Estudo sobre o casamento civil - Universidade …O casamento civil e seus adversarios, por Augusto...

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ESTUDO

SOBRE

DISSERTAÇÃO ACADEMICA QUE

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CANDIDATO

DII. MANUEL DE AZLVEI!O AIAUJO L GAIA

COIhIBRA IPPKENSA ACADEAIICA

1881

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IIE. ANTOKIO BERNARDIS!! IiE YEIUES DECANO DA FACULDADE DE TH&OLOQIA,

PBÓToNOTABIO APOSTOLICO,

PRELADO DOMESTICO DE SUA SANCTIDADE,

COnTEQO CAPITULAR NA S g CATHEDRAL DE COIMBRA,

PBOFESSOB DE SCIENCIAS ECCLESIASTICAS

NO SEMINARIO EPISCOPAL,

ETC. ETC. EFC.

Off.

COMO PEKUOR DE IFFECTUOSI E DEDICIDi\ G R A T I D ~ O

O discipulo, admirador e amigo

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PREFACIO

Ha tres seculos que a Egreja lucta para rehaver a sua incontestavel e benefica intluencia na constituição da familia; c lia tres scculos que os represcntanies do poder temporal, valcndo-se já das negações do protes- tanlismo, já das arguciosas distincções dos juristas, vão invadindo e conqriislando palmo a palrno o terreno em liiigio.

A matcria do matrimonio 6 complexa c envolve muitas questões difficilimas. Estudar analyticamentc as propriedades essenciacs do vinculo conjugal, isto é, a sua unidadc e perpeliiidatle; jiistificar o poder que cotnpetc á Egreja de estabelecer impcdimeiilos á uiiibo. matrimonial, e o de dispensar n'algui~s d'esses impedi- meutos; delimitar a csphera de acção do Estado, de- terminando até que ponto o casamento cahe sob a ju- risdiçção do poder civil; seriani assumptos bern digoos das meditações do theologo e do publicista.

Mas, reconhecendo a summa importancia e trans- cendencia dos menci~nados problemas, escolhi para objecto da minha dissertação de concurso-o casamento civil. Os motivos d'csta preferencia s& faceis de adi- vinliar para quem se recorda das vivissimas discussões, que suscitou cntre nós nquella innovação, trsnsplan-

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VIU

tada da legislação franceza de 4792 para quasi todos os codigos da Europa.

O casamento civil foi enthusiasticamente saudado por uns cònio-euma das grandes conquistas das mo- demas liberdades politicas ... o maior triumpho sobre a legislação matrimonial dos ultimos seculos I > . Outros quizeram negar ao Estado qualquer interferencia no matrimonio considerado como condição social; e O zêlo, por ventura exagerado, pela integridade da fé julgou vêr uma usurpação em qualquer tentativa de reforma, tendente a re ular ou garantir extriisecamente a or- ganisaçb da ! amilia.

Não vae longe o tempo em que o nosso primeiro historiador apodava os adversarios do casamento civ. de-modernos Vandalos e Llunos, juriscoasultos e pu- blicistas de sachristia, Torquemadas liliputianos, e ou- tras amabilidades; ao mesmo tempo que denunciava ao publico o sr. Visconde de Seabra como transfuga das bandeiras da liberdade para os - earraiaes da Inqui- siçáo 3 .

A estes excessos de linguagem correspondiam no outro campo asperrimas accusações contra o projecto da nova legislação mati-imonial, em haticamente mal- sinado de anti-catliolico, anti-mora r , anti-social, etc. Um noiavel escriptor biachareiise, aliás benemerito do catholicismo, cliegou até a asseverar que a lei do sa- cramento matrimonial obrigava a todos os bnzens sem excepção, e que portanto, para os que estão fóra da Egreja, não póde haver união legitima. Era professar uma doutrina ultra-catholica ...

A polemica dilatou-se profusamente em jornaes e

Sr. Dias Ferreira- Codigo civil annotado, vol. 3."

brochuras, nem sempre isemptas de affirmaçóes ineptas ou inexactas, e frequentes vezes inspiradas por um sentimento de facciosa parcialidade que, em vez de adduzir argumentos, se comprazia cm recorrer á de- clamação, ao insulto, á ironia e ao doésto. E se taes processos são desculpaveis no momento da lucta, é to- davia certo que pouca ou nenhuma luz conseguem der- ramar sobre o assumpto.

A' obsequiosidade d'um amigo devi o ser-me facultada a leitura da preciosa collecçáo, que o sr. J. Marlins de Carvalho possue de quasi todas as obras, que em Portugal foram publicadas, quando se discutia a lei do casamento civil ? Li com .attenção todas essas

O erudito e laborioso thesoui-eiro da Imprensa da Univer- sidade, o si-. A. M. Seabra de Albuquerque.

2 Indicarei aqui esses escriptos e docnmentos, pela ordem de sua rerrpectiva data:

Carta enviada pelo Duque de Saldanha ao presidente do conse- lho de ministros, respeito ao casamento civil. (Foi publicada no- Diario Mercantil, com data de Lisboa 7 de novembro de 1865).

Representação, que varios cidadãos do 1.0 districto da camara ecclesiastics da Maia, do bispado do Porto, dirigiram 8. Oamara doli srs. Deputados, contra o casamento civil. (Foi publicada no Comercio do Porto, com datade Leça da Palmeira 14 de novem- bro de 1865).

Carta de Patritizls ao Szuhor Arcebispo Primaz sobre o casa- mento civil (Braga 12 de dezembro de 1865).

Considerafles sobre o projecto do casamento civil, por J. J. d'Almeida Braga (impressas no Porto, sem data, mas posterior- mente ii carta do Duque de Saltlanha, a qual transcreve).

Algumas observações sobre o casamento civil pelo Marquez de Lavradio (Lisboa, 1865).

Brado catholico contra o casamento civil. Opusculo offerecido ao nobre Duque de Saldanha (Porto, 1865).

Contra a carta do ar. Duque de Baldaulia sobre o casamento civil, por J. Bonança (Lisboa, 1865).

Representação do E X . ~ " e Sr. Arcebispo da Bahia, conde de Santa Cruz, dirigida ás camaras legislativas do Imperio

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brochuras e encontrei uma tal diversidade e antago- riismo de razões entre os que se pronunciavam a favor ou cmtra aquella lei, que me propuz determinar pre- viamente a causa de tão profundo desaccordo.

A questão.do casamento civil foi tratada entre nós por homens de reconhecido merito; mas de parte a parte se commetteu a imprevidencia de não assentar os principias communs, que tornariam possivel uma so- lução. A esta primeira causa accresceu uma outra não menos importante; foi a falta dc rigor e clareza, com que confundiram os principios dogmaticos com os pro-

do Brrzil Bcerca da proposta do Governo sobre o casamento ci- vil. (E' datada da Baliia em 10 demaio de 1859, mas foi impressa em Lisboa em 1865, e accrescentada com uma Breve introducg80 e observações finaes, tendentes a accomodal-a 6 discussu que se s.uscitara no nosso paiz).

O O A ~ A ~ E N T O arvir,. Resposta ao sr. Alexandre Herculano por D. Antonio da Costa (Lisboa, 1865).

Duas palavras sobre o casamento pelo redactor do codigo ci- ri1 (Lisboa 1 de janeiro de 1866).

Estndos sobre o casameiito civil por occasijo do opusciilo do *ar. Visconde de Seabra uobre este assumpto, por A. Hercnlano. Primeira, segunda e terceira serie (Lisboa, 1866)

O casamento civil perante a Carta constitucional. Segnnda resposta ao sr. A. Herculano, por D. Antonio da Costa (Lisboa, 1866).

O casamento civil perante os principios. Terceira resposta no sr. A. Herculano,.por D. Antonio da Costa (Lisboa, 1866).

O casamento civil e seus adversarios, por Augusto Neves dos Santos Carneiro (Coimbra 15 de janeiro de 1866).

Algumas palavras sobre o casamento civil. Carta dirigida ao Ex.mo Sr. Alexandre Herculano, pelo academico Manuel Cardoso de Cirao (Coimbra 22 de janeiro de 1866).

Breves reflexões sobre o casamento civil, por Manuel da Cruz Pereira Coutinho (Coimbra 6 de fevereiro de 1866).

O casamento civil. Collecçáo das cartas do Sr. Viceiite Ferrer em resposta ao 8r. Visconde de Seabra, publicada (com auctorisa- çuo c10 auctor) por J . L. de Sousa (Porto, 1866).

blemas da philosophia e as controversias ácerca da le- galidade.

Os erros e desvarios dos escriptow cievem servir pelo menos de prevenção e ensino para os trabalhado- res subsequentes. E' por isso que este estudo, elabo- rado depois do periodo de maior effervescencia dos animos, espera manter-se nas regiões serenas da scien- cia, empregando para a soluçáo do probIema os pro- cessos logicos de um methodo mais rigoroso.

Comprehende este opusculo tres partes distinctas, precedidas de uma dttrodztcçüo critico-historica, na qual encontrarão logar proprio as considerações ge- raes ácerca da natureza complexa do matrimonio, do caracter religioso d'esta instituição, bem como ácerca da origem do casamento civil.

Na primeira parte proponho-me tratar da questão de principios, da questão puramente theologica, sem a qual se torna esteril, inconsistente e ~liiiiisa toda a controversia que sobre o assum to se levante. Coui effeito, é facil de vêr que, segun J' o admittirmos ou não o sacramento do matrimonio, segundo considerarmos o sacramento como idcntificado com o conlracto ou como entidades não só distinctas mas separaveis entre si, assim teremos de aoceitar a Egreja ou o Estado como arbitro da validade ou nullidade do vinculo conjugal; assim teremos de rejeitar o casamento civil ou ayuies- cer a elle.

A quesião dognzatica fica desde logo resolvida para o catholico. Negar que compete á Egreja o poder de regular a esseiicia do matrimonio, quando ella anima e ensina o contrario, seria uma absurda incoherencia, porque equivaleria a negar-lhe a inf:~ l li llilidade. Se a Egreja não conhece os limites do seu oder e jurisdic-

I; ção, como lhe acataremos a auctorida e?

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XIII

E' indubitavd que, ha quasi cem annos, os Pontifi- ces romanos, desde Pio VI a Leáo XIII, desde 28 de Maio de 1793 até 40 de Fevereiro de 1880, não ces- sam de protestar contra as leis civis, que vieram alterar a constituição religiosa da sociedade de farnilia 1. Sus- peitar sequer da justiça de taes protestos seria o mesino que pbr em duvida o magisterio infallivel da - - Egreja.

Pois a Egreia, que é luz e directora da humani- dade, nada &ri; nos ensinar ácerca do matrirno- nio? Será por ventura este um ponto de somenos im- portancia, ou ácerca do qual a humanidade não tenha cahido em funestissimos erros? Todos sabemos que não; e se o poder da Egreja se ha de medir pela sua missão, se O poder da Egreja é tão extenso uanto era i! profunda a decadencia humana, o simples om senso bastará ara nos dizer que á Egreja compete o direito e dever 8 e estatuir todas as condições necessarias para restabelecer o matrimonio na pureza de sua primitiva instituição e para o sanctificar, elevando-o até Deus.

As leis da farnilia são indubitavelmente uma parte da lei de Deus, cujo legitimo interprete é a Egreja, e não pódem, por isso, fazer excepçáo ao preceito geral -Quaenimpue alligaueritis super terranz, erunt alligata et in coe10 *. O poder de sanetificar o matrimonio seria insufficiente, se a Egreja não podesse inspeccionar se elle era contraliido dentro dos limites da ordem, da justiça e da equidade natural.

1 Pio Vi as epistola de 28 de Maio de 1793: Pio VI1 na encyclica de 17 de Fevereiro de 1809, e na constit. dogmatica de 19 de Jirlho de 1817; Pio VI11 na elacyclica de 29 de Maio de 1829; Gregorio X V I na constit. dogmatica de 15 de Agosto de 1832; Pio I X na allocuçáo de 22 de Setembro de 1852; Leáo XIII na encyclica de 10 de Fevereiro de 1880.

2 Matth. XVIII, v. 18.

Mas não bastava resolver a questão perante as crenças catliolicas; as necessidades intellectuaes do seculo presente obrigam o tlieologo a sahir para fóra do reducto inexpuçnavel da Theologia, e acceitar o combate no terreno em que lhe é offerecido; não basta affirmar a verdade; importa pulverisar tambem os ar- gumentos do erro; e foi o que tentei fazer na segunda parte d'este trabalho.

Alii considero o casamento civil em face da pl$ilo- losoplaia social, e mostrarei como as consequencias de- duzidas do estudo theologico são confirmadas pelos rectos principias do Direito publico, da Economia, da Moral, da Politica e de toda a serie das sciencias so- ciaes. Ahi analysarei o valor da liberdade de eonscien- cia e dos outros pretextos invocados para justificar a secularisaçáo absoluta da legislação matrimonial.

A sã philosophia social reconhece a summa con- veniencia d'uma auctoridade espiritual e infallivel, que . se opponha aos excessos e desvarios do poder tem o- ! ral; reconhece que a Egreja, depositaria d'esse po er espiritual e infallivel, tem o direito de condemnar as leis do Estado, quando estas se opyõem formalmente a Iei natural, á lei divina ou á ecclesiastica.

Eu bem sei que os fautores do casamento civil al- legam: não perseguimos a Egreja, apenas desejamos que ella se circumscreva á sua esphera de acção, não ultrapassando os limites da consciencia individual. Mas B exactamente esta tentativa de secularisar o Estado, isto é, de collocar toda a vida civil fóra da vida chris- tã, o que nós condemnamos com toda a energia da nossa razão, com todo o ardor da nossa fé; porque as leis civis nunca pódem dispensar o cidadão de cuq- prir os deveres impostos pela lei divina.

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XIV

Em todos os seculos tem existido entre os cultores da sciencia juridica uina seita de statolatras, que at- tribuem ao Estado o direito omriipo~ente de absorver em si todos os direitos, ainda mesmo os puramente pessoaes, domesticos e religiosos. Outr'ora invocava-se o apoio da Egreja para opprimir o cidadão, cuja per- sonalidade era aniquilada em beneficio do Estado. Hoje simula-se conceder tudo ao cidadão para oppri- mir. a Egreja; como pordm o cidadáo está solidaria- mente unido ao christáo, 6 sempre sobre o mesmo in- dividuo que pesa o jugo do Estado omnipotente.

A politica christã segue caminho diverso, e rcco- nhece uma ordem de direitos itzdividunes, de direitos exclusivameiite proprios da sociedade domestica e re- ligiosa, direitos anteriores e independentes do Estado, sobre os quaes se não estende a sua esphe~a de acção. O poder civil suppóe esses direitos, mas nXo os con- fere; o poder civil garante a protecção externa dos direitos zndividztaes, mas não Ihes communica a força interna.

Na terceira parte tratarei da questão de legalida- de. Expostos os principios que actualmente vigoram na legislação matrimonial das principaes nações da Europa, proponho-me indicar as evoluções que esta materia seguiu entre nós, até á ultima codificqáo das leis civis em 1867; a par da exposição historica, apre- sentarei a apreciação das razões especiaes, que se adduziram para introduzir no nosso Codigo o casa- mento civil.

Nem se pense que este estado é alheio ao mister do theologo, ou significa menos respeito para com as leis do Estado. Abono-me com o exemplo do Cardeal Gousset e de todos os grandes theologos moralistas

xv

hodiernos, que têem avaliado a legislação dos respe- ctivos paizes, nas suas relações com os dictames da consciencia e as leis da Egreja. Estudar criticamente as leis não é negar-lhes a força obrigatoria, embora possa succeder que, ern resultado do estudo, se a ure que a lei é iniqua, e por consequencia incapaz de igar moralmente a cailsciencia dos subditos.

r Tal foi o plano que concebi, e para cuja realisa-

ção tive de fazer longas e fastidiosas investigações, tão longas que n'ellas consummi a maior parte do tem- po que podia consagrar a este trabalho, imposto pela lei. Da estreiteza do tempo resultou que, na exposição das doutrinas, nem sempre se encontrará a ordem, rigor, coherencia, e mais coridiçoes exigidas n'um tra- balho d'esta natureza, e que eu bem desejara apresen- tar digno do fim, a que tende.

Apcnas me foi dado lancar ao papel, com a bre- vidade compat,ivel com a clareza, as notas que tomei sobre a materia, á medida qtic o seu cstudo me ia es- clarecendo o espirito; essas notas poderão servir de alguma utilidade, ao menos como apontamentos para um trabalho ulterior.

A benevola Faculdade de Theologia, a quem s% de sobejo conliecidos o limitado alcance de minhas forças e o acervo de difficuldades concomitantes d'estc genero de trabalhos, ha de sem duvida dcsculpar e corrigir os defeitos da obra.

Não terminarei sem fazer mais uma ultima adver- tencia. Dando á controversia sobre o casamento civil a solução exigida pelos principios scientifieos (apesar de religiosos) que professo, não ignoro que serei sen- tenciado por uns como eiltmontano e retrogrado, e por ventura alguem me reputará menos orthodoxo. . .

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xvt

Pouco me preoccupa uma ou outra das qualificações. A sabia corporação academica, que ha de apreciar este escripto, tem conservado a sua reputaç5o scientifica a uma altura tal que affasta d'ella as accusaçòes de qualquer dos excessos, por parte das pessoas compe- tentes e de boa fé.

Quanto aos homens de má fé, honram sempre aquelle, a quem conferem o epitheto de u . l t m n t a n o , que si nifica apenas discipulo consequente das dou- ! trinas e Jesus Christo e da sua Egreja. Ao rnagiste- rio infallivel d'esta Mãe commum humildemente sub- metto todas c cada uma das proposições do presente opusculo.

Coimbra, 20 de Março de 1881.

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INTRODUCÇÃO CRITICO-RISTORICA

É triste que em pleno seculo XIX tenhamos ainda a necessidade de demonstrar que a rehabilitação da familia se dcve á religião sancta de Jesus Christo, como egualmente se llic deve toda a verdadeira civili- sação, que assenta nas leis constilutivas da íamilia como em sua base natural.

Antes do christianismo o pae concentrava em si tyrannicameiite todos os poderes da familia. Quer na republica ideal de Platão, quer na legislação positiva de todos os povos da aiitiguidade, concedia-se ao chefe da familia uma auctoridade al~soluta e discricionaria de que elle abusava sempre; e assim, entre os roma- nos, a mulher chegou a ser equiparada a uma cousa, cujo dominio (A falta de mellior titulo) se adquiria pela posse de um anno: o iillio era como um movel, de que o pae podia dispor, usar ou abusar, alienar ou destruir, sem ter de dar contas a ninguem

O evangelho rehabilitou o marido, ordenando-lhe que amasse a mulher como a si mesmo, como Jesus

1 Gibbon-Hisloire de Ea de'cadence et chute de Fenqi1.e ro- main, CRP. XLIV,

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amou a sua Egreja 1, isto é, cumprindo todos os deve- res ara com ella, e levando a dedicação do seu amor ain d! a para além do dever. Rehabilitou opae, ensinan- do-lhe a ser providente, misericordioso e bom para com os filhos, como Deus para com as creaturas.

Na antiguidade a rnullier era uma escrava, que permanecia em poder do pae ou dos irmãos, até que passasse para o poder do marido, in manu mariti, segundo o direito romano. Para não fallar agora dos cultos obsceiios, que im unham a mulher a pros- P tituição como um dever re igioso, lembrarei sómen- te a iniquidade das leis indianas de Manu, que pres- creviam á mulher uma perpetua sujeiçáao, que se rea- lisaria na infancia sob a tutela do pae, na juventude sob a do marido, e na velhice sob a dos filhos. Por toda a parte o divorcio era concedido ao marido em detrimento da esposa.

Foi o evangelho que veiu ensinar ao mundo que havia egualdade de deveres para o marido e para a mulher 9. Foi Jesus Christo que rehabilitou a mulher adultera e peccadora, abrindo-lhe o as710 do arrepen- dimento; foi o catliolicismo que tirou a mulher da inu- tilidade e conciliou para ella o respeito publico, ras- gandc-lhe os vastos horisontes da caridade e dedica- ç ã ~ ; e a mulher, cuja missão fora desconhecida duran- te quatro mil annos, tornou-se pela caridade christã -a mãe do orphão, a serva do enfermo e do necessi- tado, e reina como soberana no irnperio inextinguivel da dôr.

Na antiguidade a exposição das creanças era al-

I Ep.8 sd ~ ~ h e s . ' ~ , vv. 25 a 31. ' Ep.@ lea ad Corinth. VII, yv. 3 a 5.

gumas vezes preceituada, muitas vezes permittida pela lei, e sempre praticada impunemente. Mas o christia- nismo, respeitando na creança o caracter sagrado do baptismo, oppoz um dique aos crimes frequentissirnos do aborto, da exposição e infanticidio.

O primeiro imperador christb, Constantino Ma- gno, que havia extinguido a tutela perpetua das mu- lheres reconhecendo que-jus tale habent unle viri, foi tambem o primeiro que promulgou um e 8 icto, pro- hibii~do o infanticidio, e determinando que com a fa- zenda ublica se prov&sse ao alimento e ~estuario dos filhos a e paes pobres.

Não é, pois, á philosophia que os povos s b de- vedores da ureza dos laços de familia; a pliiloso- phia preten f eu justificar o divorcio, a polygamia, o aborto, a exposição das creanças, a escravatura e to- das as instituições, que maculain a historia da huma- nidade; o seculo XIX viu nascer os systemas philoso- phicos de Saint-Simon, Fourier e tantos outros, que pretendem substituir o vinculo do matrimonio indisso- luvel pela promiscuidade dos sexos.

A rehabilitaçào da familia tambem se não deve ás inspirações da natureza; a prova encontramol-a evi- dente e palpavel no conceito que os povos infieis fa- zem do matrimonio. A religião de Mahomet substitue o lar domestico pelo liarem, as castas affeiçnes do christão pelo bazar immundo, em que o despotismo escolhe as victimas da sua lascivia. Os povos bar- baros, sectarios do polytheisrno, ainda Iioje consi- deram a mulher como inferior ao homem em natureza, e celebram o matrimonio como nm contracto de com- pra e venda.

Se a reliabilitação da familia se encontra exclusi-

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vamente no seio do christianismo, dmcmos procurar ahi tl causa do phenomeno; e essa causa facilmente a determinará quem attender á elevada dignidade de sacramento, com que Jesus Christo quiz restituir á primitiva pureza e divinisar a união conjugal.

Entrava nos sabios designios do Salvador o collo- car junto de cada necessidade commum da humanida- de o remedio efficaz da graça divina. E como os deve- res de miituo amor, fidelidade e protecção entre os es osos precisavam de ser roborados por um auxilio so k' rcnatural; e como esse auxilio se tornava ainda mais urgente para cumprirem o difficil encargo de edii- car e sanctificar a prole, o divino Mestre quiz circum- dar com todos os prestigios da graça divina o lar do- mestico, e instituiu o sacramento do matrinionio.

Antes de entrar na demonstração d'esta verdade dogmatica, que servirá de base áprinzeircc parte d'esta obra, convem fazer aqui algumas consideraçaes çc- raes (I) sobre os elementos incluidos no plienomeno colnplexo da un~ão conjugal, (11) sobre o caracter re- ligioso que todos os povos reconlieceram e acaiaram no niatrimonio, e (111) sobre as circurnstancias que deram origem a constituição do matrimonio como mero facto da ordcm civil.

Quasi todos os homens reconhecem que o matri- monio é uma instituição de direito natural, e sob este ponto de vista compete á pliilosopliia o determinar a sua natureza e fim.

A un ib conjugal, dependendo necessariamente do accordo de duas vontades livres e pessoaes, constitue- se e nasce por iniermedio do um co~ztracto, em que cada um dos conjuges se obriga a empJegar pela sua parte todas as condições nccessarias para uma perfei- ta communlib dc vida, bem como para a geração e completa educacã,o da prole. O contracto que não im- pozesse taes obrigações, ou em que sc estipulassein clausulas oppostas a algum d'aquelles fins, não pode- ria ser chamado um contracto ~lzatrimo~zinl.

D'aqui é facil de concluir que o matrimonio está sujeito, emquanto ao pheoomeno que o produz e ori- gitia, as condições e leis geraes que regem todo o coii- tracto. Suppõe lios contralientes a livre voiliade e o poder de cumprir as obrigações impostas. Livre von- tade, e por conseguinte o conhecimento reflectido dos encargos inherentcs á vida conjugal e da pessoa, com quem promettem cohabitar. Poder, e por conseguinte a edade, o desenvolvimento pliysico, intellectual e moral iiecessario para procrear e educar os filhos.

Mas este plienomeno de direito natural calie tam- bem sob a esphera de acçzo do direito social. Na ver- dade, pelo matrimonio entram os coiijuges n'uma nova condição social, adquirem novos direitos e contrahem obrigações que não tinham como iiidividuos isolados; ora, sempre que a liberdade liutnana é ampliada coin direitos ou limitada por deveres, ha logar e razão para que intervenlia o poder central do Eslado; não para fundamentar e crear as novas relqões, mas para as- segurar externamente os direitos e deveres dos chefes da nova familia e os de seus descendentes.

Longe de contestar ao Estado a sua legitima au- ctoridade, devemos recoiihccer que elle tem neces-

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sidade, e por isso o direito, de conhecer e terificar os casamentos dos cidadãos, impondo condições de regis- to, e até lhe assiste o direito de prohibir o matrimonio a certos cidadãos. Tanto as suas leis preceptivas como as prohibitivas obrigam em consciencia, empuanto esti- verem dentro dos limites da justiça e da missão da so- ciedade politica.

Este duplo poder compete ao Estado por dous ti- tulo~: primeiramente, como mantenedor da moral pu- blica, é necessario que o legislador estabelcça urna profunda distincção entre as garantias sociaes do filho legitimo e as do illegitimo, e uma tal disiincção não poderia ser praticamente applicavel, se faltassem os meios para verificar #um modo authentico os casa- mentos dos cidadãos. O segundo titulo é o dever de velar pela defeza e paz commum, pela saude publica, em nome das quaes pode o Estado prohibir o matri- monio aos militares, aos parentes proximos, etc I.

Ha ainda um outro aspecto da união conjugal que explica a competencia do poder civil para regular as relações de familia: a communlião de vida ent,re os con- juges importa comsigo uma comrnunidade mais ou me- nos completa de bens, e a iransmissão d'estes para os filhos. Ora o Estado tem direito de regular as condi- ções e transmissão da propriedade, ainda que a sua ingerencia não deve cliegar a ponto de substituir total- mente a vontade dos proprietarios.

Em poucas palavras: o poder social tem o direito ~roprio e legitimo de regular os effeitos cavk do matri- monio, mas não póde arrogar-se o direito de constituir

1 Vej. Jaugey. - Accord L l'dglise et 2'dtat dans le t e m p présant, na carta XII.

ou annular o vinculo conjugal; porque a missão do Estado se póde realisar plenamente pela concessão ou denegação dos effeitos civis, sem invadir a esphera da liberdade individual. O contracto matrimonial é, por sua instituição e essencia, anterior e superior á consti- tuição da sociedade politica; pertence rigorosamente ao dominio da pessoa humana, forma-se pela iniciativa e livre escolha de cada um, impõe obrigações puramente individuaes, e tende afins que seriam realisaveis, ainda mesmo que não existisse o Estado.

No matrimonio encontra-se ainda um terceiro ele- mento, o caracter religioso, iinicn garantia solida da unidade, perpetuidade e sanctidade da união conjugal. Por auctoridade propria não poderia o Estado impbr essas propriedades fundamentaes do vinculo matrimo- nial, porque aos seus olhos o matrimonio seria um mero contracto; e aos conjuges ficaria salvo sempre o direito de celebrarem um contracto liberatorio, em que pa- ctuasscm desligar-se mutuamente das obrigações an- teriormente contraliidas.

Para justificar a indissolubilidade, diz o Visconde de Bonald que i10 contracto matrimonial intervem O

' Estado, representando sempre os direitos do ausente, isto é, os dos Iillios antes de nascerem, ou os dos paes depois que deixarem de existir. Ha, por conseguinte, um compromisso de trcs vontades, que não póde ser dissolvido pelo accordo de dois, e d'este modo o viw culo matrimonial permanece indissoluvel.

Mas esta ficção juridica, apezar de engenhosa, não cquivale aum argumento. Se os conjuges não téem prole, e principalmente se a esterilidade resulta das condi- cões organicas ou pliysiologicas de um d'elles, é claro que o Estado não poderá obstar ii dissolu$ão ds vin-

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culo, em nome do interesse dos filhos; anles o interesse manifesto do Estado será permittir o divorcio, que póde occasionar uma nova união fecunda.

Supponhamos que á esterilidade da primeira união accrescia uma tão profunda antinomia de caracteres que a coliabitação dos conjuges, longe de lhes propor- cionar a felicidade e mutuo auxilio que esperavam en- contrar, se transforma em tornieilto quotidiano, em martyrio insoffrivel. Ousará alguem dizer que, em taes circumstancias, o direito natural prohibe absolutamente aos conjuges o buscarem em novas nitpcias a prolc c a felicidade que não encontram nas primeiras? Parccc que não.

E todavia o interesse social bem eiiteridido pre- screve e exige que o matrimonio seja indissoluvel quanto ao vinculo; porque a histeria, com o criterio irrecusa- vel dos factos, vem demonstrar que, admittida u n a s6 causa de divorcio, em breve adquire uma elasticidade tal que se amolda a justificar todos os pretextos, e sanccionar todos os abusos; uma vez roto o dique das paixões, uma profunda degradação moral inirade e ameaça submergir os ovos, que retiram á sociedade domestica a garantia d' a sua estabilidade.

O matrimonio, que se gera pelos laços de uma af- feição jurada como eterna, não poderia trazer aos con- juges uma felicidade plena e completa, pois que Ihes seria presente ao espirito a possibilidade e o temor d'uma futura dissolução. Possibilidade que, por outro lado, favoreceria os caprichos da ima&ina.ção, tornando perigosissimas as tentações de infidelidade, facilmeilte sul~eraveis liara os espiritos que se crêem ligados por um vitlculo insoluvel.

Por isso Deus, attendendo a que a educação phy-

sica, intellectual e moral dos individuos, isto é, todo o rogrcsso humano, dependia da estabilidade da fa- m i a , quiz por um acto positivo b sua vontade mbo- rar os conselhos do direito e e idade natural, e no

sitiva da união conjugal. B Eden estabeleceu a indissolubili adc como uma lei po-

Foi Deus quem aprcscntou ao primeiro marido a sua esposa, quem lhes fez conliecer a natureza do I q o que iarn wntrahir; assistiu ao primeiro matrimonio como testemunha, e abençoou-o como sacerdote I .

Foi scm duvida para comniemorar essa primitiva instituiçzo quc todos os povos revestiram de solemni- dsdcs religiosas o acto constituidor da fainilia, e o sa- grxani com os esplcndores e ceremonias do culto.

liallando do caracier religioso do matrimonio, não me proponho fazcr aqui a resenlia dos ritos sagrados, com que os varios povos da aniiguidade exornaram o vinculo cotijugal, a fim dc o toriiarem mais veneravel aos olhos dos contralientes. Essa facil eiudição pódc encontrar-se em qualquer obra que iracte d'este as- sumpto. Apontarei apenas um ou outro rito mais digno de attenção.

Nos extinctos imperios da America, no Mexico e Peru, os esposos prestavam seus juramentos aos pés dos sacrificadores e dos incas. O cliinez vae casar ao pagode, coino o liabiiante do Japão vae perante o al-

1 Genes. I, V. 28-11? vv. 22-24.

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tar do bonzo. Os medos casavam á face do sol, a quem veneravam como Deus; e os persas accendiam o facho do hymeneu em honra do fogo sagrado, a sua divin- dade.

Parece ter sido da India que os primeiros habi- tantes da Europa receberam as suas instituições; e na India o matrimonio tinha um caracter accentuadamente religioso. As antiqnissimas leis de Manu prescreveni

ue os noivos se apresentem perante o sacerdote, e Ieterminam minuciosamente os sacrificios, ritos e pre- ces, por meio dos quaes o sacerdote obtem para os nu- bentes uma boa prole: ccontrahindo casamentos repre- hensiveis, diz alei, omittindo as ceremoniasprescriptas, as familias cahem no aviltamentoa.

Entre os gregos o matrimonio era precedido de um sacrificio, destinado a applacar Minerva e a casta Diana, e no qual se observavam as entranhas das vi- ctimas; era acompanliado da invocação dirigida a Ju- piter e Juno, e finalmente seguido de novos sacrificios.

O profundo e exacto historiador Tacito dá teste- munho de que os germanos e gaulezes celebravam as suas nupcias deante do altar, levantado no meio das suas florestas sagradas.

Assim vemos que os povos da antiguidade não es- queceram meio algum de fazer sobresahir o caracter religioso do matrimonio: tem los, altares, preces, offe- rendas, sacrificios, bençãos i o sacerdote.

Todavia não se deve dissimular que o povo roma- no teni sido apresentado por alguns como excepção a essa lei geral. Se attendermos, porém, a que no paga- nismo a religião consagrava todos os actos da vida civil, e se achava tão intimamente vinculada com a po- litica que os iniperadores romanos, ainda depois de

convertidos ao cliristianismo, conservaram o titulo de pntifices m i m o s [até ao tempo de Graciano), diffi- cilmente nos persuadiremos de que o rnatrimonio se realisasse e constituisse, independentemente das fór- mas religiosas.

E na verdade, testemunlias tão competentes como insuspeitas asseveram que os romanos não celebravam mpcias solemnes sem invocar os deuses e fazer sacri- ficios em sua honra 1. Os deuses Jugatinus, DomZdicus, Dmitius e Manturnus, junctamente com Hymeneu, p r o sidiam d'um modo especial ao casamento solemne, de- pois do qual se dirigiam os esppsos a um logar sagrado, s fim de observar os agouros. E Tacito quem nos refere que o matrimonio, entre o povo rei, era consagrado pelas preces dos augures, pelas ceremonias religiosas, pelos sacrificios e banquetes e.

E' certo que o casamento religioso não foi d'um uso constante e universal; o povo romano tinha nos pri- meiros scculos uma dupla fórma de contrahir nupcias: a confarreaçüo e a coempção.

' «Principio delubra ndeunt, pacemque per aras Exqui~unt: mactant lectau de more bidentes Frugiferae Caereri, Phaeboque, patriqne Lyaeo; Junoni ante Omoes, cui vincla jugalia curse.>

ENEIDA, iivr. IV, v. 56 a 59.

" Descrevendo o casamento de Nessalina com C. Silio, diz o historiador romano no livro XI dos seus Annaes, n.'27: aCun- ota nuptiarum solemnia celcbrat .. praedicta die, adhibitis,.qui obsignarent, velut suscipiendorum liberorum canssa, convenisse; atque iliam incdisse auspicem varbd, subisse (*), sam-$msse 0 p d deos; discubitum inter convivas ... >

(*) Entendem os criticos que s palsvra suóisse se introduziu rio texto por corrupçiio de nupsissc, sllusso ao veu com que a noiva era coberta e que, sendo a ceremonia principal, n8o devia ser omit- tida por Tacito, quando falls dos outros ritos.

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A primeira era um rito sagrado recebido dos etrus- cos, e o seu nome provinha de que os dois conjuges comiam de um bolo de trigo (fan-ezim) consagrado pelo sacerdote, e que symbolisava a futura communlião de vida, a que se obrigavam perante a lei e a religião.

Parece que esta fórma se foi restringindo at6 ficar unicamente usada pelos patricios; os filhos havidos de tal união eram os unicos idoneos para exercer as func- çaes de flamines de lu iter e Marte (reges sacromtm). Os casamentos dos ple e eus eram feitos pelo titulo de coemptio, acto em virtude do qual os parentes da es- posa transmittiam ao marido o seu dominio sobre a pessoa d'eila.

Ora, se attendeimos á organisação da familia ro- mana, que concentrava no marido um poder odioso, que estabelecia o direito conjugal com uma organisa- ção iniqua e ruinosa para a mulher, teremos encon- trado a razão, pela qual as duas fórmas antecedentes do matrimonio vieram a cahir em desuso, nos ultimos annos da republica.

A mulher, casada por qualquer das duas fórmas, ficava com lodos os seus bens sob o dominio absoliito do marido, e por conseguinte nada podia possuir como proprio. O marido tinlia o direito de a repudiar, fican- do-lhe com todos os bens que ella havia trazido para o casal; e a esposa repudiada já não podia siicceder na herança alerna, porque, pelo facto do casamento,

!. perdera os ireitos de agnação ou parentesco civil 1. Resultou d'aqui que os paes comecaram a sentir

extrema repugnancia em ceder do patrio poder sobre as lillias em beneficio dos maridos, e ou se abstinham

1 Vej. Sincholle -LI mariage civil et le mariage religicm, cap. 11.

de as casar ou faziam previas estipulações (cautiones rei uxoriae) ácerca de rehaverein, no caso de divorcio, os bens com que as iiliias entraram na casa do marido. As mullieses sui juris não queriam perder a sua inde- pendencia, ficando sob o dominio do marido; e recor- reram j. lei 43." das dose taboas, que lhes concedia o direito de contraliirem o matrimonio por simples con- sentimento, mero conseluu.

Foi no tempo do imperio que se generalisou esta ultima fórina de casamenío, a que chaniavam livre; a esposa ficava ria familia e poder dos paes, e não na do marido. As mulheres ligadas pelo casamento livre da- vam o nome de nzatronas, que servia para as differen- çar das naatres-familias, isto é, das que haviam casado por confarreação o! coempção.

Entendem alguns que o casan~eilto em Roma se contrahia sempre por mero consentimento; e que a con- farreação e coempção eram, juiilamente com a usuca- p i a , os titulos pelos quaes se adquiria o poder marital (naa~zzts), que náo deve confundir-se com o casamento em si. Nesta opinião se fundam os que pretendem en- contrar no direito romano a origem do casamento civil; terei occasião de tractar d'cste assumpto no numero seguiiile, e agora limitar-me-liei a observar que tal doutrina contradiz o testemunlio formal dos liistoriado- res e poetas roinanos, que descrevem as ceremonias religiosas como antecedentes, concomitantes e suhse- quentes ao acto conjugal.

Para terminar, direi duas palavras ácerca do ma- trimonio dos hebreus. Tem-se affirmado e escripto que entre os hebreiis o casamento não tinha caracter al- gum religioso, por isso que apenas era celebrado na presença dos chefes de familia, e sem a intervenção do sacerdote.

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Deve porém attender-se a que, no tempo dos pa- triarchas, o chefe de familia era ao mesmo tempo o depositario do poder civil e do ministerio sacerdotal. Depois da lei dada no Synai, ficaram os hebreus su- jeitos a preceitos positivos, em que o proprio Deus lhes determina os graus de parentesco que obstam á união legitima I, o que devia levar aos seus animos a convicção de que Deus, tendo abençoado as nupcias dos primeiros homens, continuava a, presidir e sancti- ficar esse acto com as suas graças. E o que explica o uso, constantemente observado pelo povo judeu, de juntar o chefe de familia as suas preces com as dos assistentes a fim de attrahir a benção divina sobre os nubentes.

Os anciãos e povo de Bethlehem, que foram teste- munhas do casamento de Booz com Ruth, exprimem solemnemente o desejo de que Deus torne prospera uma tal união, de que faça da esposa um exemplar de virtudes, e lhes suscite numerosa descendencia *. A intervenção divina é ainda mais explicitamente affir- mada no casamento do filho de Tobias; Raguel, jun- tando a mão de sua filha Sara com a de Tobias, diz: Deus Ahraham, et Deus Isaac, ef Deus Jacob vobisczim sit, et ipse conjungat vos, impleafpue benedictimm suam in vobis 3.

A ausencia, pois, do sacerdote não obsta ao eara- cter religioso do matrimonio hebreu, pois que esse ca- racter lhe estava intrinsecamente unido em virtude da instituição divina. Tambem a circurncisão era um rito essencialmente religioso, tão importante que alguns a

1 Levit. XVIII, w. 6-18. 3 Ruth IV, vv. 11 o 12. Tobise VII, v. 12.

têem equiparado a um sacram~nio, e todavia era feita nas casas, sem que interviesse o ministerio dos sacer- dotes ou dos levitas.

Feitas estas advertencias, passarei a expbr e in- dicar rapidamente a origem e progressos do casamento civil.

Tendo Jesus Christo elevado o contracto matrimo- nial á dignidade de sacramento, gela adjuncção da graça divina, ficou o matrimonio os c1iristã;os sob a jurisdicçãu da Egreja, que desde a sua origem lhe re- gulou as condições de validade e legitimidade, isto é, estabeleceu impedimentos dirimentes e impedientes.

Durante os Ires rimeiros seculos, que foram para a Egreja o periodo I& lucta e perseguição, é incontes- tavel que as nupcias dos fieis foram celebradas sem a minima interferencia da auctoridade e legislação civil. Já desde essa epocha a Egreja mandava que os nu- bentes se apresentassem perante o bispo ou presbytero; quer dizer, a clandestinzdade era considerada como um impedimento, que obstava á licita recepç% do ina- trimonio, embora o não tornasse nullo, nem como con- tracto nem como sacramento.

São bem conhecidas as rases, que moveram a Egreja a detestar e rohibir sempre as uniaes clandes- tinas. Por um lado, i) avam occasião a frequentes abusos e fraudes, porque não havia meios seguros de provar que o casamento fôra contrahido; por outro lado, a ben- $50 dos esposos, do annel, e da corda ou do veu, ino-

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culavam no espirito dos crentes um sentimento mais ~rofundo da sanctidade do sacramento, e as preces do sacerdote e dos assistentes deviam attrahir sobre os consortes graças mais abundantes.

Até ao armo de 312, .em que Constantino Magno reconheceu ao christianismo uma existencia legal, a Egreja tinha sido o unico poder, que regulou as nu- pcias dos fieis. Desde esse tem o o matrimonio foi si- a multaneamente regulado pelo ireito canonico e pelo direito civil, cujas disposições tendiam a homologar-se, embora a sua completa harmonia fosse obra de muitos seculos. E da confusão, obscuridade e incoherencia das leis, n'esse periodo de fusão, têem alguns pretendido tirar como corollario que o casamento civil existiu desde os primeiros seculos da Egreja, em concomitancia com o sacramento do matrimonio.

Alexandre Herculano diz que ao casamento era para os romanos um contracto puramente civil na sua essencia~ e que POS primeiros cllristlaos conciliavam a existencia do sacramento, destinado a saiiclificar os consorcias, com a existcncia do contracto civil, accei- tando ambas as cousas, isto é, fazendo aqui o contra- cto, recebendo lá o sacramento ID.

As duas asserções são inexactas e infundadas. O casamento não era para os romanos um contracto es- sencial e puramente civil, porque testemunhas compe- tentes e insuspeitas lhe atiribuem um caracler religioso. Já tive occasião de adduzir as provas (pag. 131, mas voltarei agora a este ponto: apezar de ter caliido em desuso o rito religioso, continuou o Direito romano a reconhecer nas nupcias um caracter essencialmente re-

1 Estudos sobre o oaseniento civil, primeira sdrie, pag. 13 (ediç. de Lisboa, 1866).

ligioso-divini et humani juris commzaiicatio. E Jacob Cujaccio, um profundo jurisconsulto romano, que o diz a proposito da definição de Modestino; o mesmo escriptor nos diz que para os juristas gregos e 1atinos.a mulher era-socia, rei humnae atque divilzae 1.

O direito romano não mandava que o casamento fosse celebrado perante os magistrados civis, nem im- punha quaesquer outras formalidades, Conde fosse li- cito inferir que reputava o mat,rimonio como contracto pura e essencialmente civil. O chamado casamento livre ou de mero consenso era antes um contracto de direito natural, em que o poder civil só intervinha, depois de contrahido, para regular certos direitos e deveres, ou para dirimir controversias entre os conjuges. Mas n'esta hypothese, o poder civil escutava previamente o julga- mento prolerido pelo collegio sacerdotal.

Encontramos nos historiadores romanos uma prova bem frisante d'este facto, e que patentea qual era a le- gislação em vigor no tempo de Augusto. Pretendendo este imperador celebrar consorcio com a esposa de Nero, que estava gravida, perguntou hypocritamente ao col- legio sacerdotal, se era licita uma tal união: ~Abducta Neroni uxor, et consulti per ludibrium pontifices, an concepto, ne dum edito partu, rite nubere t~ , diz Ta- cito % E Dion Cassio, referindo o mesmo facto, usa d'estas expressóes: ahb igen t i Caesari ac sciscitanti a pontificibus fas ne sibi esset, eam praegnantem du- cere, responsum est . . . 3 e .

Os imperadores subsequentes continuaram a reco-

1 Paratitla in libras qninquaginta Digestorum, livr. XXII, tit 2 . e D e ritu nuptiamm.

Annaes, livr. I, n . ~ 10. Hist. livr. XLVIII, n.O 44.

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nhecer no matrimonio a natureza de acto religioso, poisque nas moedas e medalhas, cunhadas para com- memorar os seus casamentos, se encontra a imagem de Juno pronuba. O proprio titulo dos codigos romanos, que se inscreve-de ritu nuptiarum, é uma expressão sacerdotal, que os imperadores transplantaram para a legislação civil, porque concentravam em si a auctori- dade politica e a auctoridade religiosa.

D'estas consideraçõeg podemos concluir que é in- exacta a segunda &mação de Alexandre Herculano. Se os romanos não tinham o casamento civil, como é que os primeiros christãos o celebrariam, para depois lhe addicionar o sacramento? O proprio escriptor, cuja o inião impugno, reconhece que as leis, insertas nos dadigos de Thèodosio e Justiniano, estabelecem como unica condição para a validade (civil) do casamento que se prove o mutuo consenso dos contrahenies '. Ora esta prova podiam os christãos apresental-a, no caso de lhes ser exigida, por isso que contrahiam as suas nu- pcias em face da Egreja, ou pelo menos com conheci- mento dos parentes ou pessoas affectas aos conjuges; e não havia necessidade de celebrarem o supposto con- tracto civil.

Ainda quando faltassem os dados positivos, a siin- ples inducção historica seria suficiente para justificar as conclus~es anteriormente expendidas. Enquanto ade- ptos do paganismo, os imperadores romanos viam no casamento uma instituição, que a religião consagrava e regulava na parte attinente ao vinculo; depois de convertidos ao christianismo, entrando na Egreja como simples leigos, subditos d'uma auctoridade espiritual

Estudoe sobre o casamento civil, pag. 13 e 14.

que ha tres seculos regulava as nupcias dos discipulos de Christo, é crive1 que esses piedosos imperadores co- meçassem por legislar sobre o matrimonio, como ma- teria da exclusiva competencia do poder civil? Seria um acto de manifesta rebellião, contra o qual a Egreja pro- testaria. Mas a historia não nos transmittiu o menor vestigio de taes protestos; antes nos dá-inequivovos tes- temunhos do zêlo, com que os imperadores romanos reprimiram aquelles, que pertinazmente dogmatisavam contra a auctoridade e doutrina da Egreja.

Não pretendo illudir diõiculdades nem resolvel-as a priori. Os chefes do imperio romano, quer no Orien- te, quer no Occidente, promulgaram muitas leis sobre materia matrimonial; porém essas leis ou não se refe- riam ao vinculo conjugal, ou eram feitas com o accordo e sancção da Egreja, ou finalmente (se algumas esta- vam em contradicção com as leis canonicas) tinham apenas effeitos civis, e a Egreja continuava a exigir dos fieis a observancia das leis ecclesiasticas I.

Os estreitos limites d'ilma Introdzlccão não ~ermi t - 1

tem que eu entre nos largos desenvolvimentos de Her- meneutica juridica, que se exigiriam para o estudo comparativo d'essas leis. Deve, porem, seni r de regra geral para a interpretação de taes leis a declaração formalmente expressa pelos imperadores de que elles s6 intentaram sanccionar com a auctoridade real os canones, promulgados pela Egreja-sancimus igitur sacras per omnia sequentes regulas, diz Justiniano no cap. I da 6." novella.

Esta observação geral evita-me a ingloria tarefa de responder a cada unia das leis, citadas por Alexan-

Assim succedeii, por exemplo, com as leis civis que permit- tiam o divorcio e o repudio.

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dre Herculano como outros tantos argumentos irrefu- taveis em favor do casamento civil. Rcfoiça as citações dos codigos romanos com as do wisigothico, não se esquece de juntar as declaraç~es dos Pontifices Nico- lau I, Adriano 11, Alexandre 111, Innocencio 111, e De- cretaes de Gregorio M, lodos os quaes documentos reconhecem como validos certos matrimonios contra- hidos por mero consenso, e destituidos das solemnida- des prescriptas pela Egreja; logo eram reconhecidos como validos os casrsme~itas ci~>is ... F: não sahe d'este circulo, que atiesta a sua loçica de ferro, senão para fazer espirito a proposito do dognia da infa l l i l lilidade pontificia l.

Ora os theologos catholicos invocam todos esses testemunhos e muitos outros de egual força, sem que de modo algum tirem as mesmas conclusões. Para que valesse o argumento dos defensores do casamento ci- vil, era necessario demonst,rar que a benção sacerdo- tal é da essencia do sacramento, e que os matrirno- nios clandestinos não podiam ser verdadeiros sacra- mentos, embora recebidos illicitamente. Mas dos textos tão laboriosamente accumulados resulta a conclusão contraria, como espero mostrar na primeira parte d'este estudo.

Dando treguas á polemica, passarei a esboçar a rapidos traços as principaes modificações que soffreu a legislação matrimonial dos povos christãos, até á constituição definitiva do casamento civil.

Qumdo o im erio romano estava prestes a espha- celar-se, dous ma i' es profundos corroiam o seio da fami- lia, o proprio foco da vida social: eram o concubinato

Obr. cit., pag. 14-22.

e o divorcio. O esquecimento do rito sagrado (cmzfar- reação) chegou a tal ponto que os juiisconsultos se viam em graves dificuldades para distinguirem a es- posa, ligada pelo casamento de mero consenso, da sim- ples concubina. Adoptara-se a regra seguinte:-Con- cubinam ex sola animi destinatione existimari aportel; concubina ab uxore solo dilectu separatur.

Como se vê, a regra não era de facil verificação pratica, e por conseguinte não offerecia suficiente ga- rantia para a estabilidade das familias. A Egreja quiz remediar os dous males, e para esse fim não só exigiu a bençiio wupcial, que vinha estabelecer uma differença profunda e radical entre a esposa e a concubina, mas até quiz que a mulher trouxesse dote 1, porque a respe- ctiva escriptura confirmava a prova de casamento e desviava o marido de recorrer ao divorcio, impondo-lhe a obrigação de restituir o dote.

A lei civil não foi tão exigente, e os imperadores Theodosio e Valentiniano determinaram, por uma lei promulgada em 428, que fosse valido o matrimonio provado por testemunhas idoneas, embora não hou- vesse escriptura de dote, ou se omittissem outras so- lemnidades e. Mas a Egreia não revogou as leis cano- nicas, que tendiam a salvaguardar a moral publica e segurança das familias; continuou a impor a obrigação de receber a benção sacerdotal, e no concilio de Ar- les, reunido em 524, exigiu novamente que a mulher fosse dotada.

Escreveu S. Jeronymo: aUxori tahulis et jure dotali opus est quibus conciibhae sunt destitutaw. E S. Agostinho: cTalis esse debet quae uxor habenda est; secundum legem sit casta in virginitate et dotata legitime^. (Cominent. in Genes., livr. XI, cap. 41).

2 Lei 2 2 , ' ~ . , ~e nuptiis.

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Quatro amos depois promulgava o imperador Jus- tiniano, no Oriente, uma lei que não considerava as escripturas dotaes como condição da validade do ma- trimonio, mas na qual o imperador reconhece a pru- dencia c sabedoria das leis ecclesiasticas, no empenho de tornarem mais segura a prova do casamento e a estabilidade do laço conjugal. E por esta raz5o or- dena Justiniano que as pessoas illustres provem os seus casamentos por meio de convenções ou contractos ante- nupciaes; eiiyuanlo i s pessoas de coiidição menos nobre ordena que vão a egreja (ad quandam orationis domum) declarar o seu casamento ao defe~aor, que la- vrará acta do mesmo na presença de quatro testemu- nhas (clcrigos). Aos matrimonios das pessoas de baixa condição não impdz formalidade nenhuma 1.

Por fim veio a prevalecer a legislação ecclesias- tica. Uma capitular, promulgada por Carlos Magno nos fins do seculo VLII, dei erminou o seguinte:- u Nullum sine dote fiat conjugium nec sine publicis nuptiis quis -

quam nubere praesumat ... Sciendum est quod hi qui uxores ducere voluerint ad eas casti et ineorrupti ac- cedere debent, easque cum benedictione sacerdotis, si- cut in sacramentario continetur, accipere. Sed prius eas dotali titulo debent cohligare %D. Do theor d'esta lei se v& que foi feita com annuencia dos bispos, e para restabelecer a disciplina ecclesiastica: os Padres do concilio de Trosly (an. 909) reproduziram, quasi tex- tualmente, a capitular de Carlos Magno.

Pelo mesmo tempo Leão VI, cognominado o sabio, ordenava que o casamento fosse celebrado, em todo o imperio bysantino, com a sanctificação da Egreja, sob

1 Novel. 74.5 cap.' 4. a Baluzio-Capitularia ~.egumJi.ancoruna, l i a . VI, eap. 133.

pena de ser reputado nu110 (destituído de effeitos ci- vis).

Assim se conservaram as cousas até ao meado do seculo XVI, em que os protestantes negaram á Egreja o poder sobrc o vinculo conjugal, e o transferiram para o Estado. Deve porém advertir-se que a Egreja cessou de exigir o dote, como condição do matrimo- nio, desde que as costumes christãos foram sufficien- temente arraigados no animo dos povos, e já não liavia que receiar os abusos do divorcio e do concu- binato. -

E' sabido que os protestantes negaram ao matri- monio cliristão o caracter de sacramento; todavia con- tinuaram a respeital-o como uma cerenaon,ia religiosa, por causa dos casos de consciencia a que dava occa- sião. Começaram os protestantes a celebrar os seus matrimonios, já perante os ministros do culto, já pe- rante os magistrados civis; mas a validade do acto resultava sempre da lei civil. Os ritos rcligiosos, que acompanhavam o casamento, eram puramente extrin- secos, e a falta d'elles não produzia effeito algum, ou só o produzia por disposição da lei civil, como succe- deu na Inglaterra até 1837.

Tal foi a origem do casanzento civil entre os povos christãos. Resta-nos ver como essa instituição se in- troduziu na legislação dos povos catholicos, a despeito do decreto do concilio Tridentino, que expressamente declara inbabeis. para contrahir os que intentarem fazel-o d'outra forma, que não seja na presença do pa- rocho e de duas ou tres testemunhas, nos logares em que o decreto tiver sido publicado 1.

L Trid. sess. XXIV, decretuna de refom. matr., cap. I,

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A França foi um dos poucos paizes então catholi- cos que não receberam as leis disciplinares do concilio Tridcntino. Todavia o art."O da constiluição (ordon- nunce , promulgada em Blois no mez de Maio de 1579, homo / ogou no direito francez os decretos conciliares Acerca da prohibição da clandestinidade. Manda que se façam as proclamas em tres dias sanctificados, e que o matrimonio seja coillrahido perante quatro tes- temunhas; ameaça de que serão punidos como fautores do crime de r a ~ ~ t o os paroclios, que assistirem ao casa- mento dos filhos familias (menores de 25 annos) ou de outras pessoas não emancipadas, sem que tenha havi- do a competente auctorisaçiio.

Esta ultima parte da lei revela o despeito, ein que ficou a França por não ter conseguido que os Padres de Trento declarassem nullo o casamento dos lillios fmilias, conforme a proposta do cardeal de Lorena, representante do rei de França junto do concilio. O que não conseguiram da auctoridade da Egreja, quize- ram obtel-o por meio da lei civil; e persistindo n'este intuito promulgou Luiz XIII uni edito, em Janeiro de 1629, estatuindo que os casamentos effectuados con- tra as disposições da constituiça de Blois fossem tidos como-não ualidamente contrahidos (non valablement contractés).

Esta pcriphrase podia significar que o rei de Fran- ça se arrogava o direito e legitimo poder de atznullar matrimonios christãos, que a Egreja reputava validos; e a assembléa do clero francez enviou uma deputa- ção 1 ao rei, pedindo a explicação do sentido d'aquel-

1 Foi composta dos bispoe de SBez, de Rennes, de Anxerre, de Chartres e de Beauvais.

Ia phrase. Os commissarios do rei christianissimo res- ponderam evasivamente que as expressões suspeitas se referiam ao contracto civil; e desde então o edito considerou-se como revogado, se não de direito, pelo menos de facto.

Estas contrariedades não conseguiram desviar a corte de Franca do firme proposito de annullar o ca- samento dos lill:os familias, aproveit.ando para esse fim o rimeiro ensejo favoravel. Effectivamente foram mais feizes em uma nova tentativa.

O direito consuetudinario da França não consentia que os principes de sangue real se unissem pelo ma- trinionio, sem expresso consentimento do rei. Ora suc- cedeu que o Duque dc Orleans, irmão de Luiz XIII, casou em segundas nupcias com a princeza Margarida de Lorena, sem que houvesse precedido licença regia. Razões politicas tornavam indispensavel a annullação d'esse matrimonio, e os cortezsos de Luiz XIII desco- briram um meio engenhoso. Consistiu em dar maior amplitude ao impedimento de rapto; este, disseram, não consiste unicamente no roubo e sequestração da pessoa; dá-se egualmente na impressão moral, na in- fluencia e fascinação que uma pessoa pode exercer so- bre outra; é o rapto de seducção.

Fez-se a a.pplicaçáo ao caso sujeito; a princeza Margarida foi accusada de haver raptado ou seduzido o seu marido Gastão, e o casamento foi amullado por deliberação (arrkt) do Parlamento de Paris, proferida em 5 de Setembro de 1634.

Na discussão d'esta causa celebre manifestou-se já a influencia do protestantismo sobre o modo de in- terpretar o poder da Egreja, nas causas matrimoniaes. Recorreu-se então, pela primeira vez, á distincção entre

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contracto e sacramento 1, allegando que não pode haver sacramento onde faltar a materia, isto é, um contracto legitimo e conforme com as leis do paiz, per- tencendo aos juizes civis o apreciar a validade ou niil- lidade do contracto. Era um modo indirecto de negar a jurisdicção ecclesiastica, contra a doutrina formal e expressa do concilio Tridentino, que tornou os fieis inhabeis para contrahir clandestinamente (annullação que simultaneamente abrange o contracto e o sacra- mento).

A doutrina regalista e gallicana do Parlamento de Paris continuou a vigorar na França, durante o secu- 10 XVIII, e em breve teria de ser affiimada nas insti- tuiçaes da vida social. Em 28 de Novembro de 1787 firmou Luiz XVI um edito, ordenando que os matri- monios dos protestantes fossem celebrados perante um magistrado civil.

Approximava-se o momento, em que a constituição da farnilia seria declarada independente do sacramen- to da Egreja. Um leve incidente veiu secundar o plano d'antemão traçado de separar a nação franceza do cul- to catholico, e de toda a crença religiosa.

Tendo o parocho de S. Sulpicio recusado assistir ao casamento do celebre actor Talma, levou este as suas queixas por escripto diante da Assembléa consti- tuinte. A carta de Talma foi lida em sessão de 12 de Julho de 1790, resolvendo-se entregar o negocio á commissão ecclesiastica. Foi então que Durando de Maillane, de accordo com os seus collegas 2, redigiu o primeiro projecto de lei sobre o casamento civil.

Vej. Sincholle-Le mariage civil et le mariagc religieux, oap. 11.

"anjuinak, Treilhard e Expilly.

Em harmonia com a mesma doutrina, a constitui- ção de 3 de Setembro de 1791 dizia no titulo 2.", art." 7." - c L a loi ne considt?re le mariage que comme contrat civil ... 3 E para dar execução a este artigo veio o decreto de 2 5 de Setembro de 1792 regular a forma d'esse matrimonio, dispondo que fosse celebrado na casa da municipalidade (maiso~a commune) perante o oficial do registo civil; ao mesmo tem o determinava a as condições em que era permittido o ivorcio 1.

Este modo de contrahir era considerado como ne- cessan'o e suficiente para que a união produzisse todos os effeitos civis do matrimonio. A lei abstrahia com- letamente do rito religioso, que então podia ser cele-

grado antes ou depois do contracto civil. Mas o 54." dos artigos organicos, que o governo

francez arbitrariamente addicionou á concordata de 1802, veio restringir a liberdade dos fieis e dos paro- chos neste ponto. Diz o art.O 54.': - aIls (les curés) ile donneront Ia bénédiction nuptiale qu'i ceux qui justifieront, en bonne et due forme, avoir contracté mariage devant l'officier civil^ . D'esta restricção vexa- toria resultaram innuineraveis inconvenientes, contra os quaes têem sido dirigidas, de varias pontos da Fran- ça, inuteis representações ao governo.

Nos artigos organicos não se determinava a sanc- ção penal para os parochos, que admittissem os nu- bentes ao sacrameilto do matrimonio antes de terem assignado o contracto civil. Mas os art.Oq99 e 200 do codigo penal, promulgado em 1810, impozeram- lhes as peilas de multa, prisão e degradação civil, se- gundo a gravidade da c u b a 2.

' Vej. Thbzard-Le mariage civil, cap. I. Art .O 199 - aTout ministre d'un &te qui prooédera anx

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Para terminar este esboço historico, advertirei que á influencia do catholicismo se deveu a lei de 8 de M a i ~ de 1816, que supprimiu o divorcio; e que a lei de 31 de Maio de 1854 veio terminar com a dissolu- ção do vinculo conjugal, que até então se permittia, quando um dos conjuges era condemnado a pena que envolvesse a nsorte civil.

A legislação franceza ácerca do matrimonio foi copiada, com mais ou menos profundas alterações, pelos modernos codigos das nações europkas, como terei occasião de mostrar E ainda mal que esta con- quista parece formar apenas um ponto de transição no generoso empenlio de animalisar o homem!

As theorias socialistas de Saint-Simon, Fourier e tantos outros exerceram funesta influencia sobre os espiritos do nosso seculo. A organisação dos phalans- terios, com a sua promiscuidade de sexos, não foi ado- ptada em parte alguma; mas em geral diminuiu a ve- neração pela firmeza do vinculo conjugal. E hoje o materialismo scientifico, auxiliado por uma litteratura realista e dissolvente, esforça-se or extinguir esse debil respeito ao sanctuario da t i l i a , que ainda se conserva nos animos probos e bem nascidos.

A politica, que inconsciente ou maliciosamente acceita as inspiraç~es de fonte tão suspeita, vêr-se-ha

céremonies religieuses d'un mariage, snus qu'il lui ait bt6 justi66 d'un acte de mariage prealablement rego par les officiers de PQtat civil, sera pour La premihre fois puni d'une ameude de seize francs à cent francs~.

Art.0 200-aEn cas de nouvellea wiltraveutions de I'espèce exprimée en l'article précédent, le ministre du ciilte qui les aura commisea sera puni, pour la première rbcidive, d'un enprisome- ment de deux a cinq aas, et pour Ia seconde, de ia detentiou~.

Vej. na tercsira parte d'esta obra o cap. I.

um dia forçada, pela logica implacavel do erro, a sanc- cionar o divorcio, esse natural corollario do casamento civil, e apoz o divorcio-a polygamia e a communida- de de mulheres. E invocará provavelmente a liberdade de consciencia para justificar os mais pungentes ultra- jes, que se podem fazer aos dictames da razão e da fé, aos preceitos da moral e da politica sensata.

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PARTE WMEIRA

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g$ domma di fede essere stato i1 matrimonio . da C). C. nostro Signose elerato alla dignità di sacramento; ed 6 dottrina della chiesa cattolica, che i1 sacramento non è qualia accidentale ag- ginnta a1 contratto, ma è di essenza a matrimo- nio stesso, cosi che Ia unione conjugale tra i cristiani non è legíttima, se non no1 malrimouio sacraniento, fiiori de1 qunle non vi 8 che an pretto concubinato~.

(Lettera di Sua Santitci Pio IX. a s u a Dfaestà Vittorio Emrnanuelej.

CAPITULO I

O matrimoaio é um sacramento da Nova Lei

A indole especial d'este trabalho dispensa-me de abrir aqui discussão com os çnosticos, manicheus, pris- cillianistas, albigenses e outros herejes que, desde o berço do christiaiiismo até ao seculo XII, consideraram o casamento como intrinsecamente mau, como inven- ção do principe das trevas, e por esse motivo recusa- vam, com logica obstinação, reconhecer o sacramento do matrimonio.

Lançando a pedra fundamental d'esta serie de de- monstrações, guia-me o intuito de rebater as ousadas negações dos protestantes e de certos catholicos, que Ihes copiam os argumentos com uma docilidade, não

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sei se ingenua, se culpavel. E geralmente sabido que os dois chefes da Reforma não negaram que o matri- monio seja de instituição divina; negaram-lhe sim o caracter de sacramento, o que é cousa muito differente. A agricultura ou a arte de sapateiro tambem são de instituição divina, dizia Calvino, sem que seja licito inferir que são sacramentos.

Não vão longe d'esta doutrina certos theologos que se dizem catholicos, e que não se pejam de escrever que o ma.trimonio é um sacramento de instituição ec- clesiastica, fundados em que não pode invocar-se texto algum da Biblia em favor da instituição divina d'este sacramento, e que nem mesmo a tradição nos submi- nistra argumentos certos e inconcussos. Segundo estes doutos theologos, foi S. Agostinho o primeiro que cha- mou ao matrirnonio-sacranzento, tomando por ventura esta alavra num sentido improprio ou typico I .

8meio mais directo de rebater o erro seria de- monstrar, como pretendeu fazel-o Bellarmino, que no matrimonio se encontram os tres elementos essenciaes do sacramento, a saber: instituição divina, signal sen- sivel de uma cousa sagrada, e efficacia para produzir a graça significada. E nos livros smctos encontramos a confirmação d'estas proposiçaes:

matrimonio foi instituido por Deus. No li- vro o Genesis está escripto que o creador do universo resolveu dar ao primeiro homem um auxiliar semelhante a elle, porque não era bom que o homem estivesse s6 9. E para não multiplicar as citaçaes de textos bi-

1 Tal foi a opinião de Erasmo e Cassander, B. qual não foram estranhos Estio e o cardeal Caetano, e que posteriormente foi abrapada por Oberthur, Lassanlx, Wiesse, Holder, Beda Mayer, Kiistner e outros.

&mes. 11, v. 18.

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blicos, approximarei do Genesis as palavras dirigidas pelo divino Mestre aos phariseus-quod ergo Deus conjunxit, homo non separet I. Sentença esta, com a qual se harmonisa perfeitamente o ensino do Apostolo, que em muitos Iogares das suas epistolas declara o vinculo conjugal como honesto e constituido por Deus, condemnando os erros contrarios $.

(2.") O matrinaonio e o signal sensivel da uniüo de Jesus Christo com a Egreja. Impondo aos conjuges o dever do mutuo amor, fundamenta-o S. Paulo no exem- plo de Christo, que amou a sua Egreja a ponto de dar a vida por ella; e logo accrescenta: cpor isso o homem deixará a seu pae e a sua mãe, e se unirá a sua mu- lher; e serão dois em uma só carne. Este sacramento é grande, mas eu digo em Christo e na Egreja 3 , .

O escQpo do Apostolo, que era mover os conjuges á mutua benevolencia, bastaria para esclarecer o sen- tido d'esta passagem, se o proprio contexto não esti- vesse patenteando que o demonstrativo - este sacra- mento se refere ao antecedente proximo, isto é, á união intima dos esposos. A futil interpretação de Calvino,

ue pretendeu referir o demonstrativo á uni30 do Verbo jivino com a Egreja, pecca contra as regras elemen- tares da henneneutica. Se tal fosse a mente do Apos- tolo, diria: a é grande o sacramento de Christo e da Egreja . .

(3.7 Pelo mafrinonio confere-se aos esposos a graça necessaria para symbolisarem a união de Christo com a Egreja. Ainda que esta proposição se não encontra

1 Matth. XIX, v. 6. Epa ad Hebr. XIII, v. 4-1 ad Corinth. VII, v. 89-11

ad Timoth. I V , vv. 3 a 14. Ep.' sd Ephes. V, TV. 25 a 32.

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expressamente formulada em texto algum da Escriptura, pode e deve ser recebida com inteira certeza,. por isso que deriva logicamente de outras passagens incontro~ versas; e é regra de hermeneutica que podemos attri- buir ao Espirito Sancto todas as legitimas consequen- cias,,derivadas do sentido de um texto.

E claro que os estreitos limites d'este trabalho não permittem dar á controversia a extensão, que ella com- porta nos tratados de Theologia dogmatica sacramental. Limitar-mehei a indicar as bases, em que a exegese catholica assenta o dogrna da natureza sacramental do matrimonio, vivamente rejeitado pelos protestan- tes '.

S. Paulo exige da parte da esposa uma sujeição e obediencia perfeita ao marido, sujeição comparavel á da Egreja a Jesus-Christo (v. 24); impõe ao marido um amor sobrenatztral á sua esposa, amor tão sublime e de tão completa abnegação como o do Salvador pela humanidade remida (vv. 25 a 28); e consolida o vin- culo conjugal, estreitando-o com os laços da mutua fi-

1 Os protestantes, que n8o esquecem meio algum de accusar os exegetas catholioos de supinra ignorancia, pretendem iiisiniiar que foi a palavra sacramento d a Vulgata que deu occirsiiro a conside- rar-se o matrimonio como sacramento; e movidos de profunda commiseraçíro, vieram ensinar-nos que no original se encontra a palavra mysterion, e n%o sacramentum.

Nlio se requerem por certo profundos conhecimentos de critica para repellir tíro grosseira insiniiação. Na0 foi a palavra material, mas a natureza intima da cousa, o que moveu os catholicos a res- peitarem a uniáo conjugal como nm dos sete sacramentos da Nova Lei. A prova clarissima d'esta verdade nhi está no symbolo da Egreja, qne reconhece os outros seis sacramentos, nenhum dos quaes tem este nome na Biblia, ao passo que n&o chama saera- mentos a muitas ceremonias, a qne os livros santos deram essa designação (mysterion).

delidade, paz, amor, castidade e temperança, como se exprime o mesmo Aposto10 em outro lagar 1.

Ora, sendo gravissimos os deveres dos conjuges, sendo de uma ordem sobrenatural, é manifesto que necessitavam de mcios e auxilios correspondentes. Em atien~ão á fragilidade e preversão humana, resultantes da culpa, havia Deus tolerado a polygamia e o repudio, suspendendo, por assim dizer, as duas leis da unidade e indissolubilidade, que regiam o vinciilo conjugal desde a sua. iostiluição no pttraiso. Mas o Salvador resiitiiiu o inatrimonio á sua primitiva pureza, declarou que aquellas duas leis eram essenciaes na contituição do matrimonio christão; e por conseguinte devia conceder aos esposos graças especiaes, que os auxiliassem no cum rimento dos seus deveres.

!e o Salvador não concedesse taes graças, não haveria fundamento para aflirmar de toda 3 sua lei que era suave e facil de cumprir-jligum nteum suave est, et onus mcum leve e. Todos os interpretes teem expli- cado estas palavras do diviiio Mestre como allusivas aos extraordinarios e efficazes auxilios, concedidos ao chrisião, e não á menor perfeição dos deveres impostos na Lei da graça. De que modo esses auxilios internos são concedidos na economia da Redempção, jB o sa- benios pela analogia evangelica; o Salvador ligou sem- pre as graças especiaes aos signaes externos e sensi- veis, e, no caso presente, ao contracto dos nubentes, ou ao vinculo d'ahi resultante.

Accode naturalmente ao espirito a seguinte obser- vação: se o caracter representativo do casamento con-

Ep.l I ad Timoth. 11, v. 15. ' Math. XI, v. 30.

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siste na união dos esposos, esse signal existia desde o matrimonio dos nossos primeiros paes, e portanto não tem a eficacia de um sacramento. Assim argumenta- ram Estio e o cardeal Caetano contra o texto da epis- tola aos de Epheso. E na verdade, os tlieologos catbo- licos são geralmente accordes em reconhecer que já os antigos matrimonios pefigurawrnz a união physica do Verbo divino com a humanidade e a união moral de Jesus Christo com a sua Egreja. Mas, desde que a uriiâo se tornou real, o signal passou de meramente represen- tativo a practico; E o que a Escriptura nos ensina, em- pregando o presente est, e não o preterito fuit.

Não devo passar em silencio o argumento, com que frequentes vezes se tem pretendido invalidar anossa interpretação, allegando que os antigos Padres da Egre- ja fundamentavam a instituição do sacramento conju-

a1 no facto de Jesus Christo ter assistido ás bodas de !há, e tel-as sauctificado com uma benção espiritual; e nunca se lembraram de citar as palavras de S. Paulo.

Para invalidar este argumento negativo, bastaria contrapôr-lhe os teslem~inhos formaes de S. Agostinho e de tintos outros Padres, que citaram e commintaram a epistola aos de Epheso 1. Alem d'isso, a omissão náôpode equivaler a Ünia negação; recorrer a um texto biblico não importa o mesmo que negar a força pro- bativa do outro. E que tal não pode ser a conclusão legitima, na presente coritroversia, demonstram-n'o os euchologios da Egreja oriental e os rituaes da Egreja

1 Podem vêr-se os testemunhos de Clemente de Alexandria, Origenes, Ambrosiano, S. Ireneu, S. Joao Chrysostomo, S. Je- rongnio, Tbeodoreto, S. Athanasio, S. Lego llagno e outros, ci- tados por Perrone-De matrinionio christiano, libr. I , sect. I.*, cap. I.

occidental que, rescrevendo as ceremonias do matri- monio christáo, ! requentes vezes alludeni, e até repro- duaem as citadas palavras de S. Paulo.

Concedamos porém que as provas biblicas não pos- suem uma clareza tal que exclua toda a duvida ou hesitação. Não é certo que a tradição constitue uma outra fonte de doutrina revelada, e que as obscuridades da palavra escripta devem desapparecer ante a luz do ensino oral e erenne da Eçreja? Ouçainos, pois, o que nos ensina a &reja dos primeiros seculos, pela bocca dos seus prelados, apologistas e doutores.

a) Uns fallam do matrimonio como de um rito, em cuja celebração intervinha o sacerdote e que era acom- panhado da benção. Dil-o no IV seculo o apa S. Si- ricio, lallando das condições, que devem o f servar cer- tos clerigos em relação ao matrimoni0:- c Una tantum, et ea, quam virginem communi per sacerdotem henedi- ctio~ze perceperit, uxore contentus acolythus et subdia- conus esse debet I a . Ora a benção indica que o ma- trimonio era tido como cousa sagrada e que lhe andava annexa a graça divina. Com effeito:

b) Outros Padres da Egreja attribuem ao matri- monio o effeito da sanctificação. Dil-o claramente S. Ambrozio: I Neque nos negamus sanctiflcatum a Christo esse conjugium, divina voce dicente: erunt ambo in unam carnem et in uno spiritu e ~ . Mas será acaso um effeito de sanctiíicação devido á graça commum? Não; e o mesmo Doutor da Egreja se encarrega ainda de

1 Na epistola a Himerio, bispo de Tarragona, cap. IX. Ou- tros testemunhos de S. Ignacio Martyr, Clemente de Alexandria e Synesio, bemcomo de Testulliano, Hilarico, S. Gregorio de Na- zianzo e S. Isidoro de Sevilha podem Iêr-se em Perrone-obr. e log. cit.

E P . ~ ad Siricium, n.O 5.

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nos dizer que tal effeito é devido a uma graça especial, conferida pelo matrimonio. S. Ambrosio, para fazer sentir a enorme gravidade do adulterio, diz que é uma profanação da graça matrimonial: c et si quis fecerit peccare eum in Deum, cujus legem violet, gratiam, et ideo quia in Deum peccat, sacramenti ccelestis arnitlit consortium ' r .

c) Para que não restasse duvida alguma ácerca d'este artigo da nossa fé, foi dar10 ao matrimonio o nome e todos os caracteres de sacranlazto. Confron- tando as nupcias dos christãos com a dos pa ãos, diz o sabia bispo de Hippona: 11n nostrarum txaoilim) nuptiis plus valet sanctitas sacramahti, quam fecundi- tas uteri %B. Nem é permittido suppôr que a palavra sacramento fôsse tomada n'um sentido improprio, por isso que em outros logares pxallelos compara S. Agos- tinho o matrimonio ao baptismo e á ordem 3.

E na verdade, quem at,tender a que os Padres de- viam conformar-se nas suas locuções com a analogia da ft! e a crença unanime da Egreja, não poderá con- vencer-se de qne tomaram sempre a. palavra sacramento em sentido lato. Os logares citados, e muitos outros que omitti por brevidade, encerram affirmações perfei- tamente equivalentes a estas: Jesus Chrisio instituiu o sacramento do matrimonio, e este confere a graça ex o ere operato. Quando a sciencia theologica recebeu J s escholasticos a sua nomenclatura technica e for- mulas rigorosas, lá encontramos o matrimonio entre os sete sacramentos da Nova Lei, e com todos os caracte-

Libr. I de Ab~aham, cap. VI[, n.O 59. a De bo~io conjugali, cap. XVIII, 11." 21.

Libr. I de nuptiis, cap. X, n." 11. De bono conjugali, cap. XXW, n." 32.

res que lhes eram communs; porque os escholasticos não fizeram mais do que organisar scienti6camenbe a doutrina dos Padres e Doutores da Egreja.

O silencio dos escriptores ecclesiasticos P tindo com seitas hereticas e impugnadoras a legitimi- dade das nupcias, não appellaram para a dignidade do caracter sacramental, de que se acha revestido o matrimonio christão, facilmente se explica pela inutili- dade de um tal argumento; o adversario, que contesta a honestidade natural de um acto, não pode conven- cer-se de que elle foi sanctificado por Deus. Deve to- davia notar-se que nos poucos escriptos, em que a heresia foi combatida, e que chegaram até nós, não faltam completamente as provas de que o matrimonio era tido e venerado desde os primeiros seculos como um sacramento. Bastará aitentar nas poucas citações que aqui ficam transcriptas.

Mais singular parece a omissão do referido argu- mento nas obras de Joviniano, escriptor que se empe- nhou em exaltar o matrimonio acima da virgindade, e que buscou diligentemente todos os argumentos com que podesse corroborar a sua these. Mas, attentando bem no amago d'essa discussão, reconheceremos que ella não chegou a recahir sobre o rito, e versou uni- camente ácerca da niaior ou menor excellencia dos dois estados, o conjugal e o de virgindade ou continencia.

Quando ha necessidade de invocar os argumentos da tradição, frequentes vezes acontece o deparar com testemunhos obscuros e apparentemente antinomicos. E uma consequencia da falta de rigor nos termos, en- quanto a Egreja os não consagra por uma resolução definitiva. Para obviar a esle inconveniente, muilo im- porta o confrontar os textos obscuros dos Padres com

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os livros rituaes da Egreja. T&em estes um valor ines- timavel, como testemunhas publicas, authenticas e per- manentes das crenças christãs, desde os primeiros se- culos; sendo os sacramentos factos importantissimos e d'um uso tão frequente no nosso culto, não podiam os rituaes deixar de serem redigidos sob a immediata inspecção dos Pastores, e de reproduzirem fielmente a crença da Egreja.

O estudo aprofundado d'esses documentos trouxe nova luz e força ao argumento, baseado na tradição theorica. Martene, o grande compilador dos antiquis- simos ritos da Egreja latina, faz menção de quinze sa- cramentarios manuscriptos, cuja origem remonta aos principias do seculo V. N'esses documentos, tres dos quaes dão ao matrimonio o nome de sacramento, pres- crevem-se as condições para ser contrahido licitamente o casamento; deve ser precedido da confissão dos pec- cados e acompanhado da communhão eucharistica; deve ser celebrado durante o sacrificio da missa, em que se implora a graça para sanetificar os nubentes, e tornal-os idoneos para bem cum rirem os seus deveres I.

Os euchologios da E greja grega, dos quaes se co- nhecem alguns anteriores ao seculo VIII, apresentam com admiravel uniformidade o obcium coronatio~zis que, n5o obstante certas differenças accidentaes, concorda com os ritos da Egreja latina em implorar a graça di- vina para que os nubentes se amem com casto affecto, em fazer menção da bençb dada por Jesus Christo nas bodas de Caná, e em exigir a previa confissão e a communhão euchsristica 9.

Esta doutrina, adoptada entre os melchitas ou gre- gos unidos, é egualmente recebida entre 9s seitas he- terodoxas que se apartaram da Egreja catholica, des- de o seculo V. Assim, os syrios nestorianos) consi- d deram o matrimonio como um os sacramentos da Egreja, equiparando-o ao baptismo, eucharistia e or- dem 1. A mesma doutrina se encontra entre os cophtas (jacobitas), que solemnisam as suas nupcias com as mesmas ceremonias da Egreja Catholica, a saber: es- ponsaes, confissão, missa, communhão, etc. '.

Idenlicas ceremonias são observadas entre os ar- menios (monophysitas) e outras seitas dissidentes 3.

Esta admiravel conformidade de ritos e crenças, entre as varias communliões da graiide familia cbristã, sd- mente pode explicar-se pela communidade de origem, e por conseguinte deve referir-se ao ensino tradicional dos apostolos e de seus immediatos successores. Se assim não fosse, por certo que não subsistiria aquella uniformidade entre seitas, a artadas do gremio catho- lico desde os primeiros secu ! os.

Em conclusão: o dogma do sacramento matrimo- nial basea-se em todas as legitimas fontes da doutrina revelada: encontra-se contido na Biblia, consta clara- mente da tradição oral e escripta da Egreja, e é con- firmado pela praxe constante das 1lii1;-rentes commu- nhões christãs. Para excluir porém toda a duvida,

1 O seu patriarcha Sulaka escrevia em 1553: aGredimas quoque iu sanctum baptisma et in sacrificium quod èst corpus et sanguis Christi, et in sacerdotium et in matrimonium~.

2 Assemani-Bibliotheca orientalia, tom. LII, parte 2.'. 3 Vej. Renaudot-De la perpetuité de la foi, tom. V, livro

6.", cap. IV. ' Da antiquis Ecclesiae ~itibus, livr. I, parte 2.%, cap. IX,

art. 15. "4. no Euohologio de Goar a nota 7.a ao o$eio & cmaqdo.

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ainda recordarei algumas definiç~es da Egreja, em que foi claramente formulada esta doutrina.

No concilio de Verona, reunido em 4 18 1, promul- gou o Pontifice Lucio I11 contra os valdenses um de- creto, em que anathematisa (todos aquelles que ousa- rem pensar ou dogrnatisar ácerca do baptismo, da confissão, do matrimonio ou dos restantes sacramentos da Egreja, de um modo diverso do qiie prega e obser- va a sailcta Egreja romana D .

No 44." concilio ecumenico, reunido em Lyão no anno de 1274, tratou-se de extinguir o scisma orien- tal, reunindo as duas Egrejas; para este fim foram li- das e approvadas as epistolas do imperaclor Miguel Paleologo a Gregorio X, nas qiiaes professa (em seu nome e de toda a Egreja oriental) seguir a doutrina da sancta Egreja romana, que admitte sete sacramen- tos, a saber: o baptismo, a confirniação, a penitencia, a eucharistia, o sacramento da ordem, o ntatrimonio e a extrema uncção a .

O concilio de Floreilça, reunido em 1439, deter- mina no decreto ou instrucç& para os armenios: ... a O se timo é o sacranlento do matrimanio, que t? o si- gnal d' a união de Christo e da Egreja, segundo aquel- Ias expressões do Apostolo: Sacrarnentum hoc magnum est: ego autem dico in Ch~isto et in Ecclesiau. Mui- tas outras definições solemnes de concilios se podiam citar; porem estas são suficientes para basear uma solida demonstração ~heologica.

Os Padres do concilio de Trento não foram mais do que os legitimos interpretes da crença universal da Egreja, ~ m d o no canon I da XXIV sessão, reunida em 11 e Novembro de 1563, definiram: C Si quis

dixerit matrimonium non esse vere et proprie unum ex septem legis evangelicae sacramentis a Christo Do- mino institutum, sed ab horninibus in Ecclesia inven- tum, neque gratiarn conferre, anatbema sit 8 .

Se ainda houvesse alguma necessidade de adduzir argumentos, bastaria apontar para as inuteis tentativas feitas pelos protestantes, para que as suas ousadas ne- gações recebessem a approvação da Egreja oriental.

Jeremias, patriarcha de Constantinopola, critican- do nos fins do seculo XVI a chamada confissão de Augsbzirgo, affirmou em nome de toda a Egreja grega que lia sete sacramentos de instituição divina, e nomea- damente ácerca do matrimonio disse: adivinum sacra- mcntum esse, atque unum ex illis septem, quae Chris- tus et Apostoli Ecclesiae tradiderunt~ 1.

São geralmente conhecidas as deliberações toma- das nos concilios de Jerusaiem, de Constantinopola, e em outros, convocados no seculo XVII para combater os erros de Cyrillo Lucaris e de João Cariophyllo, que tinham abraçado o caivinismo. Os erros do homem jánlais poderão alterar ou corromper os ensinos da tradição divina, e o sacramento do matrimonio é uma das verdades contidas iio deposito da fé.

1 Vej.-Censura Orientalis Ecclesiae áe praeeipuis nostri s&uli ltaereticormm dognzatibus, Vertida do grego para latim por Estanislsu Socolov.

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CAPITULO I1

No,matrimonio chrishio o sacramento 6 inscparavel do corilriiclo

Se o matrimonio, como fica demonstrado, é um dos sete sacramentos da Nova Lei, pertence á Egreja o poder legitimo e exclusivo de determinar as condi- ções para a sua valida admiiiistração e recepção. Os sacrameiltos, sendo meios sobreiiaturaes para a com- muriicação da graça divina, ilão caliem de modo algum sob a esphera de acção do poder civil; estão colloca- dos fora da missão do Estado, e dentro das legitimas attribuições do sacerdocio christão.

Elevando o contracto matrimonial á dignidade de sacramento, o Redemptor do mundo entregou aquelle á jurisdicção da Egreja, mas sem invadir o poder tem- poral, sem tirar a Cesar o que era de Cesar, como quotidianamente repetem os zelosos mantencdores do poder temporal. Antes da revelação christã, Cesar, o poder civil, não tinha auctoridade alguma sobre a es- sencia da união conjugal, que pertencia aos direitos rigorosamente individuaes; apenas regulava, ou antes, deuta limitar-se a regular, os effeitos civis do matrimo- nio. Do mesmo poder gozain hoje os imperantes chris- t a s , porque Jesus Christo, embora fosse rei universal dos homens e senhor do universo, não quiz que o po- der do Estado fosse invadido pela missão da Egreja.

Apresento estas breves considerações, que serão desenvolvidas na segunda parte d'es ta obra, para fazer

notar o nexo intimo, que rende as questões de juris- dicção com os principias i ogmaticos. Se'o matrimonio dos fieis é um sacramento, segue-se como natural co- rollario ue só a Egreja é idonea para legislar ácerca 4 do vincu o conjugal. Mas esta conclusão não agradava aos theologos e canonistas aulicos, empenhados em attribuir aos principes o direito de estabelecer impe- dimentos dirimentes; e para o conseguirem, recorre- ram á natureza complexa do matrimonio, pretendendo separar elementos, que alli se encontram distinctos sim, mas indissoluvelmente unidos.

Marco Antonio de Dominis e Launoy foram os pri- meiros, que affirmaram expressamente a separação entre o contracto e o sacramento. Segundo elles, o contracto legitimo é a materia indispensavel do sacra- mento, e ao Estado pertence regular absoluta e exclu- sivamente esse, como todos os outros contractos. E fa- cil de vêr que uma tal doutrina obsta'á legitima liber- dade da Egreja, e-torna a administração do sacramen- to dependente de previas condiçaes, que a auctoridade civil poderia conceder, negar ou alterar arbitraria- mente.

A separnbilidade entre o contracto e o sacramente Q o reducto, em que se fazem fortes todos os impugna- dores do poder da EgreJa em materia de casamentos, e que indirectamente entregam ao Estado a adminis- tração de um dos sacramentos christ%s. Contra estes me roponho demonstrar que, embora por abstracção C se istinga o contracto do sacramento, no matrimonio dos fieis as duas entidades são de tal modo insepam veis que n a pode existir a natureza do sacramento sem a do c'ontracto, nem vice-versa.

Antes de entrar na demonstração, importa adver- (i

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tir que existem entre os theologos catholicos duas opi- niaes diversas ácerca do ministro do sacramento con- jugal, e que a adopção de uma ou outra das opiniões vem alterar a amplitude da these, que me proponho sustent-ar n'esle capitulo. Devendo os principias dogma- ticos preceder sempre as controversias theologicas, en- tendi que era conveniente demonstrar a inseparabili- dade do contracto e do sacramento em qualquer das hypotheses, reservando para o capitulo seguinte a ana- lyse da controversia, que sé suscitou ácerca do ministro do sacramento.

A) Segundo a opinião mais segura e hoje a mais geral, quando cada dm dos contrahentes exprime o consentimento de se unir rnatrimonidmente com o.ou- tro, profere a fama sobre a materia (o corpo do con- juge), e por consequencia faz o sacramento; isto é, os qntrahentes são os ministros do sacramento do ma- tr?imonio.

Adoptada esta doutrina, é evidente que as duas evtidades, sacramento e contracto, ficam indissoluvel- mente unidas no consorcio dos Geis. Com effeito, o mutuo consentimento, expresso e acceito, que é a es- sencia do contracto, serve simultaneamente de materia e forma do sacramento. Por outras palavras: a materia proxima do sacramento é a niutua entrega dos corpos, e a forma é a acceitação dos mesmos; ora a entrega e a acceitação dos corpos constituem os elementos essen- ciaes do contracto. '

Posfos estes principios, resulta como consequencia logica que qualquer. contracto matrimonial, feito entre fieis, é um sacramento; quando não ha sacramento, não pode liaver legitimo contracto. Pois o que é o sa- cramento? E o contracto legitimo feito entre christãos

idoneos, ou com as devidas condições. Logo, faltando o sacramento, não 'pode haver contracto .legitimo; se o houvesse, ipso facto seria um sacramento.

Esta doutrina parece ser a mais conforme com a tradição, e a mais adequada para explicar e justificar a liturgia e disciplina da Egrr;ja. Na,verdade, nenhum dos Padres ou dos antigos escriptores ecclesiasticos dá o menor indicio de distinguir entre o contracto e o sa- cramento; este argumento negativo, a que se não con- trapóe prova alguma positiva, -vem roborar a doutrina aqui exposta, mostrando que elles identificavam o con- tracto com o sacramento.

Seria outro o pensar e sentir da Egreja? Se atten- dermos á sua disciplina e liturgia, teremos de respon- der que não. A Egreja reconhecia a validade dos ma- trimonios clandestinos, e como esse reconhecimento envolvia o do caracter religioso de uma tal união, mos- traya crer que' a natureza do sacramento se encontrava intrinseca e indissoluvelmente unida ao contracto.

Se assim não fosse, como explicar que a Egreja privasse da benção e de outras solemnidades religiosas as segundas nupcias, que aliaz eram contrahidas em face d'ella como. verdadeiros sacramentos? As leis disciplinares da Egreja ainda vão mais longe; prohi- bem a benção sacerdotal aos conjuges, que contrahi- ram matrimonio valido mas irlicito, quer 'dizer, que contrahiram matrimonio na presença do parocho, mas contra vontade d'elle; e conserva a prohibição ainda depois de os nubentes fazerem p'emtencia da culpa. Ora a Egreja, que é mãe piedosa de todos os seus fi- lho3 arrependidos, não quereria que elles ficassem per- petuamente privados da graça sacramental, tão neces- sarja para bem cumprir os difficeis encargos da vida . .

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conjugal; aquella prohibição, pois, significa a crença de que os contrahentes receberam já o sacramento, cuja graça revive, depois de removido o obice pela pe- nitencia; significa a crença de que o sacramento 6 in- separavel do contracto.

Como porém esta verdade é um dos princjpios, que nos dará a solução do problema do casamento ci- vil, importa fundamental-a com demonstraçaes, que sejam independentes de qualquer doutrina hypothetica ou meiamcntc adiaphora.

B) ,Se acceitarmos a opinião dos que consideram o sacerdote 'como ministro do sacramento do matrimo- nio, pode ainda demonstrar-se a inseparabilidade dos elementos no matrimonio contrahido nos paizes, em que foi recebido e publicado o decreto do concilio triden- tino. Enquanto porém aos matrimonios celebrados clan- destinamente nas outras regiaes, não odem ser con- siderados como sacramentos, porque f' hes falta o mi- nistro; e todavia valeriam como meros contractos.

Ainda que o ministro do matrimonio seja o sacer- dote, o contracto pertence 6 jurisdicção da Egreja como materia praxima .do sacramento, e só por abuso se pode inferir que o contracto matrimonial pertence ex- clusivanaente i autoridade civil. Mas um tal abuso é frequente entre os sequazes d'essa doutrina 1, e para eviiar qualquer subterfugio, indicarei aqui alguns ar- gumentos, cuja força probativa não depende de qual- quer das ~piniaes hcerca do ministro.

O matrimonio é um sacramento, porqúe é um si- gnal effioaz da união de Jesus Cliristo com a Egreja; e esse signal consiste simultaneamente na natureza do

Vej. o cap. seguinte.

contracto conjugal, e na dignidade sobrenatural, a qqe o Salvador quiz eleval-o. Na verdade, aquillo a que Jesus Christo annexou intrinsecamente a graça, aquillo que clle tornou signal efficaz,de sua união mystica com a Egreja, aquillo que elle elevou á dignidade de saera- mento, foi o vinculo conjugal, que Deus instituira no, paraizo ', e que desde então prefigurara a sua futura união com a humanidade 9.

Ao contracto conjugal não adkionou o divino Mestre um acto novo e accessorio; apenas lhe juntou a graça, que o transfopou em sacramento 3. Quando dous seres sc unem intrinsecamente, altera-se a sua respecliva natureza ara dar logar á do composto, como se observa nas com E inaçbes chimicas. Não se queira, pois, allegar que a elevação do contracto á dignidade de sacrament,o não eximiu o matrimonio da jurisdicção civil; quando Jesus mandou dar a Cesar o que é de Cesar, accrescentou as palavras- et quae sunt Dei, Deo. Ora Deus tinha reservado para si, desde o paraiso, as leis substanciaes do contracto matrimonial, deixando a Cesar o poder de regular somente os effeitos civis do casamento, poder que ainda hoje conserva.

Os sectarios da opinião de Melchior Cano, que con- siderou o sacerdote como ministro do matrimonio, de- finem o sacramento: o contracto sanctificado pela ben- ção sacerdotal; isto 6, em virtude da forma proferida pelo sacerdote, o contracto torna-se a materia proxima de um sacramento, que tem por instituição divina a ef- ficacia de produzir a graça matrimonial.

Matth. XIX, vv. 4 a 6. ' Ep.* ad Ephes. V, vv. 30 a 32. 011tros argumentos, baseados na propria natureza do viu-

culo matrimonial, podem lêr-âe em Gerdil- Trattato de1 matri- monio, discar80 prclivni~aare.

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Recanhecem elles que o contracto conjugal dos christãos não tem valor algum, enquanto não intervier a benção do sacerdote, e ue depois de ser dada a ben- Z ção, cessa o contracto e ica apenas subsistindo o sa- cramento. Por consequencia estão de accordo com os sectarios da outra opinião em que o contracto é inse- paravel do sacramento, pois foi o. ro rio contracto o que o Redemptor elevou á dignida g e i e sacrameiito.

A divergencia versa unicamente sobre um ponto. Os que consideram os contrahentes como ministros, sustentam que a efficacia sacramental foi annexa im- mediatamente ao contracto. Os sectarios da opinião contraria afirmam que a virtude sacramental é commu- nicada ao contraeto mediatamente,. por intermedio da bençáo sacerdot'al (forma do sacramento).

De que lado está a verdade? Abstenho-me de ser juiz n'uma causa, em que, de parte a parte, está em- penhada a auctoridade de tão graves theologos; e li- mitar-mehei a procurar no ensino da Egreja a luz nc- cessaria para agastar as obscuridades, inseparaveis da sciencia theologica como de todas as outras sciencias.

A doutrina da Egreja em parte alguma é formu- lada com mais clareza do que nas definições dos con- cilio~. .Ora, se consultarmos o decreto de Eugenio IV aos armenios, promulgado durante a continuação do concilio de Florença, lemos as seguintes palavras: C Se- ptimum est sacramentum. matrimonii ... Causa eficbns matrimonii regulariter * esl mutuus consensus per ver- ba de praesenti expressusb. O consentimento mutuo e manifestado, que origina o contracto, é tambem a causa

* O insuspeito canonista Vau-Espen adverte que a palavra regulariter não denota que possa haver outra causa efficiente do matrimonio, mas sim que o consentimento se pode exprimir por outros meios differentss do das palavras.

egciente do sacramento, e as duas entidades não po- dem existir separada uma da outra.

Esta conclusão se confirma pelo que encontramos definido no canon I da sessão' XXN do tridentino ácerea do sacramento do matrimonio, e que já fica transcripto (pag. 47). O canon diz que o matrimonio é um dos sete sacramentos da lei evangelica; mas se o sacramento, em logar de se identificar com o contra- cta, fosse .um acccssorio destinado a sanctifical-o, o coricilio deveria empregar outra linguagem e dizer, por ex., que ao contracto do matrimonio foi annexo um sacramento, que deve ser recebido posteriormente para sanetificar o contracto.

Na exposição doutrinal, que precede os canones relativos ao matrimonio, diz-se que Jesus Christo nos mereceu a graça, ue completa o amor natural, con-, firma a indissoluve ? unidade do vinculo e sanctifica os conjuges; e que em virtude d'essa graça são os matri- ,

monios christáos superiores aos da antiga lei, privados do caracter sacramental I. Esta conclusão de superiori- dade não seria logica, se o contracto matrimonial não estivesse identificado com o sacramento, para revestir uma auctoridade condigna. +

Qual seja a doutrina da Egreja ácerca da insepa- rabilidade entre o contracto e o sacramento, claramente se pode inferir do meio adoptado pelo concilio triden- tino para annulIar os matrimonios clandestinos. Não podia a Egreja declarar arbitrariamente que não ha sacramento onde se encontram os elementos da mate- ria, forma e intenção do ministro; por isso recorreu a um meio indirecto, declarou os contrahentes inhabeis

qej. Concilio tridentino, sess. KXIV, doctrina ds sacra- mento matrhonii.

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para contrahirem na ausencia do paroclio: e assim, an- nullado o contraclo, impediu que d'elle nascesse o sa- cramento l. Mas, aniquilando d'um só golpe o contra- cio e o sacramento, revelou a Egreja que os reputa inseparaveis e contidos no mesmo acbo.

Finalmente adduzirei, como urova decisiva em fa- vor da inseparabilidade, Ó da Egreja que tem semare considerado como concubinarios e mandado separar aquelles, que não receberam o sacrament~ e se contentaram com um supposto contracto. Assim o ensinaram varios Pontifices 4, e principalmente Pio IX que, na allocução dirigida aos cardeaes em 27 de se- tembro de 1852, a proposito da lei do casamento civil na republica da Nova-Granada disse: ~Nenlium calha- lico ignora, ou pode ignorar, que o matrimonio é ver- dadeira e propriamente um dos sete sacramentos da lei evangelica instituido por N. S. Jesus Christo, e que

, por isso entre os fieis não pode existir matrimonio, que ao mesmo tempo não seja sacramento; e que entre os christãos qualquer outra união de homem e mulher, excepto a do sacramento, embora feita por auctoridade da lei civil, é um torpe e detestavel concubinato con- demnado pela Egreja; e que por tanto nunca o sacra- mento pode ser separado da união conjugal, etc. R

A mesma doutrina tinha enunciado. aquelle vene rando Pontifice na carta dirigida ao reivictor Manuel, e datada de Castelgandolfo em 19 de setembro do

Vej. Concilio trident., sess. XXIV, ' dccretum de reform. Pnatr., cap. I.

. 2 Como foram: Pio V I na carta ao bispo de Motola (na Sioi- lia) em 16 de setembro de 1788, e n'outra carta dirigida a Uar- los, bispo de A ram (na Austria), em 11 de jiilho de 1780; e os pontifices Pio $111 e Gregorio XVI nas negociag6es entaboladas com o rei da Priissia, a fim de regular os matrimonios mixtos.

57 - mesmo anno I: e se pode inferir dos erros contidos na proposição LXXI do Syllabus 4.

Leão XIII, que ora preside aos destinos da Egreja; publicou em 10 de fevereiro de 1880 a encyclica- Arcanum divinae sa~inztiae consilium, relativa ao ma- trimonio christzo, e na qual se encontram as seguintes expressaes, dignas de serem lidas e meditadas: qEte- nim non potest hujusmodi distinctio, seu potius distra- ctio, probari: cum exploratum sit in matrimonio chris- tiano cont~actuna a .sacramento non esse dissociabilem; a t p e ideo non posse contractum verum et legitimum consistere, quin sit eo ipso sacramentum~.

Com esta solemne declaração da doutrina catholica, que expressamente affirma a inseparabilidade entre o contracto e o sacramento, dou por terminada a de- monstração do presente capitulo.

1 a É doutrina da Egreja catholica que o sacramento bBo Q qualidade sccidental junta ao contracto, mas é da essencia do pro- prio matrimonio, de modo que a uni80 conjugal entre os christfios n8o 4 legitima se nHo no sacrnmento do matrimonio, f6ra do qual ha apenas um mero concubinaton.

Propos. 66.": ~Matrimonii sacramentum non est nisi'quid coutractui'accessoriiim ab eoqiie separa6ilc, ipsumque sacramen- tum in una tantum nuptiali benedictione situm e s t ~ .

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Qual o m i n i s t e do sacrameuta do matrimonio?

Gravissimas discussões se têem levantado entre os theologos catholicos ácerca do ministro do matrimonio, affirmando uns que é o sacerdote, e outros, que são os proprios contraheuies. Eiri favor d'esta ultima opinião militam argumentos de inconiestavel valor, embora re- conheçamos que não se pode facilmente responder a algumas das razões, invocadas pelos defensores da pri- meira.

De bom grado eu deixaria esta controversia encer- rada nas obras classicas da Theologia, se da solução d'ella não dependesse um dos grandes sustentaculos d a erronea separação entre o contracto e o sacramento. Na verdade, todos os defensores do casamento civil adoptam a opinião dos theologos, que consideram o sacerdote como ministro do matrimonio, encarregado de sanctificar (pela adjuncção da forma) o contracto, que já existia previamente, como materia remota do sacramento. = ~

Pertencendo á auctoridadb civil o regular e deter- minar .as condições necessarias para a validade dos contractos, flue camo logica consequencia que ao Es- tado pertence toda a jurisdicção sobre o contracto ma- trimonial. Assim argumentava no seculo XVI Paulo Sarpi, e os regalistas não se esqueceram de reeditar o argumento, com o fim de referir á exclusiva competen- cia do Estado o poder de estabelecer impedimentos dirimentes do matrimonio.

D'este modo Ecam as imperantes civis com o di- reito de alterar, supprimir on ampliar os impedimen- tos adoptados pela Egreja, e a legislação ecclesiastica terá de limitar-se ás condições do sacramento, e á apreciação dos seus effeitos espirituaes. A lei civil po- derá reconhecer como validas e legitimas (no foro ex- terno) as uniões' de homem e mulher, independentes de qualquer rito religioso.

Estas consequencias estavam sem duvida muito lon e da mente. de Melchior Cano, quando IIO anrio de 15&, pouco antes da XXIV sess5o do concilio triden- tino, imprimia em Salamanca a sua notavel obra-De Cocis theologicis. Foi no livro VIII, cap. 5.", d'esta obra que pela primeira vez se pretendeu demonstrar que a essencia do matrimonio christão consiste na bençáo sa- cerdotal, e não no consentimento mutuamente expresso e acceito. I.

Não obstante o caracter de novidade, que a devia tornar suspeita, essa doutrina encontrou desde logo defensores até no seio do concilio tridentino, onde Simão Vigor e poucos outros a defenderam contra a opinião commum 9. Posteriormente a doutrina de Melchior Cano foi adoptada por muitos theologos e canonistas 3, prin-

1 Melchior Cano e outros pretenderam attribuir a esta opiniáo uma origem mais antiga, affirmando que estava jB, consiguada nos escriptos de Guilherme, arcebispo de Paris (an. 1249), de Santo Thomaz (an. L274), de Pedro Pnludano (an. 1340), e nas decisóes do concilio provincial de Colqnia, reunido em 1536. Mas Perrone demonstrou qiie a legitima paternidade de tal doiitrina pertencia ao celebre bispo das Canarias. Vej. De naatrimnio christiano, lib. I, nect. l.", oap. I& art. J." e 2."

Vej. Pallavicini- Storta de1 concilio di Trmto, livr. XX, cap. 4.0, nP 1. *

3 Taes foram: Sylvio, Estio, Juvenin, Piette, Gibert, Du-Ha- mel, I'Herminier, Toumely, Dobmayer, e ainda modernamente 60

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cipalmente nx bllema~ha, onde a doutrina contraria foi apodada de. menos orthodoxa, chimerica e absurda.

Nunca faltou, porém,. quem impugnasse a opinião de Melchior Cano, principalmente nos tempos moder- nos, depois que as declaraçães da Santa Sé não dei- xaram duvida ácerea da verdadeira doutrina da Egreja sobre este ponto. Apontarei rapidamente os funda- mentos de uma e outra opinião.

ARTIGO 1

OS CONTRAHENTES SaO OS 3fiNiSTROS DO S A C W E N T O

DO MATRIMONIO ,

I. Da Biblia n50 podemos invocar argumento al- gum decisivo em favor d'esta doutrina; todavia da con- frontação do v. 32 do-cap. V da epistola ad Ephesios com o seu antecedente, resulta que Jesus Cliristo, in- stituindo'~ sacrament.0 do matriinonio, apenas saneti- ficou o acto conjugal, que a existia desde o principio do mundo; de forma que to i' a a effieacia do sacramento ficou intrinseca ao contracto conjugal, e dependendo sómente d4 consentimento dos conjuges.

Este conceito do matrimonio cliristão, talbomo re- sulta do ensino do Apostolo, vem confirmar a doutrina commum dos theologos catl~olicos, .que consideram o matrimonio como um sacramento permanente, analogo ao da eucharistia. Essa permanencia indica que a es- sencia do sacramento se identifica com o vinculo con- jugal,.e 1150 consiste em qualquer acto transitorio.

inciinaram para 8 meema opiniao Carrières e Knoll.

61

1L.A Tradi~ão constante e universal da Egreja esclarece e corrobora a interpretaç% attribuida ao texto de S. Paulo. Os Padres dos primeiros seculos da Egreja consideravam como verdadeiros sacramentos as segun- das nupcias, ás quaes a legislação canonica prohibia que se désse a benção. E não s6 n'este caso, mas em muitos outros se reconhecia a validade do matrimonio, destituido da benção sacerdotal: é geralmente conhe- cida a passagem em que Tertulliano diz: [Entre nós ' os matrímonios clandestinos correm rzsco de ser tidos como adulterios ou concubinatos 2 . Logo nüo emm con- cubinatos, mas legitimas matrimonios.

Se os Padres tinham como verdadeiros e legitimos alguns matrimonios, em que não intervinha o sacer-

,dote, afirmavam implicitamente que os contrahentes eram os ministros do sacramento. Effectivamente elles viam no acto dos contrahentes, isto é, na mutua en- trega e acceitação dos corpos, toda a essencia da sa- cramento, e fallam da benção como osterior e acces-

nas obras dos escholasticds. P soria ? E mais claramente foi formu ada esta doutrina

Hugo dc S. Victor diz que a virtude do sacramen- to mnsiste no legitimo consentimento, de maneira que, se dguem negar o matrirnonio clandestino e contrahir outras nupcias em face da Egreja, subsiste o primeiro

1 Tertullirno a ia das citadas expressões no tratado d b p d i - citia, escripto depois de haver cahido no erro dos montanistas. Porem. n'este ponto, a doutrina - de -. Montano estam em plena conforkidade c& a da Egreja catholica.

2 A proposito do impedimento de disparidade de cultos escre- veu S. Ambrosio, na ep: XIX ad Vigiliurn: cCum ipsum conjlr- gium selatione sacerdotali et benedictione sanct$cari oporteat, quomodo potest conjugi~un dici, 11bi non est fidei concordia?~

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consorcio, embora no [firo externo se decida o contra- rio or falta de provas 1.

%inguem resumiu e interpretou a doutrina dos Padres e a tradição da Egreja coin mais clareza e pro- fundidade do que Santo Thomaz de Aquino.. Ora o Doutor angelico diz claramente que á essencia do sa- cramento pertence o consentimento manifestado por palauras de presente entre pessoas legitimas (idoneas , e que tudo o mais pertence sómente á solemnidade d o mesmo sacramento; respondendo a uma objecção, que oppae á sua propria doutrina, formula esta conclusão: ~ I d e o sacerdotis benedictio non requiritur in matrimo- nio qvasi de essentia sacrameriti, 2.

E digna de lêr-se a argumentação, que Santo Tho- maz apresenta para rebater os que consideram o sa- cerdote como ministro do matrimonio: (Posta a causa, diz elle, segue-se o effeito; mas a causa effiuente do matrimonio é o consentimento expresso por palavras de presente. Logo, ou se faça publica ou occultamen- te, segue-se o matrimonio. Além d'isso h'a sacramento sempre que se dér a devidd materia e forma; mas no matrimonio oeculto ha a devida materia, que são as pessoas idoneas para contrahir, e a devida forma, que são as palavras de presente que exprimem o consenti- mento. Logo ha verdadeiro sacramento^.

Depois de tão claro e auctorisado testemunho so- mente pode ser invocado o da Egreja universal que, reunida no concilio' de Trento, decidiu: ( Tametsi du- bitandum non est clandestina matrimonia, libero con- trahentium consensu facta, rata et vera esse matrimo-

DcJidei sacramato libr. 11, part. XI, cap. 5." Ia qwtuor Sententiar. diat. XXVIIT, quaest. I, art. 3,"

nia, quandiu Eeclesia ea irrita non fecit; et proinde jure damnandi sint illi, ut eos sancta synodus anathe- mate damnat, qui ea vera ac rata esse negant,..~ ?

Qual fosse a mente do concilio, quando declarou os matrimonios clandestinos verdadeiros e ratos, dil-o o decreto de Innocencio 111, inserto no corpo do di- reito canonico, que, apresentando a indissolubilida- de como um caracter que distingue o matrimonio christão do matrimonio dos infieis, diz que entre estes ha matrimonios verdadeiros; mas s6mente os ca- samentos dos christãos são verdadeiros e ratos, por isso que são sacramentos S. Vêmos, pois; que havia matri- monios sacramentos sem a intervenção do sacerdote, isto é, cujos ministros eram os contrahentes.

Tão arraigada estava esta convicção no animo dos Padres de Trbnto que, nas reuniaes preparatorias da sessão XXlV, sustentaram alguns que a Egreja não podia annullar os matrimonios clandestinos, porque ti- nham si os requisibs essencim do sacramento. Quando se discutiu o modo de tornar- publicas os casamentos dos fieis, apparecerarn varias moções, em que se exigia a presença de testemunhas fidedignas, sem que se fallasse do paroclio.

Mas o cardeal de Lorena ponderou que, sendo a perda da graça sacramental um dos inco~ivenientes dos matrimonios clandestinos, se deveria exigir a benção sacerdotal para a efficacia do sacramento. Os prela-

1 Trid. sess. XXIV, deeret. de ref. nzatr., cap. I . 2 aNam etsi matrimonium verum inter infideles existst, non

tamen est raium: inter fidelen sutem v e w m et ratum existit: quis sscrament~im fidei, quod semel est admissum, numquam amitti- tur, sed ratum efficit conjufi saoramentum..;~ Ddcret. libr. IV, tit. XIX, cap. Quanto, De divoi.tiis.

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dos, reconhecendo a conveniencia de que houvesse uma testemunha fixa e ermanente, hesitaram todavia entre a escolha de um ta !I ellião e a do parocho, até que finalmente se decidiram por este ultimo, ou delegado seu ou do Ordinario 1.

O que se deve concluir? Que os Padres do conci- lio de Trento não consideraram o parocho como mi- nistro do matrimonio, mas sim* como 'testemunha qua- lificada 9: e as palavras-ego vos in mtrimoniurn con- jungo ... não constituem a forma do sacramento, pois que o concilio permitte que se empreguem quaesquer outras, segundo o rito 'adoptado em cada provincia, como succede em muitas dioceses da Allemanha.

Já tive occasião de citar as palavras de Eugenio N, na instrucção dirigida aos armenios, em que se lê: u Causa eficiens matrimonii regulariter est mutuus con- sensus per verba de praesenti expressus n . Se o con- sentimento é causa efficiente do matrimonio, os con- trahentes, que exprimem o consentimento, fazem o sacramento, isto é, sâo os ministros., A palavra matri- monu é tomada, n'este como em outros documentos ecclesiasticos, no sentido de sacramento; o antecedente

Bej.Pallavicini-Storia &l concilio di l'rento, livr. XXII, cap. IV, nPB 3 a 16, cap. VI, u.' 17 e seg.

2, De outra sorte a Egreja n&o reputaria como verdadeiros matrimonioa os qiie se faaem perante o parocho, mas por meio de surpreza ou coacção; pois ningnem pode administrar sacramentos contra a sua expressa ~ontade. Aos que assim casam prohibe a Egreja as bençãos swerdotaes, embora dêem provas de arrepeu- dimen to.

A Egreja reconhece como validos os matrimonios a que as- siste o parocbo ainda diacono, durante o anno qne o direito cano- niw lhe cencede para administrar a parochia, antes de receber a ordem de presbytero. O.que novamente demonstra não ser neces- sario o sacerdote como ministro do matrimonio.

da passagem citada diz: Septimum est sacranzentum matrimonii.

IiI. A praxe da Egreja harmonisa-se com as de- cisõçs dos concilias. Os antigos rituaes das egrejas do Occidente não apresentavam formula alguma, que in- dicasse pertencer a administração do matrimonio ao sacerdote, como ao seu unico e legitimo ministro. Tan- to os rituaes latinos, como os ez~cl~ologios da Egreja grega, consideram as ceremoaias da benção, coroação, etc., como accessorias ao matrimonio já realisado e completo. O sacerdote 1150 faz iiem administra o ma- trimonio; apenas o confirma e benze '.

Em varias circumstancias reconheceram os ,Ponti- fie& romanos a validade de matrirnonios, celebrados sem a intervenção do sacerdote. Em 30 de Maio de 1669 determinou Clemente IX que no Malabar' os fieis podessem contrahir matrimonio sómente na presença

#:i imo o encon- de duas testemunhas, por ser ahi diili '1' trar sacerdote.'

Regulando os matrimonios mixtos íla Hollanda, em 4 de Novembro de 1741, determinou Bento X N que os paroclios tivessem apenas uma assistencia pas- siva, sem dar a benção nem manilestar a sua appro-

vaçãO f or qualquer outro rito. Em 22 de Abril de i795 oi consultada uma congregação romana, incum- bida especialmente dos negocios relativos á Egreja de França, sobre se conviria s u p r i r a benção nos matri- monios, que tivessem sido celebrados sem ella por não

Na confssao orthodoxa de fé, publicada no OAente contra os erros de Cy rillo Liicaris, se ensina claramente: asextum sa- cramentum est matrimonium, quod postquana futuri sponsi sibi mutiio fidem conjugalem dederunt, cst conftilaatum atque byedi- ctuin a sacerdote^.

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ser possivel recorrer ao sacerdote; e a congregação respondeu que se désse a benção aos conjuges, que a pedissem, advertindo-os porém de que .não se requeria Para a validade do matrimonio.

O Pontifice Pio IX, condemnando em 1851 o; er- ros do canonista J. N. Nuytz, aponta designadamenje a falsa doutrina, que posteriormente formou a LXVI proposição do Syllabus, e que termina: cipsumque sa- cramentum (matrimonii) in una tantum nuptiali bene- dictione situm e s t ~ . Logo é doutrina catholica que a essencia do matrirnonio não consiste na benção sacer- dotal. -

Todavia, para que não seja accusado de a r m a - ções gratuitas, ou de parcialidade na controversia, indi- carei os argumentos mais importantes, em que se ba- sea a opinião contraria.

ARTIGO U

ANALYSE DOS PRINCIPAES ARGUAIEINTOS DOS ADVERSARIOS .

I. A Biblia tem sido invocada para demonstrar que o sacerdote é o ministro do matrimonio. Dobmager cita com toda a confiança a i." epistola de S. Paulo aos fieis de Corintho, em que se l&em estas palavras: cSic nos existimet homo ut ministros Chriiti et dis- pensatores mysteriorz~m Dei (cap. IV, v. 1 ) ~ . O Apos- tolo anima. #um modo geral que ao sacerdote com- pete a administração dos sacramentos divinos, e por- tanto, conclue Dobmager, a ninguem é licito exceptuar o matrimonio.

O argumento poderia ter alguma importancia, se não repugnasse com as regras da boa hermeneutica. No

contexto proximo, que são os iiltim~versiculos do cap. L I I . falla S. Paulo da inanidade da sabedoria humana, com o scôpo evidente de fazer comprehen- der aos de Corintho que deviam respeitar nos evange- lisadores a doutrina sobrehumana, que annunciavam, e não exigir d'eiles a eloquencia e sciencia vã d'este mundo I. E neste sentido que o Aposto10 f i r m a , em seguida, que a fidelidade é a principal virtude dos dis- penseiros.

Fallava, pois, dos dogmas e não dos sacramentos. Mas, se quizerem incluir estes no sentido geral do tex- to, responderemos que tanto se pode dizer que admi- nistra e disl~ensa o matrimonio o sacerdote que o faz, como a auctoridade que regula as condições para a siia valida e legitima administração.

11. 'São innumeraveis os argumentos da Tradição, invocados por Melchior Cano e seus sequazes. Como esta obra tem de ser submettids a uma discussão oral e publica, na qual serão naturalmente suppridas as deficiencias do trabalho escripto, omittirei aqui a in- dividualisação d'esses textos, limitando-me a algumas observações geraes.

Citam varias passagens dos antigos Padres da Egreja, em que se diz ue. Jesus Christo, convidado para as bodas de Caná, 1 oi assistir a . ellas para lhes conferir uma benção, que se estenderia a todos os ma- trimonios futuros, sendo administrada pelos sacerdotes como forma do sacramento. Mas o Salvador foi assis- tir ao banquete nupcial, depois de já estar contrahido

1 Com esta interpretaç80 dos catholioos Cornelio a Lapide, Calmet, T i o e Piquig~y concordam as exegetas protestantes e racionalistas, como J. C-. Rosenrnüller.

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o câsamento; e, se a missão do sacerdocio christão é analoga á de Christo, deve limitar-se á benção dos consoreios dos fieis, depois de coiitrahidos pelo mutuo consentimento.

As decretaes dos Pontifices romanos e oulros ar- gumentos tirados do Direito canonico, além de terem o defeito quasi geral de serem documentos apocryphos, não dirimem a. coniroversia, porque não dizem expres- samente, ou por termos equivalentes, que o sacerdote 6 o minktro, e a benção a forma do sacraento do matrimonio.

Já indiquei os motivos, pèlos quaes a Egreja de- testou e prohibiu sempre as uniões clandestinas, e or- denou que os conjuges recebessem a benção sacerdo- tal (pag. 17). Nem se diga que os matrimonios clan- destinos, considerados pela Egreja como validos (con- tractos), não podiam todavia ter a natureza de sacra: mentos, porque os Padres os equipararam a adulterios. O argumento não passa de ser uma petição de princi- pio, porque suppõe a separabilidade entre o contracto e Q sacramento, que é inadrnissivel (cap. 11). Os ma- trimonios clandestinos foram equiparados a adulterios, porque os nubentes, celebrando-os contra as leis da Egre-a, se privavim da graça sacramental.

ds Pontifices romanos, os concilias geraes e par- ticulares, impunham como obrigatoria a benção, não porque a reputassem essepcial ao sacramento, mas porque concorria para solemnisar, sanctificar e fazer notorio o matrimonio. O espirito da legislação canoni- ca, sobre este assumpto, patentea-se á simples inspec- ção dos documentos que exigiam, a par da benção dos nubentes, a do annel, das coroas, do veu, etc.; bem como impunham, sob penas identicas ás da falta de

benção, a'celebração dos esponsaes, o dote e outros requisitos.

Tem-se invocado tambem o decreto de Clemente V, que prohibiu aos religiosos o administrarem, sem licença especial do parocho, o sacramento da extrema uncção ou da eucharistia, ou solemnisarem os sntltd- nzonios; e d'aqui se inferiu que o sacerdote é o minis- tro do matrimonio, como dos outros sacramentos. Basta

orém attender á diversidade de expressõesCmprega- i a s no deacio I, para se concluir que é muito diífe- rente a missão do sacerdote quando administra a eu- charistia ou a extrema uncção, e quando sohnnisa os matrimonios.

III. Vencidos no campo da Tradição theorica, re- comem os sectarios de Melchior Cano para a p a x e da Egreja, citando documentos, em que se chama ao sa- cerdote ministro do matrimonio. Tal é o Sacerdotale ro- manum, publicado em 1494, no qual se diz a propo- sito do matrimonio: t Sacerdos pronuntiet verba, quae sunt forma hujus sacramenti):

Mas os que invocam este documento, omittem as palavras subsequentes-cunz consensu utriuspue, que tornam necessaria a intervenção dos conjuges para a forma do sacramento &; o mesmo ritual diz que os con- trahentes são a materia do sacramento. Ora, se elles applicam a forma á materia, são os ministros; a pro- pria inscripção do capitulo distingue entre a benção e

1 a.. . sacramentiim unctionis extremae, vel euchari~tiae mi- nistrare, matrimaniave ~olemnirares. Olementin. libr. V, tit. VIU, De privilegiis, cap. I. Religiosi.

Nas edições posteriores adverte que as palavras do sacer- dote-ego vos conjlmgo ... podem ser siib~tituidas por outras, em harmonia com o decreto do concilio tridentino.

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o sacramento, orque diz: De forma colitrahendi ma- trimonium .et c/' e ejus benedictione.

a Ainda se costuma citar o privilegio, pelo qual Cle- mente VIII permittiu aos carmelitas descalços que, no territorio das missões, substituissem: os parochos na administração do matrimonio e dos outros sacramen- tos..Mas tanto este, como outros documentos publica- dos depois do concilio de Trento, que exigiu a presença do parocho para a validade do acto conjugal, fallam n'iini sentido lato e menos rigoroso, conio se dissessem que o sacerdote é ministro da solemnidade do matri- tnonio. E neste sentido' que diariamente dizemos que o parocho administra o sacramento do matrimonio.

1V. Para não deixar refugio algum á opinião dos adversarios, apreciarei aqui rapidamente os mais im- portantes dos argumentos, que elles baseam na.vbazão theologica. Ouçamol-os.

O sacraineiito, sendo signal sensivel da graça di- vina, deve conter em si uma certa semelhança do ef- feito espiritual, que representa e produz. Mas as pa- lavras-Eu te recebo ..., empregadas nos matrimoiiios clandestinos, não apresentam caracter algum re1i:rioso; são exactamente as mesmas, que proferem os infieis em suas nupcias. Para que taes palavras podessem ser tidas como forma de um sacramento, deveriam ser de instituição divina, e por conseguinte fixas e inaliera- veis; vêmos orém que Ihes falta uma e outra das con- diçóes exigi R as.

N'este argumento se revela mais uma vez que o conceito, formado pelos adversarios ácerca do matri- monio chrisião, não se conforma com o conceito, que do mesiilo nos dão a Biblia, a Tradição e a praxe constante da Egreja. Addicionando a graça aos matri-

mo~ios da Antiga Lei, Jesus Christo elevou-os de actos natnraes a sagrados, e destinou-os a significar e pro- deczir a graça por virtude intrinseca, e independente da intervenção dos sacerdotes.

Restabelecida esta primeira noção, é facil a res- posta ao argumento. Embora as palavras, que expri- mem o consentimento, sejam communs aos christãos e aos infieis, é mui diversa a intenm, com que são pro - nunciadas, e o efeito que produzem. Na bocca do christão aquellas palavras communs adquirem um ca- racter sagrado, porque o Salvador as consagrou para significarem a sua união com a E g r e k .

Nem se diga que a forma dos sacramentos é sem- pre de instituição divina, e por isso absolutamente iri- alteravel. Assim succede en uanto ao sentido da forma; mas as palawas podem ser ?l e instituição ecclesiastica; ninguem ignora que o Redemptor sómente formulou as palavras de dous sacramentos: o baptismo e a eucha- ristia. A forma dos outros sacramentos tem variado nos ddferentes seculos da Egreja 1, e ainda hoje ha notaveis differeiiças entre a liturgia grega e a latina.

Attendendo á natureza peculiar do sacramento do matrimonio, natureza que lhe resulta de haver nascido de um contracto, é facil de com rehender como pode ter havido maior variedade na ! orina d'este, do que na dos outros sacramentos. A forma do matrimonio pode consistir em palavras, gestos ou signaes, que exprimam o consentimento.

Tambem se costuma allegar que nos matrimonios clandestinos falta o ministro, porque os nubentes não

Por exemplo: s Egreja Ialilia ji adniiuistrou 8 extrema uncçáo com forma indicativa, e o sacramento da penitencia com =

forma depreccativa. Actualmente succede o contrario.

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podem ser ministros~iim a respeito do outro. Mas esta impossibilidade funda-se unicamente n'uma asserçáo gratuita: assim como n'um contracto bilateral cada um

actriantes Q simultaneamente sujeito de direitos e de o % rigações, activo e passivo, assim no mcztrimonio cada um dos conjuges é rnilaistl.~, enquanto exprime o consentimento; e é sujeito do sacramento, enquanto o outro profere sobre elle as mesmas p3lavras do lon- sentimento.

No matrimonio presumido de diuturna coliabitação o sacramento começa, desde que existir o contracto. Se a coliitação é acompanhada do affecto marital, ou d'aquella intençáio, que se requer para um verdadeiro contracto matrimonial, já envolve na sua essencia o sacramento, como signal efficaz da união de Christo com a Egreja. Vem aqui a proposito o recordar as pa- lavras do sabio Pontifice Leão XII[: ~Christus Domi- nus dignitat~ sacramenti auxit matriinonium; matrimo- nium autem est ipse contractas, si modo sit factus jure ' 3 .

Deve porém n0ta.r-se que nos matrimonios clan- destinos a graça sacramental fica suspensa, e os nu- bentes sómente a recebem, depois de removido o obice pela penitencia.

Reconheço as graves difEculdades, que se encon- tram em ex licar como nasce o sacramento ara os a conjuges in eis, que entram para o gremio d a k greja, priicipalmente se o seu baptismo não fôr simultaneo; ou como pode ter o carncter de sacramento o consor- cio celebrado entre um baptisado e uma catechumena, ou vice-versa. Sobre estes pontos debatem-se nas es-

cholas muitas opiniões diversas; não deve porém esque- cer-se que todos os do mas de uma religião sobrena- f tural estão sujeitos a o scuridades.

Apresentam-se ainda seriás objecções contra os ma- trimonios por procuração; mas essas dificuldades sur- giriam egualmente nos espiritos, que considerassem o sacerdote como ministro do matrimonio, porque ellas resultam da indole especial, que este sacramento ad- quire em virtude do contracto.

Para concluir este capitulo, advertirei que sem fundamento se argumenta contra a doutrina hoje com- mum entre os theologos, dizendo que os conjuges igno- ram que são os ministros, e por isso não teem a neces- saria intenção de fazer o sacraniento.

Os conjuges christãos têem o firme proposito de empregarem da sua parte todas as condiçoes necessa- rias para que do seu acta commum resulte um verda- deiro matrimonio, tal como Jesus Christo o instituiu. Esse proposito envolve a intenção implicita de fazer o sacramento, porque elles determinam a nateria pela .applicação da forma; logo (embora o ignorem) são os os ministros do matrimonio.

1 N P ~ encyoliea-Arcaaum divinoe sapientiae consilium, de 10 de Fevereiro de 1880,

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CAPITULO IV

Em face da doutrina catholica será licito o casamento civil?

Conhecidos os principias dogmaticos e juridicos da Egreja, possuimos todos os dados necessarios para a solução do problema. Pergunta-se: é licito o casamento civil? quer dizer, nos paizes, em que foi recebido e publicado o decreto do concilio tridentino, é licito aos cliristãos o irem contrahir matrimonio perante um ma- gistrado civil, sem a assistencia do parocho, e passa- rem a viver matrimonialmente?

Respondo.peremptoriamente que não. O decreto do tridentino é muito explicito; declara inhabeis para con- trahir os que intentarem celebrar o matrimonio de ou- tra forma, que não seja na presença do parocho, ou de outro sacerdote com licença do mesmo parocho ou do Ordinario, e na de duas ou tres testemunhas; e de fado annulla taes contractos I . Nos termos d'este de- creto o casamento civil não é valido como sacramento, nem 'como contracto; quando isso não constasse clara- mente do debreto, já ficava demonstrado que as duas entidades são inseparaveis (cap. II).

Aos olhos da consciencia é illegitima uma tal união, e os que se contentam com ella, e não recebem o sa- cramento do matrimonio, vivem em concubinato. Pouco importa que essa união seja reconhecida como legitima perante a lei civil. Os decretos do home~n não podem

TridP, sess. XXIV, Decrst. de rejoma, matr. cap. L

cohonestar o que por sua natureza é torpe, ou tornar licito o acto prohibido pela lei evangelica e canonica.

A despeito de todos os clamores e protestos, a Egreja usa de um legitimo direito, quando considera os que apenas contrahiram união civil como peccado- res publicos e escandalosos, sujeitos ás penas canoni- cas, que varios concilios estatuiram contra os amance- bados, e nomeadamente ás do concilio tridentino, que os manda excommungar depois de tres admoestações feitas pelo Ordinario; e se des resarem as penas espi- i rituaes, continuando no concu inato por espaço de um anno, sejam severamente punidos, invocando-se o au- xilio do braço secular I.

O Estado, pela sua prepotencia, obstará sem du- vida a que taes penas sejam applicadas aos que con- trahiram o chamado casamento civil. Mas não poderá impedir as penas meramente espirituaes e internas; não poderá obrigar os ministros da Eçre a a adminis- i trar-lhes os sacramentos, ou a conceder-1 es sepultura ecclesiastica (no caso de morrerem impenitentes). Os lillios nascidos de taes uniões serão equiparados, no juizo da Egreja, aos lillios illegitimos, e como taes ex- cluidos das ordens e beneficias.

Os Pontifices romanos têem solemnemente protes- tado contra a IegiSlação dos paizes catliolicos, que pre- tenderam separar o contracto civil do sacramento. Quan- do o rojecto de lei sobre o casamento civil se discutia nas 8 amaras do Piemonte, escreveu Pio IX a .Victor Manuel a carta já citada, em que diz: ca união conju- gal entre os christãos não é legitima, senão no matri- monio sacramento, fóra do qual sómente pode haver um puro concubinato~ .

1 Trid.O, lig. cit., cap. VIII.

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Pouco tempo depois discutia-sc analogo projecto na republica de Nova-Granada, e o mesmo Pontifice dizia no consistorio de 27 de Setembro de 1852: cquamlibet aliam titer christianos viri et mulieris, praeter sacramentum , conjunctionem , eujuscuntque etiam civilis legis vi initanz, niliil aliud esse nisi tur-

em ac exitialem concubinatum ab Ecclesia tantopere iamnatum8. ,

Pelo mesmo motivo se encontra, entre os erros con- demnados no S?yllabus, a proposição LXXIII: a Vi con- tractus mere civilis potest inter christianos constare veri nominis matrimonium; falsumque est aut contra- ctum matrimonii inter christianos semper esse sacra- mentum aut nulium esse contractum, si sacramentum excludaturt.

Finalmente encontramos o casamento civil conde- mnado n'um documento recente e solennissimo da Sé Apostolica. Na sua notavel enc clica de 40 de Feve- reiro de 1880 diz o Pontifice ?L eão XIII: a Omnibus exploratum esse debet, si qua conjunctio viri et mulieris inter Christifideles citra sacramentum contrahatur, earn vi ac ratione justi matrimonii carere; et qzlamvis cmz- venienter legihs ciuicis fucta sit, tamen pliiris esse non

uam ritum aut morem, jure civili introductum~ . I'""% ontifices romanos levantaram a sua voz aucto-

risada contra o casamento civil, não porque quizessem conservar uma injusta preponderancia na ordem poli- tica, mas porque a sua posição de chefes supremos da Egreja Ihes impunha o dever de protestar contra um acto torpee illicito em si mesmo, e que por suas eon- sequencjas se torna prejudicialissimo á sociedade.

Persuadido o Estado de que o matrimonio cahe sob a sua inteira e immediata jurisdicção, determinará ar-

bitrariamente os respectivos impedimentos, sem que tenha em consideração as prescripções das leis cano- nicas. E de uma tal indifferença, ou antes repugnancia, resultarão gravissimas perturbaçaes entre o Estado e a Egreja, e os subditos ficarão indecisos entre as sen- tenças contradictorias do tribunal civil e do ecclesias- tico.

Depois de contrahido um casamento civil, que não pode receber a sanctificação religiosa por causa de al- gum impedimento canonico,,se um dos conjuges, obe- decendo aos dictarnes da.conscieucia, se tiver apartado do outro, e pretender contraliir novo matrimonio em face da Egreja, as leis civis obrigal-o-hb a permaner na primeira união, que a consciencia lhe diz ser illi- cita: e d'este modo serh violada a liberdade de conscien- cia dos cidadãos.

Mas esta consideração adverte-me de que é tem o de estudar o casamento civil em faxe da philosopRo social.

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PARTE SEGUNDA

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uLes nátions souffrent ou prospèrent selon qu'elles respectent ou violent la loi de Dieu, et les coiitumes qui en dirivento.

\

PARTL SEGUNDA O CASABEllii i:1\11. PERANTE A 1'1111.i~Sii1'111~ SOCIAL

LE PLAY (La constitution csnglaisc).

CAPITULO I

A missáo do Eslado e o scu poder Leerca do malrimonio

Fica demonstrado que o casamento civil é incon- ciliavel com a doutrina catholica; mas essa incom ati- bilidade não basta, para que elle seja rejeitado a \ so- lutamente. O Estado pode allegar ou que o evangelho não é a unica crença religiosa dos seus subditos, ou que o bem social o determina a legislar com plena in- dependencia dos principios i~eligiosos.

Encetando esta nova phase da discussão, importa averiguar se o fim do Estado é identico, diverso ou opposto ao fim da Egreja; para d'ahi concluirmos se as duas sociedades, civil e religiosa, têem uma vida e funcções independentes, ou são obrigadas á concordia e mutuo auxilio.

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É indubitavel que o fim proximo e directo do Es- tado consiste em obter a prosperidade temporal dos associados, empregando como meios principaes a ma- nutenção da ordem e moralidade publica, e a defeza dos direitos individuaes.

E pela vontade de Deus, auctor da natureza hu- mana, que os individuos reunem os seus esforços, sob a direcção de uma auctoridade suprema, para torna- rem mais facil e segura a consecução do seu fim tem- poral e secundario. Por consegilinte o Estado gão s6 é uma sociedade perfeita e completa, com exi tencia propria e independente, mas até possue um poder so- berano na sua esphera, poder que lhe vem de Deus, mas não por intermedio da Egreja. Esta não deve p6r obstaculos ao exercicio do poder legislativo, judicial e executivo, que compete á sociedade olitica. f Mas o hstado, tendendo ao seu m directo e par- ticular, não pode nem deve prescindir do fim ultimo do homem. Com effeito a felicidade presente depende do pleno desenvolvimento das faculdades do espirito e das aptidoes do corpo, e este desenvolvimento está subordinado a uma norma ou directriz, o bem; e dirige- se a um alvo, que é Deus.

D'onde se conclue que em nenhum dos seus actos deve o homem esquecer o seu fim ultimo, ou postergar os deveres religiosos. Compete ao Estado acceitar o homem tal como elle é; e por isso não pode separar-se da religião, porque seria separar-se de Deus, ou ten- tar o impossivel; seria querer a propria morte, abdi- car toda a auctoridade moral, para buscar como unico apoio a tyrannia da força.

Poderá dizer-se: o Estado não se occupa da reli- gião, legisla e procede, como se ella não existisse. Mas

é certo que a Egreja existe pela vontade de Deus e dos homens; ainda mesmo que os representantes do Estado declarem que não professam religião alguma, têem obrigação de examinar os direitos da Egreja, para que os não violem. Esses direitos não se extin- guem em presença &uma negação arbitraria.

E não s6 as leis do Estado se devem harmonisar com as prescripções da Egreja, mas até, em certo sen- tido, lhe estão sujeitas, como o fim secundario do ho- . mem é subordinado ao fim ultimo.

Na verdade, a esphera de acção do Estado é cir- cumscripta pela sua missão, restringe-se ás condições necessarias para obter a prosperidade da vida presente. Cãmo porém Deus não quer cousas incompativeis, é manifesto que os principios divinamente revelados do christianismo nunca podem prejudicar os legitimas in- teresses da sociedade civil.

Tal é a serie de deducções logicas, a que nos pode conduzir o simples bom senso. Se acontecer que a Egreja e o Estado promulguem sobre o mesmo as- sumpto leis contradictorias, ha erro ou usurpaçb de uma ou outra parte. Mas de qual?

O Estado, não sendo infallivel, pode trahir a sua missão e fazer leis nocivas e iniquas; tanto mais que, dispondo da força, está sempre tentado a abusar. Por consequencia não lhe devemos uma obediencia cega; podemos estar dispensados de cumprir as suas deter- minações, temos até obrigação de omittir os seus pre- ceitos, quando assim o determina a lei de Deus, da ra- zão, ou da auctoridade infallivel da Egreja.

Apparecendo divergencias ácerca de negocios m k - tos, e não sendo possivel chegarem a um accordo as duas potencias, é o Estado que deve ceder. Ficará por

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tal motivo humilhado? Não pode ficar, porque cede a uma auctoridade legitima e infallivcl; cede a uma au- ctoridade, que representa os grandes interesses da vida futura.

Se a auctoridade do Estado se estende até onde o exigir o bem publico, pode e deve a lei civil regular ácerca do matrimonio tudo o que é accessorio e extrin- seco, isto é, os actos que o precedem, e os effeitos civis que d'elle se seguem I.

A Egrcja, como M3e commum dos individuos e das nações, promulga certas leis universaes, sem at- tender a diversidade dos tempos ou dos logares. Ora pode succeder que uma nação soffreria damno, se per- mittisse certas nupcias, a l i a validas e legitimas r- rante a legislação canonica. N'este caso a lei prohi e taes niipcias, e considera os transgressores como não casados e seus fillios como illegitinios; pode até pu- nil-os com a privação da herança, exclusão dos cargos publicos, ou penas analogas.

A Egreja reprova sempre a desobediencia ás leis civis, e recusa sanccionar esses matrimonios com a presença do sacerdote; excepto se houvesse motivo idoneo para se contrahir uma tal união; porque n'esta hypothese, aos olhos da Egreja, seria considerada não só como valida, mas até como licita e legitima.

Mas o poder do Estado não vae além da punição dos transgressores das suas leis prohibitivas; não at- tinge a substaiicia do vinculo conjugal, para declarar nullo (por exemplo) o matrimonio dos filhos familias e dos militares não auctorisados, ori o d'aquelles que náo inscreveram o seu nome nos registos publicos.

' Como &o: o dote, herança, doaçóes, successáo, legitimidade civil, admissso ou exclnrjo dos cargos puhlioos, etc.

Nem se deve invocar a analogia, que existe entre o matrimonio e os outros contractos. Aiida mesmo que se,ja considerado como mero contracto, o matrimonio distingue-se de todos os outros por caracteres extrin- secos e intrinsecos. Extrinsecamente, porque Deus o instituiu com as duas condiçaes da unidade e indisso- lubilidade; intrinsecamente, porque nenhuma lei posi- tiva pode supprir a faltado consentimento pessoal, para os effeitos d'este contracto '.

Admittidos estes principios, segue-se que os im- perhntes civis não podem annullar um matrimonio, que é valido perante o direito natural e que a lei di- vina positiva não prohibe. Os imperadores pagãos pre- tenderam algumas vezes attingir com as suas Ibis o vinculo substancial do matrimonio; mas esses actos constituiam excessos e abusos de poder, que nunca podem fundamentar direitos.

Entrando para o gremio da Egreja pelo baptismo, os senhores absolutos do imperio romano não adqui- riram poder algum legitim~ ácerca do matrimonio; an- tes contrahiram a obrigaçãa de fomentar a observan- cia das leis canonicas, e principalmente de nunca con- tribuir para a violação das mesmas.

Já indi uei como Justiniano comprehendeu e cum- priu esse d ever de dar sancçáo externa ás leis eccle- siasticas (pag. 2 1). Do mesmo modo procedeu Leão VI, emuitos outros imperadores, tanto do Oriente, como do Occidente. - ~- - ~

O mesmo direito vigorou entre os povos barbaros

Ser6 quasi deanecessacio observar qne, para os subditos ohristi%os, o contracto matrimonial é inseparavel do sacramento, e por esse motivo pertence exclusivamente a Egreja determinar- lhe ss condições snbstanciaes.

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da edade media. A lei dos lombardos, i10 livro %.O,

tit. VIU-De prohibitis nuptiis, funda-se constante- mente nos canones da Egreja, para determinar os im-

edimentos matrimoniaes, terminando por dizer no cap. h: De his conjunctionibus, quae secundum canunes Ecclesiae et edictum copulatae esse non possunt, pla- cuit nobis, ut ab invicem separentur~ .

Ainda mais clarameiite formulados se encontram os mesmos principias no direi10 dos francos. A 2." cn- pitular de Karlomann, promulgada no anno de 783, diz no cap. 111: aSimiliter praecipimus ~t jzrx ta decreta ca- nonurn, adulteria et incesla matrimonia, quae non sunt legitima, prohibeantur et emendentur episcoporum jzt- dicio 3 .

Analogas citações se podiam fazer das leis pro- mulgadas pelo piedoso imperador Carlos Magno, que se gloriava do titulo de dedicado defmzsor da Sancta Sé. Os seus successores continuaram a declarar em ililívrentes capitulares que os canones dos concilios e os decretos dos Pontifices romanos eram leis obrigato- rias por si mesmas, e que as leis civis não tinliani ou- tro effeito senão o de obrigar os contumazes a obser- varem as leis canonicas.

A esta sancção externa alludem varios documentos dos concilios e Pontifices, quando appellam para as leis civis, buscando n'ellas uma garantia para a obser- vancia dos seus decretos, e n5o uma base juridica parara legitimidade das suas prescripçaes.

E certo que algumas vezes os imperantes civis fi- zeram leis matrimoniaes por auctoridade propria, e sem attender á disciplina ecclesiastica. Porém essas leis ou não tiveram valor algum, enquanto não foram adoptadas pela Egreja, ou foram emendadas e modifi-

cadas de maneira a ficarem harmonicas com a legisla- ção canonica 1.

Assim vêmos que o Estado reconheceu sempre, de um modo explicito ou implicito, que pertence á uris- dicção exclusiva da Egreja o determinar as con içaes substanciaes do vinculo conjugal.

d L Por exemplo: segundo o direito romano eram licitas as

nupcias entre affins no 2P grau (primos co-irmáos), e todavia 8. Gregorio M. e outros PontiEces declararam nullo tal matri- monio.

O mesmo direito romano considerava o rapto como impedi- mento perpet~o; mas o direito canonico permittiu o casamento entre o raptor e a raptada, do caso de livre consentimento ul- terior.

A lei civil impunha nota de infamia á viuva, que casasse dentro de um amo, a contar da morte do marido; e repiitava nul- 10s os matrimonins dos escravos.

Alas os PontSces Urbano I11 e Innocencio 111 aboliram a nota de infamia, imposta Bs viuvap; e o direito canonico declarou valido o matrimonio dos acravos, ainda que fosse contrahido contra vontade doa senhores (Decretal., eap. I, De conjug. ser- vor.).

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CAPITULO I1

A missão da Kgreja e o seu poder acerca do malrinionio

A Egreja pode definir-se: a sociedade de ho- mens baptisados que, por instituição de Jesus Christo, são conduzidos, sob a auctoridade suprema e infallivel do Pontifice romano, á consecução do seu ultimo fim.

D'esta breve noção se infere que a Egreja é uma sociedade perfeita, soberana na sua es hera e in- B dependente do Estado. Ambas as socie ades têem a Deus por auctor; ambas t&em um fim permanente e distincto. Portanto entra no plano da Providencia di- vina que existam perpetuamente uma ao lado da ou- tra, sem que se estorvem ou absorvam, mas antes se harmonisem e prestem mutuo auxilio.

O Estado e a Egreja devem coexistir em perfeita concordia, já porque é identico o termo dos seus es- forços, visto que a salvação das almas é o fim imme- diato da Egreja e mediato do Estado; já orque ambas as sociedades legislam para o mesmo su 1 dito.

Se o poder de uma sociedade se deve medir pela respectiva missão, a Egreja possue toda a auctoridade necessaria para guiar os homens ao fim ultimo, e não pode ser legitimamente impedida por qualquer outra auctoridade. Assim, pertence aos direitos incontesta- veis da Egreja a direcção das consciencias, a determi- nação do que é justo ou injusto perante a lei divina.

As leis e os actos da vida civil podem, em certas circumstancias, contrariar os dictames da consciencia

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christã; em tal caso a Egreja tem o direito de declarar essas leis iniquas e antinomicas com o bem es dos seus subditos. Aliás, ou se ha de negar á o direito de annunciar os decretos da vontade divina, ou negar que os homens devam obedecer a esses de- cretos.

Na verdade, não pode manter-se a ordem entre duas auctoridades, que legislam para os mesmos sub- ditos, se uma não dirigir a outra. E se o fim directo do Estado deve subordinar-se ao da Egreja, compete a esta um poder indirecto sobre a sociedade polilica.

A este poder indirecto se tem dado a designação de theocracza, com a intenção manifesta de o tornar execravel e odioso no conceito dos povos. E todavia B certo que, longe de significar uma usurpação, esse poder assenta no mais legitimo de todos os direitos, ou na coordenação em que os fins secundarios devem estar a respeito do fim principal e ultimo do homem.

A Egreja, sendo dotada da infallillilidade, não só está isempta de errar nos seus juizos dogmaticos, mas até de ultrapassar os justos limites da sua auctorida- de. Ainda mesmo aquelles, que não reconhecem na Egreja um magisterio infallivel, são obrigados a con- fessar que, no caso de um desaccordo entre a socie- dade civil e a religiosa, devem prevalecer as determi- naçaes d'esta ultima, porque representa interesses de maior importancia; e em caso algum é licho por em risco a salvação das almas.

D'estas considerações resulta que é inteiramente pueril ou hypocrita o receio de que a Egreja, invocan- do o pretexto do bem espiritual, exerça ominosa tyran- nia sobre os povos, conseguindo até aniquillar a auto- nomia do poder temporal.

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Superior a todos os poderes humanos está a lei divina; e é como interprete official da lei divina que a ggreja intervém perante o governo das nações, não para lhes usurpar o poder, mas para lhes prevenir ou emendar os desvarios e aberrações.

A Egreja sómente pede e affirma o direito de in- tervir nos negocios temporaes, quando a salvação das almas reclamar essa intervenção I. O Estado, desde que desobedece á lei divina, colloca-se fóra da sua missáo, priva-se a si prn rio do pocier legitimo, e por consequencia do direito I! e se queixar da usurpação.

Postos os principias geraes, passarei a fazer ap- plicação d'elles ao assumpto do matrimonio. Sendo o vinculo conjugal elevado por Jesus Christo á dignidade de sacramento, sendo um veliiculo da graça sanctifi - cante, pertence á auctoridade religiosa determinar- lhe as condições. Embora os contrahentes sejam os ministros do sacramento do matrimonio, não podem, como subditos da Egreja, administral-o e recebel-o, senão em conformidade com as leis canonicas.

Suscitando-se duvidas ácerca da validade do vin- culo conjugal, ou tornando-se necessaria a separação dos conjuges, compete á Egreja o dirimir essas duvidas e controversias. No primeiro caso, porque o contracto está indissoluvelmente unido ao sacramento, e o Estado nunca poderia, nem directa nem indirectamente, apre-

Se ME apontam na historia o exemplo de alguns bispos ou Pontifices, que commetteram abusos de poder, deve notar-se que elles exorbitaram em nome do direito publico da sua epocha, bem ou mal interpretado, mas nunca wmo chefes e pastores da socie- dade religiosa. A estes assegurou a paiavra indefectivel do divino Mestre a'perpetus assistencia, do Espirito Santo, em virtude da qual nSo ultrapassam os limites de seu justo poder, e se conser- vam inaocessiveiri a ambiçao, como ao erro.

ciar as condições de um sacramento. No segundo caso, porque a separação dos conjuges envolve sempre casos de colzsn'encia, que só a Egreja pode avaliar com legi- timo e seguro criterio. LI

Não quem todavia &rmar que aos tribunaes civis não compete o conhecimento de nenhumas causas ma- trimoniaes. São frequentissimos e numerosos os pleitos ácerca dos bens conjugaes, dote, successk, heranças, etc., que são da exclusiva competencia do f8r0 civil. Este julga em certo sentido da validade ou nullidade das nupoias, restringindo-se porém á concessão ou de- negação dos effeitos civis.

Repetirei ainda uma vez: a substancia do vinculo conjugal está fóra da alçada dos juizes seculares. Foi Deus e não o homem que instituiu o laço matrimonial, e por conseguinte a sua validade ou nullidade deve ser apreciada pelos ministros de Deus, e não dos ho- mens. Podem insistir: mas o sacramento é simultanea- mente um contracto, e quem pode avaliar os requisitos de um contracto com maior competencia, do que o ju- risconsulto? Respondo que este nunca pode decidir ácerca do sacramento; e o juiz ecclesiastico conhece as condições scientificas dos contractos com tanta exa- ctidão como o juiz civil; nem pela sciencia, nem pela probidade e independencia de caracter, offerece este ultimo mais solidas garantias do que o primeiro.

O fundador do christianismo estabeleceu o im e- dimento de ligamen !. e dando á Egreja um po !i er pleno e incondicional ácerca dos sacramentos, mostrou com o seu exemplo que a auctoridade ecclesia.stica po- dia estabelecer impedimentos, quer impedientes quer

Matth. XIX, v. 9-Marc. X, v. 11-Lu6 XVI, Ti

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dirimentes. D'esse poder usou o Apostolo, permittindo, em certas condiçaes, a dissolução do matrimonio con- trahido na religião pagã 1; e estabelecendo até, segundo pretendem alguns, o impedimento de disparidade de culto.

O poder sobre o matrimonio foi exercida pela Egreja desde os primeiros seculos, e muito antes da conversão dos imperantes civis. Os canones chamados aposlolicos, que resumem a legislaçb disciplinar dos primeiros tempos do christianismo, prohibem a ordenação aos bi- gamos (can. 17.") e aos ue contrahiram nupcias com duas irmãs (can. fg."), 'i em como consideram as or- dens maiores como impedimento do matrimonio.

No anno de 305 reuniu-se na Hespanha o concilio de Elvira, que em seus canones sanccionou os impedi- mentos de afinidade, disparidade de cultos e outros. Poucos monumentos d'essa epocha chegaram até n6s, e por esse motivo escassêam os testemunhos. Sabemos porém que os christãos não recorriam ás leis imperiaes, porque entre elles o matrimonio era tido como uma cousa sagrada, como um sacramento, que devia ser administrado segundo as prescripções da auctoridade ecclesiastica. - --. -~..

Já nos principias do 11 seculo escrevia o Martyr S. Ignacio: E Decet vero, ut sponsi, et sponsae de sen- tentia episcopi conjugium faciant Era, portanto, o prelado encarregado de velar pela observancia das leis matrimoniaes, estabelecidas para os fieis. Os mais an- tigos rituaes da Egreja determinam o tempo, logar, ritos e ceremonias, que deviam acompanhar o sacra- mento do matrimonio.

Ep.' 1.* ad Corinth. VII, v. 15, ' Ep.' ad Polycarpuna, cap. V .

93 - No principio do I11 seculo estabeleceu o papa S.

Calisto o impedimento de consanguineidade; e os con- cilio~, que se reuniram durante o TV seculo da era chris- tã, continuaram a legislar ácerca do matrimonio, sem a minima interferencia dos imperadores romanos.

Os Padres do concilio de Ancyra, reunido em 323, legislaram Acerca do rapto l. No anno seguinte esta- beleceram os Padres do concilio de Neocesarea o im- pedimento de afinidade, determinando a sancção pe- nal de taes matrimonios no canon II: aMulier, si duo- bus fratribus nupserit, abjiciatur usque ad mortem. Verumtamen in exitu propter misericordiam, si promi- serit quod facta incolumis hujus conjunctionis vincula dissolvat, fructum poenitentiae consequatur~ .

Nos fins do IV seculo escrevia o papa S. Siricio uma opistola a Kmerio, bispo de Tarragona, na qual determina a amplitude, que se deve attribuir ao impe- dimento de publica honestidade. Nos seculos posterio- res foi-se constituindo a legislação canonica ácerca dos impedimentos de crime, rapto, etc.; mas a linguagem, empregada nos decretos da Egreja, prova evidente- mente que ella legislava por auctoridade propria, e não por delegação dos reis ou imperadores 2.

No exercicio e pacifica posse d'este direito se con- servou a Egreja, até que no seeulo XVI lhe foi con- testado e negado pelos protestantes. A historia nos aponta como admiraveis exemplos de coragem as re- sistencias, que os Pontifices romanos oppozeram aos monarchas mais poderosos, negando-se a sanccionar-

Can. X: aDesponsatas puellas, et post ab aliis raptas! pla: cuit erui et iis reddi, quibus antea fuerant desponsatae, etiamsi eis a raptoribus vim iilatam constiterit~.

8 Vej. Perrone-De matrimonio christiano, ETT. IJ , parte 2:, cap. 11, art.' 2:.

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Ihes os divorcios: e frequentes vezes succedeu que os reis tiveram de obedecer ás sentenças dos juizes ec- clesiasticos, apartando-se das pessoas, com quem es- tavam illicitamente unidos ?

O poder da Egreja ácerca dos impedimentos e cau- sas matrimoniaes foi solemnemente definido na XXIV sessão do concilio de Trento. Diz o can. IV: (Si quis dixerit, Ecclesiam non potuisse constituere impedi- menta matrirnonium dirimentia, vel in iis constituendis errasse; anathema sit D . E O can. XII: C Si quis dixerit causas matrimoniales non spectare ad judices eccle- siasticos; anathema sit 8 .

Apontarei. dg1111s exemplos: Lothario I1 repudiou siia esposa Teutberga para se alliar

com Waldrada; mas o papa Nicolsii I obrigou-o a desistir d'essa uni60 adultera (an. 865), e o imperador foi pessoaimente a Roma, para obter a reconciliaçso com a Egreja.

Roberto I1 foi excommungado por Gregorio V (an. 998), por haver casado com Bertha de Borgonha, sua parenta em grau prohibido.

Andoga sorte teve Henrique It de Inglaterra, por haver casado com Leonor de Guienna, esposa repudiada de Luie VI1 (an. 1154).

Philippe t de França foi excommungado por Urbano I1 (an. 1094), pelo motivo de haver repudiado Bertha, e roubado Bertrada ao seu marido, duque de h j o u .

Philippe Augusto foi excommuugado pelo papa Innooencio 111 (an. 1199) por ter repudiado a sua legitima esposa Ingebur- ge, para se unir com Ignez de Merania; e dom amos depois teve de voltar ao primeiro consorcio.

Por sentença do Pontifice Alexandre V I foi dissolvido o matrimonio de Luiz X I I com Joanna de França (an. 1498), e o rei cyou com Anna de Bretanba.

E de todos sabido que Henrique VI11 de Inglaterra repu- diou Catharina de Aragão para esposar Anna Boleyn; pelo que foi excommungado por Clemente V I 1 (an. 1534).

Aiida em 1809 inutilmente pretendeu Napoleiío I obter de Pio VI1 anctorisqiío para repudiar a sua esposa Josephina, e casarAom a arcY~duaneza Xaria Liiiza.

Debalde os regalistas se têem esforçado por dimi- nuir e occultar a im ortancia do canon N, addicionan- do-lhe a clausula f e que o poder da Egreja sobre os impedimentos do matrimonio não é proprio, mas resul- tante da indulgencia dos principes I. Essa restrieção não consta do canon, que deixaria de ser verdadeiro para os paizes, em que tal concessão não tivesse sido feita ou onde viesse a ser revogada.

Não é possivel designar a epocha, em que os im- perantes civis deliberaram communicar á ,Egre'a uma parte do seu oder ácerca da união conjugal. e con- i! i sultarmos a istoria, encontraremos frequentes vezes soberanos, que se revoltaram contra a auctoridade ee- clesiastica, que invadiram os direitos da Egreja; mas poucos ou nenhuns apparecem, ue se hajam volunta- riamente privado do seu poder 8 soluto, em beneficio dos prelados ou dos Pontifices romanos. Em todos os seculos a auctoridade tem oral cedeu generosa e libe- ralmente á Egreja ... aque les direitos que lhe não pou- de usurpar.

P Haveria, porém, uma delegação especial dos mo-

narchas christãos, que auctorisasse os Padres do con- cilio tridentino a legislarem sobre o matrimonio dos fieis? Não houve. Os embaixadores e theologos dos reis catholicos assistiram ás discussões do concilio, e teriam exigido que na formula do canon se men- cionasse a regia concessão, se esta houvera existido. Mas o que fizeram esses representantes do poder civil? Limitaram-se a pedir, como Ih'o indicava o seu titulo de-oratores; e se foram attendidos, quando propoze-

1 Esta asserção se encontra cem vezes repetida por Alexan- dre Hercuiano, na segunda swie dos seus Estudos sobre o casa- mento civil.

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ram a annullação dos matrimonios clandestinos, não poderam obter o mesmo resultado com relação aos ma- trimonios dos l i l l ios familias.

Seria, ao menos, em virtude de um consentimento tacito do Estado que o concilio tridentino attribuiu á Egreja o poder de estabelecer impedimentos do matri- monio? Tambem não. Para que fosse licito presumir tal consentimento, duas condições se exigiam: (1.") que os principes gozassem de um poder directo e pro- prio sobre a substancia do vinculo conjugal; (2.") que á Egreja não podesse competir esse mesmo poder, sem a intervenção do Estado.

Mas suppar as referidas condições é dar como pro- vado aquillo mesmo que está em questão. Já fica de- monstrado: (1.') que a auctoridade civil não pode legis- lar sobre a sobstaiicia do vinculo conjugal; (2.') que a Egreja regulou as nupcias dos fieis, muito tem o antes

christianismo. ! de os imperadores reconhecerem existencia egal ao

Para terminar este ca itulo, direi duas palavras f ácerca do canon XII. Os t eologos e canonistas, que se empenham em dilatar a esphera do poder ciM1 em detrimento do ecclesiastico, recorrem ao subterfugio da interpretação restricta. O concilio (dizem) definiu que as causas matrimoniaes pertencem ao juizes ec- clesiasticos; mas não diz que sejam todas as causas matrimoniaes, nem que pertençam exclusivamente ao fôro da Egreja.

Note-se orém que a forma do canon é absoluta e incondiciona r , e nào deixa a ninguem o direito de lhe fazer restricções; porque a logica e o bom senso nos ensinam que o sujeito de uma oração affirmativa deve ser tomado em toda a sua extensão.

Além d'isso, o motivo do canon constitue uma nova rova da sua universalidade. O concilio tridentino de-

[niu que , causas matrirnoniaes eram da competen- cia dos juizes ecclesiasticos, fundando-se em que o matrimonio é um sacramento; e como esta razão se pode applicar a toda a união conjugal entre os chris- t a s , segue-se que todas as causas matrimoniaes per- tencem exclusivamente ao fôro da Egreja.

Finalmente .o sentido do canon é esclarecido pelo Pontifice Pio VI, que, no Brew dirigido ao hispo de Motola em 16 de Setembro de liSS, declara desti- tuida de fundamento a doutrina, segundo a qual nem todas as causas matrimoniaes são da exclusiva compe- tencia do fbro ecclesiastico.

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CAPITULO 111

O casamenlo civil poder4 jusliliciir-se perante a philosophia social?

Fica rapidamente esboçada a missão do Estado e da Eureja, e determinado o poder de cada uma das sociejades a respeito do matrimonio. Adoptados esses principios de direito publico, ha de concluir-se que o governo de uma nação não pode legislar de maneira que altere a essencia do vinculo conjugal, principal- mente se os membros da nação acatam e reconhecem os dogmas da religião catholica.

Mas esta affirmação envolverá a rejeição plena, formal e absoluta de qualquer lei relativa ao casamento civil? Eis a difficuldade principal do assumpto; porque os phenomenos sociaes, sendo por sua natureza extre- mamente com leros, prestam-se a varias interpreta- a çaes e não po em ser jiilgados por uma sentença ca- thegorica e absoluta.

Na sua generalidade o casamento civil, isto é, o acto celebrado perante um magistrado civil, e em vir- tude do qual a sociedade reconhece e garante a exis- tencia do matrimonio, pode ser tomado em varias ac- cepções. Ern harmonia corn cada unia d'ellas, e bom o estado das crenças religiosas de cada povo, poderá o casamento civil ser admittido, tolerado ou rejeitado.

Distinguirei com Jaugey ires significações diversas no acto civil dos conjuges: (i.") a simples declaraça de que c0ntrahira.m matriionio; (2.") uma especie de

contracto civil, accessorio ao matiimonio religioso, mas do qual fica dependente o reconhecimento legal d'este; (3.") uma declaração ou contracto, que não envolve relação alguma com a sociedade religiosa, e que é-tido como necessario e suficiente ara que a lei civil reco- nheça dous individuos como f egitimos esposos.

Tomado o casamento civil na primeira accepção, é claro que os poderes legislativos do Estado podem legitimamente imp61-o aos subditos, como qualquer outra forma dc registo. Já tive occasiáo de ponderar que a sociedade politica tem o direito incontestavel de conhecer de uma maneira authentica e official o estado civil de cada cidadão (pag. 7 a 9). . Tendo.de regular as questões de herança, succes- são, legitimidade dos iillios, e outras controversias que se suscitarem ácerca dos efeitos civis do matfimonio, com razão exige o Estado que os cidadãos vão decla- rar perante um magistrado que tomaram sobre si a responsabilidade do laço conjugal, ou estão resolvidos a constituirem uma nova familia. N'este ponto o caiho- licismo mais orthodoxo nada tem que oppbr; apenas motivos de economia, administração ou conveniencia politica, poderiam aconselhar que se n%o duplicasse o

, encargo do registo, aonde fosse já feito pelos paroclios. Será egualmente legitimo o casamento civd, tomado

no segundo sentido? Poderá o legislador exigir que, a par do matrimonio á fãce da Egreja, tão os catholicos assipar um contracto civil, tornando o reconhecimento d'aquelle dependente da realisação d'este?

Em these podemos dizer que o bem publico confere ao Estado o direito de prescrever as cotzdições, de cuja observancia dependem os efeitos civis do matrimonio. Se o Estado não reconhece o casamento religios~, desde

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1 00 - que não seja axompanhado do contracto civil accesso- rio, nem por isso nega a validade intrinseca do matri- monio christão; liinita-se . a punir os que lhe desobe- decém, pi.ivando-os das garantias externas de uma união legitima.

Os cidadãos t8em a obrigação moral de obedece- rem ás leis. civis, em tudo o que não fdr injusto. Mas o direito do Estado é limitado, e não poderia addicio- nar ao contracto civil clausulas, que fossem incompa- tiveis com os principias dogmaticos e juridicos da re- ligião christã.

Poderá o Estado imp6r aos subditos a terceira forma do casamento civil? Será licito ao legislador es- tatuir um acto 'da ordem civil, como condição neces- saria e unica para que a união seja legitima aos olhos da sociedade politica?

Se o Estado reconhece francamente a religião ca- tholica, e or consequencia acceila a sua doutrina, e t; recebe os ecretos disciplinares e leis canonicas, não pode imp6r o casamento civil prmio, como se exige actualmente na França e n'outros paizes. A razão é obvia; affirmando e ensinando a Egreja que a união puramente civil é illegilima, que é um torpe concubi- nato, a lei civil contradiria abertamente o magisterio ecclesiastico.

Nem se diga que a lei do casamento civil é prohi- . biliua, enquanto-que apenas obsta indirectamente á li- berdade dos fieis, prescrevendo que ninguem possa contrahir matrimonio religioso, antes de se submetter á formalidade legal; e que todos reconhecem ao Estado o direito de prohibir as nupcias a certas pessoas, ou em determinadas circumstancias.

Reconhecer um direit,o não equivale a declarar in-

101 - condicional o seu exercicio. O direito, que o. Estado tem de fazer leis prohibitivas ácerca do matrimonio, funda-se no bem commum da sociedade, e não pode ampliar-se ao caso presente. A sociedade civil deve proteger e sanccionar sempre a observancia das leis canonicas; assim Ih'o determina a obrigação moral e o roprio interesse. Mas declarar valido aquillo, que a

&reja diz ser illicito, é contradizel-a; 6 desprestigiar a auctoridade espiritual, e dar azo a que os subditos abuscm da lci civil em detrimento c despreso da ec- clesiastica.

Estes piincipios são incontestaveis, enquanto se fi- zer d'elles applicação aos paizes verdadeiramente calho: licos. Mas se em uma nação vier a faltar a unidade de crenças religiosas? N'esia hypothcse parece que o ca- tholico, para evitar males maiores, se deve submetter á lei commum, porque o acto, que se passa perante o magistrado civil, não é substancialmente iniquo, immo- ral ou anti-religioso.

A lei poderá ter (na mente dos legisladores+) um fundamento doutrinal, opposto aos dogmas catholicos, e a sua ap licação vem causar obstaculos á livre admi- 9 nistração os sacramentos. Mas n b é uma usurpaçáo directa dos direitos da Egreja, e para o espirito do verdadeiro, catliolico o casamento civil ficará sendo mera formalidade extrinseca; o vinculo conjugal so- mente nascerá depois de manifestado o consentimento na presença do parocho e das testemunhas, segundo os decretos do concilio tridentino.

Em condições normaes, a lei civil sómente deveria intervir na constituição da farnilia, para tornar obri- gatoria a observancia das prescripções canonicas. Fal- tando porém nas populaç6es a energia moral, que

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nasce da uniformidade de crenças, fica o legislador destituido da força necessaria para imp6r e sanccionar os deveres religiosos.

A lei que em taes circumstancias viesse, em nome do poder secular, forçar os subditos á celebração do matrimonio religioso, seria mais prejudicial do que util á Egreja.

Ensina-o ' a experiencia da preveisão natural do coração humano; muitos obstinar-se-hiam em não con- trahir matrimonio segundo as ceremonias prescriptas

ela Egreja, movidos s6mente pelo prazer de violar a rei. lnvocar-se-hia, embora sem fundamento, a liberdade de consciencia; levantar-se-hiam protestos violentos, com o proposito de excitar o animo das turbas, e exa- cerbar o odio contra o catholicismo.

O legislador seria forçado a conceder aos que a Egreja reputa como concubinarios, as mesmas garan- tias que aos legitjmos esposos. Mas importa nunca perder de vi$a que o mister de governar homens in- crediilos, ou indifferentes em religião, obriga a essa, como a muitas outras duras necessidades. Procedendo assim, o legislador não nega que haja a obrigação de contrahir o matrimonio religioso; o que faz, é abster-se de o imp6r pela coacção; o que deveria fazer, era ex- hortar e convidar os filhos da Egreja, a que juntem á formalidade civil o sacramento religioso.

Pensando assim, eu creio que me não affasto da genuina doutrina da Egreja catholica. Tendo em'con- sideração o misero estado, a que o catholicismo se en- contra reduzido em certos paizes da Europa, os Pon- tifices romanos não tkem condemnado absoluta e dire- ctamente a lei do casamento civil.

Em 3 de Outubro de i875 exhortava o venerando

103 - Pontifice Pio IX os peregrinos belgas a que pedissem com toda a instancia aos governos, que a o sacramento do matrimonio preceda sempre o casamento civil^.

O congresso catholico de Lille, reunido em Setem- bro de 1875, deliberou dirigir uma petiçáo á Assem- blea nacional de França, a fim de que os catholicos podessem contrahir o matrimonio religioso 'antes do civil; e tendo o relator do congresso (Gustavo Théry) communicado o assumpto da petição ao Chefe Supre- mo da Egreja catholica, respondeu o soberano Ponti- fice Pio IX com o Breve de 15 de Janeiro de 1876, em que elogia o zelo e Goragem de uma tal resolução, que tende a uaffastar os perigos, que ameaçam a sal- vação das almas ... e a evitar os injustos ataques diri- gidos contra a verdadeira regra dos costumes e a li- berdade do ministerio pastoral^ .

Recordando as palavras do supremo hierarcha da Egreja catholica, não intento invocar, na presente dis- cuss%, a infallillilidade do seu magisterio. Cito essas palavras, para ter occasib de mostrar como o ensino .da Sé apostolica é confirmado pelas affirmações da sã philosophia social, e pela observação imparcial dos factos, que traduzem os principias juridicos.

Com effeito, é sempre dillii:ilimo decidir na pratica, quando este ou aquelle povo chegou ao grau de abati- mento moral e religioso, necessario para exigir dos po- deres publicas a indifferença em materia de religião.

As crenças religiosas constituem a melhor garan- tia da moralidade, e será sempre mais util aos in- teresses do Estado pugnar em defeza da verdadeira religião, enquanto a lucta f6r possivel. A lei, que affas- tar do matrimonio toda a ceremonia religiosa, será utilisada por homens, que se limitarão ao acto civil, e

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que, não hesitando perante o escandalo e o labéo de concubinarios, que lhes irroga a consciencia dos ca- tholicos, parecem dispostos a abjurar todo o sentimen- to de pudor e moralidade; e por isso não offerecem esperança alguma de respeitar os outros deveres de consciencia.

A lei do casamento civil é antipolitica e prejudi- cial á sociedade, porque leva fatalmente á ruina da familia, que é o sustentaculo indispensavel das na- ções. Ninguem ignora a grande influencia, que tem sobre uma sociedade a somma de ideas e sentimentos, que cada individuo possue ao transpdr o limiar da familia, e dar os primeiros passos na vida social e publica.

A sociedade de familia subsiste e prospéra, enquan- to fdr constituida normalmente, isto é, enquanto conser- var a organisaçso, que Deus lhe deu no principio, e obedecer ás leis fundamentaes da unidude e indlssolu- bilidade. Mas é diGciliio, ou antes irnpossivel, fazer coexistir essas leis com a do chamado casamento civil.

Esta formalidade tem nekessariamente o caracter de um contracto; e sendo assim, como obstar a que seja dissolvido pelo mutuo dissenso dos pactuantes? Será em nome do direito natural? Não; porque os rincipios d'esta sciencia prestam-se a tão encontra- ias interpretacões, que para elles appellaram Schwarz,

Bentham, Gioia, Tissot e muitos outros defensores do divorcio.

Será em nome da propria auctoridade e legislação civil? Mas a historia prova que os esforços do homem são impotentes contra a logica dos factos. Desde que uma nação acceita e sancciona o casamento civil, chega

cedo ou tarde, com vontade ou sem ella, a admittir o divorcio.. Os homens succedem-se e substituem-se nas funcções de legisladores, e a causa do divorcio encon- tra estrenuos defensores nas paixões do coração huma- no, e na turba sempre numerosa dos que abraçam qualquer proposta, somente porque tem o cunho da novidade.

A Allemanha protestante começou por estabelecer como unicas causas para a dissolução do vinculo con- jungal - o adulterio, e o abandono malicioso de um dos conjuges. Posteriormente deram a essas causas uma interpretação amplissima; .incluiram na primeira todos os peccados contra naturant, e addicionaram á segunda causa-as insidias 'contra a vida, honra ou fazenda do conjuge, .as rixas e injurias graves, a in- com atibilidade de genios, etc.

i a i o r incremento tomaram ainda os divorcios, quando as causas matrimoniaes deixaram de ser jul- gadas pelos consistorios, e foram attribuidas á compe- tencia dos trihunaes civis, 'a cujos membros Frederico 11, rei da Prussia, recommendava em 1780 que anão fossem muito rigorosos ... porque se devia attender ao augmento da populaçáon. E não o têem sido I .

No mesmo rapido declive, que conduz á inteira dissolução dos laços da familia, caminham a Dinamarca, os Estados Unidos da America, e os outros paizes se- parados da unidade catholica '. A Russia começou por

No anno de 1837 foram dirigidas aos tribunaes prnssianos 5:888 petiçóes de divorcio, e obtiveram sentença favorrnel 2:392.

2 As estatigticas dáo aos Estados Unidos da America uma media dc cinco mil divorcios por anno. Refere o periodic,o-New- Yot.ck Herald-que, em Fevereiro de 1854, houve na cidade de S. Francieco (California) quatro casamentos e dez diuorcios.

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acceitar como unica causa do divorcio- o adulterio; mas 10 o depois accrescentou: o desterro perpetuo, a esierili % ade, a ausencia de um dos conjuges por espaço de 5 annos, sem dar noticias suas. A estas causas jun- taram muitas outras os defensores theoricos do divor- cio, cujos principios se podem considerar resumidos e formulados na phrase de umi celebre escriptora fran- ceza: c O laço conjugal esta quebrado, desde que se tor- nou odioso ara algum dos esposos B . P A simp es consideração da equidade natural deve mover os legisladores a não proporem a lei do casa- mento civil, nem a do divorcio, que é corollario da pri- meira. Com effeito, dissolvido o matrimonio, succederá que o conjuge fiel ás léis da 'Egreja ha de permane- cer em perpetua viuwz, e o conjuge incredulo ou in- differente passará a outras nupcias, juntando assim ao escandalo do divorcio o da polygamia.

A lei do casamento civil não só contraría a uni- dade e indissolubilidade do vinculo conjugal, mas até' pode causar a sua completa aniquilação, desde que se- jam adoptadas todas as consequencias logicas d'essa lei. Se pretendem justifical-a, invocando a liberdade de consciencia, deveriam perrnittir aos mormons a plurali- dade de mulheres, como elles a pediram já ao Con- gresso dos Estados Unidos, em nome da sua crença religiosa.

Passarei ao exame dos motivos e pretextos, com que se pretende justificar a lei do casamento civil.

CAPITULO 1V

duiso critico da lei sobre o casamento civil

A politica das nações europeas segue hoje, mais ou menos abertamente, os principios do atheismo so- cial, que considera as crenças religiosas dos subditos como um elemento estranho, accessorio e indifferente ao machinismo social. Por esse motivo se julga aucto- risada a legislar sobre tudo, dispensando-se de cr6r em Deus, como quem lança á margem uma hypothese importuna.

Todavia, em attençáo, aos que não possuem o espi- rito suIlicientemente forte para comprehender os se- gredos da sciencia hodierna, t6em os homens politicos dos differentes aizes intentado justificar a lei do ca- samento ciuil. {nalysarei rapidamente os principaes pretextos.

A) O prinieiro, com ue se depara, consiste em scpanr o chrisroo do cedaBao. Por um lado (dizem) ha no homem dous caracteres radicalmente distinctos: o de membro da Egreja e o de membro do Estado; e a lei civil deve attender unicamente ao ultimo.

Por outro lado, o matrimonio é um phenomeno, cuja natureza complexa permitte e exige que o regu- lem simultaneamente as leis civis e religiosas. Sendo o matrimonio um acto essencialmente social, e como que a materia prima da vida civil, é claro que o Es- tado, regulando as condigões da união condugal, náq

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invade a esphera de acção da sociedade religiosa, mas usa de um direito legitimo.

Concordo em que ao mesmo individuo competem certos deveres como cidadüo, e certos outros como christüo. Mas ninguern de bom senso concluirá d'ahi que pode ser licito ao ciiiadão aquillo, que o christia- nismo reprova. O matrimonio pode ser regtilado por leis distinctas, mas harmonicamente subordinadas; por- que nem no acto conjugal ha separação real entre o contracto e o sacramento, nem no individuo se desag- gregam as duas naturezas de cidadão e de christão.

As condições da subordinação entre as leis já fi- cam determinadas. O estado deve limilar-se a regular os effeitos civis do consorcio (cap. I), em ordem a asse- gurar o bem commum das familias e da nação. Mas a lei do casamento civil não se contém dentro dos referidos limites; pretende attingir a substancia da união conjugal, e por conseguinie invade a esphera religiosa.

Se a Egreja, abstrahindo da qualidade de cidadãos, impozesse ou permittisse aos subditos um acto, justa- mente reprovado pela lei civil como iniquo, o Estado protestaria ener icamente contra a permissão ou lei, fundada n'uma % istincção ficticia. Com egual justiça, pois, reclama a Egreja contra o procedimento do Es- tado, que permitte aos subditos communs o que ella declara illicito e nullo.

E) Talvez se diga: como pode o Estado invadir direitos alheios, se elle não sabe da sua esphera? A lei civil mantem-se pura e simplesmente n'um estado de abstençüo; a ninguem prohibe o matrimonio religioso. Por consequencia obra com razão e justiça.

Ainda que o Estado apenas permitta aos cidadãos

contentarem-se com o casamento civil, é certo que per- milte o que a Egreja detesta e condemna '. sup*"a"r que se pode fazer impunemente o que a Egreja prohi e, sob graves penas espirituaes, é desprezar formalmente os seus dogmas e leis disciplinares.

Não se diga que o legislador a ninguem prohibe o casamento religioso. O legislador de um paiz catholico não pode ignorar que ha sempre cidadãos inclinados a abusarem da permissão legal, e que se absteriam de receber o sacramento. A obrigação do legislador é pro- teger os cidadãos contra a sua propria fragilidade, e não facilitar-lhes sem necessidade o abuso, pela con- cessão das garantias extrinsecas.

A legislação civil ácerca do matrimonio é quasi sempre acompanhada da restricção dos impedimentos dirimentes da Egreja e da abrogação dos impedientes; o que parece significar um verdadeiro convite feito aos conjuges, para que se contentem com o casamento ci- vil, e permaneçam n'um estado habitual de culpa, com gravissimo risco da propria salvação.

C) A razão principal, que todas as assembleas le- gislativas invocam para justificar a lei do casamento civil, é a liberdade de consciencia. Os modernos publi- cistas consideram a liberdade illimitada de consciencia, de pensamento, de imprensa, ensino, culto, etc., como outros tantos direitos sagrados e in~iolaveis do indi- viduo; d'ahi a solicitude empregada para que as insti- tuições sociaes não venham lesar o exercicio d'esses direitos, e obstar á manifestação de qualquer convicção

1 Nos paiaes, em que foi publiaado o decreto do concilio tri- dentino, o casamento civil 6 nvcllo. Onde o decreto não foi publi- cado, o casamento civil 8 valido, mas illicito; porque 6 prohibido pelas leis canonicaa.

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religiosa, ou mesmo da absoluta carencia de taes con- vicções.

Attendendo 'á summa importancia d'este motivo, qnotidianamente aliegado para desculpar e justificar tantos abusos, analysarei detidamente o conceito de liberdade. - - - ~ ~

A sã philosophia busca no dever a unica base segu-, ra para firniar o direito, e por isso, antes'de determinar a esphera dos direitos, começa por estudar o ambito das obrigações. O primeiro de todos os direitos é o de cum-

rir os deveres, realisar o bem e alcançar' o nosso fim. &onde se infere que a liberdade illimitada de pensa- mento contradiria o dever, que temos de dirigir a in- trlli;i:ncia para a verdade; assim como a liberdade il- limitada de consciencia seria inconciliavel com a obri- gação fundamental de tender exclusivamente para o bem.

O homem não pode ser autonmo na accepção ri- gorosa do termo, porque recebeu de Deus a lei de pro- curar, amar e seguir a verdade e o bem. O direito não é senão o poder moral, necessario e inviolavel, que permitte ao homem resistir a todo o obstaculo, impedisse a união da inteligencia com a verda e, da vontade com o bem, ou da alma com Deus. *

gue lhe

Por outras palavras: o direito é o poder moral, que compete ao homem de attingir o fim, para que foi creado, realisando sobre a terra a ordem e harmonia, que se observam no mundo typico e divino 1.

Postos estes principios philosophicos, que o bom senso confirma, digo que liberdade de consciencia é o direito, que todo o cidadão tem de cumprir as obriga-

' Vej. M6ric-fi droit et du devoir, part. 11, cap. 111.

ções impostas pela propria consciencia, sem que a lei civil o estorve ou puna, mas antes o proteja contra os obstaculos, oppostos pelos outros homens.

D'este modo o incredulo é destituido da liberdadB de consciencia, porque, não admittindo obrigações re- ligiosas, Falta-lhe absolutamente a materia e objecto do direito. Não ha liberdade de descrença, porque não pode haver direito contra a verdade, o bem, a justiça e o dever.

Para mais esclarecer este assumpto, observarei que a liberdade de consciencia não deve confundir-se (como frequentes vezes acontece) com a liberdade de cultos, nem com ã tolerancia civil, as quaes muitas vezes se devem admittir para evitar males maiores, mas que nenhum povo acceita e pratica de um modo illiinitado.

A liberdade de cultos, tambem chamada tolerancia religiosa, é a permissão de professar um culto, diverso do admittido no paiz. Por tolerancia civil entende-se aqui uma posição do Estado em relação aos subditos, em virtude da a1 elle se abstem de punir os que violam as suas o R rigações religiosas e moraes.

Nenhum d'estes principios pode ser invocado para justificar a lei do casamento civil. Não pode ser o pri- meira, porque o casamento civil não representa culto algum, antes é um acto condemnado pela doutrina christã, e que constitue verdadeira offensa á liberdade do culto catholico. Não pode ser invocado o segundo,

orque a lei do casamento civil não se restringe a aeiaar o mal impune. Ella propria o permitte e com- mette, enquanto declara legitimo um acto, que a re- ligião catholica considera como torpe e illicito.

Em resumo: nem a liberdade de consciencia, nem a liberdade de cultos, nem a tolerancia civil, principios

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aliaz legitimos e acceitaveis, auctorisam o Estado a impor o casamento civil, como condição necessaria e suficiente para fundar licitamente a familia (entre chris- tãos).

A lei do casamento civil, embora promulgada a pretexto de garantir a liberdade dos cidadãos, 6 ty- rannica para com os ministros (ia Egreja, e para com os conjuges christãos. Para com os sacerdotes, porque a experiencia mostra que as leis civis punem e perse- guem apelles, que qiiizerem applicar aos suppostos conjuges as penas canonicas, como aconteceu na Prus- sia. Para. com os conjuges, porque se um d'elles re- cusar a celebração do matrimonio religioso, o outro será legalmente obrigado a viver em peccado l.

D) Para justificar a lei do casamento civil, ainda se costuma allegar que o legislador não pode constran- ger os nubentes a receberem o, sacramento do matrimo-

1 Oe jurisconsoltos e tribunaes francezes têem resolvido por quatro modos diveraos a hypothese acima mencionada.

(I) Bresollss diz que um tal casamento se deve considerar nnllo, por erro de pessoa. Mas posteriormente a legislaç8o fran- ceza determinou que o erro Boercn da qualidade da pessoa nHo pode annullar o matrimonio.

(11) Mareadéinvoca o 8rt.O 1110 do codigo civil, e declara o matrimonio nnllo por erro essencial no oontracto. ~ inadmissi- vel pela mesma razão do antecedente.

(111) Bm 184G sustentou Thièrriet que 8. mulher fica salvo O

direito de ntio cohabitar com o marido, que recusa celebrar o ma- trimonio religioso. Mas esta opini&o contradiz o art.O 214 do CO-

digo civil, que euamera a cohabitaç80 entre os deveres da esposa. (IV) Demolabe vê na dita recusa uma injuria grave que, se-

gnndo o6 art.OS 231 e 306 do codigo civil, auctorisa a sepacaçáo dos conjuges. O tribunal de Angers proferiu, em 29 de Janeiro de 1859, uma sentença em harmonia com a opiniw de Demolabe; todavia o marido, que recuaa ir ti egreja, usa apenas de uma fa- culdade, que lhe 6 gnrantiùa pelas leis, e portanto a ninguem fax injuria (Vej. Sincholle, obr. cit., cap. IV).

nio, porque nem os deveres religiosos entram nas attri- buições do Estado, nem a coacção se conforma com a indole do evangeliio. A crença não pode ser imposta pela força, a religião deve propagar-se pelos meios persua- sivos. O que seria a recepção forçada de um sacra- mento, senão um sacrilegio imposto pela lei?

Esta maneira de advogar a causa do casamento civil é indubitavelmente facil, mas pecca por ser inutil. A Egreja não pede que o Estado imponha, pela coac- ção physica, o cumprimento dos deveres religiosos; antes pugna pela independencia das obrigações mo- raes em face da força material. A Egreja contenta-se com que as leis civis não coiltradigam a religião dos subditos, embora o interesse e as promessas do Estado obriguem este, em muitas circumstancias, , a punir as offensas feitas publicamente á religião.

O Estado christão, que reconliece e garante, como deve, a fórma religiosa do matrimoiiio, não viola a li- berdade de consciencia do iiicredulo. Para que hou- vesse a lesão, scria iiecessario que o incredulo repu- tasse o acto sacramental como illicito; mas para elle a ceremonia religiosa é apenas indifferente e superflua. O matrirnonio está sujeito, como qualquer outro sacra- tneilto, a ser administrado e recebido indignamente; mas não é justo que, para eviiar sacriiegios, se fechem os templos, e os fieis sejam privados da graça sacra- mental.

E). Tambem se diz que a França, a Bel ica e ou- iras naçoes, que adoptaram o casamento civik, não sof- freram por esse motivo os males, que lhes eram pre- ditos.~Mas esta asserção é desmentida por homens de tammanha auctoridade como Sauzet, que, tendo percor- rido todos os graus da magistratura fraiiceza, teve oc-

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casião de estudar a fundamento os inconvenièntes da lei 1.

Tão intenso se tornou o mal que de varios pontos da França se dirigiram petições ao poder central, fa- zendo vêr que o casamento civil tinha produzido a desmoralisação e, o esquecimento dos deveres religiosos; que s opposição entre os impedimentos civis e os ca- nonicos coiiocava os parochos cm serios embaraços, quando fosse necessario abençoar um dos chamados casamentos de consciencia; e finalmente que males ainda mais profundos se deviam temer para o futuro, atten- dendo a que as estatisticas annunciavam um progres- sivo decrescimento da população.

Na Belgica e nos outros. paizes os resultados do casamento civil foram os mesmos que na França, em- bora os interesses partidarios obriguem os homens po- liticos a cerrar os olhos sobre taes inconvenientes, e a saltar por cima das proprias convicções. Não termi- narei a segunda parte d'esta obra sem apontar um no- tavel exeniplo da incoherencia, a que me.refiro.

Ehn i5 de Novembro de 1849 pronunciou qprin- cipe de Bismark, que então era simples deputado do parlamento russiano, um vehementissimo discurso 8 contra a lei o casamento civil e. Não obstante elle in-

1 Na obra-R@exions 8ur le mariage civil at 1e mariage reli- gicux.

A importancia do assumpto e a auctoridade do orador de- terminam-me a transcrever aqui alguns treclios mais not'aveis do discarso:

a 0 meu dever é declarar-me francamente contra o projecto ministerial, e a emenda Evelt, porque não descubro ahi outra eousa mais do que a intenpm de iutrodwir, imeusiuel e subre- ptidamente, o casamento civil.. Bs numerosas repreeentações, que se têem feito contra o art.O 16, indicam j h que este artigo é

vectivar principalmente contra a origem franceza da instituição, é certo que as suas energicas e sensatas considerações tinhani applicação a todos os paizes, e demonstram que não só a Egreja catholica, mas todas as communhões christãs, protestaram contra uma lei,

uma ingerencia audaciosa na vida privada. E u penso que tornam tambern illusorio o art.' 11, que assegura a plena liberdade de commnnhões religiosas, quando sujeitaes os fieis das Egrejas chnst%, e nomeadamente os da Egrejs evangelica, a dobrarem-se as exigencias dos vossos dogmas coustitucionaes, antes de os au- ctorisar a receberem a benção da Egreja, enica que, aos nossos olhos, dd validade ao rnatrimonio. ..

Sem duvida perrnittis a todo aquellr, que se sentir pessoal- mente obrigado a isso, que vá depois casar-se á egreja. Quer di- zer, dignaes-vos permittir que a Egreja seja o caudatario de uma burocracia subalterna; auctorisaes o sacerdote a perguntar a um cidadão, se quer ou náo quer receber como esposa aqnclla, que a lei lhe impõe já conio tal; pergunta a que o ni~bente nilo pode legalmente dar uma resposta negativa ...

E u penso que a missão do legislador náo consiste em ignorar o que o povo respeita como sagrado. Julgo, pelo contrario7 que, quando um legislador quer instruir e guiar o povo, deve tender a que a vida d'este se apoie, em todas as suas rela@es, sobre a base da fé e a% graças da religiiro ... Que em beneficio de alguns renegados sa queira impor uma violencia iuanditii a milhões de almas, que permanecem fieia d. fé de sens paes, eis o que me surprehende ...

Nilo posso encontrar a ranão, pela qual muitm de entre nós defendem, em uome da liberdade, aqiiella scrvidao, senão na ma- nia de rnacaqucw tudo o que é estrangeiro ... Haveria materia para riso em um tal systema, se n m fosse a nossa patria, que é submet- tida ás experiencias do charlatanismo francez...

Talvez o povo abrirá os olhos, quando todos os seus antigos direitos christáos lhe forem.roubados, um apoz outro: o direito de ser governado por auctoridades cltristda; o direito de vêr sssegu- rada para sens filhos uma educaçdo christã nas escholas, ciijrr vi- gilmcia e manuteução é do dever dos paes; o direito de cagar christámente segundo a fé de cada um, sem dependencia de cere- monias constitucionaes ... D

(Este discurso, publicado no n.O 60 da Correspondcncia de Ge'nebra, foi transcnpto do jornal de Boiin-Dezltsche Reichs- Zeitung, de 24 de Abril de 1873). . .

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que representa uma invasão do poder civil nas cren- ças populares, que reconhecem e veneram o caracter religioso das nupcias.

Mais tarde as circumstaiicias mudaram, e o chan- celler do imperio allemão esqueceu-se dos analhemas, que o deput,ado havia proferido contra o casamento ci- vil. Empenhado em perseguir o catholicismo, Bismark percebeu, com o seu profundo tacto de homeni politico, que nos art.Oq99 e 200 do codjço penal francez se encontrava uma das armas mais seguras, para attingir o fim proposto; e começou a perseguir o clero, que as- sistia ao matrimonio religioso dos conjuges, antes de terem contrahido o casamento civil.

F) Esgotados todos os outros recursos, tem-se al- legado em ultimo logar que o decreto do concilio tri- dentino, que exige a resença do parocho para a vali- a dade do matrimonio os fieis, versa sobre um ponto disciplinar, e portanto varinirel. Esse decreto não obri- ga, enquanto não fOr recebido e publicado em cada na- ção; e deixa de ser obrigatorio aos ollios dos inagistra- dos, desde que a auctoridade civil o abrogar, por meio de leis posteriores, contrarias ás disposições dos canones.

Direi poucas palavras em resposta. E certo que as leis disciplinares variam coin os tempos, logares e pessoas: mas, encpante subsistirem, enquaoto não forem legitimamente aunulladas pela auctoridade ec- clesiastica, assentam no dogma iminutnvel do poder e missão da Egreja, absolutamente independente do Estago.

A Egreja compete o direito de fazer leis, que obri- gam a todos os fieis, qualquer que seja a sua condi- çáo ou dignidade. Qualido o Redemptor da humani-

dade disse aos Apostolos: (Docete omnes gentes ... do- centes eos servare omnia quaecumqiie mandavi vobis, -não exceptuou nem os magistrados, nem os impe- rantes.

E na verdade, o que significaria um poder legis- lativo, a que não correspondesse, da parte dos fieis, o dever da qbediencia? Seria absurdo que a força obri-

atoria de uma lei ficasse dependente da acceitação 80s subditos; em tal caso e por egualdade de razão poderia cada parochia recusar obediencia ás leis ema- nadas da metropole, ou se arrogaria o direito de re- vogar as leis já existentes.

Em conclusão: nem o direito publico, nem a nzo- ral, a economia ou a polttica subministram razões plau- siveis, para que a lei do casamento civil seja promul- gada entre as nações christãs.

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Y ARTE TERCEIRA

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PARTI T&RC&IRA uLa société n'aóréé nil'homme, ni le mariage,

ni Ia farnille.1 Ce sont-lil des faits primordiaux avec lesqucls i1 faut qu'elle compte, et dont elle ne pent réglerlque certains effets extérieurs. L' ktat est 1B polir les protéger, i1 n'en est pas l'originen.

;COMTE DE BREDA (Considérations srr b mariage au point de m e de6 lois).

aLes lois sont faites pour les hommes et non les hommes pour les loisr.

MONTESQUIEU (Esprit des lois).

Legislrrção malrimonial dns principaes naçues da Europa

Até aqui foi estudado o casamento civil em face da doutrina catholim, e julgado como opposto aos prin- cipio~ dogmaticos da Egreja; foi estudado em face da philosophia social, e sentenciado como uma instituição anti-politica e nociva para os povos. Parece, portanto, que fica previamente julgado qualquer codigo, que o admittir. Todavia nem todas as nações deram*a mes- ma amplitude á lei do casamento civil, nem todas fize- ram d'elle egual applicação.

Emprehendo agora estudar o assumpto em face da legislação portugueza, se a inopia de recursos intelle- ctuaes, de tempo e de subsidios extrinsecos me permit- tirem um tal estudo. Começarei por indicar, de um

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modo geral, como os codigos das principaes nações eu- ropeas regulam o matrimonio.

I. Na Hespanha a lei republicana de 10 de Junho de 1879 abrogou a cedula real de 12 de Julho de 1565, pela qual Philippe I1 tinha acceitado os decre- tos do concilio tiidentiiio como lei vigente nos seus Estados; e estabeleceu .simultaneamente o casamento civil e o religioso, deixando aos contrahentes a liber- dade de começar por um ou por outro.

Ora succedeii que os pnvos da catholica Hespanha principiaram sempre por celebrar o matrimonio reli- gioso, e quasi sempre se contentaram com elle, mani- festando summa repugnancia pelo casamento civil, que põe em risco a estabilidade das familias.

A lei antecedente foi modificada por um decreto, firmado por Af'fonso XII em Fevereiro de 1875, que attribuiu ao casamento religioso todos os effeitos civis, com tanto que os esposos apresentem, dentro de oito dias, o attestado do parocho que assistiu ao matrimo- nio, a fim de que a nova união seja inscripta nos li- vros do registo civil. Esta disposição applica-se unica- mente aos conjuges, que não juntam ao sacramento o contracto civil, que fica subsistindo como lei geral.

A demora em apresentar o attestado, para além dos oito dias, 6 punida com multa progressiva e cres-

400 pesetas. Todavia não importa comsigo

11. Qual seja a legislação actual da Prmça ácerca do matrimonio, já fica dito na introducção (pag. 29 e 30). E obrigatorio para todos o casamento civil, que deve preceder o religioso; este, por si só, não tem va- lor algum perante a lei, nem produz effeitos civis.

Além d'isso, o ministro da religião que assistir ao matrimonio dos conjuges, antes de elles contrahirem o casamento civil, é chamado a policia correccional e incorre nas penas, determinadas nos art." 499 e 200 do respectivo codigo.

111. A legislação, que regulava o matrimonio, não era uniforme nos differentes Estados da Italin, antes da sua fusão. No reino de Napoles e no ducado de Modena impunham-se penas ao sacerdote, que unisse os conjuges, sem Ihes exigir a prova de terem previa- mente contrahido,casamento civil. Mas esse documen- to deixou de ser exigido no Estado de Modena, desde Novembro de 1855.

O novo codigo civil da nação italiana data de 1866, e estabelece anibas as formas do casamento, religioso e civil, permittindo (como succede na Hespanha) prin- cipiar por qualquer dos rnatrimonios, indill;-renternen- te. Mas os contrahentes são legalmente obrigados a submetterem-se ás duas formas, embora o povo se contente com o sacramento, como quem não compre- hende a utilidade pratica da duplicação d~ vinculo.

IV. Na Inglaterra é permittida a escolha entre o casamento civil e o religioso. O atlieu, o livre pensa- dor, o que não tem uma religião positiva, casa civil- mente; os protestantes, os catholicos, os judeus, casam segundo o rito de suas respectivas crenças.

Deve porém advertir-se que todas as formas do matrimonio religioso estão subordinadas a certas con- dições de direito civil commum: além dos banhos ou proclamas, que se lêem na egreja, devem ser feitos outros pela auctoridade civil (salvo o caso de dispen- sa), e antes da ceremonia religiosa deve ser apresen- tado ao ministro do culto um attestado do official pu-

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blico, por onde conste que decorreram os prazos le- gaes dos pregões, sem que fosse denunciado algum impedimento civil.

Ao acto religioso assiste com duas testemunhas o ofljcial publico (registrar) d'aquella circumscripção territorial, e lavra o assento do matrimonio, ao mesmo tempo que o sacerdote o inscreve no registo ecclesias- tico.

V. A lei de 9 de Fevereiro de 4875 confiou a of- ficiaes civis o registo dos nascimentos, casamentos e obitos, e (a exemplo da legislação, franceza) tornou obrigatorio o casamento civil em torlos os Estados do Imperio allemão. O artigo 6 7 . q a referida lei prohibe aos ministros de qualquer culto, sob pena de multa até 300 marcos ou de prisão até 3 mezes, que proce- dam á celebração do matrimonio religioso, antes de exigirem certidão de previo casamento civil.

Até i 8 7 5 as leis civis da Prussia e da Allemanha apenas intervinham para registar os matrimonios, que eram contrahidos perante os ministros de cada culto, em harmonia com o systema energicamente defendido

or Bismark em 1849. A lei de 9 de Fevereiro de 4875 foi um producto da Zucta pela ciuilisariio (Kul- turkampf), e o omnipotente chanceller adoptou e pro- tegeu aquella lei com o fim de descarregar um golpe certeiro sobre a Egreja catholica.

Mas o catholicismo conserva na Allemanha toda a vitalidade, e adquiriu até novas forças com a perse- guição; quem recebeu o golpe, foi a religião protestan- te 1. Em presença do espantoso desenvolvimento da

1 D'este mal se queixam os seus consistorios, ponderando que as estatisticas provam, de um modo eloquente, que os pasto- res evangelicos rarissimas vezes são chamados para administrar o

Internacional, o principe de Bismark mudou de tacti- ca, e pretende hoje reprimir o atheismo e a Kultur- k m p f , por meios politicos, contrapondo-lhe o partido conservador (die cleutschen Konservativen), ao mesmo tempo que trata de restabelecer as relaçaes com a Sé romana.

VI. A Austria é um dos paizes, em que a legisla- ção matrimonial tem soffrido mais profundas altera- ções. A legislação de 8 de Outubro de 4856, que lia- via restabelecido as disposiçaes do concilio tridentino, foi posteriormente revogada por uma lei de 2 5 de Maio de 1868, que substituiu os tribunaes ecclesiasticos por tribunaes civis matrimoniaes, cujas sentenças de- vem ser proferidas em harmonia com a doutrina do codigo civil de 4814.

Este codigo une o casamento civil e o religioso, de um modo indivisivel. O parocho é o official do regis- to civil dos catholicos, e pode o pòr-se á celebração do matrimonio, em nome das iisposições do direito canonico. Mas fica salvo aos contrahentes o direito de recorrerem aos tribunaes civis, que decidem se a re- cusa do parocho é ou não fundamentada 1.

A lei de 2 5 de Maio de 1868 admitte o casamen- to civil, separado do religioso, no caso especial do art." 2.: se o sacerdote recusa fazer os pregões e re- ceber a solemne declaração dos contrahentes, fundan- do-se em algum impedimento não reconhecido pelas leis do Estado, podem os nubentes requerer a publi-

baptismo, abençoar os consorcios, ou assistir Hs ceremoniw fune- bres.

1 Importa advertir que os impedimentos reconhecidos na lei civil, embora geralmente copiados da IegislaçSo ecdesiastica, nem sempre coincidem exactamente com os impedimentos canonicos.

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CAPITULO I1

Legislação porluguexa sobre o niatrimonio, antes do concilio lridcnlino

A legislaça civil dos povos christáos da Peninsula, antes da fundação do reino de Portugal, foi o codigo wisigothico.

As raças germanicas conquistadoras preferiram por algum tempo a sua-Lex wisigothica antiqua-ao-Bre- viap.ium A~ziani, pelo qual se regulavam as populações conquistadas, a raça celto-romana. Mas a conversão dos wisigodos ao catholicismo, e mais tarde a neces- sidade commum de combater os musulmanos, facilita- ram a fusão das raças, e contribuiram para a unifica- ção do direito.

A fusão era tanto mais facil, quanto nas duas le- gislaç6es entrava o direito romano como elemento pre- dominante. Receswindo, eleito rei no anno de 652, promulgou o codigo wisigothico eni doze livros, que vigorou em Hespanha durante muitos seculos 1.

Os concilios tinham entre os wisi odos a auctori- dade de assembleas politicas, que con f irmavam a elei- ção dos reis, e o 7." concilio de Toledo (an. 633) ha- via determinado que os reis jurassem proteger a religião catholica. Por este motivo as leis wisigothicas regula- ram sempre os assuinptos nzixtos, em conformidade com as disposições do direito canonico.

Vej. Oantu-Bistoria universal, vol. IV, livro 8." cap. X.

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Bastará citar dous exemplos. Aos judeus conver- tidos, que quizcssem contrahir matrimonio, impunha- se a condição de-o fazerem preceder da escriptura do- tal, e como por salutar providencia foi determinado para os christãosr , ou de receberem a benção sacer- dotal á face da Egreja '. Vêmos pois que a lei obri- gava os conversos ás duas condições, que a Egreja estabeleceu para evitar a clandestinidade, embora não tivesse ainda bastante força para proliibir a iodos os cidadãos os casamentos de mcro consenso, que os cano- nes reputavam validos, mas illicitos.

Outra disposição do codigo é relativa ao clero. Se constar com certeza que um presbytero, diacono ou subdiacono, se juntou, por matrimonzo ou concubina- to, com viuva penitente, virgem ou mulher secular, o bispo ou o juiz devem imedialamente obrigal-os á separação 3. Se os clerigos de ordens sacras podiam violar a lei do celibato por meio do matrimonio, argu- menta Alexandre Herculano, não devemos suppbr que iam receber a beiição sacramental á Egreja, mas sim que contrahiam o casamento civil.

Os argumentos d'este escriptor parlem sempre do

F o r i judicum, libr. XII, tit. 111, lei S.&: xIllud tamen mo- dibus omnilius observandnm praecipimus, ut si quis jodaeus sive jndaea noviter renati, nnptiale fcstum (al. fmdiis) celebrare volu- erint, non aliter quani cnm praemisso dotis titulo, quod in chris- tianis salnbri institntione praeceptum est, vel sacerdotali benedi- ctione intra sinnm ecclesiae sanctae percepta conjugium cnipiam ex his adire permithimus~

2 Forijudicum, libr. 111, tit. IV, lei aIgitur qnemcnm- que presbyternm, diaconnm, atque etiam subdiaconnm, devotae (al. Deo votae) viduae pcenitenti, sen cnicnmque virgini, vel mu- lierculae saecnlari, aut conjugio, ant adulterio commixtnm esse evidentissime patuerit: mox Episcopua sive judex ut repererint, talem commixtionem disrumpere non retardemtn.

falso supposto de que todo o matrimonio clandestino era um casamento civil. Se a lei dá o nome de matrimonw a taes uniões 1, é porque tinha em vista os casamentos de mero consenso, que a Egreja prohibia absolutamente aos clerigos de ordens sacras, mas que ainda não tinham sido declara.dos nullos; o codigo wisigothico ligava pois a sancção penal aos decretos disciplinares, para asse- gurar a sua observancia.

Tal era o espirito da nossa legislação, quando o territorio portuguez se separou da monarchia leoneza. Durante o reinado dos dous primeiros monarchas ou não se publicaram leis escriptas, ou não chegaram até nós senão alguns fragmentos. A materia do casamento era então regulada pelo codigo wisigothico, que har- monisava os primipios do direito romano com alegis- lação eanonica.

Dos foraes e outros documentos dos seculos X I I ' ~ X l i i consta que nos rincipios da nossa monarchia P eram frequentes duas ormas de casamento: os cele- brados á face da Egreja (de benedictione) e os de pu- blica fama (maridos conhoçudos). N7este ponto concor- dam todos os eruditos; as divergencias apparecem, desde que se trata de discriminar uma terceira espe- cie de matrimonios.

Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo admitte no seu Elucidario, além das duas formas antecedentes, o casamento a morganlteira ou morganica. Era, na opi- nião d'este escriplor, um contracto de mah-inwnio se-

A lei citada chama adulterio ic nnião illicita; Q é possivel que dè ao termo conjugio nma accepçlo difforente do matrimonio valido. Fundamento esta conjectura n'as palavras snbsequentes da mesma lei: xMnlieres vero, quae illis fueiint praedictis immun- ditiis implicatae, centenisjagelellis a judicibus verberentur~.

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gundo o direito natural '; a união de taes conjuges dependia apenas da sua vontade seria e livre; mas, como o marido (quasi sempre pessoa nobre) se occul- tava, e a manifestação do consentiinento não tinha sido publica, a lei não protegia essas unibes, não garantia a commuiilião de bens para os conjuges, nem o direito de herança para os filhos.

Alexandre Herculano, apoiando-se nos fóros de Cima-Coa, afirma a esisteilcia do casame~zio de firas, em que o mutuo consenso dos iiubentes era firmado por juramento ria presença de um ministro do culto (in rnanu cierici); mas não era coilferido o sacramento, porque os fóros consideram aclnelle inatrimonio como diverso e inferior ao de bençzo 5.

N6s, jB sabemos o que se deve pensar de tal argu- mento. E possivel que nos fóros se repute uma foima do inatrimonio inferior á outra, por isso ue só o de benção era conforine aos ritos e leis da i! greja; mas os elementos essenciaes do sacramento encontravam-se ein uma e outra forma. Deve porém notar-se que a in-

Viterbo apresenta como uniw fiindmento da sua asserçáo um contracto, feito por D. Pedro Penço e sua mulher D. Sancha Rodrignes com o mosteiro de Salzedas (an. 1272); «Se D. San- chajilar Ordim (tomar habito religioso), ou se casar, ou ouver marido conuzudo ... u perca as fazendas, que o mosteiro lhe di. Destas palavias infere o aiictor que podia D. Sancha ter marido ndo COILUZU~O, isto é, claudesliuit.

Mas a illação é iiiteira~iienle foiçatla, e yalida sómente pela necessidade de justificar a opiiiiAo de Viterbo, q119 adiriittia entre christáos o matrimouio contmct~, separado do s<Lc~amento. A pas- sagem citada mostra unicamcuto que o casar deiiotsva uma união conjugal, contrahida por forma diversa do matrimonio de publica fama (marido couhuçudo).

a Estudos sobre o casamento civil, pag. 24.

terpret,ação de taes documentos nem sempre é isempta de difficuldades i.

Para vencer essas dificuldades, importa que te- nhamos sempre em vista o espirito da nossa legislação sobre assumptos ecclesiasticos. Ora o primeiro monar- clia, que promulgou leis propriamente porluguezas, foi D. Affonso 11, nas cortes de Coimbra, convocadas no anno de 1211. Ahi se estabeleceu que os cidadãos portuguezes fossem julgados pelas leis do paiz; porém, se estas leis forem contrarias aos direitos da Egreja, devem ser tidas como nullas e sem valor algum 2.

O mesmo respeito pelo direito canonico se conti- nuou a observar no tempo de D. Affonso 111. Deter- minou este rei que nos bens da avoenga sóinente po- dessem siicceder os ii!lios de matrimonio de benção, ou os legitimados por indulto real 3. Na lei LXXXV

1 Viterbo considera as expressões-recaúdo, mulher irecabda- da, como significando o matrimonio do benção, e por coutra- posição ao de piiblica fama. Funda-se no fora1 de Cernancelhe, do anno de 1124: aQni inulierem alienam de recabdo percusserit, pectet ei LX sol.: Et si non habuerit Recabdam, pectet XXX, et sit iuimicus de suis parentibusu (Livvo dos foraas velhos).

Pelo coutrario A. Herculauo diz que mulher recabdada si- gnifica recatada; e qne esta designaçáo competia tanto Bs que con- trahiam o matrimonio á face da egreja, como ás casadas fora da egreja. Contrapunha-se a mulher ~ecabdada 9. de barragania ou concnbina.

Diz o final da postura I: aoutrosy que as sas leys sseian guardaidas e os dereytos da santa egreia de Rotiaa conuem a ssa- ber que sse foven feitas ou estabeleçudas contra eles ou conf a a santa epeia nona ualhaa nen tenham. Portugaliae nioniimeuta historica, vol. I (leges et consuetadines), pag. 163.

A. Herciilano diz qiie esta lei contribuiu poderosamente para que, entre nós, subsistissem por muito tempo os matrimonios pri- vados da bengáo da Egreja. Não posso compreheuder o nexo lo- gico, qne prende os dons factos; e o argumento, que o auctor ad- duz, 6 uma divagsçao Acerca de Gregorio VIL

Vej. o Elucidario de Viterbo, na palavra Avocnga. , .

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manda que os casamentos sejam Feitos com as pala- vras prescriptas ela Egreja, e sómeiite possam ser contrahidos por aquelles, que têem a edade requerida., e não ,estão incursos em nenhum impedimento canoni- co 1. E certo que admitte a clandestinidade; porém ha um abysmo entre o casa.meuto civil e o casamento clandestino.

A lei promulgada por D. Diniz, em i5 de Maio de 1311, é citada fora de proposito, porque não prescre- ve o modo de constituir a familia, mas refere-se á pro- va do matrimonio; dil-o o titulo da lei: Como se prova o casamento por fama. N'aquellc tempo não havia uin registo regular dos matrimonios; quando era necessa- rio proval-os, recorria-se á publicidade do facto, que se passou em face da Egreja. Succedia porém ou que o matrimonio havia sido clandestino, ou que os conju- ges tinham mudado de residencia e faltavam as teste- munhas. N'estas hypotheses era necessario recorrer á fama publica; por isso D. Diniz determinou que fosse prova sufficiente a cohabitaçáo por espaço de sete an- nos entre individuos tidos por marido e mulher, e que se apresentaram sempre como taes nos actos publicos e civis %.

1 aos cassamentos todos se poden fazer per aquelas parauoas que a santa eygrein manda atando (com tanto) que seim taaes que possan casar ses pecado. E todo cassnmento que possa seer prouado q w r seia a furto quer conhoçndamente t~allrci se os que assy cassaren foren didade conapryda como Se de cortumeu. Por- tugaliae monum. hist., loc. cit., p a g 262.

2 acostume he dês hi he direito que se huíi homi? uiue com h b molher e mantem casa ambos por sete annos coiitinuadamente, chamando-se ambos marido e inolher. Se fezerem compras ou uendas, ou emprazarnento, e se pozerem eru elles, nos estvrmen- tos ou cartas que fezerem, marido e molher, e na visydadc (visi- nhança) os ouuerem por marido e por molher nom pode ne-

Maiores 11iliil;uldades de interpretação oofferece a carta circular de Affonso IV a todos os bispos, datada de Evora aos 7 de Dezembro de 1352. Declara o mo- narcha que os representantes do povo se tinham quei- xado perante elle, em Santarem, de muitos crimes dos clerigos, que os juizes ecclesiasticos deixavam impu- nes; que elle pedira ao papa remedio para tamanho mal, e, na duvida ácerca da efficacia das providencias

ontificias, lembrava aos Prelados os deveres, que as Lecretaes lhes impõem com relaçzo aos clerigos; um dos abusos era o de negarem os clerigos o matrimonio clandestino. Ordena pois aos bispos que mandem que, para o futuro, todos os casamentos sejam contrahidos

erante o parocho e um tabellião, estabelecido em cada !eguezia para lavrar os assentos de casamento em li- vros, que possam servir de prova ás uniões contrahi- das n'essa freguezia 1.

O auctor do Elucidnrio e o sr. Visconde de Sea- bra consideram esta lei como disposição geral, appli- cave1 ao matrimonio de todos os cidadãos. A. Hercu-

nhú delles negar o casamento, e havel-os-háo por marido e por molher ainda que nom sejam casados em face d ~ . Egrejas. ' Encontia-se no cartorio da Camara de Coimbra o exem- pIar, que foi enviado ao bispo D, Jorge; e vem transcripta a car- ta na Synopse chronoiop'ca de J . A . de Figueiredo, pag. 10: aTeemos que seera bem e seruyFo de deos e nosso e prol do nosso ponoo que fapades e ordinhede8 que todos aqueles qne forem ca- sados como leigos payescan peraiite o priol da eigreja dhu ssom ffreguesses ou perante aquele que cura dessa eigreja e que se rre- ceban perante huó tabelion que seia estabelepdo sn essa freguesia para eacrepver esses rrecebiaientos peru ssepoder asabcr per esses lit~ms os casamentos que joran feitos en cadafieguesia per esses rrecebim~utou feito8 per eese priol ou cler ip e que de aqui adean- te mandedcs que todos os rrecg6imetzto8 que sse ftzerem en essas frcepeziaa sseiam feitos per esse priol ou clerigo perante o tabe- lion dessa freeguezis hu esses casamentos foren feitos>.

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Iano entende que D. Affonso IV se referia unicamente ao casamento dos clerigos; e funda-se (1.") em que o preambulo da lei trata unicamente dos abusos, que era necessario remediar, entre a classe ecclesiastica; (2.') em que o monarcha, se quizesse legislar para to- dos, não dirigiria uma circular aos bispos, mas publi- caria uma lei geral.

Estes argumentos são dignos de ponderação; to- davia não me parecem incontroversos. A negação dos matrimonios clandest,inos não é a unica, nem a princi- pal culpa attribuida n'aquelle documento aos clerigos; e podia succeder que o abuso d'estes proporcionasse occasião para se estabelecer um remedio geral.

Assim o persuade o exame attento da propria lei. O monarcha repete duas vezes, e sempre em termos genericos e absolutos, o preceito da publicidade dos consorcios. Não se pode suppdr que se estabelecesse em cada freguezia um tabellião, tendo por unica attri- buição registar os casamentos dos clerigos de ordens menores. Se assim fosse, não se attingiria o fim, que D. AfTonso IV tinha em vista; os livros do tal registo não podiam servir para se conhecerem os casamentos feitos em cada freguezia ... Além d'isso, não sendo a obrigação do matrimonio publico imposta a todos os cidadãos, qualquer poderia casar clandestinamente e depois ordenar-se, renovando assim os abusos, que o monarcha pretendia extirpar I.

1 A. Herculano diz: Ainda que fosse m a medida geral, não se referia a todos os consorcios, mas s6 aos feitos na egreja. aComo se haviam de registar os casamentos ajuras? ... Como se regista- riam os oonsorcios por esponsaes e cohabitaçso permanente?>

Respondo que estas formas de contrahir matrimonio ficavam prohibidas pela lei geral; esquivando-se do registo, os nubentes

Depois da lei de D. Affonso IV encontra-se, na ordem chronologica, o Codigo Affonsitw 1, no qual principia uma serie de prohibições muitas vezes repe- tidas na legislação portugueza contra os casamentos cla?zdestinos, quando eram contrahidos com mulher, que estivesse sob a tutela de Pae, Mãe, ou outra pes- soa, que não consentisse em tal matrimonio.

D'estas disposições legaes se tem pretendido tirar argumento, para provar que era então admittido entre nbs o casamento civil. Mas como se poderá &amar civil a um consorcio, que a lei prohibia? A leitura dos documentos, relativos ao inatrimonio d'aquelle tempo, convence-nos do seguinte: a indole sem re religiosa ! do povo portuguez movia-o a celebrar or inarianiente o matrimonio com os ritos e cereinonias prescriptas pela Egreja. Se algumas vezes recorriam ás nupcias claiidestinas, era com o intuito de realisar furtivaineii- te uma união, a que se oppui~ha a fanrilia de algum dos conjuges, quasi sempre a da esposa.

Por este motivo as leis dos nossos monarchas teii- deram sempre a obstar ao abiiso da clandestinidade, em ordem a assegurar o atrio poder. Assim o Codigo Afomitio (livr. V, iit.RIII) renovou uma lei de I). Affonso TV, feita em Estremoz aos 21 de Setembro de 1340, e na qual eram impostas as penas de confisco, degredo, infamia e outras, contra os que casavam clandestinamente com mulher, que estivesse sob a tu-

contrahiam uma iruiáo, destitiiida de effeitos civis, n&o obstante o direito ecclesiastico d'aqnelle tempo continuar a reconhecer a va- lidade dos matrimonios clandestinos.

1 Desde o reinado de D. João I se trabalhou n'esta compi- laçiío das leis, que ~6 poude ser concluida no tempo de D. Affon- 60 V, e publicada talvez no anno da 1446.

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tela de outrem. Os moti~os de uma tão severa penali- dade aponta-os a propria lei, quando enumera os mui- tos inconvenientes dos matrimonios, contrahidos nas referidas condições 1.

Em 24 de Julho de 1499 promulgou D. Manuel urna lei, em que ordena que todos casem publicamente á face da Egreja, segundo os canones. Renovando o pre- ceito, estabelecido por Innocencio I11 no 4.Qoncilio de Latrão (an. 1215), manda que na fregiiezia dos contra- hentes se leiam os bainos (proclamas ou pregões), se não tiverem obtido dispensa do Prelado. Os noivos, qile assim o náo cumprirem, perderão todos os seus bens, metade para a camara real, e metade para os captivos. Aos assistentes e testemunhas do matrimonio clandestino impõe egual pena, aggravada com a de degredo por dous aiinos para Ceula '.

Mas parece que a comminação de penas tão rigo- rosas tinha por fim exclusivo dar toda a efficacia pos- sivel á auctoridade pat,erna; porque a lei traz uma ex- cepção importantissima: se o casamento clandestino se fizer a contento e com o consentimento dos paes e mães dos contrahentes (quando os tenham), cessa toda a criminalidade temporal, e os conjuges incorrerão so- mente nas penas do direito canonico.

Esta intenção do monarcha se revelou de um modo patente nas Ordenações Manuelittas, nas quaes se in-

1 aE per razom desses casamentos se seguiam muitos dapnos a essas molheres, casando aas vezes com taaes, que as noin mere- ciam, ficando ende algumas defamadas, porque nom podiam pro- var o casamento, e osfilhos, que dellas haviam, per nom lidemos (illegitimos); e demais recreciam muitas mortes e omizios antre os parentes dellae, e aquelles que casavam...>.

2 Vej. a Synopss chronologica de J. A. de Figueiredo, vol. I, pag. 150.

cluiu a lei de 1499 I. O livro V, tit. XXXII, d'estas Ordenações probibe o matrimonio com mulher menor de 25 annos, sem o consentimento dos paes ou do tu- tor, sob cujo poder estiver a menor. Aos nubentes e testemunhas são impostas as penas da perda dos bens, e de degredo por um anno para terras $Alem. Mas o 5 1." abre ainda uma excepção: quando as vantagens do consorcio notoriamente excedem as de qualquer ou- tro, que os paes ou o tutor possam fazer á menor, não têem logar as penas da lei.

Vêmos pois que diminuiu o rigor da sancção tem- poral, e foram omittidas as clausulas da lei anterior, que obrigavam á observancia das leis canonicas. Da combinação do livro V, tit. XXII, com o livro 11, tit. XLVII, das Ordenações Manuelillas, se pertende infe- rir a existencia de casamentos civis. Vejamos se é le- gitima a illação.

O tit. XLVII do livro I1 regula os effeitos civis do matrinionio, determinando os casos em que ha com- munhão de bens entre os conjiiges. A sua doutrina pode reduzir-se a tres pontos: (i.") são meeiros os con- juges que casarem á porta da egreja, ou fóra d'ella com licença do Prelado; (2.9 os que têem vivido em casa teuda e manteuda, ou em casa de seus paes, ou em outra, ein publica voz e fama de marido e mulher, ainda que não hajam casado á porta da egreja; (3.')

t Parece que D. Manuel ordenou a redacçao do seu codigo de leis no anno de 1505; mas a inspscç~o dos documentos contem- poraneos prova que a primeira ediçáo somente poiide apparecer entre o mpz de Agosto de 1511 e o de &io de 1512. A ediçáo, que se conserva na Torre do Tombo é a segunda, feita no anno de 1514. Ainda se fizeram novas edições em 1521 e 1565 (diirante a menoridade de D. Sebastião), mas em nada aiteraram a primeira edição.

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não são meeiros os conjuges, que não oderem provar algum dos dous factos antecedentes, em ora se tenham recebido por palavras de presente, e haja copula en- tre elles.

Envolverá esta lei o reconhecimento do casamento civil, como ahi julgou descobril-o o gravissimo histo- riador A. Herculano? Creio que não. O que se conclue, da simples inspecção da lei, é que os nossos reis exi- giam nos matrimonios a condição da publicidade, e puniam a clandestinidade, pelo modo que lhes era pos- sivel, ou que se lhes afKgurava mais conveniente. Eu me explico.

O matrimonio solemne, celebrado á face da Egreja com os ritos e ceremonias prescriptas pelos canones, produzia o effeito civil da comrnunhão de bens, porque se tornou publico desde o acto da sua constituição. Ao casamento, que não foi revestido com a? solernnidades religiosas, mas que depois obteve a publicidade da permanencia, ainda se concedem os effeitos civis, por- que a legislação do Estado, como a da Egreja, não poderam vencer repentinamente o longo habito ou abuso dos matrimonios de mero consenso. Porém ao matrimonio, que permanece clandestino, isto é, a cu- jos conjuges falta a publica voz e fama de marido e mulher, são negados os effeitos civis; porque eram estas as uniões que produziam mais graves incanve- nientes na pratica.

Onde encontramos aqui sanccionado e reconheci- do o casamento civil? Será no consorcio celebrado fóra da egreja, sem licença do Prelado? Mas, n'esta hypo- these, teremos de attribuir á lei uma incoherencia ab- surda; porque não reconhecia a communidade de bens aos consertes, que provavam terem-se recebido por pa-

lavras de presente. 6 indubitavel que esta fórrna de contraliir o matrimonio seria a condição essencial do contracío civil (se o houvesse).

Em conclusão: antes do concilio de Trento não en- contramos na legislação portugueza o casamento civil; quer dizer, não se attribuiam os effeitos civis da união conjugal e legitima a algum corztracto, destituido do caracter religioso, e contrahido perante um magistrado civil. Mas lograria esta instituição ser recebida em Poi- tugal, depois de publicados os decretos do concilio de Trento?

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CAPITULO 111

Legislaçiio portugueza sobre o niatrimonio, depois do coiicilio tridentino

Em 4 de Dezembro de 1563 encerrou definitiva- mente as suas sessões o concilio tridentino, e os seus canones dogmaticos e decretos disciplinares foram sub- scriptos pelos 255 Prelados, que haviam tomado parte nos ultimos trabalhos d'a uella augustissima assem- 3 blea, bem como por gran e parte dos embaixadores ecclesiasticos e seculares das potencias catholicas I.

Apenas chegou ao Reino a bulla confirmatoria- Benedictus Deus, expedida pelo Pontifice Pio IV aos 26 de Janeiro de 1564, publicou o Cardeal Regente o Alvará de 12 de Setembro de 1564, no qual declara desejar a inteira observancia dos decretos do concilio, e por isso manda a todos os magisirados e Justiças que dêm todo o favor e ajuda aos Prelados, quando estes requeiram o exercicio da jurisdicção externo-tem- poral, que Ihes é attribuida em alguns decretos do Tridentino %.

1 Como embaixador do rei de Portugal assignou as decisaes do concilio Fern* Martins lfascarenhas, o seu secretario Dr. Belchior Cornelio, e os cinco theologos adjunctos, enviados ao con- cilio por parte do nosso monarcha: Fr. Francisco Foreiro, fi. Luiz de Sotto-Maior, Diogo de Paiva de Andrade, Jorge de Attaidc (depois bispo de Vizeu) e Fr. Antonio dc Padila.

2 «E porque eu desejo muito que o dito concilio se dê muito inteiramente a sua devida execução, e que por parte das minhas Justiças,.. se dê todo o favor 0 ajuda á boa guarda e cumprimento

Dificuldades praticas, suscitadas talvez pela op- posição dos tribunaes civis, ou pelos abusos e exces- sos dos Prelados, deram occasião a que posteriormente se restringisse, ou pelos menos regulasse, a execução dos decretos conciliares, que tinham sido recebidos de um modo incondicional. Logo dous mezes depois ap-

areceu a Carta regia de 17 de Novembro, em que o fhrdeal Regente manda sobreestar no despacho dos que charnunz 6s Ordens (invocam o privilegio de f6ro ecclesiastico), até que sejam publicadas as determina- çoes ácerca dos decretos do Tridentino, que se refe- rem aos clerigos de ordens menores I.

Este primeiro documento foi immediatamente se- guido de outro mais generico. A Provisão ou Alvará de 24 de Novembro de 1564 veio regular a execução dos decretos disciplinares do concilio, que versavam sobre crimes e negocios mixti fori. Porém estas dispo- siçoes tiveram apenas um caracter transitorio.

A Carta regia de 17 de Novembro de 1564 foi suspensa pelo Assento de 13 de Abril do anno seguinte, que mandou respeitar o privilegio de fóro dos clerigos presos, segundo o que estava determinado pelo con- cilio (sess. XXIII, De refornz. cap. VI) e. E em 2 de Outubro do mesmo anno (1565) escrevia D. Sebastiáo ao Pontifice romano, dizendo que est,ava determinado

dos deçretos do dito couciliq mando ao Regedor da Casa da Sup- plicaçáo e ao Governador da Casa do Civel, e a quaesqiier ontros officiaes e Justiças de meiis Reinos e Senhorios, que, sendo re- queridos pelos Prelados ácerca da execnção sobredita, dêem todo o favor e ajuda para o dito deito>. Pode lêr-se em C. Mendes d'Almeida-Direito civil eccl." brma'leiro, tomo II, pag. 297.

1 Vcj. a Synopse chronologica de J. A. de F'igueiredo, tom. E, pag. 104.

OC. cit., tom. II, pag. 108.

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a (proceder de fórma que todos os decretos do sagrado concilio, tanto os que respeitam á fé, como os discipli- nares, sejam observados com a mais inviolavel integri- dade, 1 rn .

E todavia certo que os civilistas moviam surda guerra á execução dos decretos conciliares. Não ob- stante os sinceros desejos do rei, parece que os tribu- naes civis eram remissos em dar a ajuda do braço se- cular i s sentenças dos juizes ecclesiasticos. Em 2 de Março de 1568 publicou D. Sebastião uma extensa

onderando que, para evitar dissensões en- I! tre a juris icção secular e a ecclesiastica, bem como

para obviar á dilação que se dava em obter dos Desem- bargadores da Casa da Supplicação a ajuda do braço secular, manda que a dita ajuda possa ser dada pelos Corregedores das Comarcas, Ouvidores, Juizes de fora e oui;ros magistrados, desde que llies sejam mostrados os processos e sentenças; e achando que tudo foi re- gular, executem com brevidade as sentenças dos Pre- lados, sem appellação nem aggravo %.

1 Vej. Pallavicini-Storia de1 concilio di Trento, livr. XXIV, cap. I X , n.O 15.

2 a*.. mostrando-se os processos e sentenças, e achando que os ditos processos foram ordenadamente processados, conceda a dita ajuda do braço secular...^

Aqni se regulam varios casos de jurisdicç~o preventa, em vir- tude da qual a jnstiça ecclesiastica ficava inhibida de conhecer dos casos de faro mixto, se os tribunaes, civis tinham já conhecido d'ellcs. A. Herculano (Estudos sobre o casamento civil, pag. 144) diz que esta dispssiçáo acabon de firmar a supremacia do poder temporal sobre o espiritual, e das leis civis sobre as canonicas.

M i s aquella medida, necessaria pnra obviar B interrnpçáo da jnstiça e confusão dos processos, não tinha o alcance que A. Her- culano lhe attribue. Se, por exemplo, pnssava o termo marcado pelo tribunal civil para se cumprir certa obra pia, e não estivesse cumprida, devia dinittir-se a acção dos jnizes ecclesiasticos e os

Esta lei veio derogar as Oráenações Manuelziaas no livro I , tit. [V, que no 5 7.' estatuia que a a'uda do braço secular fosse implorada somente pela Easa da Supplicação '. E egualmente declara o rei que a sua nova Provisão seja cumprida, sem embargo do que de- terminou na Provisáo de Novembro de 1564.

Por fim a propria lei de 2 de Março de 1568 foi directa e expressamente derogada pela Provisão ou Alvará, dado enl Almeirim aos 19 de Março do anno seguinte. Por,este acto legislativo mandou el-rei a to- das as suas justiças que não ponliam embargo, antes dêem a necessaria ajuda e favor, aos Prelados que

uizereni exercer, por seus proprios nzilzistros, a juris- jicção, que os decretos do Tridentino lhe concedem sobre os leigos 3.

magistrados civis anáo impedirão aos Prelados prover n'isso como acima dito he». Os n.OS 6, 9 e 12 da Provisão garantem aos Pre- lados a intervençáo exclusiva em certos negocios mixtos, se pro- varem a posse.

1 altem duram (os desembarguadores do Agrauo da Casa da Sopricaçam) Muda & brapo segral ena Rolaçanz, citadas as partes, s visto o processo, e achando-se que foi ordenadamente feito, a qual qsuda do braço segral nont se dará na casa do Ciuel, nem em ooctra algiia parte se nom en a Nossa Casa cla Sopricaçam".

2 «Considerando en a grande obrigaçani, qiie, como filho muito obediente da Santa Sé Apostolica, tenho de guardar inteiranzente as determiuaçRes do dito concilio, e dar todo o favor e ajuda pera se conseguir o effecto, que nellas se pretende, conto sempre costwza- rum fazer os Reys d'estes Regsos, meiis antecessores.

Hei por bem e mando a todas as minhas Justiças, qne, que- rendo os ditos Prelados e Juizes ecclesiasticos, per sens proprios ministros, usar contra leigos da jurisdicçam, que lhes dá nos ditos decretou, e em quaesquer oiitros, o dito sagrado concilio, l@o po- nham a i980 duvida, nem embargo algum, antes lhea d&b toda a ajuda e favor necessario~. Pode lêr-se em C. Mendes d'Almeida -Direito civil eccl.' brazileiro, tom. I, na pag. CCXXX da In- troducçdo, ou no tomo 11, a pag. 805.

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Se ainda fossem necessarias outras provas, de que os decretos do concilio tinham sido recebidos entre n6s, tinhamos as constituições diocesaraas dos bispados, fei- tas posteriormente ao tem o do Tridentino, e que ado- pfam os seus decretos. 4 inhamos os concilios provin- czaes reunidos para dar execução aos referidos decre- tos; tal foi o concilio de Braga, convocado por D. Fr. Bartholomeu dos Martyres em 23 de Junho de 1567; o concilio de Evora no mesmo a n o ; os dous concilios que se reuniram em Lisboa, começando o primeiro a 5 de Julho de 1566, e o segundo a 22 de Março de 1574. E ainda se poderia citar o concilio provincial de Goa, convocado em 1567 ou 1568.

Insisto n'este ponto porque os nossos escriptores frequentes vezes têem impugnado a acceitação do Trin- dentino em Portugal, allegando que os actos legisla- tivos, que o admittiram, são ... obra dos jesuitas 1. Chega a ser maravilhoso o poder attribuido a uma instituição que, sendo ainda tão recente, já exercia uma influen- cia omnipotente na carte de Portugd. Em 1564 tinha a Companhia de Jesus 24 annos de existencia, a con- tar da approvação dos seus estatutos pelo Pontibce Paulo 111, em 1540. Dizem que o medo avulta os ob- jectos, e é o que talvez succeda no caso presente.

Seriam tambem os jesuitas, que fizeram receber os decretos do concilio na Hespanha? Seriam elles, que extorquiram a Philippe 11, que cera rei a vai er... de- votissim da religião, mas muito mais devoto do proprio

1 É para lamentar que um historiador trro grave como A. Her- culano se veja obrigado a mendigar argumentos na Deducção chronologica, obra ciija má E6 todos conhecem, e que o noaso his- toriador deprecia e ridicnlarisa no mesmo escripto, em que a cita (Estudos ... pag. 120, 146 e 152).

145 - desbotismom I, a çedula real de 12 de Jultio de 15Ci5, pela qual recebeu incondicionalmente os decretos do coiicilio tridentino para todos os seus Estados? Seria a influencia dos jesuitas, que fez acceitar os rnesmos decretos na re ublica de Veneza, em todos os Estados 1 da Italia, na Ilemanha catholica, na Suissa, na Po- loni?, e n'outros paizes?

E possivel. Entretanto devemos confessar que não era necessaria a influencia dos jesuitas, para que os piedosos reis de Portugal reconhecessem e acatassem os decretos da assemblea de Trento, á qual tinham enviado bispos, embaixadores e theologos, sendo estes ultimos seculares ou pertencentes asco oraçties reli- giosas, emulas da nascente Com anhia e Jesus. & 'B

Mas quero conceder que os varás de 12 de Se tembro de 1564, e de 19 de Março de 1569, se devam effectivamente a ~u;~;l!stúes do P."uiz Gonçalves e de seu irmão Martirn Gonçalves. Seriam, or tal mo- tivo, nullos? Deixariam de ser lei portugueza Respondo S com as palavras de um rohildo e serio historiador em discussão analoga: Bue importa i sociedade, importa ao direito quem compilou ou redigiu as Or e- 'r nações do Reino? A sua força, a sua auctoridade náo vem d'esses homens: vem da soberania, da vontade do rei, que então concentrava em si todo o poder legisla- tivoz 2. Concedam-nos ao menos que nem todas as obras dos jesuitas são peçonhentas, e que não foi a ac- ceitaçb do concilio tridentino a causa da decadencia de Portugal.

Um respeitavel escriptor, que tambem lê pela De-

A. Herciilano - Estudos.. . pag. 150. A. Berculano-ibid., pag. 127.

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146 - duc@o chronologica, reconhece que o concilio triden- tino foi recebido entre n6s sem restricção alguma; po- rém logo accrescenta que este maleficio dos jesuitas produziu C tamanho escandalo c alvoroto que o sum- mo Pontifice Pio V julgou conveniente tranquillisar os animos, declarando que recebia para DeUs, o que era de Deus, mas que d+va a Cesar, o que a Cesar per- tencia em sua zirisdicção~ 1. E cita a bulla de 15 de Janeiro de 15 i 0, transcripta na Historia Sebastica de Fr. Manuel dos Santos, livro 11, cap. VIII.

Mas a verdade é que o auctor da Llistoria Sebas- tica, não obstante o seu manifesto resentimento contra os Prelados, refere no cap. IX (e não VIU) do livro I1 que em 24 de Outubro de 1569 escreveu D. Sebas- tião uma carta a Pio V, em que lhe communicava os esforços empregados para a inteira execução dos de- cretos conciliares. O Pontifice respondeu no Breve- Explicare verbis-de 5 de Janeiro de 1570, felicitando o monarcha por ter sido o primeiro dos principes ca- tholicos, que auctorisou os Bispos e mais ecclesiasticos a usarem da jurisdicção, que lhes concedeu o concilio tridentino; no que mostrou conhecer o ministerio de um bom rei, do qual apri~zcz$alnlente deve ser proprw dar a Deos o que he de Deus, e tomar para si sd o que he de Cesar; isto he, a jurisdiçiio temporal> 9. Como se

O Sr. Visconde de Seabra, citado pelo Sr. Vicente Perrer na Collecçao das suas cartas sobre o casamento civil, pag. 27 (ediç. do Porto, 1866).

s Segundo o testemunho do chronista Fr. Manuel dos Santos, o Breve-ainda em Agosto de 1734 se ooaservava na Torre do Tombo, e diz: x... primus inter tot christimos catbolicosque Reges esaavoluisti, qui Episcopis, caeterisque ecclesiasticis N i i t r i s ju- iisdictioms sibi a Sacro Tiidentino Concilio concess@e, libere exer- eendae facultatem in Regno tuo peruiitteres; ... in eo qaae sint

vê, as palavras de Pio V estão ein diametral opposição com as que lhe foram attribuidas.

E na verdade, a boa critica nos adverte de que não era provavel, que o Pontifice romano dis ensasse voluntariamente o nosso monarclia da inteira o 1 servan- cia dos decretos, que poucos annos antes a Sé Apos- tolica se esforçava por introduzir em todos os paizes catholicos.

Quando o rei de Portugal invocou certos privile- gios, relativos a negocios de f6ro mixto e jurisdicção ecclesiastica, Gregorio X I! I res ondeu pelo Breve - Exponi nobis- de 2 5 de Abril ! e 1578, dizendo que rião tinha conhecimento algum de taes privilegios ... Não obstante isso, ermittia que se mantivessem por um anno as ConcordIias, leis e costumes de Portugal, sobre negocios ecclesiasticos, até que a Santa Sé os examinasse, excepto se estiverem em opposição com os decretos do Dick~ztino (dunimodo sacri concilii decrelis non contradicant) '. Esta restricção do Breve - Ex- poni nobzs -vem esclarecer ainda mais, qual podia ser a intenção do Pontifice Pio V no documento, publicado 8 annos antes.

Fica pois demonstrado que o concilio de Trento

optid, atqne ex Deo regnantis Regia partes praeclare videris in- telligere: cujus maxime proprium esse debet reddere, quae Dei B U U ~ Deo, quae autem Oaesaris, hoc est, tempordis potestatia aunt, ea sibi tantummodo retinere~.

NSo posso admittir que o Sr. Visconde de Seabra alterasse as palavras do Pontifice; provavelmente confiou no auctor da Drduc- çao chronologica, e não verificou a citaçáo. Enquanto ao escan- da10 e alvoroto do Reino nada diz a Hisbria Sebastica, no logar citado. Mas é quasi certo que o alvoroto existiu unicamente na imaginação do inspivador e do auctor da Deducçao chronologica.

1 Pode lêr-se em C. Mendes d'Almeida - Direito civil eccE.O brazil.; tom. I , pag. 314.

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passou a ser considerado como lei vigente do Reino. h as este ponto offerece-nos. uma seria di1iil:uldade; as Ordenaçaes Philippinas, publicadas no anno de 1603, e por consequencia muito posteriormente á acceitação do concilio 1, reproduziram as disposições das Nanuelinas (livr. 11, tit. XLVII), sob a fórma que passo a tran- screver.

'Todos os casamentos feitos em nossos Reinos e Senhorios se entendem serem feitos por carta de ame- tade: salvo quando entre as partes outra cousa for acordada e contractada, porque então se guardará o que entre elles foi. contractado*.

I (E quando o marido e molher forem casados por alavras de presente á porta da Igreja, ou por licença

$0 Prelado f6ra della, havendo copula carnal, serão meeiros em seus bens e fazenda. E posto que elles queirão provar e provem que forão recebidos por pa- lavras de presente, e que tiveram copula, se não pro- varem que forao recebidos á porta da Igreja, ou fdra della com licença do Prelado, não serão meeiros~ .

I1 s Outro si serão meeiros, provanddque stiveram em casa teuda e manteuda, ou em casa de seu pae, ou em outra, em publica voz e fama de marido e mo- llier por tanto tempo, que segundo direito baste para se presumir Matrimonio entre elles, posto que se não provem as palavras de presente,.

Tal é a celebre passagem das Ordenações do Reino, livro IV, tit. XLVI, que A. Herculano pertendia estar ainda em vigor, e a proposito da qual escreveu: c Não

1 Em 5 de Junho de 1595 encarregou Philippe I1 a quatro ju- riscouaultos portuguezes a nova compilaçh das leis, s qual appro- vou em 11 de Janeiro de 1603. Posteriormente D. JoBo 1%' cou- Srmou-a como lei do Reino em 29 de Janeiro de 1643.

sabiatn que tifaham em casa a uibora do casamento ci- vil? Pois tinham ... N a Ordenação o que o absolutismo fizera, [ara elevar a mancebia á dignidade de matrimo- n i o ~ I.

Manuel de Almeida e Sousa, mais conhecido pela alcunha de Lobáo, João Pedro Ribeiro, Coelho da Ro- clia e outros escriptores citados por este ultiino, en- tenderam que foi por mera inadvertencia, que os com- pjladores das Philip inas inseriram n'ellas a legislação citada, sem se lem g rarem de que estava em contra- dicção coin os canones tridentinos, recebidos com lei do Reino. Mas A. Herculano insurge-se contra esta hypothese da inadvertencia, ponderando que a passa- gem f0ra transcripta para um logar muito differente do que occupava nas Ordenações Manuelinas; que a phrase tinha sido alterada e abbreviada; e finalmente que á primiliva disposição legal foi accrescentado. um novo paragra ho 2. P A. Hercu ano e o Sr. Vicente ~ e r i e r pertendom concluir da passagem citada que, no tempo das Orde- nações Phili pinas, ainda era usado entre nós o casa- mento ctuil. $ as esta conclusão tem contra si tudo, o que até agora tenho allegado. Para que continuasse a estar em vigor o casamento civil, era necessario que esta instituição princi iasse a ser usada entre nós; e até ao fim do seculo 5 VI ainda a não encontranios. Um bomem, que estudou profundamente a indole da an- tiga legislação portugueza, affirma que, em virtude da preponderancia adquirida gela Egreja durante a edade media, as nossas leis erani quasi mudas acerca do ma-

Na carta datada do l.' de Dezembro de 1865, e pnblicada no Jornal do Comme7.cio cle Lisboa, n:" 3:639.

Estudo8 sobre O casnmcnto civit, pag. 158.

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trimonio, assumpto que deixavam ao direito canonico, ás co~zstituições dos bispados e auctoridacles ecclesiasti- cas,'

O que fica dito a respeito das Ordenaçnes Manue- linas, livro II, tit. XLVII (vej. a pag. 138), tem egual applicação ao logar das Philippinas. Não se trata aqui da essencia do vinculo conjugal, nem de eleeiar o coa- cubinato a dignidade de matrimonio; o titulo XLVI in- screve-se: Como o marido e molher são meeiros em seus bens. Longe de sanccionar o concubinato, antes se pre- tende evital-o, e providenciar aos defeitos do casa- mento clandestino; é por isso que a lei nega O efeito civil da communhão de bens aos conjuges, que tiverem como unica prova do seu consorcio um simples accordo por palavras de presente. As Ordenaçoes exigem uma outra condição, a publica voz e fama de marido e mu- lher; e porque a opinão publica podia aludir-se n'um ou n'outro caso particular, determinam que ha'a decor- rido o praso de tempo legal (sete annos). Ara quai f6sse o fim do legislador, ao tomar todas estas precau- ções, elle proprio o declara: é para razoavelmentepre- sumir que entre elles houve matrimonio.

Para demonstrar a existencia do casamento civil tem-se tambem in~locado as disposições do titulo XXVI do livro V das Ordenações. Ahi se estabelecem penas para O adulterío commettido com mulher casada de facto mas não de direito, isto é, cujo matrirnonio ficou nullo em virtude de algum impedimento canonico. No 5 2." regula-se a hypothese especial de ter sido o adulterio commettido com mulher, que não fbsse casada dc h- cto nem direito; hypothese em que a pena do adiil-

1 Vej. Coelho da Rocha - rr&stitzci$des c10 !lireito civil po~'t21- pez, tom. I , nota IC ao 4 213.

ter0 é aggravada, se o marido mostrar instrumento publico do contracto de casamento.

Estas expressões parecem dar alguma plausibili- dade á opinião dos que, a todo o transe, pretendem vêr o casamento civil nas Ordenações. Mas a illusão desapparece, desde que recordemos a accepção espe- cial, que os antigos documentos juridicos ligavam á palavra casar; somente se dizia casada a mulher, que tinha recebido a benção nupcial á face da Egreja: n'este sentido os conjuges, unidos por um matrimonio clan- destino, não eram casados de facto, nem de direito: Se este não fosse o sentido das Ordenqões, teriamos de dizer que ellas se referiam ao concubinato; 'o que é absurdo, e contraditorio com a clausula do instrunzmto publico do contracto de casamento.

O que é licito concluir do exame dos actos legis- lativos d'aquella epocha, é.que os hh i tos populares eram mais fortes do que as leis escriptas; os decretos do concilio tridentino eram considerados como leis vi- gentes, mas os conjuges continuavam a celebrar o ma- trimonio clandestino.

Ainda nas cortes de 1641 appareceram queixas contra o referido abuso. O Estado do Clero no cap. XI, e os Estados dos Povos nos cap. V e VI, pediram que se provesse á reunião de um concílio nacional, porque

se não cumprem alguns decretos do concilio de Trento; e que se continuar este descuido, podem succeder in- convenientes difficeis de remediar ... B f. Foi n'esta mes- ma assemblea que os representantes do povo lembra- ram, que seria de grande utilidade obter um Breve,

1 Consta da carta patente, firmada por D. João IV em 12 de Setembro de 1642, e na qual se encontram as ccspitulos das cortes de 1641 e as respectivas respostas do monarclia.

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pelo qual x se declarem nzcllos os matrin~oi~ios clandes- tinos, pois não é bastante remedio o que dá o concilio tridentino ena os castigar sem os annullar~ I.

para salvar a hypothese, realmente pouco prova- vel, de um disparate; proferido em plenas chrtes, ad- verte A. Herculano que os representantes do povo se referiam aos matrimonios, que os canonistas da epocha chamavam clandestinos validos, isto é, contrahidos pe- rante o parocho e duas testemunhas, mas sem lerem sido precedidos de pregoes. O Tridentino exigia esta condição, porém não declarou nzcllos os matrimonios, em que ella faltasse.

De bom grado acceitarei a explicação. Todavia salta aos olhos a, inexactidão da linguagem dos Estados dos Povos, porque o concilio não annulla, nem castiga, os chamados matrimonios clandestinos validos. Estabele- ceu o preceito da publicação dos banhos, sem lhe jun- tar a sancção penal.

O que é certo, é que para satisfazer ás justas recla- mações das cdrtes de 1641, publicoii D. do30 IV o Al- vará de 13 de Novembro de 1651. Lamentando que se hajam multiplic,ado os casamentos clandestinos, e pon- derando que, para evitar os males d'ahi provenientes, não bastam as penas ecclesiasticas, o monarcha recorda a obrigação, que tem como principe catholico de man- dar cumprir e guardar o Tridentino em seus Reinos e Senhorios, exprimindo-se n'estes termos:

Ordeno e mando que qualquer pessoa, de qual- quer qualidade e condição que seja, que da publica- ção d'esta em deante contraliir matrimonio, que a Igre- ja declarar por clandestino, pelo caso elles, e os que

1 Cortes de 1641, Estados dos Povos, cap. CIII.

nelle concorrerem e intervierem, e os que do tal ma- trimonio forem testemunhas, incorrerão em perdimento de todos os seus bens, que serão applicados a meu Pisco Real; e serão desterrados para uma Conquista d'estes Reinos, nos quaes não entrarão com pena de morte; e não havendo herdado a herança de seus paes ao tempo, que o matrimonio clandestino for contrahido, o pae e a mãe o possam desherdar ... :, 1.

.

E intimou esta lei a todos os magistrados e Justi- ças, ordenando ao Chanceller que faça passar e correr traslados d'ella, e aos Corregedores que, nas visitas de correição ás Comarcas, interro uem especialmente sobre o caso de clandestinidade. 1 simples inspecção do conteiido d'este acto legislativo prova que elle não é' uma reproducção da lei de D. Manuel, promulgada em 14 de Julho de 1499, como alguem pretendeu. A confrontação das duas leis (vej. a pag. 136) evidenceia que ellas 1lill;-rem nos motivos, na indole, nos intuitos e effeitos.

Desde 1651 ficou definitivamente constituida a legislação matrimonial do nosso paiz, e escasseam os documentos relativos ao assum to do casamento. Ape- P nas se eilconiram algumas re ereiicias á observancia do concilio tridentino, como lei vigente. Assim se in- fere, por exemplo, do Alvará de 16 de Junho de 1668, pelo qual D. Pedro Il, fundando-se nas disposições do referido 'concilio, aggravou as penas comminadas aos que acceitam duellos 9.

1 Vej. a Collecção cl~vonologica de leis eztt.avaga~ites, tom. I , pag. 550 a 552.

aconsiderando o que o sagrado concilio tridentino dispoem n'esta materia (duello), ciija observancia me é de novo recom- mendada n'esta corte pelo $stado eccleriiastico, com grande sêlo.

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O artigo I da concordata celebrada entre D. Ma- ria I e o Pontice Pio VI, em 20 de Julho de 1778, egualmente allude á execução dos decretos conciliares sobre o provimento dos beneficias ecclesiasticos, por meio do concurso. E a Carta de lei de 6 de Outubro de 1784, recordando que as disposições do Triden- tino, ácerca do matrimonio, tinham recebido a sancção das penas temporaes pelo Alvará de 13 de Novembro de 1651, prohibiu os esponsaes clandestinos, ultimo reducto dos adversarios da ~ublicidade do vinculo con-

I

jugal 2.

Assim nos approximamos da legislação de nossos " - dias; e para seg i r a melhor ordem na sua exposição, indicarei em primeiro logar qual foi a doutrina matri- monial do primitivo rojecto do Codigo civil.

O Sr. Visconde i' e Seabra começava por distinguir a dupla natureza do matrimonio, estabelecendo como principio doutrinario e geral que a lei canouica regula as condições e effeitos do sacramento, e a lei civil as condições e effeitos do coníracto. Em seguida admittia duas formas de contrahir o matrimonio, uma para os catholicos e outra para os acatholicos.

Para os catholicos é obrigatorio o matrimonio re- ligioso, e os effeitos civis da sua união conjugal ficam dependentes da observancia das leis canonicas, rece- bidas n'este Reino; em harmonia com as mesmas leis, o casamento catholico sd pode ser annullado pelos tri- bunaes ecclesiasticos. Enquanto aos subditos portugue

e he obrigação minha cumprir no que me toca, fazendo desterrar d'estes Reinos tão abominavel introdiicção ... a. Vej. a citada CoG lccção, tom. 11, pag. 44 a 46.

Vej. a Collecção da legislação portupeza, por A. Delgado d$ S i h , an. 1775 a 1779, pag. 360 a 364.

zes não catholicos admitte a validade civil do seu matri- monio, desde que seja celebrado segundo as crenças religiosas dos conjuga; devem porém addicionar ao acto religioso uma escriptura publica, na qual sejam exaradas as estipulações matrimoniaes. A annullação dos casamentos acatholicos sómente pode ser proferida pelos tribunaes civis I.

Redigido o projecto do Codigo civil, foi entregue ao estudo e exame da Commissão revisara, que, ence- tqndo os seus trabalhos em 9 de Março de 1860, ce- lebrou a ultima sessão em 30 de Agosto de 1865. A parte do projecto, relativa ao casamento, foi dis- cutida em 20 sessões 7 sendo quasi innumeraveis as

1 Vej. o Godígo civil portuguez. Pro'ecto redigido por An- tonio Luia de Seabra, pag. 277 a 281 (ekç. de Coimbra, 1858).

Art.O 1113. O casamento 8 um contracto de direito naturai e civil, que a lei da Egreja abençoa e sanctifica.

Art.0 1114. A lei da Egreja define e regula as condiçúes e effeitos do sacramento. A lei civil define e regula aa condições e effeitos temporaes do contracto.

Art." 1115. O casamento s6 pode produzir os seus effeitos sendo celebrado segundo as leis canonicas recebidas n'este Reino, salvas as seguintes disposiçóes ...

Art: 1125. O casamento entre subditos portugoezes ufio catholicos produzir8 os seus effeitos civis sendo celebrado segundo a crença, uso e costume dos ditos subditos, com tanto que as suas convençóes sejam feitas por oscriptnra publica.

Art: 1130. O casamento entre catholicos só pode ser an- nullado no juizo ecclesiastico, e nos casos previstos nas leis da Egreja recebidas n'este Reino.

Art." 1131 e 1132. O tribunal ecclesiastico s6 profere a sentença, e dir certidão d'ella ao parocho, para que a averbe no registro. Todas as diligencias e actos temporaes, e execução da sentença, pertencem ao tribunal civil.

Art." 1133. A annullltçáo do casameuto contrahido entre siibditos portugiiezes, nRo catholicos, s6 poderir ser proferida pe- los juizes temporaes.

Vej. nas Actas das asssbes da commissão revieo?~a do pro-

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emendas, que foram propostas para substituir a dou- trina dos artigos primitivos.

Na sessão de 16 de Dezembro de i 8 6 1 foi pro- posto á votação e rejeitado o systema do casamento civil absoluto (para todos) 1. Tiveram egual sorte o systerna do projecto %, e as s ~ b ~ t i t u i ç õ e ~ propostas por José Julio &Oliveira Pinto (na sessão de 4 do referido mez e anno). Foi porém approvado o sgstema, for- mulado na proposta do sr. Mártens Ferrão, que con- cordava com o auctor do projecto em que fosse obri- gatorio para os catholicos o casamento religioso; mas para osportuguezes acatholicos propunha que fosse obri- gatorio o casamento civil, e facultativo o da respectiva relipião, permittindo-se-lhes todavia estipular o acto religioso, como condição indispensavel da validade do contracto civil.

Como parecesse pouco explicita a votação, o Pre- sidente (Sr. Vicente Ferrcr) propdz por quesitos: (i.') se o contracto civil ha de bastar para produzir effcitos civis entre catholicos, ou se ha de ser necessario o sa- cramento? Votou-se que era necessario o sacramento. 2.") Se o casamento religioso era necessario para pro- 6 uzir effeitos civis entre os acatliolicos~ Votou-se que

para estes seria sufficienle o contracto civil. (3." Nesta hypothese basta o facto do contracto, ou deve ser pre- cedido da declaração de que os contrahentes não são

jmto do codigo civil portuguet (Lisboa, impr. nacional, 1869) as sessóes de SO de Novembro, 4, 7, 16 e 18 de Dezembro de 1861; 11, 13, 22, 25 e 27 de Abril, 2 ,6 ,9 e 20 de Maio, 10 e 30 de No- vembro, 10, I2 e 19 de Desembro de 1864; e 18 de Fevereiro de 1865.

1 Declararam que votavam a faror os Srs. Vicente Ferrcr, Marreca e A. Herculano.

Declarou que votava a favor o Sr. Simas.

catholicos? Deliberou-se que não seria necessaria a declaração.

Por proposta do Sr. Ferreira Lima ainda foi apre- sentado um 4.3uesito: devem reputar-se não catholi- cos aquelles, de que111 não consta liaverem recebido o baptismo segundo o rito catholico, ou que tenham ab- jurado a religião catholica? Ficou adiado para a se- guinte sessão ( i 8 de Dezembro), na qual o auctor da proposta pediu para retirar o quesito.

Posteriormente, na sessão de 11 de Abril de 1864, apresentou A. Herculano um projecto, que, embora soffresse muitas alterações na discussão (em 9 de Maio), assentou as bases da proposta definitiva, e conseguiu reunir os votos da maioria '. Não obstante isso, to- dos os outros systemas, relativos á constituição do ma- trimonio, encontraram defensores no seio da commis- são. Egualmente divergiram as opiniões ácerca dos

1 A proposta era concebida n'estes termos: (a) O contracto do matrimonio é indissoluvel. (L) A lei confsre aos parochos o caracter de otõciaes publi-

coa para exararem as actns do contracto matrimonial, depois de celebrado o matrimonio religioeo.

5 unico. Qnando por permias80 da auctoridade ecclesiastica o matrimonio religioso fôr celebrado por um sacerdote n8o aro chp, a acta do contracto civil seri exaracis pelo pnrocho f e um dos contrahenteu.

(c) Se os contrahentes, por quaeaqner motivos, que nHo 880 obrigados a declarar, preferirem celebrar o contracto matrimonial perante outro o5cial publico, precedendo ou náo o casamento re- ligioso, fal-o-háo perante o funccionario encarregado da redacç8o e conservaçáo do registro civil.

(d) Quando o contracto do casamento for celebrado perante o parocho ou outro swerdote, a acta d'esse contracto ser6 trane- mittida ez-oficio pelo parocho ao Innccionsrio encarregado do re- gistra civil, e ahi registrada, archivando-se a acta original.

Aiiùa continha a proposta outras disposigõen relstiran ao matrimonio e seus impedhentos.

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impedimentos matrimoniaes, sendo digna de notar-se a resolução dos Srs. Vicente Ferrer, Marreca, A. Her- culano, e Soure, que declararam votar contra os arti- gos relativos nos impedimentos dirimentes do matri- monio catholico, porque u á Egreja pertence exclusiva- mente o julgar da validade ou nullidade d'um sacra- mento~ <

Tendo o auctor do projecto declarado em 1 0 de Novembro de 1864 que, em vista das relações do Es- tado com a Egreja, não podia acceitar os artigos emen- dados 1058 e 4076, porque secularisavam o matri- monio, apresentou na sessão de 30 do mesmo mez e anno o seu projecto modificado, cujas bases eram as seguintes: Art.qO60. O casamento entre catholicos s6 produz effeitos civis, sendo celebrado segundo as leis canonicas recebidas n'este Reino, salvas as se- guintes disposiç~es: (seguem-se os impedimentos'im- pedientes civis). Art." 1073. O casamento entre par- tuguezes não catholicos produzirá effeitos civis, com- tanto que se observem os requisitos essenciaes dos contractos, com as seguintes declarações: (seguem-se os impedimentos dirimentes civis) 9.

Em 10 de Dezembro de 1,864 apresentou o Sr. Visconde de Seabra novas disposições regulamentares do casamento civil; e resolvendo-se então que os ca- tholicos não odessem casar civilmente, ainda que d e clarem que a eixaram de ser catholicos, appareceram na seguinte sessáo tres propostas em sentido contrario 3.

Vej. na obr. cit. a sessso de 2 de Maio de 1864. 2 Actas da commissdo revi#ora, pag. 543 a 548.

Jbsè Julio (d'oliveira Pinto) propôe que fosse prohibida a investigq& da religi* dos subditos portuguezes.

O Sr. Mhrtens Perrgo propôz: A lei para os effeitos civis náo admitte a inveatigsçãa da reiigiáo.

~ 159 - Finalmente ainda na sessão de 19 do referido mez

e anno apresentou o Sr. Visconde de Seabra nova or- ganisação para o casamento civil e seu registo, que foi muito moliii~:ada i. E foi approvada com algumas al- terações a organisação das mesmas doutrinas a, a re- sentada por Jos6 Jdia em i8 de Fevereiro de 1855, a qual foi inserla no rojecto definitivo do codigo ci- vil, apresentado na amara dos Deputados em 9. de E Novembro do mesmo anno.

Concluidos os trabalhos da commissão de legisla- ção, foi o projecto novamente apresentado á Camara clectiva, na sessão nocturna de 2 1 de Junho de 1867. O relator 8 declarou que lhe parecia menos logica a doutrina do projecto, indecisa entre o principia do casamento civil e o regimen de cultos vigente nopaiz. Por um lado, o Estado declara-se competente para re- gular o contracto conjugal, e reconhece effeitos ciuis ao sacramento. Por outro lado, acceitando para todos os effeitos civis o casamento religioso, o Estado ermitte que os catholicos casem civilmente, contrarian o as leis B da Egreja; quando sámente aos não catholicos deveria ser permittido o casamento civil.

Apresentando a opinião collectiva e desassombrada da commissão, o illustre relator disse que, se lh'o não vedára o art.' 6 6 da Carta constitucional, quereria a separação fundamental entre o sacramento e o contra- cto, ieixando aquelle á Egreja, e regulando exclusi-

O Sr. Vicente Ferrer propôz: O casamento dos portuguezes nao pode ser recusado nem invalidado por motivo da reIigih dori contrahentea. (Obr. cit., pag. 555).

Actas da commismo reviaora, pag. 557 e 558. Ibid., pag. 607 a 614. O Sr, José Luciano de Castro.

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vamente este no codigo civil. Mas espera que eni bre- ve se poderá estabelecer entre n6s o principio de Ca- v o u r - u Egreja livre no Estado livre 1. ,

Sobre o projecto do codigo civil usou da palavra em primeiro logar o Sr. J. Dias Ferreira, fazendo varias con- siderações ácerca da doutrina do matriionio*, a fim de fundamentar uma proposta, que substituiria os art."" 1057, 1072 e 1090 do mesmo codigo. Era a seguinte: (A lei civil reconhece como legitimo, para todos os effeitos civis, o casamento celebrado perante o official do registro civil, qual uer que seja a religião dos con- trahentes, a respeito !a qual não podem ser interm- gados 8 .

Em sessão de 22 de Junho foi rejeitada por 47 votos contra 16 a proposta do Sr. Dias Ferreira, a p e sar do additamento-c sem prejuizo do casamento ca- tholico, czljos effeitos a lei civil egualmente reconhece3 . Em virtude d'este additamento a proposta vinha a re- cahir, como observou o Sr. J. Luciano de Castro, na doutrina do projecto. N'esta unica sessão foi o codigo civil approvado na generalidade e na especialidade (!), sendo rejeitadas por maioria de votos todas as propos- tas de alteração.

Na Camara dos Pares foi apresentado e approvado o ccdigo civil em sessão de 26 de Junbo de 1867. O Sr. Marquez de Vallada protestou contra a precipita- ção, com que era proposto ao exame da Camara um assumpto tão importante; ropbz que continuasse em f vigor a lei, que até áquel e tempo regulava o matri- monio; e declarou que votava contra todo o codigo

i Vej. o Diario ds LiJóoa, de 3 de Julho de 1867, n.O 145. 2 Vej. o capitulo seguinte.

civil, por isso que lhe não era permittido apresentar o seu voto por partes.

Na sessão nocturna declarou o digno Par do Rei- no, o Sr. Vicente Ferrer, que a commissão revisora não adoptou a legislação vigente, porque essa àdmit- tia unicamente o casamento catholico, e ha muitos portuguezes não catholicos, aos quaes se deve facultar e regular a constituição da familia. Na sua opinião, a difTerença entre o projecto da commissão revisora e as emendas feitas pela commissão legislativa não pro- duziriam resultados praticos apreciaveis, visto que se continuava a prohibir a investigação previa ou posterior ácerca da religião dos nubentes, e se estatuia que nun- ca o casamento civil podia ser annullado por motivo de religião.

Finalmente o codigo civil foi approvado pela Carta de Lei de 1 de Jullio de 1867; e se fixou d'este modo a legislação porttxgueza ácerca do niatrimonio ', não

1 Os principaes artigos do nosso codigo, relativos ao vinciilo conjugal, são os seguintes.

Art." 1056.O O casamento é um contracto perpetuo feito entre dnss pessoas de sexo differente, com o fim de constituirem legitimamente a familia.

Art" 1057. Os cathoiicos celebrar80 os casamentos pela fórma estabelecida na Egreja catholica. Os que não professarem a religião catholica celebrarão o casamento perante o official do re- gisto civil, com as condições, e pela fórma estabelecida na lei civil.

Art." 1069." O casamento catholico s6 produz effeitos civis, sendo celebrado em conformidade com as leis canonicas recebidas n'este reino, ou por ellas reconhecido, salvas as seguintes dispo- siçaes.

Art." 1070.' A lei canonica d e h e e regula as condições, e os effeitos espiritnaes do casamento; s lei civil define e regula as condiçoes, e os effeitos temporaes d'elle.

Art.' 1081.0 ... Na presença dos contrahentes, ou de seus re- presentantes, e das testemiiuhas, o official ler& os nrligos 1056.O e 1057." do codigo e perguntará em seguida a cada um dos con-

i2 *

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obstante ler ficado unia commissão de jurisconsultos encarregada de receber, durante os primeiros cinco annos da execuç;?o do codigo civil, todas as represen- t e e s , relatorios dos tribunaes e y q u e r observa- çóes relativas ao melhoramento da egislação, e á so- lução das difficuldades praticas (art."?'." da referida Carta de Lei).

Para a inteira execução da lei sobre o casamento civil, foi promulgada a Portaria de 28 de Novembro de 1878, que approvou o regulamento do registo es- pecial d'esses matrimonios. Pode lêr-se 110 Diario do Governo de 29 de Novembro de 1878.

Feito assim um rapido esboço da legislação civil portugueza, Acerca do matrimonio, passarei ao exame critico das disposiç~es do codigo civil, actualmente em vigor. Será o assumpto do IV e ultimo capitulo d'esta obra.

CAPITULO IV

Exame crilico da legislaçiio portugaeze, sobre o niatriinonio

Antes de entrar na apreciação do valor e effeitos do systema matrimonial, recebido 110 nosso codigo ci- vil, começarei por fazer applicação ao nosso paiz de alguns ,principias, que já ficam indicados na segunda parte d esta obra (pag. 100).

Depois de determinar as relações de Portugal com a Egreja catholica, confrontarei os tres systemas, que foram successivamente propostos para regular o ma- trimonio, e terminarei pelo juizo critico das disposiçóes do codigo em vigor.

trahentes, se permanece na resolnçao de celebrar o cassmento por aquella fbrma, e, com a resposta affirmativa de ambos, lavrar4 O

assento do casamento com as formalidndes prescriptas n'este CO-

digo, sem que possa haver inqiierito prévio Acerca da reli@& dos contrahentes.

Art." 1086: O casamento catholico s6 pode ser annullado no juizo ecclesiwtico, e nos casos previstos nas leis da Egreja, recebidas n'este reino.

ArtP L089.0 A annullaqáo do casamento, contrahido entre subditos portuguezes pela fórma instituida nalei civil, sb pode ser proferida pelos tribunaes civis.

Art." L:090." Este casamento na púde ser annullado por motivo da religiáo dos contrahentes.

Portugal pode dizer-se um dos paizes, em que a unidade religiosa existe de facto e de direito. De facto, porque o numero dos portugue~es, dissidentes da Egre- ja catholica, pode reputar-se nullo, em comparação com a qiiasi totalidade dos habitantes. De direito, por- que o codigo fundamental da nação reconhece uiiica- mente o catholicismo como religião do Estado, e só to- lera os outros cultos aos estrangeiros e cidadãos na- turalisados, em casas sem forma exterior de templo.

Portanto é incontestavel que o catholicismo é, en- tre nós, a unica religião reconhecida pelas leis, e pro- fessada pelos cidadãos. Pode quasi affirmar-se como

, a

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tlma proposição absoluta que o portuguez aborigene ou é catholico, ou não tem religião alguma. A lei or- ganica do nosso paiz não reconhece a existencia legal de outros cultos diversos do catholico; e n'este ponto é coherente e Jogica, porque a verdadeira religião é sb uma. Todavia, respeitando o culto domestico e par- ticular dos estrangeiros e cidadãos naturalisados, obra com prudencia e justiça; porque a boa fé, a sinceri- dade de convicções, de quem nasceu acatholico, deve merecer-lhe a protecção do direito commum, emquanto elle 'respeitar a religião do Estado, e não offender a moral publica n .

Nestas condições o Estado tem o direito e o dever e a religião nacional seja offendida, quer

d:r?% iuEicos e escandalosos, quer pelo ensino de Ioutrinas, que a mesma religião condemna como erro- neas, perigõsas e heterodoxas '.

Não se diga que prohibir a pregação e proselytismo das doutrinas hereticas é por uma injusta restricç50 5 liberdade de ensino ou de imprensa. Não pode haver injustiça n'uma lei, que não offende direitos; pois onde estaria a injusta restriwão da liberdade? . Será a liberdade do falso dogmatisador, que é of- fendida? De nova recordaremos o principio já formu- lado (pag. 110): o erro não pode invocar o dáeito con- tra a verdade. O hereje, ainda que seja de boa fé, não pode exigir do Estado catholico que lhe permitta dis- seminar entre os seus subditos o erro, que será occa- sigo para o crime da apostasia, e fonte das mais funes- tas dissensões na vida domestica e social.

A lei, que prohibe a pregação das falsas reli-

Assim o determina o nosao Codigo penal, nos arteoe 130 a 135.

gities, offenderá a liberdade dos cidadãos catholicos? Ainda menos; ninguem tem o direito de abjurar a ver- dadeira religião. Para o catholico a mudança de cul- to é sempre um crime, e ninguem dirá que a pre- venção'd'um crime restringe a legitima liberdade dos cidadãos. A lei cunipriria um dever sagrado, preser- vando os subditos catholicos do perigo de seducção, da alliciação para o crime.

O mesmo se pode affirmar da lei, que nos Estados catholicos prohibe e pune a apostasia. Frequentes vezes se tem escripto e allegado que a mudança de culto, a profissão d'esta ou d'aquella crença, é um legitimo corollario da liberdade de consciencia, direito sacra- tissimo e inviolavel, que o Estado deve respeitar em cada cidadão.

Este principio seria verdadeiro, quando applicado a uma nação ideal, quero dizer, no momento em que varios homens pactuassem entre si constituir uma so- ciedade politica, dando garantias mais ou menos latas aos direitos individuaes. Mas eu estou fallando de Por- tugal, e d'um povo, cujo pacto social se encontra já constituido e formulado em leis positivas. Portanto affirmo que a mudança de culto não é, para o catho- Zico, uma consequencia legitima da-liberdade de con- sciencia; a apostasia não está, nem pode estar no con- teúdo das duas ideas: liberdade e consciencia.

E ainda que estivesse, não é certo que o exer- cicio dos direitos individuaes precisa de ser limitado pelo bem commum da sociedade? Sendo assim, com razão o nosso codigo penal prohibe a apostasia; n'isso dá uma prova publica de que respeita, e deseja vèr res- peitada a religião do Estado. Mas se estas doutrinas são inquisitoriaes, se querem garantir todos os corolla-

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rios da tal liberdade de consciencia, então sejam a~ menos logicos e coherentes; sanccionem a immorali- dade, respeitem todo o acto criminoso, desde qug o agente appelle para as suas convicç6es religiosas, das quaes será elle o unico juiz competente. a

Digamol-o desassombradamente, sem o temor de incorrer na nota de partidarios da inquisição. No cam- po dos principias, o Governo de uma nação catholica tem o direito de unir a apostasia, como todos os ou- B tros crimes. To avia direi com Jaugey: não convém actualmente o exercicio d'esse direito; as deserçaes do catholicismo para os cultos dissidentes, por mero mo- tivo de crença, são rarissimas, e não constituem um perigo serio para a verdadeira religião. A repressão directa e violenta d'esses actos causaria enorme celeu- ma; viria dar uma apparencia de razão aos ataques injustos e calumniosos contra o catholicismo.

A indilT~brença geral, o atheismo pratico, eis o grande mal, o perigosissimo escolho das crenças reli- giosas, e em presença do qual o Estado não deve cruzar os braços inertes, como espectador indiffe- rente. Pesa sobre elle a obrigação de empregar a sua grande influencia para manter a fé e a morali- dade no meio social; deve auxiliar. franca e sincera- mente a acção do clero e de todos os homens hones- tos, .e luctam para extinguir ou paralysar a deca- dencia religiosa pelos meios moraes, pela exhortação, o boni exemplo, os livros uteis e o exercicio da cari- dade.

Era necessario assentar estes principios, antes de analysar a lei do casamento civil. O nosso codigo per- mitle o casamento civil a todo o cidadão, e por conse quencia ao catholico; e esta permissão, longe de ver-

sar sobre um acto moral e religiosamente licito ou in- differente, vae recaír sobre um acto, que a religião do Estado remova e condemna.

surgepois deante de nós uma primeira questão e melindrosissima: Um Estado catholico pode permittir aos catholicos o casamento civil? Sei que me hão de responder: o Estado n b é um legado de Deus para superintender na observancia das obrigações de con- sciencia, não lhe compete realisar a salvação eterna dos homens; seria um absurdo e uma tyrannia que a sociedade politica quizesse constl-mlger os homens a cum rirem os seus deveres religiosos.

kão julgo a resposta safisfaloria; todavia puasi me contentaria com ella, se a intervenção do Estado no acto matrimonial se podesse qualificar de mera abste~z- ção. Não acontece porém assim; apresentam-se dous nubentes perante o fuilccionario encarregado do regis- to civil, e pedem a celebracão do casamento legal. O fumcionariõ não os interroga ácerca da sua crença, porque lh'o prohibe a lei; mas, em face do ari,." 6." da Carta constitucional, deve presumir que são ca- thoiicos; c não obstante isso, o Estado (representado na pessoa do seu delegado) acceita aquelle acto pro- hibido pela religião catholica, e dá-lhe as garantias extrinsecas de uma união legitima.

Parece-me ver n'este procedimento demasiado em- penho de proteger e respeitar a liberdade do cidadiio. Eu bem sei que, se infelizmente se tiver dado a apos- tasia, não restam ao Estado meios directos de influir na alma do apostata, e operar a sua conversáo; este encargo pertence á Egreja, e á consciencia individual, cooperando coin a graça divina. Mas a lei civil ode e deve pmhibir ao apostata os actos externos e pu !I licos,-

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que causam escandalo aos fieis; o cidadão catholico, que vae requerer a celebração do casamento civil, não usa, abusa de todas as liberdades; e o Estado sanccio- na o abuso, concorre conscientemente para uma offensa publica á religião.

A par da questão dogmatica, tem-se debatido a questão politica. Reconhecidos os principios da Carta constitucional, podiam as nossas,Camaras legislativas votar a lei do casamento civil? E claro que a solução racional d'este prohlema deve resultar da confrontação de varios artigos da Carta, que importa interpretar harmonicamente. São tres os principaes d'esses ar- tigos.

Art. 6." # A Religião Catholica Apostolica Roma- na continuará a ser a Religião do Reino. Todas as ou- tras Religioes serão permittidas aos estrangeiros com o seu culto domestico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior de tem- plo*.

Brt.' 7." C São cidadãos portuguezes: 5 4.' Os Estrangeiros naturalisados, qualquer que

seja a sua religião: uma lei determinará as qualidades precisas para obter a carta de naturalisação~.

Art.O 445.' aA inviolabilidade dos direitos civis e politicos dos cidadãos portuguezes, que tem por. base a liberda'de, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do .Reino, pela maneira seguinte:

5 4.' Ninguem pode ser perseguido por motivos 'de religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a moral publica^.

Estes tres artigos e seus respectivos 55 teem pare- cido a muitos interpretes ou tão pouco explicitos, ou

tão antinomicos, que a sua approximação, longe de Ihes esclarecer o sentido, antes augmenta a obscuri- dade dos mesmos. Em consequencia d'isto, quando se discutia o projecto de lei sobre o~cdsamento civil, cada um julgou vêr na Carta constitucional a confir- mação do, seu systema. Eu não espero resolver a difi- culdade, orque sou o menos competentc dos commen- tadores ! a lei fundamental do paiz; tentarei todavia um esforço para perceber o alcance dos artigos 6.' e 145.", que são os dous polos, sobre que gira toda a doutrina da Carta ácerca do culto.

Uma recta interpretação da lei depende da iden- tificação do espirito do interprete com a mente do le- gislador, até onde a approximação f6r possivel. Ora a Carta, tendo em vista as circumstancias do paiz para quem era feita, regulou a concessão de cada uma das liberdades por fóma, que estabelecesse uma transição normal entre as tradições do passado e as aspirações do tempo presente.

O artigo 6." declarando que a religião catholica continua a ser a religião official do paiz, não permitte aos cidadãos portuguezes o exercicio publico de qual- quer outro culto. Esta lei é universal, não exime pessoa alguma da sua observancia. Se não fosse universal, seria inutil a segunda parte do mesmo artigo, que per- mitte aos estrangeiros o culto particular das suas reli- giões. Seria inutil a disposição do § 4." do art." 7.",

ue concede aos estrangeiros a naturalisação de cida- lãos portuguezes, qualquer que seja a sua religiao.

Que este era o pensamento do legislador I , vê-se claramente das disposições do codigo fundamental, e

1 O Manifesto de 2 de Fevereiro de 1832 deve ser çonsiderado

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da legislação d'abi derivada. O Rei, antes de ser ac- clamado, deve jurar que ha de manter a Religião Ca- tholica Apostolica Romana (art." 76.'); egual jura- mento devem prestar o Herdeiro presumptivo da cor6a art.V9."), o Regente e a Regencia (art.' 97."6, .OS 'onselheiros &Estado (art."09), os Pares do eino I

e Deputados da Nação (regimento das respectivas Ca- maras).

O decreto de 5 de Março de 1856 exigiu que todos os empregados publicos jurassem manter a Carta cori- stitucional da nionarchia e o Acto addicional. Este ju- ramento envolve implicitamente a promessa solemne de adlierir ao culto catholico, como a todas as outras instituições sanccionadas pela Carta. E com justiça se exige dos empregados publicos a profissão de certa crença, porque esta constitue uma garantia social como a nacionalidade, certas habilitaç~es litterarias, a pro- bidade de caracter, etc. Não se podia consentir que uni representante do Governo estivesse violando, algumas vezes no exercicio das suas iuncções, os preceitos da religião oficial.

A legislação, derivada da Carta, confirma esta in- terpretação. O decreto com força de lei, de 2 0 de Se- tembro de 1844, tornou a instrucção primaria obriga- toria para todos os cidadãos, e ao mesmo tempo col- locou a doutrina christá entre as materias do 1.Ograu de instrucção. A realisação pratica d'este acto legisla- tivo foi regulada pelo decreto de 2 0 de Dezembro de 1850, baseado nas consultas do Conselho superior de Instrucção publica. No capitulo N d'este decreto de-

como explicaçáo authentica do sentido da Carta; e n'elle se pro- mette <garantir em primeiro logar rt protecçrio mais solemne e o mais p r o f i n h re~peito B sacrosrrncta religião de nossos pam.

termina-se que ns lições principiem e temninem diaria- mente pelas orações do cathecismo, que nos dias sanct8- fiados o professor acmnpanhe os dbciipulos (i missa, que lhes faça apprender a doutrina christã pelo cathecismo de 1824, e os conhecimentos necessarios para receberem dignameizte os sacramentos da Igreja I.

Em todas estas disposições não encontramos a rni- nima excepção em favor dos não catholicos. Os legis- ladores procedem, como se o culto catholico fosse obri- galorio para todos os cidadãos portuguezes. E para que não restasse duvida alguma, veio o Codigo penal, promulgado em 1852, decretar no ar~"35.O: (Todo O portuguez, que, professando a religião do reino, fal-. tar ao respeito á mesma religião, apostatando, ou re- nunciando a ella publicamente, será condemnado na pena da perda dos direitos politicos B . E accrescenta a lei no $ 2." :Estas penas cessarão, logo que os cri- minosos tomem a entrar no greinio da E g r e j a ~ .

Parece que estas prescripções da legislação portu- gueza são suficientes para fixar o sentido do art.".' Mas que valor se deve dar ao 5 4 . q o ai*t."45.0? Será, como disseram alguns, a sim les expressão da liber- dade interna de consciencia? E arantirá pelo contrario, segundo pretenderam outros, a ampla liberdade reli- giosa?

Eu creio que a verdade está no meio das duas opiniOes extremas. O artigo 145." dá aos cidadãos por- tuguezes uma arantia juridica, e por conseguinte ex- tema; a liber f ade interna de pensamento ou a de consciencia não precisam de ser concedidas pela lei,

Vej. o casarnento civil perante a carta constitucional. Se- gunda resposta ao Sr. A. Herculano, por D. Antonio da Costa, pag. 6. '

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porque a sua mesma natureza as torna incoerciveis e inviolaveis. Aquelle artigo tambem não pode significar a ampla liberdade religiosa, a liberdade de cultos; por- que em tal h othese estaria em manifesta contradição' com o a*", interpretado pelos outros artigos do nosso codigo fundamental, e pela legislação regulativa, que d'elle dimanou. Se aos cidadãos portuguezes fosse licito seguir e abraçar qualquer culto, ficaria inutil e sem razão o artigo 6.", quando declara que a religião catholica continuurá a ser a religião do reino.

Se em materia tão espinhosa eu ousasse expor opinião propria, diria que art." 145." se refere ao que chamei tolerancia civil (pag. 1 1 1). O Estado abstem- se de punir os que violam os deveres religiosos, em- quanto os seus actos são meramente omissivos; mas desde que, por actos positivos, alguem offender a mo- ral publica, ou faltar ao respeito devido á religião do Estado, fica incurso nas disposições do codigo penal.

Eu bem sei que se tem invocado o $ 3 . O do art.O 145,"ara affirmar que o cidadão pode communicar os seus pensamentos ácerca da religião, por palavras e escriptos, pela imprensa ou qualquer outro meio de publicidade. Mas este direito é acompanhado de uma clausula, que restringe o seu exercicio; o cidadão fica responsavel pelos abusos que commetter, e a lei deter- mina imediatamente que são ab,usos as offensas fei- tas á religião e moral publica. E em harmonia com esta doutrina que o codigo penal, no art."30.", n.OS i , 2 e 3, pune aquelles, que dogrnatisam contra a re- ligião do Estado.

Estabelecidos estes principios, é desnecessario di- zer, que as leis não podem permittir ao cidadão portu- guez que deixe de se conformar com a religião catho-

lica nos actos publicas, em que a mesma religião in- tervem como lei do Reino. Sendo o casamento 'civil uma instituição condemnada pela Egreja catholica 1,

parece que todo o catholico, que o contrahir com a in- tenção expressa de não receber o sacramento, renuncia publicamente a religiao do reino, e portanto incorre nas penas comminadas no art." 135." do codigo penal.

A proposito da lei do casamento civil, ainda se deveria discutir, e effectivamente discutiu, se o art." 6." era ou não constitucionul. Deixarei a controversia aos juizes competentes; o Sr. Visconde de Seabra re- tendeu demonstrar que a definição, dada no art.O i g 4.O, quadra perfeitamente á materia do art." 6.' da CartaP; mas os seus argumentos directos não me parecem con- cludentes. Todavia a opinião contraria não é isempta de difficuldades, porque a alteração ou derogação do art." 6." iria necessariamente reflectir-se em muitos artigos geralmente recoiihecidos como constitzicionaes.

Taes são: o artigo 75.", 5 2.' e $ i4."reformado e ampliado pelo art.' iO.', $ u~zico, do Acto addicwnal), o art.V6.O, 79.; 97.O, 109." i45.O, 5 4:

Quando na sessão legislativa do anno de 1864 foi apresentado pelo Sr. Levy Maria Jordão um projecto de lei sobre a liberdade de cullos, as tres commissões de legislação, de negocios ecclesiasticos, e de fazenda, foram de parecer que tal projecto não podia entrar em discussão, porque era opposto ao art.".' da Carta, que os membros das referidas commissões reputavam como constitucional.

Entremos porém na apreciação directa da nossa lei sobre o casamento civil.

Vej. c parte primeira, cap. IV, d'estu obra. 2 Dum palavras sobre o casamento ..., pag. 34 a 36.

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IIa um ponto, em que parece terem sido de accordo o auctor do projecto primitivo do Codigo civil, a com- missão revisora do mesmo, e a commissão de legisla- ção, que apresentou ás Camaras o projecto definitivo. I? a necessidade de adoptar O casamento civil para 0s não catholicos, de subministrar a estes um meio de constituir a familia, independentemente dos ritos ca- tholicos, em que não crêem.

Se o Estado reconhecesse excbivamente o matri- monio sacramento, succederia que os adeptos de qual- quer outra crença, ou os incredulos e intliil;-rcntes, te- riam de se submetter constrangidamente ás imposições da lei, ou de ficarem privados de constituir familia. Em ambos os casos tornar-se-hia illusorio o 5 4."0 art.Oi45.O da Carta constitucional, que não permitte perseguiçfies por motivo de religião. Collocar o cidadão na alternativa de ficar privado dos direitos civis, ou de se submetter hypocritamente á lei, seria impor-lhe uma pena, que tem por unico motivo a crença '.

Ha .todavia differenças notaveis entre os varios sys- temas propostos, para regular entre n6s o malrimonio. Indicarei resumidamente os pontos mais importantes d'essas differenças.

A doutrina do projecto do codigo duil (vej. a pag.

1 Faiia-se aqui do direito constituido; porque em face dos principios, que ficam egtabelecidos, a privação dob direitos civis seriauma consequencia do crime de apoetasia (quando a houverjse), como é a privação doa direitos politicw.

155) pode formular-se a n dous principios: (1.') para os subditos Catholicos é obrigatorio o casamento reli- gioso, e destituida de effeitos civis qualquer outra fór- ma de matrimnio; (2.") os subditos não catholicos devem celebrar o casamento religioso segundo o seu rito, uso e costume, com tanto que seja acompanhado de um contracto civil, exarado em escriptura publica.

O Sr. Visconde de Seabra baseava esta doutrina principalmente no art.".' da Carta. Segundo elle, o referido artigo falla da religião catholica considerada só como culto e fbrma exterior, e é n'este sentido que a impõe aos cidadãos portuguezes. Não podia a Carta referir-se á religião como crença e sentimento interno, porque nem este pode ser imposto por uma lei, nem. o 5 4." do art." 145." permitte tal supposição.

Todavia (accrescenta) como o a r t . q m O se refere unicamente aos portuguezes naturaes do continente, e não cogita dos habitantes das conquistas, presuppõe que ao culto externo corresponde no animo dos cida- dáos a. crença interna 1.

Esta interpretação não justifica plenamente o sys- tema proposto pelo illus.tre redactor do Codigo civil. A nação portugueza admittiu os decretos do concilio tridentino; e por este motivo, e porque o art.' 6 . O não permitte aos portuguezes-o exercicio publico d'urn culto diverso do catholico, foi que o Sr. Visconde de Seabra pro bz o casamento religioso como obrigatoiio para os cat g olicos. A coberencia pois devia movel-o a não ad- mittir outra fórma de matnmonio e; equiparar ao sa-

l h s palavraa sobre o ccasamen to..., ~ a g . 31 a 33. 2 Poderia argumentar-se com os ideia e acatholicos, que ha-

bitam nas provinoias iiltramarinas, mas o 8r. Visconde de Seabra

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cramento dos catholicos o matrimonio celebrado em qualquerreligião ou rito, 6 quasi affronLr o caiholi- cismo, e derogar o art." 6.'

Se entrasse em litigio a validade d'um matrimo- nio, celebrado segundo um rito diverso do catho- lico, quem decidiria o pleito? Os tribunaes civis nem podem conhecer os principios dogmaticos e disciplina- res de todas as religiões, nem devem reconhecer força de lei nos principios de um culto, apenas tolerado pela Carta. Esta prohibe egualmente que se attribua aos ministros dos cultos dissidentes o caracter official e a auctoridade de juizes.

Ainda se tem apontado outras incoherencias na doutrina do projecto; taes como negar o reconhecimento da lei civil aos esponsaes e ao impedimento de publica honestidade, que aliás são estabelecidos pela religião do Reino. O systema do projecto é omisso, porque, im- pondo a pena de nullidade ao matrimonio dos catholi- cos, que for contrahido por modo differente do pres- cripto nas leis canonicas, 11% diz o que seja catholico; não determina se n'esta classe devemos incluir todo O

homem baptisado, embora tenha deixado de crêr nos dogmas catholicos, ou sómente os que se conservam no remio da Egreja 1.

%em parece razoavel que se attribua ao legislador a intenção de exigir s6 o formalimo externo do culto catholico; porque seria declarar publica e solemnemente

dia aue estas foram sempre administradas por legislação especial (0b;. cit., pag. 32).

Devo porém advertir que, em face dos art.'" 1.0 e 2: da Carta constitucional, nüo pode affirmar-se que o reino de Portugal 8 circumscripto ao territorio do continente.

Collccçao dar cartas do Sr. Vicente Ferrer ..., pag. 4.

que se contenta com actos de hypocrisia; se falta a crença interna, que é o elemento principal da religião, off ende-se a consciencia do cidadão acatholico, forçan- do-o a desmentir ublicamente as suas convicçóes. O legislador não po 6: a ignorar que nem todos os portu- guezes creem no catholicismo, e por consequencia não lhe eka licito presuppbr que aos actos externos corres- ponderia a crença interna.

Vejamos agora o systema, que commissão revisora substituiu á doutrina do projecto do codigo. Esse sys- tema teve origem nas propostas de A. Herculano, feitas na sessão de 11 de Abril de 1864 (vej. pag. 157) e pode reduzir-se ao seguinte: a lei civil reconhece egual- mente as duas fónnaç de matrimonio, o catholico e o civil, porém ambas são facultatiuas para qualquer ci- dadão portuguez.

O novo sptema pretende fundar-se tambem na le- gitima interpretação da Carta. A commissão revisora attribuiu effeitos civis ao matrimonio sacramento, por- que o art."." reconhece o catholicismo como religião do Estado. Mas estabelece, a par do matrimonio reli- gioso, o casamento civil, porque o § 4." do art." 145.0 garante a liberdade de consciencia dos cidadãos por- tuguezes: o sanctuario da consciencia individual é inac- cessivel ás leis civis, e por esse motivo deve o codigo facultar a livre opção entre uma ou outra fóima do casamento.

Não estabelecem o matrimonio religioso como obri- gatorio para os catholicos, porque isso seria uma in- justiça e uma inutilidade I . O catholico sincero não

1 Santos Carneiro- O casamento civil e os seu8 aduerrarios, pag. 77.

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carece de que os deveres lhe sejam impostos pela força; a coacção tiraria O valor moral dos actos religiosos. A intervenção da .lei civil nos deveres religiosos seria uma injustiça, porque o Estado ultra assava as raias do seu poder, e violava o art." 165." i a Carta.

O Sr. Vicènte Ferrer diz que o matrimonio sacra- mento não deve ser obrigatorio para o verdadeiro ca- tholico, porque a paixão pode arrastal-o a unir-se por matrimonio civil com mulher, que recusa o casamento catholico; e os tribullaes, para julgarem da validade ou nullidade d'este matrimonio, teriam de seguir um processo inquisitorial, investigando se o catholico re- nunciou ou não ás suas crenças '. Tarnbem não admitte o matriionio sacramento como obrigatorio para o or- R tuguez baptisado, mas que deixou de crêr no cat oli- cisnio; porque seria forçal-o á hypocrisia, ao sacrile- gio, ou ao concubinato 2.

Não concordo com a interpretação que, no pre- sente systema, se pretente dar aos artigos da Carta constitucional. Pretendem encontrar o principio dou- trinario da liberdade de consciencia, e até a da prol%- são religiosa, no § 4 . q o art." 145.", que apenas pro- mette que ninguem será perseguido por motivo de re- ligião, emquanto respeitar a do Estado. Mas o casa- niento civil n'um paiz, que recebeu os decretos do Tri- dentino, é inconipativel com o respeito da religião ca- tholica; constitue uma offensa publica d'essa religião, feita simultaneamente pelos magistrados e pelos sub- ditos.

Os catholicos não pedem aos poderes publicos que forcem os cidadãos a receber o sacramento do matri-

1 Collecção das cnrtar. .., pag. 8. 2 Ibid., pag. 12.

179 - monio; limitam-se a representar perante um Estado catholico que não sanccione com a sua assistencia e protecção o acto illicito, que o subdito catbolico deze- iariarpraticar, talvez n'um momento de allucinação

E singular que se pretenda justificar uma lei ge- ral com apossibilidade de uma llypothese rarissima e tão pouco provavel, como é a indicada pelo Sr. Vicente Ferrer. O legislador d'um paiz catholico, quando tra- cta de regular os effeitos civis do mahimonio, não deve suppor que os subditos ubandonam as suas crenças; porque o crime não se suppõe (fora do codigo penal).

Mas o Sr. Vicente Ferrer insiste, dizendo que C as leis devem providenciar para todos os casos, ou os su- jeitos dos direitos sejam muitos, ou poucos, ou um só. 1. Concedendo porém que tenha o direito de pedir á sociedade todas as vantagens e regalias o catholico, que offendeu a mesma sociedade com o publico escan- da10 do casamento civil, peço licença para observar a S. Ex." que o projecto do codigo civil, tal como sahiu das mãos da commissão rcvisora, era imperfeitissimo, porque não providenciava para iodos os casos; se um poi-tuguez se declara rnahometano, é necessario que o codigo lhe permitta n polygamia; forçal-o á condição da unidade conjugal será fazer uma violencia inaudita á sua liberdade de co~zscienciu, garantida no art.O 1 1 4 5 . O da Carta constitucional.

Ainda mais singular me pareceu a argumentação, que se encontra na ag. 18 da referida Collecção de B Cartas. Segundo o i lustre escriptor, tas disposições da Carta são superiores ás leis ecclesiaslicas~, porque o 5 44.' do art.' 75.3rohibe que se conceda o bene-

1 Obr. dt., peg. 13. . .

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plàcito aos decretos dos concilios e a quaesquer outras prescripçbes ecclesiasticas, que se op ozerem á Con- stituição; e como o 5 1: do a n o i4P.O proclamou a liberdade de consciencia, conclue o Sr. Yicente Ferrer que foi retirado o beneplacito ao decreto do Triden- tino, que exige a presença do parocho para a validade do matrimonio.

D'este modo vêmos a superioridade da Carta pro- vada incontroversdmente por um artigo da mesma Carta, e a liberdade de consciencia a abrogar os decretos dos concilios ecumenicos. Quer dizer: o cidadão portuguez não pode ser perseguido por motivo de reIigião, em- quanto respeitar a do Estado e ngo offender a moral publica (art.O i45, 4.7. Logo é falso o que dizem os Padres de Trento ácerca da nullidade do contracto e sacramento do matrimonio, celebrado sem a assistencia do parocho,

A. Herculano veiu á imprensa declarar que a ce- lebração do casamento continuava a ser como até alli; que = a lei só exige do ministro da religião do Estado uma communicaç% official do facto ao funccionario do registo civil, para este lavrar O titulo, que ha de ser- vir aos conjuges de prova do seu estado civil, *. Na opinião d'este escriptor, s6 unz paiz de selvagens é que não agradecia os serviços prestados á civilisação e ro-

ácerca do matrimonio. P gresso pela Commissão revisora, nos seus traba hos

Mas a nação não agradeceu, porque lia no art,O 1072." do projecto do Codigo estas expressóes: * O casamento entre subditos portuguezes, seja qual fôr a

1 Na carta publicada no- JorliaE do Commercio de Lisúoa, u." 3639.

sua religião, que náo são obrigados a declarar, produz tambem todos os effeitos civis, se tiverem sido obser- vados os requisitos essenciaes dos contractos, etc., O povo portuguez, que é catholico, leu o artigo do pro- lecto, e não oude convencer-se de que a nova lei em nada viria a r terar a celebração do matrimonio; o povo portuguez repetiu a leitura do art." 1072." do projecto, e concluiu que o Sr. A. Herculano se liavia equivocado, quando affirmou na sua carta, que toda a innovação se reduzia a uma nova fórma de registo.

Ainda uma vez repetirei: o art." 145.' da Carta manda respeitar a liberdade de consciencia, mas põe limites á manifestação d'essa liberdade; os limites de- termina-os o respeito devido á religião do reino e á mo- ral publica. Uma e oulra são offendidas na cooperação prestada pelos funccionarios do Estado a um acto pu- blico, condemnado pelas crenças catholicas; pois reco- nhecem que o catholico, recusando o sacramento do matrimonio, ajá não é catliolico~, e, em vez de lhe applicar o art." 135." do Codigo penal, conclucm que o apostata é aum cidadão, que o Estado deve prote- ger l n !

Desde que uma nação adopta duas fdnnas do ma- trimonio, uma para os catholicos, e outra para todos os que não forem catholicos, tem o direito de pergun- tar ao cidadão qual a sua crença, para o fim de lhe negar ou conceder os effeitos civis. Não vejo aqui a perseguição inquisitorial, porque, qualquer que seja a resposta do interrogado, a sociedade lhe garantirá a constituição da familia. O Estado tambem investiga

Santos Carneiro- pag. 77 e 80.

O casamento civil e seus adversarios,

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servancia dos preceitos religiosos, que versarem sobre os actos da vida civil, não pode ser licito aos cidadãos, que não forem estrangeiros naturalisados, o deixar de professar o culto catholico; aliás a lei forçal-os-hia a absterem-se do matrimonio, ou a celebrarem-n'o hy- pocrita e sacrilegamente.

Tambem não julgo acceitavel a doutrina dos que vêem garantida no art." 145." a liberdade de conscie~z- cia, entendida no sentido de ampla liberdade de ter ou não ter fé. AO ente racional, como já tive oecasião de observar, não é permittido crêr ou deixar de crêr na verdadeira religião; este principio equivale a dizer que a verdade e o erro, o bem e o mal, são indifferentes. Se não lemos obrigação moral de adherir á verdadeira religião, não temos o dever de attingir o nossc fim, e esquivamo-n'os a todas as obrigaçaes que derivam d'aquelle dever fundamental.

Ponderemos agora o alcance das disposições do Codigo civil portuguez, na materia do casamento.

A Commissão revisora tinha proposto que se facul- tasse a todo o cidadão portuguez a livre opção entre as duas fbmas do matrimonio, o religioso e o civil. O Codigo civil, no art."4057.", determina que os catho- licos celebrarão os casamentos pela f6rma estabelecida na Egreja catholica; e os que não professarem a reli- gião catholica, pela f h a estabelecida na lei civil.

Parece portanto que fica claramente determinada a differença entre um e outro systema, e harmonisado

o respeito devida á religião do Estado, com o respeito das crenças dos acatholicos. Todavia a doutrina do Codigo foi, desde a sua apresentação nas Camaras, accusada de não differir realmente da proposta da Com- missão revisora. Importa pois averiguar se é bem fun- damentada a arsgção.

Já tive occasiao de observar que na sessão noetur- na de 26 de Junho de 1867 disse o Sr. Vicente Ferrer, na Camara dos Pares, que a differença dos dous sys- temas não produziria resultados alguns praticos, por isso que O art." 1081." rohibe o inquerito prévio ácerca da religião dos contra R entes 1, e o art." 1090." deter- mina que o casamento civil não pode ser annullado por motivo de religião.

As mesmas asserções tinham sido formuladas perante a Camara dos Deputados, na sessão nocturna de 21 de Junho do mesmo anno. Ahi perguntou o Sr. J. Dias Ferreira ao Sr. Ministro da Justiça (Barjona de Freitas) qual seria a penalidade para O eatholieo, que casar civilmente, visto que o codigo não annulla tal casamento, e até prohibe o inquerito prévio ácerca da religião dos conjuges? Se a responsabilidade, a que se allude no relatorio da lei, ficaria limitada a incor-

1 Na opinião do digno Par, a pergunta que o official civil faz aos contraheutes, depois da leitura dos art:"O566.0 e 1057.9 se persistem na resolução de contrahir o mntrimonio civil, constitue um meio indirecto de forçar os cidadãos portuguezes a recorrerem ao casamento catholico, porque a resposta affirmativa á dita per- gunta poder6 ser entendida como vcnegação do catholícismo; e re- sultarem Bahi graves damnos para os nubentes.

Mas o Sr. Ferrer, que manifesta tamanho receio por este mal, bem sabia que a mesma imterpretaçbo seria dada ao facto do ca- sameuto civil, desacompanhado de perguntas e respostas.

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rerem os nubentes no desagrado do beaterio da loca- lidade l?

Segundo o art." 6." da Carta, ponderou o mesmo orador, ao cidadão, que foi sem re portuguez, não se perrnitte outra religião diversa i' a catholica. E segun- do este principio, o casamento civil deve ser prohibido egualmente aos portuguezes catholicos e não catholi- cos, e s6 como excepção se deveria permittir aos es- trangeiros naturalisados. Mas na sua opinião o direito de casar, como qualquer outro direito civil, deve ser concedido com egunl amplitude a portuguezes e es- trangeiros; e o art."." não é constitucional, poden- do por isso as Camaras alteral-o, pelo seu poder ordi- nario.

Tambem allegou em favor do casamento civil a an- tiga legislação portugueza, dizendo que segundo as Or- denações do Reino o filho bastardo de pae plebeu vi- nha á herança com o filho legitimo; o que era sanc- cionar de algum modo o casamento civil e. Egualmente alludiu á disposição das Ordenações Philippinas, livro IV, tit. XLVI, de que já tratei (vej. pag. 148

Da folha oficial não consta o que o Sr. klinistro

' Diario de Lisboa, de 3 de Julho de 1867, Iing. 2092. Referia-se provavelmente ao livro IY, tit. S C I I , que, de-

pois de definir filhos naturaes os havidos de manceba ou mulher, com quem o pae poderia casar, accrescentou: aE se o pai for pião, succeder-lhe-ão, e virao a sua herança igualmente com os filhos legitimos, se os o pai teuer. E não haiiendo filhos legitimos, her- darão os naturaes todos os heês e herança de seu pai. saluo a terç a,... >

Ou eu não compi-ehendo o argumento, ou S. Ex.' estava zombando com a Camarn. O filho natural de pae pe8o tinha direito á herança como o filho legitimo; logo havia casamento civil. Com a mie do legitimo o11 do natural? E se os filhos naturaes fossem havidos de differentes mancebas? Isto não pode ser serio.

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da Justiça responderia ás interrogaçaes do orador. Tendo porém dito na Camara dos Pares o Sr. Marquez de Vallada, que suppunha que o casamento civil era exigido só para os não catholicos, e que o casamento religioso era essencial para os catholicos; e perguntan- do, se n'isto estaria enganado? O Sr. Baijona de Frei- tas respondeu ás duvidas do orador, dizendo: os catho- licos casarão catholicamente, conforme as leis canoni- cas, como está hoje estabelecido; e os não catholicos casarão civilmente. A Egreja não pode querer privar estes do direito de constituir familia, nem forçal-os a casar calliolicamente.

Portanto as declarações do Sr. Ministro da Justi- ça, e o parecer da commissão de legislação attribuem aos art." 1057 e 1069 do Codigo civil o sentido mais obvio; isto é, aos portciguezes catliolicos sómente é permittido o matrimonio religioso; o casamento civil é para os não catholicos. Esta asserção é ainda confir- mada pelo art." 1072, que reconhece effeitos civis ao casamento legal dos subditos não catholicos; d'onde se pode inferir n coi2tra1-io sensu que o matrimonio legal entre portuguezes catholicos ficaria destituido de effei- tos civis.

Mas a verdade é que o a r t . 9 0 5 7 encerra apenas um preceito sem sancçáo, uma disposição legal que se póde transgredir sem incorrer em pena alguma. Quan- do alguem pretender casar civilmeiite, o official do re- gisto civil procede ás investigações, que lhe determina o a r t . 9076 , e que se limitam a saber se os conjuges estão incursos em algum impddimento legal, impedien- te ou dirimente. Mas o preceito do art." 1057 fica inutil; o funccionario civil 1iã.o se informa da religião dos futuros esposos.

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Ainda mais. O art." 1081 prohibe-lhe expressa- mente a prévia investigação ácerca das crenças reli- giosas dos nubentes; lidos os art.""056 e 1057, se cada um dos contralientes responde que permanece na resolução de celebrar o matrimonio pela f6rma esta- belecida na lei civil, o o5cial não tem meio legal de se oppbr á união, deve casal-os. E d'este modo o art.". i 0 8 1 annulla formalmente O art." 1057 do codigo civil I .

Esta conclus%o resulta com evidencia de outras disposições legaes. Segundo o art." i 072 arece que o malrimonio legal entre catl~olicos não pro a uz effeitos civis; mas o art." 1090 determina cathegoricamente que o mesmo rnatrimonio não pode ser annullado por motivo da religião dos contrahentes. Quer dizer, em- bora os conjuges sejam catholicos, a sua união é civil- mente valida; perante a lei são marido e mulher, e o art .qO72 é uma mentira, ou uma irrisão ao art."." da Carta constitucional ?.

Ainda duas palavras ácerca de impedimentos. O nosso codigo civil estabelece impedimentos im-

pedientes e dirimentes. Os primeiros (art." 1058) são communs ás duas fórmas 80 matrimonio, religioso e

1 Sr. Dias Ferreira-Codigo civilportupca annofado, vol. 111, pag. 3 a 8.

* Inclino-me a crêr que, na opiniáo de alguns dos nossos estadistas, as leis portnguezas apenas to1ct.m o catholicismo pelo receio de suscitar difiiculdades. A lei orgmica do pais reconhece, no art.O 6 . O , a religiao catliolica, porque assim foi necessario para desarmar as irritações do beaterio. Qner dizer, sacrificaram-se as convicçúes anti-religiosas aos interesses partidarias.

Se assim é, proclamem-n'o com frrtnquezs; mas níio chamem beaterio ao respeito, pue todo o cntholico deve ter pelos decretos dos concilias ecumenicos, que determinam a forma de celebrar Ya- lida e licitamente os sacramentos.

civil; o ministro da Egreja, que abençoar o casamento de alguns nubentes, a quem a lei civil prohibe a união, incorre nas penas comminadas no codigo penal contra os que abusam de funcçóes religiosas I .

Os impedimentos dirimentes, reconhecidos na lei civil (art.Y073), são applicaveis unicamente ao casa- mento segundo a fórma legal. Emquanto ao matrimo- nio catholico, o Estado reconhece os impedimentos ca- nonicos, ainda que esse reconhecimento não é comple- to. Por exemplo: os canones enumeram a ordem e o voto solemne de castidade entre os im~edimentos diri- - ~ - -

mentes; e no codigo apparecem entre' os impedieotes (art." 4.058, n.9.") .

Na sessão de 10 de Nove~nbro de 1864 propbz o Sr. Mártens Ferrão á Co?nrnissão revisara, que se de- clarasse nu110 o matrimonio de pessoas ligadas por votos solemnes, e a proposta foi approvadan. Mas é certo que no codigo apparece o impedimento de ordem, sem se determinar penalidade alguma para os seus transgressores. Apenas o art .qO82 impõe aos officiaes civis, que celebrasse~n taes'co~isorcios, as penas com- minadas aos ministros da Egreja no art." 1071.

O codigo civil estatue no art."O que todos os actos praticados contra a disposição da lei prohibitiua, ou perceptiva, envolvem nullidade. E d'este modo seria nu110 o rnatrimonio dos clerigos de ordens sacras. Mas o citado art."unta ao preceito a clausula: asalvo nos

1 Cod. pen. srt.O 13G.", $ 2." Se o abuso consistir em pro- . ceder ou mandar proceder á celebraçiio do matrimonio, s e u que preyiamente tenham tido logar as Formalidades, que as leis civis requerem, será condemnado (o ministro ecclmiastico) em prisao aorreccional de um até tres annos, e mdcta de um mez a pm anuo.

2 Vej. Actas da commissão revisoru..., pag. 532.

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casos em que a mesma lei ordenar o contrariop. Ora o a r t .qO59 diz expressamente que a infracção dos impedimentos impedientes anenhum outro effeito pro- duz senão sujeitar os infractores ás pena. abaixo de- claradas~ ; e é ommisso ácerca do n." 5.".

Na sessão da Camara dos Pares, de 2 6 de Junho de 1867, perguntou o Sr. Mar uez de Vallada ao Sr. Ministro da Justiça que penali 1 ade havia para o cle- rigo, que (occultando a sua posição) contrahisse o ca- samento civil? Se esse inatrimonio seria annullado? 0 Ministro interpellado respondeu que essa penalidade estava deternunada na legislacão canonica e no codigo penal; que os clerigos não s6 estavam impedidos de casar civilmente, mas que o seu casamento era nullo I.

Coin effeito os canones são expressos n'esta mate- ria; e o casamento civil, contrahido pelo clerigo sujei- to â lei do celibato, pode equiparar-se a uma renun- cia publica da religião do reino, ao crime de aposta- sia previsto no art." 135." do codigo penal, que diz no $ 1.": a Se o criminoso fBr derigo de ordens sacras, será ,expulso do reino para sempre*.

E verdade ue alguns consideram como derogado o artigo 135.' d0 codigo penal, fundando-se em que o a r t .qO59 do codigo civil não permitte appljcar aos infractores dos impedimentos civis outra penalidade, que não seja a do mesino codiao, e o art." 5." da Car- ta de Lei de 1 de Julho de 1867 declarou revogada 'toda a legislação anterior, geral ou especial, que re- caísse sobre as materias que o codigo abrange 9 . Mas

1 Vej. o Diario de Lisboa de 3 de Julho de 1867. Sr. Dias Ferreira -Codigo civil portuguez annotado, vol.

111, pag. 17 a 20.

faltaria demonstrar que esta omissão intencional 1 é compativel com a lei fundamental da nação portu- gueza.

Eu bem sei aue uma habil hermeneutica iuridica pode sophismar iodos os artigos do codigo penal, e apresentar um criminoso como o mais inoffensivo dos cidadãos. Mas a consciencia publica protesta sempre contra o crime; e, no caso presente, a boa logica nos ensina que, sendo recebida no nosso paiz a legislação canonica contra os clerigos apostatas, não é licito nem juridicamente possivel que essa legislação fique abro- gada por um artigo do codigo civil, que é omisso a seu respeito. A lei geral sóinente deroga a especial, quando faz expressa menção d'ella.

N'um paiz, que não reconhecesse uma religião do Estado, ainda se poderia allegar que o casamento é um direito natural, de que a sociedade não pode pri- var os seus membros, sem razões gravissimas; e que a obrigação, contrahida pelos clerigos e religiosos para com Deus e a E reja, assenta n'um voto, isto é, resul- ta de um facto f o dominio individual, e de que o Esta- do não pode, nem deve tomar conhecimento.

Mas a nação portugueza não estê, n'essas condi- çties; tem uma lei fundamental, que garante a protecção e respeito â religiâo catholica. Tolerar o casamento ci- vil do clerigo seria o mesmo que sanccionar a injuria, que elle faz ás leis da Egreja.

Nem se diga que, sendo o casamento um direito natural, commum a todos os homens, não deve o Es- tado privar o sacerdote d'esse direito. Embora o ma- trimonio seja direito cornmum dos homens, compete á

d .

Collecçüo das cartas do Sr. Vicente Fcrrcr ..., pag. 30.

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sociedade o legitimo poder de dar ou recusar os effeilos civis do casamento, se a isso a determinarem razões sdíicientes. O sacerdote renunciou livremente ao di- reito do matrimonio, e em troca d'essa renuncia rece- beu da Egreja honras, poderes, immunidades, e um caracter indelevel. Portanto a equidade natural exige, que o Estado obrigue o sacerdote a cumprir as pro- messas, que fez a Egreja por um quasi contracto bi- lateral.

Aliás o Estado desconsidera e avilta o poder eccle- siastico aos olhos dos cidadãos; estes não poderão dei- xar de receber um funesto escandalo, ao vêrem que as leis mais sanctas da Egreja são calcadas aos pés; e que o Estado, longe de reprimir o abuso, antes lhe d i a consagração das leis.

Em conclusão: Julgo admissivel a doutrina dos art." 1057.",

1069."e 1072.", porque representam fielmente as re- lações da nossa constituiçálo polilica com a sociedade r~lidosa. Attribuindo effeitos civis ao matrimonio reli- . --- gioG dos catholicos,\e sdmenle a este, observa-se o res-

eito devido á religião do Estado e garantido no art." 8: da Carta constituional. Estabelecendo uma fárma legal de constituir a familia, para os que não profes- sam a religião catholica, respeita-se a liberdade de consciencia d'estes, e cumpre-se o $ 4." do art." 145.' da Carta.

Não me parece hannonica com estes principios a definição de casamento, contida no ayt.' 1056.' do codigo civil. Em Portugal não ha rigorosamente o ca-

samento civil, isto é, a secularisação do matrimonio e da familia; em harmonia com o regimen de cultos, adoptado na lei fundamental do paiz, o codigo reco- nliece effeitos civis ao sacramento; por consequencia não deveria definir o casamento como mero contracto.

Talvez que o legislador optasse por aquella defi- nição, attendendo a que a lei civil deve regular unica- mente as condições e effeilos do contracto. Mas, ainda sob este ponio de vista, nem é admissivel um contracto perpetuo, nem é certo qiie a lei civil regule unicamen- te os effeitos temporaes do matrimonio. O nosso codi- go encerra artigos, que determinam os dous modos de constituir o proprio vinculo conjugal; não podia pois limitar-se na definição a considerar o contracto.

O n."."o a r t . q O 5 8 . q éesnecessario, e atten- torio contra a religião do Reino. Dcsnecessario, por- que a lei civil reconhece a legislação canonica, na parte em que enumera e prescreve quaes os impedi- mentos dirimentes do matrimonio cl1rist50. Offensivo da religião catholica, porque dá occasião ao casamento civil dos clerigos (vej. a pag. 189); se o codigo qui- zesse apenas dar a sancção civil ao impedimento da ordem, deveria incluil-o no ai-t." 1073.", e não no art." 1058.; que trata dos impedimentos impedientes.

Em harmonia com o principio geral estabeleci- do no art." 1057.O, o codigo deveria no art." 1076.O reputar a crença catholica dos nubentcs como um ob- staculo á celebração do casamento, segundo a forma determinada na lei civil.

Não pode considerar-se como offensiva da liber- dade de consciencia a pergunta, que o oficial do re- gisto civil dirigisse aos futuros conjiiges Acerca da re- ligigo, que professam (art." 1081."); porque a respos-

18

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ta, qualquer que fosse, não os privaria do direito de constituirem familia, e era necessaria para determinar a escolha de uma das duas fórmas do casamento.

Finalmente o art."O90."mpõe uma injusta res- tricça á legitima liberdade de consciencia dos catho- licos. Se dous subditos da Egreja, impellidos por uma paixão violenta, contraliirarn civilmente uma união, que as leis canonicas não periniltem sanctihcar com o sacramento, e posteriormente algum d'elles se arre- pende, é legalmente forçado a permanecer em um es- tado, que a sua consciencia reprova.

A commissão rcvisora do codigo, segundo o teste- munho do seu presidente, estabeleceu aquella disposi- ção legal a pela lembrança da inquisição 2 , isto é, por- que ~ n ã o quiz os escandalos da discussão judicial a respeito da orihodoria do cidadão P . Mas se os conju- ges se declaram catholicos e arrependidos, não vejo onde está a necessidade de arrastar as suas crenças perante os tribunaes.

Raras vezes se dará a hypothese, tal como eu a forniulei, isto é, não sendo ossivel obter dispen- sa do im edimento canonico. Ifeconheço tamliem que \ alguem a usaria da permissáo legal, para quebrar um vinculo que se lhe tornasse aborrecido. Mas o numero não diminue a força do direito; e os abusos, aliás inhe- rentes a todas as instituiç6es liumanas, podem ser pre- venidos e remediados na legislaçáo regulamentar.

Repito: o art.' 4090.' deve ser modificado ou ex- pungido do nosso codigo civil. Tal como está, é uma offensa á religião do Estado, é um ataque á liberdade dos cidadãos catholicos.

INDICE DAS MATERIAS

I . Natureza complexa do matrimonio . . . . 6 11. Caracter religioso do vinculo conjugal . . . I i 111. Origem do casamento civil . . . . . . '7

PAR?% PRIMEIRA

O casamento civil perante a doutrina catholica

CAP. I. O matrimonio é um sacramento da Nova Lei. . . . . . . . . . . 35

CAP. 11. NO matrimonio christáo o sacramento é inseparavel do contracto. . . . . 48

ÇAP. 111. Qual o ministro do sacramento do matri- monio!. . . . . . . . . . 58

Art. I. Os contrahentes são os ministros do sacramento do matrimonio . . . 60

Art. 11. Analyse dos principaes argumen- tos dos adversarios . . . . . . 66

CAP. IV. Em face da doutrina catholica será licito o casamento civil? . . . . . . 7 4

PARTE SEGUNDA

O casamento civil perante a philosophia souial

CAP. I. A missão do Estado e o seu poder ácerca do matrimonio . . . . . . . 81

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CAP. 11. A missão da Egreja e o seu poder kerca . . . . . . . do matrimomo 88

CAP. 111. O casamento civil poderá justificar-se pe- . . . . rante a phiiosophia social? 98 CAP. IV. Juizo critito da lei sobre o casamento ci-

vil . . . . . . . . . . . 107

PARTE TERCEIRA

O casamento civil segundo a legislação portugueza

CAP. I. Legisla~áo matrimonial das principaes na- qóes da Europa . . . 121

CAP. 11. Legislaqáo portugueza sobr o matrimo- nio, antes do concilio tridktino. . 127

CAP. III. Legislaqáo portugueza sobre o matrimo- nio, depois do concilio tridentino . . 140

CAP. IV. Exame critico da legislaqáo portugueza sobre o matrimonio . . . 163

I. O regimen de cultos ein Portugal. . . ibid. 11. Confronta@o dos systemas pro ostos. . III. Analyse critica dos artigos do Eociigo. .