Fabio Medina Osório - Improbidade administrativa reflexões sobre laudos periciais ilegais e desvio...

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    Nmero 8 dezembro 2006 / janeiro/fevereiro 2007 Salvador Bahia Brasil

    IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA: REFLEXES SOBRELAUDOS PERICIAIS ILEGAIS E DESVIO DE PODER EM

    FACE DA LEI FEDERAL 8.429/92

    P ro f . Fb i o M ed i n a Os r i o Doutor em Direito Administrativo pela Universidade

    Complutense de Madrid, pela Capes. Mestre em DireitoPblico pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    (UFRGS). Professor colaborador nos cursos de mestrado edoutorado da Faculdade de Direito da UFRGS. Professor

    nos cursos de ps-graduao da Escola Superior doMinistrio Pblico do Rio Grande do Sul (RS). Promotorde Justia/RS. Vice-Presidente do Instituto Internacional

    de Estudos de Direito do Estado (IIEDE). Membro doGrupo Nacional Anticorrupo da Transparncia Brasil.

    1. CONSIDERAES INTRODUTRIAS1

    O laudo pericial a documentao escrita da atividade desenvolvida porperito, geralmente no mbito de um processo, e como rgo auxiliar daadministrao da justia, de que se deve socorrer o juiz, na instruo da causa,em prol da formao de seu convencimento, quando a prova do fato depender

    de conhecimento tcnico ou cientfico (art.145 do Cdigo Processual Civil). Operito apresentar o resultado dos exames, pesquisas, investigaes ediligncias que realizar, em instrumento que tem o nomen iuris de laudo. Olaudo a exposio da percia realizada e seu resultado. Nele devem vir asconcluses do perito sobre a percia levada a efeito, precedidas, como bvio,da respectiva fundamentao2.

    A produo de laudos periciais, no sistema judicial ptrio, em suadimenso distorcida, vem causando imensos prejuzos ao errio ou s partes

    1 Agradeo o auxlio de Vinicius Diniz Vizzotto, advogado, especialista em Direito Internacionalpela UFRGS.

    2 MARQUES (1974).

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    de um modo geral, gerando fraudes ou erros grosseiros em detrimento dosjurisdicionados, manchando, em qualquer caso, a prpria Administrao daJustia3. Verifica-se uma pluriofensividade dessa espcie de condutatransgressora, seja por omisso, seja por ao, porque, a um s tempo, ela

    agride direitos individuais das partes e direitos difusos da sociedade, todosrelacionados ao iderio de bom funcionamento do sistema judicial.

    O presente trabalho prope-se, pois, a refletir sobre a responsabilidadede peritos e juzes nesses ilcitos funcionais, luz da Lei Federal nmero8.429/92, Lei Geral de Improbidade Administrativa, como a designo, em face sua abrangncia. Essa Lei constitui-se em apenas um dos instrumentos decontrole repressivo, mas perpassa a prpria ilicitude do ato e seus possveisdesdobramentos, sendo um instrumento potencialmente eficaz para coibir omau exerccio das funes pblicas e o chamado desvio de poder alado categoria da improbidade, diante das penalidades que comina aos agentespblicos. No me ocuparei nem da responsabilidade penal, nem da civil, nemda chamada responsabilidade disciplinar, embora tais categorias devam, noraro, convergir com a tipologia do ato de improbidade administrativa, o qual sesitua num plano intermedirio. Nem toda improbidade ser um crime, mas todaimprobidade haver de ser, no caso em exame, tambm uma infraodisciplinar e um ilcito gerador de responsabilidade civil, eis a premissaadotada.

    2. ATO MPROBO E O DESVIO DE PODER VALORADO

    Tratar de improbidade administrativa, no Direito brasileiro, significarefletir sobre atos de corrupo lato sensu4 e, tambm, sobre atos de grave

    3 Ainda que o prejuzo direto ocorra em detrimento da parte ex adverso, sem desfalcar os cofrespblicos, o prejuzo maior sempre ser em desfavor da Administrao do sistema judicial, porquanto operito auxiliar do juiz e tem compromisso com a verdade. No h, evidentemente, estatsticas oficiais arespeito dessa espcie de transgresso, at porque o universo judicial ainda bastante incipiente no tratode ilcitos internos com metodologia cientfica. Inexistem bancos de dados sobre laudos periciais anuladosou no homologados por ilicitude flagrante. Porm, existem abundantes experincias forenses,eventualmente reproduzidas na mdia, que revelam os gigantescos espaos discricionrios de peritos ejuzes, no manejo de suas competncias. Pode-se arriscar uma hiptese: existe a sensao de que os

    laudos periciais ilegais no sofrem controles adequados, especialmente no mbito do Direito Penal,Direito Administrativo Sancionador e at mesmo do Direito Civil lato sensu, no qual se amparam as aesde indenizao por danos materiais e morais. Estamos, pois, numa daquelas reas sintomaticamentedesrticas, nas quais o olhar do intrprete prope basicamente o bvio, porm de maneiratendencialmente original ou originria. Esse talvez seja o papel que pretenda assumir aqui: o de suscitardiscusso sobre tema raramente discutido publicamente, mas freqentemente debatido na prtica. Sobrea escassez de estatsticas na gesto pblica brasileira, confira-se MEDINA OSRIO (2004), ocasio emque abordei algumas das principais dificuldades operacionais do Estado brasileiro, em qualquer de suasesferas, no mbito da gesto interna, externa e estratgica. O tema da crise do sistema judicial ptrio foiampliado e consideravelmente aprofundado em trabalho intitulado O novo sistema judicial brasileiro:significantes e significados, em obra coletiva de Direito Administrativo que coordenei, em conjunto comMarcos Juruena Villela Souto, em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto.

    4 Trata-se de encarar a corrupo, do ponto de vista sociolgico, como transgresso a regrastico-normativas, pela qual o agente pblico, aqui considerado lato sensu, busca satisfazer fins privados

    com o uso indevido de seus poderes decisrios. Essa a definio adotada por organismosinternacionais como Banco Mundial, Transparncia Internacional ou Fundo Monetrio Internacional, compequenas e insignificantes variaes. Essa definio est, tambm, na raiz histrica da corrupo

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    ineficincia funcional, ambos interconectando-se no plano da imoralidadeadministrativa, dentro do crculo restrito de tica institucional que domina osetor pblico5. A improbidade uma espcie de m gesto pblica lato sensu,

    enquanto fenmeno inerente humanidade, como nos diz, num magistral trabalho, o italiano LucianoPERELLI (1999). Por tal razo que o Direito Administrativo, enquanto conjunto de normas que regulamas atividades tpicas da Administrao, em qualquer de suas esferas, pressupe o atendimento dointeresse pblico em detrimento da satisfao dos interesses particulares dos agentes, consoante asclssicas lies de FAGUNDES (1957) ou CIRNE LIMA (1987). A expresso corrupo no , naliteratura especializada, normalmente, manejada no seu sentido penalstico, mas preponderantemente nosociolgico ou no administrativo, como se pode perceber pela leitura de alguns importantes escritos deuma das maiores autoridades mundiais do assunto, como o MENY (1997; 1996; 1993; 1992). Acorrupo, nessa medida, apenas uma das facetas da improbidade, estando longe de significar,ademais, enriquecimento ilcito (esta categoria to-somente uma das modalidades da corrupo). Essa a orientao que se percebe em abundantes manifestaes da Organizao das Naes Unidas. Parano nos estendermos em demasia neste ponto, basta recordar do emblemtico Cdigo Internacional deConduta para os Funcionrios Pblicos, aprovado pela ONU atravs da Resoluo 51/59, de 12 de

    dezembro de 1996, disponvel em , sendo a data de acesso20.10.2004. Deveres de diligncia esto ali consagrados, o que supe admissibilidade de infraesculposas, ao lado das clssicas transgresses dolosas que compem o quadro normativo da corrupopblica. Consulte-se, a propsito, outro documento das Naes Unidas, confeccionado e aprovadoposteriormente pela Assemblia Geral, no seu Quincuagsimo quinto perodo de sesiones, pela TerceraComisin, como Tema 105 do programa, intitulando-se o documento: Un instrumento jurdicointernacional eficaz contra la corrupcin. A/C.3/55/L.5, 14 septiembre 2000. Anexo: Lista indicativa deinstrumentos jurdicos internacionales, documentos y recomendaciones contra la corrupcin. Indica-se anecessidade de criminalizar comportamentos corruptos e corruptores, bem assim criar ambientesinstitucionais saudveis e transparentes, mas os conceitos manejados transcendem, largamente, osestreitos limites do Direito Penal. Num sentido similar andou, e vem andando, permanentemente, a UnioEuropia, como se percebe no documento intitulado: Posicin coordinada de la Unin Europea en lotocante a la preparacin de la futura Convencin de las Naciones Unidas contra la corrupcin y delSegundo Foro Global de Lucha contra la corrupcin y promocin de la probidad. Bruselas, 28 febrero de2001. 4 f.

    5 Sobre improbidade administrativa e seu contorno bipolar (apanha os extremos doscomportamentos patolgicos dos agentes pblicos, indo da inrcia depressiva s aes mais agressivascontra o patrimnio pblico lato sensu), observa-se que esto reprimidas, na Lei 8.429/92, tanto astransgresses dolosas quanto culposas, sejam graves desonestidades, sejam intolerveis ineficinciasfuncionais dos agentes pblicos. A natureza jurdica das sanes cominadas aos mprobos de DireitoAdministrativo, sendo os respectivos processos punitivos regidos pelo Direito Administrativo Sancionador,no plano material. Essa foi construo que elaborei desde 1995 at 2003, ganhando o primeiro espaointernacional especificamente no trabalho que publiquei na Revista de Administracin Pblica, Centro deEstdios Constitucionales, em Madrid, no ano de 1999, intitulado Corrupcin y mala gestin de la respublica: el problema de la improbidad administrativa y su tratamiento en el derecho administrativosancionador brasileo, conforme discriminado na referncia bibliogrfica. Naquela oportunidade, defendias bases conceituais da improbidade disciplinada na Lei Federal 8.429/92, numa das mais prestigiadasRevistas de Direito Administrativo da Unio Europia, aps haver exposto o trabalho no Seminrio de

    Professores dirigido pelo Catedrtico Eduardo Garca de Enterra. Essa tese, de qualquer modo, veio aser defendida na Universidade Complutense de Madrid, para obteno do ttulo doutoral, e aprovada,summa cum laude, unanimidade, pela Banca Examinadora, em junho de 2003, composta pelosCatedrticos Rubbio Lloriente; Jess Gonzlez Prez; Lorenzo Martin-Retortillo Baquer; Ramn Parada;Manuel Rebollo Puig, na presena do orientador, professor Eduardo Garca de Enterra. Trata-se de umconjunto de trabalhos nos quais defendo, precisamente, essa essncia do ato mprobo: desonestidade egrave ineficincia funcional, com natureza jurdica definida e tutelada pelo Direito AdministrativoSancionador, culminando em trabalho no prelo de conhecida Editora, sob o ttulo Teoria da ImprobidadeAdministrativa, no qual busco sintetizar uma viso geral sobre o assunto. Cabe sinalizar, no obstante,que a rede de trabalhos produzidos, na dcada de 90, apontando exatamente essa bipolaridade dapatologia aqui designada improbidade administrativa, pode ser bem sintetizada nos artigos quecolacionei e que vo aqui referidos pelas respectivas datas, obedecendo metodologia adotada, todoslocalizveis nas referncias bibliogrficas. Confiram-se os trabalhos em MEDINA OSRIO (1997; 1997a;1998; 1998a; 1999a; 1999b; 1999c; 2000a, 2000; 2002; 2003 e 2005). Vrios podem e devem ser osinstrumentos de controle e preveno das patologias assimilveis ao amplo conceito sociolgico de

    corrupo, o que se ajusta ao iderio da Lei Geral de Improbidade Administrativa editada em nosso pasem 1992, equiparvel a um Cdigo Geral de Conduta dos agentes pblicos brasileiros, de todos os entesfederados e de todos os Poderes da Repblica. Sobre o alcance desse verdadeiro Cdigo Geral, reporto-

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    uma imoralidade administrativa qualificada6. O ato mprobo configura-seatravs de um processo de adequao tpica, que carece da integrao da LeiGeral de Improbidade com normativas setoriais aplicveis espcie, dentro deum esquema de valorao mais profunda da conduta proibida. A improbidade

    uma patologia de gravidade mpar no contexto do Direito AdministrativoSancionador, eis que suscita reaes estatais bastante severas; por issomesmo, sua punio, no devido processo legal que lhe cabe, exige obedinciaa regras e princpios de Direito Punitivo, marcadamente de DireitoAdministrativo Sancionador7.

    O desvio de poder uma das figuras centrais de improbidade,alcanando todo e qualquer bloco normativo previsto no bojo da Lei 8.429/92,tanto nas clusulas gerais, quanto na casustica. A formatao do desvio depoder, na modalidade mproba, pode ocorrer no seio de tipos que sancionamenriquecimento ilcito, leso ao errio ou pura agresso s normas, tal como sepercebe nos arts.9o, 10 e 11 da Lei Geral de Improbidade. A constatao daimprobidade depende da valorao que recai sobre o desvio de poder e a notade gravidade perceptvel8.

    me a MEDINA OSRIO (1997; 1998; 1999), ocasies em que defendi, abertamente, a incidncia dessanormativa para todos os agentes pblicos, incluindo os agentes polticos, at mesmo autoridades doPoder Judicirio ou do Poder Legislativo, membros do Ministrio Pblico ou do Tribunal de Contas.Divergi, poca, da respeitada opinio, em sentido contrrio, exposta por MELLO (1995), que chegou aver, nessa legislao, apenas os atos administrativos ali enquadrveis.

    6 Segundo uma das primeiras lies dos autores que se debruaram sobre o tema, a

    improbidade seria uma imoralidade administrativa qualificada, conforme se nota em PAZZAGLINI FILHOet alli (1996); FIGUEIREDO (2000); MELLO (1995) e MEDINA OSRIO (1997; 1998). Tal terminologia,apesar de pertinente, traduzia ambigidade evidente, eis que nunca se expressou, com clareza, o quequalificaria a imoralidade administrativa, para que esta alcanasse o patamar da improbidade. Noobstante, penso que o grau mais acentuadamente grave de ilicitude, decorrente da gradao dessaespcie de transgresso no ordenamento jurdico, permite, em sintonia com os princpios da legalidade,tipicidade, culpabilidade e devido processo, todos inscritos na Constituio de 1988, uma compreensoadequada do que seria a imoralidade administrativa qualificada. Cuida-se de valorar as vriasmodalidades de imoralidade administrativa e encontrar o estgio preciso da improbidade, observados osparmetros constitucionais e legais adequados.

    7 A defesa da aplicabilidade do regime jurdico do Direito Administrativo Sancionador aos atos deimprobidade, com a incidncia, inclusive, por simetria, das regras e princpios do Direito Penal, foi oproduto de uma srie de reflexes que venho lanando ao debate. Reporto-me aos trabalhos j citadosem MEDINA OSRIO (2005; 2003; 2000; 1999). No Direito comparado, como referncia fundamental, na

    construo conceitual da sano administrativa, e pelo histrico apresentado, cito DELLIS (1997). Ajurisprudncia tem agasalhado, paulatinamente, a idia de um Direito Pblico Punitivo para tutela daimprobidade administrativa. Cito, para ilustrar sumariamente a tendncia, este julgado do Tribunal deJustia gacho: Ao de Improbidade Administrativa n 70006051429. 22 CMARA Cvel. RelatoraDesembargadora MARIA ISABEL DE AZEVEDO SOUZA. Assim ementado: Ao de Improbidadeadministrativa. Prescrio. Decretao de ofcio. Direitos Polticos. Suspenso. E o acrdo,reconhecendo o carter punitivo da Lei de Improbidade, estabelece seu entendimento: A ao deimprobidade administrativa tem por escopo aplicar sanes ao agente mprobo que invadem sua esferapessoal, podendo sujeit-lo, inclusive, suspenso dos direitos polticos (art. 15, inciso V, da CR). Sendoa cidadania um dos fundamentos da Repblica, a prescrio da ao de improbidade administrativa podeser decretada de ofcio, porquanto afeta direito indisponvel. Disponvel em: Data deAcesso: 09.11.2004.

    8 Confiram-se os dispositivos legais mencionados: Art. 9. Constitui ato de improbidadeadministrativa importando enriquecimento ilcito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em

    razo do exerccio de cargo, mandato, funo, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art.1 desta lei (...) Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa leso ao errio qualquerao ou omisso, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriao, malbaratamento

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    agentes pblicos, em desacordo com a normativa, constitucional,infraconstitucional e, eventualmente, tambm administrativa stricto sensu, quepreside seus atos. Improbidade , no bojo da Lei 8.429/92, em sintonia com oart.37, par.4o, da Carta de 1988, m gesto pblica lato sensu, seja por

    desonestidade, seja por intolervel ineficincia. A densidade das proibies esanes, dirigidas aos mprobos, alcanada pela obedincia ao devidoprocesso legal, que articula a funcionalidade dos princpios da legalidade,tipicidade, culpabilidade, segurana jurdica, proporcionalidade e simetria entreDireito Penal e Direito Administrativo Sancionador. Nesse cenrio, a condutaproibida previsvel diante dos tipos sancionadores desenhados na Lei Geralde Improbidade, considerando-se as interfaces entre normativas inerentes snormas punitivas em branco que compem esse verdadeiro Cdigo Geral deConduta dos agentes pblicos brasileiros.

    A peculiaridade do ato mprobo o patamar especial de gravidade queele assume em termos de valorao sobre a normativa violada, considerando-se os preceitos previstos na Lei 8.429/92, o que justificaria, assim,determinadas sanes, com severidade mais acentuada, para coibi-lo. Essagravidade exige interpretao em franca harmonia com o devido processo legale a ltima ratio do Direito Punitivo. O ato tipificado na Lei Geral de Improbidade um ato ilcito grave, que faz fronteira, embora dele se distinga, com o ilcitopenal. Trata-se de ilcito administrativo lato sensu, e no to-somente um ilcitoextrapenal. As penas cominadas aos mprobos so conhecidas, adentrandoesfera de direitos fundamentais dos acusados, e alcanando mesmo asuspenso de seus direitos polticos, interdies de direitos e at exigindo o

    ressarcimento ao errio10, quando couber.A improbidade compreende, pois, trs tipos bsicos de atos detalhados

    em tipos sancionadores abertos, em branco, na prpria Lei 8.429/92: (a)aqueles que comportam enriquecimento ilcito no exerccio ou em razo dasfunes pblicas; (b) aqueles que produzem leso ao errio; (c) aqueles queatentam contra os princpios que presidem a Administrao Pblica. Qualquerdessas categorias tpicas produz leso aos princpios constitucionais quedominam a Administrao Pblica e s regras diretamente incidentes matria. Os elementos especializantes resultam do enriquecimento ilcito ou daleso ao errio. O bloco mais geral o da leso s normas.

    A Lei Geral de Improbidade est repleta, como referi, de normassancionadoras em branco, que se complementam por outras regras ouprincpios, a partir da integrao de legislaes setoriais. Da por que aviolao ao dever de probidade nunca consiste na mera agresso a princpios,mas a regras e princpios. Tampouco pode haver improbidade to-somente apartir de agresso s regras contempladas na respectiva Lei, eis que essa sesocorre de outras regras e princpios, que incidem na tutela do comportamento

    10 Ressarcimento ao errio no sano, mas simples restituio do estado anterior, como j odisseram RINCN (1989) e tantos outros, lio, esta, por mim adotada, como se l em MEDINA OSRIO(2000; 2003; 2005).

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    do agente pblico11.

    Sustento que essas trs categorias de atos mprobos possuemestruturas tpicas diferenciadas, que podem ser configuradas como: (a) bloco

    do enriquecimento ilcito, que supe condutas dolosas, costumeiramente, pelaredao dos tipos e porque ningum enriquece indevidamente de formaculposa; (b) o bloco das leses ao errio, que, at por fora de deliberaolegal expressa, seja nos incisos, seja no caput, podem ser tanto dolosos quantoculposos, sendo constitucional essa previso, alicerada em princpiodemocrtico12; (c) bloco dos comportamentos atentatrios aos princpios quegovernam a Administrao Pblica, cuja aplicao subsidiria e excepcionaldemanda, para a maioria da doutrina, condutas exclusivamente dolosas (jestive filiado a esse entendimento), embora haja quem entenda que subsiste apossibilidade de sancionar condutas culposas13. A culpa, em qualquer caso,sempre h de ser, no mnimo, grave. O dolo o administrativo, no o penal14.

    No , evidentemente, toda e qualquer ilegalidade comportamental quepode configurar improbidade15. Ao contrrio, em geral, a mera ilegalidade noadentra esse terreno mais estreito. Nem mesmo toda imoralidadeadministrativa traduz improbidade, o que significa dizer que a patologia aquitratada requer uma gradao dos deveres pblicos, da normativa incidente espcie e das respostas sancionatrias cabveis. Assim, repito, somente oprocesso interpretativo poder definir, concretamente, um ato mprobo, o queno impede o reconhecimento de pautas abstratas e objetivas para os

    11 VILA (2003) diagnosticou e elucidou com maestria uma distoro recorrente tanto no meioacadmico quanto forense: a suposta prevalncia dos princpios sobre as regras. Tal premissa traduziriainverso de valores, porquanto a regra tem maior grau de decidibilidade do que o princpio, precisamenteporque ostenta funcionalidade mais diretamente ligada definio e resoluo do problema, enquanto oprincpio est mais conectado produo de um estado ideal de coisas. O nvel de aproximao da regraao caso concreto , freqentemente, muito mais intenso do que o do princpio. Da por que no h aaludida e propalada prevalncia dos princpios em detrimento das regras. O que h, isto sim, umaatribuio de papis diversos a essas espcies normativas. Devo dizer, nesse passo, que a regra sepresta ao papel de tipificar diretamente atos ilcitos, observando cnones de segurana jurdica inerentesao princpio da legalidade. Os chamados ilcitos atpicos, tratados por ATIENZA e MANERO (2000), v.g,desvio de poder ou de finalidade, abuso de direito, entre muitos outros, podem comportar concreojudicial a partir de princpios jurdicos. Todavia, ilcitos submetidos ao Direito Punitivo, cujas sanestranscendem a esfera das teorias das nulidades, reclamam interveno estatal mediada por regras, ao

    abrigo da tipicidade das condutas proibidas, o que envolve a incidncia dos princpios como normasviabilizadoras do processo interpretativo correto.

    12 Veja-se MEDINA OSRIO (2002), ocasio em que busquei enfrentar e rechaar argumentosesgrimidos no sentido da suposta inconstitucionalidade da improbidade culposa.

    13 Sempre foi a tese de MARTINS JNIOR (2002).

    14 Ver MEDINA OSRIO (1999;2002). Esse dolo se diferencia do penal to-somente em razode estar ligado tipicidade do Direito Administrativo Sancionador, a qual, nas relaes de especialsujeio, como so estas disciplinadas na Lei 8.429/92, resulta mais abrangente e aberta, exposta a umalegalidade mais flexvel. O dolo administrativo pressupe, pois conhecimento e vontade, mas no serefere s figuras penais, e sim s figuras jurdico-administrativas.

    15 Sustentei essa tese logo na primeira edio da obra na qual lanava observaes em torno Lei 8.429/92. Confira-se em MEDINA OSRIO (1997), quando tracei paralelo com a ilegalidade abusiva

    constatada no julgamento de procedncia de um mandado de segurana, destacando que tal juzo deprocedncia no acarretaria, automaticamente, reconhecimento de indcios de improbidadeadministrativa.

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    operadores jurdicos16.

    A Lei 8.429/92 no pode ser banalizada, como tantas vezes se percebe,porque a hermenutica que se exige para sua aplicao requer uma srie de

    ponderaes e cautelas, em obedincia ao devido processo legal punitivo.Porm, tampouco resulta vivel aceitar o outro extremo, vale dizer, oesvaziamento dessa legislao em relao s altas autoridades da Nao,entre as quais esto os agentes polticos. Sobre essa tendncia, cabe envidaresforos para recuperar o princpio republicano, envolvendo todos os agentespblicos no ambiente probo e saudvel que se pretende construir neste pas.Cabe, pois, uma digresso sobre o alcance do princpio da responsabilidadeem nosso sistema constitucional.

    3. PRINCPIO DA RESPONSABILIDADE NO FUNCIONAMENTO DOSISTEMA JUDICIAL

    O princpio da responsabilidade dos agentes pblicos tem razesconstitucionais, republicanas e democrticas. Cuida-se de fixar limites ao poderdaqueles que detm competncias sobre liberdades, direitos e patrimnio doscidados. Agentes irresponsveis, com imunidades absolutas, no combinamcom o iderio do regime democrtico ou com os valores que embasam acultura republicana. Essa tem sido a tnica no pensamento polticocontemporneo, com reflexos nas teorias constitucionais e nas teoriasdemocrticas. A legitimidade do poder poltico advm, em grande medida, dos

    nveis de responsabilidade a que se encontra submetida a autoridade pblicacompetente17.

    As responsabilidades, no entanto, podem ser tratadas de mododiferenciado, como tm sido historicamente, em face de prerrogativas ougarantias conferidas a certas autoridades pblicas, em razo de suasimportantes funes. Essas diferenciaes afetam os mais variadosinstrumentais de responsabilizao dos agentes pblicos, alcanando,inclusive, a prpria eficcia do sistema normativo, no qual se insere a Lei Geralde Improbidade. necessrio contextualizar a tipologia das responsabilidadesdos agentes pblicos, at mesmo porque as percepes jurdica e sociolgicanem sempre coincidem quando do diagnstico acerca da densidade normativa

    16 Insisto que o regime jurdico do Direito Administrativo Sancionador, por ostentar aplicabilidadesubsidiria e simtrica dos princpios e regras do Direito Penal, eis que ambos integram a categoriasuperior do Direito Punitivo constitucionalizado, acarreta maiores nveis de segurana jurdica ao trato daimprobidade administrativa. Reporto-me, para o rastreamento dessa orientao, aos trabalhosestampados em MEDINA OSRIO (1999; 2000; 2003; 2005).

    17 Entre muitos autores que se poderia citar, na ilustrao das profundas relaes entredemocracia, cultura republicana e responsabilidade dos agentes pblicos, vale recordar dos seguintes:BJAR (2000); FERREIRA DA CUNHA (1998); FERNNDEZ RODRIGUEZ (1990); GARCA DEENTERRA (1998); PASTOR e CARANS (1996). Pode-se notar que mesmo nas Monarquias

    Constitucionais contemporneas, como o caso da Espanha ou, em maior medida, da Inglaterra, vigeuma cultura republicana, sempre a exigir graus mximos de responsabilidade de todos os funcionriospblicos.

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    do princpio da responsabilidade18.

    H imunidades, como as dos parlamentares19, que se constituemfreqentemente em instrumentos de blindagem de responsabilidades, embora

    sejam essenciais aos regimes democrticos, na medida em que devemresguardar o exerccio livre das funes, traduzindo prerrogativas da cidadania.Advogados tambm contam com imunidade20 para atuar em juzo ou fora dele,no desempenho das elevadas atribuies pblicas que ostentam, mas noesto imunes aos processos, tanto que no raro se ver um advogadosubmetido a processo, at mesmo injusto, ao abrigo de interpretaodemasiado elstica da imunidade. Altas autoridades gozam de prerrogativa deforo21 e tal circunstncia no paralisa, teoricamente, suas responsabilidades,ainda que, na prtica, ela inviabilize a cobrana concreta de certos preceitos

    jurdicos ou ticos. Juzes e membros do Ministrio Pblico gozam deimunidades para o desempenho de suas tarefas, o que significa dizer quecontam com margens de erro juridicamente tolerveis, circunstncia que vemreforar o arcabouo da independncia funcional, mas, nem por isso, soirresponsveis perante a sociedade. verdade que, na prtica, apenasrecentemente comeam a surgir cobranas mais fortes no sentido de ampliar

    18 Embora no expresse concordncia com todos os critrios classificatrios adotados pelaautora, vale consultar o trabalho especializado de NICIDA GARCIA (2004), quando cuida daresponsabilidade dos agentes pblicos e algumas de suas tipologias. No tocante ao ato de improbidade, aautora busca uma categoria autnoma para fins de classificao, deixando de enfrentar a proposta tericade enquadramento no Direito Administrativo Sancionador, o que no desnatura a importncia de outrasclassificaes corretamente adotadas no bojo da obra. O importante reparar na variedade de esquemas

    classificatrios disponveis.

    19 Confira-se o art.53 da Constituio Federal de 1988 (CF) e seus pargrafos. Vale observar asociologia dessa imunidade e a contraditria aplicabilidade prtica que vem ganhando. Ademais, aimunidade formal constitui um obstculo perverso apurao de responsabilidades, porquanto impedeque o parlamentar seja processado sem a autorizao de sua Casa de origem, mesmo que se trate decriminalidade comum. O iderio de proteo das funes acabou absorvido pela proteo s pessoas, emdetrimento do princpio da responsabilidade. Cuida-se de distoro de contedo prtico, mais do quenormativo.

    20 A Lei Federal 8906/94, em seu art. 7, 2, estatui: O advogado tem imunidade profissional,no constituindo injria, difamao ou desacato punveis qualquer manifestao de sua parte, noexerccio de sua atividade, em juzo ou fora dele, sem prejuzo das sanes disciplinares perante a OAB,pelos excessos que cometer. Veja-se, sobre o tema, MEDINA OSRIO (1995). Penso que, poca,logrei desenvolver raciocnio que compatibiliza a imunidade com o princpio da responsabilidade, porque a

    conexo das palavras inviolveis com o exerccio das funes representa o vnculo etiolgicoindispensvel garantia funcional. Sem essa conexo, evidentemente, o profissional estar buscandocobertura institucional para atos estritamente pessoais, inexistindo base para a imunidade. O mesmoraciocnio h de aplicar-se, todavia, a membros do Poder Judicirio ou do Ministrio Pblico, pois suasimunidades tm idntica natureza: exigem conexo entre palavras orais ou escritas e o exerccio idneodas funes.

    21 Dotadas de prerrogativa de foro criminal, conforme os dispositivos constitucionais pertinentes,constam numerosas autoridades pblicas, tais como prefeitos, juzes, membros do Ministrio Pblico,presidente, vice-presidente, deputados federais, senadores, ministros do STF, procurador-geral daRepblica, os ministros de Estado e os comandantes da Marinha, do Exrcito e da Aeronutica, osmembros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da Unio e os chefes de misso diplomticade carter permanente, Governadores dos Estados e do Distrito Federal, os desembargadores dosTribunais de Justia dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estadose do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do

    Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municpios e os do Ministrio Pblicoda Unio, alm dos juzes federais. Vejam-se, a propsito do assunto, os arts. 29 X; 96, III; 102, I, (b), (c);52, I; 105, I, (a); 108, I, (a), todos da CF.

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    as responsabilidades das altas autoridades, includas aquelas das carreiras doMinistrio Pblico e Judicirio, mas, no plano terico-normativo, aresponsabilidade existe e sempre existiu, sobretudo a partir da Carta de198822.

    A responsabilidade dos agentes pblicos projeta-se de variadasmaneiras. No se ignora a existncia de diferenas de tratamento em relao adistintas espcies de agentes pblicos. H uma tipologia de agentes pblicos,dentro da qual se sobressaem os agentes polticos, dotados de autonomia eliberdade decisrias, alm de estatutos jurdicos especficos23.

    O prprio controle jurisdicional dos atos estatais integra a idia deresponsabilidade do Estado perante a cidadania, incluindo suaresponsabilidade patrimonial objetiva, mas no este o objeto do presentetrabalho. A responsabilidade civil lato sensu tambm vem tona quando se

    cuida do princpio da responsabilidade. Intentam-se apurar prejuzos e deveresde ressarcimento, a partir de atos ilcitos praticados por agentes pblicos, sejano bojo de aes de regresso, seja no que concerne s aes diretas.Hipteses de dolo ou culpa autorizam essa responsabilidade do funcionrio,por previso expressa na Carta Magna, mas no cuido dessas situaes nopresente momento24.

    De que tipo de responsabilidade se pretende tratar aqui? Aresponsabilidade objeto da presente anlise situa-se no campo do DireitoPunitivo, mas uma especializao funcional do sistema. No planosancionatrio stricto sensu, existe a esfera penal, na qual se desenrolamprocessos com vistas imposio de sanes criminais, sendo raro, noobstante, que altos funcionrios pblicos venham a cumprir penas privativas de

    22 H, tambm, nveis hierrquicos diversificados de agentes pblicos. O princpio daresponsabilidade pode ser visto desde uma vertente terico-normativa ou sociolgica. Para essa ltima,quanto mais alta a esfera em que se situe o agente pblico, ao contrrio do que se poderia imaginar pelaleitura dos manuais ou textos legais, mais difcil a concretizao da responsabilidade. Para a vertentejurdica, os altos funcionrios pblicos devem ostentar elevadas responsabilidades, talvez as maiselevadas de todas; para a sociolgica, eles so, como se sabe, os mais difceis de serem alcanados,engrossando cifras ocultas de impunidade. Resulta necessrio inverter essa lgica subversiva,redimensionando, no plano real, o prprio princpio da responsabilidade. Os mais importantes devem seros mais cobrados; dos menos importantes, deve-se alimentar menos expectativas de cobranas. Ora,hoje em dia acontece exatamente o contrrio. O princpio da responsabilidade sofre, assim, o impacto dadesmoralizao decorrente da impunidade.

    23 Leia-se MEIRELLES (1997). Dos agentes polticos so cobrados deveres funcionaisteoricamente mais rigorosos, embora, na sociologia dos rgos controladores, no se perceba umavocao to intensa busca e cobrana dessas responsabilidades. natural constatar significativosnichos de impunidade no universo dos agentes polticos.

    24 Conferir: art. 37, caput, CF A administrao pblica direta e indireta de qualquer dosPoderes da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios obedecer aos princpios delegalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficincia e, tambm, ao seguinte (...) 6 Aspessoas jurdicas de direito pblico e as de direito privado prestadoras de servios pblicos responderopelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regressocontra o responsvel nos casos de dolo ou culpa. H vrios mecanismos judiciais disponveis, paraapurao dessa responsabilidade: aes de ressarcimento; aes populares; aes civis pblicas. Sem

    embargo, no essa espcie de responsabilidade que se pretende abordar, embora esteja ela implcitana categoria analisada e possa ilustrar lacunas preocupantes nas escassas estatsticas oficiais do sistemajudicial.

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    liberdade. Dessa responsabilidade tambm no cuidarei agora, embora tenhauma afinidade terica com o Direito Penal, no exame de suas conexes ecomplexas interfaces com outros ramos jurdicos. H a esfera administrativastricto sensu, em que o Direito Disciplinar encontra seu locus, mas, nesse caso,

    tambm existem notveis lacunas em relao aos funcionrios dos maiselevados escales, porque so eles que constituem as ltimas instnciasdessas esferas. Alm disso, o poder disciplinar do Estado, despido de tradiode juridicidade plena, tem-se prestado a distores, abusos e omissesemblemticas, donde a fragilidade dessa importantssima instncia de controle.Penso que haver lugar adequado para o exame dessas esferas deresponsabilizao dos agentes pblicos, embora o disciplinar seja espcie dognero Direito Administrativo Sancionador e venha a ser afetado, seguramente,por uma condenao judicial lanada contra ato mprobo25.

    Do ponto de vista abstrato, a Lei 8.429/92 atinge todos os agentespblicos brasileiros, com suas diversificadas modalidades. A possibilidade deimputao de ato de improbidade aos agentes pblicos decorre do prprioEstado Democrtico de Direito. Cuido, aqui, do campo da improbidade, no qualh uma pretenso punitiva judicializada, com perspectivas de severas sanes,exposto ao Direito Administrativo Sancionador que regula esse poder estatal.Sobre essa Lei, mngua de estatsticas nacionais, no se tem um balanocorreto, mas possvel sinalizar uma promissora vontade poltica do MinistrioPblico brasileiro no enfrentamento do problema da m gesto pblica, comajuizamento de aes de repercusso, multiplicao de investigaes einvestidas legtimas contra altas autoridades da Nao, apesar da disperso de

    foco e de energias e do dficit de unidade institucional, caractersticas que tmfragilizado, de algum modo, essa importante instncia. dessa Lei quepretendo cuidar, com as definies j expostas, na esteira de uma largadedicao ao estudo da matria, por vislumbr-la, ainda, com numerosaspotencialidades inexploradas, especialmente em segmentos infensos densidade jurdica do princpio da responsabilidade26.

    25 A tese predominante na Europa, apesar da divergncia de RINCN (1989), a de considerara sano disciplinar como espcie de sano administrativa. Tal a orientao prevalente no TribunalConstitucional Espanhol e , precisamente, esta minha posio, como se l em MEDINA OSRIO (2000),ocasio em que expus os fundamentos e os julgados que embasam a orientao aqui defendida,

    novamente sinalizada na 2a edio da mesma obra (2005). No preciso falar de outras esferas,igualmente importantes, como a da responsabilidade puramente poltica, curiosamente uma das maispolmicas, viciada por numerosos problemas e, no obstante, eficaz no tocante aos objetivos a que seprope: cassao de mandatos eletivos; produo de renncias; e, em menor escala, tem-se ainda acassao ou suspenso de direitos polticos. Tal instncia, paradoxalmente, talvez seja a mais produtivadesde 1988, com relao aos altos cargos pblicos. Esta instncia no tem, todavia, competnciasintensas no trato da matria objeto deste trabalho, porque no atinge, via de regra, juzes e peritos, salvose houvesse uma Comisso Parlamentar de Inqurito para apurar gigantescos esquemas fraudulentos,com envolvimento de parlamentares e outras autoridades. H, tambm, a responsabilidade social, moral,que se submete, sobretudo, fora da opinio pblica. Todavia, dependendo do agente pblico queestiver sendo acusado, pode haver esquemas mais ou menos eficazes de blindagem, geralmentecosturados no campo empresarial. De qualquer modo, essa responsabilidade perante a opinio pblicatem funcionado notavelmente, com bons resultados. As reportagens investigativas, produzidas comqualidade crescente, geram outras aes institucionais, no raro de parte do Ministrio Pblico ou da

    Polcia, com o que os agentes pblicos so melhor fiscalizados.26 Alis, numa obra corajosa, TERAROLLI (2002) aponta a responsabilidade dos membros do

    Ministrio Pblico por atos de improbidade. verdade que, no plano material, a fundamentao do autor

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    4. LAUDO JUDICIAL E MAU EXERCCIO DA FUNO PBLICA

    No houvesse amplo espao impunidade em determinadossegmentos, talvez fosse irrelevante aduzir que a confeco de laudos periciaistraduz exerccio de funo pblica, a qual resulta submetida aos princpiosconstitucionais que presidem a Administrao Pblica. Esta Administrao,mencionada no art.37, caput, da Magna Carta, no apenas aquela referenteao Poder Executivo, mas tambm a de qualquer dos Poderes da Repblica.Sempre que houver funo pblica em jogo, os princpios da legalidade,impessoalidade, moralidade, publicidade, eficincia, entram em cena.

    Alm de traduzir exerccio de funo pblica, o laudo traduz atoessencial funo jurisdicional, quando reputado necessrio. Uma premissa

    importante diz respeito essencialidade do laudo pericial liberdade intelectuale cognitiva do juiz e, em ltima instncia, sua independncia funcional e aopredicado de imparcialidade. Um juiz auxiliado por perito inidneo, seja emrazo de crnica ineficincia, seja por fora de parcialidade, no temindependncia para decidir. A responsabilidade do perito to alta quanto a do

    juiz, em razo dessa proximidade das respectivas funes. Os princpios eregras que dominam a atividade pericial partem de um substrato axiolgicoalimentado pela essencialidade do perito Administrao do sistema judicial27.

    peca por no esquadrinhar os requisitos do ato mprobo, confundindo algumas transgresses legalidade de duvidosa pertinncia, diga-se en passant com ofensa ao dever de probidade. Porm, o acertomaior do autor , sem dvida, posicionar o problema e apontar a possibilidade de os agentes do MinistrioPblico praticarem atos mprobos, inclusive na concretizao de atos tpicos de suas funesinstitucionais. A mesma lgica se aplica aos juzes e peritos, evidentemente, estes ltimos em maiormedida.

    27 Sobre a interferncia do laudo pericial na liberdade intelectual do juiz, observa-se otratamento rigoroso da matria. No h dvida de que ao perito corresponde o dever de veracidade naprtica de seus atos de ofcio, em medida mais intensa do que o normal, porque preenche ele lacuna nocampo cognitivo direto do juiz, que nele confia, sendo, por isso, auxiliar da administrao da justia. que do perito se espera, como pondera DALLAGNOL (2000), quando menos, sejam suas informaesfidedignas. Pode que se equivoque em uma vistoria, por exemplo, mas o que no se admite que esteequvoco nasa por impercia, negligncia ou imprudncia. Provavelmente sero os dois primeiroselementos os que mais comumente se exibiro: o perito, em verdade, termina por demonstrar-se um

    imperito; ou, mesmo entendido sendo, em determinado ponto falha por no conhecer o que deveria. Ouno, no obstante a cincia, porta-se de modo desleixado, terminando por no informar o que devia ouinformando o que no encontra sustento na realidade. A inabilitao para outras percias sano queindepende de prejuzo, visto que se conecta, em realidade, quebra de confiana juiz-perito. Nessa linhade raciocnio, o perito, sendo um tcnico, deveria conhecer suficientemente bem sua especialidade, sobpena de arcar com as responsabilidades devidas. Assim, arremata BARBI (1998): Se, por deficinciadesses conhecimentos, (o perito) informa de modo errado, agiu com falta de percia que a funo exige.O que so, enfim, as tais informaes inverdicas prestadas pelo perito, que do causa s sanessumariamente descritas no art.147 do CPC? Como ponderam NERY JNIOR e ANDRADE NERY (2001),tratam-se de dados fornecidos pelo perito que no correspondem realidade dos fatos, bem como sconfiguraes tcnicas e cientficas da rea de conhecimento do perito. Tambm ocorrem quando o peritoemprega frmulas incorretas ou elementos inidneos para chegar ao resultado da percia. A infrao denatureza formal, independe de evento danoso. Verificada a infrao, o juiz proferir deciso inabilitando operito para o exerccio de sua atividade, em processo judicial, por dois anos. O informar de modo erradocaracteriza-se, pois, pela omisso ou afirmao errneas, cujos contedos so naturalmente variveis,

    abarcando fatos ou configuraes tcnicas ou cientficas da rea de conhecimento do perito. Queminforma apenas parcialmente, sem adentrar detalhes ou aspectos fticos ou tcnicos relevantes,desvirtuando e distorcendo o sentido do ato pericial, induzindo o julgador em erro, pode ser aqui

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    Os peritos judiciais assumem voluntariamente elevados deverespblicos, assimilando os rigores de uma relao de sujeio especial mantidacom o Estado. A propsito, recorda DINAMARCO, dizem-se auxiliareseventuais do Poder Judicirio os sujeitos que, sem pertencerem aos quadros

    da Justia, so chamados a colaborar com esta, caso a caso (peritos,avaliadores, intrpretes, etc.). No tm vnculo permanente com o PoderJudicirio e no so sequer obrigados a aceitar os encargos que o juiz lhescomete; mas, uma vez aceito o encargo, fica o auxiliar eventual subordinado ao

    juiz no processo e adstrito s exigncias deste e da lei quanto lisura etempestividade do servio de que incumbido. Alguns deles so profissionaisliberais, servindo como peritos ou arbitradores no processo civil em geral, oucomo juizes leigos, rbitros ou conciliadores perante os juizados especiaiscveis; h tambm os auxiliares eventuais que no necessitam de formaoacadmica, como os depositrios particulares, avaliadores ou intrpretes. Taisso os auxiliares de encargo judicial, que sempre so pessoas fsicas. Da porque o fato de um perito ser um profissional que no integra os quadros doJudicirio no o exime das elevadas obrigaes pblicas, inclusive daobedincia ao dever de probidade administrativa que emerge tanto da CartaMagna (art.37, par.4o), quanto da legislao infraconstitucional (Lei 8.429/92).Ao contrrio, o perito, diz o mesmo autor antes citado, um sujeito processualinserido no processo por escolha e nomeao do juiz em cada caso (CPC, art.421). Da ser um auxiliar eventual da Justia. indispensvel para o exame depessoas ou coisas, sempre que o fato a investigar dependa de conhecimentostcnicos especializados, dos quais o juiz no portador (arts. 145 e 335). Da aexigncia legal de que a escolha recaia em profissionais de nvel universitrio

    (art. 145 1) e a dispensa do perito em caso de insuficincia deconhecimentos tcnicos ou cientficos (art. 424, I). Nomeiam-se peritos,conforme o caso, portadores de conhecimentos de engenharia, economia,medicina, odontologia, contabilidade etc, - ou at mesmo de direito. Como todosujeito processual (ainda que secundrio), o perito tem deveres no processo:deveres quanto ao prazo para apresentar o laudo (arts. 146 e 421), quanto aodesempenho tecnicamente correto de seu encargo (art. 422) e, naturalmente,quanto probidade e imparcialidade nesse desempenho (art. 422). Em caso deinformaes inverdicas, assim prestadas por dolo ou culpa, o perito responde

    enquadrado. Quem omite elementos necessrios, abstraindo caminhos relevantes e idneos na avaliao

    do objeto da peritagem, incorre na transgresso aqui ventilada, dizer, fornece informao despida deveracidade, a qual no significa, pois, percentual absoluto de acerto, mas comprometimento com aplausibilidade. Um laudo veraz aquele que reflete juzos tcnicos fundamentados e alicerados naCincia e nos fatos, vinculado pretenso idnea de plausibilidade. Pode-se contestar e at mesmodesconsiderar esse laudo, por razes amparadas em outros estudos tcnicos, mas no deixar ele de serveraz to somente porque no fora acolhido pelo juiz. O laudo incorre nos vcios do art.146 do CPCquando resulta despido de plausibilidade ou verossimilhana cientfica, quando resulta ser fruto de culpaou dolo do profissional responsvel, por conta das distores nele detectadas. Diferentemente, o laudoteratolgico o monstruoso do ponto de vista tcnico ou cientfico. Cuida-se daquela aberrao chocante,de um erro gritante e escabroso, absurdo e manifestamente intolervel. Teratologia expressa, sobretudo,o sentido de anormalidade em seus extremos. Na fisiologia, o tratado ou histria das monstruosidadesorgnicas, o que rompe, de forma abrupta e violenta, o equilbrio normal do corpo. Da por que os laudosteratolgicos, ao contrrio daqueles contaminados apenas por dolo ou culpa, so viciados por falhasgrosseiras, escancaradas, manifestas, o que implica uma valorao adicional em jogo. A teratologia podeser produto de dolo ou culpa, mas agrega o elemento exterior da visibilidade ostensiva, sua marca

    peculiar. Erro grosseiro, nessa medida, o engano facilmente constatvel, visvel de tal modo que oagente resta impossibilitado de justificar-se ou se desculpar quanto verdade por ele falseada oudeturpada, voluntria ou involuntariamente.

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    civilmente perante o prejudicado, fica inabilitado por dois anos a realizarpercias em outros processos e incorre em crime de falsa percia28, semprejuzo, vale acrescer, de outras sanes cabveis. A escolha discricionria do

    juiz, vale igualmente lembrar, aumenta a responsabilidade da autoridade

    judiciria em termos de controle da probidade, visto que o perito pessoa dasua confiana tcnica.

    Na esteira do dever de probidade administrativa, adentrando a prpriamoralidade inscrita no art.37, caput, da Magna Carta, o legisladorinfraconstitucional estatuiu, no art. 146 do Cdigo Processual Civil, que operito tem o dever de cumprir o ofcio, no prazo que Ihe assina a lei,empregando toda a sua diligncia; pode, todavia, escusar-se do encargoalegando motivo legtimo. No art. 147, o mesmo diploma processual fixa: Operito que, por dolo ou culpa, prestar informaes inverdicas, responder pelosprejuzos que causar parte, ficar inabilitado, por 2 (dois) anos, a funcionarem outras percias e incorrer na sano que a lei penal estabelecer. Nestaltima referncia, o legislador no apenas abre a porta da via penal, como,implicitamente, de todo o sistema punitivo.

    A sano judicial de inabilitao, imponvel diretamente pelo juiz doprocesso ao perito, traduz controle do mau exerccio da funo pblica por esteltimo e no afasta a incidncia das sanes disciplinares cabveis, no campoda tutela interna corporis do profissional, por seu rgo de classe. De outrolado, a meno responsabilidade civil lato sensu corolrio lgico do modelode repartio de competncias, at porque envolve a perspectiva do direitoindividual da parte lesada, a qual pode ajuizar as aes que julgar cabveis.Fica, pois, evidentemente, salvaguardada qualquer outra esfera punitivalegalmente habilitada a interferir e tutelar o fato ilcito, dentro de sua ticapeculiar. O ordenamento jurdico consagra mecanismos diversificados esimultneos de tutela do bem jurdico em exame. A tutela da probidadeencontra respaldo constitucional direto no art.37, par.4o, da Magna Carta,alcanando, inegavelmente, os peritos. H uma nfase, de qualquer sorte, naobrigatoriedade de os peritos atuarem de modo tico e imparcial. No art. 422do CPC, se diz que o perito cumprir escrupulosamente o encargo que lhe foicometido, independentemente de termo de compromisso. Os assistentestcnicos so de confiana da parte, no sujeitos a impedimento ou suspeio

    (alterado pela L-008.455-1992).O laudo pericial pressupe a honestidade, imparcialidade e certos nveis

    bsicos de preparo funcional do perito, o que envolve a obedincia a regrasjurdicas elementares ligadas interdio arbitrariedade dos funcionriospblicos, motivao e transparncia. Tais normas repercutem nos deverespositivos e negativos dos peritos. Trata-se de exigir desses profissionais certosdeveres pblicos, marcadamente aqueles relacionados probidadeadministrativa, requisito geral de toda e qualquer funo pblica. Tanto aatuao escrupulosa quanto a diligente, em correspondncia com o dever deprestar informaes verdicas, podem integrar, desde que devidamente

    28 Confira-se DINAMARCO (2002).

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    valoradas, os crculos concntricos da moralidade e probidadeadministrativas29.

    Embora tambm gozem de prerrogativas inerentes s funes,

    ostentando liberdades, autonomias e considerveis margens de erroprofissional, os peritos, enquanto auxiliares do Judicirio, possuemresponsabilidades por seus erros, equvocos ou transgresses, intencionais ouno. Cuida-se de agentes pblicos para fins de responsabilidade, podendoincorrer, inclusive, no cometimento de crimes privativos de funcionriospblicos30.

    Os atos que os peritos praticam, na realizao das tarefas inerentes sfunes, configuram produto do exerccio de funo pblica e esto jungidos aodever de probidade. Os peritos tm independncia, autonomia e imparcialidadena concretizao de suas funes, eis que emitem laudos tcnicos, mas por

    isso mesmo ficam vinculados a deveres pblicos imanentes natureza dasfunes desempenhadas. As concluses dos laudos no vinculam os Juzes31,

    29 A propsito da responsabilidade do perito, DINAMARCO (2002) lembra que, como agentespblicos que so, os auxiliares da Justia devem atuar com impessoalidade, tanto quanto o juiz, uma vezque pblico o servio prestado e, quando no exerccio de suas funes, o Estado quem atua atravsdeles. Conseqncia direta da impessoalidade o dever de imparcialidade e correlata possibilidade deserem recusados pela parte, com fundamento em suspeio ou impedimento. Outra conseqncia daimpessoalidade que, pelos atos dos auxiliares da Justia de qualquer categoria, quando realizados noexerccio da funo, responde o Estado objetivamente. Correlativamente, respondem eles perante oEstado sempre que haja sido ao menos culposa a conduta do causador do dano. O Estado respondeinclusive pelos atos dos auxiliares eventuais como o perito, o intrprete, o arbitrador ou o conciliador, que

    no-obstante serem profissionais autnomos, na prestao do servio para o qual so convocadosexercem funo estatal. A lei impe ainda a responsabilidade civil dos auxiliares da Justia perante aparte a quem hajam causado dano. Explicitamente, essa responsabilidade atribuda ao escrivo e aoperito (CPC, arts. 144 e 147), ao depositrio e ao administrador (art. 150) e ao intrprete (art. 153).Todavia, a responsabilidade civil extracontratual categoria de direito substancial impondo-se a todos, oque conduz a concluir que todos os auxiliares da Justia so responsveis pelos danos que causarem.Eles so tambm possveis sujeitos ativos de certos crimes prprios dos funcionrios pblicos, como aconcusso, a corrupo passiva, a prevaricao etc. Os auxiliares eventuais, que no integram quadroalgum, so sujeitos a regimes especficos em relao a suas responsabilidades, mas sem subordinao aregras estatutrias; pelo aspecto penal, eles podem ser sujeitos ativos daqueles mesmos crimes e aindada falsa percia etc. Convm lembrar, evidentemente, que a quebra da imparcialidade nem sempreresulta afervel no rol dos impedimentos ou suspeies, visto que este consagra causas apriorsticas derecusa do funcionrio pblico. A parcialidade pode transparecer apenas e to-somente no laudo pericial,em vista dos critrios adotados ou omitidos. Nesse caso, no h falar-se em precluso de espciealguma, mas de validade da impugnao tempestiva e oportunamente deduzida, a partir do instante emque o juiz ou a parte prejudicada tomar cincia do ato eivado de desvio de poder.

    30 Vale reparar no tratamento penal ao conceito de funcionrio pblico, in verbis: art. 327 Considera-se funcionrio pblico, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou semremunerao, exerce cargo, emprego ou funo pblica 1 - Equipara-se a funcionrio pblico quemexerce cargo, emprego ou funo em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora deservio contratada ou conveniada para a execuo de atividade tpica da Administrao Pblica.(Includo pela Lei n 9.983, de 2000) 2 - A pena ser aumentada da tera parte quando os autores doscrimes previstos neste Captulo forem ocupantes de cargos em comisso ou de funo de direo ouassessoramento de rgo da administrao direta, sociedade de economia mista, empresa pblica oufundao instituda pelo poder pblico. De outro lado, quanto responsabilidade por crime de falsapercia, falso depoimento como perito, veja-se o disposto no art. 342 Fazer afirmao falsa, ou negarou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intrprete em processo judicial, ouadministrativo, inqurito policial, ou em juzo arbitral: Pena - recluso, de 1 (um) a 3 (trs) anos, e multa.

    31 O princpio do livre convencimento do Juiz, que o libera de vinculao estrita a laudospericiais, consagrado tanto no Direito Processual Civil quanto no Direito Processual Penal, eis quepertence mesmo ao campo constitucional, no qual as autoridades judicirias gozam de independncia

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    mas resultam necessariamente balizadas pelo princpio da responsabilidade deseus autores, eis que espelham valoraes de contedo tcnico, com altarelevncia para o correto deslinde das matrias controvertidas. Os peritosinterferem, portanto, fortemente na Administrao da Justia, ostentando

    imensas responsabilidades. Deles dependem, em grande medida, a liberdadeintelectual e a autonomia decisria dos juzes, nas causas que reclamampercias32.

    No se h de imaginar que os peritos estejam imunes aos equvocos,nem se pretendem fomentar ferramentas desumanas de cobrana. Aocontrrio, laudos so impugnados diariamente, assim como sodesconsiderados. Nem por isso, obviamente, haver responsabilidade pessoaldos peritos, em sendo constatado equvoco. Se certo que ningum pode serautomaticamente responsabilizado por ilegalidades ou equvocos funcionais,sem uma gradao correta da ilicitude do ato, tambm inegvel quetransgresses escancaradamente graves, teratolgicas, absurdas, irrazoveis,at mesmo com aparncia de m f, podem ensejar suporte para respostaspunitivas ou ressarcitrias. A autonomia dos peritos repousa nos estreitoslimites da Cincia a que esto submetidos, ao abrigo do dever defundamentao de seus atos, circunstncia aplicvel, mutatis mutandis, aos

    juzes e outras autoridades semelhantes.

    Se no houver controle sobre os laudos abusivos, cabe ento cogitar aresponsabilidade dos juzes. Em ltima instncia, sempre caberia cogitar aresponsabilidade do prprio Estado. No h dvida de que juzes respondem,em tese, por atos de improbidade, em face de comportamentos funcionaisilcitos. Esta assertiva est de acordo com o pensamento exposto porsegmentos representativos de importantes instituies democrticas, que seposicionam contrariamente restrio do alcance da Lei 8.429/92 aos agentespblicos comuns, dela excluindo os agentes polticos. Nesse caso, tanto aAssociao Nacional dos Procuradores da Repblica, quanto a AssociaoNacional do Ministrio Pblico ou a Associao dos Magistrados Brasileiros

    funcional. No campo do CPC, no art. 436, resulta estatudo que o juiz no est adstrito ao laudo pericial,podendo formar a sua convico com outros elementos ou fatos provados nos autos, o que significa umaliberdade regrada e fundamentada, aliada a uma responsabilidade pela admisso de laudos ilcitos ouabusivos. Consulte-se, a propsito do assunto, OLIVEIRA (1999).

    32 O VII Congresso Internacional de Direito de Danos, ocorrido em Buenos Aires, no perodo de2, 3 e 4 de outubro de 2002, em sua comisso n 9, intitulada de Responsabilidade dos profissionais dodireito, chegou s seguintes concluses no que toca aos peritos judiciais: I. Responsabilidad de losperitos 11. El perito judicial presenta un doble carcter: es un profesional y un auxiliar de la Justicia. Comoprofesional debe respetar la lex artis y como auxiliar de la Justicia el encargo judicial y las normasprocesales.- 12. La responsabilidad del perito, auxiliar de la Justicia, es extracontractual. En cambio, ladel consultor tcnico o perito de control, es contractual. En el primer caso puede generar laresponsabilidad del Estado, en el segundo no.- 13. En principio la responsabilidad del perito judicial estenmarcada dentro del anormal funcionamiento de la Justicia, y excepcionalmente, cuando haya sidocausa o concausa adecuada del error del juez, en el mbito del error judicial. Disponvel em:http://www.aaba.org.ar. Data de Acesso: 10.11.2005. Na mesma senda, o Conselho Profissional deCincias Econmicas de Crdoba, em curso de capacitao para peritos judiciais desenvolvido em 2004,Mdulo I, de 20 de agosto de 2004, estabeleceu as seguintes obrigaes aos peritos judiciais: Lasobligaciones judiciales del perito: - Razonabilidad: brindar los fundamentos de hecho y cientficos que

    sustentan el informe. - Congruencia: guardar relacin entre las premisas y conclusiones. - Buena fe: nollevar a engao a las partes o al juez. - Diligencia: presentar el informe en el plazo fijado por el juez.Disponvel em http://www.cpcecba.org.ar/ Data de Acesso:10.11.2005.

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    sustentam a inviabilidade da tese de se restringir o alcance da Lei Geral deImprobidade, porquanto isonomia e a razoabilidade seriam feridas ao seretirarem os agentes polticos do alcance dessa normativa republicana.Ademais, a responsabilidade dos juzes um dos pilares mais antigos da

    civilizao33.

    E por qual razo os juzes, tanto quanto os membros do MinistrioPblico e outros agentes polticos, esto submissos normativa da Lei8.429/92? Ora, como sustento desde 199734, essa legislao cuida de atos detodo e qualquer Poder da Repblica. No h imunidades. Atos administrativos,

    jurisdicionais ou legislativos demandam critrios tcnicos de correto exercciodas funes pblicas tpicas. O mau exerccio das funes acarreta abertura sresponsabilidades e s sanes correspondentes. Uma deciso judicialteratolgica, absurda, francamente arbitrria, desprovida de fundamentoselementares, cerceando, restringindo ou simplesmente afetando direitos,remete ao problema de m administrao da justia35. O dever de probidadediz respeito ao exerccio da funo administrativa, legislativa e jurisdicional,dentro de padres corretos e minimamente ajustados s regras institucionaisvigentes. Qualquer dessas funes h de ser exercida com probidadeadministrativa.

    4.1. LEALDADE INSTITUCIONAL NO CUMPRIMENTO DOS DEVERES DEOFCIO

    Observada a submisso de todos os agentes pblicos ao princpioconstitucional da responsabilidade, num ambiente republicano, bem assim,especificamente, aos cnones da Lei 8.429/92, cabe examinar quais osdeveres pblicos fundamentais que ho de ser violados para configurao deum ato mprobo. Nesse caso, foroso reconhecer que um amplo espectro dedeveres pode ser cobrado dos operadores jurdicos e dos funcionrios pblicoslato sensu. Para fins de enquadramento na categoria da improbidadeadministrativa, no obstante, o enfoque h de ser concentrado, situando-se osdeveres dos peritos e dos juzes no plano da lealdade institucional e, naseqncia, em suas dimenses fundamentais: (a) dever de honestidade e (b)dever de eficincia. Tais deveres esto interligados e, no contexto adequado,podem, inclusive, ser cobrados simultaneamente de funcionrios pblicos cujaineficincia aparea como suporte ou fachada da desonestidade. A valoraodesses deveres, no bojo da Lei Geral de Improbidade, que acarreta o suporteftico e normativo para desencadeamento de investigaes e processosancionador pela prtica de atos mprobos, os quais esto conectados ao

    33 Leia-se o histrico produzido por SOUZA LASPRO (2000), o qual posiciona aresponsabilidade dos magistrados j no Direito Romano, alastrando-se como fonte de evoluo dos maisdiversos ordenamentos jurdicos. Na Espanha e em Portugal, influenciados por essa tradio, configurou-se como infrao do magistrado no apenas a clssica hiptese de enriquecimento ilcito, mas tambm ashipteses nas quais houvesse denegao indevida de direitos, exigindo-se, ainda, prudncia do julgador.

    34 Ver MEDINA OSRIO (1997;1998; 1999).

    35 Nesse sentido o pensamento de NIETO (2005).

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    dever de probidade administrativa, o ncleo desta reflexo.

    Lealdade, segundo corretamente anotam os comentaristas do vernculojurdico, vem do latim legalitas, dizer, o mesmo que fidelitas, esboando as

    noes de confiana, sinceridade e conformidade com as leis. No plano tico, alealdade expressa o iderio de coerncia do indivduo consigo mesmo; noplano jurdico, cuida-se da adequao ordem estabelecida, externa, social oupoltica. Ope-se a lealdade falsidade. Porm, no terreno jurdico, o dever delealdade est imanente ao princpio da boa f. No campo do DireitoAdministrativo, dever bsico dos funcionrios pblicos obedecer lealdade.Equivale fidelidade. Define-se a fidelidade como a vontade de agirconstantemente no interesse da administrao e de lhe evitar, tanto quantodependa do sujeito, todo dano, perigo ou diminuio do prestgio. aobrigao de operar no interesse exclusivo da administrao. Todo empregadodeve lealdade ao patro que lhe contratou. O funcionrio que desempenha asfunes superficialmente, passageiramente e sem energia, age contra o dever,mesmo quando executa o que lhe ordenado36.

    O dever de lealdade no guarda nenhuma conexo necessria comatitudes transgressoras intencionais, visto que depende, estruturalmente, dosdeveres exigveis dos funcionrios pblicos. O atendimento aos interessespblicos ou gerais pressupe, alis, uma srie de comportamentos quetranscendem os estreitos limites das infraes dolosas. A lealdade expressaum iderio que perpassa tanto os mais variados nveis de honestidade quanto,em medida pouco explorada, nveis significativos de eficincia funcional.Observe-se que a honestidade e a eficincia relacionam-se intimamente com odever de lealdade institucional, o qual encontra previso expressa somente noart.11, caput, da Lei Geral de Improbidade. Entretanto, no DireitoAdministrativo francs, na palavra de Maurice HAURIOU, ao tratar damoralidade administrativa, que a deslealdade institucional tem lugar, acomeos do sculo XX, como desvio funcional passvel de censura

    jurisdicional37.

    Nenhuma dvida pode haver no sentido de que a lealdade expressa esempre expressou a honra na funo pblica e seu oposto significaprecisamente uma espcie de desonra, a traio, numa medida especfica.

    Pode-se dizer que a lealdade um dever imanente ao princpio de moralidadeadministrativa (art.37, caput, CF), traduzindo uma srie de limites aos agentespblicos. Embora s esteja implcito na CF, e explcito na Lei 8.429/92, esse o dever fundamental dos agentes pblicos, no universo da moral administrativae, mais concretamente, da Lei Geral de Improbidade.

    O dever de lealdade institucional traduz a idia de confiana, inserida no

    36 Tais noes esto expressas em FRANA (1980:124-130), atravs das contribuies deMacedo e Cretella Jnior. Tambm no outro o sentido expresso na obra de GONZALEZ PREZ (1999;1996; 1995), no tocante moralidade que h de presidir a Administrao Pblica, o que implica vnculos

    de lealdade.37 o que se colhe das lies clssicas de HAURIOU (1931;1938), sendo importante registrar

    as conexes da deslealdade com a imoralidade administrativa.

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    regime democrtico, que baliza as relaes entre eleitores e escolhidos,administradores pblicos e administrados, funcionrios pblicos em geral e osdestinatrios de suas decises, jurisdicionados e juzes, governantes egovernados. Quebrada a confiana, pelo rompimento do dever de lealdade

    institucional, existe um grau mais elevado de violao da moral administrativa,tendo em conta a ponderao dos deveres em jogo38.

    Quando se faz presente a inobservncia do dever de lealdadeinstitucional, a partir da vulnerao do conjunto de normas que o compem, certo que se pode constatar um rompimento de regras sensivelmentevalorizadas. O dever de lealdade institucional traduz a observncia obrigatriade uma srie de normas essenciais ao vnculo que o agente mantm com osetor pblico. A essencialidade das normas ao vnculo institucional traduz suaimportncia superior no universo axiolgico. Essas normas se inserem nocrculo da moralidade administrativa, obrigatoriamente, numa dimensoespecfica e concentrada. A agresso perpetrada contra essas normasnucleares d ensejo ao enquadramento do sujeito na categoria de desleal, oque pode ocorrer tanto pela via dolosa, quanto pela culposa.

    As atividades periciais, nesse contexto, tal como ocorre em algunsEstados da federao, ao menos no plano normativo, esto regradasadministrativamente por uma srie de deveres que compem o substrato dalealdade institucional, deveres que podem ser agredidos e desrespeitados tantoculposa quanto dolosamente. Cuida-se de deveres imanentes ao princpio damoralidade administrativa39.

    A deslealdade institucional resta aberta, ento, tanto s transgressesintencionais quanto involuntrias. Com efeito, nesta valorao peculiar de umcampo mais restrito da moral administrativa, os elementos que integram oesquema conceitual do dever de lealdade institucional so o dolo e a culpa,alm da objetiva percepo da importncia maior dos deveres pblicos nsitos lealdade do agente para com o setor pblico. Note-se que os Cdigos ticos,no campo profissional, costumam englobar, com paridade de tratamento,deveres de diligncia e de integridade, porque ambas categorias integram o

    38 GARCA DE ENTERRA (1998) ps enorme nfase na idia de confiana ou trust nas

    relaes entre administradores e administrados, abrindo espao, justamente, para o fortalecimento deuma teoria sobre lealdade institucional, abarcando uma srie de deveres pblicos, ao tratar dos novosparadigmas de controle da Administrao Pblica britnica, a raiz do famoso Relatrio Nolan.

    39 O Conselho Superior da Magistratura de So Paulo disciplina com rigor normativo esteassunto. Esse rgo editou o Provimento CSM no. 797/2003, considerando, no seu prprio discurso, queo interesse pblico recomenda a adoo de mecanismos de controle de nomeao e atuao de peritosjudiciais e outros profissionais tcnicos nas Varas e correspondentes Ofcios da Justia de todo o Estado,bem assim na segunda instncia, especialmente para prevalncia da moralidade e da transparncia dosatos judiciais. Como se v, o ato pericial considerado, no que toca sua funcionalidade instrumental,essencial ao ato jurisdicional. O documento da Justia de So Paulo, em seus "considerandos", levou emconta que deve ser preservada a independncia intelectual dos Magistrados, essencial ao relevantedesempenho de suas funes. Os dispositivos processuais invocados na fundamentao desseProvimento foram os artigos 138, incisos III e IV e ; 139; 145 a 153; 218, 1; 422 a 424; 434; 842, 3; e 990, VI do Cdigo de Processo Civil e nos artigos 60, 2 a 4; 66; 67; 170 e 171 da Lei de

    Falncias. claro que caberia investigar, no plano institucional, quais os resultados da fiscalizaocorreicional empreendida pelo Judicirio paulista nessa seara. Cabe aplaudir, no entanto, desde logo, anormativa editada na esfera administrativa.

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    iderio tico de uma atividade comprometida com superiores valores dacoletividade40.

    Nas atitudes dolosas, o agente trai o dever de lealdade institucional,

    incorrendo em uma vulnerao de normas de moral administrativa. Nasatitudes culposas, o agente trai, de igual modo, a lealdade institucional, que lheexige prudncia e cuidado no trato de interesses que no lhe pertencem,porque o setor pblico, dentro de certos limites, no tolera a incompetnciaadministrativa e esta uma modalidade de deslealdade e de imoralidadeadministrativa41.

    40 O Cdigo de tica Profissional do Contabilista CEPC, aprovado pela Resoluo CFCnmero 803, de 1996, do Conselho Federal de Contabilidade, contm significativo conjunto de deveres eproibies a esses profissionais, enquanto exercentes de atividades que, freqentemente,

    consubstanciam a produo de laudos periciais. Destacam-se algumas obrigaes que comportamtransgresses de diversas ndoles, revelando-se como referncias vlidas para profissionais que exeramatividades similares. Entre os deveres desses profissionais da contabilidade est o de exercer arespectiva atividade com zelo, diligncia e honestidade, atributos que comportam infraes dolosas ouculposas, observada a legislao vigente e resguardados os interesses de seus clientes e/ouempregadores, sem prejuzo da dignidade e independncia profissionais. Os interesses da sociedadedevem ser levados em conta, especialmente quando, nas percias judiciais, justamente ela a principaldestinatria dos servios profissionais dos contadores ou contabilistas. Tambm esto obrigados essesprofissionais a zelar pela sua competncia exclusiva na orientao tcnica dos servios a seu cargo, oque remete obrigatria vinculao a preceitos de ordem tcnica. Consta a proibio de o sujeito auferirqualquer provento em funo do exerccio profissional que no decorra exclusivamente de sua prticalcita ou de concorrer para a realizao de ato contrrio legislao ou destinado a fraud-la ou praticar,no exerccio da profisso, ato definido como crime ou contraveno. Cuida-se de conjunto amplo derestries. Ademais, proibido ao contabilista solicitar ou receber do cliente ou empregador qualquervantagem que saiba para aplicao ilcita, bem assim resulta terminantemente proibido prejudicar,culposa ou dolosamente, interesse confiado sua responsabilidade profissional. Lembre-se que talinteresse, em se tratando de atividade pericial, o da prpria sociedade, maior destinatria de umamquina judiciria isenta e independente, predicados indissociveis da liberdade intelectual dos juzes edemais atores pblicos.De igual modo, o profissional contabilista ou contador no pode iludir ou tentariludir a boa f de cliente, empregador ou de terceiros, alterando ou deturpando o exato teor dedocumentos, bem como fornecendo falsas informaes ou elaborando peas contbeis inidneas. Eis aum conjunto de rtulos bastante gerais, nos quais cabe situar condutas dolosas ou culposas. O contador,quando perito, assistente tcnico, auditor ou rbitro, dever recusar sua indicao quando reconhea nose achar capacitado em face da especializao requerida; abster-se de interpretaes tendenciosas sobrea matria que constitui objeto de percia, mantendo absoluta independncia moral e tcnica naelaborao do respectivo laudo; abster-se de expender argumentos ou dar a conhecer sua convicopessoal sobre os direitos de quaisquer das partes interessadas, ou da justia da causa em que estiverservindo, mantendo seu laudo no mbito tcnico e limitado aos quesitos propostos; considerar comimparcialidade o pensamento exposto em laudo submetido a sua apreciao; mencionar obrigatoriamente

    fatos que conhea e repute em condies de exercer efeito sobre peas contbeis objeto de seu trabalho;abster-se de dar parecer ou emitir opinio sem estar suficientemente informado e munido de documentos.O rol de restries no se esgota nesse Cdigo tico, porque emerge da legislao aplicvel administrao da justia, bem assim da prpria normativa administrativa editada pelo rgo deadministrao superior do Poder Judicirio. Porm, tem-se, aqui, um sinal eloqente do conjunto dedeveres, tanto de honestidade quanto de diligncia, exigveis de profissionais que, muito freqentemente,esto chamados a atuar na condio de peritos judiciais. certo que esses mesmos deveres devem sercobrados de outros profissionais, ainda que no pertenam categoria dos contabilistas ou contadores,quando exeram atividades afins, no bojo do sistema judicial. o caso dos advogados que atuam comoperitos judiciais na fixao de honorrios discutidos em juzo. Tal tarefa , em todos os aspectosrelevantes, idntica a dos contadores ou contabilistas que estudam e arbitram valores relativos aproblemas controversos em juzo. Embora os advogados tenham sua prpria esfera disciplinar e estejamexpostos, irremediavelmente, normativa editada pelo Poder Judicirio, alm das normas de DireitoProcessual Civil e de Direito Penal, certo que a disciplina tica aqui mencionada serve como referncia

    interessante na compreenso do alcance da Lei 8.429/92.41 Ilcitos culposos e dolosos ficam mais prximos no contexto das vises funcionalistas que

    permeiam o Direito Punitivo contemporneo, como se v pelo pensamento de JAKOBS (1995) no Direito

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    necessrio analisar os deveres de honestidade e eficincia, aplicveistanto aos peritos quanto aos juzes, no contexto da lealdade institucional, paraculminar no reconhecimento do suporte improbidade. A ilegalidade, comefeito, configurada como deslealdade institucional, pode conduzir o agente

    pblico responsabilidade por ato mprobo, diante de um iter que pressupepautas objetivas de violncia normatividade da Lei 8.429/92 e regrassubjacentes. O desvio de poder no se perfaz apenas por comportamentosdolosos, mas tambm por condutas tipicamente culposas ou situadas nasfronteiras de um dolo penal e administrativo42. O mais comum que taiscategorias ganhem enorme flexibilidade e assumam uma dinmica veloz nadistribuio do nus probatrio e na previso normativa correspondente. Dapor que, no caso em exame, as condutas dos peritos podem oscilar, sutilmente,entre categorias como a culpa, a culpa grave, o erro grosseiro, a teratologia ouo dolo administrativo, nas suas variadas modalidades; por isso, v-seclaramente a complexidade dos contedos potenciais do conceito de peritoinidneo, que perpassa regras, princpios e valores diversos na legislaoespecializada do Cdigo Processual Civil43.

    Penal. A preocupao primordial com a funcionalidade geral do sistema punitivo da improbidade, emdetrimento de vises substantivadas to-somente na proteo dos valores puramente morais ou pessoaisinerentes s atitudes intencionais ou no intencionais (e negligentes), uma caracterstica que tempreponderado nos modelos penais e administrativos sancionatrios, seno no campo terico, certamenteno terreno do Direito dos juristas. A primitiva obsesso pelo compromisso com a proteo exclusiva daintencionalidade das condutas, no lugar de focar seus resultados e os deveres objetivos exigveis daspessoas, marcadamente nas relaes de especial sujeio que o Estado mantm com seus servidores,no tem cabimento no bojo do sistema de Direito Administrativo Sancionador. Este um sistema

    claramente aberto aos mais variados contedos, muitos derivados da normativa constitucional, mas igualmente comprometido com o desempenho de funes punitivas s transgresses do dever deprobidade administrativa. Quando se trata de peritos, cuida-se de avaliar o resultado da peritagem e ossinais exteriores de ilicitude comportamental, em detrimento de investigaes infinitas sobre asubjetividade humana. claro que existem causas de iseno da responsabilidade subjetiva, mas estasno se integram no processo hermenutico de forma rgida, de tal sorte a impedir uma apreciaorazovel da conduta diante da legislao.

    42 Sobre o elemento subjetivo do desvio de poder, reporto-me novamente a BANDEIRA DEMELLO (2000), o qual aponta a predominncia da natureza objetiva dessa espcie de transgresso.

    43 Como diz MONTEIRO (1990:272), a repetio de uma percia s pode ocorrerexcepcionalmente, sendo ela uma prova de suma importncia. Dentre as hipteses previstas comoidneas para ensejar uma obrigatria repetio de percia, o autor recorda de situaes dolosas eculposas, indistintamente. Assinala, assim, os seguintes vcios: (a) erro do laudo oficial em questo

    relevante para a causa; (b) dolo do perito judicial; (c) incapacidade tcnica do perito do juzo; (d)parcialidade do perito; (e) no ter sido a matria suficientemente esclarecida. Mais adiante, o autor analisaa figura do perito inidneo ou incapaz. A responsabilidade civil, profissional, moral e penal dele exigeque seja idneo, capaz e experiente, alm de legalmente habilitado. A idoneidade vem atestadaformalmente pela ausncia de antecedentes desabonatrios. Porm, a capacidade tcnica vem afirmadana praxe forense. O perito que incapaz, tcnica e profissionalmente, ou, ainda, o tendencioso, facciosoe parcial (o que produz laudo conforme a parte que mais lhe agrada), segundo o mesmo autor, deve serdestitudo ex officio e fundamentadamente pelo magistrado. A percia realizada por essa espcie deperito deve ser desconsiderada e desentranhada dos autos, mandando o juiz que se renove o ato. Olaudo do perito inidneo ou incapaz no pode ser aproveitado. Deve o perito devolver toda e qualquerverba honorria recebida. Outra a situao de suspeio do perito, que deve ser argidaincidentalmente, com o devido processo legal. Repare-se que este autor no maneja conceitos atreladosexclusivamente a figuras dolosas. E seu raciocnio deixa claro, ademais, que o perito despreparado podeser tambm o tendencioso. Este ltimo, em qualquer caso, no procura, necessariamente, enriquecimentoilcito. Pode ser um sujeito simplesmente parcial, que se agrada de uma das partes e desagrada de outra,

    pendendo sua balana no importa a razo para um dos lados. Tal postura, longe de ficar distante darealidade, pode ostentar motivaes bastante variadas, desde aquelas de ordem ideolgica (o perito querpromover redistribuio de rendas e erradicar a pobreza com seu trabalho), at aquelas que resultam

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    O dolo, que pode marcar o desvio de poder, no , necessariamente,marcado por uma intencionalidade voltada ao enriquecimento ilcito, persecuo de interesses privados; pode tambm se constituir em umainteno que recaia sobre os elementos da figura tpica. Essa possui amplitude

    varivel, comportando desvios calcados na inobservncia deliberada dedeveres de ofcio, inclusive com a persecuo de interesse pblico diversodaquele previsto na regra de competncia ou com o completo desprezo pelasfinalidades pblicas que norteiam as funes. A deslealdade institucional oeixo central dessas categorias cinzentas, que alcanam desde as intenesmais nefastas e reprovveis, at outros tipos de parcialidade e de inclinaespessoais menos evidentes; no obstante, todas as condutas aqui delineadas, apartir de um certo estgio, tm em comum o vcio da quebra de confiana doagente pblico para com o Estado, alicerado na violao de deveresconstitucionais, legais e administrativos. A diviso aqui desenhada, repartindoduas grandes categorias, como a honestidade e a eficincia, tem carterpuramente didtico, porque, em realidade, tais deveres se tornamcompreensveis no contexto de um somatrio de deveres pblicos. Descabe,neste espao, traar as bases de uma teoria dos deveres pblicos, mas possvel registrar que a honestidade e a eficincia constituem pilaresfundamentais da probidade administrativa44.

    4.1.1. DEVER DE HONESTIDADE

    O histrico enciclopdico sobre o conceito de honesto elucidativo: Dolatim honestus, anlogo de honoratus honrado, cujo conceito originrio

    impregnadas de concepes revestidas do vu da ignorncia (o perito busca ajudar uma das partesporque seu despreparo intelectual no lhe permite compreender as razes da outra e sua preguia oudesdia obstaculizam um acesso qualificado ao conhecimento em causa).

    44 Se na improbidade devemos exigir dolo ou culpa grave, no mnimo, para reconhecer suporte responsabilidade do agente, outro o tratamento esfera processual civil de sancionamento judicial, eisque dolo ou culpa, tout court, o que basta para responsabilizar o perito por infrao ao art.147 doCdigo Processual Civil. No se trata, sequer, da culpa grave, no tocante sano diretamente imponvelpelo juiz do processo no qual o perito obra dolosa ou culposamente. Diz, a propsito, PONTES DEMIRANDA (2000): Se o perito, por dolo ou culpa, prestar informaes inverdicas (comunicaes deconhecimento falsas), responsvel pelos prejuzos que causar parte, fica inabilitado, por dois anos, a

    funcionar noutras percias e incorre nas penas que o direito penal estabelea (....). Informaesinverdicas so as comunicaes de conhecimento em que h infrao do dever de verdade. Basta aculpa para que incida o art.147. Dolo ou culpa, l-se no Cdigo de 1973. No de 1939, art.131, par.1o,falava-se de dolo ou culpa grave. No basta a divergncia de opinies ou de pareceres para se dizer queas informaes so inverdicas. Se o perito, intencionalmente, algo apontou de inverdico, ou mesmoapresentou dados que no correspondem realidade, dolosamente atuou. Se somente houve culpa, a leiestabelece o mesmo tratamento. Compreende-se isso, porque se trata de pessoa de que se espera plenoconhecimento da matria. A responsabilidade pelos danos causados parte ou s partes e outraspessoas que constem do processo. Quer tenha havido danos, quer no, h a sano de inabilitaotemporal. A vedao no s se relaciona com o juzo em que ocorreu a informao inverdica; paraqualquer juzo. Alm disso, h a lei penal, a que remete o art.147. Dolo e culpa andam juntos.Categorias aproximadas na perspectiva funcional do sistema processual civil. Isso, porque do perito seexigem deveres mais enrgicos, conhecimentos especializados. A inabilitao, por seu turno, umasano que independe, logicamente, das sanes penais cabveis, mas transcende, alm disso,eventuais sanes disciplinares que o rgo corporativo de origem do perito resolva por bem aplicar. No

    parece intil lembrar que as sanes cominadas aos atos de improbidade, revestindo-se de status judiciale disciplinadas pelo Direito Administrativo, independem, de igual modo, das demais medidassancionatrias aplicadas ao caso, nos termos do prprio art.37, par.4o, da Magna Carta.

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    honor honra. Honesto quem age com honra, equilbrio moral. Trata-seassim de conceito tico-moral, que se projeta na interao social, assumindo aforma de valor jurdico, o qual foi ilustrado historicamente por intermdio dosdois preceitos do jurista romano Ulpiano: (a) viver honestamente (honeste

    vivere); (b) no prejudicar a ningum (alterum non loedere). Esses doispreceitos so de ordem moral, enquanto o terceiro de ordem jurdica: (c) dara cada um o que lhe pertence (cuique suum tribuere), este baseado naalteridade, socialidade, politicidade: qualidades da objetividade social querepresenta a justia contedo da forma jurdica. Como anttese do honesto,temos o desonesto cujas raias mais alongadas so tingidas de ilicitudepenal45.

    Desta singela referncia histrica emergem algumas importantespremissas vigentes nos dias de hoje: (a) a honestidade , ao mesmo tempo,um dever moral e jurdico, de contedo indeterminado, carente de valoraes,oscilante conforme se trate de uma ou outra tipologia tico-normativa; (b) ahonestidade pressupe compromisso com o iderio de no causar prejuzosinjustificveis a terceiros; (c) a honestidade guarda conexes profundas com osubstrato e o iderio da justia, tanto que ser honesto , tambm, o ser justo;(d) desonestidade comporta muitos matizes e variaes, tanto que suas raiasmais alongadas que adentram a esfera penal, o que supe muitos tipos dedesonestidades e de respostas punitivas46.

    Dos juzes se exige honestidade em patamares elevados, ao ponto deconfigurar dever imanente dignidade das funes. O conjunto deimpedimentos e causas de suspeies j revela, por si s, o tratamentodispensado ao dever de honestidade dos juzes. Some-se a esse contexto arobusta teia de incompatibilidades e de exigncias tico-normativas para aselevadas funes e encontramos, com facilidade, o lugar axiolgico privilegiadoda honestidade na carreira judicial. Diz-se que dos juzes seria exigvel bemmais do que a honestidade, porque o parecer honesto tambm constituiriaatributo obrigatrio. Ento, pode-se imaginar dispensvel um exame maisacurado desse dever pblico, em se tratando de magistrados. No entanto, perceptvel a dificuldade em agregar contedos mais densos a esse dever,numa considervel quantidade de casos nebulosos. Da a importncia de umaanlise focada e percuciente.

    45 Veja-se FRANA (1980:473) e o tpico comentado por Silvio de Macedo. Sem discrepardesta idia, consultem-se AULETE (1968:2085), este numa perspectiva mais sinttica, e DE PLCIDO ESILVA (1984:391), o qual sinaliza a noo de bons procedimentos ou dos costumes e hbitos conforme amoral.

    46 Especificamente no tocante ao problema do excesso de poder, a fronteira com adesonestidade criminosa pode ser tnue, ao mesmo tempo em que se h de reconhecer espaosautnomos aos ilcitos penal, administrativo e cvel. Trata-se de um dilema que ocupa a pauta depreocupaes tambm do Direito comparado, como se pode notar em PAGLIARO (1998; 1999) e toda aliteratura italiana que se debrua sobre as diferenas en