G2 - Edição em Jornalismo Impresso 2014.1

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Mesmo em período ditatorial, lembranças positivas marcaram Copa de 1970 A Seleção do Brasil de 1970 em campo A nove dias do começo da Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil, o maior conforto para acompanhar as partidas de futebol do campeonato alavanca as vendas de aparelhos de TV, principalmente, para a já consolidada nova classe média. Mestre em Educação, o professor Sergio Bonato tinha 14 anos quando viu, pela primeira vez, a Seleção do Brasil entrar em campo numa Copa do Mundo. Era 1970, e os jogos, no México, eram transmitidos ao vivo pela televisão. Bonato estudava num colégio interno só de meninos em Curitiba, Paraná. Quando a equipe do Brasil disputava a competição com outras Seleções, o então garoto de 14 anos ia para a frente da TV, junto a padres e aos demais 40 alunos da instituição. Nas Copas anteriores, Bonato tinha acompanhado as partidas pelo rádio, meio de comunicação mais difundido no país naquele momento. Foto: Lemyr

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PUC-Rio Professora Rose Esquenazi

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Mesmo em período ditatorial, lembranças positivas marcaram Copa de 1970

A Seleção do Brasil de 1970 em campo

A nove dias do começo da Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil, o

maior conforto para acompanhar as partidas de futebol do campeonato

alavanca as vendas de aparelhos de TV, principalmente, para a já

consolidada nova classe média. Mestre em Educação, o professor Sergio

Bonato tinha 14 anos quando viu, pela primeira vez, a Seleção do Brasil

entrar em campo numa Copa do Mundo. Era 1970, e os jogos, no México,

eram transmitidos ao vivo pela televisão. Bonato estudava num colégio

interno só de meninos em Curitiba, Paraná. Quando a equipe do Brasil

disputava a competição com outras Seleções, o então garoto de 14 anos ia

para a frente da TV, junto a padres e aos demais 40 alunos da instituição.

Nas Copas anteriores, Bonato tinha acompanhado as partidas pelo rádio,

meio de comunicação mais difundido no país naquele momento.

“A televisão não era barata, era para poucos. As pessoas saíam de casa e

viam (os jogos) na casa do vizinho. Lembro que comprar uma TV era como

comprar um automóvel hoje em dia”, conta Bonato, que assistiu à Copa de

1970 por uma “TV em preto e branco, com umas 29 polegadas e tubo

grande”.

O consultor em marketing esportivo Luiz Leo enfatiza que a Copa do Mundo

favorece o comércio de aparelhos de televisão. Segundo ele, a venda do

equipamento cresce, principalmente, a partir das Copas de 1974 e 1978 para,

em 1982, ocorrer uma explosão do consumo.

Foto: Lemyr Martins

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“A partir daí a televisão se torna num objeto doméstico, um utensílio muito

mais acessível em termo de crédito. Era o rádio, que perdeu o lugar de honra

na casa”, diz Luiz Leo, ao observar que em termos de custo, o rádio sempre

será mais acessível que o aparelho de TV pela tecnologia embutida.

O decano do Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio, o economista Luiz

Roberto Cunha, conta que o então governo, do general Emilio Médici (1969-

1974), incentivava o consumo. Ele acrescenta que a oferta de crédito direto

ao consumidor de 1970 é comparável com a dos últimos anos no país, depois

da estabilização da moeda. Isso, complementa, possibilitou que pessoas de

renda mais baixa adquirissem bens, como a televisão, por meio do

parcelamento. O jornalista esportivo Roberto Assaf afirma, no entanto, que a

transmissão pela TV em tempo real foi prejudicial por facilitar ao regime

militar a “faturar politicamente”.

“Se até 1966, bem ou mal, conseguiam fazê-lo, com os jogos ao vivo ganhou

dimensão fantástica. As pessoas se envolveram muito mais. Eu me lembro

de ficar com mais 20 (amigos) imaginando o jogo”, reforça Assaf.

Bonato concorda que, já em 1970, a Copa do Mundo despertava o interesse

da população brasileira. Ele conta que as janelas tinham bandeiras de

plástico do país e as pessoas se vestiam de verde e amarelo. Os minutos da

partida, diz, também aproximavam as pessoas e as colocavam em contato

com o país. “Era como se fosse uma guerra, e eu estava representado pela

pessoa que chutava a bola.”

Mesmo antes do início da competição, o assunto entre Bonato e os amigos já

era o futebol da Seleção. O ainda popular álbum de figurinha era um dos

passatempos do grupo, que comprava os “pacotinhos” na banca e depois

trocava figurinhas. “Comprávamos (o pacote com as figurinhas) nas bancas e

usávamos cola Tenaz. Era um grande meio de divulgação da Copa”, recorda

Bonato, que completou o álbum.

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Foi a televisão, ressalva Luiz Leo, a principal responsável por atrair audiência

e, consequentemente, mais patrocínios para a Copa do Mundo. Segundo ele,

a partir dos anos 1970, cresce o número de empresas interessadas em

“pegar carona nessa paixão” ao associar os produtos que comercializam a

atributos positivos, como alegria, emoção, conquista e jovialidade. Isso

interfere, acrescenta, no papel desempenhado pelos jogadores da Seleção.

“O compromisso é com o mercado, é com o consumo. Esses caras não têm

mais identidade brasileira. Eles moram fora do país. Esses que estão aí

simbolizam pouco o ideal romântico do herói esportivo que, nos anos 1970,

representou aquela geração. E ficou na memória”, critica o consultor em

marketing esportivo.

A então Confederação Brasileira de Desportes (CBD), atual Confederação

Brasileira de Futebol (CBF), era admirada por Bonato. Em 1970, ele conta ter

desenhado o símbolo da CBD nos cadernos do internato e na blusa que

vestia para jogar futebol com os amigos.

Os jogadores de futebol Mario Sergio, à esquerda, e PC Caju, à direita, em campo

Porém, o jogador de futebol da Seleção do Brasil de 1970 e 1974 Paulo

Cezar Lima, conhecido como PC Caju, deixou de participar da Copa de 1978,

depois de discutir com o então presidente da CBD, Heleno Nunes. O ex-

futebolista conta que tinha 28 anos e era “titular absoluto”, quando pediu

melhorias para os jogadores da Seleção.

Foto: João Carlos Rangel

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“Os militares mandavam no país, e ele falou que eu nunca mais jogaria lá. Aí

cheguei a escrever no Pasquim durante um ano, que era um jornal

maravilhoso, mas eu perdi uma Copa do Mundo”, conta PC Caju.

Para Assaf, os jogadores da atual Seleção não devem levantar bandeiras,

mas sim se concentrar na campeonato. O jornalista acredita que, apesar de

as manifestações serem necessárias, o futebol não é o culpado pelas

deficiências do país.

“Querem culpar o futebol por essa tragédia, mas o futebol é um esporte como

outro qualquer. A paixão é a mesma, a diferença é que deixaram o povo de

fora da Copa. Os ingressos são difíceis, e os estádios, elitizados.”

Já Luiz Leo lembra que a população de 2014, mesmo vivendo num regime

democrático, tem uma articulação de reivindicar direitos, novas conquistas, o

que não ocorria em 1970. Naquela época, o país estava num período

ditatorial e, inclusive, no governo considerado mais repressivo, o do general

Emilio Médici.

“Nos anos 1970, o Brasil vivia num modelo engessado de representação

social, porque não havia espaço para a manifestação de pensamento, e o

Estado aproveitou o esporte para convencer as pessoas de que aquilo ali era

um modelo justo de sociedade, que daria certo.”

Tanto Bonato quanto Cunha concordam que o regime militar soube aproveitar

o tricampeonato da Seleção para fazer propaganda oficial. “O regime

aproveitou a alegria do povo e usou como benefício próprio. Conseguiram

passar a ideia de que era um regime competente”, afirma Bonato.

Para Bonato, apesar de o governo não ter conseguido transmitir o discurso

de “a Copa das Copas”, a população vai às ruas torcer pelo Brasil e

comemorar os resultados. Já a forma de jogar futebol da atual Seleção não

entusiasma PC Caju. Ele acredita que tanto o esporte, quanto os torcedores

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estão mais violentos. Segundo PC Caju, o técnico da Seleção de 2014, Luiz

Felipe Scolari, instiga a equipe a não deixar o adversário jogar e “dar

pancada”.

“Todos os times que ele (Luiz Felipe Scolari, o Felipão) dirigiu só pratica o

antijogo. Nessa última Copa das Confederações, o time que mais cometeu

falta na competição foi o Brasil, que antes só jogava bola. É um absurdo”,

que lembra outra novidade na Copa de 1970, a introdução dos cartões de

penalização amarelo e vermelho.

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O preconceito no futebol

Negro e filho de uma ex-empregada doméstica de Minas Gerais, “analfabeta

e mal-tratada”, o ex-jogador de futebol PC Caju, conta que teve dificuldades

para encontrar espaço no futebol e na alta sociedade carioca. Passou no

teste para o time do Fluminense aos 12 anos. “Com o meu primeiro contrato

com o Botafogo, eu tirei a minha mãe da escravidão”, complementa. Ele

lembra que, naquela época, os jogadores de futebol eram vistos como

“vagabundos”. Namorou Alice Niemeyer durante um ano, mas o romance não

foi aprovado pela família do neurocirurgião Paulo Niemeyer. Nas andanças

pelo país, em 1968, lembra ter visto a placa “Proibida a entrada de negro”.

Para ele, o racismo no futebol continua e não deve ser levado como uma

jogada de marketing, como no caso da banana jogada no campo na partida

de Barcelona versus Villareal, na Espanha, em abril deste ano. Na Copa do

Mundo de 1970, no México, porém, PC Caju não se lembra de ter sofrido

preconceito. Ele conta que o Botafogo, a base da Seleção de 1970, era muito

querido pelos mexicanos.

“Na final, o estádio inteiro estava a favor do Brasil. Já quando a gente ganhou

da Inglaterra, os mexicanos ficaram com uma felicidade enorme e passaram

a torcer para a Seleção.”

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O milagre na economia refletido nos jogos da Copa de 1970

Apesar da oferta de crédito direto ao consumidor em 1970, que permitiu a

compra de bens por pessoas de renda mais baixa, a desigualdade social era

um problema maior no Brasil. O economista Luiz Roberto Cunha afirma que,

naquela época, a remuneração do capital crescia mais que a do trabalho.

“A renda do capital são lucros, juros, aluguéis. E a outra parte é em relação

ao trabalho, a salário. Então, nesse período, há uma concentração de renda,

embora seja um período em que a inflação estava se desacelerando, estava

sendo reduzida.”

Os anos 1970 e 2014 são de economias estáveis e inflações controladas.

Segundo Cunha, no governo Médici, o país ainda se beneficiava de uma

série de mudanças inseridas pelo Plano de Ação Econômica do Governo

(Paeg), lançado durante o governo Castelo Branco (1964-1967). Ele lembra,

ainda, que, em 1970, o endividamento externo ainda não era “um grande

problema” para o país.

Médici com a faixa presidencial

“Nesse período de crescimento da economia mundial, as taxas de juros

internacionais eram relativamente baixas. Elas começam a subir de forma

mais intensa a partir dos anos 1980. O início do período de endividamento

externo é no (governo) Médici, depois ele cresce muito no (governo) Geisel

(1974-1979) e aí a crise vai ser só nos 1980”, afirma Cunha, ao reforçar que

o Brasil se beneficiava com o crescimento do país.

Foto: Reprodução

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A economia só voltaria a se estabilizar em 1994, ano em que foi lançado o

Plano Real. Os três pilares do pacote econômico foram a criação de um

indexador único, chamado de Unidade Real de Valor (URV), o lançamento da

moeda Real e, ainda, o equilíbrio de despesas e receitas nas contas públicas,

ou seja, gastar menos e arrecadar mais. Um dos elaboradores, o economista

e ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso e Itamar Franco, Pedro Malan,

acredita que a equipe fez diferença para combater índices acima de 1.500%

ao ano.

“André Lara Resende, Pérsio Arida e Edmar Bacha, também de uma nova

geração, tinha Gustavo Franco, que haviam estudado não só a nossa própria

experiência, mas como a de outros países, desde as hiperinflações europeias

do século passado”, destaca Malan.

Com a estabilidade da moeda, lembra Cunha, a conjuntura econômica

permitiu que políticas públicas de distribuição de renda estivessem na

agenda dos últimos governos, por meio de programas de transferência de

renda. Apesar da piora na distribuição de renda em 1970, Cunha lembra que

o desemprego estava baixo e o Produto Interno Bruto (PIB) crescia:

“Você não apenas estava ganhando uma Copa do Mundo, mas você tinha

taxas de crescimento do PIB que nunca antes na história deste país você

tinha tido crescimento tão elevado. No período de 1968 a 1973, a taxa de

crescimento real do PIB brasileiro foi, em média, de 11,7%. Nunca de fato

você repetiu isso. Você não tinha tido antes e nem teve depois”, aponta.

Já em 2014, as estimativas do governo em relação ao PIB é de crescimento

de, no mínimo, 1,9% neste ano. No entanto, o resultado do PIB do primeiro

trimestre, divulgado na sexta-feira passada (30), decepcionou e pode puxar

para baixo as apostas do mercado financeiro. Para Cunha, em 2014, o baixo

desemprego conta como ponto positivo, enquanto a inflação volta a acelerar

e “é alta para os governos dos últimos anos”. Malan concorda que a inflação

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é uma preocupação e reforça que o número precisa ficar dentro do teto da

meta estipulada.

“Estaríamos acima do teto se não fosse o controle de preços de gasolina,

diesel, energia elétrica. Vai ter que se aumentar, mas enquanto estiver abaixo

de 6,5% não tem problema. As pessoas passam a incorporar como natural

que a inflação é 6,5%. Pelo menos isso, porque ainda tem uma inflação

reprimida aí”, reclama Malan, que defende que o número volte para o centro

da meta de 4,5% ao ano.