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    DIREITOS HUMANOS E PLURALISMO CULTURAL: UMA DISCUSSO EM

    TORNO DA QUESTO DA UNIVERSALIDADE

    Emmanuel Pedro S. G. Ribeiro

    RESUMO

    O presente trabalho discute uma das questes fundamentais da atualidade no que diz

    respeito aos direitos humanos, trata-se da relao entre universalidade e pluralismo

    cultural. Nesse sentido, o problema enfrentado neste trabalho : em que medida

    possvel compatibilizar a universalidade dos direitos humanos com a diversidade

    cultural, de modo a no comprometer sua legitimidade local? Diante desta questo

    central, busca-se ultrapassar o dilema entre universalismo e relativismo. A concepo

    universalista aponta que cada ser humano dotado de uma dignidade, de um mesmo

    valor independentemente de quaisquer distines. A condio de pessoa o requisito

    nico para a dignidade e a titularidade de direitos. J a concepo relativista aponta que

    o pluralismo cultural no permite a formao de uma moral e de um direito universais.

    A cultura de cada sociedade a nica fonte de validade de um direito ou regra moral.

    Portanto, como hiptese o trabalho estabelece: a manuteno da identificao do

    conceito de direitos humanos com os valores e demandas da cultura ocidental impede a

    universalidade desses mesmos direitos. Portanto, o que se pretende demonstrar a

    impossibilidade de se compatibilizar a universalidade dos direitos humanos com o

    pluralismo cultural presente nas sociedades contemporneas.

    PALAVRAS-CHAVE: UNIVERSALIDADE - DIREITOS HUMANOS -

    PLURALISMO CULTURAL.

    ABSTRACT

    The present work discusses one of the fundamental subjects of the present time in what

    he/she concerns the human rights, it is treated of the relationship between universality

    and cultural pluralism. In that sense, the problem faced in this work it is: in what done

    measure possible compatible it is the universality of the human rights with the cultural

    diversity, in way to not to commit your local legitimacy? Before this central subject, itis looked for to surpass the dilemma between universalism and relativism. The

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    conception universalist points that each human being is endowed with a dignity, of a

    same value independently of any distinctions. Person's condition is the only requirement

    for the dignity and the titularity of rights. The conception relativist already points that

    the cultural pluralism doesn't allow the formation of a morals and of an universal right.

    The culture of each society is the only source of validity of a right or it rules moral.

    Therefore, as hypothesis the work establishes: the maintenance of the identification of

    the concept of human rights with the values and you dispute of the western culture it

    impedes the universality of those same rights. Therefore, which she intend it is to

    demonstrate the impossibility of if compatible the universality of the human rights with

    the present cultural pluralism in the contemporary societies.

    KEYWORDS: UNIVERSALITY - HUMAN RIGHTS - CULTURAL PLURALISM.

    I Introduo.

    O que se pretende demonstrar neste artigo a impossibilidade de se

    compatibilizar a universalidade dos direitos humanos com a diversidade cultural, por

    isso mesmo, sua legitimidade local est comprometida. Como hiptese, o trabalho

    aponta que a manuteno da identificao do conceito de direitos humanos com os

    valores e demandas da cultura ocidental impede a universalidade desses mesmos

    direitos. Nesse sentido, sua universalidade obtida custa de sua legitimidade cultural.

    Como demonstrar a impossibilidade de se compatibilizar a universalidade dos

    direitos humanos com o pluralismo cultural? Atravs de uma argumentao que pode

    ser dividida em quatro itens. O primeiro pretende situar o problema numa perspectivahistrico-filosfica, explicitando como a questo da universalidade se tornou possvel a

    partir do sculo XX, ensejando a emergncia da concepo contempornea dos direitos

    humanos. No segundo item, o Direito Internacional se apresenta como ambiente em que

    o problema da universalidade dos direitos humanos tematizado, assinalando a

    importante mudana que vem ocorrendo nesta rea desde a adoo da Declarao

    Universal de 1948 pela Assemblia Geral da ONU. No terceiro, a inteno verificar as

    condies atravs das quais se podem construir uma fundamentao racional, baseadaem um argumento universalista, para uma categoria especfica de direitos, os direitos

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    humanos, no contexto de uma sociedade planetria multicultural. O que se examina a

    adequao da idia de universalismo mnimo para uma sociedade pluralista. Por fim, se

    pretende radicalizar a discusso acerca da problematizao da universalidade dos

    direitos humanos, situando a questo central deste trabalho que a demonstrao da

    impossibilidade de se compatibilizar a universalidade dessa categoria de direitos com o

    pluralismo cultural. Argumenta-se que a formulao atual dos direitos humanos baseia-

    se em pressupostos filosficos e antropolgicos que pertencem tradio que comeou

    a se constituir no Ocidente a partir do sculo XVII.

    II - A universalidade dos Direitos Humanos: uma perspectiva histrico-filosfica.

    O presente trabalho procura discutir uma das questes fundamentais da

    atualidade sobre os direitos humanos, trata-se da relao entre universalidade e

    pluralismo cultural. Afirma-se que a sociedade contempornea se apresenta como

    culturalmente heterognea; que estamos diante, quer no plano nacional quer no plano

    internacional, de sociedades multiculturais1. Nesse sentido, no h como pensar os

    direitos humanos hoje, sem levar em considerao o problema das diferenas culturais,

    apontadas como se constituindo em limitaes e obstculos para a efetiva realizao da

    sua universalidade2.

    As respostas tericas para esta questo j so conhecidas. De um lado, a

    concepo que afirma a universalidade dos direitos humanos sem qualquer

    questionamento crtico, aponta que cada ser humano dotado de uma dignidade, de um

    valor intrnseco que independe da posio social, da raa, do sexo, da etnia, da

    orientao sexual, entre outras. A condio de pessoa o requisito nico para a

    dignidade e a titularidade de direitos. De outro, a concepo do relativismo aponta que opluralismo cultural no possibilita a formao de uma moral e de um direito universais.

    A cultura de cada sociedade se apresenta como a nica fonte de um direito ou regra

    moral. So posies mutuamente excludentes, insuficientes para dar conta da

    1PUREZA, Jos Manuel. Direito Internacional e Comunidade de Pessoas: da indiferena aos direitoshumanos, p.85. In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio deJaneiro: Renovar, 2004.2NUNES, Joo Arriscado. Um novo Cosmopolitismo? Reconfigurando os Direitos Humanos, p.16. InBALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar,

    2004. Cf. ainda, BARRETO, Vicente de Paulo. Multiculturalismo e Direitos Humanos: um conflitoinsolvel?, p.285. In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Riode Janeiro: Renovar, 2004.

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    complexidade da situao contempornea. No momento no aprofundaremos esta

    discusso, a referncia feita com o intuito de situar melhor o problema.

    Portanto, o problema a ser enfrentado : em que medida possvel

    compatibilizar a universalidade dos direitos humanos com a diversidade cultural sem

    comprometer sua legitimidade local? Como hiptese, o trabalho aponta que a

    manuteno da identificao do conceito de direitos humanos com os valores e

    demandas da cultura ocidental impede a universalidade desses mesmos direitos. Nesse

    sentido, sua universalidade obtida custa de sua legitimidade cultural.

    Assim sendo, a partir de que momento histrico se pode falar da universalidade

    como uma das caractersticas fundamentais dos direitos humanos? A universalidade se

    apresenta como uma das caractersticas bsicas da chamada concepo contempornea

    dos direitos humanos, produto do movimento de internacionalizao, muito recente na

    histria, que teve como marco o fim da Segunda Guerra Mundial3.

    Nesse contexto, foi criada em 26 de junho de 1945, pela Carta de So Francisco,

    a Organizao das Naes Unidas, que teve como um dos seus objetivos fundamentais,

    estatudo j no artigo primeiro promover e estimular o respeito aos direitos humanos e

    s liberdades fundamentais para todos, sem distino de raa, sexo, lngua ou religio

    (...)4. A criao da ONU e a produo dos trabalhos que culminaram na aprovao da

    Declarao Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948, adotada por

    votao (48 a zero com 8 abstenes), quando a Assemblia Geral contava com apenas

    56 membros5, foram respostas ao holocausto a que foi submetido o povo judeu levado a

    termo pela ideologia do nacional-socialismo6. Portanto, diante da ruptura provocada

    pelo totalitarismo nazista, imps-se comunidade internacional a reconstruo da noo

    de direitos humanos.

    O contexto mundial Ps-Segunda Guerra permitiu que fosse realizado um

    balano das atrocidades cometidas ao longo desse perodo, com a constatao da crise ea necessidade de reconstruo do valor dos direitos humanos. O que foi proporcionado

    com o advento da Declarao Universal dos direitos humanos de 1948, o que revela o

    3 Cf. PIOVESAN, Flvia. A universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos: desafios eperspectivas, p.46. In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita.Rio de Janeiro: Renovar, 2004.4Carta de So Francisco5 Cf. ALVES, Jos Augusto Lindgren. Os Direitos Humanos como Tema Global. So Paulo:

    Perspectiva, 2003, p. 27.6TRINDADE, Jos Damio de Lima. Histria Social dos Direitos Humanos. So Paulo: Peirpolis,2002, p.189

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    esforo de resgate, buscando transform-los em paradigma e referencial tico a orientar

    a ordem internacional contempornea7.

    De acordo com Bobbio, a emergncia desse documento caracteriza o terceiro

    momento do processo de produo das declaraes de direitos. O primeiro, pode ser

    caracterizado atravs das obras dos jusnaturalistas modernos, por intermdio das quais

    nascem as declaraes de direitos, chegando mesmo a confundir-se com as prprias

    teorias filosficas. O segundo, diz respeito ao salto da teoria para a prtica, quando

    ocorreu um processo de apropriao dessas idias filosficas por parte de um legislador,

    como nos casos das Revolues Americana (1776) e Francesa (1789) com suas

    respectivas declaraes de direitos. Voltando ao terceiro momento, trata-se de um

    perodo no qual, a afirmao dos direitos se apresenta, simultaneamente, como universal

    e positiva. Cuida-se de estender a todos os membros da espcie humana os princpios

    contidos na Declarao, residindo neste ponto a universalidade. Continuando essa

    trajetria, a Declarao d incio a um processo por meio do qual, os direitos humanos

    deixaro de ser apenas proclamados ou teoricamente reconhecidos, passando a ser

    efetivamente protegidos, podendo-se voltar contra o prprio Estado que os tenha

    violado8.

    Assim sendo, de acordo com o que dissemos no incio, estamos diante do

    movimento de internacionalizao dos direitos humanos, que tem como uma de suas

    principais preocupaes, a transformao desses direitos em tema de legtimo interesse

    da comunidade internacional. Conforme salienta Piovesan, busca-se robustecer a idia

    de que a proteo dos direitos humanos no deve se reduzir ao domnio restrito do

    Estado, no deve se limitar competncia nacional exclusiva ou jurisdio domstica

    exclusiva, porque se constitui em tema de interesse internacional9.

    Trata-se do que se pode denominar de concepo contempornea dos direitos

    humanos caracterizada pela universalidade e pela indivisibilidade desses direitos,inaugurada com a Declarao Universal de 1948. Mas, o que caracteriza a

    universalidade como uma das notas caractersticas dos direitos humanos? A

    universalidade reconhecida no prembulo da Declarao: (...) o reconhecimento da

    dignidade inerente a todos os membros da famlia humana e de seus direitos iguais e

    7Cf. FARIA, Jos Eduardo. Prefcio. In Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro:Renovar, 2004, pp.01-13.8Cf. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.30.9

    Cf. PIOVESAN, Flvia. A universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos: desafios eperspectivas. In Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 45-46.

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    inalienveis o fundamento da liberdade, da justia e da paz no mundo. No artigo

    primeiro do mesmo texto normativo temos: Todas as pessoas nascem livres e iguais

    em dignidade e direitos (...)10.

    Isto significa a extenso universal desses direitos, expressos na Declarao, a

    todos os seres humanos existentes no planeta e que tem como base a idia de que a

    condio de pessoa o requisito nico para a dignidade e a titularidade de direitos. A

    dignidade humana o pressuposto para o estabelecimento de uma ordem pblica

    mundial, pois abriga os valores que se consideram bsicos da humanidade. Dessa forma,

    colocada como o fundamento dos direitos humanos.

    A Declarao de 1948 introduz importante inovao, pois utiliza uma linguagem

    de direitos at ento indita. Articula o discurso liberal da cidadania com o discurso

    social, elencando tanto direitos civis e polticos (artigos 3 a 21) quanto direitos sociais,

    econmicos e culturais (artigos 22 a 28). Esta combinao faz emergir a concepo

    contempornea, marcada pelas notas da universalidade, j explicitada, e da

    indivisibilidade dos direitos humanos11. Entretanto, como o foco da discusso diz

    respeito questo da universalidade, a ela nos limitaremos.

    J em 1993, a Declarao de Viena reitera, reafirma a concepo da Declarao

    de 1948, pois em seu artigo quinto, explicita: Todos os direitos humanos so

    universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve

    tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e eqitativa, em p de igualdade

    e com a mesma nfase12.

    O que isto significa? Que a Declarao de Viena de 1993, subscrita por 171

    Estados, confirma a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos. Por isso

    mesmo, ao fixar a idia de que os Direitos Humanos so universais, decorrentes da

    dignidade humana, tanto a Declarao de 1948 quanto a de 1993, nega que os direitos

    humanos sejam derivados das peculiaridades sociais e culturais de determinadasociedade.

    Portanto, independente da cultura em que o indivduo esteja inserido, cada ser

    humano, em sua individualidade, pelo simples fato de ter nascido, tem dignidade e

    direitos iguais a qualquer outro. Trata-se de universalizar os valores embutidos na idia

    10Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948.11A propsito, ver TRINDADE, Jos Damio de Lima. Histria Social dos Direitos Humanos. SoPaulo: Peirpolis, 2002, p. 191 e seguintes; ainda, PIOVESAN, Flvia. A universalidade e a

    indivisibilidade dos direitos humanos: desafios e perspectivas. In Direitos Humanos na SociedadeCosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 50-57.12Declarao de Direitos Humanos de Viena, 1993.

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    de dignidade humana, da qual decorre uma srie de direitos que precisam ser

    institucionalizados e concretizados para garantir proteo, segurana e bem-estar a cada

    um dos membros da famlia humana. Cada sociedade em particular deve introduzir em

    sua estrutura normativa jurdica esse mnimo comum que garanta uma existncia digna

    para os seus membros.

    No contexto histrico em que foi produzida a Declarao de Viena de 1993, com

    a reemergncia dos direitos humanos, sobretudo com a reafirmao de sua

    universalidade, temos a contestao dessa universalidade por culturas no-ocidentais.

    Trata-se da no aceitao dos pressupostos filosficos e antropolgicos que identificam

    desde 1948, a concepo dos direitos humanos universais com a viso da cultura

    ocidental. Estamos diante de mais um desafio lanado aos direitos humanos no mundo

    contemporneo com esta nova tenso.

    Trata-se da compatibilidade entre a manuteno de uma concepo universalista

    e a legitimidade cultural dos direitos humanos. Esta tenso, o escopo global e a

    legitimidade local, tem provocado vrias tentativas de solucionar o problema em termos

    de pensamento social e poltico contemporneo: a resposta universalista, a resposta

    relativista e as respostas que buscam ultrapassar as posies referidas propondo um

    novo cosmopolitismo.

    III Do Direito Internacional clssico ao Direito Internacional dos Direitos

    Humanos.

    Este item pretende situar a questo da universalidade dos direitos humanos

    tomando como referncia o Direito Internacional, assinalando a importante mudana

    que vem ocorrendo nesta rea desde a adoo da Declarao Universal de 1948 pela

    Assemblia Geral da ONU. De modo que, o referido texto normativo alm de permitir osurgimento da concepo contempornea, com a universalidade e a indivisibilidade

    como suas notas fundamentais, possibilitou o desenvolvimento do Direito Internacional

    dos Direitos Humanos. A partir deste marco, iniciou-se com abrangncia e importncia

    jamais vista, a proteo internacional dos direitos humanos. Esta passou a ser

    incorporada como uma das reas nucleares do Direito Internacional contemporneo, o

    que evidencia um processo de transformao sem precedentes.

    Em que se funda o entendimento estritamente interestatal da regulao jurdicainternacional? O sistema interestatal tem como referncia o Tratado da Vestiflia que

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    fundou a organizao poltico-jurdica dos povos em Estados-nao, cuja lgica de

    regulao internacional baseia-se no direito da coexistncia. O que se altera com a

    incorporao da proteo internacional dos direitos humanos? O discurso normativo e a

    prtica institucional ganham um sentido comunitrio uma vez associados proteo

    internacional dos direitos humanos, cuja lgica de regulao internacional funda-se no

    direito da cooperao13.

    A mudana um fato, entretanto, como se justifica uma nova forma de proteo

    para os indivduos, em que ancorar a convocao de uma proteo internacional dos

    indivduos? Exige-se, para que isso ocorra, a passagem dos Direitos do Homem e do

    Cidado aos Direitos Humanos. A constatao da insuficincia do quadro

    institucional do Estado-nao para a proteo da dignidade humana, qualifica um novo

    fundamento para os direitos humanos, agora de matriz internacional. Essa reivindicao

    de um lastro internacional baseia-se no reconhecimento, em todos os quadrantes do

    mundo, da dignidade da pessoa humana. Esta mudana, de fato, altera a lgica dos

    prprios instrumentos internacionais de proteo dos direitos humanos.

    As transformaes no Direito Internacional Pblico, faz com que este passe a se

    constituir a partir de um novo princpio, o da proteo internacional da dignidade da

    pessoa humana, fragilizando, dessa forma, o princpio da soberania. A importncia que

    passa a ser atribuda ao princpio da dignidade humana, o torna fundamento de um

    ncleo duro de direitos, vinculando os Estados comunidade internacional. Esta fixou

    um ncleo duro de direitos irredutveis por meio da Declarao Universal de 1948.

    Nesse sentido, como se chegou a estabelecer esse ncleo duro irredutvel de direitos?

    Atravs de um assinalvel consenso que a prtica internacional foi registrando em torno

    de um fundo comum universal, consolidado, mas aberto, de projeo normativa da

    dignidade humana.

    Continuando a indagao, que catlogo de direitos materializa-se a partir dessefundo comum universal? Cuida-se de um elenco de bens jurdicos protegidos

    independentemente de quaisquer particularismos de nacionalidades ou de matriz

    cultural: vida, integridade fsica e moral pessoal, garantias judiciais bsicas. Estas se

    expressam atravs de normas que vinculam, efetivamente, o Estado a cumprir

    obrigaes com relao comunidade internacional. A obrigao de respeito pelos

    13

    Cf. PUREZA, Jos Manuel. Direito Internacional e Comunidade de Pessoas: da indiferena aos direitoshumanos. In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio deJaneiro: Renovar, 2004, pp. 73-78.

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    direitos humanos erga omnes, o que implica num dever de solidariedade entre todos

    os Estados, a fim de garantir o mais rapidamente possvel uma proteo universal

    efetiva dos direitos humanos14.

    Portanto, temos uma nova realidade consolidada ou um processo de transio?

    Direitos humanos ou sistema interestatal? As duas coisas. Porm, de um lado, temos um

    declnio ou eroso do princpio da no interveno que se apresenta como aquele

    estruturador do sistema internacional estatocntrico. De outro, os direitos humanos

    passam de uma concepo instrumental, dependente do Estado-nao, para uma

    concepo autnoma, moldada como uma realidade que no depende exclusivamente

    desse mesmo Estado. O advento dessa concepo vincula o Estado-nao a uma

    comunidade internacional, gerando, para aquele, obrigaes inderrogveis15.

    Entretanto, Pureza questiona toda a construo acima referida ao apontar que o

    desafio que se impe se coloca no plano poltico, tendo em vista a heterogeneidade

    cultural da sociedade internacional contempornea: a universalizao dos direitos no

    afinal uma expresso da hegemonia ocidental? Trata-se, segundo Pureza, da relao

    entre direitos humanos e comunidade heterognea: o desafio do multiculturalismo. Eis,

    segundo os autores o grande desafio do nosso tempo presente.

    O que tem provocado o questionamento dos valores ticos indiscutveis que

    esto na base dos direitos humanos? Tem sido recorrente apontar a mundializao do

    sistema interestatal como o fenmeno que colocou em questo todos os dogmatismos

    morais que tornavam os direitos humanos fundados em valores ticos indiscutveis.

    Atualmente, a visibilidade da comunidade universal estruturada em termos de

    pluraslimo cultural, valorativo, religioso, de tradies tem propiciado o retorno ao

    problema da fundamentao dos direitos humanos.

    Para Bobbio, o problema mais urgente de ser enfrentado no era mais o

    filosfico relativo ao fundamento, porm o jurdico e, mais amplamente o poltico,referido melhor maneira de impedir as continuadas violaes. Apesar de justificar que,

    na atualidade, a necessidade da garantia se coloca primeiro do que a da fundamentao

    e, que com esse posicionamento continua reconhecendo a inafastabilidade do problema

    da justificao16, sua argumentao foi bastante criticada. Para Pureza, por exemplo,

    trata-se de um consenso estratgico e contingente, pois na comunidade global em que

    14Ibid., p. 78-85.15

    Cf. FALK, Richard. Uma matriz emergente de cidadania: complexa, desigual e fluda. In DireitosHumanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 147.16BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 25.

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    vivemos a hegemonia da cultura ocidental e dos direitos humanos, seu produto direto,

    patente.

    A crtica realizada por esse internacionalista no representa uma negao, pura e

    simples, do valor desses direitos, de sua universalidade e indivisibilidade. Para Pureza,

    trata-se da necessidade de reconstitu-los rumo a um novo cosmopolitismo, entretanto,

    para que isso possa acontecer, exige-se o reconhecimento de que os direitos humanos

    esto inseridos em uma sociedade heterognea, multicultural, como o so, em suas

    palavras, a sociedade internacional e as sociedades nacionais17.

    Por um lado, se os direitos humanos tm aspirado a um reconhecimento

    mundial, por isso mesmo, a Declarao de Viena de 1993 reafirmou sua universalidade,

    por outro, a tenso se torna presente, pois a prpria Conferncia de Viena foi palco de

    intensos debates marcados pela posio de contestao dessa universalidade por pases

    asiticos e africanos, portanto no-ocidentais.

    Assim sendo, conforme salientam os autores, um dos grandes desafios do tempo

    presente, no campo dos direitos humanos, compatibilizar a universalidade desses

    direitos com a diversidade cultural evidenciada no mundo contemporneo. Mas, ser

    que a Declarao de Viena conseguiu atender a esse desafio? Vejamos o que a

    Declarao em seu Artigo 5: Todos os direitos humanos so universais, indivisveis,

    interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os

    direitos humanos globalmente, de maneira justa e equnime, com os mesmos

    parmetros e a mesma nfase. As particularidades nacionais e regionais e bases

    histricas, culturais e religiosas devem ser consideradas, mas obrigao dos Estados,

    independentemente de seu sistema poltico, econmico e cultural, promover e proteger

    todos os direitos humanos e liberdades fundamentais18.

    Percebe-se que s timidamente o desafio foi enfrentado, ratificando-se a

    concepo presente na Declarao de 1948. Portanto, a Declarao de Viena de 1993recepcionou a perspectiva do forte universalismo ou fraco relativismo cultural. Apesar

    do reconhecimento da diversidade cultural, a nota caracterizadora dos direitos humanos

    a universalidade19. Por outro lado, possvel encontrar em Pureza posio diversa.

    17PUREZA, Jos Manuel. Direito Internacional e Comunidade de Pessoas: da indiferena aos direitoshumanos. In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio deJaneiro: Renovar, 2004, p. 95.18Declarao de Viena de 1993.19

    PIOVESAN, Flvia. A universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos: desafios eperspectivas. In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio dejaneiro: Renovar, 2004, p. 64.

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    Para este autor admitir que o mundo em que vivemos constitudo de uma pluralidade

    de sistemas de referncia quer do ponto de vista internacional, quer do ponto de vista

    nacional, implica, exatamente, no reconhecimento de que os direitos humanos para se

    conformarem a esta realidade, com nvel de reconhecimento elevado, precisam se

    constituir a partir dessa diversidade cultural. Ante tais consideraes, diz-nos Pureza:

    (...) a inscrio dos direitos humanos como gramtica emancipatria da comunidade

    global de pessoas que o Direito Internacional est convocado a antecipar s faz sentido

    quando depurada de propsitos polticos e culturais hegemnicos20.

    IV O problema da universalidade: possvel uma fundamentao racional para

    os Direitos Humanos em uma sociedade pluralista?

    O que se pretende neste item verificar as condies atravs das quais se pode

    construir uma fundamentao racional, baseada em um argumento universalista, para

    uma categoria especfica de direitos, os direitos humanos, no contexto de uma sociedade

    planetria multicultural. Por que se faz necessrio trabalhar esse problema terico?

    Porque se tornou urgente, na sociedade contempornea, procurar compatibilizar a

    universalidade desses direitos com a diversidade cultural. A pretenso produzir um

    modelo terico justificador da idia de universalismo mnimo, que j se apresenta como

    o modelo regulador dos direitos humanos na sociedade internacional.

    Nesse sentido, poderamos indagar quais os tipos de anlise possveis quando

    falamos de uma teoria dos direitos humanos? Primeiro, tomar como objeto de pesquisa,

    o conjunto de tratados, convenes e legislaes sobre o tema, como tambm a

    regulao dos mecanismos, internacionais e nacionais, garantidores dos direitos

    fundamentais da pessoa humana. Segundo, uma teoria dos direitos humanos tem como

    objeto de investigao os fundamentos desses direitos, a justificao desses direitos.Entretanto, os debates sobre os direitos humanos, desde a formulao da

    Declarao Universal de 1948, foram reduzidos aos problemas referentes aos

    20PUREZA, Jos Manuel. Direito Internacional e Comunidade de Pessoas: da indiferena aos direitoshumanos. In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio deJaneiro: Renovar, 2004, p. 95.

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    mecanismos garantidores desses direitos. Como no poderia haver um acordo sobre os

    fundamentos dos direitos humanos entre perspectivas religiosas, culturais e polticas

    diversas a respeito da natureza da pessoa humana e da sociedade, a concordncia s

    seria possvel em torno de um conjunto de direitos mnimos e de mecanismos

    garantidores dos direitos consagrados pelos Estados signatrios da Declarao.

    Diante do exposto, se faz necessrio insistir que o argumento central de uma

    perspectiva terica como essa diz respeito ao problema da fundamentao. Nesse

    sentido, o problema da justificao se transforma em questo central de uma teoria dos

    direitos humanos no mundo contemporneo. Por conseguinte, a busca de uma

    justificao pe em evidncia a questo da universalidade. Se estamos situados no

    contexto de uma sociedade planetria multicultural, possvel justificar a

    universalidade dos direitos humanos?

    Para verificar a possibilidade de uma fundamentao racional baseada em um

    argumento universalista, no contexto de uma sociedade pluralista, necessrio se faz

    encarar algumas dificuldades. Por exemplo, aquelas decorrentes de duas respostas que

    se apresentam de forma mutuamente excludentes. Em primeiro lugar, a busca de

    superao de certo tipo de universalismo. Este fruto do pensamento iluminista, do qual

    resultaram as declaraes revolucionrias do sculo XVIII. A concepo iluminista

    baseia-se na afirmao da existncia de valores da pessoa humana, vlidos em todos os

    quadrantes do planeta, que constituiriam o ncleo de resistncia aos absolutismos. A

    postura terica que se evidencia aquela expressa pelo monismo moral, que afirma a

    possibilidade de a razo humana estabelecer os valores determinantes da melhor forma

    de vida para o homem, vlidos para todas as sociedades. Em segundo, a necessidade de

    superar o principal argumento contrrio tese da universalidade dos direitos humanos, o

    relativismo cultural. Este se sustenta na constatao emprica da existncia de uma

    grande diversidade de moralidades e de sistemas jurdicos. A pluralidade cultural, quese expressa nessa diversidade, transformou-se no grande problema dos direitos humanos

    dentro de uma perspectiva universalista.

    Assim sendo, o que seria necessrio para a formulao de uma teoria

    justificadora dos direitos humanos? Seria preciso ultrapassar as duas posies citadas

    acima, procurando demonstrar como em uma sociedade multicultural podem ou no

    subsistir valores universais. Qual seria a via atravs da qual se tornaria possvel um

    empreendimento como esse?

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    O caminho seria aquele do universalismo mnimo, que reconhece a pluralidade

    moral, mas sustenta que esses diferentes sistemas podem ser avaliados em funo de

    valores universais. A linha terica do universalismo mnimo pode ser a via da superao

    da dicotomia referida acima. Por um lado, reconhece o pluralismo moral, mas no se

    conforma em aceitar que seja impossvel estabelecer um mnimo moral comum, apesar

    das diferenas. Por outro, se liberta da postura do monismo moral, construindo um

    argumento universalista sem se abstrair das realidades sociais21.

    Com efeito, j que se postula a formulao de um argumento universalista,

    atravs do qual se possa construir uma fundamentao racional para os direitos

    humanos, o que se deve fazer fornecer as bases para um tal empreendimento, esboar

    uma antropologia filosfica dos direitos humanos. Como construir os argumentos

    racionais e morais que sirvam de base para uma fundamentao racional dos direitos

    humanos? Por onde comear o trabalho que conduza construo de um argumento

    universalista? A exigncia inicial a constatao de que algumas capacidades

    constitutivas do corpo da identidade humana independem da cultura.

    Ento, que caractersticas comuns dos seres humanos podem ser encontradas em

    todas as sociedades? Por exemplo, a capacidade de pensar, de raciocinar, de utilizar a

    linguagem para comunicar-se, de escolher, de julgar, de sonhar, de estabelecer relaes

    com seus semelhantes, baseadas em critrios morais, assim se apresentam. Trata-se de

    caractersticas apreendidas pelo ser humano no convvio social, portanto, no lhe so

    inatas. A observao dessas capacidades permite classificar o ser humano como

    pertencente a uma espcie comum, fazendo com que venha, por isso mesmo, a constituir

    uma comunidade universal.

    Neste diapaso, por meio dessas caractersticas que identificamos uma pessoa

    humana, independente da cultura, como tambm se apresentam como critrios para

    distingui-la de um aliengena e de outras espcies de animais. O que permite afirmarque estamos diante, tomadas essas caractersticas em seu conjunto, do que se denomina

    de identidade humana. Dessa forma, que caracterstica central pode ser identificada no

    indivduo, permitindo dar unidade a todas as suas capacidades e, ainda, se constituir no

    eixo da identidade humana?

    21

    Cf. BARRETO, Vicente de Paulo. Multiculturalismo e Direitos Humanos: um conflito insolvel? InBALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar,2004, pp. 279-284.

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    Na sociedade contempornea, a resposta dada pela reflexo filosfica a esta

    questo, pode ser traduzida atravs da categoria moral e jurdica da dignidade humana.

    Como vimos no item dois, historicamente, a idia de dignidade humana sofreu inflexes

    que a fez ultrapassar a dimenso quantitativa que possua no mundo antigo, adquirindo

    uma dimenso qualitativa com o cristianismo e, em nova verso, com a filosofia

    moderna22.

    Nos situamos neste contexto. Assim as idias de dignidade e de sua correlata, a

    de respeito, implicam, em um sentido, numa afirmao negativa da pessoa humana, que

    impede que ela seja tratada como se fosse animal ou objeto; em outro sentido, se

    apresenta, tambm, numa afirmao positiva, que sustenta ser necessrio a ajuda para

    que o indivduo possa desenvolver satisfatoriamente as suas capacidades.

    A idia de dignidade humana corporifica-se atravs de um sistema de normas

    jurdicas. Dessa maneira, os direitos humanos referem-se a uma categoria de direitos

    que tm o carter de abrigar e proteger a existncia e o exerccio das diferentes

    capacidades do ser humano, e que iro encontrar na idia de dignidade da pessoa

    humana, a sua medida.

    Uma vez construdo esse parmetro, possvel investigar a existncia de

    critrios comuns nas diferentes culturas, que indiquem a possibilidade do

    estabelecimento de um mnimo de valores universais, erigidos a partir da relao entre o

    parmetro racional e a diversidade cultural. Por conseguinte, estabelecido esse ncleo

    de valores universais pode-se fixar os direitos humanos23. Atravs da construo desse

    caminho, torna-se possvel responder ao desafio do pluralismo cultural, tido como um

    dos maiores do nosso tempo presente, como dito no item anterior.

    Uma vez demonstradas as condies de possibilidade para o estabelecimento de

    um ncleo moral comum, apesar das diferenas culturais, resta estabelecer, por meio de

    uma teoria filosfica, um modelo justificador para a estrutura j existente dos direitoshumanos. No pensamento social contemporneo, encontramos a tentativa de identificar

    os direitos humanos fundamentais como sendo uma norma mnima das instituies

    polticas, aplicvel a todos os Estados que integram uma sociedade dos povos

    politicamente justa.

    22 Ver a esse respeito, o Item I deste trabalho, para ir mais longe ver RABENHORST, Eduardo R.Dignidade Humana e Moralidade Democrtica. Braslia: Braslia Jurdica, 2001, passim.23

    BARRETO, Vicente de Paulo. Multiculturalismo e Direitos Humanos: um conflito insolvel? InBALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar,2004, pp.294-299.

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    Os direitos humanos, nesta perspectiva, passam a dispor de um estatuto

    diferenciador no direito interno das naes, se apresentando como uma exigncia

    fundamental para que um Estado esteja apto a integrar a comunidade internacional.

    Esses direitos distinguem-se das garantias constitucionais ou mesmo dos direitos da

    cidadania democrtica, passando a exercer trs papis relevantes, como veremos a

    seguir.

    O primeiro deles, indica que um regime poltico e a sua ordem jurdica s sero

    legitimado e aceita, respectivamente, caso haja observncia dos direitos humanos; a

    excluso de qualquer interveno nos assuntos internos de uma nao por outras naes,

    que pode ser atravs de sanes econmicas ou pelo uso da fora militar, tem como

    condicionante o respeito aos direitos humanos no seu direito interno, se coloca como o

    segundo; j o terceiro, por seu turno, aponta que os direitos humanos fixam um limite

    ltimo ao pluralismo cultural.

    Por conseguinte, os direitos humanos expressam-se por meio de normas jurdicas

    e polticas, que tem como referncia as relaes estabelecidas entre as naes,

    representando compromissos nacionais com valores destinados a estabelecer uma ordem

    internacional politicamente justa. Cuida-se da necessria condio, sem a qual, os

    Estados no podero se legitimar na comunidade internacional, por isso mesmo, devem

    ter como fundamento dos respectivos direitos internos o respeito norma mnima

    internacional.

    No mundo contemporneo, esses direitos so estabelecidos como uma norma

    comum, como um direito cosmopolita, que servir de critrio para o reconhecimento

    dos sistemas polticos e jurdicos nacionais, tendo em vista que atravs do fenmeno da

    incorporao ao direito interno desse conjunto de normas elaborado no mbito das

    relaes interestatais, devero estar expressos no texto e na prtica constitucional24.

    Este representa um modelo terico justificador de uma ordem de direitoshumanos, a um s tempo universal e positiva, que vem se constituindo desde 1948.

    Entretanto, a questo da universalidade continua problemtica, pois da forma como foi

    estabelecida possui um carter marcadamente ocidental, no podendo ser estendidos ao

    resto do mundo, onde permanecem tradies culturais e religiosas prprias, estranhas,

    quando no contrrias e mesmo incompatveis, que precisam ser respeitadas.

    24 BARRETO, Vicente de Paulo. Multiculturalismo e Direitos Humanos: um conflito insolvel? In

    BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar,2004, pp. 288-294.

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    V Em que medida possvel compatibilizar a universalidade dos direitos

    humanos com sua legitimidade cultural?

    Neste ltimo item, se pretende radicalizar a discusso acerca da problematizao

    da universalidade dos direitos humanos, situando este debate no interior de um outro

    mais amplo, aquele sobre os processos de homogeneizao cultural que vm sendo

    impostos pelo Ocidente. Encaminhando as questes dessa forma, torna-se mais

    compreensvel a problemtica central deste trabalho, aquela referente

    compatibilizao ou no da universalidade dos direitos humanos com a diversidade

    cultural.

    Nesse sentido, de se iniciar perguntando qual o tipo de relao que tem sido

    estabelecida, no mundo contemporneo, entre as civilizaes? O que se pode observar,

    no nosso tempo presente, nas relaes estabelecidas entre as civilizaes? Essas

    relaes se expressam atravs da hegemonia de uma determinada cultura sobre as

    demais? Ou essas relaes se estabelecem por meio de um dilogo e de uma interao

    entre as civilizaes?

    Quais seriam as conseqncias para tais respostas? Se as relaes entre as

    civilizaes tiverem como expresso a hegemonia de uma sobre as demais, a resposta

    caminha na direo da formao de uma cultura global, de um processo de

    homogeneizao, de uniformizao de padres com conseqncias nefastas para a

    garantia do pluralismo cultural. Entretanto, se as relaes se derem por intermdio de

    um dilogo e interao entre as civilizaes, a resposta obtida a garantia do pluralismo

    cultural, da sobrevivncia de diversas tradies culturais.

    O que, de fato, se expressa na sociedade contempornea? O que tem

    preponderado atualmente nas relaes estabelecidas entre as civilizaes amanifestao da hegemonia de uma determinada cultura sobre as demais, mais

    especificamente, a cultura ocidental sobre as culturas no-ocidentais. A civilizao

    ocidental tornou-se hegemnica, culminando na produo de uma cultura que se tornou

    global e monopolizadora, se espraiando para todos os quadrantes do planeta. De tal

    sorte que a construo de uma cultura global monopolizadora implica na ameaa da

    coexistncia e sobrevivncia de diversas entidades civilizacionais, por conseguinte, um

    processo de homogeneizao a partir da cultura ocidental. Como a cultura da civilizaoocidental transformou-se em um padro vlido em termos globais? Ou ainda, o que

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    tornou possvel civilizao ocidental reivindicar a legitimidade de seu padro cultural

    como vlido em termos globais?25. A transformao do paradigma educacional

    ocidental em um padro global, aplicado a todas as entidades civilizacionais,

    provocando a negao das contribuies das civilizaes no-ocidentais para a cultura

    humana, bem como a alienao de suas novas geraes em relao a suas prprias

    sociedades e seus ambientes naturais, possibilitou essa reivindicao26.

    Com efeito, nesse debate sobre os processos de homogeneizao cultural que o

    Ocidente est impondo ao mundo inteiro, que se pode inserir aquele relativo pretensa

    universalidade dos direitos humanos, o seu alcance universal e o seu carter

    marcadamente ocidental.

    A partir desta perspectiva, vrios intelectuais ocidentais e no-ocidentais vm

    questionando a insuficincia do paradigma contemporneo dos direitos humanos, tanto

    na teoria quanto na prtica, para responder aos desafios do pluralismo cultural. Como

    possvel constatar este problema? Primeiro, os direitos humanos no so universais na

    prtica, pois no so garantidos de forma universal a todos os seres humanos e so

    violados no mundo todo. Sendo visvel o abismo entre a teoria dos direitos humanos e

    as realidades concretas. Segundo, at sua universalidade abstrata cada vez mais

    colocada em questo, tornando-se problemtica a idia de que os direitos humanos se

    apresentam como a nica referncia para uma vida boa, dvida esta, levantada, de

    modo mais acentuado, pelas tradies culturais no-ocidentais27.

    Diante do exposto, como se pode pensar que os direitos humanos concebidos no

    contexto da cultura e da histria ocidentais, considerados como a base para exercer e

    respeitar a dignidade humana possam se apresentar como os parmetros para o

    estabelecimento de uma ordem social e poltica justa para o resto da humanidade?

    possvel que alguma cultura, tradio, ideologia ou religio possa, na

    atualidade, falar pelo conjunto da humanidade, bem como resolver seus problemas? possvel que algum povo, no importa o quo moderno ou tradicional, tenha o

    25Cf. DAVUTOGLU, Ahmet. Cultura Global versus Pluralismo Cultural: hegemonia civilizacional oudilogo e interao entre civilizaes. In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos naSociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp.101-107.26Cf. DAVUTOGLU, Ahmet. Cultura Global versus Pluralismo Cultural: hegemonia civilizacional oudilogo e interao entre civilizaes. In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos naSociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 110-121.27

    Cf. EBERHARD, Christoph. Direitos Humanos e Dilogo Intercultural: uma perspectiva antropolgica.In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro:Renovar, 2004, pp. 159-160.

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    monoplio da verdade? Como possvel que algum povo, possa, por si s, definir a

    natureza da vida adequada ao conjunto da humanidade?

    Para entender melhor esta questo da universalidade ou no do conceito de

    direitos humanos, torna-se fundamental problematizar as prprias condies de

    universalidade. Perguntar, os direitos humanos so universais? J se apresenta como um

    problema. Como partir para discutir as condies de universalidade do conceito de

    direitos humanos, se a prpria questo das condies em si, no universal? Que outra

    cultura, alm da ocidental, afirma a universalidade dos direitos humanos? Ou mesmo

    questiona as condies de universalidade desses mesmos direitos? No se trata de um

    problema colocado apenas no mbito da cultura ocidental? Como extrapolar o contexto

    da cultura e da histria onde tal conceito foi formulado? Outras culturas se colocam esta

    questo? Se outras culturas, sequer pem este problema, como proceder a um estudo

    como esse? Como estudar culturas a partir de questes relativas a teorias e instituies

    de outra?28.

    Tendo cincia de que a formulao atual dos direitos humanos o resultado de

    um dilogo muito parcial entre as culturas do mundo, podemos afirmar que os

    pressupostos filosficos e antropolgicos, tais como os encontramos quer na Declarao

    Universal de 1948, quer na Declarao de Viena de 1993, em que se baseiam esses

    direitos para se apresentarem como um conceito universal so pertinentes tradio que

    comeou a se constituir no Ocidente a partir do sculo XVII. De modo que, esse

    conceito lastreia-se na idia de que: 1) existe uma natureza humana que pode ser

    conhecida racionalmente; 2) a natureza humana essencialmente diferente e superior

    restante da realidade; 3) o indivduo possui uma dignidade absoluta e irredutvel que

    tem de ser defendida da sociedade ou do Estado; 4) a autonomia do indivduo exige que

    a sociedade esteja organizada de forma no hierrquica, como soma de indivduos

    livres. A partir de tais pressupostos, a marca ocidental liberal dos direitos humanos podeser facilmente identificada.

    Dessa forma, os direitos humanos podem ser compreendidos e praticados como

    um localismo globalizado. Consequentemente, tendero sempre a ser um instrumento

    28

    Cf. PANIKKAR, Raimundo. Seria a noo de direitos humanos um conceito ocidental? In BALDI,Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004,pp. 205-211.

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    do choque de civilizaes, a arma do Ocidente contra o resto do mundo. A sua

    abrangncia global ser obtida custa da sua legitimidade local29.

    VI - REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.

    ALVES, Jos Augusto Lindgren. Os Direitos Humanos como Tema Global. So

    Paulo: Perspectiva, 2003.

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    Janeiro: Renovar, 2004.

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    insolvel? In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade

    Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

    BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

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    civilizacional ou dilogo e interao entre civilizaes. In BALDI, Csar Augusto

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    FALK, Richard. Uma matriz emergente de cidadania: complexa, desigual e fluda. In

    Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

    FARIA, Jos Eduardo. Prefcio. In Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita.

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    LAFER, Celso. A reconstruo dos direitos humanos: um dilogo com opensamento de Hannah Arendt. So Paulo: Companhia das letras, 1988.

    NUNES, Joo Arriscado. Um novo Cosmopolitismo? Reconfigurando os Direitos

    Humanos. In BALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade

    Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

    29

    Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma Concepo Multicultural dos Direitos Humanos. InBALDI, Csar Augusto (Org.). Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar,2004, pp. 249-252.

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