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Grupo Economia e Sociedade
Pensar a Educação. Portugal 2015
Escolaridade Obrigatória
José Maria Azevedo, Ilídia Cabral, José Matias Alves e Paulo Melo
Nota de apresentação
Este texto assume que algumas das dimensões decisivas para a devida
consideração do tema que nos foi proposto – a escolaridade obrigatória - são
analisadas por outros grupos de trabalho deste Projeto, designadamente: a
educação de infância e a consideração da possível obrigatoriedade da atual
educação pré-escolar ou de parte desta; a inclusão de crianças e de jovens com
necessidades educativas especiais em todos os níveis de educação e ensino; a
formação, a seleção e a avaliação de educadores e de professores e, em geral,
as diversas facetas da condição docente; a afetação e a gestão dos recursos
físicos e financeiros; as unidades orgânicas e a autonomia das escolas; a
administração da educação e a sua descentralização.
Mesmo assim, temos consciência de que fomos muito seletivos. De forma
especial, desenvolvemos uma das matérias de política educativa que mais
carecem de debate público: o ensino profissional e vocacional. Depois de
caracterizar as recentes medidas de política, que configuram desqualificação e
desvalorização social deste ensino e afastamento das vias regulares dos alunos
com percursos de insucesso, enunciamos perspetivas para um ensino com
futuro, afirmando o valor educacional próprio de um ensino técnico, artístico,
tecnológico, experimental e prático em todas as modalidades de ensino e
defendendo a qualificação do ensino profissional e vocacional.
Os últimos anos de políticas educativas revelam claramente que não podemos
afirmar que “estamos de acordo nos princípios, só discordamos no modo de
fazer”. Não raro, discordamos nos princípios, pelo que importa debatê-los,
amarrando o mais possível essa discussão ao concreto da vida. Em certos casos
poderemos reconhecer consensos, em muitos outros obter compromissos,
noutros ainda aceitarmos que há caminhos diferentes e instâncias próprias de
decisão.
[email protected] A Areia dos Dias http://areiadosdias.blogspot.pt
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Sumário
A evolução da escolaridade obrigatória em Portugal
A escolaridade obrigatória com uma duração de 12 anos, decretada em 2009, constitui
o passo mais recente de uma longa evolução, acelerada nas últimas décadas, e de um
esforço de aproximação aos países mais desenvolvidos.
A distância entre a prescrição legislativa e a prática política e social tem vindo a reduzir-
se e tudo indica que será menor no último alargamento, que não padecerá de um
excesso de voluntarismo. Após anos a recomendar precaução, o Conselho Nacional de
Educação apoiou o novo regime, recordando as condições que esta opção requer e os
riscos que comporta.
A democracia universalizou a educação básica e generalizou a frequência de formações
de nível secundário. Esta evolução tem sido corroborada pelos resultados de estudos
internacionais que avaliam os conhecimentos e de competências dos alunos. As
Mulheres frequentam a escola durante mais tempo e obtêm melhores resultados do
que os Homens.
Pelo efeito conjugado dos investimentos realizados, dos níveis de escolarização
alcançados e da evolução demográfica, o alargamento para 12 anos não obriga ao
aumento global do número de docentes ou a uma nova expansão da rede escolar. Nas
últimas décadas, os recursos correram atrás da massificação; no início do século XXI,
importa aproveitar a progressiva redução da frequência para aumentar a qualidade e a
equidade da educação.
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Implicações da escolaridade obrigatória
A duração da escolaridade obrigatória responde a intuitos de natureza política,
económica, social e cultural. A obrigatoriedade implica que o direito de todos à
educação se torna uma obrigação para a sociedade, para a administração pública, para
as famílias e para os jovens. Para alguns constituirá um constrangimento ou mesmo uma
coação.
O nosso tempo traz problemas e oportunidades próprias, em matérias como as
alterações no mundo de trabalho e o desemprego estrutural, o uso intensivo das novas
tecnologias pelas crianças e pelos jovens, a dimensão internacional de referências e de
consumos ou as alterações no quotidiano das famílias. O desajustamento entre o
aumento do número de pessoas com qualificações académicas mais elevadas e os
postos de trabalho disponíveis interpela a educação e a formação mas também a
capacidade de a sociedade aproveitar produtivamente as competências disponíveis.
Hoje, as dificuldades principais não se situam tanto no acesso à escolaridade básica e
secundária, mas nas condições e na qualidade do sucesso, na adequação dos percursos
às expetativas dos jovens e às necessidades da sociedade.
Considerados os limites, por vezes severos, a educação pode ser um fator importante
na prevenção da reprodução da pobreza e da exclusão social e na promoção de uma
maior igualdade de oportunidades, em especial num país muito desigual como o nosso.
Importa valorizar o potencial da escola enquanto espaço público de convívio social, de
mistura, de aprendizagem da vida em sociedade. Impõe-se centrar a ação das escolas
na sua missão específica, sem descurar a sua inserção numa rede local de serviços.
Para assegurar a equidade no acesso aos benefícios da educação, é decisiva a aplicação
geral de critérios gerais de equidade social e territorial, embora complementada com
intervenções específicas em territórios mais vulneráveis.
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Não podemos esquecer o magno problema dos baixos níveis de escolarização da
população adulta, num contexto de instabilidade e de descontinuidade das políticas que
lhes são dirigidas.
A promoção do sucesso escolar
A passagem de uma escola de elites para uma escola de massas, mantendo os modelos
tradicionais de organização e de transmissão do conhecimento, acarretou novos
problemas de insucesso educativo e de abandono escolar precoce.
Apesar da diminuição progressiva das taxas de reprovação e de repetência, sobretudo
na última década, os níveis de retardamento permanecem demasiado elevados, com
pesados efeitos pessoais para os alunos e encargos para as suas famílias, para as escolas
e para a sociedade.
A partir da década de 70, o insucesso escolar passou a ser olhado como um problema
da escola e do “sistema”, com uma importância crescente na agenda política educativa.
Na década de 80, assistimos à primeira geração de programas de âmbito nacional
centrados na promoção do sucesso escolar, designadamente o PIPSE e o PEPT, a que se
seguiram os TEIP, na década de 90 e até ao presente. Em 2008, o ME lançou o “Programa
Mais Sucesso Escolar” para apoiar projetos de prevenção e de combate ao insucesso
escolar.
A experiência permite identificar os pressupostos essenciais da promoção do sucesso
escolar: uma política que reconheça às escolas a capacidade de se auto-organizarem e
que apoie os seus projetos; uma alteração dos modelos tradicionais de organização
escolar; uma mudança do modelo didático, dos métodos, dos recursos de ensino e da
relação pedagógica; a valorização das lideranças intermédias e de topo; uma mudança
construída com o envolvimento de todos, com metas e objetivos claramente
partilhados.
Considerados estes pressupostos, propõe-se cinco linhas de ação para uma promoção
mais eficaz do sucesso escolar: (re)organização do modelo escolar para enfrentar a
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heterogeneidade; funcionamento efetivo em ciclos de aprendizagem; práticas de
contratualização; uma gestão mais inteligente do currículo comum, com uma mediação
atenta ao desenvolvimento dos alunos, uma gestão diferenciada dos tempos e modos
de fazer aprender, uma avaliação formadora eficaz e um desenvolvimento curricular
colaborativo; inscrição das medidas e dos programas numa ação mais coletiva, solidária
e investigativa, no desenvolvimento de comunidades de aprendizagem profissional.
A estrutura da escolaridade obrigatória e a organização em ciclos
A atual divisão da escolaridade obrigatória em quatro ciclos resulta da história da sua
progressiva adoção – nem sempre estes doze anos são entendidos como um percurso
coerente, antes como a justaposição de ciclos formativos.
Entre os problemas mais referidos por alunos, encarregados de educação, profissionais
da educação e académicos encontram-se: a transição abrupta do regime de
monodocência assessorada do 1º ciclo para o regime predominantemente
monodisciplinar do 2º ciclo; o agravamento da dispersão no 3º ciclo, pois cada professor
trabalha com largas dezenas de alunos e cada aluno, em plena adolescência, interage
com muitos professores; disfunções no processo de transição do 3º ciclo para o ensino
secundário; a ausência ou a insuficiência do contributo da constituição de agrupamentos
de escolas para uma melhor integração do percurso escolar dos alunos.
Aderimos às propostas de organização da escolaridade obrigatória em dois ciclos: o
primeiro, de escolaridade básica, constituído por quatro anos em regime de
monodocência assessorada e por dois anos organizados por áreas disciplinares, com
uma referenciação privilegiada ao diretor de turma; o segundo ciclo, secundário, de seis
anos – dividido em duas partes – com saberes mais especializados, promoção mais
intencional de competências pessoais e diversificação de percursos formativos na
segunda parte.
Em qualquer caso, impõe-se o reforço da componente da orientação escolar e
vocacional ao longo da escolaridade obrigatória.
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O currículo dos ensinos básico e secundário
As opções curriculares não são meramente técnicas, visto que expressam visões da
sociedade e do ser humano, do seu presente e do seu futuro. Impõe-se uma reflexão
aprofundada sobre o currículo na escolaridade obrigatória que deve partir de um
levantamento cuidadoso e muito participado das competências necessárias para os
cidadãos fazerem face aos problemas com que se confrontam ao longo da sua vida nas
sociedades contemporâneas.
As tecnologias de informação e comunicação questionam a forma tradicional de ensinar
e de fazer aprender e exigem a revisão dos modos da organização do acesso ao
conhecimento, dos métodos, dos materiais, da própria aprendizagem do ofício de
professor.
Enquanto persistir a já questionada lógica disciplinar do atual 3º ciclo, será possível
proceder a alguns ajustamentos na organização do currículo, de modo a evitar um
excessivo número de disciplinas em cada ano e de alunos para cada professor.
Uma política que valoriza os exames nacionais gera empobrecimento e estreitamento
do currículo e de seleção social, especialmente gravosos no ensino básico. Não se põe
em causa a realização de exames nacionais, mas a sua aplicação no ensino básico e a
desvalorização de outras funções e modalidades de avaliação. Por outro lado, os
dispositivos de acesso ao ensino superior dependem demasiado dos exames do ensino
secundário, pelo que importa que as instituições do ensino superior considerem outros
dispositivos que desonerem a avaliação final do ensino secundário desse peso excessivo.
Ensino profissional ou vocacional e a diversificação curricular nos ensinos básico e
secundário
As mais recentes medidas de política educativa na área do ensino profissional e
vocacional (EPV) caracterizam-se por uma redução da formação geral e científica e por
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um aumento do tempo de formação em contexto empresarial, dispensando os jovens
de aprendizagens fundamentais e privilegiando uma socialização para a conformidade;
estas duas orientações centrais parecem conduzir o EPV para uma tecnologia social de
afastamento dos não sucedidos no sistema regular de ensino, criando vias paralelas e
consagrando uma hierarquia de saberes. Ainda assim, o EPV configura duas vias de valor
escolar, social e empresarial distinto - o ensino profissional para uma certa elite
profissional e o ensino vocacional para o pessoal subalterno na estrutura do trabalho.
Desta forma, cumpre um triplo desígnio: afastar do ensino científico-humanístico os
alunos que “não querem aprender”, instituir vias desvalorizadas, escolar e socialmente,
e expurgar da via nobre os saberes técnicos, tecnológicos e práticos que se considera
dispensáveis para o prosseguimento de estudos.
O aumento da frequência destas vias é expressivo, mas deve ser visto no quadro da
migração forçada dos alunos dos cursos tecnológicos. Por outro lado, à expansão
acelerada da oferta poderá não corresponder a esperada procura social, pois a oferta
tem de ser credível em termos de carreira e de oportunidade de trabalho socialmente
valorizado – o EPV não pode ser a via por excelência para reter os alunos nos sistemas
formativos e evitar o abandono escolar precoce.
Enunciam-se perspetivas para um ensino com futuro: (i) valorizar o ensino técnico,
artístico, tecnológico, experimental e prático nas vias regulares de estudo; (ii) incentivar
as comunidades escolares a promoverem o sucesso escolar efetivo desde os primeiros
anos de escolaridade; (iii) criar dispositivos que promovam uma cultura do trabalho, da
cooperação, da investigação-ação, da resolução de problemas, da criatividade; (iv)
valorizar o ensino profissional no campo escolar através de dispositivos e de ações de
orientação vocacional continuados e coerentes; (v) criar condições para que a procura
social do EPV se ative segundo uma lógica positiva, abrindo as portas para um trabalho
empresarial e socialmente reconhecido e facultando perspetivas de carreira
razoavelmente atrativas; (vi) territorializar as ofertas educativas do EPV, reguladas pela
lógica da procura empresarial e social, fundada numa análise das necessidades e das
oportunidades de desenvolvimento económico, social e cultural; (vii) manter tempos de
aprendizagem na formação geral e científica das ofertas de EPV; (viii) promover a
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alternância entre a escola, os centros de formação e as empresas; (ix) incentivar a
realização de programas de formação intensiva e generalizada de professores,
formadores e técnicos que intervêm no EPV; (x) introduzir as mudanças necessárias
seguindo um modelo de experiência piloto-avaliação-correção-eventual generalização.
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I. A evolução da escolaridade obrigatória em Portugal
1. A escolaridade obrigatória com uma duração de 12 anos é muito recente e constitui
o último passo de uma evolução acelerada nas últimas décadas. Assim, depois das
iniciativas legislativas do século XIX e dos impulsos da Primeira República, que chegou a
estabelecer a obrigatoriedade da frequência entre os 7 e os 12 anos de idade ou até
conclusão das cinco classes (1919), e após um período de redução da escolaridade
obrigatória nos anos 30, verifica-se que:
(i) em 1956, foi decretada a obrigatoriedade de frequência até à 3ª classe para
as raparigas e até à 4ª classe para os rapazes;
(ii) em 1960, é estabelecida a obrigatoriedade de frequência de um ensino
primário de 4 anos entre 7 e 12 anos de idade;
(iii) em 1964, a obrigatoriedade passou a ser de seis anos, seguindo-se a criação
de um ciclo complementar ao ensino primário e da Telescola;
(iv) em 1986, com a Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE - Lei n.º 46/86, de
14 de outubro), a escolaridade obrigatória sobe para nove anos, entre os 6 e os
15 anos de idade;
(v) em 2009, foi instaurada a obrigatoriedade de frequência até à conclusão de
formação de nível secundário ou até aos 18 anos de idade, que se aplica aos
alunos que iniciarem o nível secundário no ano letivo 2012-2013 e seguintes (Lei
n.º 85/2009, de 27 de agosto). Será o Decreto-Lei n.º 176/2012, de 2 de agosto,
a concretizar as condições administrativas de aplicação da nova obrigatoriedade.
2. Esta aceleração acompanha o esforço de aproximação aos países mais desenvolvidos,
em especial aos da OCDE e da União Europeia, dada a perceção continuada do “atraso”
do país na educação dos seus cidadãos. Não será um mero acaso que a obrigatoriedade
de 9 anos tenha sido decretada no mesmo ano da adesão de Portugal à CEE.
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Já neste século, designadamente com a “Estratégia de Lisboa”, a União Europeia tem
definido objetivos cada vez mais exigentes em matéria de formação de nível secundário
e tem mostrado pretender condicionar os financiamentos dos fundos estruturais ao
cumprimento das metas definidas para a União, como é o caso da meta relativa à saída
precoce da escola.
3. Em Portugal, o Estado vai tentando impor à sociedade o que esta, em boa parte, ainda
não reconhece nem valoriza. De facto, sabemos que houve sempre uma grande
distância entre a prescrição legislativa e a prática política e social, como se pode
concluir do confronto da evolução dos níveis de escolarização com o ritmo previsto na
legislação, ou da comparação do ano de instituição da obrigatoriedade com a
aproximação à universalização da frequência.1 Essa distância, que alguns autores têm
considerado ilustrativa de uma “construção retórica da escolaridade”, tem vindo a
reduzir-se nos sucessivos alargamentos da escolaridade obrigatória e tudo indica que
será menor na alteração decretada em 2009.2
4. O tema da pertinência e da oportunidade do alargamento da escolaridade obrigatória
tem sido tratado recorrentemente pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).
Limitando-nos ao alargamento de 9 para 12 anos, encontramos múltiplas referências.
Assim, no Parecer n.º 1/2003, a propósito da revisão curricular do ensino secundário, o
Conselho recomenda precaução no alargamento da obrigatoriedade e prioridade ao
investimento na criação de condições de universalização:
[...] “o CNE entende que [o aumento da escolaridade obrigatória até aos 12 anos] se trata de uma
opção política generosa, inscrita no esforço que o país tem realizado para recuperar um atraso
estrutural muito vincado, mas é também uma opção que comporta riscos sociais e económicos,
que é preciso acautelar previamente, que implica uma transformação profunda do nível
secundário, de modo a acolher todos os portugueses, sem excepção, e que exige um esforço
financeiro que importa calcular de antemão. Além disso, o CNE entende que esta decisão política,
1 Um mero exemplo: o Decreto-Lei n.º 538/79, de 31 de Dezembro, definia condições, incentivos e punições para “assegurar um efetivo cumprimento da escolaridade obrigatória” de 6 anos, decretada 15 anos antes.
2 David Justino (2014), Escolaridade obrigatória: entre a construção retórica e a concretização política, in Rodrigues, Maria de Lurdes (org.), 40 anos de Politicas de Educação em Portugal: A Construção do Sistema
Democrático de Ensino. Lisboa: Almedina.
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que não deve patrocinar qualquer abaixamento da qualidade do ensino e da formação, em vez
de enfatizar a obrigatoriedade dos cidadãos em frequentar mais três anos de escolaridade,
deveria valorizar o papel e o esforço do Estado e de todas as outras instituições promotoras de
ensino e de formação na criação de condições de universalização do acesso ao nível secundário.”
No Parecer n.º 2/2004, que incidiu sobre propostas de alteração da LBSE, o registo é
semelhante:
“Reportando-nos à extensão da escolaridade obrigatória para 12 anos, importa destacar que os
dados estatísticos disponíveis mostram que, no presente, o sistema educativo português tem
sido incapaz de tornar efectivo o sucesso da actual escolaridade obrigatória de 9 anos. Por este
facto, a sua extensão a 12 anos deve ser acompanhada, forçosamente, de medidas tendentes a
prevenir abandonos precoces e fenómenos de marginalização daí decorrentes.”
No relatório final do Debate Nacional sobre Educação (2007), nota-se uma ligeira
alteração de perspetiva:
“O DNE sublinhou a necessidade de se melhorar drasticamente a qualidade do ensino e da
formação de nível secundário, de modo a acompanhar o objectivo nacional de criar condições
sociais para a sua universalização crescente. As qualificações das novas gerações devem ter como
referência mínima o nível secundário.”
No Parecer n.º 3/2009, relativo à proposta de lei que visava estabelecer um novo regime
da escolaridade obrigatória, o CNE expressa um apoio claro à medida:
“Importa desde já assinalar a principal conclusão geral do Conselho - entendemos que esta
medida de alargamento da escolaridade obrigatória até ao termo do nível secundário e aos 18
anos é muito positiva e deve ser considerada, antes de mais, como uma medida de política social
de grande impacto potencial na sociedade portuguesa.
Saúda-se, portanto, a medida proposta, que constitui uma oportunidade importante para
melhorar o nível de qualificação da população portuguesa, em especial das suas camadas mais
jovens, o que terá certamente benefícios gerais a nível cultural, social e económico, num curto e
médio prazos, se for conduzida de forma adequada.”
Na Recomendação n.º 3/2012, sobre o prolongamento da escolaridade universal e
obrigatória, o CNE recorda as condições que esta opção requer e os riscos que comporta:
“A decisão política de prolongar a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano ou até aos 18 anos só
se revela politicamente sustentável, em liberdade e democracia, se a ela estiver ligado um real
projeto de mobilização social, capaz de proporcionar a todos os portugueses quer o acesso a este
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benefício cultural quer a sua efetiva concretização em condições de sucesso. […] De outro modo,
se esta mobilização social não ocorrer ou se não forem geradas as condições efetivas de
cumprimento por parte de todos os jovens, a nova obrigatoriedade escolar pode tornar-se um
fator acrescido de cristalização das desigualdades sociais, penalizando aqueles que se encontram
em piores condições culturais, económicas e geográficas. Estes jovens e as suas famílias, que já
investiram muito numa escolaridade de nove anos, podem passar, de um momento para o outro,
para uma situação de incumpridores; mais do que isso, os jovens passarão doravante a ser social
e legalmente considerados desqualificados.”
5. A democracia portuguesa investiu fortemente na educação escolar e progrediu de
forma notável na melhoria da escolarização das crianças e dos jovens, universalizando
a educação básica e generalizando a frequência de formações de nível secundário. O
esforço desenvolvido nas últimas décadas não basta para anular as consequências de
séculos de pouco investimento na alfabetização e na escolarização da população, mas
permitiu uma aproximação aos níveis médios dos outros países europeus no que
respeita às faixas etárias mais jovens.
De facto, após a quase universalização da frequência escolar no grupo etário de 12-14
anos na década de 90, a década seguinte assistiu a um progresso significativo na
escolarização da população de 15-17 anos. Assim, nos marcos censitários de 1991, 2001
e 2011, os valores da escolarização bruta no nível etário de 15-17 anos, ou seja, da
frequência total neste grupo etário independentemente do nível escolar frequentado,
evoluíram de 62,5% para 81% e para 93,2% no Continente, de 48,8% para 74,3% e para
92,7% na Região do Norte, a NUTS II com valor de partida mais baixo, e de 31% para
60,5% e para 90% no Tâmega, a NUTS III com valores mais baixos. A evolução geral é
acompanhada de uma redução das disparidades territoriais.3
O impacto positivo nos índices de escolarização nas últimas décadas é bem patente na
melhoria generalizada dos níveis de conclusão dos diferentes ciclos de estudo. Assim,
em 2011, no grupo etário de 20-29 anos, 96% dos residentes no Continente concluíram
o 6º ano de escolaridade, 87% concluíram o 9º ano e 61% concluíram o ensino
3 Fonte: INE, Recenseamentos. In CCDRN (2013), Escolarização na Região do Norte – Evolução das
Disparidades Territoriais 1991-2011, Porto - http://www.ccdr-n.pt/fotos/editor2/ccdrn/escolarizacaorn2013.pdf
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secundário. No recenseamento anterior (2001), os valores correspondentes foram de
87%, 67% e 43%.
Os melhores resultados quantitativos têm sido corroborados pelos resultados mais
favoráveis obtidos em estudos internacionais recentes, em matéria de avaliação de
conhecimentos e de competências dos alunos.4
6. À imagem do que acontece em boa parte dos países europeus, as Mulheres
frequentam mais tempo a escola e obtêm melhores resultados do que os Homens, em
especial na área da língua materna. Como a aproximação geral à frequência universal
implica uma recuperação da parte dos Homens, as diferenças de género nos índices de
escolarização têm vindo a diminuir, sendo agora mais baixas no grupo etário de 15-17
anos do que no de 18-23 anos.
7. Neste contexto, a opção pela obrigatoriedade de uma escolaridade de 12 anos ou da
frequência de educação e formação até aos 18 anos de idade, tomada em 2009, não
padece de um excesso de voluntarismo perante a capacidade de progresso
demonstrada, o que também ajudará a explicar a mencionada evolução da posição do
CNE entre o parecer de 2003 e o de 2009. Pelo efeito conjugado dos investimentos
realizados, da evolução demográfica e dos níveis de escolarização alcançados, este
alargamento não vai obrigar a uma nova expansão da rede escolar, sem prejuízo da
necessidade de requalificação de muitos equipamentos, ou ao aumento global do
número de docentes.
No entanto, estamos perante um objetivo muito exigente, se considerarmos que a
massificação da frequência tem sido acompanhada por problemas graves de insucesso
e de retenção escolar e se pretendermos uma escolaridade orientada pela perspetiva
de uma formação plural mas qualificante para todos.
8. Em 2012-2013, os professores são 30 200 no 1º ciclo (sendo 26 789 no ensino público),
26 871 no 2º ciclo (24 149 no público), 76 101 no 3º ciclo e no ensino secundário (68 448
no público), 6211 na educação especial (6119 no público) e escolas profissionais 8884
4 Designadamente no PISA – Program Programme for International Student Assessment, no PIRLS - Progress in
International Reading Literacy Study e no TIMMS - Trends in International Mathematics and Science Study.
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(7329 no público); os estabelecimentos que abrangem a educação e formação de nível
básico e secundário são 6131, dos quais 5253 são públicos.5
As previsões de frequência escolar referentes ao Continente, que englobam o ensino
público e o privado e têm em consideração as projeções demográficas e os objetivos de
universalização da frequência até ao 12º ano, indicam que entre 2012/13 e 2017/18,
ocorrerá uma descida de frequência de cerca de 8% no 1º ciclo (de 418 mil para 386 mil
alunos), de 8% no 2º ciclo (de 232 mil para 213 mil), de 2% no 3º ciclo (de 370 mil para
363 mil) e um aumento de 4% no ensino secundário regular e artístico (de 195 para 203
mil) e de 8% noutras modalidades de educação e formação de nível secundário (de 132
para 142 mil).6 Salvo alteração improvável, os anos pós-2018 serão de quebra
progressiva nos sucessivos ciclos, visto que, em 2013, a população residente dos grupos
etários de 0-4 anos e de 5-9 anos é significativamente inferior à do grupo etário de 10-
14 anos (INE).
Face a esta constatação, importaria perceber como reorientar os recursos nas opções
que incidam no dimensionamento das escolas e das turmas, num acompanhamento
mais personalizado dos alunos, nas soluções atempadas para as dificuldades de
aprendizagem, na integração das crianças e dos jovens com necessidades educativas
especiais, no reforço do apoio técnico às escolas, etc. Nas últimas décadas do século XX,
os recursos correram atrás da massificação da frequência escolar; no início do século
XXI, como aproveitaremos a redução dos efetivos para aumentar a qualidade da
educação e procurar garantir a igualdade de oportunidades para uma realização pessoal,
escolar, social e profissional?
5 DGEEC/ME, Estatísticas da Educação 2012/2013.
6 DGEEC, Modelo de previsão do número de alunos em Portugal por regiões - impacto do alargamento da
escolaridade obrigatória, 2014, in http://www.dgeec.mec.pt/np4/64/, consulta em junho de 2014.
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II. Implicações da escolaridade obrigatória
9. Os sucessivos alargamentos da escolaridade obrigatória respondem em diferentes
graus a desígnios de natureza política, económica, social e cultural, tais como a
transmissão da cultura entre gerações, o reforço das identidades nacionais e a formação
emancipadora dos cidadãos para o desenvolvimento da democracia, a modernização da
sociedade, a preparação de mão-de-obra mais qualificada e a valorização dos saberes e
dos conhecimentos cada vez mais vastos.
A obrigatoriedade implica que a assunção do princípio da educabilidade de todos e o
reconhecimento do direito de todos à educação se tornam também uma obrigação para
a sociedade, para a administração pública central e local, para as famílias e para os
jovens. Para alguns constituirá um constrangimento ou mesmo uma coação.
Importa que cada criança encontre espaços, tempos e instrumentos de aprendizagem
para compreender o mundo, adquirir espírito crítico, viver com autonomia e de forma
ativa e criativa, ou seja, que adquira conhecimentos e competências necessários para
viver nas nossas sociedades e para participar na contínua recriação do mundo. Para se
pensar a escolaridade obrigatória nunca é demais recordar os clássicos quatro pilares da
UNESCO: aprender a conhecer - adquirir instrumentos de compreensão do mundo e da
vida, aprender a fazer - para poder agir, intervir e recriar na sociedade, aprender a viver
juntos - participar e cooperar com os outros e aprender a ser - como síntese dos outros
3 pilares.7
10. Cada época traz os seus problemas e as suas oportunidades e a transmissão da
cultura percorre hoje muitos e diversos caminhos. Enunciemos apenas alguns tópicos:
(i) as alterações no mundo de trabalho e as implicações do desemprego estrutural; (ii)o
uso intensivo das novas tecnologias pelas crianças e pelos jovens e as consequências,
7 Educação. Um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para
o século XXI, 1996.
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ainda pouco conhecidas, no que respeita às competências mobilizadas, às formas de
aprender e de se expressar, à capacidade de se concentrar numa tarefa e de estar numa
sala de aula ou ao reconhecimento do papel do professor enquanto mediador no
processo de transmissão da cultura e dos saberes; (iii) o convívio das crianças e dos
jovens com dimensões internacionais, bem vivas na comunicação, nos entretenimentos
e nas artes e nos espetáculos; (iv) as alterações no quotidiano das famílias, de
constituição cada vez mais plural, e na relação entre as gerações.
11. No que respeita à escolaridade obrigatória, as dificuldades principais deste tempo
não se situam tanto no acesso, mas nas condições e na qualidade do sucesso, na
adequação dos percursos às expetativas dos jovens e às necessidades da sociedade.
Quanto mais se alonga a escolaridade obrigatória, mais se acolhe nas escolas a
diversidade de situações, de vivências e de problemas dos adolescentes e dos jovens e
mais se exige de uma instituição que viveu muito tempo sob o mandato da regulação
das expetativas sociais e da gestão da seleção. As velhas tensões entre o aluno e a
criança, os saberes e as competências, o professor académico e o professor pedagogo,
a instrução e a educação complexificam-se: “Numa escola que acolhe todos ou quase
todos os alunos até aos 18 anos de idade, a clivagem entre aluno e adolescente não é
mais do que uma ficção, visto que agora o tempo da adolescência e o da juventude
confundem-se com o tempo da escola. (…) De toda a parte, os problemas sociais, os da
diversidade das culturas e das famílias, invadem a escola e a clivagem entre a instrução
e a educação torna-se obsoleta, desde que nos afastemos dos estabelecimentos
protegidos pela seleção social e escolar”.8
A citada Recomendação n.º 3/2012 do CNE enumera um conjunto de preocupações
ouvidas de viva voz aos diretores das escolas quanto à concretização do alargamento da
escolaridade obrigatória:
8 François Dubet, “Heur e malleur de l’école républicaine”, in Sciences Humaines, nº 263, Octobre 2014.
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17
“Destacam-se: falta de motivação dos alunos para o prosseguimento de estudos; receio
do aumento da indisciplina e do absentismo; necessidade de rever e reforçar o apoio
social escolar dos alunos e das famílias com mais carências económicas; resistência das
famílias em situação de pobreza e com baixo capital cultural; a inadequação entre a
oferta que as escolas estão em condições de promover e aquilo que seria justificado
para criar oportunidades educativas de qualidade para todos; as sérias limitações de
recursos escolares em matéria de orientação escolar e vocacional, de mediação familiar
e de apoio especializado a alunos com necessidades educativas especiais.”
Impõem-se duas orientações estratégicas: (i) centrar as escolas na sua missão
específica, face aos riscos de excesso de encargos, mas sem que tal implique a
desvalorização da dimensão socioeducativa da educação ou uma separação artificial
entre educação e instrução que não atenda ao contexto familiar, social e cultural. Para
tal, as escolas não podem trabalhar sós, têm de se inserir numa rede local de serviços,
assumir as suas responsabilidades e exigir que outros assumam as suas, procurando
compromissos e contratos, integrando os seus projetos educativos em projetos
educativos e formativos mais abrangentes, quer do ponto de vista territorial, quer
institucional; (ii) diversificar as soluções no campo da organização das escolas e do
trabalho pedagógico, o que requer mais autonomia das instituições para uma resposta
adequada aos alunos e aos problemas concretos, como desenvolveremos no capítulo III.
12. A relação entre a valorização da dimensão da empregabilidade na educação e a
capacidade de o sistema económico e social criar empregos é geradora de
perplexidades. De facto, uma das manifestações mais evidentes da crise financeira,
económica e social que vivemos é o elevado nível de desemprego entre a população
jovem, mais escolarizada do que nunca, o que aumenta o risco de desinvestimento social
na educação, face à menor remuneração do investimento em formações prolongadas.
Ainda que afete menos os que têm formação superior, o desemprego incide de forma
muito intensa nos que têm qualificações de nível secundário.
O desajustamento entre o rápido aumento do número de pessoas com qualificações
académicas mais elevadas e os postos de trabalho qualificados disponíveis é motivo de
interpelação mas não põe forçosamente em causa a necessidade ou a pertinência do
investimento em educação. Para tal, importa ter uma perspetiva alargada dos objetivos
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18
da educação – se o desenvolvimento da economia requer trabalhadores com sentido
crítico e com criatividade, convive com um número significativo de pessoas sem essas
capacidades, pelo que a democracia tem de ser mais exigente do que a economia - e
não considerar unicamente o curto prazo, como referiremos no capítulo VI. Por outro
lado, a interpelação também se deve dirigir ao funcionamento do mercado de trabalho
e à capacidade de a sociedade aproveitar produtivamente as competências disponíveis.
13. A obrigatoriedade escolar remete-nos para as questões do lugar social da escola,
entre a reprodução das desigualdades e a promoção da mobilidade social. Num país
muito desigual como é o nosso, a realidade tem-nos prevenido contra expetativas
desmesuradas: por si só, a escola tem uma capacidade limitada de combater a
desigualdade, a dualização social ou a compartimentação social dos territórios e das
cidades. Mas, considerados os limites, há que reconhecer que a educação pode ser um
fator importante na prevenção da reprodução da pobreza e da exclusão social e na
promoção de uma maior igualdade de oportunidades.
Por outro lado, não valorizamos suficientemente o potencial da escola enquanto espaço
público de convívio social, de mistura, de aprendizagem da vida em sociedade, na sua
diversidade e na sua pluralidade. Um dos pilares da UNESCO - aprender a viver juntos –
encontra aqui uma aplicação muito exigente: aprender a crescer juntos.
Numa e noutra perspetiva, não são nada neutras as opções em matéria de rede escolar
e de “carta escolar”, de organização pedagógica do trabalho escolar, de orientação para
o sucesso de todos ou de ação social escolar.
14. As escolas situadas em áreas mais pobres têm mais dificuldade em beneficiarem da
colaboração de outras instituições e serviços, em desenvolverem um trabalho integrado
com as famílias e em serem valorizadas como recurso da comunidade e encontrarem na
comunidade um recurso para a sua ação. Esta preocupação ganha uma pertinência
acrescida com o risco de uma maior vinculação territorial das diferenças sociais.
Sabemos que a questão decisiva é a aplicação geral de critérios de equidade social e
territorial nas decisões em campos como a oferta educativa, a rede e os transportes, o
acolhimento das crianças com necessidades educativas especiais, a ação social escolar,
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19
o acesso a refeições e a afetação de recursos em geral. Mas tal não dispensa e, em certas
dimensões, exige o apoio suplementar a intervenções territorializadas (ex.: áreas de
educação prioritária), que se têm revelado instâncias de atribuição de mais recursos às
escolas que trabalham em situações mais exigentes. Sabemos que a equidade não é
tratar todos por igual, é proporcionar condições para um maior equilíbrio no fim.
15. Embora centremos o tratamento da escolaridade obrigatória nas faixas etárias às
quais esta se aplica, não podemos esquecer o magno problema dos baixos níveis de
escolarização dos adultos, que, além do mais, sofrem a erosão do valor das suas
habilitações perante o progressivo alargamento da obrigatoriedade. Acresce que na
área da formação, do reconhecimento e da validação de competências de adultos o
investimento público tem refletido a instabilidade e a grande descontinuidade de
políticas, o que não favorece a recuperação necessária.
III. A promoção do sucesso escolar
16. O acesso massificado à educação, a que assistimos na segunda metade do século XX,
deu-se sem que tenha havido alterações de fundo do modelo escolar. A escola abriu as
portas à diversidade, respondendo à heterogeneidade com uma uniformidade de
processos pedagógicos e organizacionais. A passagem de uma escola de elites para uma
escola de massas, mantendo os modelos tradicionais de organização e transmissão do
conhecimento, acarretou, como se aludiu, graves problemas de insucesso educativo e
de abandono escolar precoce.
17. Apesar de o aumento generalizado dos níveis de escolarização ter sido
acompanhado pela diminuição progressiva das taxas de reprovação e de repetência ao
longo da década anterior, a democratização do acesso ainda não foi acompanhada por
uma efetiva democratização do sucesso. A taxa de retenção e desistência no ensino
básico evoluiu, em Portugal, de 13,6% em 2001/02 para 10,4% em 2012/13, com a
seguinte distribuição segundo os ciclos: de 8,5% para 4,9% no 1º ciclo, de 15,6% para
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12,5% no 2º e de 19,2% para 15,9% no 3º. Refira-se, no entanto, que, nos dois últimos
anos considerados, se verifica uma inversão dessa tendência descendente, em especial
no 2º ciclo – de 7,4% em 2010/11 para os referidos 12,5% em 2012/13. No ensino
secundário, os valores da taxa correspondente evoluíram de 37,4% em 2001/02 para
18,8% em 2012/13, incluindo, neste último ano, o ensino profissional.9
Assim, os níveis de retardamento nos percursos escolares permanecem demasiado
elevados, com pesados efeitos pessoais para os alunos e encargos para as suas famílias,
para as escolas e para a administração da educação, para o Estado e para a sociedade
em geral. E quanto mais cedo este insucesso se verifica, maior o impacto nos percursos
escolares, dado o efeito estruturante das aprendizagens básicas e o conhecido efeito
cumulativo do insucesso.
Se recorrermos ao indicador europeu “saída precoce da escola sem conclusão do ensino
secundário no grupo etário de 18-24 anos”, os valores para Portugal evoluem de 44,2%
em 2001 para 36,9% em 2007 e 19,2% em 2013. Esta melhoria notável aproxima o país
da média da UE 27 (17,2% em 2001, 15,0% em 2007 e 12,0% em 2013), mas situa-o ainda
distante da meta de 10% definida para 2020.
18. A partir da década de 70 o insucesso escolar começou a ser olhado como um
problema organizacional, assumindo uma importância crescente na agenda política
educativa. Como consequência assistimos, na década de 80, àquela que pode ser
designada como a primeira geração de medidas centradas no sucesso escolar, que se
consubstanciaram numa série de programas de intervenção com o objetivo de reduzir o
insucesso e o abandono escolares.
O “Programa Interministerial de Promoção do Sucesso Educativo” (PIPSE), iniciado em
1987, consistiu na primeira intervenção sistemática no problema do insucesso escolar.
A sua prioridade foi o combate ao insucesso e ao abandono escolares nos primeiros
ciclos da escolaridade básica, inicialmente em zonas social e culturalmente
desfavorecidas.
9 Fonte: DGEEC/ME, Educação em números 2014.
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Destaca-se também o “Programa de Educação para Todos” (PEPT), iniciado em 1991,
pela implicação da sociedade civil na prevenção do insucesso, através da formação de
redes de parceria. O grande objetivo do PEPT foi o de assegurar a escolaridade até ao 9º
ano e preparar os jovens para o mercado de trabalho, evitando a exclusão social.
19. Ainda na década de 90, em 1996, foram criados em Portugal os “Territórios
Educativos de Intervenção Prioritária” (TEIP). Este Programa assume a feição de uma
medida de discriminação positiva para as escolas e as populações de zonas marcadas
por situações de exclusão social e escolar, segundo uma lógica de promoção e
articulação de medidas territorializadas.
O Programa TEIP foi alterado pelos despachos normativos nº 55/2008, de 23 de outubro,
e nº 20/2012, de 3 de outubro, e encontra-se em funcionamento, no ano letivo de
2013/14, em 137 agrupamentos e escolas não agrupadas.10
O Programa apresenta atualmente os seguintes objetivos: melhorar a qualidade das
aprendizagens traduzidas no sucesso educativo dos alunos; combater a indisciplina, o
abandono escolar precoce e o absentismo; criar condições para a orientação educativa
e a transição qualificada da escola para a vida ativa e promover a articulação entre a
escola, os parceiros sociais e as instituições de formação presentes no território
educativo.11
20. Apesar das vantagens que os vários programas de promoção do sucesso educativo
desenvolvidos nas décadas de 80 e 90 tiveram na forma como passaram a ser olhadas
as questões relativas ao sucesso educativo, a verdade é que o seu impacto foi limitado.
Na realidade, decretar programas de promoção do sucesso educativo em que domina
uma lógica de cima para baixo (pensados e desenhados pela tutela para serem
implementados nas escolas, tornando-as meras executoras) não garante o ativar de
vontades que permita a criação efetiva de condições para o sucesso de qualquer projeto.
Apesar de o discurso sobre a política educativa ter mudado no período em referência,
esta mudança não foi acompanhada, de forma generalizada, de uma mudança efetiva
10 In http://programateip.blogspot.pt, consulta em julho de 2014.
11 In: http://www.dgidc.min-edu.pt/teip/, consulta em julho de 2014.
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ao nível das práticas. Os resultados positivos em matéria de abandono, de absentismo,
de disciplina e de organização das escolas são mais evidentes do que uma melhoria
significativa nas aprendizagens dos alunos.
21. Os programas de intervenção supra referidos têm em comum, para além de serem
pensados pela administração, o facto de não preverem alterações significativas ao nível
da gramática escolar.12 O “Programa Mais Sucesso Escolar” pretende favorecer uma
mudança de paradigma das políticas educativas, visto que, por um lado, integra projetos
pensados numa lógica de baixo para cima, ou seja, que partem das escolas,
reconhecendo-se-lhes a capacidade de se auto-organizarem com vista à resolução dos
seus problemas; por outro lado, porque prevê mudanças ao nível do modelo escolar
tradicional, até à data sem alteração.
O Programa nasce a partir dos modelos de sucesso de duas escolas envolvidas na
conceção e no desenvolvimento de estratégias diferenciadas no combate ao insucesso
e ao abandono escolares, nomeadamente a Escola Secundária com 3º Ciclo Rainha Santa
Isabel, em Estremoz (“Projeto Turma Mais”), e o Agrupamento de Escolas de Campo
Aberto, em Beiriz (“Projeto Fénix”). Estas escolas definiram, no quadro da autonomia de
gestão pedagógica de que dispunham, projetos de intervenção com vista à melhoria dos
resultados escolares dos seus alunos. Para tal, foram mobilizados diferentes recursos e
estratégias pedagógicas, que permitiram uma reorganização dos tempos e espaços de
aprendizagem. As experiências de trabalho destas escolas, consideradas como boas
práticas, acabaram por inspirar a decisão de topo de generalizar e difundir essas práticas
junto de outras escolas.
No ano letivo de 2008/09, o Ministério da Educação lançou o “Programa Mais Sucesso
Escolar”, com o objetivo de apoiar o desenvolvimento de projetos de prevenção e
combate ao insucesso escolar no ensino básico. Para além de projetos das tipologias
“Fénix” e “Turma Mais”, houve também espaço para o desenvolvimento de projetos de
12 Por gramática escolar deve entender-se as estruturas regulares e as regras que organizam o trabalho de instrução,
como por exemplo as práticas organizacionais estandardizadas de divisão do tempo e do espaço escolares, o
nivelamento dos alunos e a sua distribuição por turmas e a compartimentação do conhecimento em disciplinas.
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escola com modelos próprios, que se incluíram numa terceira tipologia do Programa,
denominada “Híbrida”.
No primeiro ano de implementação deste Programa (2009/2010) foram abrangidas 123
escolas e 12 000 alunos dos três ciclos do ensino básico. Os agrupamentos e as escolas
cujos projetos foram selecionados assinaram um contrato-programa com o Ministério
da Educação para quatro anos letivos, com explicitação dos apoios e dos recursos
concedidos, bem como das metas e das obrigações definidas para cada escola. Estes
contratos reconhecem às escolas competências no âmbito da flexibilização curricular,
da organização pedagógica e da gestão de recursos humanos. Uma avaliação extensiva
dos dois primeiros anos de implementação do Programa apresentou resultados
bastante positivos e sustentados, demonstrando uma redução assinalável das taxas de
insucesso escolar.13
22. Tendo presentes as lições da experiência, apresentamos os pressupostos da
promoção do sucesso escolar que enquadram e orientam as nossas propostas:
a) É a política educativa global que gera e gere as possibilidades de inovação,
mudança e melhoria dentro das organizações escolares. Só uma política que
incentive e apoie projetos construídos de baixo para cima e que reconheça às
escolas a capacidade de se auto-organizarem com vista à resolução dos seus
problemas poderá criar as condições para melhorar, de forma significativa,
consistente e duradoura, os processos e os resultados educativos.
b) A gramática escolar - ou seja, as estruturas regulares e as regras que
organizam o trabalho de instrução - determina em larga medida o processo
de escolarização e os seus sentidos. Só uma intervenção que altere os
modelos de organização escolar tradicionais tem condições para fazer
emergir novas possibilidades de sucesso. A rigidez, a compartimentação e a
inflexibilidade de uma gramática escolar desenvolvida para ensinar a todos
13 Calheiros, M. M., Lima, L., Barata, C., Patrício, J. & Graça, J. (2012). Avaliação do Programa Mais Sucesso
Escolar. Lisboa: Direção-Geral de Estatísticas de Educação e Ciência/Ministério da Educação e Ciência.
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como se fossem um só não se coadunam com novas formas de pensar e
combater o (in)sucesso escolar.
c) Apesar da sua centralidade, a alteração das condições organizacionais como
ponto de partida para repensar as questões do (in)sucesso, por si só, não
basta para orientar a escola para o sucesso. A alteração do modelo didático,
o modo como se pensa e concretiza a ação estratégica na sala de aula, os
métodos, os recursos de ensino e a relação pedagógica são variáveis
fundamentais na construção das possibilidades de sucesso.
d) As lideranças intermédias e de topo são fundamentais em qualquer processo
de mudança bem sucedida em educação. A orientação das escolas para a
melhoria dos processos e dos resultados educativos está dependente, em
larga medida, de lideranças que concentrem a sua ação na visão e nos
objetivos da escola, nas estruturas e nos processos académicos e nas pessoas,
tornando-se motores para a melhoria do desempenho organizacional.
Pensamos em lideranças atentas às aprendizagens (não só às dos alunos, mas
às de toda a comunidade educativa), que conhecem os modos de ensinar dos
professores e que ensaiam dispositivos de compreensão dos resultados e dos
processos, gerando dinâmicas de implicação e compromisso.
e) Só uma visão integrada e sistémica que rejeita dicotomias esterilizantes e
integra e combina o exterior e o interior, a organização e a pedagogia, as
culturas organizacionais e as profissionais tem condições de gerar e sustentar
novos modos de ação pedagógica. A complexidade da escola enquanto
organização, da ação pedagógica e do próprio ser humano não se
compadecem com visões unilaterais e espartilhadas da realidade. É na riqueza
das interações entre as diversas estruturas do ato de ensinar que poderemos
encontrar respostas para a melhoria desse todo indivisível que é a ação
educativa. A mudança organizacional bem sucedida em educação é uma
construção conjunta e plural que parte de uma visão e de uma missão comuns
e da procura conjunta dos caminhos que permitam atingir metas e objetivos
claramente partilhados.
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23. Considerados estes pressupostos, avançamos com cinco propostas para uma
promoção mais eficaz do sucesso escolar:
a) Alteração do modelo escolar tradicional. Não podemos continuar a ensinar os
alunos como se todos fossem um só14, tendo como referência a ficção do aluno
médio. Este foi o modelo da escola moderna, que permitiu a escolarização de
milhões de pessoas e significou um grande avanço civilizacional, mas esgotou-
se, sendo necessário repensá-lo e adequá-lo à escola dos nossos dias. A
heterogeneidade invadiu a escola, tornando necessária a sua (re)organização
para a diversidade. Em termos concretos, tal significa: equacionar novos
modos de agrupar os alunos, segundo matrizes flexíveis e mutáveis,
respeitando sempre a natureza inclusiva dos objetivos da educação de forma
a que estes dispositivos de diferenciação pedagógica, numa lógica de
discriminação positiva, aumentem as oportunidades e não as diferenças,
evitando o efeito de estigmatização de que alguns alunos possam ser alvo;15
fazer um uso mais inteligente do tempo e dos espaços escolares; criar formas
de gestão curricular mais inovadoras, integradas e flexíveis e criar
mecanismos de diferenciação pedagógica do trabalho escolar, que permitam
dar um outro sentido ao tempo de instrução. Estas alterações só serão
possíveis através da criação de dinâmicas de trabalho colaborativo entre os
professores, que lhes permitam refletir e agir conjuntamente sobre as
práticas letivas, implicando o compromisso de cada um pela aprendizagem de
todos.
b) Ciclos de aprendizagem. A reformulação do modelo escolar não deve ignorar
a importância do funcionamento efetivo em ciclos de aprendizagem, como
14 Barroso, J. (1995). Os Liceus: organização pedagógica e administração (1836-1960). Lisboa: Junta Nacional
de Investigação Científica e Fundação Calouste Gulbenkian; Barroso, J. (2001). O século da escola: do mito da reforma à reforma de um mito. In T. Ambrósio, E. Terrén, D. Hameline & Barroso, J., O Século da Escola. Entre a Utopia e a Burocracia (pp. 63-94). Porto: Edições ASA.
15 Na avaliação externa realizada por Calheiros et al. (2012), o efeito de estigma foi, aliás, a dimensão do projeto potencialmente sentida como mais ameaçadora. Sugerem-se, portanto, sistemas flexíveis que possam adaptar-se às necessidades em mutação e que funcionem ao nível da manutenção da motivação e do interesse pela aprendizagem de
todos os alunos, ao longo e para além da escolaridade obrigatória.
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variável-chave organizadora da progressão escolar, visto que, não havendo a
necessidade de tomar a decisão de progressão ou retenção no final de cada
ano, há mais tempo para organizar, diferenciar e promover a aprendizagem
de todos. Uma verdadeira lógica de organização do ensino por ciclos permite
mais tempo para individualizar os percursos, ajustar os ritmos de ensino e
aprendizagem, gerar combinatórias de grupos, estratégias e uma avaliação
formadora que incrementem lógicas de sucesso. Mas tal implica que a escola
se predisponha a organizar-se de um modo mais flexível e simultaneamente
mais rigoroso para que mais alunos tenham moratórias diferenciadas para
aprenderem.
c) Uma contratualização coerente. O desenvolvimento das práticas educativas
tem mais condições de evolução se se basear no princípio da contratualização.
Contudo, um contrato que suporta e incentiva o desenvolvimento tem de
fazer-se respeitando e promovendo a autonomia (relativa) das partes,
reconhecendo e promovendo a diversidade e a complementaridade,
partilhando recursos, poderes e responsabilidades, em suma, dando corpo e
sentido à comunidade educativa.
d) Uma gestão mais inteligente do currículo. É sabido que o currículo do ensino
básico representa o património a que todos os cidadãos devem aceder, sob
pena de serem privados de um bem de primeira necessidade.
No entanto, será aconselhável que as medidas e os programas de promoção
do sucesso escolar se ancorem numa gestão mais inteligente do currículo
comum, pois é este que está aqui em questão. Uma gestão mais inteligente
passa por uma mediação mais atenta ao estádio de desenvolvimento dos
alunos, por uma gestão mais diferenciada dos tempos e modos de fazer
aprender, uma avaliação formadora mais eficaz, um desenvolvimento
curricular mais colaborativo dos departamentos curriculares (nomeadamente
na construção de bancos de recursos didáticos) e dos conselhos de turma (ou
conselhos de aprendizagem de determinados agrupamentos de alunos). Uma
gestão mais flexível do currículo no âmbito de uma ativação do ciclo de
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aprendizagem seria seguramente um valor acrescentado na promoção das
aprendizagens.
e) Desenvolvimento de Comunidades de Aprendizagem Profissional. Os docentes
só terão condições de enfrentar e de vencer os desafios da melhoria dos
processos e dos resultados educativos se o fizerem numa lógica de
profissionalismo interativo 16 e de construção de Comunidades de
Aprendizagem Profissional. 17
De facto, o número de alunos que não querem aprender num cenário de
prolongamento violento da escolaridade obrigatória, a desvalorização das
credenciais escolares num mercado de trabalho que parece querer descobrir
as vantagens de uma mão-de-obra barata que dispensa a escolarização
prolongada, as várias crises que chegam quotidianamente à escola – familiar,
social, laboral, económica…- fazem do processo de escolarização uma
atividade de elevado risco e muitas vezes uma missão quase impossível.
Neste cenário, as medidas e os programas de promoção do sucesso escolar só
poderão ser verdadeiramente eficazes se se inscreverem numa ação mais
coletiva, mais solidária e mais investigativa. A emergência das comunidades
de aprendizagem precisa de espaços e tempos de encontro, de objetos de
trabalho comuns e de valores educativos e pedagógicos partilhados que
permitam efetivamente uma produção coletiva de respostas.
IV. A estrutura da escolaridade obrigatória e a organização em ciclos
16 Hargreaves, A. (2003). Teaching in the Knowledge Society – Education in the Age of Insecurity. New York:
Teachers College Press.
17 Bolívar, A. (2012). Melhorar os processos e os resultados educativos – O que nos ensina a investigação. Vila
Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão.
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24. A atual divisão da escolaridade obrigatória em quatro etapas/ciclos resulta do
processo histórico da sua progressiva adoção, sumariamente referido no ponto 1.
Partindo do princípio de que a expansão da escolaridade obrigatória está estabilizada,
não fazendo grande sentido alargá-la a jovens adultos, é pertinente reavaliar as
etapas/ciclos, modalidades e currículos. Para tal, importa entender estes doze anos
como um percurso coerente e não apenas como a justaposição de ciclos formativos
existentes, com o propósito de evitar incongruências e bloqueios geradores de insucesso
e de desperdício de recursos pessoais e coletivos.
25. Sem a preocupação de sermos exaustivos, enunciamos os problemas que são mais
frequentemente referidos por alunos, famílias, profissionais da educação e académicos
(embora seja difícil separar estas dimensões, atemo-nos aqui às questões de estrutura
e organização, deixando para posterior abordagem a dimensão curricular):
a) Transição abrupta do regime de monodocência assessorada do 1º ciclo para
o regime predominantemente monodisciplinar do 2º ciclo, que geralmente
implica 9 professores.
b) O problema agrava-se no 3º ciclo em que as disciplinas passam a ser 11,
algumas delas com cargas horárias semanais de 90 minutos, o que significa
um ou dois tempos semanais de trabalho, o que não permite o
estabelecimento de uma relação verdadeiramente formativa e educativa,
pois cada professor trabalha com largas dezenas de alunos e cada aluno, em
plena adolescência, interage com muitos professores.
c) O processo de transição do 3º ciclo para o ensino secundário, pela idade em
que ocorre e pelas opções que implica sobre a natureza dos cursos e áreas de
estudos a prosseguir, também gera disfunções que se podem atenuar num
outro quadro de organização do ensino obrigatório.
d) A constituição de agrupamentos de escolas integrando toda a escolaridade
obrigatória, embora seja determinada por objetivos de outra natureza,
poderia favorecer uma melhor integração do percurso escolar dos alunos. Tal
não está a acontecer, pelo menos na generalidade das situações, o que
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poderá ser explicado pela dimensão desmedida dos agrupamentos e pelos
entraves ao exercício de uma maior autonomia e poderá ser obviado por uma
outra organização da escolaridade obrigatória.
26. Pelo exposto, é imperioso debater, estudar e propor outra organização para os doze
anos de escolaridade obrigatória. Aderimos a um dos caminhos possíveis:
a) Organização da escolaridade obrigatória em dois ciclos, conforme acontece
em muitos outros países europeus.
i. O primeiro, de escolaridade básica, constituído por quatro mais dois
anos. Os primeiros quatro em regime de monodocência assessorada
(atual primeiro ciclo) e os outros dois organizados por áreas
disciplinares com poucos, nunca mais de quatro, docentes e uma
referenciação privilegiada ao diretor de turma. A pessoa do aluno, as
suas potencialidades e necessidades, o seu contexto social e familiar, os
recursos e os constrangimentos estarão no centro da atividade
educativa.
ii. O segundo ciclo, secundário, de seis anos – dois mais quatro, quatro
mais dois, três mais três, as diferentes possibilidades podem ser
articuladas num percurso coerente – de abertura ao mundo com
saberes mais especializados, promoção mais intencional de
competências pessoais e diversificação de percursos formativos nos
anos terminais do ciclo.
A orientação vocacional - entendida como um percurso progressivo e
contínuo de descoberta a partir de experiências escolares e do
conhecimento de diferentes realidades de atividade profissional e,
ainda, de um raciocínio ético sobre qual o lugar de cada um no mundo
e o contributo para o bem comum - há de ocorrer na transição de um
para o outro ciclo de escolaridade, prolongando-se por todo o ciclo
secundário.
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b) Assim, o primeiro ciclo de seis anos colocaria a centralidade na criança, com
os seus contextos sociais e familiares, de modo a adquirirem “as bases do
desenvolvimento nos seus diversos aspetos físicos, motores, sociais,
emocionais, cognitivos, linguísticos, comunicacionais, etc., sendo a
autonomia o sinal de desenvolvimento que se vai construindo em todos os
instantes, num todo que é «a pessoa» e que junta diferentes dimensões
desenvolvimentais.18 A articulação com as famílias, os serviços de saúde e de
segurança social, as instituições particulares de solidariedade social e outros
recursos comunitários assume nesta fase da escolaridade uma importância
decisiva tendo em vista garantir que nenhuma criança fica para trás e que
tem acesso a apoios qualificados, sem exagerar o mandato da escola. Esta
perspetiva tem como horizonte uma educação de base entendida como um
bem público, um dos instrumentos privilegiados de construção de equidade
e de garantia da coesão social.19 A construção das identidades vai a par da
descoberta do mundo, da progressiva apreensão das suas diferentes
dimensões, física, social, artística e cultural, em situações orientadas pelo
professor e em interação com os pares, alimentando a curiosidade e
promovendo o prazer das descobertas e o gosto de as dizer/escrever.
c) Na fase inicial do ensino secundário teria lugar o aprofundamento de
conhecimentos científicos, artísticos e tecnológicos numa base disciplinar
(aprender a conhecer) e a realização de atividades com intencionalidade
formativa transdisciplinar tendo em vista o desenvolvimento de
competências sociais e organizativas e a mobilização integradora dos saberes
disciplinares (aprender a viver juntos, aprender a fazer). A descoberta do
mundo físico e social, a realização de experiências educativas diversificadas
marcam o início da descoberta de interesses e capacidades individuais a
18 Gabriela Portugal, Relatório do estudo A Educação das Crianças dos 0 aos 12 Anos, p. 33, in
http://www.cnedu.pt/content/antigo/files/pub/EducacaoCriancas/5-Relatorio.pdf (consulta em 20/07/2014).
19 Maria do Céu Roldão, Relatório do estudo A Educação das Crianças dos 0 aos 12 Anos, p. 186 e 187, in http://www.cnedu.pt/content/antigo/files/pub/EducacaoCriancas/5-Relatorio.pdf (consulta em 20/07/2014).
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aprofundar nos três últimos anos da formação secundária. Só então deverá
ter lugar a diversificação de percursos formativos, garantindo-se sempre a
intermutabilidade e a equivalência escolar de saberes.
27. Neste contexto, impõe-se considerar o reforço da componente da orientação
escolar e vocacional ao longo de toda a escolaridade obrigatória, prevendo tempos para
o atendimento regular e obrigatório de cada aluno pelo diretor de turma/curso, tendo
em vista a valorização da pessoa do aluno no processo educativo. Ter tempo para a
dimensão “aprender a ser”, para esboçar horizontes de futuro, formular desejos,
detetar limitações ou educar a perseverança requer uma criteriosa seleção dos
educadores de referência e uma aposta continuada na sua formação. E a partir daqui a
flexibilização curricular adquire um novo significado, no pressuposto de que o diretor de
turma/curso é o líder de uma equipa pedagógica, integrada em comunidades de
aprendizagem profissional (cf. ponto 23).
V. O currículo dos ensinos básico e secundário – algumas questões
28. Qualquer que seja a dimensão ou a perspetiva de abordagem da escolaridade
obrigatória, as questões relacionadas com o currículo são determinantes. Por esse
motivo, são tratadas de forma pertinente noutros momentos deste texto. Assumindo o
que aí está diagnosticado e proposto, equacionamos aqui alguns problemas transversais
que assumem especial acuidade no atual contexto social e político.
As opções curriculares não são meramente técnicas, pois decorem de mundividências
e de visões políticas, de diferentes e por vezes antagónicos horizontes de futuro. Os
currículos expressam modelos de sociedade e visões do ser humano, do seu presente e
do seu futuro; mais, como mostra Philippe Perrenoud, tendemos a pensar a educação
escolar não como uma forma de preparar para a vida tal qual é mas como “uma forma
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de preparar para a vida tal como deveria ser”.20 Em 1999, num trabalho para a UNESCO,
Edgar Morin estruturou a sua proposta de Sete saberes necessários à educação do futuro
não de acordo com disciplinas ou áreas temáticas, mas de problemas: (i) as “cegueiras”
do conhecimento: o erro e a ilusão; (ii) os princípios de um conhecimento pertinente;
(iii) ensinar a condição humana; (iv) ensinar a identidade terrena; (v) enfrentar as
incertezas; (vi) ensinar a compreensão; (vii) a ética do género humano.
29. Uma reflexão aprofundada sobre o currículo na escolaridade obrigatória deveria
partir de um levantamento cuidadoso e muito participado das competências necessárias
para os cidadãos fazerem face aos problemas com que se confrontam ao longo da sua
vida nas sociedades contemporâneas. O que é mesmo preciso exigir que se ensine e se
aprenda? A escolaridade obrigatória não deve estar tão condicionada ao
prosseguimento de estudos de nível superior, que estabelecem como requisitos
determinados saberes disciplinares. Como sublinha Perrenoud, na obra citada, o ensino
obrigatório não pode ser entendido como uma espécie de meio de conquista do “direito
de entrada” no ensino pós-secundário.
Os alunos, em especial os que não prosseguem estudos após concluírem o tempo da
escolaridade obrigatória, ficam desprovidos de recursos fundamentais para
enfrentarem os desafios da sua vida enquanto pessoas, cidadãos e trabalhadores. Nesta
perspetiva, Perrenoud defende que a escola deveria promover competências como
“saber preservar a saúde”, “saber orientar-se no mundo do trabalho” ou “saber agir
perante as administrações, a justiça, os seguros, o sistema bancário (…), o crédito e o
emprego”. 21
Não se questiona a importância dos saberes disciplinares, mas os critérios de seleção
das disciplinas e, sobretudo, dos conteúdos que as preenchem, bem como a
desvalorização do tempo para trabalhar competências a partir de situações/problema.
20 Perrenoud, P. (2011). Quand l’école prétend préparer à la vie, Développer des compétences ou enseigner
d’autres savoirs? Issy-les-Moulineaux: ESF.
21 Perrenoud define competência como “poder de agir eficazmente numa classe de situações, mobilizando e combinando, em tempo real e de maneira pertinente, recursos intelectuais e emocionais” (obra citada, pág. 45).
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A extinção das áreas curriculares não disciplinares no 3º ciclo do ensino básico e da área
de projeto nos cursos científico-tecnológicos do ensino secundário, independentemente
da avaliação que se possa fazer da sua concretização em muitas escolas, significa um
reforço da lógica disciplinar.
30. O pilar “ser com os outros” não pode limitar-se a uma abordagem no âmbito das
disciplinas de pendor social e humanístico. Este pilar merece mais atenção nos projetos
educativos dos agrupamentos e um tempo escolar específico: eu e os outros, a
reciprocidade, a justiça social, o bem comum, o raciocínio ético, a cidadania. As questões
ambientais são hoje mais transversais ao currículo do que as questões sociais porque
estas implicam-nos mais.
31. As tecnologias de informação e comunicação questionam a forma tradicional de
ensinar e de fazer aprender e vão obrigar a uma revolução na educação. Importa
certamente desenvolver uma literacia digital, a par da literacia de leitura e escrita, da
científica ou da matemática, mas a resposta terá de ir mais fundo e implicar os modos
da organização do acesso ao conhecimento, os métodos, os materiais, a própria
aprendizagem do ofício de professor, na formação inicial e contínua.
32. Mesmo enquanto persistir a já questionada lógica disciplinar do atual 3º ciclo do
ensino básico, é possível proceder a alguns ajustamentos na organização do currículo,
de modo a evitar um excessivo número de disciplinas por ano escolar e um exagerado
número de alunos para cada professor. Concentrar as horas letivas previstas para
disciplinas com uma menor carga horária na totalidade dos três anos do ciclo em apenas
dois contribuiria para diminuir o número de disciplinas e professores com que os alunos
teriam de se relacionar em cada ano. O número de tempos letivos semanais seria maior,
possibilitando aos professores uma relação educativa mais efetiva com um menor
número de alunos. Como pode um professor estabelecer uma relação educativa
diferenciada com 150 ou 200 alunos, situação frequente nas nossas escolas?
33. A opção por uma política que valoriza a avaliação externa das aprendizagens, isto é
os exames nacionais, com impacto na classificação dos alunos nos anos finais de cada
ciclo de escolaridade tem um efeito de empobrecimento e estreitamento do currículo e
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de seleção social, especialmente gravoso no ensino básico, pelo que importa pô-la em
causa e estudar alternativas:
i. Como os exames obedecem a uma lógica disciplinar no final dos três ciclos do
ensino básico – Português e Matemática – o peso destas disciplinas nas
atividades escolares acaba por ser sobrevalorizado. Este facto é
especialmente pernicioso no 1º ciclo, uma etapa de formação em que os
saberes devem ser integrados em experiências significativas para os alunos,
evitando-se uma especialização precoce. O Estudo do Meio e as Expressões
perdem relevância no currículo real.
ii. Continua a ser discutível a existência de avaliação externa a estas disciplinas
no final do 2º ciclo quando este se devia ainda organizar, como prevê a LBSE,
em áreas interdisciplinares, embora não seja essa a prática na maioria das
escolas portuguesas. Assim, os professores deste ciclo assumem-se
primeiramente como professores de uma disciplina escolar (“professor de
Matemática”, “professor de Inglês”) a quem interessa a sua disciplina, numa
perspetiva isolada, e não a promoção de aprendizagens fundamentais para os
alunos.22 O modelo disciplinar do antigo liceu impôs-se ao definido na Lei de
Bases.
iii. A preparação para os exames é assumida pelos professores, pelas famílias e
pelos próprios alunos como uma prioridade que secundariza outros saberes e
experiências, ainda que contemplados no currículo, adotando a tipologia das
provas de anos anteriores. Assim, os saberes e competências suscetíveis de
serem avaliados em exame, segundo um modelo específico de prova,
sobrepõem-se aos que não o são.
iv. A realização de exames finais no ensino secundário gera também um
estreitamento do currículo pelo peso que estes têm no sistema em vigor de
acesso ao ensino superior, especialmente nos cursos científico-humanísticos,
22 Natércio Afonso, Relatório do estudo A Educação das Crianças dos 0 aos 12 Anos, p. 186, in
http://www.cnedu.pt/content/antigo/files/pub/EducacaoCriancas/5-Relatorio.pdf (consulta em 20/07/2014).
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e condiciona fortemente as atividades letivas e a orientação do trabalho dos
alunos. O que se ensina, as metodologias utilizadas e os instrumentos de
avaliação obedecem quase exclusivamente ao objetivo de obter uma boa
classificação nos exames que permita o acesso ao curso superior desejado.
v. Não se põe em causa a realização de exames nacionais com impacto na
classificação dos alunos no final do ensino secundário, científico-humanísticos
e profissionais, mas sim a sua quantidade e a desvalorização de outras
modalidades de avaliação. Assim, do mesmo modo que os alunos do ensino
profissional realizam uma prova de aptidão profissional no final da sua
formação, porque não hão de os alunos dos cursos científico-humanísticos,
com menos exames nacionais, realizar uma prova pública que avalie
conhecimentos, integração de saberes, criatividade, capacidades de
organização e comunicação? Estes cursos já não seriam apenas um mero
passaporte para o ensino superior, passando a ter uma vertente qualificante
intrínseca. Por outro lado, os dispositivos de acesso ao ensino superior
dependem demasiado dos exames do ensino secundário, pelo que importaria
que as instituições do ensino superior considerassem outras modalidades de
gestão do acesso que desonerassem a avaliação final do ensino secundário
desse peso excessivo.
VI. Ensino profissional ou vocacional e a diversificação curricular nos
ensinos básico e secundário
34. Neste campo identificamos as caraterísticas essenciais das recentes medidas de
política educativa referentes ao ensino profissional e vocacional:
a) A evolução recente do ensino profissional, do ensino vocacional e do ensino
dual carateriza-se essencialmente por i) uma redução da formação geral e
científica e ii) um aumento do tempo de formação em contexto empresarial.
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Esta redução e este aumento fragilizam a qualidade da formação ministrada
porque diminuem a capacidade de compreender as exigências e os desafios
profissionais e porque o país não dispõe de uma rede de empresas que dê
resposta a esta prescrição.
b) Este cenário concretiza-se em nome da desejabilidade de uma maior
articulação entre as escolas, centros de formação e empresas, acreditando-se
que esta ligação eleva a capacitação profissional e a empregabilidade das
pessoas. No entanto, o recente Parecer do Conselho Nacional da Educação
(Parecer nº 5/2014, de 24 de junho) sobre o projeto de diploma que aprova o
regime jurídico do ensino e formação profissional dual assinala expressivas
reservas a esta dupla opção que parece indiciar o propósito de acolher jovens
durante o período da escolaridade obrigatória dispensando-os de
aprendizagens fundamentais para uma intervenção no mercado de trabalho
e privilegiando uma socialização para a conformidade.
c) Estas duas orientações centrais parecem conduzir o ensino
profissional/vocacional (EPV) para uma tecnologia social de afastamento dos
não sucedidos no sistema regular de ensino, criando vias paralelas que não
perturbem o caminho dos herdeiros num sistema ainda organizado para as
elites. Esta opção representa um primeiro sinal de desvalorização escolar do
EPV, consagrando uma hierarquia de saberes que não se afigura benéfica para
a aprendizagem e o desenvolvimento dos seres humanos, pois precisam de
uma formação pluridimensional. Note-se, ainda, a configuração de uma clara
estratificação e hierarquização de vias formativas com diferente valor escolar
e social, destinadas, em larga medida, a manter a estratificação social: a via
regular, a via profissional (batizada agora de dual) e a via vocacional dual.
d) O EPV, ao reduzir de forma substantiva a formação cultural e científica, veicula
a ideologia de que um profissional não precisa de saber pensar muito, não
precisa de saber ler para além da superfície do texto. Precisa apenas de
executar gestos técnicos simplificados. Ainda assim, configura duas vias de
valor escolar, social e empresarial distinto o ensino profissional supostamente
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configurado para uma certa elite profissional e o ensino vocacional
configurado para o pessoal subalterno na estrutura do trabalho.
e) Deste modo, o EPV cumpre um triplo desígnio (mesmo que retórica e
oficialmente negado): limpar do ensino científico-humanístico os alunos que
não querem aprender, instituir vias desvalorizadas, escolar e socialmente, e
expurgar da via nobre os saberes técnicos, tecnológicos e práticos que são
dispensáveis para o prosseguimento de estudos.
f) Assim operando, esta política educativa e formativa dificilmente poderá atrair
de forma expressiva os jovens que diz querer. A procura social não se deixará
enganar por uma oferta que cava a sua própria sepultura ao não assegurar
um sentido de futuro profissional valorizado. Aliás, o parecer do CNE refere
que a intenção legislativa da “promoção da qualidade da oferta do Ensino
Dual e a melhoria da sua atratividade e reconhecimento pelos jovens, pelas
famílias, empregadores e pela sociedade em geral” carece de concretização.
Idêntica visão é retomada pelo conselheiro Bravo Nico ao expressar em
declaração de voto ao Parecer que se trata de “um percurso de aprendizagem
potencialmente desqualificado e desqualificador de quem o percorrer”.
g) De facto, a procura social da educação e da formação é mais determinada pela
perspetiva do valor presente e futuro em termos de oportunidades de vida
social e profissional do que pela proliferação das ofertas. E será esta
constatação que explica a dificuldade de cumprir uma meta que vem sendo
sucessivamente enunciada desde os anos 90 do século passado – fazer com
que 50% dos alunos do nível secundário frequentem vias de ensino e
formação de natureza técnica e profissional.
h) O aumento progressivo da frequência destas vias (de 28,7% no total da
frequência de nível secundário em 2000/2001 para 42,8% em 2011/2012) é
expressivo (CNE, 2014), mas deve ser visto no quadro da migração forçada
dos alunos dos cursos tecnológicos que foram sendo descontinuados. Note-
se a este propósito que em 1997/1998 a frequência destes cursos
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representava 28,8 % da frequência do ensino secundário, correspondente a
cerca de 118 mil jovens,23 evidenciando já nessa altura um decréscimo
progressivo do valor relativo da frequência dos cursos gerais de
prosseguimento de estudos.
i) À expansão acelerada da oferta poderá não corresponder a esperada procura
social, pois não basta decretar a valorização do EPV. Para que a procura se
torne expressiva, a sociedade e, em especial, o potencial candidato tem de
ver nessa oferta um sentido de oportunidade, tem de percecionar que o EPV
é portador de uma esperança de futuro profissional condigno, ou seja, a
oferta tem de ser credível em termos de carreira e de oportunidade de
trabalho socialmente valorizado.
j) Corre-se pois o risco de estes jovens frequentarem vias formativas de escasso
valor escolar, social e profissional e habitarem numa terra de ninguém até que
o sistema entre numa rota de desertificação e implosão. A ser consistente esta
visão, não pode ser esta a via por excelência para reter os alunos nos sistemas
formativos e evitar o abandono escolar precoce.
35. Face à visão enunciada enunciam-se as seguintes perspetivas para um ensino com
futuro:
a) Valorizar o ensino técnico, artístico, tecnológico, experimental e prático nas
vias regulares de estudo. Esta inscrição tem um valor educacional próprio pois
afirma que todos os saberes são, em escalas e combinatórias variáveis,
importantes para o desenvolvimento das pessoas. E tem também um valor
simbólico na medida em que afirma que os saberes técnicos (e artísticos) são
importantes mesmo para quem quer realizar estudos de longa duração.
b) Incentivar as comunidades escolares – designadamente os professores, os
pais, as autarquias locais – a promoverem o sucesso escolar efetivo desde os
primeiros anos de escolaridade. Esta linha de ação aliviaria a pressão política
23 CNE (1999), O Ensino Secundário em Portugal. Lisboa.
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e social para criar vias de escape para todos aqueles que têm estado
condenados ao insucesso e libertaria o anátema de um EPV destinado aos
deserdados do sistema nobre.
c) Criar dispositivos que promovam uma cultura do trabalho, da cooperação, da
investigação-ação, da resolução de problemas, da criatividade, em todos os
níveis e percursos do sistema educativo e formativo.
d) Valorizar o ensino profissional no campo escolar através de dispositivos e de
ações de orientação vocacional continuados e coerentes, da construção de
uma cultura que reconheça a importância do saber-fazer criativo, de uma
gestão de programas que valorize o essencial e implique os alunos na
construção ativa do seu próprio conhecimento.
e) Criar condições para que a procura social do EPV se ative segundo uma lógica
positiva, isto é, se constitua como uma primeira escolha porque vê nessas
aprendizagens uma possibilidade de realização pessoal, social e profissional.
E esta visão só se efetiva se a frequência escolar abrir as portas para um
trabalho empresarial e socialmente reconhecido e valorizado e facultar
perspetivas de carreira razoavelmente atrativas.
f) Territorializar as ofertas educativas do EPV, isto é, entregar a órgãos de
natureza municipal e/ou intermunicipal o poder de deliberar sobre a rede de
cursos, mediante um cenário propositivo nacional fundamentado mas não
vinculativo. Esta nova forma de instituir a oferta formativa deveria escapar à
lógica da oferta instalada (isto é, à lógica dos recursos existentes) e passar a
ser regulada pela lógica da procura empresarial e social, fundada numa
análise das necessidades e das oportunidades de desenvolvimento
económico, social e cultural.
g) Manter tempos de aprendizagem na formação geral e científica das ofertas
de EPV de forma a que o currículo praticado capacite os jovens para saber
pensar, saber comunicar, saber trabalhar em equipa, saber analisar
problemas e contribuir para a sua resolução. Esta sequência aberta de
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competências transversais é um ingrediente-chave da vida laboral, da vida
pessoal e social.
h) Promover a alternância entre a escola, centros de formação e empresas,
gerando dinâmicas de interconhecimento, de reconhecimento, de diálogo e
de compreensão mútua. Esta interação é desejável desde o 3º ciclo do ensino
básico – ou num 1º ciclo do ensino secundário, como aqui se advoga - devendo
progressivamente alargar-se e consolidar-se no caso do EPV. Nestas
circunstâncias, um currículo que intencionalize estes contactos e faculte
recursos que lhe deem sustentação é um dos pré-requisitos essenciais.
i) Incentivar a realização de programas de formação intensiva e generalizada de
professores, formadores e técnicos que intervêm no EPV, dotando-os de
capacidade e competências pedagógicas capazes de ativar aprendizagens
relevantes e pertinentes por parte de todos os alunos.
j) Instituir um modo gradual de introduzir as mudanças de orientação no campo
do EPV, ensaiando um modelo de experiência piloto-avaliação-correção-
eventual generalização. Praticamente todas as medidas de política tomadas
nos últimos anos se autodispensaram de avaliar as novas configurações
curriculares e organizacionais, partindo do princípio de que a realidade se
encaixaria no decretado. Mas esta ilusão pode trazer graves problemas às
pessoas e ao sistema, sendo sensato cultivar uma maior cautela e humildade
neste campo tão complexo.
Porto, 3 de outubro de 2014