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    SISLENE COSTA DA SILVA

    FILHOS DO TAIM:

    estratgias para defesa e uso de um territrio

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduaoem Cincias Sociais da Universidade Federal doMaranho para a obteno do ttulo de Mestre emCincias Sociais.Orientador: Prof. Dr. Horcio Antunes de SantAna

    Jnior

    So Lus2009

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    Silva, Sislene Costa da

    Filhos do Taim: estratgias para defesa e uso de um territrio /Sislene Costa da Silva So Lus, 2009.

    123f.Impresso por computador (Fotocpia).Orientador: Horcio Antunes de SantAna Jr.Dissertao (Mestrado) Universidade Federal do Maranho,

    Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, 2009.

    1. Povoado Taim Conflitos sociais 2. Projetos Maranho 3.Reservas extrativistas Maranho 4. Territrio Maranho Conflitos scio-ambientais I. Ttulo

    CDU 316.48:911.3 (812.1)

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    SISLENE COSTA DA SILVA

    FILHOS DO TAIM:

    estratgias para defesa e uso de um territrio

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduaoem Cincias Sociais da Universidade Federal doMaranho para a obteno do ttulo de Mestre emCincias Sociais.

    Aprovada em: / /

    Banca Examinadora

    ________________________________________________Prof. Horcio Antunes de SantAna Jnior(Orientador)

    Doutor em Cincias HumanasUniversidade Federal do Rio de Janeiro

    ________________________________________________

    Prof. Carla Regina Assuno PereiraDoutora em Sociologia e AntropologiaUniversidade Federal do Rio de Janeiro

    _______________________________________________Prof. Madian de Jesus Frazo Pereira

    Doutora em Sociologia

    Universidade Federal da Paraba

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    AGRADECIMENTOS

    A finalizao deste trabalho representa o fechamento de um ciclo e o comeo de

    outro. Retornar vida acadmica depois de quatro anos longe da universidade foi um grande

    presente e deu minha vida um novo sopro. Todavia, esse retorno no seria possvel, muito

    menos a concluso deste trabalho, se eu no pudesse contar com o incentivo, colaborao,

    compreenso, solidariedade e amizade de uma srie de pessoas que sempre estiveram

    presentes em minha vida e com aquelas que conheci no decorrer do Mestrado em Cincias

    Sociais e na pesquisa de campo. Espero no esquecer ningum.

    Agradeo a Deus, refgio de paz e esperana. A meus pais que me possibilitaram

    ter acesso aos estudos e com quem sei que sempre posso contar. A samia, irm e amiga,

    obrigada por existir. A Renato, meu querido amigo e companheiro, obrigada por tudo. s

    amigas Marli e Renata a quem recorri na ora do sufoco, sempre serei grata. A Valderiza

    querida, exemplo de fora e persistncia. A Valdenira e Edgar por dividirem comigo

    momentos agradveis nas primeiras idas ao Taim. A Andr, sempre prestativo comigo,

    desculpe qualquer coisa. A Eva e Michel, amigos que admiro. A Wil e Axel, obrigada pela

    ajuda com o rsum. A Cida e Wheriston, amigos que fiz nesse mestrado e que me ajudaram

    nos momentos de desespero dos trabalhos finais.

    Agradeo especialmente e com muito carinho ao professor Dr. Horcio Antunes

    pela pacincia, dedicao e ateno com que me orientou. Tambm pela generosidade com

    que dividiu trabalhos acadmicos. Obrigada de corao!

    Agradeo tambm ao pessoal do GEDMMA (Grupo de Estudos

    Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente), professores e alunos, pela possibilidade

    de troca de conhecimento, pelas orientaes e acesso aos dados de pesquisa de pessoas das

    vrias reas. Agradeo em especial a Rafael Gaspar que me cedeu documentao sobre o

    povoado Taim.Sou grata aos professores Dr. Sgio Figueiredo Ferretti pelos livros emprestados,

    os quais muito me ajudaram a escrever o captulo 2; Dr. Gian Mrio, do IFCS (Instituto de

    Filosofia e Cincias Sociais UFRJ) e Dra. Neide Esterci, da mesma instituio, que

    gentilmente receberam a mim e a minha colega em suas aulas. Aproveito para agradecer ao

    convnio Procad - UFMA/UFRJ pela experincia de intercmbio no IFCS, em 2008.

    Agradeo tambm a Lenir por ter dividido essa experincia comigo no Rio.

    Agradeo a gentileza das professoras Dra. Carla Regina e Dra. Madian de Jesuspor aceitarem compor a banca examinadora dessa dissertao.

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    Finalmente, agradeo e dedico este trabalho aos interlocutores que me receberam

    em suas casas nas mais diversas ocasies e compartilharam um pouco suas vidas comigo,

    obrigada pela confiana. Agradeo em especial Rosana, Beto e Sr. Z Reinaldo, que me

    acolheram e acompanharam nas idas a campo. Obrigada, Rosana, pelas longas conversas, pelo

    afilhado, por ter compartilhado tua famlia comigo, obrigada pela amizade.

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    RESUMO

    A dissertao tem como objetivo estudar as estratgias construdas e atualizadas pelos

    moradores do povoado Taim para se manterem em um territrio e manterem modos de vida

    especficos. O territrio localiza-se em rea definida pelas instncias municipais, estaduais e

    federal e grandes empreendedores como propcia para a expanso industrial e desde a sua

    insero no Programa Grande Carajs tm passado por uma srie de transformaes queimplicaram em danos sociais e ambientais aos povoados ali localizados. Nesse cenrio,

    abordo como os moradores do Taim acionam uma memria coletiva referente longevidade

    da ocupao territorial. Descrevo as formas com que se apropriam material e simbolicamente

    dos espaos que o compem. Retrato as ocasies em que os moradores do povoado

    perceberam que a permanncia no territrio estava ameaada e como reagiram a essas

    ameaas, as quais esto relacionadas tentativa de apropriao territorial por morador de

    fora e tentativa de implantao de um plo siderrgico que resultaria no deslocamento

    compulsrio de diversos povoados, dentre eles, o Taim. Apresento as motivaes para

    resistirem a esse empreendimento e tento recuperar os elementos que contriburam para ter

    partido desse povoado a demanda pela instalao de uma Reserva Extrativista.

    Palavras-Chaves: Grandes projetos no Maranho, territrio, territorialidade, territorializao,

    Reservas Extrativistas, ambientalizao dos conflitos sociais.

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    RSUM

    La dissertation a pour objectif dtudier les stratgies construites et actualises par les

    habitants du village de Taim pour quils puissent rester sur un territoire dfini et y maintenir

    leurs formes de vie propres. Le territoire est situ dans une zone dfinie par les organismes

    municipaux, de ltat et du gouvernement Fdral ainsi que par de grands entrepreneurscomme propice une expansion industrielle et, depuis son insertion au Programme Grande

    Carajs la zone a souffert une srie de transformations qui ont impliqu des risques et des

    dommages l'environnement pour les villages qui s'y trouvent. Dans ce contexte, jaborde la

    faon dont les rsidents de Taim dclenchent une mmoire collective sur lanciennet de

    loccupation du territoire. Je dcris les faons dont les rsidents de Taim sapproprient

    matriellement et symboliquement des espaces qui constituent le territoire. Je dcris aussi les

    moments o les rsidents du village ont ralis que leur permanence dans le territoire taitmenace et la faon dont ils ont ragi ces menaces, qui sont lies la tentative

    dappropriation du territoire par les personnes de lextrieur qui essaient de mettre en uvre

    limplantation dun Complexe Sidrurgique implantation qui aurait comme consquences le

    dplacement forc de plusieurs villages, parmi eux Taim. Je prsente les motivations des

    habitants de Taim pour rsister cette entreprise et essaie de rcuprer les lments qui ont

    contribu faire partir de ce village la demande de constitution d'une Rserve Extractive.

    Mots-Cls: Grands projets dans le Maranho, territoire, territorialidade,territorializao, Reserve Extractive, ambientalizao des conflits sociaux

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    LISTA DE ILUSTRAES

    p.

    Foto 1 Limites povoado Taim (fonte: IBAMA, 2006).......................................... 17

    Foto 2 Jogo de futebol em campo Taim................................................................ 19

    Foto 3 Crianas em mutiro capinando em frente da antiga capela de SoBenedito...................................................................................................... 25

    Foto 4 Quintal........................................................................................................ 47

    Foto 5 Troca de dirias- plantio da maniva roa de inverno.............................. 50

    Foto 6 Momento de sociabilidade final plantio da roa..................................... 51

    Foto 7 Extrao de pedras em quintal.................................................................... 54

    Foto 8 Pesca artesanal no rio dos Cachorros......................................................... 55

    Foto 9 Poo utilizado para banho e lavagem de Roupa........................................ 58

    Foto 10 Runas do igarap Tanque.......................................................................... 59

    Foto 11 Caminho de rio que teria se formado aps tentativa de secar o poo do

    igarap Tanque........................................................................................... 61Foto 12 Porto do povoado........................................................................................ 62

    Foto 13 Brincadeiras durante percurso com o mastro pelo povoado....................... 66

    Foto 14 Entrada de mastro em residncia................................................................ 67

    Foto 15 Imagem de So Benedito que pertenceu dona Josefa.............................. 68

    Foto 16 Parada do mastro na capela de So Raimundo Nonato dos Mulundus...... 68

    Foto 17 Tambor de crioula dentro da capela de So Benedito................................ 70

    Foto 18 Rezador entoando ladainhas para o Santo.................................................. 71

    Foto 19 Ao fundo instalaes da Alumar vistas do povoado Taim......................... 88

    Foto 20 Momento de sociabilidade- jogo de domin ao entardecer........................ 88

    Foto 21 Cratera causada por mineradora de areia na entrada do povoado.............. 101

    Foto 22 Usina de asfalto poluio atinge povoadosTaim e Limoeiro................. 101

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    LISTA DE QUADROS

    p.

    Quadro 1 Descententes de Lunardo e Virgnia.................................................... 41

    Quadro 2 Descendentes de Lunardo e Josefa....................................................... 42

    Quadro 3 Descendentes de Lisano....................................................................... 42

    Quadro 4 Descendentes de Lisano e Josefa......................................................... 43

    Quadro 5 Continuao do quadro 4...................................................................... 44

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    LISTA DE SIGLAS

    CAPPAM Centro de Apoio e Pesquisa ao Pescador Artesanal do Maranho

    COIABE Coordenao das Organizaes Indgenas da Amaznia Brasileira

    COPAMA Cooperativa de Pescadores Artesanais do Maranho

    DISAL Distrito Industrial de So Lus

    GEDMMA Grupo de Estudos Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente

    GTA Grupo de Trabalho AmaznicoIBAMA Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

    INRC Inventrio Nacional de Referncias Culturais

    ITERMA Instituto de Terras do Maranho

    PDA Plano de Desenvolvimento do Assentamento

    PETI Programa de Erradicao do Trabalho Infantil

    PFC Projeto Ferro Carajs

    PGC Programa Grande CarajsRESEX Reserva Extrativista

    UC Unidade de Conservao

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    SUMRIO

    p.

    1 INTRODUO................................................................................................. 11

    1.1 Contextualizao............................................................................................... 11

    1.2 Construo do Objeto....................................................................................... 14

    1.2.1 O Contato com o Povoado.................................................................................. 14

    1.2.2 Localizao e Organizao Social....................................................................... 17

    1.2.3 Sobre o Uso da Categoria Territrio................................................................... 21

    1.3 Procedimentos de Pesquisa............................................................................... 241.4 Organizao do trabalho.................................................................................. 29

    2 A MATERIALIDADE E IMATERIALIDADE DE UM TERRIT RIO.... 31

    2.1 A Fundao do Povoado Segundo os Interlocutores...................................... 31

    2.1.1 Descrio da Genealogia..................................................................................... 39

    2.2 Formas de Apropriao dos Espaos e Recursos Naturais........................... 45

    2.2.1 Os Quintais......................................................................................................... 46

    2.2.2 A Mata e as Roas.............................................................................................. 482.2.3 Os Rios, os Igaraps, a Pesca.............................................................................. 55

    2.3 Runas, Memrias, Histrias........................................................................... 59

    2.4 Festejo de So Benedito: manuteno de uma tradio................................... 62

    2.4.1 A Retirada do Mastro.......................................................................................... 66

    2.4.2 A Festa................................................................................................................. 69

    3 FILHOS DO TAIM: disputa por terra, mecanismos de acesso ao

    territrio, formao da Unio de Moradores................................................. 723.1 Disputa pela Terra e Reconfigurao Territorial.......................................... 72

    3.2 A Unio de Moradores do Taim....................................................................... 78

    4 AMEAAS EXTERNAS: COES O INTERNA........................................... 82

    4.1 O plo siderrgico............................................................................................ 82

    4.2 Resex do Taim: ambientalizao do conflito social...................................... 90

    5 CONSIDERA ES FINAIS........................................................................... 104

    REFERNCIAS.................................................................................................. 106

    ANEXOS............................................................................................................. 114

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    1 INTRODUO

    1.1 Contextualizao

    O presente trabalho1tem como pano de fundo a relao entre povoados locais e

    grandes projetos de desenvolvimento implantados na Amaznia brasileira desde o final da

    dcada de 1970 com o objetivo de integr-la ao mercado nacional e internacional (HBETTE,

    2004). Projetos elaborados a partir de uma viso externa regio; desconectados da realidade

    social local e dos interesses regionais; idealizados em funo dos recursos existentes; alheios

    s necessidades da populao residente e voltados basicamente para atender aos recursos do

    capital, que nem basicamente, o capital brasileiro; com alguns reflexos secundriosfavorveis populao, mas sem grandes impactos positivos sobre esta, pois no foram

    concebidos para tal fim (HBETTE, 2004).

    Nesse contexto, volto-me para alguns impactos desses projetos sobre a parte

    maranhense da Amaznia, atravs do enfoque s formas de resistncias construdas por

    certos povoados locais para se manterem em seus territrios e manterem modos de vida

    especficos. A rea delimitada para estudo localiza-se ao Sudoeste da Ilha do Maranho e

    desde a sua insero no Programa Grande Carajs (PGC)2

    passou por diversas modificaesdevido a construo de infra-estrutura voltada para a industrializao. Em 1974, o Governo do

    Estado do Maranho entregou uma rea localizada nessa regio de mais 3.000 ha, incluindo

    uma praia bastante utilizada pelos pescadores locais a praia do Boqueiro, para a Vale. Em

    1979, entregou 10.000 ha, entre Maracan e Estiva para a construo de instalaes da

    Alumar. Nessas aes, foram deslocadas em torno de 4.000 famlias (GISTELINCK, 1988).

    Conforme aponta Gistelinck (1988:103),

    na Ilha de So Lus, com uma superfcie 504Km2, 190Km2 so reservados paraindustrializao. Desses 190Km2, 100Km2 so da ALUMAR, 22Km2 da CVRD,35Km2reservados para a implantao da siderurgia e o resto para outras indstrias.

    1Vinculado ao projeto Modernidade, Desenvolvimento e Conseqncias Scio-Ambientais: a implantao doplo siderrgico na Ilha de So Lus-MA, executado pelo Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade eMeio Ambiente (GEDMMA), vinculado ao Departamento de Sociologia e Antropologia (DESOC) e aoPrograma de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Universidade Federal do Maranho (PPGCS/UFMA).2Programa implantado autoritariamente pelos governos ditatoriais que governaram o Brasil a partir da dcada de1964, que objetivava a industrializao e consequente modernizao do pas, atravs da integrao da Amaznia dinmica econmica brasileira (BUNKER, 1988; CARDOSO e MULLER, 1977; SANTANA JNIOR,2004).

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    A instalao do consrcio de alumnio Alcoa/Billiton3 (no Maranho recebeu a

    denominao de Alumar) e da Companhia Vale do Rio Doce - CVRD4(atualmente chamada

    de Vale) resultou em aes de reordenamento territorial, com deslocamento compulsrio5de

    diversos povoados, atrao de um contingente populacional vindo do interior do Maranho

    para trabalhar na construo dessa infra-estrutura e das indstrias que ali se localizaram,

    desmatamento de grande rea de mata e manguezais e cercamento de outras, assoreamento de

    fontes hdricas, presso na utilizao de recursos naturais de certos territrios etc. Os

    povoados que no foram deslocados passaram desde ento a ter que conviver com os

    impactos sociais e ambientais decorrentes dessas aes e com a ameaa constante de novos

    deslocamentos.

    O PGC6foi implantado na poro Oriental da Amaznia brasileira em uma reaequivalente a 10% do territrio nacional (840.000 km) e foi previsto para ter quatro

    segmentos: mnero-metalrgico, reflorestamento, agricultura e pecuria (BENATTI, 1997).

    Constitui-se em espinha dorsal desse Programa, o Projeto Ferro Carajs (PFC) que

    compreende um sistema integrado ligando a minerao em Carajs, o transporte pela ferrovia

    de Carajs a So Lus numa distncia de 890 km e as instalaes porturias, administrativas,

    operacionais e de manuteno em So Lus (GISTELINCK, 1988).

    Apresentam-se como empreendimentos relacionados ao Programa Grande Carajsas indstrias a Vale e Alumar que se instalaram no Sudoeste da Ilha do Maranho na dcada

    de 1980 e colaboraram para o processo de modificao dessa rea e para os danos sociais e

    ambientais mencionados acima.

    A instalao dessas indstrias; a infra-estrutura citada, com destaque para a

    situao porturia apresentada como altamente vantajosa, devido a sua posio privilegiada na

    costa Norte brasileira, prxima aos grandes centros de comrcio mundial (Estados Unidos e

    Europa) e devido ao Complexo Porturio de So Lus (formado pelos portos da Ponta daMadeira pertencente Vale; porto da Alumar e pelo porto do Itaqui, administrado pela

    Empresa Maranhense de Administrao Porturia, do governo do Maranho) fazem da rea

    um local economicamente vivel para empreendimentos de grande porte. O terminal porturio

    3Encarregada de transformar o minrio extrado na serra de Carajs, no Par, em alumina ou alumnio.4Responsvel pela estocagem e transporte do minrio de ferro.5 Conjunto de realidades factuais em que pessoas, grupos domsticos, segmentos sociais e/ou etnias soobrigados a deixar suas moradias habituais, seus lugares histricos de ocupao imemorial ou datada, medianteconstrangimentos, inclusive fsicos, sem qualquer opo de se contrapor e reverter os efeitos de tal deciso,

    ditada por interesses circunstancialmente mais poderosos (ALMEIDA, 1996, p. 30).6O ponto de partida para a elaborao desse Programa foi a descoberta de minrios de ferro na Serra de Carajs,no Par, na qual o governo brasileiro viu a possibilidade de gerar divisas para o pas, de assumir a posio dedesenvolvimentista, o que seria bom para a sua imagem no exterior (BENATTI, 1997).

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    da Ponta da Madeira, situado a 1,5 km ao Norte do Porto do Itaqui, possui um cais com

    capacidade para receber normalmente navios de at 280.000 dwt e, sob consulta prvia, acima

    de 350.000 dwt. A estrutura voltada para a ferrovia contm cais, ptios de estocagem,

    estaes de descarregamento com virador de vages, pesagem e mostragem, estaes de

    rebritagem e repeneiramento. Tambm se encontram na rea instalaes de manuteno do

    porto, da ferrovia, dos trens e vages, o setor administrativo e operacional da ferrovia

    (GISTELINCK, 1988).

    As caractersticas mencionadas acima so apresentadas aos investidores

    financeiros pelo Governo do Estado do Maranho como vantajosas para a instalao de

    empreendimentos industriais. Partindo dessa premissa e como desdobramento do Programa

    Grande Carajs, no comeo de 2001, o governo estadual assinou um protocolo de intenescom a Vale para construir um plo siderrgico que se localizaria no Sudoeste da Ilha do

    Maranho, em uma rea de 2.471,71 hectares, entre o Porto do Itaqui e o Povoado Rio dos

    Cachorros, na regio administrativa municipal do Itaqui/Bacanga. Para viabilizar a instalao

    do empreendimento, em 2004, o Governo do Estado do Maranho declarou essa rea como de

    utilidade pblica para fins de desapropriao atravs dos Decretos n 20.727-DO, de 30-08-

    2004, e n 20.781-DO, de 29-09-2004. Para possibilitar a implantao do Plo, doze povoado

    teriam que ser deslocados, a saber: Vila Maranho, Taim, Cajueiro, Rio dos Cachorros, PortoGrande, Limoeiro, So Benedito, Vila Conceio, Anandiba, Parnuau, Camboa dos Frades e

    Vila Madureira, que juntos possuem uma populao estimada em mais 14.400 pessoas

    (ALVES; MENDONA; SANTANA JNIOR, 2007).

    O plo siderrgico compreenderia a instalao de 3 usinas siderrgicas e 2

    unidades para a fabricao de ferro-gusa, para processar e produzir em torno de 22,5 milhes

    de toneladas de ao por ano, as quais seriam exportadas para os mercados norte-americano e

    europeu (AUGUSTO; SILVESTRE, 2006).Para viabilizar a instalao do empreendimento na Ilha, as esferas governamentais

    (municipal, estadual e federal) se articularam para promover reformas legais e apressar

    procedimentos administrativos. Dentre as reformas necessrias para a implantao do Plo,

    havia a necessidade de adequao da zona residencial/rural da rea Itaqui-Bacanga em

    industrial (AUGUSTO; SILVESTRE, 2006).

    As diversas aes desencadeadas pela possibilidade de implantao do

    empreendimento geraram manifestaes contrrias e outras a favor na opinio pblica

    maranhense, assim como entre os povoados que seriam deslocados. Esse cenrio apontou para

    a existncia dos diversos povoados que se encontram na rea demandada para a instalao do

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    plo siderrgico e mostrou o quanto conflituosa a relao entre aqueles e os

    empreendimentos industriais ali localizados desde a dcada de 1980.

    Na tentativa de viabilizar a instalao do plo siderrgico, o Governo do Estado

    do Maranho tentou, a priori, fazer crer que no existia um nmero considervel de pessoas

    naquela rea, recorrendo, assim, ao discurso do vazio demogrfico (GONALVES, 2005) e,

    por ltimo, recorreu desqualificao atravs de um discurso que homogeneza os povoados

    ao classific-los como ocupaes irregulares dos ltimos quarenta anos. Dessa forma,

    ignora as especificidades de cada povoado, tratando-os como despossudos de histria, de

    memria, de organizaes sociais vrias, de religio, de formas prprias de se relacionar com

    o territrio, etc.

    Contrapondo-se aos planos econmicos delineados para a rea pelas instnciasgovernamentais e investidores, diversos povoados, capitaneados pela Unio de Moradores do

    Povoado Taim, solicitaram ao CNPT/IBAMA7, em 2003, a criao de uma Unidade de

    Conservao (UC), na modalidade Reserva Extrativista (Resex)8. A demanda pela Reserva

    Extrativista constitui-se em tentativa de proteo territorial (em meio ao processo de expanso

    industrial pretendido para a rea) e de garantia de modos de vida especficos.

    1.2 Construo do Objeto

    1.2.1 Contato com o Povoado

    Meu interesse pelo Taim iniciou-se em julho de 2006, ocasio em que tive a

    oportunidade de me deslocar at esse povoado para conversar com alguns moradores9sobre o

    7O Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentvel das Populaes Tradicionais (CNPT) constitui-se em umrgo integrado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (IBAMA), criadoatravs da portaria n 22 de 10/02/1992 e tem a finalidade de promover a elaborao, implantao eimplementao de planos, programas, projetos e aes demandadas por grupos sociais classificados comopopulaes tradicionais, atravs de suas entidades representativas, e/ou indiretamente, atravs dos rgosgovernamentais constitudos para este fim, ou ainda, por meio de organizaes no-governamentais. Na pginaeletrnica do IBAMA, figura um histrico do CNPT que apresenta dentre suas atribuies: criar, implantar,consolidar, gerenciar e desenvolver as Reservas Extrativistas em conjunto com as populaes tradicionais que asocupam. Com a criao do Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade, atravs da lei n 11.516,de 28 de agosto de 2007, o CNPT est, atualmente, integrado a este novo rgo federal. www.icmbio.gov.bre

    www.ibama.gov.br(Consultados em 12 de outubro de 2008).8 Conforme Chamy (2000), modalidade de Unidade de Conservao que visa unir apreservao ambiental ao modo de vida tradicional das comunidades extrativistas.9 Sr. Jos Reinaldo Moraes e Jaldemir Ramos Mesquita responsveis pelo tambor de crioula.

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    tambor de crioula10 que organizavam. Naquela poca, eu integrava uma equipe de

    pesquisadores que estava levantando dados para compor o Inventrio Nacional de Referncias

    Culturais (INRC) do tambor de crioula na Ilha do Maranho. Esta pesquisa fazia parte do

    Programa Nacional do Patrimnio Imaterial, fomentado pelo Ministrio da Cultura e

    implementado no Maranho pela 3 Superintendncia Regional do Instituto do Patrimnio

    Histrico e Artstico Nacional11.

    A metodologia para obteno de dados sobre o tambor de crioula, naquela etapa

    do INRC, consistia em entrevistas dirigidas, realizadas, na sua maioria, com os responsveis12

    pelos grupos de tambor de crioula selecionados, muitas das quais suscitaram narrativas em

    que os interlocutores no separavam as histrias da origem dessa manifestao de suas

    histrias pessoais ou da histria de um grupo ou, at mesmo, da histria de uma localidade.No Taim, as narrativas sobre o tambor de crioula apresentaram-se intercaladas s histrias do

    prprio povoado.

    Assim, fiquei conhecendo um pouco sobre o povoado, ou melhor, sobre as

    representaes em torno do mesmo, atravs dos discursos de alguns dos seus moradores. Mais

    tarde, ao retornar ao campo, na tentativa de entender um pouco melhor as narrativas dos

    entrevistados, tentando situar quem falava e de que posio, fiquei sabendo que os mesmos

    eram reconhecidos perante o grupo como descendentes da famlia que teria iniciado oprocesso de repovoamento do Taim.

    O que, inicialmente, chamou a minha ateno para o povoado, quando da releitura

    das narrativas dos entrevistados, foi o quanto elas enfatizavam uma coeso grupal. As falas

    destacavam atos que remetiam a uma existncia coletiva, construda atravs da organizao

    do grupo que se mobilizava para resolver problemas referentes ao povoado. Fato que, na viso

    dos informantes, distinguia o povoado do Taim dos demais povoados da zona rural. Tambm

    havia muitas referncias a uma identidade tnica baseada em uma memria, repassada pelosmais velhos, que evocava uma ascendncia africana e indgena. Outro elemento que incitou a

    minha curiosidade para com o Taim foi a preocupao, demonstrada atravs das falas, com a

    preservao da memria, que queriam registrar atravs da escrita, e uma aparente politizao

    10Forma de expresso de origem afro-brasileira que envolve dana circular, canto e percusso de tambores. Feitapor motivo de pagamento de promessa, principalmente para So Benedito ou por diverso, em qualquer poca doano.11 Estvamos na segunda etapa do INRC que consistia na identificao dos grupos de tambores da Ilha eaprofundamento sobre os mesmos.12 Cada grupo de tambor tem uma pessoa que a responsvel pela organizao dessa forma de expresso,geralmente a pessoa que fundou o grupo ou recebeu o tambor de crioula como herana.

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    de seus moradores que mostravam averso ao apadrinhamento poltico, motivo pelo qual

    acreditavam no ter sido o tambor de crioula ainda registrado13nos rgos oficiais.

    A percepo das questes citadas me levou s seguintes indagaes: O que estaria

    por trs de um discurso que apresentava um grupo em perfeita comunho? Por que a

    preocupao em preservar a memria do grupo a ponto de seus membros desejarem registrar e

    ensinar na escola a histria, transmitida pelos mais velhos, da fundao do Taim? Por que a

    nfase em uma identidade tnica que remete a grupos sociais (indgenas e africanos) marcados

    por uma histria de invisibilidade social? Enfim, que tipo de relaes de foras estabelecidas

    no presente estariam motivando a defesa de uma coeso grupal e o relevo de atributos que

    para o grupo eram-lhe peculiares?

    Estas questes s poderiam ser respondidas a partir de um contato maior com ogrupo, que possibilitasse o estudo dos enunciadores do discurso e das instncias nas quais ele

    foi produzido (LENOIR, 1998). Logo, eu no poderia entender tal situao unicamente a

    partir do discurso daqueles que o suscitaram, sem levar em conta o contexto social em que o

    mesmo foi produzido. Ou seja, eu no poderia ver os discursos como a explicao do

    comportamento dos atores, mas como um aspecto desse comportamento a ser explicado

    (BOURDIEU, 2004), fato que me parecia pertinente de ser investigado. A histria de

    ocupao do Taim, recuperada por meio de fragmentos de memria dos mais antigos, repassada aos jovens. A importncia dada aos festejos14demonstra o esforo para transmitir

    as tradies aos mais jovens. O mecanismo de regulao do acesso a terra tenta impedir o

    inchamento do territrio e a entrada de pessoas de fora15. H um discurso que remete a uma

    preocupao e um cuidado com os recursos naturais, cujo manejo regulado por regras

    consensuais. Todas essas caractersticas remetem a um grupo que, diante de ameaas externas,

    procura reforar os laos de coeso interna atravs da construo de uma identificao com o

    lugar e mediante o relevo de atributos que remetem a uma uniformidade grupal.O acesso aos dados mencionados ajudou no processo de construo do objeto, na

    medida em que possibilitou conhecer um pouco mais a realidade da qual eu extrara um

    fragmento para estudo e, assim, desenhar as grandes linhas de fora do espao

    (BOURDIEU, 1989, p. 32) que, de alguma maneira, exercem presso sobre o objeto.

    13O registro do tambor de crioula significa o reconhecimento oficial da manifestao pelos rgos de cultura doEstado, o que possibilita ao grupo a obteno de recursos financeiros, no caso de serem contratados para se

    apresentarem em ocasies como carnaval e festa junina.14 No Taim o maior festejo realizado o festejo de So Benedito, santo preto, considerado o padroeiro dopovoado.15No nascidos no povoado.

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    Dessa forma, a realidade que se configurava diante de mim era de um grupo que

    vivia um momento de tenso motivado pela possibilidade de ser deslocado de suas terras e,

    assim, ter seu processo de reproduo social afetado. As observaes provenientes das idas a

    campo e as conversas com os moradores, mostraram um povoado marcado por uma dinmica

    construda em associao com o meio ambiente. Nessa relao, a maioria dos moradores do

    Taim faz uso de algum recurso natural no seu dia-a-dia, seja na alimentao atravs do

    extrativismo ou da agricultura; seja atravs da retirada de pedra, madeira, areia, barro ou palha

    para a construo das casas e/ou venda.

    Apesar de retirarem recursos da natureza para os usos mencionados, tal manejo

    no parece ter gerado grandes alteraes no ecossistema (IBAMA, 2006; 2007), sendo esse

    um dos argumentos utilizados para justificar o pedido de criao da Reserva Extrativista,tendo partido do povoado Taim a iniciativa do mesmo.

    1.2.2 Localizao e Organizao Social

    Destacadas algumas informaes que so levadas em considerao na construo

    do objeto de estudo, necessrio se faz descrever a conformao do povoado Taim.

    Geograficamente falando, o Taim est localizado na poro Sudoeste da Ilha do Maranho,voltado para a Baa de So Marcos, pertence regio do Golfo Maranhense. Seus limites so

    os seguintes: ao Norte com os manguezais; ao Sul com o povoado Rio dos Cachorros; a Leste

    com o povoado Limoeiro e a Oeste com os manguezais. Tem uma rea de 86,73 hectares

    (PDA Taim, 2002).

    CajueiroCajueiro

    VilaLimoeiro

    VilaLimoeiro

    VilaMaranho

    VilaMaranho

    CajueiroCajueiro

    Rio dosCachorros

    Rio dosCachorros

    Porto

    Grande

    Porto

    Grande

    TaimTaim

    VilaConceio

    VilaConceio

    SoBenedito

    SoBenedito

    Camboados

    Frades

    Camboa dos

    Frades

    VilaMadureira

    VilaMadureira

    IlhinhaIlhinhaIilhado

    Chic

    Iilhado

    Chic

    Foto 1: limites povoado Taim

    (fonte: IBAMA, 2006)

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    Atualmente tem em torno de cem famlias residentes. Espacialmente, o povoado

    est organizado em quatro ruas: rua Principal, rua Vai-Quem-Quer, rua Nova e travessa da rua

    Nova. Os moradores mais antigos, em sua maioria, residem na rua Principal, na parte baixa do

    povoado, prximo ao porto. A organizao dos imveis residenciais obedece a uma

    localizao que privilegia a proximidade de residncias de pessoas da mesma famlia: irmos

    (s), pais e filhos(as), de forma que h a formao de ncleos de casas pertencente a um

    conjunto de irmos(s) e/ou outros parentes.

    Croqui Povoado Taim (fonte: PDA Taim, 2002 com algumas alteraes feitas por mim).

    O povoado possui um campo de futebol, onde realizam partidas aos finais de

    semana e/ou feriados, reunindo tanto times de futebol do povoado como times de povoados

    vizinhos. Organizam torneios de futebol voltados para a interao comunitria com disputas

    entre: time de homens ou mulheres casados (as) versus solteiros (as), times de moradores (as)

    da parte baixa versus parte alta do povoado. Tambm realizam torneios de futebolbeneficente. Nesse caso, recorrem muitas vezes solidariedade de times de povoados

    vizinhos, cujo convite para participar de torneio entre povoados pode vir acompanhado do

    pedido de alimentos para a doao a algum morador com dificuldades financeiras ou com

    problema de sade (impossibilitado, portanto, de trabalhar). Esses torneios de futebol so

    marcados por dinmicas de entre-ajuda que reforam as relaes de solidariedade e

    sociabilidade entre moradores e entre certos povoados, as quais apontam para povoados

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    organizados em rede16, que sabem que podem mobilizar um ao outro consoante as

    necessidades de cada um.

    Foto 2: Jogo de futebol em campo Taim

    Compem o conjunto de imveis do povoado uma casa de farinha, utilizada pelos

    moradores para beneficiar a mandioca; uma capela (capela de So Benedito) 17, onde ocorrem

    as celebraes catlicas e rituais do festejo de So Benedito e Santa Maria; uma escola de

    ensino fundamental menor (1 4 srie), chamada Unidade Integrada So Benedito18, que

    um anexo da escola Gomes de Souza, que fica na Vila Maranho (povoado prximo); umprdio de alvenaria que chamam de barraco do PETI onde desenvolvem diversas atividades e

    reunies da Unio de Moradores. Dois comrcios pequenos que abastecem o povoado, uma

    capela particular erigida em homenagem a So Raimundo Nonato dos Mulundus e um terreiro

    de Mina tambm se encontram no povoado.

    As residncias no possuem rede de esgotos, nem so atendidas pelo sistema de

    coleta de lixo. A maioria das famlias joga o lixo em buracos cavados no quintal que,

    posteriormente, queimado. A gua para consumo provm de alguns poos(do tipo cacimba)

    e de dois poos artesianos (um que abastece a escola e algumas famlias e outro que se

    localiza prximo s residncias da parte alta do povoado, chamado de Chafariz) (PDA, Taim,

    2002).

    16Segundo Caill (2002, p.65) conjunto de pessoas com quem o ato de manter relaes de pessoa a pessoa, deamizade ou de camaradagem, permite conservar e esperar confiana e fidelidade.17Durante a pesquisa de campo, a capela de So Benedito, que era de taipa, foi derrubada pelos moradores queplanejam construir em seu lugar uma outra, de alvenaria. Enquanto esta no fica pronta, realizam as celebraescatlicas em um imvel que chamam de barraco do PETI (Programa de Erradicao do Trabalho Infantil), uma

    vez que l tambm so realizadas as atividades desse programa.18Sobre esse imvel, os moradores mencionam em tom queixoso que pertence Unio de Moradores e que oemprestaram para a prefeitura para funcionar a escola somente durante o tempo em que um prdio prprio daescola era construdo, todavia, essa situao se prolonga desde 1999.

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    Como organizaes formalizadas o povoado possui a Unio de Moradores do

    Taim e uma Cooperativa de Beneficiamento de Pescado.

    Quanto localizao do povoado, oficialmente, o Taim encontra-se no que o

    Governo do Estado do Maranho designa de gleba (Itaqui-Bacanga e Tibiri-Pedrinhas) e que

    corresponde a uma rea de 8.457,3534 ha. reas que teriam sido cedidas pelo Governo

    Federal ao Governo do Estado do Maranho, sob o regime de aforamento, pelos decretos n.

    66.227, de 18/02/1970 e 78.129, de 29/07/1976 (ANEXO A) para, conforme decretos,

    realizao de obras de infra-estrutura e execuo de projeto de urbanizao da regio.

    Concesso que fazia parte das aes empreendidas no mbito do Programa Grande Carajs

    (PGC) (ALVES; MENDONA; SANTANA JNIOR, 2007). Segundo documento da

    Gerncia de Estado de Desenvolvimento Econmico Subgerncia de Indstria e Comrcio(ANEXO B), o governo do Estado do Maranho recebeu as supracitadas glebas com o

    objetivo de criar na rea o Distrito Industrial de So Lus (DISAL).

    No ano de 1999, entretanto, essas reas teriam voltado para domnio do Governo

    Federal que alegava evaso de receita dos cofres da Unio decorrente da no regularizao da

    maioria da rea (ANEXO C) pelo Governo do Estado do Maranho. O que fez com que o

    Governo Estadual, no ano de 2001, abrisse novo processo requerendo o domnio das terras, as

    quais nesse documento chama de Gleba Sul da Ilha de So Lus (somatria da reas Itaqui-Bacanga e Tibiri-Pedrinhas) (ANEXO D). Nos documentos encaminhados Secretaria de

    Patrimnio da Unio, pelo Governo Estadual, so recorrentes a meno funcionalizao

    da rea para a industrializao (com destaque para um plo siderrgico) (vide ANEXO B).

    Enquanto rea destinada para a indstria, destacam-se no documento as obras de infra-

    estrutura realizadas para atender a empreendimentos industriais: os portos, a malha ferroviria

    e rodoviria e as reas de retroporto. Quanto aos povoados, h meno apenas aos mdulos 19

    em que esto localizados, o tamanho de cada um e a populao. Alguns povoados que seriamdeslocados com a implantao do plo siderrgico encontram-se no mdulo F, na relao de

    ocupantes do Disal (Distrito Industrial de So Lus), entre eles o Povoado Taim (ANEXO E).

    Corroborou a idia de povoado ocupante, a regularizao do Taim como

    assentamento, em 1996, atravs do Instituto de Terras do Maranho ITERMA. Este

    processo, em certa medida, garantiu as terras a quem nela morava e protegeu de grileiros20,

    mas de acordo com os moradores, contraria a verso de ocupao guardada na memria dos

    19O que o Governo Estadual passa a chamar de Gleba Sul da Ilha de So Lus corresponde rea a qual definiude Distrito Industrial, que se subdivide em Mdulos.20 Segundo Dicionrio Aurlio (2000), indivduo que procura apossar-se de terras alheias mediante falsasescrituras de propriedade.

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    mais antigos. Pois, devido a esse processo o governo do Estado do Maranho classifica essas

    terras como ocupaes irregulares dos ltimos quarenta anos. Enquanto seus moradores

    afirmam que o povoado habitado a mais de cem anos, possuindo ainda hoje descendentes de

    seus fundadores.

    Essa divergncia na classificao dos povoados coloca em evidncia uma disputa

    entre o Estado que, a partir do momento que confere a diversos povoados o ttulo de

    assentados outorga a si o direito de dizer quem so aqueles que ocupam a rea e desde quando

    a ocupam, de acordo com seus interesses, e os moradores desta que contestam a classificao

    oficial e demandam o direito autodenominao.

    Diferentemente da verso oficial, no Taim, de acordo com a memria dos antigos,

    o processo de ocupao do povoado remontaria ao sculo XIX e estaria vinculado habitaona rea de negros africanos, indgenas e at ordens religiosas. Posteriormente ocupao dos

    grupos citados, o povoado teria sido repovoado por famlias vindas do interior do Maranho,

    com destaque para a famlia Moraes.

    Quanto organizao social do Taim, o que se sobressai um sistema de

    parentesco que define quem tem direito terra. Este sistema funciona como um mecanismo

    regulador do acesso terra a estranho e incentiva a manuteno desse recurso nas mos dos

    chamados Filhos do Taim, pessoas nascidas no povoado, e foi criado num contexto deconflito territorial.21

    1.2.3 Sobre o Uso da Categoria Territrio

    Nesta seo discorro sobre o uso da categoria territrio que subjaz as discusses

    realizadas no desenvolver do trabalho. O emprego dessa categoria deve-se percepo de

    estar diante de situao de conflito em algum momento latente, mas em outro, como no casoda tentativa de instalao do plo siderrgico, bem visvel, produzida por confrontos de

    interesses, que resultam em formas desiguais de apropriao material e simblica do

    ambiente, entre o Estado, a iniciativa privada e os povoados que reclamam a criao de uma

    Reserva Extrativista (RESEX). A controvrsia gira em torno da apropriao, uso e controle de

    rea(acima explicitada) considerada pelo Governo do Estado do Maranho estratgica para o

    desenvolvimento econmico estadual, enquanto que para os povoados que a requerem

    importante para a sua reproduo social. O interesse pela rea no se restringe apenas ao

    21Este conflito ser explicado mais adiante porque ele teve grande importncia para o grupo, na medida em quemotivou a organizao associativa do mesmo.

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    recurso bsico que a terra, mas envolve o controle de recursos naturais como o rio, que

    possibilita aos grupos o acesso mais imediato alimentao ou gerao de renda, enquanto

    para o Estado consiste em um recurso estratgico, por viabilizar o transporte de mercadorias

    de empreendimentos que j se encontram na localidade ou de possveis empreendimentos que

    almejem se instalar.

    Para Little (2002) a existncia de todo territrio est relacionada s condutas de

    territorialidade de um grupo social, ou seja, esse autor destaca como fundamental pensar a

    constituio de territrios a partir das aes histricas e polticas dos atores que os ocupam, j

    que so as aes desses atores que definem as especificidades de cada territrio. Por

    territorialidade, Little (2002, p.3) compreende o esforo coletivo de um grupo social para

    ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela especfica de seu ambiente biofsico,convertendo-a assim em seu territrio ou homeland22. As condutas territoriais seriam

    construes acionadas em funo de conflitos que ameaam a permanncia do grupo em

    determinado territrio (ALMEIDA, 2006; LITTLE, 2002). Esse choque de territorialidades

    entre grupos sociais diferentes e com projetos territoriais igualmente diferenciados tambm

    remete ao que Oliveira (1998, p. 56) chama de processos de territorializao:

    movimento pelo qual um objeto poltico-administrativo vem a se transformar emuma coletividade organizada, formulando uma identidade prpria, instituindo

    mecanismos de tomada de deciso e de representao, e reestruturando as suasformas culturais (inclusive as que o relacionam com o meio ambiente e com ouniverso religioso).

    a partir dessa concepo que compreendo o povoado Taim como um territrio,

    cuja formao est relacionada a contextos de conflitos baseados na percepo de que o grupo

    pode perder suas terras, numa dinmica em que, internamente, a defesa do territrio torna-se

    um elemento unificador do grupo e, externamente, as presses exercidas, no caso especfico

    do povoado Taim, pelas instncias governamentais (estadual, municipal e federal) e iniciativa

    privada (empresas instaladas nas adjacncias do povoado) e/ou por indivduo que fixa

    residncia no povoado moldam e s vezes impem outras formas territoriais (LITTLE, 2002).

    Esse territrio se localiza em uma rea composta por um mosaico de outros territrios que

    esto interligados em funo de vrios aspectos, alguns dos quais so explicitados no

    desenvolver do trabalho.

    Ainda conforme Little (2002), a anlise do territrio de qualquer grupo, deve ser

    subentendida por uma abordagem histrica que retrate o contexto especfico em que o

    22Segundo esse mesmo autor, homeland palavra inglesa que tende a ser traduzida em portugus como ptria.Significado que a desvia de seus outros sentidos possveis referentes s territorialidades de distintos grupossociais dentro de um Estado-nao.

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    territrio surgiu e em que foi defendido e/ou reafirmado e uma abordagem que consiga dar

    conta da relao particular que o grupo mantm com o mesmo. Para que se consiga analisar o

    grupo levando em considerao esse ltimo aspecto, preciso que se analise o regime de

    propriedade, os vnculos afetivos que o grupo mantm com o territrio especfico, a histria

    de ocupao guardada na memria coletiva e o uso social que d ao mesmo.

    Por elaborar uma anlise centrada na relao condutas humanas versus territrios,

    Little (2002) denomina de territrios sociais os diversos territrios existentes no interior do

    territrio maior do Estado brasileiro. Dessa forma, o autor enfatiza que sua anlise no enfoca

    a questo territorial vinculada idia de Estado-Nao, que est relacionada a nacionalismo e

    soberania. Todavia, no deixa de problematizar sobre como a imposio de uma entidade

    denominada de Estado-Nao sobre uma imensa parcela do que hoje o Brasil obrigou asdemais territorialidades a confront-la.

    Em um dilogo com Little, Chvez (2002) enfatiza que, no contexto do Estado-

    Nao sucederam-se processos de integrao que impuseram novas territorialidades, novas

    demarcaes territoriais e novos regimes de propriedade e acesso aos recursos naturais e

    novas relaes de produo, que levaram decadncia e at extino de sistemas culturais

    nativos, locais. Mas tambm conduziram a processos de resistncia, transformao,

    refuncionalizao de identidades e atribuio de novos sentidos ao territrio, sem quehouvesse a perda de elos bsicos com o mesmo.

    Discusses envolvendo a questo territorial no so recentes, o territrio sempre

    foi matria investigativa de interesse poltico, econmico e cultural desde as polticas de

    planificao territorial e econmica ligadas geografia fsica e econmica desenvolvidas na

    primeira metade do sculo XIX por Le Play e outros, at as investigaes antropolgicas

    colonialistas dirigidas por interesses das grandes potncias mundiais durante o sculo XIX e

    incio do XX. Antroplogos como Durkheim, Malinowiski, Radcliffe-Brown, Edmund Leach,Evans-Pritchard j tentavam desenvolver uma anlise que considerasse o meio ambiente para

    a compreenso de uma dada sociedade (THER ROS, 2006).

    Uma das dificuldades atuais dos estudos que enfocam o territrio deve-se s

    trocas que a sociedade experimenta no contexto da globalizao, propiciadas, principalmente,

    por causa dos avanos na cincia e tecnologia, o que interfere no prprio fazer antropolgico

    que tenta dar conta do territrio. Destarte, um dos maiores desafios atuais da Antropologia em

    particular e das Cincias Sociais em geral , portanto, repensar as relaes entre o local e o

    global, sem deixar de considerar o marcosocial e histrico que lhe do significado e sentido.

    Situao que deixa claro a necessidade de conhecimento, mas tambm de um maior nvel

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    interpretativo relacional, compreensivo, que permita reconhecer os territrios locais em um

    contexto de inter-relaes (THER ROS, 2006).

    A necessidade de um conhecimento relacional sobre o territrio leva questo da

    realizao de um estudo interdisciplinar, em que sempre que necessrio se recorra s

    contribuies de disciplinas vrias.

    Por isso, sem querer cair na iluso de realizar um trabalho que consiga abarcar por

    inteiro as questes referentes ao objeto de estudo, em determinado momento busco o auxlio

    de estudiosos da geografia ou da ecologia para tentar entender a relao entre sociedade e

    ambiente.

    1.3

    Procedimentos de Pesquisa

    A coleta das informaes que fundamentam este trabalho foi realizada em vrios

    momentos e com uso de tcnicas diversas, como: levantamento bibliogrfico, consulta a

    documentos oficiais, participao em audincias pblicas referentes instalao da UTE

    (Usina Termeltrica) Porto do Itaqui, entrevistas semi-estruturadas com representantes

    comunitrios, participao em assemblia e reunio na Unio de Moradores do Taim,

    conversas informais, participao em festejos, passeio pelo rio dos Cachorros parareconhecimento da rea de implantao da Resex do Taim e de seus recursos hdricos etc.

    No que concerne insero no campo, a primeira ida ao Taim, aps o primeiro

    contato com o povoado, deu-se em maro de 2007. Retornei ao Taim com dois amigos que

    queriam fotografar o festejo de So Benedito, ocasio que tambm tirei algumas fotos e

    observei o povoado em um momento festivo.

    Um final de semana antes do incio do festejo fomos at o povoado, confirmar a

    data do mesmo. L chegando, nos deparamos com um grupo de mulheres estudandocatecismo em frente da casa de Sr. Jos Reinaldo (o qual, posteriormente viria a ser um dos

    meus principais interlocutores) e diante da capela do santo, que estava sendo tomada pelo

    matagal, um grupo de crianas, coordenadas por Jaldenilson (sobrinho de Sr. Jos Reinaldo),

    capinava o terreno.

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    Foto 3: Crianas em mutiro capinando em frente da antiga capela de So Benedito

    Esse contato, aps meses sem aparecer em um povoado que eu frequentara apenas

    uma vez, gerou ansiedade e dvidas sobre a receptividade dos moradores, pois eu sabia que a

    possibilidade de prosseguir com a pesquisa dependeria de um bom relacionamento

    estabelecido naquele momento. Porm, alm dos moradores terem sido bastante receptivos

    conosco, o estabelecimento de uma boa relao com Sr. Jos Reinaldo facilitou meu contato

    com muitas pessoas depois. Ele era um dos indivduos-chave (FOOTE-WHYTE, 1976), uma

    espcie de porta-voz, detentor da autoridade de reconstituir a histria da localidade.Reconhecido e respeitado pelos outros membros do povoado por ser um elo de ligao com o

    passado, que constantemente evocado para legitimar o direito ao territrio.

    Depois do dia citado, retornei ao povoado em outros dois finais de semana

    (01/04/2007 e 08/04/2007) para observar as respectivas etapas do festejo, a retirada e

    levantamento do mastro e o baile danante. Conheci mais pessoas e fiquei sabendo quem

    eram os envolvidos nas lutas pelo territrio. Percebi que o festejo marcado por relaes de

    reciprocidade entre os moradores do Taim e outros povoados. Escutei tambm histrias sobreSo Benedito, relatadas pelos devotos, como para exaltar o poder milagreiro do santo.

    O fato de eu estar fotografando durante o festejo, possibilitou conhecer vrias

    pessoas, dos velhos s crianas, e perceber algumas relaes e valores atravs das fotos que,

    ultrapassada a timidez, eles me pediam para tirar. Primeiro as crianas: tira uma foto da

    gente, deixa eu ver; depois os jovens e adultos: tira uma foto do meu barquinho, tira uma

    foto de... que ela est doente, tira uma foto com o pai do lado de So Raimundo, que eu

    vou herdar o festejo quando ele faltar, tira uma foto ao lado de So Benedito. Logo, a

    fotografia se mostrou como uma forma de firmar contatos, estabelecer relaes de confiana,

    ganhar direito de entrada (no povoado) (WACQUANT, 2006, p.25).

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    Sobre essa tcnica Castro e Marin (2004, p.24-25) falam o seguinte:

    A fotografia representa de imediato um contato com crianas, com os jovens eidosos. Sempre fica a dvida sobre o que eles falam por detrs do registro de seusgestos ou justamente dos prprios gestos, de seus momentos, de suas atitudes. ... O

    desafio de entender o discurso da fotografia. As fotos so registros do tempo, docotidiano, das prticas sociais dos grupos, de famlias e da comunidade; so registrodos velhos, dos lugares que vo sendo descobertos, dos valores cujo sentido nemsempre expresso verbalmente.

    A fotografia possibilitou o contato com algumas famlias do Taim, assim como se

    tornou uma desculpa para eu estar em determinados espaos da famlia e do grupo, de

    festinhas na escola at projetos de capacitao comunitrios. Nessas ocasies, conheci pessoas

    que posteriormente se tornaram meus interlocutores. A minha aproximao com membros do

    grupo que no fossem representantes comunitrios, uma vez que com essas pessoas eu jhavia estabelecido contato e precisava ouvir outras vozes, deu-se a partir das mulheres que,

    nas ocasies citadas, pediam para eu fotografar seus filhos. Assim, pude adentrar em alguns

    ambientes familiares sem causar tanto estranhamento e estabelecer uma relao que, no

    mnimo, resultou em empatia.

    A participao nos eventos comunitrios, alm de mediar o contato com pessoas

    do grupo tambm se constituiu em um campo de observao em que a violncia inerente ao

    ato de transformar algum ou algo em objeto de curiosidade parece menor. Muitasinformaes prvias foram coletadas nessas ocasies, as quais me ajudaram a perceber que eu

    poderia reconstituir a histria do grupo a partir das memrias pessoais e coletivas. Uma vez

    que as histrias podem ser lembradas ou reconstrudas de maneira pessoal, o indivduo tende a

    enfatizar ou obscurecer fatos ao rememor-los. Todavia, os fatos no so lembrados em um

    vcuo, a substncia social que lhes d sentido, as datas festivas, os eventos polticos,

    religiosos, familiares e at os fatos inslitos, como exemplificou Chau (1994) em um dilogo

    com Bosi (1994).

    Ao citar Bosi (1994), evidencio que trabalho com a matria da memria entendida

    enquanto fenmeno social ou como definiu Halbwachs (1990) quadros sociais da memria.

    Nessa linha de pesquisa, as relaes a serem determinadas j no ficaro adstritas ao mundo

    da pessoa (relaes entre o corpo e o esprito, por exemplo), mas perseguiro a realidade

    interpessoal das instituies sociais (BOSI, p. 54). A lembrana vista enquanto

    reconstruo do passado com a ajuda de dados do presente, cujos relatos, confidncias,

    depoimentos dos outros corroboram essa construo (HALBWACHS, 1990).

    A partir da utilizao da histria oral, como alguns denominam essa tcnica,

    objetivei reunir informaes sobre a memria do grupo. Partindo dessa compreenso, recorri

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    mais uma vez a Halbwachs (1990) no seu entendimento de que, ao forjar a sua memria

    pessoal com a ajuda de outros membros do grupo, o indivduo ajuda a estruturar a memria

    grupal.

    Alm disso, segundo Michael Pollak (1989), a memria para Halbwachs teria a

    mesma funo que para Durkheim, o reforo da coeso social. No entanto, ao contrrio deste

    que fundamenta a coeso na coero, aquele acentua que as bases da coeso social estariam

    aliceradas na adeso afetiva ao grupo, no que utiliza o termo comunidade afetiva.

    Alguns estudiosos criticam a utilizao da histria oral como fonte histrica por

    entenderem que esta sofre diversas distores, dentre outras, causadas por fatores como a

    tendenciosidade e fabulao da memria e a influncia do entrevistador (FRISCH;

    HAMILTON; THOMSON, 1998). Acreditam, portanto, que o trabalho com a histria oral aosofrer influncia de dados subjetivos, foge neutralidade e objetividade exigidas pela cincia.

    Os defensores dos argumentos citados esquecem que a histria oficial est repleta,

    em toda fonte escrita, de documentos comprometidos com os valores de outros, de dominao

    e poder (SOUZA, 2007). Tambm abstraem de suas consideraes a preocupao com a

    precauo metodolgica que perpassa o tratamento da informao oral, assim como reflexes

    que subjazem a relao estabelecida entre o informante e o entrevistador (LOZANO, !998).

    Assim como as informaes obtidas com a utilizao de outras tcnicas passam por umprocesso de refinamento, reflexo, anlise, o mesmo acontece com aquelas obtidas atravs da

    histria oral.

    Outra crtica a esse mtodo deve-se aos estudiosos que, ao utilizarem a histria

    oral, buscavam descobrir o que realmente aconteceu, desconsiderando aspectos como a

    multiplicidade de verses e as razes que levam os indivduos a construir suas memrias de

    determinada maneira. Atualmente, diversos pesquisadores trabalham com a concepo de que

    o importante no a busca de uma verso nica, fixa e recupervel da histria, mas descobrirporque os interlocutores enfatizam ou omitem determinados acontecimentos (FRISCH;

    HAMILTON; THOMSON, 1998).

    Para dar conta da realidade social que me propus analisar somente a coleta de

    memrias no bastaria. Por isso, mobilizei outras tcnicas que, no decorrer da construo do

    objeto, apresentaram-se pertinentes. Para obter dados referentes ao ponto de vista e interesses

    do Governo do Estado do Maranho e das empresas privadas envolvidas na disputa pelo

    territrio, recorri a documentos oficiais do Estado (instncias municipal, estadual e federal),

    fontes que retratam a forma como essas instncias classificam e vem as populaes locais.

    Tambm consultei sites de movimentos sociais e jornais virtuais.

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    Basei-me ainda na observao da situao estudada, a qual se realizou em

    momentos e ocasies diversas (algumas j mencionadas neste trabalho) atravs de visitas ao

    povoado Taim e a aos povoados Limoeiro, Rio dos Cachorros e Porto Grande. Sendo que,

    como o Taim configurou-se como o local de estudo propriamente dito, as visitas ali foram

    mais prolongadas e intensas. Busquei, nessas ocasies, me envolver com as atividades

    desenvolvidas no povoado para, assim, ir-me familiarizando com as teias de significado que

    regem a vida do grupo, aprender a viver como eles sendo de outro lugar e tendo uma viso de

    mundo prpria (GEERTZ, 2001).

    No processo de coleta de informaes, apresentaram-se como meus interlocutores

    os seguintes moradores do Taim: Alberto Cantanhede Lopes, 46 anos, na poca era presidente

    da Unio de Moradores do Taim; Aurora Moraes Mendes, 53 anos, lavradora; ClaudiaBarbosa da Silva, 30 anos, lavradora; Flor de Maria Santana Baldez, 74 anos, lavradora;

    Inaldo de Moraes, 46 anos, pescador; Jaldemir Ramos Mesquita, lavrador; Jaldenilson Ramos

    Mesquita, 32 anos, lavrador; Jos Reinaldo Moraes, 48 anos, lavrador; Maria da Conceio

    Moraes, 56 anos, lavradora; Maria Lcia Ramos Mesquita, 35 anos, lavradora; Maria da

    Purificao Cruz, 68 anos, lavradora; Maria Paula, 55 anos, lavradora; Rodrigo das Chagas

    Moreira, 65, pescador; Rosana Mesquita, 29 anos, lavradora; Waldemir Mesquita dos Santos,

    56 anos, lavrador; Valdimiro Morais, 77 anos, lavrador. No povoado Limoeiro entrevisteiLeonel E. Mesquita, 81 anos, lavrador. Em relao s identificaes profissionais, aqui

    mencionadas, registro a maneira como os interlocutores se autodenominam, no entanto, pude

    constatar em campo que suas ocupaes no se restringem a apenas a atividade mencionada, a

    qual o complemento de outras atividades extrativistas ou at de servios assalariados (nesse

    ltimo caso bem poucos). Com exceo da entrevista realizada com Jaldemir Ramos que

    ocorreu no Centro Histrico de So Lus, no ano de 2007; e a entrevista com Sr. Leonel que

    foi realizada no povoado Limoeiro; as demais, foram realizadas no Taim, entre os anos de2007 a fevereiro de 2009. Tambm me apropriei de entrevista realizada com Sr. Z Reinaldo

    no ano de 2006, durante pesquisa para o INRC.

    A escolha dos interlocutores deu-se da seguinte forma: primeiro, tentei entrevistar

    as pessoas mais velhas para reconstituir a histria do povoado a partir daqueles que

    localmente eram reconhecidos como os portadores da memria coletiva: Jos Reinaldo

    Moraes, Maria da Conceio, Maria da Purificao Cruz e Valdimiro Moraes. O primeiro

    morador com quem conversei sobre o processo de ocupao do povoado foi Jos Reinaldo

    Moraes (conhecido como Z Reinaldo) que me apresentou aos demais interlocutores, os quais

    haviam sido apontados em conversas informais por outros moradores como pessoas com

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    quem eu deveria conversar sobre esse assunto. Posteriormente, fiz contato com o presidente

    da Unio de Moradores, na poca, Alberto Cantanhede para inform-lo sobre a pesquisa e

    entrevist-lo, o qual me apresentou para outros moradores envolvidos com a diretoria da

    Unio de Moradores como Rosana Mesquita, a qual me apresentou e acompanhou a casa de

    vrios outros moradores do povoado. Quando percebi que havia entrevistado muitas pessoas

    que estavam envolvidas direta ou indiretamente com a Unio de moradores, tentei entrevistar

    outras pessoas que possuam um contato menor com essa instituio para ouvir outras vozes.

    Este trabalho tambm foi tecido com o auxlio de outras vozes, cujos nomes das pessoas no

    esto aqui, por terem sido ouvidas em situaes informais, sem a utilizao da tcnica da

    gravao; todavia, suas informaes no foram desconsideradas.

    1.4

    Organizao do Trabalho

    Alm dessa parte introdutria, o trabalho apresenta ainda mais quatro captulos.

    No captulo 2, tento recuperar a histria da fundao do povoado a partir da memria dos

    interlocutores apontados como os guardies dessa memria. Nesse discurso memorialstico,

    os interlocutores tentam legitimar a longevidade da ocupao territorial. Para tanto, dividem o

    processo de ocupao territorial em dois momentos: um anterior existncia de seusascendentes, cujos vestgios de habitao humana naquele territrio relacionam s runas do

    igarap Tanque; e outro, a partir da chegada de trs famlias, com destaque para a famlia

    Moraes, de quem os interlocutores descendem. Para legitimar a presena antiga no territrio

    reconstroem a rvore genealgica da famlia, a qual possibilita perceber algumas formas de

    diferenciao interna no povoado. Nesse captulo ainda apresento como se do as relaes

    materiais e imateriais com o territrio. Descrevo as formas de apropriao dos espaos e

    recursos naturais e esboo algo sobre as relaes de sociabilidade e entre-ajuda desse povoadocom povoados vizinhos. No que tange ao imaterial, destaco como as runas do igarap Tanque

    so apropriadas simbolicamente atravs do imaginrio construdo a seu respeito. Fao

    referncias ainda a algumas etapas do festejo de So Benedito para mostrar outros elementos

    simblicos que ligam afetivamente os moradores do Taim ao territrio.

    No captulo 3, descrevo como conflito interno que implicou na tentativa de

    apropriao territorial acabou fortalecendo o grupo na medida em que suscitou reflexo

    acerca das formas de acesso ao territrio por pessoas de fora e levou constituio de

    entidade associativa de direito, a qual em outros momentos de defesa de direitos e na luta pelo

    territrio apresenta-se como fundamental.

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    No captulo 4, esboo uma anlise do processo de tentativa de implantao do

    plo siderrgico em So Lus, com destaque para o processo de mudana na Lei de

    Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupao do Solo de So Lus. Apresento os argumentos

    oficiais para justificar a Lei, o que remete a como o Estado (instncias municipal, estadual e

    federal) classifica pores do territrio nacional e nessa contramo fao referncia s

    motivaes e aes dos moradores do Taim para resistir ao empreendimento do plo

    siderrgico. Motivaes imbricadas por referncias s experincias vivenciadas no contato

    com as indstrias vizinhas ou s experincias de deslocamentos compulsrios vividas por

    terceiros decorrente da implantao das indstrias Alumar e Vale, na dcada de 1980. Tento

    recuperar tambm como se deu o processo de pedido de construo da Reserva Extrativista do

    Taim, os agentes envolvidos nesse processo e os elementos que colaboraram para que opovoado Taim despontasse nessa discusso e, consequentemente, se envolvesse em

    discusses voltadas para a questo ambiental. Nesse percurso, aparecem referncias acerca da

    construo da percepo sobre poluio, risco, alm de representaes sobre a Reserva

    Extrativista.

    No ltimo captulo, apresento algumas nuances referentes ao captulo anterior e

    aponto elementos para discusses futuras.

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    2 A MATERIALIDADE E IMATERIALIDADE DE UM TERRITRIO

    2.1 A Fundao do Povoado Segundo os Interlocutores

    Esta parte do trabalho se apia basicamente na histria oral, sobretudo nas

    narrativas de membros da famlia Moraes. Destaco isso porque no decorrer do trabalho de

    campo, indagao sobre a origem do povoado foram recorrentes as referncias famlia

    Moraes, principalmente ao Sr. Jos Reinaldo Moraes (conhecido como Z Reinaldo), como a

    pessoa mais capacitada para falar sobre esse assunto. Ouvi expresses como um desses

    descendentes usada para se referir queles moradores ligados diretamente, por

    consanginidade ou outra relao de parentesco, aos Moraes, assim como presenciei situaesem que determinado integrante da referida famlia era apontado como algum com quem eu

    deveria conversar para saber sobre a histria do povoado.

    Nos casos em que os interlocutores, mesmo no se considerando habilitados para

    reconstituir a histria do lugar, tentaram relatar o que sabiam sobre a origem do povoado,

    constantes foram as referncias s runas localizadas prximas ao igarap Tanque como um

    lugar associado escravido, assombrao, mistrio. At os interlocutores que diziam no

    saber sobre a origem do povoado no deixavam de aludir a uma corrente de ferro que saa deum dos quadrados das runas do igarap Tanque como a lembrana, ainda que herdada23, de

    um smbolo associado aos primeiros moradores do povoado.

    O fato de conseguirem citar smbolos que estariam, no imaginrio dos

    interlocutores, ligados ao processo de ocupao do povoado remete a uma memria coletiva

    que, apesar de suas flutuaes, apresenta marcos ou pontos invariantes, imutveis (POLLAK,

    1992). O que por si s no deslegitimaria suas narrativas, no entanto, como h o

    reconhecimento de haver no povoado pessoas que seriam descendentes dos fundadores doTaim, a elas que atribuem a competncia e a legitimidade para reconstituir a histria do

    povoado.

    Assim, vi-me conduzida aos membros da famlia Moraes, aos mais velhos, como

    j dito, detentores da autoridade de falar em nome do grupo. Como Sr. Z Reinaldo havia sido

    o mais indicado para conversar e eu j havia estabelecido uma boa relao com ele, resolvi

    comear a coletar informaes sobre o processo de ocupao do povoado com esse senhor,

    23Acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade qual a pessoa se sente pertencer, dos quais ela nonecessariamente participou, mas que, no imaginrio, tomaram uma grande dimenso a ponto de no fim dascontas ser quase impossvel saber se participou ou no (POLLAK, 1992).

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    mas pensava em, posteriormente, conversar separadamente com outros membros da famlia,

    como sua irm (D. Maria da Conceio), Sr. Valdimiro (primo do pai de Sr. Z Reinaldo e

    mais velho do que ele) e D. Maria da Purificao (conhecida como Mariazinha, tambm

    apontada como uma das descendentes habilitada para falar). Nas vezes em que a conversa

    girou em torno do processo de ocupao do territrio, o que era para ser uma entrevista com

    apenas uma pessoa se transformava em uma entrevista de grupo, j que Sr. Z Reinaldo

    buscava apoio em D. Maria da Conceio para certificar-se ou completar a memria que,

    antes de ser do povoado, era da famlia Moraes. Assim, houve ocasies em que comevamos

    a conversa na casa de Sr. Z Reinaldo e terminvamos na casa de D. Maria, rodeados de

    filhos, netos, parentes e vizinhos. Certa vez, por coincidncia, no momento da entrevista, Sr.

    Valdimiro passava e logo foi chamado para confirmar ou refutar uma informao sobre a qualestavam em dvida. Outro que contribuiu tambm para reconstituir a histria da origem do

    povoado foi Sr. Inaldo (primo de Sr. Z Reinaldo).

    Situaes como a mencionada demonstram a importncia dos testemunhos para a

    formao e permanncia da memria, cuja partilha das lembranas pode evitar a sua perda. E,

    por conseguinte, sublinham que a memria (tanto a individual quanto a coletiva) alm de ser

    um fenmeno construdo, forjada na confrontao com outras memrias (HALBWACHS,

    1990).Dessa forma, na tentativa de valorizar a fala dos interlocutores sem, contudo,

    deixar de lado o rigor cientfico, destaco os pontos imutveis das narrativas, aqueles que esto

    solidificados na memria de tal forma que, por mais que a narrativa apresente elementos

    novos, permanecem (POLLAK, 1992). Sob esse enfoque, tambm merecem destaque os

    atores e processos que esto imbricados no trabalho de constituio e de formalizao das

    memrias (POLLAK, 1989, p. 4).

    O que se pode inferir dos relatos sobre o processo de ocupao do povoado Taim, que h destaque para dois momentos que reconhecem como de ocupao efetiva e que

    nomeiam segundo a ordenao temporal em que se deram. Descrevem como povoamentoo

    momento anterior presena de seus ancestrais no territrio e como repovoamentoa ocasio

    em que se deu a instalao no povoado de pescadores, vindos do interior do Maranho. Esses

    pescadores teriam dado origem linhagem da qual descendem.

    O processo de povoamento narrado como a memria herdadados avs e refere-

    se presena humana de negros de origem africana e de ndios Tupinamb. No h consenso

    sobre quem habitou primeiro o territrio ou se houve uma coexistncia, mas associam o nome

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    atual do povoado, Taim, a essa histria. Tambm destacam a existncia de religiosos da igreja

    catlica:

    Taim uma comunidade descendente de quilombolas e descendentes de indgenas.

    A, quando ela foi repovoada, existia essas pessoas ao redor da comunidade quecontavam a histria de como nasceu Taim [...].Aqui ns temos vestgios. Ali, ondeexiste um brejo, teria uma senzala dos negros. Ento, os negros que vinham, queeram trazidos pra c, eram os tainos, escravos tainos, extintos na frica. J umpovo extinto na frica. Esses negros eram transportados pra c, pra trabalhar nasfbricas. Ana Jansen. Como aqui teria vestgios, segundo a lenda da comunidade,que tinha dinheiro aqui enterrado no brejo, deixado pelos brancos. Inclusive muitaspessoas vieram fazer pesquisa, pra ver se conseguiam arrancar dinheiro. Vinham noite, se arrancavam a gente no sabe... A, ficou um rio e tal. Conta-se que tinhamuitas pedras preciosas... Ita significa pedras preciosas e Taim os povos extintos[...].Mediante a histria que tinha sido aqui, com os que ainda se encontravam nessaredondeza descendentes ficou o nome Itaino. Ita pedra preciosa e taino. Era,seria Itainos, mas s Taim. Esta a origem do Taim (Sr.Jos Reinaldo Moraes,

    entrevista realizada em 06/07/2006).Eu me lembro dessa histria. Vov contava assim: quando aqui morava os frades,que hoje os seminaristas e que trabalhavam com igreja, era os frades, que eracompanhia dos padres, era mais aqui era de padre e os frades. A quando teve aindependncia, que terminou os escravos a eles foram embora. A os frades, que alenda daqui dinheiro, ouro. Ouro e dinheiro que tem enterrado, que os fradesdeixaram enterrado. A que vm esses pescadores de Alcntara... (D. Maria daConceio, entrevista realizada em 18/06/2008).

    Desses relatos possvel destacar alguns elementos para anlise e, inclusive,

    coligi-los com outras informaes. Por exemplo, relatos referentes presena indgena noterritrio no so exclusividade dos moradores do Taim. Otoni (2006), em uma pesquisa

    realizada na Vila Maranho24, povoado vizinho ao Taim, tambm recolheu informaes dos

    moradores desse povoado que davam conta de que, no apenas a Vila Maranho, mas toda a

    regio Itaqui-Bacanga fora, at o sculo XVII, composta por aldeamentos de ndios

    Tupinamb. A etimologia da palavra Ita, citada como componente do nome do povoado Taim

    de origem Tupinamb e consta no Dicionrio da Lngua Geral do Brasil25com o significado

    de pedra, ferro. Logo, o nome do povoado tanto pode estar relacionado ao imaginrio que

    envolve a histria da sua fundao, quanto prpria formao geolgica do relevo, que rico

    em pedras.

    Contudo, no se pode ignorar a contribuio de outros atores na organizao ou,

    at mesmo reestruturao dessa memria, pois, nos relatos, tambm h aluso ida ao

    territrio de pessoas que teriam investigado a origem do povoado. Entretanto, no sabem dizer

    24A partir da percepo dos moradores da Vila Maranho, o citado autor investigou a relao entre os grandesprojetos econmicos e a qualidade de vida das comunidades impactadas, positivamente ou negativamente, por

    esses projetos.25Segundo Frei Francisco de Nossa Senhora dos Prazeres (1891, p. 186), que copilou as palavras para compor oreferido dicionrio, a lngua da nao Tupinamb, antigamente, era cultivada pela maior parte das naesbraslicas, e por isso os portuguezeslhe deram o nome de lngua geral...

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    reestruturao da memria em funo de preocupaes recentes como a ameaa de perda

    territorial.

    Alm disso, no se pode deixar de registrar que os atuais moradores do povoado,

    ao catalogarem e conservarem vestgios de um passado remoto, prestam um enorme servio

    preservao do patrimnio arqueolgico e histrico da Ilha do Maranho pois garantem as

    condies para que estudos sejam feitos e permitam recuperar os vrios momentos da

    presena humana nessa regio.

    O segundo momento de ocupao territorial, que denominam de repovoamento,

    marcado pela vinda de trs famlias de pescadores para o povoado: os Ribeiro, os Cruz e os

    Moraes. Somente as duas ltimas famlias teriam fixado residncia no Taim e a famlia

    Moraes a que possui maior nmero de descendentes ainda residindo no povoado.Observando os relatos dos moradores, possvel inferir que a vinda para o territrio estaria

    relacionada piscosidade do rio e a fixao na localidade, percepo desta apresentar uma

    significativavariedade de recursos naturais:

    O nome anterior daqui era Laranjal. A, cientificamente mudou de Laranjal paraTaim. A famlia de Moraes morava em Alcntara. A vieram pescar nesse rio daqui.Como deu sede, saltaram pra apanhar gua. Viram um brejo, aquele vestgio bonito,um grande laranjal e se arrancharam. Ento foram buscar famlia e da comeou orepovoamento de Taim. Como chegaram e encontraram muita laranja, puseram onome de Laranjal (Sr.Jos Reinaldo Moraes, entrevista realizada em 18/06/2008).

    Ah, Salom26 me contava tudinho. Contava quantas pessoas vieram de l, doMunim, que esse pessoal no eram daqui. [...] A primeira vez que eles vieram, elesvieram um pedao. Eles no andaram muito, eles vieram s pegar uma gua. A asegunda vez que eles... que eles olharam o mato. A que eles se engraaram. Notinha ningum. Uma era Moraes, a outra era Cruz, e a outra era Ribeiro... Dessaarrebatada vieram trs famlias, porque o rio daqui, eles souberam notcia de quetinha muito peixe. Imagine nessa poca que pra todo lado tinha muito peixe. Elesvieram pra c pescar... (Sr.Inaldo, entrevista realizada em 18/06/2008).

    A que eles vieram pescar, viram o buritizeiro. No sei se existe algum ainda a, noera, meu padrinho, no existe mais, no ? Tinha o buritizeiro, a que eles vierampescar e viram. Aqui no tinha mais ningum, tinha s mesmo a estrutura deles (D.Maria da Conceio, entrevista realizada em 18/06/2008).

    Entre os interlocutores, no h consenso quanto ao lugar de onde vieram as

    famlias. Sr. Z Reinaldo refere-se a Alcntara, j Sr. Inaldo explica que vieram de Munim.

    No entanto, todos os relatos destacam que se tratavam de pescadores e relacionam o nome

    antigo do Povoado Laranjal incidncia de determinada vegetao. Nome que depois teria

    sido modificado para Taim em funo dos fatos, acima referidos, relacionados aos supostos

    primeiros moradores do povoado.

    26Tia-av de Sr. Inaldo.

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    Constitui-se ainda como elemento marcante nas falas referentes ocupao do

    territrio, alm da nfase dada s runas do igarap Tanque, smbolo dos primeiros moradores,

    que ser explorado em tpico especfico; a genealogia da famlia Moraes, emblema da

    ancestralidade que marca, como j ressaltado, o repovoamento do Taim e registra a

    longevidade da ocupao. Apesar de citarem a vinda de trs famlias para a localidade, s h o

    registro na memria da permanncia no povoado da famlia Moraese Cruz, sendo a famlia

    Moraes em maior quantidade,a qual se encarrega, via memria, de difundir a histria como

    fundadora do Taim. A descrio oral recupera as relaes de parentesco e apresenta elementos

    para se entender, inclusive, as relaes atuais no Taim e deste com outros povoados. Para

    alm disso, ao descreverem a genealogia da famlia, no s reforam o argumento de antiga

    ocupao e, portanto, sustentam o direito ao territrio baseado na longevidade da ocupao,como tentam deslegitimar o discurso do Governo do Estado do Maranho que no reconhece

    a antiguidade da ocupao territorial.

    As lembranas dos interlocutores registram que esto na sexta gerao de

    descendentes dos Moraes (no levam em considerao nesse clculo os seus prprios filhos

    que constituiriam uma stima gerao). A famlia Moraes, como j dito, se autodefine

    fundadora do povoado, mas tambm apontada pelos outros como tal. A relao de

    descendentes comea pela segunda gerao, j que no sabem os nomes daqueles que deramorigem primeira gerao, apesar de saberem as famlias as quais pertenciam, assim como

    sabem muito poucoacerca da vida dos seus ancestrais antes de chegarem ao Taim.

    A listagem dos ancestrais, apesar das falhas da memria e mesmo de algumas

    lacunas, comea com o casamento trocado entre os pares de irmos Leonardo (chamado de

    Lunardo) e Lisano com as tambm irms Josefa e Virgnia, sendo que os pares de irmos

    eram primos das irms. H nesse caso relaes matrimoniais marcadas pela endogamia, isto ,

    casamento dentro da famlia, com a particularidade de que as relaes entre os pares de casaisforam marcadas tambm pela troca de mulheres, de forma que Lisano teria tido filho(a)s tanto

    com a sua esposa como com a sua cunhada e Leonardo idem, gerando assim descendentes

    meio-irmo()s-primo(a)s (vide descrio da genealogia no final desta seo). Ressaltam

    ainda a existncia de uma terceira mulher que residia no povoado Limoeiro que tambm teria

    gerado filhos dos dois irmos. Enumeram os filhos que recordam descender de Lisano (vide

    quadro 3) e um filho que seria descendente de Josefa com outro parceiro (vide quadro 4). Por

    conseguinte, a descendncia dos Moraes tanto se deu por parte de pai quanto por parte de

    me, ou pelos dois, o que leva a um grupo de filiao cogntica, pois todos so descendentes

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    de um antepassado comum, seja pela descendncia passada pela linha masculina, seja pela

    feminina.

    Na genealogia da famlia Moraes h destaque para alguns membros da famlia

    enquanto outros so obscurecidos27, por exemplo, os irmos Dionsio e Marciano (vide

    quadro 4) so lembrados para fazer referncia ao que, no entender dos interlocutores,

    constituram-se em relaes matrimoniais com membros de outra famlia que no a Moraes.

    Os referidos irmos teriam contrado matrimnio com as irms Ilda e Pedrolina, pertencentes

    famlia Cruz. Salom tambm teria contrado matrimnio com um Cruz. Portanto, na viso

    do grupo, relaes exogmicas s teriam se dado a partir da terceira gerao, embora relaes

    endogmicas continuassem nas geraes sucessivas.28

    Um dos membros mais lembrados Dionsio Adrnico Moraes (chamado deDuduca), no somente por ser av dos interlocutores, mas, sobretudo, por ter assumido uma

    posio social de mediador de conflitos e conselheiro, que opinava no s no mbito da vida

    pblica do grupo, mas tambm na vida privada.

    Ningum fazia nada sem vir pedir opinio pra ele [Dionsio]. Quando ele existia,aqui no nosso Taim brigavam, mas, se brigavam, no outro dia ele mandava chamaraquelas pessoas. A, eles vinham, vinham conversar, a ele ia dizer o certo pra eles.Quando eles saam da, j eram amigos (D. Maria da Conceio, entrevista realizadaem 18/06/2008).

    Narrativas que denotam respeito aos mais velhos e que, no caso dos reconhecidos

    descendentes, revelam certa hierarquia que conduz ao pedido de opinio sobre determinado

    assunto ou comunicao quanto ao uso de certo recurso natural fazem parte das lembranas

    do grupo. Assim como, se configura em demonstrao de considerao o pedido de bno

    queles com quem se mantm uma relao de parentesco ou compadrio: pais, tio(a)s,

    padrinhos, madrinhas, avs, avs. Ainda hoje, resulta em imediata repreenso dos pais, o

    esquecimento de tal cumprimento pelos filhos.

    Quando da construo do organograma referente s relaes de parentesco do

    povoado, foi possvel perceber um pouco mais sobre a diferenciao interna que h entre

    aqueles que nasceram no povoado, designados filhos do Taim, e aqueles que no nasceram

    ali, denominados de fora. Esta diferenciao se torna bastante evidente quando se refere

    queles que contraram matrimnio com um filho do Taim cuja condio de no ter nascido

    no povoado ressaltada. Logo, a pessoa de fora, mesmo contraindo matrimnio com um

    27Observar no organograma que nem todos os pares matrimoniais dos descendentes de Lunardo e Lisano e deVirgnia e Josefa so mencionados.28Por exemplo, relaes matrimoniais entre os primos Balbino e Guilhermina (vide quadro 1 e 4) e Jos RibamarRamos e Geralda (vide quadro 1 e 4).

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    filho do Taim, ou melhor, com algum de dentro, vai carregar para sempre o estigma de

    ser de fora, sinal que ser menos lembrado e, at mesmo, suavizado com expresses como

    mas ele j vive aqui h muito tempo, se a pessoa for bem vista pelos moradores do

    povoado, ou ser evidenciado no caso de a pessoa praticar alguma ao reprovada pelo grupo.

    E, neste caso, tanto os nascidos quanto os no nascidos no Taim se apropriaro do argumento

    que enfatiza o ser de fora para exprimir que reprovam a pessoa. Esta relao de

    diferenciao fica mais tensa quando o que est em jogo so as terras adquiridas mediante o

    casamento de uma pessoa j estabelecida (nascida ou no no povoado) com uma pessoa de

    fora (assunto abordado no captulo 3).

    Para ser bem visto no povoado, a pessoa dever se mostrar disposta a contribuir,

    seja financeiramente, seja com seu trabalho, em atividades em prol do bem estar do grupo.Por exemplo, ajudar na organizao dos festejos, participar de mutires para arrecadar

    alimentos para um morador em dificuldades, ou ajudar na construo de casa para recm-

    casados, etc. Por outro lado, pessoas que costumam se envolver em brigas, que resultem em

    agresso fsica a um outro morador no so bem vistas.

    Em algumas situaes, a diferenciao da pessoa ser feita em relao a seus pais.

    Por exemplo, no tocante memria do grupo, quando mencionei a Sr. Z Reinaldo que havia

    conversado com outro interlocutor sobre a histria do povoado, ele de imediato destacou queaquela pessoa tinha um grande conhecimento sobre outros assuntos concernentes ao grupo,

    entretanto, sobre a histria do povoado no podia saber muito porque seus pais no eram

    filhos do Taim.

    O parentesco tem uma grande importncia no povoado Taim no s porque

    possibilita o direito terra, mas tambm porque as relaes matrimoniais asseguram a

    construo de uma rede de reciprocidade entre as famlias dos noivos que se concretiza em

    atividades conjuntas nas roas, nas pescarias, nos festejos etc. Estas relaes ultrapassam asfronteiras geogrficas do Taim, se estendendo para outros povoados vizinhos.

    Na genealogia da famlia Moraes, reproduzida nos quadros 1, 2, 3, 4 e 5, tentei

    reconstituir o quadro geracional dos interlocutores a partir da 2 gerao. Contrariamente

    memria dopovoamentoque se apresenta como memria herdada de um tempo que nem os

    ascendentes dos interlocutores viveram,as lembranas que dizem respeito ao repovoamento

    so narradas com mais conhecimento de causa, uma vez que afirmam ter tido contato com

    muitos dos membros citados na genealogia. Inclusive com ascendentes da terceira gerao,

    caso dos avs de Sr. Z Reinaldo e D. Maria da Conceio.

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