em inimi-

13. L'Ancien Regime et la Revolution, Oeuvres Completes, 1. II, 3' ed., Paris,Gallimard, v. 1, p. 87. .

14. No Bengala, Ram Mohan Roy inspirou-se nas ideias de 1789 para cnar,logo no inicio do seculo XIX, 0 primeiro movimento reformista e nacionalista daIndia moderna. Em meados do seculo, a influencia da Revolu"ao Francesa fez-sesentir claramente na Turquia (cf. Eric Hobsbawm, The Age of Revolution, 1789-1848. Nova York, Vintage Books, 1996, p. 54-5).

15. As cita,,5es que se seguem foram extraidas do artigo do historiador inglesKenneth Maxwell, A Conspirac;iio Baiana de 1789, publicado no jornal Folha deS. Paulo em 26 de julho de 1998, cademo 6, p. 5 e s.

12. As cita,,5es apresentadas a seguir foram extraidas do livro de Stephane Rials,cil., p. 350-1.

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todos serao iguaes, nao haveni diferen<;a, so havera liberdade,igualdade e fratemidade". Os mesmos manifestos prometiamaos soldados 200 n~ispor dia e propunham a abertura do portoao comercio com todas as na<;5es, sobretudo com a Fran<;a.

centraliza<;ao sem limites a reinstaura<;ao do Poder absoluto,no regime do Terror, foi so urn passo.

Na luta contra as desigualdades, nao apenas foram extin-tas de urn so golpe todas as servid5es feudais, que vigoravamha seculos, como tambem se proclamou, pel a primeira vez naEuropa, em 1791, a emancipa<;ao dos judeus e a aboli<;ao detodos os privilegios religiosos. Por urn decreto da Conven<;aode 11 de agosto de 1792, proibiu-se 0 trafico de escravos nascolOnias17

• Esse movimento igualitario so nao conseguiu, afi-nal, derrubar a barreira da desigualdade entre os sexos.

Em varios cahiers de doleances18, as mulheres do Tiers

Etat reclamaram em vao contra a situa<;ao de injusta inferiori-dade em que se encontravam em rela<;ao aos homensl9.Condorcet fez publicar na imprensa, urn ana apos 0 inicio daRevolu<;ao20

, urn artigo Sobre a admissiio das mulheres ao di-reito de cidadania, mas a Assembleia Nacional ignorou-o. Em1791, a escritora e artista dramatica Olympe de Gouges redigiue publicou uma Dedarar;iio dos Direitos da Mulher e da Cida-dii, calcada sobre a Declara<;ao de 1789. Fez constarousadamente do artigo X que "a mulher tern 0 direito de subirao cadafalso", assim como 0 "direito de subir a tribuna". Efeti-vamente, havendo tornado em publico a defesa de Luis XVI,apos a sua deten<;ao em Varennes quando tentava fugir da Fran-<;a,Olympe de Gouges p6de exercer 0 seu direito de subir aocadafalso.

Liberdade, igualdade e fraternidade: a transposi~aodoideal na pratica

A Revolu<;aoFrancesa desencadeou, em curto espa<;ode tem-po, a supressao das desigualdades entre individuos e grupos so-ciais, como a humanidade jamais experimentara ate entao. Namade famosa, foi sem duvida a igualdade que representou 0pontocentral do movimento revolucionario. A liberdade, para os ho-mens de 1789, limitava-se praticamente a supressao de todas aspeias sociais ligadas a existencia de estamentos ou corpora<;5esde oficios. E a fratemidade, como virtude civic a, seria 0 resulta-do necessario da aboli<;aode todos os privilegiosl6•

Em pouco tempo, alias, percebeu-se que 0 espirito da Re-volu<;aoFrancesa era, muito mais, a supressao das desigualda-des estamentais do que a consagra<;ao das liberdades indivi-duais para todos. Dai por que, ao contrario do que ocorrera nosEstados Unidos, a ideia de separa<;ao de Poderes, malgrado aafirma<;aoperemptoria do art. 16 da Declara<;ao dos Direitos doHomem e do Cidadao de 1789, foi rapidamente esquecida. Eque a supressao dos privilegios, na lei e nos costumes, exigi a aorganiza<;ao de uma forte centraliza<;ao de poderes, sem rigi-das separa<;5es entre os diferentes ramos do Estado e sem qual-quer concessao de autonomia federativa aos entes locais. Dessa

17. Esse decreto foi revogado em 1802, durante 0 Consu1ado. Mas a pr6priaf6rmu1a da revogayao e significativa: "0 trafico de negros e sua importayao nasco1onias far-se-ao conforme as leis e regu1amentos existentes antes de 1789". Ouseja. reconheceu-se que a proibiyao do comercio de seres humanos era uma conse-qiiencia implfcita dos principios proc1amados pe1a Dec1arayao dos Direitos doHomem e do Cidadao.

18. Veja-se abaixo. em Fontes das declarar;,:oesde direitos da Revolur;,:iioFran-cesa 0 que foram os cahiers de doleances.

19. Cf. Cahiers de doleances des femmes et autres textes. Paris. Edition desfemmes. 1981.

20. Journal de la Societe de 1789. n. 5, de 3 de ju1ho de 1790.

16. E significativo. a esse respeito, que a Dec1arayao dos Direitos do Homem edo Cidadao. de 1789. s6 se refere it 1iberdade e it igua1dade. A fratemidade fez suaentrada na Constituiyao de 1791. como urn dos objetivos da celebrayao de festasnacionais: "Il sera etabli des fetes nationales pour conserver le souvenir de laRevolution franr;,:aise, entretenir la fraternite entre les citoyens, et les attacher ii laConstitution, ii la Patrie et aux lois". 0 trfptico famoso s6 veio a ser proc1amadooficialmente com a Constituiyao republicana de 1848 (Preambu10. IV).

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No tocante a liberdade politica, a Revolu~ao Francesa en-tendeu-a antes como a liberta~ao da "tirania monarquica" doque como a efetiva instaura~ao de urn regime phirimo de liber-dades individuais. Ate como medida de defesa nacional contrao cerco do novo Estado revolucionmo pelas potencias europeiasdo Ancien Regime, a Republica Francesa deu nascimento a urnnovo tipo de conflito belico, que iria multiplicar-se nos doisseculos seguintes: a guerra de liberta~ao dos povos contra aopressao interna e externa. Os revolucionmos franceses esta-yam convencidos de que a liberta~ao da Fran~a constituia, tao-so, a primeira etapa para a instaurac;;ao do reino universal daliberdade igualitma. Urn decreto da Assembleia Legislativa,datado de 19 de novembro de 1792, declarava: "A Fran~a ofe-rece fraternidade e auxilio a todos os povos que queiram recon-qui star a liberdade". Pondo em pn'itica 0 paradoxa que RousseaufOlIDulara no Contrato Social, os lfderes mais exaltados enxer-gavam na invasao militar de outros paises uma especie de re-curso extremo, a fim de for~a-los a serem livres2].

No discurso que pronunciou na Conven~ao em 24 de abrilde 1793, Robespierre propos que a nova declara~ao de direitosa ser votada contivesse as seguintes disposi~5es grandiloqtientes:

"Art. I. Os homens de todos os paises sao irmaos, eos diferentes povos devem se ajudar mutuamente de acor-do com seu poder, como cidadaos do mesmo Estado.

II. Aque1e que oprime uma na~ao declara-se ini-migo de todas as outras.

III. Os que guerreiam urn povo para travar os pro-gressos da liberdade e aniquilar os direitos humanos

devem ser perseguidos por todos, nao como inimigosordinarios, mas como assassinos e bandidos rebe1des.

IV. Os reis, os aristocratas, os tiranos, quaisquerque sejam, sao escravos revoltados contra 0 soberanoda terra, que e 0 genero humano, e contra 0 1egis1adordo universo, que e a natureza"22.

Ainda nesse particular, por conseguinte, a Revolu~ao Fran-cesa distinguiu-se nitidamente do movimento de independen-cia dos Estados Unidos. A sociedade norte-americana jamaisconhecera as divis5es estamentais ou as guerras de religiao, queconvulsionaram a Europa. Tirante a escravidao negra, ela era,portanto, juridicamente igualitaria. Ao rejeitarem a proposta deJefferson - esta sim rev01uciomiria - para a imediata aboli-~ao da escravatura23, os convencionais de Filadelfia puseramem marcha 0 processo historico que levari a inexoravelmente aguerra civil, no seculo seguinte.

Na Fran~a, ao contrario, 0 grande impulso revolucionarioeclodiu como uma desforra, 10ngamente reprimida, contra a hu-milha~ao das desigualdades. Como bem observou urn contem-poraneo, "as servid5es da propriedade rural, os embara~os aindustria foram sacudidos pelo povo menos par serem onerosos,do que por serem injuriosos". A Revolu~ao representou, sob esseaspecto, tanto no povo humilde quanta na burguesia endinheira-da, urn remedio contra "oslsofrimentos do amor-proprio"24.

Seja como for, as ondas de revolta provocadas pela Revolu-~ao de 1789, nao so na Fran~a, como em toda a Europa Ociden-tal e em outros continentes, desmentem a tese segundo a qual as

21. "A fim de que 0 pacto social, portanto, nao seja uma formula va, ele ha deconter tacitamente esse compromisso, que e 0 unico a dar forya aos demais, qualseja 0 de que todo aquele que se recusar a obedecer it vontade geral sera compelidoa is so por todo 0 corpo social: 0 que nao significa outra coisa senao que ele seraforyado a ser livre" (livro L capitulo VII),

22, Cf. Robespierre, Discours et Rapports a la Convention, Paris, Union Generaled'Editions, 1965, p, 121.

23. Cf., supra, capitulo 42.

24. Roederer, citado em Franyois Furet e Mona Ozouf, Dictionnaire Critiquede la Revolution Franc;aise, 1988 (Flammarion), verbete egalite, p. 696.

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declaras:6es francesas, por serem meras exortas:6es25,teriam sidomenos importantes que os bills of rights norte-americanos, parao efetivo assentamento dos direitos humanos no curso da hist6-ria26.Como foi salientado em outra parte27,as tecnicas juridicasutilizadas, em urn e outro caso, sao bem diferentes. Seguindo atradis:ao inglesa, os norte-americanos deram mais enfase as ga-rantias judiciais do que a declaras:ao de direitos pura e simples.Os franceses, ao contrario, quase que se limitaram a declarar di-reitos, sem mencionar os instrumentos judiciais que os garantis-sem. E preciso nao esquecer, no entanto, que 0 Direito vive, emultima analise, na consciencia humana. Nao e porque certos di-reitos subjetivos esUio desacompanhados de instrumentosassecurat6rios pr6prios que eles deixam de ser sentidos no meiosocial como exigencias impostergaveis. Alias, ninguem mais nega,hoje, que a vigen cia dos direitos humanos independe do seu re-conhecimento constitucional, ou seja, de sua consagras:ao no di-reito positivo estatal como direitos fundamentais (Grundrechte,segundo a terminologia alema). Por isso mesmo, uma proclama-s:ao de direitos, mesmo quando despida de garantias efetivas deseu cumprimento, pode exercer, conforme 0 momenta hist6ricoem que e lans:ada, 0 efeito de urn ato esclarecedor, iluminando aconsciencia jurfdica universal e instaurando a era da maioridadehist6rica do homem. Declarar, alias, e vocabulo cognato de es-clarecer, de aclarar. E 0 espirito do seculo XVIII, convem lem-brar, e marcado pela ideia de que as luzes da razao (lumieres,Aujkliirung, enlightenment, iluminismo) iluminavam todas asas:6es humanas e desvendavam os segredos da natureza.

Mas quem seria 0 agente capaz de levar a born termo amagna tarefa de guiar a vida politica pelas luzes da razao ereconstituir a Frans:a?

Povo, na~aoe representa~aopoHtica

o grande problema politico do movimento revolucionariofrances foi, exatamente, 0 de encontrar urn outro titular da so-berania, ou poder supremo, em substituis:ao ao monarca. A ideiade monarquia absoluta, combatida por todos os pensadores do"seculo das luzes", tornou-se inaceitavel para a nova classe as-cendente, a burguesia. Tinha esta, de fato, s6lidos argumentospara retomar 0 movimento hist6rico em favor da limitas:ao depoderes dos governantes, iniciado na Baixa Idade Media com aMagna Carta, e seguido na Inglaterra pela Petition of Rights de1628, 0 Habeas Corpus Act e 0 Bill of Rights. Nao foi, alias,por outra razao que Voltaire e Montesquieu sempre apresenta-ram a Inglaterra como 0 exemplo a ser seguido na Frans:a. Acon-tece que essa seqUencia hist6rica de atos de limitas:ao de pode-res supunha, logicamente, a manutens:ao de urn centro de podera ser limitado, 0 qual, no caso da Frans:a, era tradicionalmenteo rei. A partir do momenta em que este centro de poder polfticodesaparecia, ou se encontrava seriamente enfraquecido, dese-quilibrava-se todo 0 edificio polftico. Dos tres estamentos quecompunham oficialmente a sociedade francesa, 0 clero e a no-breza nao tinham, naquele momenta hist6rico, a menor legiti-midade para reivindicar para si a soberania, porque continua-yam apegados a privilegios que oprimiam 0 povo humilde erestringiam a liberdade economic a dos burgueses.

Restava, pois, aquele que, a mingua de denominas:ao maisprecisa, era chamado "0 terceiro estamento" (Ie Tiers Etat), cujaidentidade social era, por assim dizer, negativa: compunham-no todos aqueles que, excluidos da nobreza e do clero, nao go-zavam dos privilegios ligados a estas duas ordens superiores. 0

25. E 0 termo empregado por Roscoe Pound, a respeito das declara<;:oes dedireitos da tradi<;:ao europeia continental (The Development of ConstitutionalGuarantees of Liberty, 1957, p. 8).

26. Foi 0 que sustentou 0 grande jurista alemao Georg Jellinek, no infcio doseculo (Die Erklarung der Menschen-und Biirgerrechte), suscitando viva contes-ta<;:aode Emile Boutmy, em artigo publicado em Les Annales des Sciences Politiques,t. 17 (1902), p. 415 e s.

27. Cf. capitulo 2Q•

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Tiers Etat era, na verdade, urn aglomerado social heterogeneo,formado de urn lado pela plasse burguesa: 0 conjunto dos co-merciantes de todos os ramos, os profissionais liberais e os pro-prietarios urbanos que viviam de renda ou de juros (rentiers ecapitalistes)28. Era formado, ademais, pelo enorme grupo socialrestante, geralmente designado como 0 povo (lepeuple), isto e, amassa dos nao-proprietarios, dos pequenos artesaos, emprega-dos domesticos, operarios e camponeses29

• Entre urn grupo e outro,como os sucessos imediatamente posteriores vieram demonstrarde modo dramatico, a separac;ao de corpo e espirito era comple-ta. Em suma, era claramente impossivel, naquele momenta his-t6rico, atribuir-se a soberania polftica ao povo.

Na verdade, essa questao de atribuic;ao da nova soberaniapos-se, de modo indireto, desde as primeiras sessoes da assem-bleia dos "estamentos gerais do reino" (Etats Generaux duRoyaume), convocada pelo rei Luis XVI. Seus trabalhos abri-ram-se solenemente em Versalhes em 5 de maio de 1789. Nodia lOde junho, os deputados do Tiers Etat, que ja haviam con-seguido, por decisao do Conselho do rei, duplicar 0 seu numerorelativamente aos representantes dos dois outros estamentos,passaram a exigir que as votac;oes se fizessem por cabec;a e naopar voto coletivo de cada ordem ou estamento. Em sinal de

protesto, os clerigos e nobres, com mfnimas excec;oes indivi-duais, abandonaram a assembleia, que ficou assim inteiramen-te nas maos do "Tiers Etat". Como denominar entao 0 conjuntodos deputados que permaneceram em func;oes, os quais ja naopodiam se intitular corretamente representantes dos "EtatsGeneraux du Royaume"?

Na sessao de 15 de junho, Mirabeau sugeriu a adoc;ao daf6rmula "assemb1eia dos representantes do povo frances", ex-plicando que a palavra povo era elastica e podia significar mui-to ou pouco, conforme as necessidades ou conveniencias. Foijustamente essa ambigtiidade que provocou a censura da pro-posta de Mirabeau, desde logo feita por dois juristas eminen-tes, Target e Thouret, bons conhecedores do direito romano.Em que sentido dever-se-ia tomar a palavra povo: como plebsou como populus?30. Era claro que, em se aceitando 0 primeirosignificado, haveria a instaurac;ao de uma autentica democracia,no sentido primigenio da palavra no mundo ateniense, em que 0

demos, isto e, a massa do povo - nela incluidos os nao-proprie-tarios, que compunham a esmagadora maioria - passaria a exer-cer uma cidadania ativa, votando as leis e julgando os govemantes.

A soluc;aodo problema veio de Sieyes, com base nas ideiaspolfticas publicadas pouco antes, na obra que 0 tomou celebreQu'est-ce que Ie Tiers Etat?: os deputados passariam a reunir-se em uma assembleia nacional.

A classe burguesa resolvia assim, elegantemente, a delica-dissima questao da transferencia da soberania polftica. Em lu-gar do monarca, que deixava 0 palco, entrava em cena uma en-tidade global, dotada de conotac;oes quase sagradas, que naopodiam ser contestadas abertamente pela nobreza e 0 clero, sob

28. No final do seculo XVIII, 0 termo capitaliste tinha urn sentido pejorativo,designando 0 usuriirio.

29. No verbete peuple, da Encyclopedie, cujo volume foi publicado em 1766,Louis de Jaucourt come(ia dizendo que se trata de urn "nome coletivo de dificHdefini(iao, porque dele sao formadas ideias diferentes nos diversos lugares e tem-pos, segundo a natureza dos governos". "Outrora", informou, "0 povo era 0

estamento geral da na(iao, simplesmente oposto ao dos grandes e nobres. Ele com-preendia os lavradores, os operiirios, os artesaos, os negociantes, os financistas, osliteratos e os profissionais do direito (les gens de lois)." De Jaucourt entendia,porem, que estes ultimos profissionais jii se haviam destacado da "massa do povo",que compreendia doravante tao-so os operiirios e lavradores (les ouvriers et leslaboureurs). Esse resto, afinal, nao era minoritiirio nem desprezivel no conjuntoda popula(iao, pois de Jaucourt entendia que "os homens que comp6em 0 que deno-minamos povo (...) formam a parte mais numerosa e mais necessiiria da na(iao".

30. 0 populus Romanus compreendia oficialmente dois estamentos: 0 domi-nante, formado pelos patricios, teoricamente descendentes dos fundadores de Roma,e 0 estamento inferior dos plebeus. Os poderes politicos do populus sempre forammuito mais reduzidos do que os que a Constitui(iao ateniense atribuia ao demos.

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pena de sofrerem a acusa<;ao de antipatriotismo; entidade essaque, de qualquer forma, pairava acima do povo, onde predomi-nava a for<;anumeric a dos nao-proprietarios.

A grande vantagem pr<itica da f6rmula encontrada pelosdeputados do ~i.ersEtat foi que 0 novo soberano, pela sua pr6-pna natureza, e mcapaz de exercer pessoalmente 0 poder politi-co. A na<;aopode existir politicamente como referencia simb6-lica, m~s s6 atua, contrariamente ao que ocorre com 0 povo,por mew de representantes. "0 principio de toda soberania",proclama 0 artigo 3 da Declara<;ao de 1789, "reside essencial-mente na Na<;ao.Nenhuma corpora<;ao, nenhum individuo podeexer~er autoridade alguma que dela nao emane expressamen-te". E bem verdade que no artigo 6 ainda se admite que "todosos cidadaos tern 0 direito de concorrer pessoalmente" a forma-<;aodas leis e, no artigo 14, que eles podem "verificar por simesmos ou por meio de representantes seus, a necessidade dacontribui<;ao publica, de consenti-la livremente, de fiscalizar 0

seu emprego,bem como de determinar 0 seu montante, a basede calculo, a cobran<;a e a dura<;ao". Mas a Constitui<;ao pro-mulgada em 1791, afastando todas as veleidades de urn fraciona-mento individual da soberania, dispos com uma clareza cortan-te: "A Na<;ao, de quem unicamente emanam todos os Poderesnao pode exerce-los senao por delega<;ao. - A Constitui<;a~francesa e representativa" (titulo III, art. 22).

Obtinha com isto a classe burguesa, logo no inicio do mo-vimento revolucionario, 0 exercicio efetivo e exclusivo do po-der politico, em nome de todos os cidadaos. Na Constitui<;aode 1791, de resto, chegou-se a dividir a cidadania em duas es-pecies: ativa e passiva. Esta ultima, como a massa do povo naotardou em perceber, era todo 0 legado que a Revolu<;ao the atri-buia politicamente, no inventario do Ancien Regime: 0 novosoberano reina simbolicamente, mas nao govema.

Os revolucionarios radicais, chamados jacobinos, logo ap6sa execu<;aode Luis XVI ainda procuraram evitar esse resultado

frustrante, ao votar a Constitui<;ao de 1793, dita do Ano I. Ado-tando as ideias de urn projeto apresentado por Robespierre, aDeclara<;ao dos Direitos do Homem e do Cidadao dessa pri-meira Constitui<;ao republicana francesa proclamou claramen-te a soberania popular, proibindo que alguma "pors;ao do povo"pudesse exercer 0 poder supremo que pertence ao povo em suaintegralidade (vejam-se os arts. 25 e 26 abaixo).

A institui<;ao da representa<;ao politica modema, muitodiversa do sistema representativo que se praticava na IdadeMedia, foi obra da Constitui<;ao americana e da Revolu<;aoFran-cesa. Na representa<;ao antiga, representados eram os estamentosou grupos sociais, concretamente identificados. Na representa-<;aomodema, diferentemente, representada e sempre uma cole-tividade global, seja ela a na<;aoou 0 povo, conslderada comourn todo homogeneo, sem divis6es intemas. Os representantessao eleitos pelos votos dos individuos componentes dessa cole-tividade, sempre iguais entre si; nao pOI uma assembleia dogrupo ou estamento representado, onde os votos podem se~?epeso diverso. No desdobramento da Revolu<;ao Francesa, all_as,todos os grupos sociais institucionalizados - das corpora<;oesde oficios as assembIeias provinciais - foram extintos de urnso golpe com a Lei Le Chapelier, de modo a nao deixar nenhu-ma instancia intermediaria entre os individuos e os govemantes.Ora, essa atomiza<;ao politica na base da sociedade deixou 0

campo livre para 0 refors;o incontrolado de poderes na cupula,em manifesta contradi<;ao com a tendencia hist6rica de limita-<;aode poderes govemamentais, iniciada no Ocidente desde aBaixa Idade Media3l

.

31. Tocqueville (op. cit., vol. 1, p. 85) 1embra, a esse respeito, a ~guda observa-«ao de Mirabeau, numa das cartas que escreveu secretamente a LUlS XVI: menosde urn ana ap6s 0 inicio da Revolu«ao: "A ideia de fo;mar uma cl~sse umca d,ecidadaos teria sido do agrado de Richelieu: essa superflCle 19ual faclhta 0 exerCI-cio do poder. Varios reinados de urn governo absoluto nao te~~am feito tanto quan-to este unico ano de Revolu«ao, em favor da autondade real .

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A consolida~ao da civiliza~ao burguesa

. Durante todo 0 desenrolar do processo revolucionario foiImpossivel aos coetaneos perceber qual 0 verdadeiro sen~idoda ~evoluvao para 0 futuro, quais os seus efeitos duradouros eqUaiSos meramente transitorios; tanto mais que estes ultimospelo seu carater extraordinario, impressionavam mais funda~mente os espiritos. Afinal, e essa a regra geral em materia deobs~rvavao historica. Somos todos, de certa forma, acometidosde hIp~~e~ropia: quanta mais proximos nos encontramos dosfatos histoncos, menos conseguimos enxerga-Ios com nitidez.

Foi preciso que transcorresse pouco mais de meio seculoda, ~evoluvao Francesa, para que se fizesse a primeira analisecn;~ca prospectiva em profundidade. Num escrito de juventu-~e ~' .Karl .Marx enxergou-a como a instauravao do regime domdI:Idua:Is~o egoista, em lugar do egoismo corporativo doA~clen Re?lme. A separavao entre "direitos do homem" e "di-reitos do cidadao", entre a sociedade civil e a sociedade politi-ca, demonstrava, segundo ele, que se realizara uma autenticarevoluvao copemicana em relavao ao feudalismo. Neste sali-ento~ Marx, a sociedade civil ostentava diretamente urn c~aterpOlitICO,pois as instituivoes elementares da vida civil- comoa posse: a falll11ia,ou 0 trabalho produtivo - eram estruturadas,respectivamente, sob as formas juridicas da dominavao feudal,d~ est~ment~ e da corporavao. A Revoluvao, ao suprimir a do-lll1navao socIal fundada na propriedade da terra, ao destruir osestam~n~os e abolir as corporavoes, acabou por reduzir a socie-~ade CIVIla uma colevao de individuos abstratos, perfeitamenteIsolados em seu egoismo. Em lugar do solidarismo desigual e

forvado dos estamentos e das corporavoes de oficios, criou-se aliberdade individual fundada na vontade, da mesma forma quea filosofia modema substituira a tirania da tradivao pela liber-dade da razao. 0 regime da autonornia individual, proprio dacivilizavao burguesa, tern seus lirnites fixados pela lei, assimcomo a divisa entre dois terrenos e fixada pOI cercas ou muros.Os "direitos do cidadao" passaram, entao, a servir de meios deprotevao aos "direitos do homem", e a vida politica tomou-semero instrumento de conservavao da sociedade civil, sob a do-minavao da c1asse proprietaria.

Ja em 1819, alias, Benjamin Constant, na famosa confe-rencia pronunciada no Ateneu Real de Paris33

, mostrara comoos gregos e romanos tinham da liberdade uma concepvaodiametralmente oposta a que inspirara a Revoluvao Francesa.Para eles, a verdadeira liberdade so existia na esfera politic a,pela participavao do cidadao nas tarefas do govemo, notada-mente a legislavao e a soluvao judicial de casos litigiosos. 0ideal burgues, que ele denominou "liberdade modem a" , e, aocontrario, 0 de uma liberdade inteiramente privada, com 0 re-pudio a toda interferencia estatal na vida de familia ou na vidaprofissional. Como mostrou profeticamente Tocqueville algunsanos mais tarde34, esse privatismo exacerbado podia dar ense-jo nao a urn encolhimento do poder estatal, mas, bem ao con-trario, a instauravao de urn novo autoritarismo politico, com-binado com 0 liberalismo privatista na sociedade civil. 0 se-culo XX, de fato, conheceu inumeros exemplos, sobretudo naAmerica Latina e na Asia, de Estados autoritarios que adota-ram 0 liberalismo economico.

Sem duvida, esses efeitos nao foram rninimamente previs-tos pelos proceres revolucionarios. Mas nao e menos verdade

32. Trata-s~ do manuscrito composto em Paris, em 1844, publicado postuma-mente sob 0 titulo Zur Judenfrage. Era a critica da obra de Bruno Bauer D'Judenfrage (Braunsch~eig, .1843), na qual 0 autor sustentou que os judeus dev~~na~ abandon~ sua relv.mdlcac;ao tradicional de urn estatuto juridico pr6prio eaceltar os pnnclplOs de hberdade e igualdade da Revoluc;ao Francesa.

33. De la liberte des anciens comparee a celle des modernes.34. De la democratie en Amerique, t. 2Q

, quarta parte, capitulo VI ("Que especiede despotismo deve ser temido pelas nac;oes democraticas").

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q~e a ~iviliza<;ao burguesa e 0 sistema econ6mico capitalistanao t~n~m prospe~ado tao vivamente, a partir do seculo XIX,se 0 dIreIto revoluclOnario nao tivesse criado as institui<;5es quelhe serviram de fundamento.

peras da instala<;ao da assembleia de Versalhes. A antiga leifundamental do reino dispunha que as reuni5es dos represen-tantes das tres OIdens fossem precedidas de uma consulta a po-pula<;ao, sobre as medidas que deveriam ser tomadas pelo reipara fazer cessar os abusos e injusti<;as ressentidas pelos seussuditos. As opini5es da popula<;ao, em resposta a essa consulta,eram registradas nos chamados cahiers de doIeances, que de-viam ser levados ao conhecimento do rei.

Ora, a ultima reuniao dos Etats Generaux du Royaume ha-via ocorrido em 1614, numa epoca em que os camponeses, con-finados nos dominios rurais, nao ousavam manifestar-se livre-mente. Em 1789, porem, os 20 milh5es de camponeses do rei-no, que formavam cerca de quatro quintos da popula<;ao, ja po-diam expressar-se com mais liberdade. Alem disso, a burguesia_ pequena e grande - crescera significativamente nesse in-tervalo de urn seculo e meio.

Numa das maiores consultas populares de todos os tem-pos, toda a popula<;ao francesa foi assim convocada a reunir-se,em cada paroquia, para manifestar livremente as suas queixas(doleances), nao a respeito de assuntos propostos pelo gover-no, mas no tocante ao funcionamento de todas as institui<;5esdo reino, sem reservas. Cerca de 40 mil registros de queixas eacusa<;5esforam entao compilados, revelando no Tiers Etat umanotavel convergencia de critic as sobre a injusti<;a dos privile-gios feudais das duas primeiras ordens: 0 clero e a nobreza.

Se a essencia de todo direito e a consciencia do que a cadaurn e devido (suum cuique tribuere, dar a cada urn 0 que e seu,segundo a formula cunhada pelos romanos), 0 processo de com-posi<;ao dos cahiers de doleances despertou em todo 0 povofrances uma clara consciencia de que os Poderes Publicos de-vem igualmente, a todos, 0 respeito pelos direitos inscritos nocora<;aodo homem, e que estao sempre acima das leis.

Foi isto, alias, 0 que os pens adores de expressao francesado seculo XVIII ("les philosophes") nao cessaram de discutir e

Fontes das declara~oesde direitos da Revolu~aoFrancesa

Grande foi a influencia exercida, no espirito dos homensque puseram fim ao Ancien Regime, pel as declara<;5es de direi-tos norte-americanas, notadamente a do Estado de Virginia. Atradu<;ao, feita pelo duque de La Rochefoucauld d'Enville dasConstitui<;5es dos treze Estados americanos conhecera ~liasvarias edi<;5es antes da instala<;ao da assembleia de Ver;alhes '

E de se lembrar que Thomas Jefferson, que exercia em l78~as fun<;5e,sde. embaixador dos Estados Unidos junto a Cortefran~es,a, mspIrou.a reda<;ao do primeiro projeto de declara<;aode dIreItos, deposltado por Lafayette junto a Mesa da Assem-bleia em 11 de julho. Antes disso, em 3 de junho, Jeffersonoferecera a urn deputado do Tiers Etat, 0 pastor protestanteRa?aud de St. E~ienne: 0 projeto de uma Carta de Direitos, queLUISXVI devena assmar em sessao solene, juntamente comtodos os. deputados aos Etats Generaux du Royaume. Tratava-se propnamente de uma miniconstitui<;ao, que estabelecia en-tre, o~tras disposi<;5es, de urn lado a transforma<;ao dos Etatsc-.eneraux e~ parlamento permanente, unico legitimado a le-g~slar e a c~ar tributos, e de outro lado a submissao ao princf-plO do devIdo processo legal de toda e qualquer restri<;ao a li-berdade individual.

No curso dos debates da Assembleia Nacional alias va-rios deputados referiram-se aos "exemplos da America", c~momodelos a serem seguidos.

A segunda font~ imediata das declara<;5es de direitos, ques~ s~cederam a partIr de 1789, foi 0 conjunto das queixas esuphcas da popula<;ao francesa, recolhidas pOI escrito as ves-

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procurar demonstrar, em seus livros, panfletos, discursos e, so-bretudo, na obra concebida como a suma do 'pensamento daepoca sobre todos os assuntos: a Enciclopedia35•

Dentre as obras de todos os philosophes do seculo, as deMontesquieu e Rousseau foram as que mais influiram sobre 0espirito dos revoluciomirios de 1789: aquele, pela ideia da ne-cessidade de uma limita~ao institucional de poderes dos gover-nantes, e este, pelo principio de que a vontade geral do povo e aunica fonte de legitimidade dos govemos.

Rousseau, em especial, e geralmente considerado 0 "paiespiritual" da Revolu~ao Francesa. Desde 0 mes de outubro de1790, 0 seu busto, juntamente com urn exemplar do ContratoSocial, foi colocado na sala da Assembleia Nacional. Em de-zembro daquele mesmo ana e em agosto de 1791, a Assem-bleia decidiu que se deveria prestar uma homenagem publicaao pensador genebrino, cujas cinzas foram afinal transferidaspara 0 Panteao Naciona1 em 1794. 0 pensamento de Rousseauinspirou fortemente 0 grupo dos jacobinos, Robespierre emparticular, na reda~ao da Constitui~ao do Ano I (1793).

A Declarac;ao dos Direitos do Hornern e do Cidadao de 1789Ela representa, por assim dizer, 0 atestado de 6bito do

Ancien Regime, constituido pela monarquia abso1uta e pe10sprivilegios feudais, e, neste sentido, volta-se claramente para 0passado. Mas 0 carater abstrato e geral das f6rmu1as emprega-das, algumas delas lapidares, tomou a Declara~ao de 1789, daiem diante, uma especie de carta geogratica fundamental para anavega~ao politic a nos mares do futuro, uma referencia indis-pensavel a todo projeto de constitucionaliza~ao dos povos.

35. A Encyclopedie, cujo subtitulo era Diciondrio Racionalizado ("Raisonnr)das Ciencias. Artes e OJ(cios. foi publicada sob a dire9ao de Diderot em 18 volu-mes, de 1751 a 1772.

A Declara~ao de 1789 foi, alias, em si mesma 0 primeiroelemento constituciona1 do novo regime politico. Pelo fato deter sido publicada sem a san~ao do rei, houve quem a interpre-tasse, de infcio, como simples declara~ao de principios, semfowa normativa. Mas em pouco tempo a assembleia aceitou asideias expostas por Sieyes em sua obra famosa e reconheceuque a competencia decis6ria por ela exercida emanava direta-mente da na~ao, como poder constituinte, e que 0 rei nao passa-va de poder constituido, cuja subsistencia como tal, de resto,dependia ainda de uma aprova~ao explicita da assembleia, notexto constitucional a ser votado.

Muito se discutiu a razao da dupla men~ao, ao homem e aocidadao, no titulo da Declara~ao. A explica~ao mais razoavelparece ser a de que os homens de 1789, como ficou dito acima,nao se dirigiam apenas ao povo frances, mas a todos os povos, econcebiam portanto 0 documento em sua dupla dimensao, na-cional e universal. As "disposi~5es fundamentais" da Constitui~aode 1791, alias, fazem a nitida distin~ao entre os "direitos do ho-mem", independentemente de sua nacionalidade, e os "direitosdo cidadao", pr6prios unicamente dos franceses.

Todavia, como bem assinalou Hannah Arendt36, com a con-solida~ao das na~5es-Estados, no curso do seculo XIX, os di-reitos do homem acabaram sendo absorvidos pelos direitos docidadao. Com 0 advento do Estado totalitario, os homens e asmulheres privados de nacionalidade acabaram perdendo todacapacidade juridica; ou seja, deixaram de ser pessoas.

Seja como for, liberdades individuais alcan~aram, nesseprimeiro texto revolucionano frances, uma definitiva precisaode contomos. No campo penal, sobretudo, fixou-se claramenteo principio fundamental de que nao ha crime sem lei anteriorque 0 defina, nem pena que nao seja fixada em lei (art. 8).

Duas preocupa~5es maximas da burguesia foram rigoro-samente atendidas: a garantia da propriedade privada contra

36. The Origins of Totalitarianism, nova edi9ao, Harcourt Brace & Company,p. 290 e s.

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expropriavoes abusivas (art. 17) e a estrita legalidade na cria-vao e cobranva de tributos (arts. 13 e 14).

A declaravao do carMer sagrado da propriedade, contidano art. 17, e urn evidente anacronismo. Sagrada era a proprie-dade greco-romana, intimamente ligada a religiao domestica, acasa de familia, sede do deus lar, e ao terreno adjacente ondeficavam as sepulturas dos membros da gens. A sacralidade des-ses bens, alias, era bem marcada pela sua fixidez e imobilida-de: longe do carater desprezivel das coisas mobiliarias (resmobilis, res vilis), a propriedade tradiciona1 e sempre imovel, aimagem das coisas divinas.

Ora, a revoluvao burguesa, como bem salientou Marx, de-sencadeou 0 mais rapido movimento de transformavao socialde todos os tempos. Tal como 0 dinheiro, bem central da eco-nomia capitalista, tudo pos-se a circular e a ser trocado. 0 po-der economico - e com ele a dominavao social e a soberaniapolitica - deslocou-se da propriedade fundiaria para os bensmoveis, e destes ultimos para os titulos-valores e contas banca-rias, dissolvendo-se em simbolos, escrituras e codigos eletroni-cos. 0 carMer sagrado da propriedade, se se quiser insistir naqualificavao, assumiu nos tempos modernos a abstravao sim-bolica de urn mito.

A declara~ao de direitos na Constitui~aode 1791

AIem da Declaravao dos Direitos do Homem e do Cida-dao, colocada como preambulo, a Constituivao aprovada em 3de setembro de 1791 contem tambem a sua propria declaravaode direitos, com importantes acrescimos em relavao aquela.Cuidou-se, sobretudo, de reforvar 0 carater anti-aristocratico eantifeudal do novo regime politico, bem como de nacionalizaros bens pertencentes a eclesiasticos ou a congregavoes religio-sas, declarados doravante "bens nacionais". Apos deterrninar

que tais bens ficariam, permanentemente, a disposivao da Na-vao, a Constituivao acrescentou, contraditoriamente, que se-riam garantidas "as alienavoes ja feitas ou que serao feitas, se-gundo as formas prescritas pela lei". E efetivamente, para fi-nanciar as operavoes de guerra nas quais se envolveu 0 governorevolucionario, os bens eclesiasticos e tambem os dos nobresque emigraram foram vendidos a comerciantes, capitalistas ouproprietarios rurais plebeus, reforvando sobremaneira 0 podereconomico e politico destas classes na sociedade francesa.

Reconheceu-se, ademais, pela primeira vez na Historia, aexistencia de direitos humanos de carater social. 0 antepe-nultimo paragrafo do Titulo Primeiro previu a criavao de urnestabelecimento geral de Assistencia Publica, para educar ascrianvas abandonadas, ajudar os enfermos pobres e fornecertrabalho aos pobres vaIidos que nao tenham podido encontra-10. No ultimo paragrafo do mesmo Titulo, determinou-se a or-ganizavao de uma "Instruvao publica comum a todos os cida-daos, gratuita no que concerne as partes do ensino indispensa-veis a todos os homens".

Importa tambem assinalar que, em notavel precedencia aoreconhecimento do controle judicial da constitucionalidade dasleis - que nao fora declarado na Constituivao dos EstadosUnidos, mas somente pas sou a existir a partir do caso Marburyv.Madison, julgado pela Corte Suprema em 1803 -, a primei-ra Constituivao francesa dispos que "0 Poder Legislativo naopodera fazer lei alguma que prejudique ou impeva 0 exerciciodos direitos naturais e civis, consignados no presente titulo egarantidos pela Constituivao".

A declara~ao de direitos na Constitui~aode 1793 (AnoI)

A precipitavao dos acontecimentos, que conduziram, me-nos de urn ana apos a promulgavao da Constituivao de 1791, aguerra extern a e a queda da monarquia, provocou fatalmente a

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cessa9ao de vigencia daquela ordem constitucional. A Assem-bleia Legislativa, que havia sucedido a Constituinte de 1789,decidiu pois convocar nova Assembeia Constituinte, que tomouo nome de Conven9ao, por influencia do exemplo norte-ameri-cano. Ja nas elei90es para a composi9ao dessa assembleia ficoupatente a predominancia do espirito democnitico: aboliu-se 0 su-fragio censitari037 e a distin9ao entre cidadaos ativos e passivos.

No dia de instala9ao dos trabalhos da Conven9ao (21 desetembro de 1792), os deputados decidiram, por unanimidade, .extinguir a monarquia e instituir 0 regime republicano. Na mes-ma sessao, proclamaram que "nao pode existir Constitui9ao quenao seja aceita pelo povo".

A nova Constitui9ao foi votada quando 0 conflito entre 0grupo de deputados eleitos pelo departamento da Gironda (porisso denominados girondinos) e os deputados pertencentes aoclube dos jacobinos (porque se reuniam no antigo convento dospadres jacobinos, na Rua Saint-Jacques, em Paris) atingia 0 seuparoxismo. Para os girondinos, os direitos individuais deviamsobrepor-se aos direitos sociais. Por isso, nao queriam alterar adeclara9ao de 1789, a nao ser em pontos secundarios. Os jaco-binos, ao contrario, pediam que fosse adotado 0 projeto de decla-ra9ao de direitos redigido por Robespierre, seu lider em ascen-sao, projeto esse que continha urn largo reconhecimento dos di-reitos sociais e, notadamente, declarava a propriedade privadaurn direito ordinario, portanto livremente modificavel pela lei.

Chegou-se, finalmente, a uma solU9ao de compromisso,mediante concessoes mutuas. 0 texto final, porem, mais ret6ricodo que os das declara90es anteriores, nao ficou isento de con-tradi90es e imprecisoes de linguagem. Em particular, a distin-

9ao entre os direitos do homem e os do cidadao perdeu a niti-dez que tinha na declara9ao de 1789.

A declara9ao de direitos da Constitui9ao de 1793, de modogeral, limitou-se a enfatizar 0 conteudo das declara90es ante-riores. Contrariamente a opiniao tradicionalmente estabelecida,ela nao representou avan90 algum em materia de direitos so-ciais, em compara9ao com a Constitui9ao de 1791. Dentre aspoucas inova90es do texto de 1793, salientam-se:

a) 0 reconhecimento de que a soberania politica pertenceao povo (arts. 25 e 26), com a aboli9ao das diferen9as de votoentre os cidadaos (art. 29), muito embora 0 art. 23 volte a falarem "soberania nacional";

b) a proclama9ao de que "a lei deve proteger a liberdadepublica e individual contra a opressao dos que govemam" (art.9), sendo que todo aquele, contra 0 qual se pretender executarpela violencia uma medida arbitraria, tern 0 direito de repeli-lapela for9a (art. 11);

c) a afirma9ao de que a insurrei9ao do povo contra os gover-nantes que violam os seus direitos e "0 mais sagrado dos direi-tos e 0 mais indispensavel dos deveres" (art. 35).

A declara~aode direitos na Constitui~aode 1795 (Ano III)

A Constitui9ao de 1793 nao chegou a ser aplicada. Logoap6s a sua promulga9ao, a Conven9ao Nacional instituiu urngovemo provis6rio, dito "govemo republicano", que deveriaatuar enquanto durasse a guerra com as potencias monarquicas.Dado que a Constitui9ao criara urn verdadeiro govemo de as-sembleia, 0 Poder Executivo era atribufdo a comissoes de de-putados. Dentre estas, duas logo se destacaram: a de "govemo"e a de "salva9ao publica". Nesta ultima, pontificava Robespierre,cujos poderes tendiam rapidamente a ditadura pura e simples,instaurando-se 0 periodo chamado do "terror".

37. A Constitui9ao de 1791 exigia, para 0 exercicio do direito de voto nas elei-90es destinadas a forrna9ao da Assembleia Legislativa, que 0 eleitor provasse ha-ver pago, em qualquer localidade do reino, urn tributo de valor equivaiente, nominimo, a tres jornadas de trabalho.

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o golpe de Estado de 9 de termidor do Ano II (27 de julhode 1794), com a prisao, ju1gamento sumario e imediata execu-<;aode Robespierre, mudou inteiramente a orienta<;ao politicada republica. A nova maioria, composta de deputados da linhagirondina, pensou, inicia1mente, em neutralizar as declara<;5esde direitos sociais da Constitui<;ao por meio de leis organicas,destinadas a interpretar e complementar as normas constitucio-nais. As coisas estavam nesse pe, quando irrompe, em 21 demar<;ode 1795 (l Q de germinal do Ano II!), a insurrei<;ao popu-lar de Paris,protagonizada pelos que eram chamados deprecia-tivamente sans-culottes, porque nao usavam cal<;asate os joe-lhos, como as pessoas dos estratos mais ricos da popula<;ao.Tomou-se entao bastante claro a burguesia que, para a consoli-da<;aoda posi<;aoja conquistada de classe dominante e detento-ra de fato da soberania politica, era preciso votar uma outraConstitui<;ao, que afastasse 0 povo do poder.

A nova Carta politica, promulgada em 22 de agosto de 1795,ja nao fala em soberania popular, preferindo uma formula neu-tra: a "universalidade dos cidadaos". Ao mesmo tempo, sao re-for<;ados os mecanismos de separa<;ao e controle dos Poderesestatais. Ou seja, 0 novo modelo teorico e dado por Montesquieue nao mais por Rousseau.

Enesse espfrito que e vazada a declara<;aode direitos, agoracompletada por uma declara<;ao de deveres dos cidadaos. A or-ganiza<;aodas materias e mais sistematica e a reda<;aomais con-cisa e precisa do que na declara<;aode 1793, mas muitos artigosexpressam defini<;5esdoutrinarias e nao normas juridicas.

Entre os direitos fundamentais ja nao se incluem nem 0 de"resistencia a opressao", nem as liberdades de opiniao, de ex-pressao e de culto, nem tampouco os direitos sociais consagra-dos nas declara<;5es anteriores: 0 direito ao trabalho, a assisten-cia publica e a instru<;ao. Considera-se inexistente a "garantiasocial", "se a divisao dos poderes nao e estabelecida, se seuslimites nao sao fixados e se a responsabilidade dos funciona-

rios publicos nao e assegurada". Na mesma linha da limita<;aode poderes, considera-se crime que 0 cumprimento de uma penaredunde em sua agrava<;ao (art. 13).

A ideia de uma declara<;ao de deveres, inaugurada pelaConstitui<;ao francesa de 1795, e conceitualmente criticavel. Emprimeiro lugar, quem diz direitos reconhece, por via de logic aconseqtiencia, a existencia de deveres correlatos. No caso dosdireitos humanos, os deveres correspondentes sao do Estado etambem dos particulares. Por outro lado, como os direitos hu-manos sao sempre pretens5es dirigidas contra quem detem umaposi<;ao de for<;a ou poder, nao faz sentido falar em direitoshumanos do Estado (ou da p<itria) contra os indivfduos, comose depreende, por inferencia, dos arts. 3 e 9 da declara<;ao dedeveres da Constitui<;ao de 1795.

Cumpre ademais ressaltar que, nessa declara<;ao de deve-res, as virtudes privadas sao consideradas indissociaveis dasvirtudes cfvicas (art. 4), e a garantia da propriedade privada eapresentada como 0 fundamento da cultura agricola, de "todasas produ<;5es, todos os meios de trabalho e de toda ordem so-cial" (art. 8). E a consagra<;ao constitucional explicita da ordemprivatista burguesa e do sistema capitalista de produ<;ao.

Os Textos38

A Declarac;;ao dos Direitos do Homem e do Cidadao de 1789

Os representantes do povo frances, constitufdos em AssemblE§ia na-cional, considerando que a ignorancia, 0 descuido ou 0 desprezo dos di-reitos humanos sao as unicas causas das desgra<;:as publicas e dacorrup<;:ao dos governos, resolveram expor, numa declara<;:ao solene, osdireitos naturais, inalienaveis e sagrados do homem, a fim de que essadeclara<;:ao, constantemente presente a todos os membros do corpo so-cial, possa lembrar-Ihes sem cessar seus direitos e seus deveres; a fim de

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que os atos do poder legislativo e os do poder executivo, podendo ser atodo instante comparados com a finalidade de toda instituic;:13.opolftica,sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reclamac;:oes dos cida-d13.os,fundadas doravante em principios simples e incontestaveis, re-dundem sempre na manutenc;:13.oda Constituic;:13.oe na felicidade de todos.- Em consequelncia, a Assembleia nacional reconhece e declara, na pre-senc;:a e sob os auspfcios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Ho-mem e do Cidad13.o.

Artigo Primeiro. Os homens nascem e permanecem livres e iguaisem direitos. As distinc;:oes sociais s6 podem fundar-se na utilidade comum.

Art. 2. A finalidade de toda associac;:13.opolftica e a conservac;:13.odosdireitos naturais e imprescritfveis do homem. Tais direitos sac a liberdade,a propriedade, a seguranc;:a e a resistencia a opress13.o.

Art. 3. 0 principio de toda soberania reside essencialmente na Na-c;:13.o.Nenhuma corporac;:13.o,nenhum indivfduo pode exercer autoridade quedela n13.oemane expressamente.

Art. 4. A liberdade consiste em poder fazer tudo 0 que n13.oprejudi-que a outrem: em consequencia, 0 exercicio dos direitos naturais de cadahomem s6 tem por limites os que assegurem aos demais membros dasociedade a fruic;:13.odesses mesmos direitos. Tais limites s6 podem serdeterminados pela lei.

Art. 5. A lei n13.opode proibir senao as ac;:oes prejudiciais a socieda-de. Tudo 0 que nao e defeso em lei nao pode ser impedido, e ninguempode ser constrangido a fazer 0 que ela nao ordena.

Art. 6. A lei e a express13.oda vontade gera!. Todos os cidad13.ostem 0direito de concorrer pessoalmente, ou por meio de representantes, a suaformac;:13.o.Ela deve ser a mesma para todos, quer proteja, quer puna. To-dos os cidadaos, sendo iguais aos seus olhos, sac igualmente admissfveisa todas as dignidades, cargos e empregos publicos, segundo sua capaci-dade e sem outra distinc;:ao a nao ser a de suas virtudes e seus talentos.

Art. 7. Ninguem pode ser acusado, detido ou preso, senao nos cas osdeterminados pela lei e de acordo com as formas por ela prescritas. Osque solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrariasdevem ser punidos; mas todo cidad13.oconvocado ou detido em virtude dalei deve obedecer incontinenti: ele se torna culpado em caso de resistencia.

Art. 8. A lei s6 pode estabelecer penas estrita e evidentemente neces-sarias, e ninguem pode ser punido senao em virtude de uma lei estabelecidae promulgada anteriormente ao delito, e legal mente aplicada.

Art. 9. Como todo homem deve ser presumido inocente ate que te-nha side declarado culpado, se se julgar indispensavel dete-Io, todo rigordesnecessario para que seja efetuada a sua detenc;:ao deve ser severa-mente reprimido pela lei.

Art. to. Ninguem deve ser inquietado por suas opinioes, mesmo reli-giosas,desde que sua manifestac;:ao nao perturbe a ordem pUblicaestabelecida pela lei.

Art. 11. A livre comunicac;:ao dos pensamentos e opinioes e um dosdireitos mais preciosos do homem; todo cidadao pode pois falar, escrever,imprimir livremente, respondendo, todavia, pelo abusodessa liberdadenos casos determinados pela lei.

Art. 12. A garantia dos direitos do homem e do cidadao carece deuma forc;:apublica; esta forc;:ae portanto institufda em proveito de todos, enao para a utilidade particular daqueles a quem e confiada.

Art. 13. Para a manutenc;:13.oda forc;:apublica e para as despesas daadministrac;:ao, e indispensavel uma contribuic;:ao comum; ela deve ser igual-mente repartida entre todos os cidad13.os,na medida de seus recursos.

Art. 14. Todos os cidad13.ostem 0 direito de verificar, pessoalmenteou por meio de representantes, a necessidade da contribuic;:ao publica,bem como de consenti-Ia livremente, de fiscalizar 0 seu emprego e dedeterminar-Ihe a alfquota, a base de calculo, a cobranc;:a e a durac;:ao.

Art. 15. A sociedade tem 0 direito de pedir, a todo agente publico,que preste contas de sua administrac;:13.o.

Art. 16. Toda sociedade, na qual a garantia dos direitos n13.oe asse-gurada nem a separac;:ao dos poderes determinada, nao tem constituic;:ao.

Art. 17. Sendo a propriedade um direito inviolavel esagrado, nin-guem pode ser dela privado, a nao ser quando a necessidade pUblica,legal mente verificada, 0 exigir de modo evidente, e sob a condic;:13.ode umajusta e previa indenizac;:ao.

A Declarac;ao de Direitos da Constituic;ao de 1791A Assembleia nacional, desejando estabelecer a Constituic;:ao fran-

cesa sobre principios que ela acaba de reconhecer e declarar, aboleirrevogavelmente as instituic;:oes que feriam a liberdade e a igualdade dosdireitos. - N13.oha mais nobreza, nem pariato, nem distinc;:oes heredita-rias, nem distinc;:oes de ordens, nem regime feudal, nem justic;:as patrimo-niais, nem Htulos, denominac;:oes e prerrogativas que daf derivavam, nemordem alguma de cavalaria, nem corporac;:oes ou condecorac;:oes de qual-quer especie, para ingresso nas quais exigiam-se provas de nobreza, ouque supunham distinc;:oes de nascimento, nem qualquer outra superioridadea nao ser ados funcionarios publicos no exercicio de suas func;:oes. -Nao ha mais nem venalidade nem hereditariedade de cargos publicos. -Nao ha mais, para parcela alguma da Nac;:aoe para indivfduo algum, privile-gio de qualquer especie nem excec;:ao ao direito comum de todos os fran-

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c~ses. - Nao ha mais jurandas39 nem corporac;:oes de profissoes, artes eoflclo~ .. - A lei na.o mais reconhece votos religiosos, ou compromissoscontranos aos dlreltos naturais ou a Constituic;:ao.

Sera criado e organizado um estabelecimento geral de AssistenciaPublica, para educar as crianc;:as abandonadas, ajudar os enfermos po-bres e fornecer trabalho aos pobres validos que nao tenham podidoencontra-Io.

Sera criada e organizada uma Instruc;:ao publica comum a todos oscidadaos, gratuita no que concerne as partes do ensino indispensaveis atodos os homens; seus estabelecimentos serao distribufdos gradualmen-te, numa proporc;:ao adequada a divisao do reino. [...]

TiTULO PRIMEIRO

Disposit;6es fundamentais garantidas pela Constituic;8.0

A Constitui9ao garante, como direitos naturais e civis: 1Q Que tOdoso~ ~ida~aos s~jam admissfveis aos cargos e empregos, sem qualquer outradlstmc;:ao, a nao ser a de suas virtudes e talentos; 2Q Que todos os tributossejam repartidos entre todos os cidadaos de modo igual, na proporc;:ao deseus recursos; 3Q Que os mesmos crimes sejam punidos com as mesmaspenas, sem distinc;:ao alguma de pessoas.

A Constituic;:ao garante, da mesma forma, como direitos naturais eci~i~ - A I~berdade a todo homem de ir e vir, sem que haja detenc;:ao ou~nsao, senao de acordo com as formas prescritas pela Constituic;:ao; - AIIberdade a todo homem de falar, escrever, imprimir e pUblicar seus pensa-m_entos, sem que os escritos possam ser submetidos a censura ou inspe-c;:aoantes de sua publicac;:ao, bem como a liberdade de exercer 0 culto reli-gioso ao qual esteja ligado; - A liberdade aos cidadaos de se reunirempacificamente e sem armas, no respeito as leis de polfcia' - A liberdade dedirigir, as autoridades constitufdas, petic;:oes subscritas i~dividualmente.

. 0 Poder Legislativo nao podera fazer lei alguma que prejudique ouI~pec;:a 0 exe~cfcio dos direitos naturais e civis, consignados no presentetitulo e garantIdos pela Constituic;:ao; mas como a Iiberdade nada mais e doque 0 poder de fazer tudo 0 que nao prejudica os direitos alheios ou a segu-ranc;:apUblica, a lei pode estabelecer penas contra os atos que, ao ataca-rem a seguranc;:a pUblica e os direitos alheios, sejam nocivos a sociedade.

. ~ ~onsti~uic;:ao garante a inviolabilidade das propriedades, ou a justae pre,vl~ mdenlzac;:ao daquelas cujo sacriffcio seja exigido pela necessida-de publica, legalmente verificada. - Os bens destinados as despesas doculto e a todos os servic;:os de utilidade publica pertencem a Nac;:ao e fi-cam, permanentemente, a sua disposic;:ao.

A Constituic;:ao garante as alienac;:oes que foram feitas, ou seraoefetuadas, segundo as formas prescritas em lei.

Os cidadaos tem 0 direito de eleger ou escolher os ministros de seuscultos.

A Declara~aodos Direitos do Homem e do Cidadao daConstitui~aode 1793

o povo frances, convencido de que 0 descuido e 0 desprezo dosdireitos naturais do homem sac as unicas causas das desgrac;:as do mun-do, decidiu expor, numa declarac;:ao solene, esses direitos sagrados einalienaveis, a fim de que todos os cidadaos, podendo comparar sem ces-sar os atos do governo com a finalidade de toda instituic;:ao social, nao sedeixem jamais oprimir ou aviltar pela tirania; a fim de que 0 povo tenhasempre diante dos olhos as bases de sua liberdade e de sua felicidade; 0magistrado, a regra de seus deveres; 0 legislador, 0 objeto de sua missao.- Em consequencia, proclama, em presenc;:a do Ser Supremo, a declara-c;:aoseguinte dos direitos do homem e do cidadao.

Artigo Primeiro. A finalidade da sociedade e a felicidade comum. -o governo e institufdo para garantir ao homem a fruic;:ao de seus direitosnaturais e imprescritfveis.

Art. 2. Esses direitos sac a igualdade, a Iiberdade, a seguranc;:a, apropriedade.

Art. 3. Todos os homens sac iguais pela natureza e perante a lei .

Art. 4. A lei e a expressao livre e solene da vontade geral; ela e amesma para todos, quer proteja, quer puna; ela s6 pode ordenar 0 que ejusto e util a sociedade; ela s6 pode proibir 0 que Ihe e nocivo.

Art. 5. Todos os cidadaos sac igualmente admissfveis aos empregospUblicos. Os povos livres nao conhecem outros motivos de preferencia,salvo aqueles ligados as virtudes e aos talentos.

Art. 6. A liberdade e 0 poder pertencente ao homem de fazer tudo 0

que nao prejudica os direitos alheios: ela tem por princfpio a natureza; porregra, a justic;:a; por salvaguarda, a lei; seu limite moral e expresso na se-guinte maxima: Nao fa9as a outrem 0 que nao queres que te seja feito.

Art. 7. 0 direito de manifestar seu pensamento e suas opinioes, pelaimprensa ou por qualquer outra via, 0 direito de se reunir pacificamente eo livre exercfcio dos cultos nao podem ser proibidos. - A necessidade de

39. Chamava-se juranda 0 corpo de jurados ou sindicos das corpora<;:6es fran-cesas.

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legal mente verificada, 0 exige, e sob a condic;:ao de uma justa e previaindenizac;:ao.

Art. 20. Nenhum tributo pode ser estabelecido, a nao ser por raz6esde utilidade geral. Todos os cidadaos tem 0 direito de concorrer ao estabe-lecimento de tributos, de fiscalizar 0 seu emprego e de exigir uma presta-c;:aode contas.

Art. 21. A assistencia publica e uma divida sagrada. A sociedadedeve sustentar os cidadaos infelizes, dando-Ihes trabalho, ou assegu-rando os meios de subsistencia aos que nao estejam em condic;:6es detrabalhar.

Art. 22. A instruc;:ao e uma necessidade de todos. A sociedade devefavorecer, com todos os seus poderes, os progressos da instruc;:ao publi-ca, bem como par a instruc;:ao ao alcance de todos os cidadaos.

Art. 23. A garantia social consiste na ac;:aode todos, para assegurara cada qual a fruic;:ao e a conservac;:ao de seus direitos; essa garantiarepousa na soberania nacional.

Art. 24. Ela nao pode existir, se os limites das func;:6es pUblicas naosac claramente determinados pela lei e se a responsabilidade de todos osfuncionarios nao e assegurada.

Art. 25. A soberania reside no povo; ela e una, indivisivel, impres-critivel e inalienavel.

Art. 26. Nenhuma parcela do povo pode exercer 0 poder do povointeiro; mas cada segmento do soberano, reunido em assembleia, devegozar do direito de exprimir sua vontade com inteira liberdade.

Art. 27. Que todo individuo que usurpe a soberania seja incontinentilevado a morte pelos homens livres.

Art. 28. Um povo tem sempre 0 direito de rever, de reformar e demudar sua Constituic;:ao. Uma gerac;:ao nao pode sujeitar as suas leis asgerac;:6es futuras.

Art. 29. Todos os cidadaos tem igual direito de concorrer a formac;:aoda lei e a nomeac;:ao de seus mandatarios ou agentes.

Art. 30. As func;:6es publicas sac essencialmente temporarias; elasnao podem ser consideradas como distinc;:6es nem como recompensas,mas como deveres.

Art. 31. Os delitos dos mandatarios do povo e de seus agentes naodevem jamais ficar impunes. Ninguem tem 0 direito de se considerar maisinviolavel que os outros cidadaos.

Art. 32. 0 direito de apresentar petic;:6es aos depositarios da auto-ridade pUblica nao pode, em caso algum, ser proibido, suspenso ou limi-

tado.

enunciar tais direitos pressup6e a presenc;:a ou a lembranc;:a recente dodespotismo.

Art. 8. A seguranc;:a consiste na protec;:ao, concedida pela sociedadea cad a um de seus membros, para a conservac;:ao de sua pessoa, de seusdireitos e de suas propriedades.

Art. 9. A lei deve proteger a Iiberdade publica e individual contra aopressao dos que governam.

Art. 10. Ninguem deve ser acusado, detido ou preso, senao nos ca-sos determinados pela lei e de acordo com as formas por ela prescritas.Todo cidadao, convocado ou detido pela autoridade da lei, deve obedecerincontinenti; ele se torna culpado em caso de resistencia.

Art. 11. Todo ate exercido contra um homem, fora dos casos e semas formas que a lei determina, e arbitrario e tiranico; aquele contra 0 qualse quiser executa-Io pela violencia tem 0 direito de repeli-Io pela forc;:a.

Art. 12. Os que solicitarem, expedirem, assinarem, executarem oufizerem executar atos arbitrarios sac culpados e devem ser punidos.

Art. 13. Como todo homem presume-se inocente ate que seja decla-rado culpado, se se julgar indispensavel dete-Io, todo rigor desnecessariopara a detenc;:ao deve ser severamente reprimido pela lei.

Art. 14. Ninguem deve ser julgado e punido, senao ap6s ter sideouvido e legal mente citado, e somente em razao de uma lei promulgadaanteriormente ao delito. A lei que pune os delitos cometidos antes de suapromulgac;:ao e uma tirania; 0 efeito retroativo, atribuido a lei, e um crime.

Art. 15. A lei s6 pode estabelecer penas estrita e evidentemente neces-sarias: as penas devem ser proporcionais ao delito e uteis a sociedade.

Art. 16. 0 direito de propriedade e 0 que pertence a todo cidadao,para a fruic;:ao e disposic;:ao, como ele bem entender, de seus bens, desuas rendas, do fruto de seu trabalho e de sua industria.

Art. 17. Nenhum genero de trabalho, de cultura, de comercio podeser proibido a industria dos cidadaos.

Art. 18. Todo homem pode empenhar seus servic;:os e tempo; masnao pode vender a si pr6prio nem ser vendido; sua pessoa nao e umapropriedade alienavel. A lei nao reconhece a domesticidade40; somentepode existir uma obrigac;:ao de cuidados e de reconhecimento, entre 0homem que trabalha e 0 que 0 emprega.

Art. 19. Ninguem pode ser privado da minima porc;:aode sua proprie-dade sem 0 seu consentimento, a nao ser quando a necessidade publica,

40. Isto e, a situa~ao do trabalhador domestico nao assalariado e que mantempara com seu patrao uma rela~ao semelhante It do servo feudal para com 0 senhor.

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Art. 33. A resistelncia a opressao e a consequencia dos demais Direi-tos do homem.

Art. 34. Ha opressao contra 0 corpo social, quando um s6 de seusmembros e oprimido. Ha opressao contra cada membro, quando 0 corposocial e oprimido.

Art. 35. Quando 0 governo viola os direitos do povo, a insurrei9ao e,para 0 povo inteiro e cada uma de suas parcelas, 0 mais sagrado dosdireitos e 0 mais indispensavel dos deveres.

Art. 12. A lei deve atribuir, tao-s6, penas estritamente necessarias eproporcionais ao delito.

Art. 13. Todo tratamento que agrave a pena determinada pela lei eum crime.

Art. 14. Lei alguma, criminal ou civil, pode ter efeito retroativo.

Art. 15. Todo homem pode empenhar seu tempo e seus servi90s;mas nao pode vender a si pr6prio nem ser vendido; sua pessoa nao e umapropriedade alienavel.

Art. 16. Todo tributo e estabelecido em razao da utilidade geral; eledeve ser repartido entre os contribuintes, em fun9ao de seus recursos.

Art. 17. A soberania reside essencialmente na universalidade doscidadaos.

Art. 18. Nenhum indivfduo, nenhuma reuniao parcial de cidadaos podeatribuir-se a soberania.

Art. 19. Ninguem pode, sem uma delega9ao da lei, exercer autorida-de alguma nem cumprir nenhuma fun9ao publica.

Art. 20. Cada cidadao tem igual direito de concorrer, imediata oumediatamente, a forma9ao da lei, a nomea9ao dos representantes do povoe dos funcionarios publicos.

Art. 21. As fun90es publicas nao pod em ser propriedade dos que asexercem.

Art. 22. A garantia social nao pode existir se a divisao dos poderesnao e estabelecida, se os seus limites nao sac fixados e se a responsabi-lidade dos funcionarios publicos nao e assegurada.

A Declara~aodos Direitos e Deveres do Homem e doCidadao da Constitui~aode 1795

o povo frances proclama, em presen9a do Ser Supremo, a seguinteDeclara9ao dos direitos e deveres do homem e do cidadao.

Direitos

Artigo Primeiro. Os direitos do homem em sociedade sac a liberda-de, a igualdade, a seguran9a, a propriedade.

Art. 2. A Iiberdade consiste em poder fazer 0 que nao prejudica osdireitos alheios.

Art. 3. A igualdade consiste em que a lei e a mesma para todos, querproteja, quer puna. - A igualdade nao admite distin90es de nascimentonem hereditariedade de poderes.

Art. 4. A seguran9a resulta do concurso de todos, para assegurar osdireitos de cad a qual.

Art. 5. A propriedade e 0 direito de gozar e dispor de seus bens, desuas rendas, do fruto de seu trabalho e de sua industria.

Art. 6. A lei e a vontade geral, expressa pela maio ria, quer dos cida-daos, quer de seus representantes.

Art. 7. 0 que nao e defeso em lei nao pode ser impedido. - Ninguempode ser constrangido a fazer 0 que ela nao ordena.

Art. 8. Ninguem pode ser citado em jufzo, acusado, detido ou preso,senao nos casos determinados em lei e de acordo com as formas por elaprescritas.

Art. 9. Os que solicitam, expedem, assinam, executam ou fazem exe-cutar atos arbitrarios sac culpados e devem ser punidos.

Art. 10. Todo rigor desnecessario para a deten9ao da pessoa de umacusado deve ser severamente reprimido pela lei.

Art. 11. Ninguem pode ser julgado, senao ap6s ser ouvido ou legal-mente citado.

Deveres

Artigo Primeiro. A Declara9ao dos direitos contem as obriga90es doslegisladores: a manuten9ao da sociedade exige que os seus componen-tes conhe9am e cumpram, por igual, os seus deveres.

Art. 2. Todos os deveres do homem e do cidadao derivam dos doisprincfpios seguintes, gravados pela natureza em seus cora90es: - Naofa9ais a outrem 0 que nao quiserdes que se fa9a a v6s. - Fazei constan-temente aos outros 0 bem que desejais receber.

Art. 3. As obriga90es de cada qual perante a sociedade consistemem defende-Ia, servi-Ia, viver em submissao as leis e respeitar os seus6rgaos.

Art. 4. Ninguem e bom cidadao, se nao e bom filho, bom pai, bomirmao, bom amigo, bom esposo.

Art. 5. Ninguem e homem de bem, se nao observa sincera e religio-samente as leis.

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Art. 6. Aquele que viola abertamente as leis declara-se em estado deguerra contra a sociedade.

Art. 7. Aquele que, sem infringir abertamente as leis, as elude comastucia ou destreza, fere os interesses de todos: ele se torna indigno dabenevoh3ncia e da estima geral.

Art. 8. E sobre a manuten<;:EIOdas propriedades que repousam a cul-tura das terras agrfcolas, todas as produ<;:oes, todos os meios de trabalhoe toda a ordem social.

Art. 9. Todo cidadao deve seus servi<;:os a patria e a manuten<;:ao daliberdade, da igualdade e da propriedade, sempre que a lei 0 convocarpara defend€Has.

CAPITULO 62

A CONSTITUI<;AO FRANCESA DE1848

No inicio de 1848 - 0 ana do Manifesto Comunista -urn furioso vendaval politico varreu a Europa Ocidental, amea-~ando deitar por terra, em pouco tempo, 0 edificio conservadore imperial, que 0 Congresso de Viena erigira em 1815. As pala-vras de ordem eram: nacionalismo, trabalho e liberdade. Ini-ciando-se com a revolu~ao popular de Paris de 24 de fevereiro,em questao de poucas semanas 0 rnovimento estendeu-se, comourn rastilho de polvora, ao sudoeste da Alemanha, Baviera,Prussia, Austria, Hungria, Lombardia, os Estados Pontificios ea Wilia meridional. Segundo a expressao que fez fortuna, foi "aprimavera dos povos". Ela retrocedeu, porem, em pouco tem-po, a urn rigoroso inverno politico. Com a mesma velocidadedo seu desencadear, 0 movimento insurrecional foi sufocado eseus lideres mortos, presos ou deportados.

Na Fran~a, 0 descontentamento do operariado urbano comos excessos capitalistas do reinado de Luis Felipe de Orleans,instalado no trono desde 1830, foi singularmente refor~ado pelo

. agravamento da fome no campo, em conseqtiencia da desastro-sa colheita de 1846-47.

A revolta popular de Paris, irrompida em 23 de fevereirode 1848, visou claramente nao so a derrubada do rei, mas tam-bern a reinstaura~ao da republica, nos moldes do espirito revo-lucionario de 1792-93. Instalado urn governo provisorio, do qualparticipava 0 operario Albert - fato altamente simbolico, quenao se viu em nenhum momenta da grande revolu~ao do final