Da Função Social Do Contrato No Combate a Lesão

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DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO NO COMBATE A LESÃO Como vemos, a abrangência dos princípios constitucionais positivados no Código Civil vigente alcança proporções que, além de limitarem a liberdade contratual, podem limitar o desenvolvimento econômico. Por essa razão, entendemos que, caberá aos contratantes, empresários e, principalmente, aos nossos tribunais, a missão de não fazer da função social do contrato apenas um discurso. Nelson Nery Junior, sobre a questão, nos ensina que: “Como a função social é cláusula geral, o juiz poderá preencher os claros do que significa essa ‘função social’, com valores jurídicos, sociais, econômicos e morais”. “A norma do art. 421 é norma de ordem pública – Código Civil, artigo 2.035, parágrafo único - e assim sendo o juiz pode aplicar as cláusulas gerais em qualquer ação judicial, independentemente de pedido da parte ou do interessado, pois deve agir ex officio”. Para os contratantes, que buscam satisfação própria, o contrato cumpre sua função quando cada parte realiza o interesse que lhe motivou a contratar, o que, por via reflexa, cumpre função social, pois os efeitos desse contrato implicam em desenvolvimento social. Dessa forma, cremos que, ao menos naquilo que diga respeito ao aspecto pedagógico do contrato, a função social foi cumprida, ou seja, quando o contrato é cumprido, naturalmente, dentro das regras impostas pelo ordenamento jurídico, toda sociedade é beneficiada. Nesse aspecto, acreditamos que os efeitos pedagógicos contribuam com o desenvolvimento social, porque isso demonstra que os indivíduos que respeitam a ordem jurídica e, portanto, o outro contratante, admitem que o contrato foi realizado para ser cumprido. A esse respeito, Mônica Bierwagen assevera:

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DIREITO CIVIL

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DA FUNO SOCIAL DO CONTRATO NO COMBATE A LESOComo vemos, a abrangncia dos princpios constitucionais positivados no Cdigo Civil vigente alcana propores que, alm de limitarem a liberdade contratual, podem limitar o desenvolvimento econmico. Por essa razo, entendemos que, caber aos contratantes, empresrios e, principalmente, aos nossos tribunais, a misso de no fazer da funo social do contrato apenas um discurso. Nelson Nery Junior, sobre a questo, nos ensina que: Como a funo social clusula geral, o juiz poder preencher os claros do que significa essa funo social, com valores jurdicos, sociais, econmicos e morais. A norma do art. 421 norma de ordem pblica Cdigo Civil, artigo 2.035, pargrafo nico - e assim sendo o juiz pode aplicar as clusulas gerais em qualquer ao judicial, independentemente de pedido da parte ou do interessado, pois deve agir ex officio. Para os contratantes, que buscam satisfao prpria, o contrato cumpre sua funo quando cada parte realiza o interesse que lhe motivou a contratar, o que, por via reflexa, cumpre funo social, pois os efeitos desse contrato implicam em desenvolvimento social. Dessa forma, cremos que, ao menos naquilo que diga respeito ao aspecto pedaggico do contrato, a funo social foi cumprida, ou seja, quando o contrato cumprido, naturalmente, dentro das regras impostas pelo ordenamento jurdico, toda sociedade beneficiada. Nesse aspecto, acreditamos que os efeitos pedaggicos contribuam com o desenvolvimento social, porque isso demonstra que os indivduos que respeitam a ordem jurdica e, portanto, o outro contratante, admitem que o contrato foi realizado para ser cumprido. A esse respeito, Mnica Bierwagen assevera: A funo social do contrato somente estar cumprida quando a sua finalidade distribuio de riquezas for atingida de forma justa, ou seja, quando o contrato representar uma fonte de equilbrio social. E, tamanha a riqueza que se extrai das clusulas gerais, que o sistema jurdico ptrio permite a reviso do negcio jurdico quando houver desequilbrio contratual, desproporo entre as prestaes, quebra da base objetiva do negcio, ofensa boa-f objetiva e, ainda, quando ocorrer quebra da funo social do contrato. Cabe destacar aqui o exemplo citado por Everaldo Augusto Cambler214, a ttulo de bem ilustrar a exigncia de estar, o contrato, em conformidade com a funo social. Trata-se de deciso proferida, ainda no perodo de vacatio legis, em acrdo do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo, j demonstrando, nitidamente, justificativa para a reviso de contrato que no atende funo social: Ora, se o contrato adquiriu funo social, devemos adapt-lo aos anseios constitucionais, notadamente o da dignidade da pessoa humana (art. 1, III, da CF) e que pressupe a eliminao da desigualdade monetria, que secundariza o proletariado diante do mega investidor. Nada mais adequado, portanto, que extirpar a clusula abusiva (reajustamento) para que se restabelea o equilbrio das prestaes.Seria degradante obrigar um trabalhador a desembolsar, durante dcadas, parte do salrio que mal d para atender as despesas bsicas do oramento familiar, para honrar mensalidades que dobram de valor a cada binio, pela aquisio de um terreno de 125,00m, sem rede de gua, esgoto e luz, que nunca vai compensar o pagamento. Como poder um cidado exercitar naturalmente as prerrogativas da cidadania com um custo desta ordem, sabendo que o sistema jurdico de sua sociedade valoriza os princpios da igualdade e solidariedade para combater a indignidade?! Parece-nos que o acrdo bem explicitou o forte impacto, ou melhor, a mitigao que sofreu o princpio da fora obrigatria do contrato, reconhecido no brocardo pacta sunt servanda, uma das marcas, talvez a mais forte, do individualismo presente no Cdigo Civil de 1916, diante dos princpios do Cdigo Civil vigente. O acrdo nos permite tambm visualizar a possibilidade de reviso do contrato que estabelea uma prestao que exceda, manifestamente, os limites impostos pelo seu fim econmico-social, pela boa-f, ou pelos bons costumes, exatamente como prev o artigo 187 do Cdigo Civil em vigor. Sobre o artigo 187 do Cdigo Civil em vigor, Nelson Nery Junior faz uma advertncia importantssima, ao afirmar que no h direito absoluto no ordenamento brasileiro, explicando que referida norma estabelece, como limite ao exerccio do direito legtimo (e no absoluto), a obrigatoriedade de estar esse exerccio em conformidade com os fins sociais e econmicos do direito exercitado, bem como dever, tambm, estar em consonncia com a boa-f e os bons costumes. De fato, o que se pode inferir da leitura do artigo 187, in verbis: Art. 187. Tambm comete ato ilcito o titular de um direito que, ao exerc-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econmico ou social, pela boa-f ou pelos bons costumes. Sobre a riqueza contida nesse artigo, Ruy Rosado de Aguiar Junior assevera : Essa talvez seja, do ponto de vista do Direito Obrigacional, a clusula mais rica do Projeto. Rene, em um nico dispositivo, os quatro princpios bsicos que presidem o sistema: o abuso de direito, o fim social, a boa-f e os bons costumes. Bastaria acrescentar a ordem pblica para t-los todos vista. Percebemos, claramente, que essa clusula geral permite reviso dos contratos, e, pelo fato de ser norma de ordem pblica, poder ocorrer que, mesmo a parte tendo feito um pedido que no seja, por exemplo, modificao de percentual de juros, o juiz poder, ex officio, adequar o contrato sua funo social, sem ser tachado de arbitrrio, como afirma Nelson Nery Junior. Carlos Roberto Gonalves adverte, ainda, sobre a responsabilidade que o Cdigo Civil vigente atribuiu aos juzes, ressaltando que, atravs das clusulas gerais, ser possvel, diante do caso concreto, exemplificativamente: (i) declarar a nulidade do contrato, por fraude lei imperativa; (ii) declarar sua inexistncia, por falta de objeto; (iii) convalidar os contratos, nos casos de anulabilidade; e, (iv) determinar o pagamento de indenizao ao prejudicado, por parte daquele que desatendeu a funo social do contrato. Sob essa perspectiva, entendemos que est demonstrado, de forma transparente, que o nosso legislador, ao positivar as clusulas gerais, estava imbudo do esprito de proporcionar meios para a realizao da justia nos contratos, da mesma forma que deixa cristalino o objetivo maior de conservao do contrato. A fim de exemplificar a atuao do juiz, transcrevemos acrdo em que a Ministra Nancy Andrighi fundamenta deciso na funo social do contrato: RECURSO ESPECIAL. ANTECIPAO DE TUTELA. IMPUGNAO EXCLUSIVAMENTE AOS DISPOSITIVOS DE DIREITO MATERIAL. POSSIBILIDADE.FRACIONAMENTO DE HIPOTECA.CDIGO CIVIL DE 2002, ART. 1.488. APLICABILIDADE AOS CONTRATOS EM CURSO. INTELIGNCIA DO ART. 2.035 DO CC/02. APLICAO DO PRINCPIO DA FUNO SOCIAL DO CONTRATO. -Se no h ofensa direta a legislao processual na deciso do Tribunal que revoga tutela antecipadamente concedida pelo Juzo de Primeiro Grau, possvel a interposio de Recurso Especial mencionando exclusivamente a violao dos dispositivos de direito material que deram fundamento deciso. -O art. 1.488 do CC/02, que regula a possibilidade de fracionamento de hipoteca, consubstancia uma das hipteses de materializao do princpio da funo social dos contratos, aplicando-se, portanto, imediatamente s relaes jurdicas em curso, nos termos do art. 2.035 do CC/02.(g.n).-No cabe aplicar a multa do art. 538, pargrafo nico, do CPC, nas hipteses em que h omisso no acrdo recorrido, ainda que tal omisso no implique a nulidade do aresto. Enunciado n. 22 aprovado na Jornada de Direito civil, promovida pelo Centro de Estudos Judicirios do Conselho da Justia Federal CFJ - realizado entre os dias 11 e13 de setembro de 2002, sob a coordenao do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Junior do Egrgio Superior Tribunal de Justia: A funo social do contrato prevista no art. 421 do novo Cdigo Civil constitui clusula geral, que refora o princpio de conservao do contrato, assegurando trocas teis e justas. STJ REsp. 691.738/ SC (2004/0133627-7) Rel. Min. Nancy Andrighi Rcte. Administrao, Construo e Incorporaes de Imveis Ltda. SantAna Adv. Everaldo Luis Restanho e outro Recdo. BESC S/A Crdito Imobilirio Adv. Ivo Muller. 125Como se verifica do acrdo, com absoluta adequao, deu-se a aplicao do princpio da funo social do contrato, pelas razes que, embora de maneira superficial, passamos a observar. Em primeiro lugar, ressaltamos que foi preservado o contrato e restabelecido o equilbrio entre as prestaes, uma vez que o fracionamento da hipoteca no implica em prejuzo para o credor, haja vista o mesmo no ter perdido a garantia contratual, fixada quando da realizao do negcio.Ademais, o contrato realizado entre a incorporadora e o agente financeiro, por si prprio, j revela a funo social que realiza, proporcionando aos indivduos o acesso moradia, razo pela qual o agente financeiro, que viabiliza os recursos para a realizao da construo, no poderia ver-se sem a garantia ajustada, qual seja: a hipoteca. De outro lado, o indivduo que adquiriu o imvel no pode ser privado de realizar a transferncia da propriedade, uma vez tendo cumprido a sua obrigao, consistente no pagamento do preo estipulado, sendo, portanto, correta a deciso que determina a liberao da hipoteca, que recai sobre esse imvel, vale dizer, da garantia hipotecria, inicialmente convencionada, o que consiste no seu fracionamento. Ainda nessa esteira, ressaltamos que no haveria razo para que a incorporadora mantivesse um excesso de garantia, o que resultaria no prejuzo do indivduo, que adquiriu um imvel para, certamente, sobre ele poder exercer todos os direitos de proprietrio. Como vemos, a aplicao do princpio da funo social do contrato permitiu, no caso concreto, em apreciao, a conservao do contrato, a manuteno da garantia do credor, bem como a preservao de direitos do terceiro de boa-f que adquiriu o imvel. Nesse sentido, o entendimento da Ministra relatora do acrdo: O art. 1.488 do CC/02 consubstancia um dos exemplos de materializao do princpio da funo social dos contratos, que foi introduzido pelo novo cdigo. Com efeito, a idia que est por traz dessa disposio a de proteger terceiros que, de boa-f, adquirem imveis cuja construo ou loteamento fora anteriormente financiada por instituio financeira mediante garantia hipotecria. Inmeros so os casos em que esses terceiros, apesar de terem, rigorosamente, pago todas as prestaes para a aquisio de imvel pagamentos esses, muitas vezes, feitos s custas de enorme esforo financeiro so surpreendidos pela impossibilidade de transmisso da propriedade do bem em funo da inadimplncia da construtora perante o agente financeiro. Dessa forma, podemos ver que somente a atuao do judicirio permitir a verificao da eficcia da aplicao das clusulas gerais, no mbito para o qual foi criado, qual seja, o da realidade em que os negcios se realizam, no permanecendo, apenas, no plano da abstrao filosfica e do discurso. Nelson Nery Junior, com quem concordamos, atribui clusula geral em questo, uma funo instrumentalizadora, que consiste na atividade do juiz de dar concretude enunciao abstrata do artigo 421 do Cdigo Civil de 2002, o que Nelson Nery Junior. Comentrio ao artigo 421 do Cdigo Civil: No regra de interpretao, tampouco princpio geral de direito. Na prtica, a clusula geral de funo social do contrato permite que o juiz faa a lei entre as partes, isto , o juiz vivifica, no caso concreto, a norma abstrata e esttica posta pela lei. Devemos entender como preenchimento da clusula geral, atravs dos valores jurdicos, econmicos, sociais e morais. Assim, uma vez comprovado o desequilbrio contratual, dever ser aplicada a norma de ordem geral, prevista no artigo 421 do Cdigo Civil vigente, lembrando, porm, o ensinamento de Everaldo Augusto Cambler, com o qual concordamos integralmente, no sentido de que: A aplicao h de ser empregada com a cautela necessria vez que a lea natural essncia de determinados contratos no pode ser includa nesta situao. Ainda sob esse aspecto, percebemos que a funo social do contrato dever, sempre, ser observada pelas partes e pelo judicirio, o que significa que essa clusula geral no apenas um instrumento de interpretao, tanto que, de forma cristalina, nosso legislador expressa, no artigo 2.035, pargrafo nico, do Cdigo Civil em vigor, tratar-se de norma de ordem pblica. Nossa posio de que o contrato tenha que ser cumprido, pois, para isso, foi realizado. Assim, no podemos permitir que, sob o manto do reconhecimento da funo social, que foi atribuda ao contrato, seja admitida sua utilizao para esconder a m-f, a fraude, os vcios ou o desejo de inadimplir com aquilo que foi avenado.