Cronica metalinguistica

3
CRÔNICA METALINGUÍSTICA Como te encontro? Bendita inspiração! Bendita! Na salvadora busca por esta “entidade” o cronista põe -se a vasculhar os registros de sua memória a fim de encontrar o mote, a fagulha, o fio da meada desencadeante de algumas linhas que colocarão luz sobre um fato, um algo qualquer, redescobrindo uma história sob ótica diferente e, esta, calcada na beleza do que existe além do olhar comum, possa vir a pousar e se estabelecer. Difícil encontrá-la! Ela é arredia e chega quando quer, às vezes, quase sempre é bem verdade, quando o cronista já abandonou a sua procura. E senta, levanta, coça a cabeça, digita, deleta, escreve, apaga, rabisca. Toma um café, um chá, olha pro céu, pro teto, pro lado. Fixa o olhar em algo, deixa-o se perder. Ouve uma música, vai pra TV e ela não vem. Assim é a vida do cara que se põe a escrever crônicas, sempre a procura da influência criacionista. E as pessoas quando leem uma crônica acham que ela foi gerada de forma fácil, natural, espontânea... ah! Quem dera! Fazer crônica é se permitir por um dos pés, ou, os dois, na seara da fantasia, do extraordinário, que repousa nas entrelinhas de uma vida, de uma situação, de qualquer outra coisa que seja. É ter o olhar apurado, o ouvido notavelmente captador e uma alma solta e liberta. Crônica tem a ver com descritiva analítica realística circunstanciada caraca! Que doideira essa definição, hein? - de uma dada existência, seja ela, existência humana, animal, de um objeto, de um sentimento, enfim. O barato maior da crônica é o fato de não estar presa a nada, nem a ninguém e de se revestir de elementos carregados de nuances ocultas. Mas estávamos falando de inspiração. Ela que por vezes teima em não surgir, em não se manifestar conforme as nossas vontades, é generosa no fim de tudo. Apesar da sua recusa em se tornar refém do cronista ela nunca o abandona. Tem o seu tempo, simplesmente é isso. O cronista é que, como ávido fazedor, recolhedor, de histórias do cotidiano que o é, abusa da boa vontade da bendita inspiração. Mas saiba que ela sempre aparece. Tem vezes que se pensa que ela definitivamente irrompeu a relação com o sujeito criador da crônica e foi para outros lados paquerar sujeitos menos

description

 

Transcript of Cronica metalinguistica

Page 1: Cronica metalinguistica

CRÔNICA METALINGUÍSTICA

Como te encontro?

Bendita inspiração! Bendita!

Na salvadora busca por esta “entidade” o cronista põe-se a vasculhar os registros

de sua memória a fim de encontrar o mote, a fagulha, o fio da meada desencadeante de

algumas linhas que colocarão luz sobre um fato, um algo qualquer, redescobrindo uma

história sob ótica diferente e, esta, calcada na beleza do que existe além do olhar

comum, possa vir a pousar e se estabelecer. Difícil encontrá-la! Ela é arredia e chega

quando quer, às vezes, quase sempre é bem verdade, quando o cronista já abandonou a

sua procura.

E senta, levanta, coça a cabeça, digita, deleta, escreve, apaga, rabisca. Toma um

café, um chá, olha pro céu, pro teto, pro lado. Fixa o olhar em algo, deixa-o se perder.

Ouve uma música, vai pra TV e ela não vem. Assim é a vida do cara que se põe a

escrever crônicas, sempre a procura da influência criacionista. E as pessoas quando

leem uma crônica acham que ela foi gerada de forma fácil, natural, espontânea... ah!

Quem dera!

Fazer crônica é se permitir por um dos pés, ou, os dois, na seara da fantasia, do

extraordinário, que repousa nas entrelinhas de uma vida, de uma situação, de qualquer

outra coisa que seja. É ter o olhar apurado, o ouvido notavelmente captador e uma alma

solta e liberta. Crônica tem a ver com descritiva analítica realística circunstanciada –

caraca! Que doideira essa definição, hein? - de uma dada existência, seja ela, existência

humana, animal, de um objeto, de um sentimento, enfim. O barato maior da crônica é o

fato de não estar presa a nada, nem a ninguém e de se revestir de elementos carregados

de nuances ocultas.

Mas estávamos falando de inspiração. Ela que por vezes teima em não surgir, em

não se manifestar conforme as nossas vontades, é generosa no fim de tudo. Apesar da

sua recusa em se tornar refém do cronista ela nunca o abandona. Tem o seu tempo,

simplesmente é isso. O cronista é que, como ávido fazedor, recolhedor, de histórias do

cotidiano que o é, abusa da boa vontade da bendita inspiração. Mas saiba que ela

sempre aparece. Tem vezes que se pensa que ela definitivamente irrompeu a relação

com o sujeito criador da crônica e foi para outros lados paquerar sujeitos menos

Page 2: Cronica metalinguistica

complexos, e aí eis que para surpresa ela se manifesta na suposta falta dela. Deu pra

entender?

E aquela velha conversa fiada de que o artista – ou pretenso artista - constrói

com imensa facilidade um texto, uma letra de música, uma melodia, uma poesia? Sob o

pretexto de ser o artista um receptor de “dádiva”, alguns o veem como possuidor de uma

capacidade criativa que se apresenta como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Balela! Essa mentalidade de se acreditar e de propagar que o cronista, o escritor, o

poeta, o músico, cria tudo com dificuldade nula e que esses personagens assim o fazem

porque a inspiração é um “dom” que possuem e que se manifesta sem forçação de barra,

é papo furado. Parece que esses profissionais têm consigo um interruptor que aciona a

inspiração a qualquer momento e dentro da vontade deles. Não é assim não!

Afirmo que este interruptor até existe, mas é acionado por transpiração, trabalho

árduo, repetição intensa da referida prática artística. Especificamente para o cronista, ele

precisa de exercício permanente, de convívio íntimo com as palavras, de se pôr a

escrever, escrever e escrever, sem deixar de exercitar a arte da observação também. A

inspiração é amiga da labuta e amante – não no sentido de ser a outra, no sentido de

amar mesmo, de ser fiel – da obstinação de criação que se instaura no desenvolvimento

da ação permanente.

Quando penso em “inspiração gratuita” me vem à mente a figura de um ex-

jogador de basquete, famosíssimo, que falando sobre a sua história de vida destacou que

a inspiração dele surgiu ao custo de muito treinamento. Falo de Oscar Schmidt,

campeoníssimo por um monte de clubes e um dos maiores jogadores que vestiu a

camisa verde e amarela. O “mão santa”, como era chamado por ter a “inspiração” de

acertar com impressionante destreza e habilidade arremessos de três pontos, foi por sua

eficiência, aclamado em todo o mundo e até pelos americanos, os papas do basquetebol,

teve sua importância reconhecida. Oscar certa vez respondeu a um repórter que havia

lhe perguntado sobre o dom, e por assim dizer, sobre a inspiração para ser exímio

arremessador de bolas de três pontos, que essa inspiração vinha na verdade era dos

intermináveis momentos de treinamento isolado – após fazer o treinamento comum com

o grupo – onde suas únicas companhias eram a bola e, sua esposa, que ficava

devolvendo-a para ele prosseguir sua sequência quase que infinda de arremessos da

linha dos três pontos. Tinha a tenacidade de um Portinari. Sem o treinamento constante,

intenso, tendo a pretensão de a cada dia melhorar, ser mais efetivo, não conseguiria ter

se tornado o “mão santa”. Algo muito interessante que o Oscar fazia questão de apontar

Page 3: Cronica metalinguistica

é que poderia existir alguém que fosse melhor do que ele, mas nunca, que houvesse

treinado mais.

Por isso, o grande lance é querer fazer bem feito. E para isso, o que vale mesmo

é, em primeiro lugar, gostar, curtir, saber despertar o interesse àquilo que se põe a fazer.

Depois, é necessário estudar, observar, analisar e praticar muito. Manter uma atividade

firme e consistente e ter a vontade - e humildade - de sempre, sempre, querer aprender.

Claro que nem todos chegarão a um patamar de Oscar Schmidt, mas em qualquer área

de atuação conseguirão, pelo menos, ser tornar bons profissionais – o que já é muito.

Quero atestar que o cronista não é santo nem maldito. Não recebe dos céus

nenhum tratamento especial. Ele é apenas um ser que mantém um namoro – casamento,

é melhor – conturbado, porém, permanente e prazeroso com a inspiração. Ele sabe

absorvê-la e a verbaliza. Ele imprime a partir de um lápis, caneta, de um teclado, a sua

visão aguçada de mundo – fruto de exercício também - e tem a percepção da

importância do outro, por mais simples que seja esse outro. O cronista é maculado pela

benevolência dessa força que emana do universo e que sabe agraciar a todos que

desenvolvem exaustivamente o ofício desse gênero. Salve esta força que não é gratuita e

sim desdobramento recompensatório da árdua ação repetidora de aprimoramento. Ela

nos encontra. Salve, a bendita inspiração!

Daniel Freire [email protected]