Forças de inércia

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Page 1: Forças de inércia

Forças de inércia A aplicação da 2ª lei de Newton pressupôe que as grandezas envolvidas são medidas num referencial de inércia. Para aplicar a 2ª lei de Newton em referenciais não-inerciais é preciso postular a existência de forças de origem não conhecida. Essas forças não são newtonianas, ou seja, não obedecem ao princípio de acção-reacção. Não correspondem a qualquer acção do corpo considerado sobre aquilo que o rodeia e não é possível identificar a “fonte” dessa força. Consideremos a situação exemplificada na fig. 1. Temos um homem que se pesa num elevador uniformemente acelerado. O homem e a balança estão, pois, num referencial não-inercial. O homem constata que a balança marca um valor (a balança mede a compressão exercida pelo homem que é em valor igual a N) inferior ao seu peso. Como no seu referencial o homem e a balança estão em repouso, para aplicar a 2ª lei de Newton ele terá de postular a existência duma força 'N

r, cuja origem não consegue

identificar, que actua sobre ele em sentido oposto ao seu peso. Para o observador no referencial de inércia não há nada de misterioso em a balança medir menos do que o peso do homem, já que para ele o homem e a balança têm uma aceleração, que justifica, tal como indicado adiante, que o peso não seja igual à reacção normal. Obviamente temos N’=ma.

'0'0'

??

NPNmaPNNNPmaNPNNP

amNPPN

−=−==−−=−=++

=+<rrr

rrr

Algo de semelhante acontece em referenciais em rotação, não-inerciais portanto. Consideremos a situação exemplificada na fig.2, em que temos um obervador O’ num carrossel em rotação e um observador O em repouso fora do carrossel. Vamos supor um carrossel com um estrado plano, polido (sem atrito), com uma cercadura de alguns centímetros de altura. Para manter um pequeno bloco de madeira em repouso, na posição indicada o observador O’ sente que tem de exercer alguma força, ou seja O’ tem a percepção da existência duma força dirigida para fora que actua sobre o bloco, cuja origem não consegue identificar, força essa que tem de compensar para manter o bloco

'Nr

PrNr

ar

PrNr

REFERENCIAL NÃO-INERCIAL REFERENCIAL INERCIAL

Fig. 1 Para aplicar a 2ª lei de Newton em referenciais não-inerciais é preciso postular a existência de forças de origem não conhecida – essas forças não são newtonianas, ou seja, não obedecem ao princípio de acção-reacção.

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em repouso. Se ele largar o bloco, este desliza para a periferia segundo a trajectória indicada, ficando encostado à cercadura em A. Já que para o observador O’ no instante em que ele larga o bloco, ele e o bloco estão em repouso no seu referencial, ele explica o movimento do bloco como causado pela tal força dirigida para fora. Quando o bloco atinge o ponto A fica em repouso, porque segundo O’ a cercadura exerce sobre o bloco uma força igual mas contrária à tal força de origem misteriosa. No entanto estas duas forças não constituem um par acção-reacção, já que são ambas forças a actuar no bloco. A força exercida pela cercadura é reacção à compressão do corpo sobre a cercadura e não há qualquer reacção à tal força de origem desconhecida. Para o observador O não há nada de misterioso. No instante em que O’ larga o bloco este tem uma velocidade dirigida para cima (tangente à trajectória circular que ele fazia no carrossel) e, não havendo forças a actuar sobre ele, ele continua com movimento uniforme até embater na cercadura. Aí passa a actuar uma força sobre ele, que é a reacção normal da cercadura do carrossel. Essa força providencia a aceleração centrípeta que faz o bloco entrar em rotação encostado ao ponto A. Em qualquer dos casos temos a percepção que estas forças de origem desconhecida têm a ver com medidas feitas em referenciais que não são de inércia. É, pois, importante percebermos como podemos transformar as variáveis dum referencial para outro. Movimento relativo Movimento relativo de translação

i) translação uniforme

Consideremos dois observadores O e O’ situados na origem dos respectivos referenciais S - XYZ e S´- X’Y’Z’. O referencial S´move-se relativamente a S com velocidade ur . É equivalente a dizer que S se move relativamente a S’ com velocidade –ur . Para facilitar os cálculos, mas sem perda de generalidade, vamos considerar que ur é paralelo ao eixo dos X e que os eixos dos dois sistemas são paralelos entre si, tal como representado na fig.3. Considerando que no instante t um móvel passa por P sendo o rr seu vector posicional relativa a S e 'rr relativo a S’, podemos estabelecar a relação entre os dois vectores posicionais e derivando em ordem ao tempo chegar à relação entre as velocidades e as acelerações medidas nos dois referenciais.

O

O’

A

A

Fig. 2 Movimento dum bloco visto por dois observadores: O’ no carrossel - referencial em rotação no qual o bloco está; O num referencial de inércia fora do carrossel.

Page 3: Forças de inércia

Note-se que os versores dos eixos cartesianos são constantes no tempo em qualquer dos referenciais e que o vector b

r, de O para O’, é o vector deslocamento de

S´relativamente a S.

''

''

''

aadtud

dtvd

dtvd

uvvdtbd

dtrd

dtrd

brr

rrrrr

rrrrrr

rrr

=⇒+=

+=⇒+=

+=

(1)

As grandezas vr e ar são respectivamente a velocidade e a aceleração medidas em S e 'vr e 'ar são respectivamente a velocidade e a aceleração medidas em S’. Na dedução anterior considerou-se que a velocidade ur é constante. Se S for um referencial de inércia, S’, que se move em relação a ele com velocidade constante, também é um referencial de inércia. Deduzimos que os dois referenciais medem a mesma aceleração, o que nos permite afirmar que todos os referenciais de inércia são equivalentes do ponto de vista da aplicação das leis de Newton. Considerando as duas origens coincidentes no instante t=0, podemos escrever as relações acima em termos das coordenadas cartesianas. Vem

'''

''

ttzzyy

utxx

===

+=

(2)

Esta transformação de coordenadas, correspondente a um tempo absoluto (ou seja o mesmo para todos os observadores), chamada transformação de Galileu, é válida apenas para u<<c em que c é a velocidade da luz. Para velocidades perto da velocidade da luz, domínio da Mecânica Relativista, é válida a transformação de Lorentz.

Y Y’ P

rr 'rr

O O’ b

r X X’

Z Z’ ur

Fig. 3 Relação entre os vectores posicionais relativos a dois observadores em translação uniforme.

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22

2

22

1

'´''1

''

cu

cxutt

zzyy

cuutxx

+=

==

+=

(3)

Veja-se que pela adição de velocidades prevista (eq.1) em sequência da transformação de Galileu, se o observador O’ estiver a medir a velocidade da luz temos para o observador O, v = v’+u ⇒ v = c+u >c, o que contraria o postulado de que a velocidade máxima que pode ser observada é a velocidade da luz no vácuo. Da transformação de Lorentz pode-se deduzir que

2/'1'

cuvuvv

++

= (4)

No caso de v’= c, temos v=c também. Todos os observadores medem o mesmo valor para a velocidade da luz no vácuo. Existem outras consequências da transformação de Lorenz, tais como a contracção dos comprimentos e a dilatação do tempo, que não trataremos aqui. ii) Translação não-uniforme

Se considerarmos que ur não é constante no conjunto de equações (1), então deduzimos a seguinte relação para as acelerações

SSaadtudaa ´´'' rrr

rr+=+= (5)

em que ar e 'ar são as acelerações medidas nos referenciais S e S’, respectivamente, e SSa ´´r é a aceleração do referencial S´relativa a S. Se S for um referencial de inércia, a

partir da expressão (5) e usando a 2ª lei de Newton que, tal como dissémos, é válida para referenciais de inércia, vem:

SS

SSSS

amFam

amFaaa

´

´´

´'

´´'rrr

rr

rrr

−=

⇒−=−=

Na expressão acima Fr

é a resultante das forças “reais” aplicadas no móvel. Vemos que o observador O’ para explicar as suas medições tem de considerar uma força extra, tal como referimos no parágrafo sobre forças de inércia. Movimento relativo de rotação uniforme

Consideremos os dois referenciais S e S´com a mesma origem e consideremos que S´roda em relação a S com uma velocidade uniforme ωr , tal como indicado na fig. 4.

Os vectores posicionais, relativos a S e S´, dum móvel quando passa pelo ponto P são coincidentes. Quando escritos nas suas coordenadas e derivados em ordem ao tempo, apercebemo-nos que as derivadas em ordem ao tempo dos versores cartesianos do sistema S’ não são nulas, porque estes estão em rotação.

Page 5: Forças de inércia

Obtemos

dtedz

dted

ydted

xedtdze

dtdye

dtdxe

dtdze

dtdye

dtdx

ezeyexezeyexrr

zyxzyxzyx

zyxzyx

''''''

'''

''''''

''''rrr

rrrrrr

rrrrrrrr

+++++=++

++=++⇒= (6)

Lembremos (fig. 4) que a derivada dum versor é-lhe perpendicular e tem o valor

ωθθ==

∆∆

= →∆ dtd

tdted

tx

0limr

∆θ corresponde ao ângulo de que o versor roda no intervalo de tempo ∆t. O versor roda com velocidade angularωr , por definição perpendicular ao plano da rotação. Logo, tendo em atenção a direcção e o sentido, pode escrever-se

xx e

dted rrr

xω= (7)

As parcelas do lado esquerdo da última equação do grupo (6) são as componentes da velocidade medida no referencial S, vr . As três primeiras parcelas do lado direito da mesma equação são as componentes da velocidade medida no referencial S’, 'vr . Quanto às outras três podemos agrupá-las usando a relação (7) , vindo

'')'''(' ''' rvvezeyexvv zyxrrrrrrrrrr xx ωω +=⇒+++= (8)

Derivando em ordem ao tempo, podemos relacionar as acelerações nos dois referenciais. Temos de ter mais uma vez em atenção que as derivadas dos versores do referencial S´não são nulas. Usando o resultado acima demonstrado, ou seja

''' rvdtrd rrrr

xω+= (9)

vem, explicitando as componentes de 'vr ,

)''()'''('

''''''''

''''''

''

''

'''

''

''

'

rxvxevevevxaadtrdr

dtd

dtedv

dted

vdted

vedt

dvedt

dve

dtdv

dtvd

zzyyxx

zz

yy

xxz

zy

yx

x

rrrrrrrrrr

rrr

rrrrrrr

r

ωωω

ωω

+++++=

+++++++= xx

Identificámos as três primeiras parcelas do lado direito da 1ª equação com a aceleração medida em S’, 'ar , e considerámos a derivada em ordem ao tempo de ωr nula, por este ser constante. Rearranjando temos

Y Y’ P

rr ≡ 'rr ωr

O≡O’ Z’ X X’ Z

)( ttex ∆+

r ∆θ

ωr )(texr

Fig. 4 Esquerda - Relação entre os vectores posicionais relativos a dois observadores em rotação relativa uniforme. Direita – derivada dum versor que roda com velocidade ωr .

Page 6: Forças de inércia

''2' rvaa rrrrrrr xxx ωωω −−= (10) A 2ª parcela do lado direito da equação anterior chama-se aceleração de Coriolis e o 3ª termo aceleração centrífuga (quandoωr é perpendicular a 'rr , este termo vale ω2r’). Pela 2ª lei de Newton a aceleração medida num referencial de inércia, ar , pode relacionar-se com a resultante das forças “reais” aplicadas ao móvel de massa m, F

r. Então vem

)'('2' rmvmFam rrrrrrr xxx ωωω −−= Vemos assim que, mesmo que F

rseja nula, o observador O’ para explicar as suas

observações tem que apelar para uma força centrífuga e uma força de Coriolis. No caso do exemplo do carrossel a força centrífuga é a responsável pelo movimento segundo a radial para a periferia. A força de Coriolis (que desprezámos, já que o móvel partia com velocidade v’ nula) deflecte a trajectória radial no sentido contrário ao da rotação. Assim o bloco chegaria a um ponto à direita de A, relativamente à radial. A Terra não é um referencial de inércia, é um referencial em rotação uniforme, pelo que a expressão (10) tem uma grande relevância. Se considerarmos a actuar sobre um móvel apenas a força gravítica da Terra, temos )''20 rvgg rrrrrrr xx(x ωωω −−= (11) em que gr é a aceleração medida no referencial da Terra e 0gr a aceleração medida num referencial de inércia. Esta pode deduzir-se a partir da interacção gravitacional entre o móvel e a Terra e tem uma direcção radial dirigida para o centro da Terra. O valor da aceleração centrífuga, como se pode deduzir com apoio na fig. 5, é ω2Rcosλ, em que λ é a latitude. Para chegar a este resultado, podemos ver que

λωλωθωωωωωω coscos''')'( 22 Rrsenrrr ====rrrrr xxx

Na primeira passagem do raciocínio o seno do ângulo entre ωr e o vector ( 'rrr xω ) é igual a um, porque os dois vectores são perpendiculares, já que por definição o vector ( 'rrr xω ) é perpendicular a cada um dos vectores que consta no produto externo. Este termo tem uma componente radial que vale (ω2R cosλ) cosλ, pois tal como indicado na figura 5, este vector faz um ângulo igual a λ com a direcção radial.

Fig. 5 Representação da aceleração centrífuga. O ângulo λ é a latitude.

N ωr λ )'( rrrr xx ωω− θ 'rr λ S

Page 7: Forças de inércia

Considerando também os sentidos do vector e das suas componentes, temos a seguinte situação (fig. 6) para a aceleração medida na Terra (não contando com o termo de Coriolis). A componente radial da aceleração centríguga causa uma diminuição no valor de g0, que varia com a latitude sendo máxima no equador onde tem um valor de 0,034ms-2, o que corresponde a uma correcção de 0,35%. A componen-te horizontal, que tem um valor máximo para uma latitude de 45º, provoca uma deflexão em relação à radial, para Sul no hemisfério Norte e vice-versa. Sendo esta componente muito menor do que g0- ω2Rcos2λ, a deflexão é muit pequena. O valor máximo de α é de 0,20º. Para um corpo em queda livre, a aceleração de Coriolis provoca uma deflexão adicional relativa à radial para Este no hemisfério Norte e no hemisfério Sul. Considere-se a figura 7, em que o plano representado, no hemisfério Norte, é o plano horizontal (tangente à superfície da Terra em cada ponto, perpendicular à vertical que é quase coincidente com a direccção radial, que aponta para o centro da Terra. O corpo tem inicialmente uma velocidade segundo a direcção radial (seta vermelha). No entanto a aceleração de Coriolis, que aplicando o conceito de produto externo tem a direcção e sentido da seta azul, vai-se traduzir numa deflexão da trajectória para leste. Em vez da trajectória rectilínea, o corpo segue a trajectória curvilínea (verde).

E W

N

S

Radial ωr

λ 'vr

'2 vrr×− ω

N ω2Rcosλsenλ S Plano horizontal α g0 -ω2Rcos2λ g Direcção Direcção radial vertical

Fig. 6 Efeitos das componentes radial e horizontal da aceleração centrífuga sobre a aceleração da gravidade.

Fig. 7 Aceleração de Coriolis sobre corpo em queda livre; o desvio é para Leste nos dois hemisférios.

E W

N

S

ωr

'2 vrr×− ω

'vrλ

Fig. 8 Aceleração de Coriolis sobre corpo em rota Sul-Norte no plano horizontal. A figura diz respeito ao hemisfério Norte. No hemisfério Sul o desvio é para Oeste.

Page 8: Forças de inércia

Um corpo com movimento horizontal terá a sua trajectória desviada, no hemisfério Norte para a direita e no hemisfério Sul para a esquerda. Pela figura 8, podemos escrever a velocidade angular nas suas componentes, vindo:

zy esene rrrλωλωω += cos

Se tivermos 'vr horizontal, fazendo um ângulo α com o eixo X (ou O-E), temos: yx esenvevv rrr αα += cos

Efectuando então o produto externo vem: xyz esensenvesenvevv rrrrr

αλωαλωαλωω 2cos2coscos22 +−=×− Assim, para 'vr é horizontal o termo de Coriolis tem uma componente horizontal que vale 2ω v’senλ. O seu efeito é nulo no equador e máximo nos pólos. Quando α=π/2 como na figura 8, a aceleração de Coriolis só tem a componente X ou O-E. O termo de Coriolis tem consequências muito importantes no deslocamento das massas de ar. Assim, no hemisfério Norte, a ar que acorre a um centro de baixas pressões (ou centro ciclónico) tem as suas trajectórias, dirigidas ao centro de baixas pressões, modificadas pela aceleração de Coriolis (fig. 9), o que origina uma rotação das massas de ar no sentido anti-horário. Se for um centro de altas pressões (ou centro anti-ciclónico) a rotação faz-se no sentido horário. [No hemisfério Sul ocorre tudo no sentido contrário.] A existência habitual dum centro de altas pressões sobre os Açores origina que os ventos dominantes sobre Portugal sejam de Noroeste. Se tivermos um pêndulo, cujo ponto de suspensão possa rodar livremente (pêndulo de Foucault), o plano vertical de oscilação vai rodando, como consequência do efeito de Coriolis, voltando à posição inicial ao fim de 24h. Existem pêndulos de Foucault nos principais Museus de Ciência. Constituem uma verificação experimental do movimento de rotação da Terra. Em conclusão, os efeitos centrífugo e de Coriolis são efeitos reais resultantes do movimento de rotação do referencial em que são observados. Não são causados por qualquer força. Só se torna necessário falar de força centrífuga e força de Coriolis, quando tentamos explicar estes efeitos por aplicação da 2ª lei de Newton, abusivamente, já que o nosso referencial não é de inércia.

Fig. 9 Centro de baixas pressões – centro ciclónico (à esquerda) e centro de altas pressões – centro anti-ciclónico (à direita) no hemisfério Norte. A aceleração de Coriolis deflecte as trajectórias das moléculas de ar para a direita.