História ..Metodo

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HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DIÁLOGOS POSSÍVEIS 1 Eric de Sales 2 A palavra História é de origem grega, que significa investigação, informação. Sua função é a de fornecer à sociedade uma explicação sobre ela mesma. Contudo, a palavra história na língua portuguesa remete a dois significados: ao do entendimento da história como passado, ou seja, o que já ocorreu, como também à escrita sobre o passado, ao estudo dos acontecimentos passados, ou seja, à narrativa sobre as experiências passadas. Nas palavras de Vavy P. Borges, “[...] história não é o passado, mas um olhar dirigido ao passado [...] o historiador elabora sua própria representação. A história se faz com documentos e fontes, com idéias e imaginação”. (BORGES, 2003, p. 45-46) É sabido o quanto é importante o conhecimento produzido pela história, bem como o exame crítico de historiografia, isto é, da escrita da história. Segundo Kalina Vanderlei Silva e Maciel Henrique Silva, historiografia seria “[...] o exame dos discursos de diferentes historiadores, também de como estes pensam o método histórico” (SILVA; SILVA, p. 2005, p. 189). Entendendo a história como uma narrativa construída a partir da interpretação e análise das fontes, ao escrever sobre um determinado tema os autores acabam por tornar suas obras referências bibliográficas e, concomitantemente, também fontes para os estudos posteriores ao período em que aqueles escreveram e viveram. Nessa mesma direção reflete Keith Jenkins e Michel de Certeau. O primeiro assinala que embora a história seja um discurso sobre o passado, está em uma categoria diferente dele. Tal diferenciação se evidencia quando atentamos para o fato de que o passado já aconteceu e não pode mais ser recuperado, muito menos fidedignamente, como supôs o projeto positivista. Recupera-se não o passado, mas visões sobre ele, sendo que tais visões dependem da lente que o historiador usou. Assim, o enfoque que o historiador utiliza em sua análise – político, econômico, social ou cultural – estabelece a importância, o significado por ele conferido à dimensão do relato do passado que ele priorizou o acento predominante. Uma forma de conceber a escrita da história semelhante à visão de Paul Veyne, segundo a qual como tudo é história, a história termina sendo o que foi escolhido pelo historiador. Ou como concebe Jenkins (2005), ao afirmar que “[...] nenhum relato consegue recuperar o passado tal qual ele 41

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HISTRIA E HISTORIOGRAFIA DILOGOS POSSVEIS1 Eric de Sales2 ApalavraHistriadeorigemgrega,quesignificainvestigao,informao.Sua funoadefornecersociedadeumaexplicaosobreelamesma.Contudo,apalavra histria na lngua portuguesa remete a dois significados: ao do entendimento da histria como passado, ou seja, o que j ocorreu, como tambm escrita sobre o passado, ao estudo dos acontecimentos passados, ou seja, narrativa sobre as experincias passadas. Nas palavras de VavyP.Borges,[...]histrianoopassado,masumolhardirigidoaopassado[...]o historiador elabora sua prpria representao. A histria se faz com documentos e fontes, com idias e imaginao. (BORGES, 2003, p. 45-46) sabido o quanto importante o conhecimento produzido pela histria, bem como o exame crtico de historiografia, isto , da escrita da histria. Segundo Kalina Vanderlei Silva e MacielHenriqueSilva,historiografiaseria[...]oexamedosdiscursosdediferentes historiadores, tambm de como estes pensam o mtodo histrico (SILVA; SILVA, p. 2005, p.189).Entendendoahistriacomoumanarrativaconstrudaapartirdainterpretaoe anlise das fontes, ao escrever sobre um determinado tema os autores acabam por tornar suas obrasrefernciasbibliogrficase,concomitantemente,tambmfontesparaosestudos posteriores ao perodo em que aqueles escreveram e viveram. Nessa mesma direo reflete Keith J enkins e Michel de Certeau. O primeiro assinala que embora a histria seja um discurso sobre o passado, est em uma categoria diferente dele. Tal diferenciao se evidencia quando atentamos para o fato de que o passado j aconteceu e no pode mais ser recuperado, muito menos fidedignamente, como sups o projeto positivista. Recupera-se no o passado, mas vises sobre ele, sendo que tais vises dependem da lente que o historiador usou. Assim, o enfoque que o historiador utiliza em sua anlise poltico, econmico, social ou cultural estabelece a importncia, o significado por ele conferido dimensodorelatodopassadoqueelepriorizouoacentopredominante.Umaformade conceber a escrita da histria semelhante viso de Paul Veyne, segundo a qual como tudo histria,ahistriaterminasendooquefoiescolhidopelohistoriador.Oucomoconcebe J enkins (2005), ao afirmar que [...] nenhum relato consegue recuperar o passado tal qual ele 41 era, porque o passado so acontecimentos, situaes etc., e no um relato. J que o passado passou, relatos s podero ser confrontados com outros relatos, nunca com o passado. Michel de Certeau conduz a uma leitura muito mais aprofundada do fazer histrico, assim como da historiografia. Segundo o prprio, [...] em histria como em qualquer outra coisa,umaprticasemteoriadesembocanecessariamente,maisdiamenosdia,no dogmatismo de valores eternos ou na apologia de um intemporal (2006, p. 66). Assim temos uma importante dado que deve guiar toda analise histrica e historiogrfica de fontes: o lugarsocial.Comoditoacima,aoanalisaropassadonorecuperamosopassadoemsua totalidade, mas vises sobre ele, sendo que tais variam conforme a lente terica utilizada pelo historiador. Pode-se dizer que lugar social onde se articulam a produo historiogrfica e o localdeproduo,oscnones(scio-econmico,polticoecultural)quedirecionamo pesquisador na hora da produo. Entender e analisar a produo da histria admitir que ela faz parte da realidade da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada enquanto atividade humana. (2006, p. 66) [...]umcursoideolgicoseajustaaumaordemsocial,damesmaforma comocadaenunciadoindividualseproduzemfunodassilenciosas organizaes do corpo. Que o discurso como tal, obedea as regras prprias, istonooimpededearticular-secomaquiloquenodiz[...]odiscurso cientifico que no fala de sua relao com o corpo social , precisamente, o objeto da histria (2006,p. 70-71). Nessesentido,aorealizarumaanlisedeprodueshistricas,apreocupaono deveseradeestabelecerqualnarrativahistricaqualifica-secomomaisverdadeira,mais prxima do que ocorreu no passado, mas de perceb-la como uma interpretao dentre as vriaspossibilidadesexistentes,umamanifestaodaperspectivadohistoriadorcomo narrador. Como assinala J enkins: [...] o mundo ou o passado sempre nos chegam como narrativas e que no podemos sair dessas narrativas para verificar se correspondem ao mundo ou aopassadoreais,poiselasconstituemarealidade[...]Socilogose historiadores diferentes interpretam de maneira distinta o mesmo fenmeno, pormeiodeoutrosdiscursosqueestosempremudando,sempresendo decompostos e recompostos, sempre posicionados e sempre posicionando-se, equeporissoprecisamqueaquelesqueosusamfaamumaautocrtica constante[...]noimportandooquantoahistriasejaautenticada, amplamenteaceitaouverificvel,elaestfadadaaserumconstructo pessoal,umamanifestaodaperspectivadohistoriadorcomonarrador [...]vemosporintermdiodeuminterpretequeseinterpeentreos acontecimentos passados e a leitura que deles fazemos [...] O passado que conhecemossemprecondicionadopornossasprpriasvises,nosso prprio presente. Assim como somos produtos do passado, assim tambm 42 o passado conhecido (a histria) um artefato nosso (J ENKINS, 2005, p. 28-29, 32-33). Separaaqueleautor,ahistriaumaformadediscursosobreumdeterminado acontecimento, todavia nem todos tm essa mesma concepo. Os historiadores dos Annales, por exemplo, at a bem pouco tempo entendiam que era possvel escrever uma histria total das experincias humanas passadas. Ora, o passado alm de ser irrecupervel (pois j passou), sua totalidade jamais poder ser alcanado visto que, em si, ilimitado, o que inviabiliza sua apreensototal.Ohistoriadorapenasconstriumanarrativasobreopassadoapartirda anlise dos vestgios desse. O passado ento re-criado, re-significado segundo sua viso, sua subjetividade e cdigos culturais que informam sua localizao no mundo. Tais cdigos sero legveis e perceptveis atravs do discurso narrativo em que apresentar o resultado de seu trabalho. Mostrou-sequetodainterpretaohistricadependedeumsistemade referncia; que este sistema permanece uma filosofia implcita particular; que infiltrando-se no trabalho de anlise, organizando-o sua revelia, remete subjetividade do autor [...] Os fatos histricos j so constitudos pela introduo de um sentido na objetividade. Eles enunciam, na linguagem da anlise, escolhas que lhes so anteriores, que no resulta, pois, da observao [...] sobre o fundo de uma totalidade histrica, se destaca uma multiplicidade de filosofias individuais, as dos pensadores que se vestem de historiadores (CERTEAU, 2007, p. 66). J urandir Malerba (2006) percorre um caminho parecido com o de J enkins e Certeau, seguindo por uma vertente narrativista, propondo que a histria produzida pelos historiadores umaformadenarrao,massediferenciadeoutrasformasdognerodenarraopor possuir um mtodo para sua escrita. Para ele, no permitido ao historiador devanear sobre umdeterminadoassunto,vistoquedeveseguirregrasmetodolgicasparaaformulaoe apresentaodosresultadosdesuapesquisa.Almdetalcaracterstica,deve-seterem consideraoprpriahistoricidadequeprecedeoconhecimentohistrico,tributriodas contribuies que a antecedem, direta ou indiretamente. Nessaperspectiva,entende-sequeotrabalhoporexcelnciadohistoriadorode narrador. Um trabalho consciente de que atravs da narrativa realiza-se a conexo entre teoria e empiria. Todavia, ao pblico no especializado no importa o quo terico se prope um trabalho, mas sim o seu contedo e, sobretudo, a forma como foi explicitado.Segundo Ranke A histria distingue-se das demais cincias por ser, simultaneamente, arte. Ela cincia ao coletar, achar, investigar. Ela arte ao dar forma ao colhido, ao conhecido e ao represent-los.Outras cincias satisfazem-se em mostrar o 43 achadomeramentecomoachado.Nahistria,operaafaculdadeda reconstituio.Comocincia,elaaparentadafilosofia;comoarte, poesia (RANKE, 1835 apud RSEN, 2007, p. 18). Por se constituir em uma narrativa bem elaborada, diversos jornalistas, que detm um domnio maior das tcnicas da escrita que agradam ao grande pblico, tm cada vez mais invadido o campo do historiador. Dominar a narrativa para melhor tecer a trama formada pelasrelaeseconexesentreosfatoshistricosdeveserobjetivoedesafioparao historiador, sem desconsiderar, todavia, os elementos que distinguem sua produo: as fontes, o mtodos, a interpretao e a temporalidade.A exigncia de um mtodo na pesquisa histrica se afirmou no sculo XIX, com o estabelecimento da Histria como disciplina acadmica e com o estatuto de cincia. Como colocado por Certeau, mtodos tm a funo de iniciao de um grupo, ou seja, para que se possaescreversobrehistriaeseraceitoentrepares,deve-seseguirregras,mtodos,da mesma forma que os mtodos tm uma funo social de proteger, diferenciar e manifestar o poder de um corpo de mestres e de letrados (2007, p. 73). Tem-se ento, segundo Carla B. Pinsky,quefoinestemomentoqueforam[...]estabelecidosparmetrosmetodolgicos cientificistas rgidos orientadores da crtica interna e externa das fontes escritas, arqueolgicas e artsticas, priorizando investigaes sobre a importncia da autenticidade documental [...]. (2005, p. 11) O nico testemunho credenciado para comprovar a experincia passada eram os documentosoficiais.Aescritadahistriaestavapresaaumavisodequeerapossvel recuperaropassado,talcomoeleocorreraatravsdasfontesescritaseoficiais,aprova confivel do que ocorrera. Afinal, entendia-se que as fontes falavam por si prprias. Desse entendimento resulta a tradio do peso que o documento adquiriu como prova verdicaenicadosacontecimentos.Foiaimportnciaconstruda,conferidapelos historiadoresquepensavamahistriaapartirdaperspectivapositivistadeproduzir conhecimento.NolivroPesquisaemhistria,publicadoporprofessorasdaPUC/SP,as autoras apresentam de forma esclarecedora as razes da valorizao do documento conferida pelos historiadores positivistas, integrantes da chamada escola metdica: Avalorizaododocumentocomogarantiadaobjetividade,topresente entreospositivistas,excluianoodeintencionalidadecontidanaao estudada e na ao do historiador [...] Apreender o real seria conhecer os fatosrelevantesqueseimpemporsimesmosaoconhecimentodo historiador.Emdecorrncia,sconsideravamrelevantesparaahistria aquilo que estava documentado [...] (KHOURY, 2003, p. 13-14). 44 Pormaisneutroeimparcialqueumhistoriadorpretendesseejulgasseser,tal objetividadejamaispoderiaseralcanada,considerando-seaimpossibilidadedeumatotal renncia da subjetividade, dimenso constitutiva de todo sujeito, que informa sua viso de mundo e que se desdobra em sua forma de pensar e escrever a histria. Subjetividade, essa, que historicamente engendrada, pois desde seu nascimento o historiador j chega ao mundo cercado por signos que conformam seu modo de pensar e agir. Tais significaes expressam-se na escolha de seus amigos, de seu curso de graduao, do tema de sua monografia, de suas preferncias historiogrficas. Com efeito, o historiador sempre vai carregar consigo valores, conceitos e preconceitos transmitidos culturalmente, seja nas relaes com os pais, familiares, amigos,professores,etc.Aescritadahistriadesdeaescolhadotemaconclusoda dissertao ou tese est atravessada pela subjetividade, isso , tem sua prpria historicidade, inscreve-se nas condies de produo do autor, de seu tempo e lugar social e institucional. Segundo Lucien Febvre: Todahistriaescolha.porqueexistiuoazarqueaquidestruiuel preservouosvestgiosdopassado.porqueexisteohomem:quandoos documentosabundam,eleabrevia,simplifica,realaisso,relevaaquiloa segundo plano. E , principalmente, pelo fato de que o historiador cria seus materiais ou recria-os, se se quiser: o historiador no vai rondando ao azar atravs do passado, como um maltrapilho em busca de despojos, mas parte com um projeto preciso em mente, um problema para resolver, uma hiptese de trabalho para verificar. [...] O essencial de seu trabalho consiste em criar, porassimdizer,osobjetosdesuaobservao,comajudadetcnicas freqentementemuitocomplicadas.Edepois,umavezadquiridosesses objetos,emlersuasprovetaseseuspreparados.Tarefasingularmente rdua; porque descrever o que se v, mais fcil, mas ver o que se deve descrever, isso sim difcil (FEBVRE , 1974 apud CAINELLI, 2004, p. 93-94). Nas redes da escola metdica, o historiador estava sujeitado exigncia de verificar a autenticidade de suas fontes, o que acabou por aprision-lo aos fatos oficiais, ignorando outras formasdevestgiosedepossibilidadesdedilogocomopassado,pormeiosderegistros outros como os artefatos culturais como a cermica, moedas, msica, iconografia, cartografia eliteratura.SomentecomomovimentoderevisodaHistria,deaberturaparanovas abordagens, objetos, problemas e ampliao do conceito de fontes, efetivado principalmente, mas no exclusivamente, pelos historiadores dos Annales, que o estatuto de onipotncia do documento foi abalado. Com a Escola dos Annales os historiadores iniciam um exerccio de trocascomoutrasdisciplinastaiscomoageografia,apsicologiaeaeconomiade ampliaodoconceitodefontesedeintroduodenovostemas,abordagense problematizaes. 45 Para os seguidores dos Annales,o documento j no falava por si mesmo , como acreditavamospositivistas,masnecessitavadeperguntasadequadas,dolevantamentode questes a partir do presente. A intencionalidade passa a ser alvo de preocupao por parte do historiador,numduplosentido:aintenodo agentehistricopresentenodocumentoea intenodopesquisadoraoseacercardessedocumento.(KHOURY,2003,p.15)Os trabalhosqueseutilizamfontessobreeconomia,trabalho,sociedadesemultiplicam.A Histriavistacomomovimentoprofundodotempo,comoprocessoatravessadopor mltiplas temporalidades e diferentes duraes temporais concomitantes: estrutura, conjuntura e acontecimento. Embora tais contribuies para a produo do conhecimento histrico sejam inegveis, a historiografia produzida pelos Annales ficou durante muito tempo atrelada idia deumahistriatotal,dapretensodeabarcaratotalidadedasexperinciashumanasdo passado. O re-direcionamento para uma histria mais monogrfica, com reduo de escala, voltada para tudo e no para o todo, se deu com os novistoristas a terceira gerao dos Annales. Nessa vertente, localiza-se, por exemplo, Chartier. Segundo esse historiador a histria e sua escrita esto sempre inseridas em um contexto histrico, uma forma cultural como qualquer outra. (CHARTIER in PESAVENTO, 2000, p. 87) Nesse sentido, como as pessoas mudam, a sociedade muda, a cultura muda, tambm muda a histria, ou seja, o modo de se fazer a leitura das experincias do passado, de narr-las. Antes de saber o que a histria diz deuma sociedade, necessrio saber como funciona dentro dela. Esta instituio se inscreve numcomplexoquelhepermiteapenasumtipodeproduoelheprobeoutros (CERTEAU, Ibid, p. 76-77).Novos conceitos, categorias e perspectivas de anlise so incorporados ao trabalho do historiador. Como bem ressalta Carla B. Pinsky, as mudanas ocorridas aps a 2 Guerra, com amaiorcomplexidadedosocial,globalizaoefragmentao,demandasdosnovos movimentossociais,movimentosecolgicos,derrocadadosocialismo,exigiramdo historiadoruminstrumentaltericoemetodolgicomaisapropriadoparaapreenderesse mundoemrpidoprocessodemudana,emprocessocrescentedecomplexidadee diferenciao:

Como em cultura nada permanece imutvel, mediante novas realidade nos finais dos anos 60 do sculo XX constestao da legitimidade do poder em todasassuasformas,revoltaestudantilnaFrana,ditaduraspatrocinadas pelosEstadosunidosnaAmricaLatina,repressesnasrepblicas socialistas do Leste europeu, crticas ao stalinismo e a todas as violaes de direita e de esquerda aos direitos humanos, recrudescimento de movimentos 46 neo-anarquistas, reivindicaes do movimento feminista e muitos outros , oshistoriadoressochamadosavoltar-separaasquestescandentesdo tempo presente (PINSKY, 2005, p. 14). Negros,mulheres,indgenas,idosos,ex-combatentes,minoriastnicaseraciais ganham visibilidade no espao pblico, na mdia, nos movimentos sociais reivindicando sua incorporaonahistoriografiaeacessocidadania.Assim,verificou-seumamudanana histria: no mais apenas os documentos oficiais ou os dados quantitativos, a economia ou as biografiasoficiais,mas,tambm,dimenses,objetoseperspectivasqueintegramo imaginriosocial:morte,sexo,loucura,sensibilidade,desejoganhamvisibilidade historiogrfica. A histria das mulheres, operrias, quilombolas so temas incorporados no discurso historiogrfico como objeto/sujeito da narrativa e cada vez mais se utiliza um leque diversificado de fontes: escritas, orais, iconogrficas, cartogrficas, visuais, cinematogrficas, etc. No campo de histria social, sobretudo de tradio marxista, ocorre igualmente uma reviso,ondevisvelapreocupaonoapenascomasociedade,mastambmcoma cultura, com o conflito, no s de classes, mas tambm de valores. A experincia constitutiva dossujeitoshistricos,presididapelacultura,entendidacomosistemadesignificados, incorporadanasanlisesdoshistoriadoressociais,seguindoatrilhainiciadaporE.P. Thpmpson e Christopher Hill, dentre outros. Ocorre, portanto, a valorizao da experincia humana, da experincia vivida. Os historiadores traduzem essa experincia na sua condio como cultura valores, tradies, idias, instituies, arte, religio etc (THOMPSON apud KHOURY, 2003, p. 18). Como atenta Yara Maria Khoury: Ao historiador cabe dar, ao objeto eleito para estudo, uma explicao global dos fatos humanos, acima de qualquer compartimentao, centrando o eixo dessaexplicaonosmecanismosqueasseguramaexploraoea dominao de uns homens sobre os outros, e que se traduzem nas relaes econmicas,polticas,sociais,culturais,nastradies,nossistemasde valores, nas idias e formas institucionais (2003, p. 18). Abrem-seasportasparatodasaspossibilidadesdefontes,abordagenserecortes temporais e espaciais. O cotidiano passa a ser uma das dimenses do social contempladas peloshistoriadores,poisalijustamenteoespaoprivilegiadoparaavivnciadas experinciassociais.Paraenfrentartaldesafio,torna-semisterqueohistoriadorsaiba interpretardiversasoutraslinguagensartstica,musical,potica,lingstica,etc., materializaes de diferentes criaes e leituras do mundo. O historiador, ao analisar uma fonte,independentedaperspectivaadotada,vaiproduzirumaleiturasobreestaenoa 47 leitura.Trata-sedeleiturainformadapelosistemadevalores,idias,imagens,regras, significaesquepresidemsuavisodemundo.Assim,naproduodoconhecimento histrico, que se d atravs dessa operao cognitiva que torna dizvel e visvel a profunda experinciadotempo(KOSELLECK,1995,p.12),verifica-seasmarcasdomomento histrico-cultural em que a histria escrita, ou seja, est atravessada por historicidade.Nessaperspectiva,pode-seentenderhistoriografiacomoaescritadahistriae,ao mesmo tempo, como uma histria da histria. Todavia, trata-se de um conceito percebido de formas diferentes por diversos autores. Frank Ankersmit define-a Comoumdiquecobertoporumacamadadegelonofinaldoinverno,o passadofoicobertoporumafinacrostadeinterpretaesnarrativas;eo debate histrico muito mais um debate sobre os componentes da crosta do quepropriamentesobreopassadoencobertosobela(ApudMALERBA, 2006 Cit., p. 19). J rnRsen,aodefinirhistoriografia,traaumadistinoentrerealidadese imaginao, definindo aquela como o produto intelectual dos historiadores, reafirmando tanto a historicidade da historiografia como sua efetividade textual. Uma espcie de prtica culturaledeestruturamentalquemostraasexperinciassociaisdequemescreve.O mergulhonopassadosersempredadopelasexperinciasdotempopresente.(Apud MALERBA, 2006, p. 20) Charles Olivier Carbonell prope que historiografia seria nada mais que a histria do discurso que ao ser escrito se afirma verdadeiro, que os homens sustentariam sobre o passado. Portanto, um produto da histria e que revela com clareza a sociedade que a gerou. Em suas palavras: O que historiografia? Nada mais que a histria do discurso um discurso escrito e que se afirma verdadeiro que os homens tm sustendado sobre seu passado.queahistoriografiaomelhortestemunhoquepodemoster sobre as culturas desaparecidas, inclusive sobre a nossa supondo que ela ainda existe e que a semi-amnsia de que parece ferida no reveladora da morte. Nunca uma sociedade se revela to bem como quando projeta para trs de si a sua prpria imagem (Apud MALERBA, 2006, p. 21). ParaJ urandirMalerba,ahistoriografiaseriaaretificaodasversesdopassado histrico, operada a cada gerao (Id. Ibid, p. 17), ou seja, a busca que cada novo historiador empreende no entendimento de como foi interpretado o passado e de quais os motivos de determinada pergunta ou enfoque ter mais peso do que outra/outro, em determinado tempo. Tem-seentoqueahistoriografiapassaaser,dessemodo,parteintegrantedapesquisa histrica, cujos resultados se enunciam, pois, na forma de um saber redigido. (RSEN, 2001, 48 p. 46) A produo historiogrfica, segundo Malerba, torna-se, ao mesmo tempo, objeto e fontehistrica,umafontequefazrefernciasprticasculturaisdoperodoemquese insere.NaspalavrasdeCerteau,[...]oestabelecimentodasfontessolicita[...]umgesto fundador,representado,comoontem,pelacombinaodeumlugar,deumaparelhoede tcnicas. (CERTEAU, 2007, p. 82) Um dos pontos positivos para o historiador, e que diferencia seu trabalho de outras cinciashumanas,ocarterauto-reflexivodoconhecimento.Eessesereafirmacomo exame crtico da historiografia, no esforo em perceber que princpios, valores, perspectivas tericas e metodolgicas a fundamentam. Conforme Malerba, [...] devido a uma caracterstica bsica do conhecimento histrico, que a sua historicidade, temos de nos haver com todas as contribuies dos que nosantecederam.Essapropriedadeelevaacrticahistoriogrficaa fundamento do conhecimento histrico (MALERBA, 2006, p. 15). J osCarlosBarreiro(1995)dosprimeiroshistoriadoresbrasileirosainsistirna importnciadoexamecrticodahistoriografia,nanecessidadederevisodeobras consideradas clssicas, pensando luz das reflexes de E. P. Thompson sobre a incluso dosconceitosdeconstituiodeexperinciaeculturanaconstituiodaclasseoperria inglesa, prope uma releitura de obras j sacralizadas, como as de Emilia Viotti e Caio Prado J nior. Na opinio desse autor, no possvel repensar a histria do Brasil sem discutir os trabalhos dos clssicos, sob pena de se ver alimentado o paradoxo de se fazer uma histria sem memria. Assim,comoqueumedifcioemconstanteconstruo,asgeraesfuturas,ao procederemaumareflexosobreoconhecimentoproduzido,estotambmfazendouma reflexo sobre a disciplina, buscando o refinamento de mtodos e tcnicas para uma maior aproximaocomasexperinciaspassadas.Analisaroquefoitrabalhadoporseus predecessoreseemquequadroscio-culturalestavaminseridos,criaaexignciade instrumentalizaotericaapropriadaparacriticarasfontesusadas,ocontextoemquea produo foi realizada, os poderes que a atravessaram. Analisar de que forma o presente se apropria de elementos raros para formar uma sntese e dizer o que foi o passado uma das funesdohistoriador.Istohistoricizarahistria,inserindo-anocontextoquefoi produzida, encontrando o lugar social de fala do historiador e os cnones que regem sua fala. 49 50

NOTAS 1 Artigo feito para concluso da disciplina Histria e Historiografia do Programa de Ps-Gradua em Histria da Universidade de Braslia (PPGHIS-UnB). 2 Graduado em Histria pela Universidade de Braslia UnB, mestrando em Histria, na rea de Concentrao Histria Social, pela Universidade de Braslia. E-mail: [email protected] REFERNCIAS BARREIRO, J os Carlos. E.P.Thompsoneahistoriografiabrasileira: revises crticas e projees. In. Revista Projeto Histria, n. 12.So Paulo: PUC-SP, 1995. BORGES, Vavy P. O que histria. Coleo primeiros passos. So Paulo: Brasiliense, 2003. CAINELLI, M.; SCHMIDT, M. A.Ensinar histria. So Paulo: Spicione, 2004. CERTEAU, Micheal de. A Escrita da histria. 2 ed. Rio de J aneiro: Forense Universitria, 2007. CHARTIER,Roger.Crisenahistria?In:PESAVENTO,Sandra(org.)Fronteirasdo milnio. Porto Alegre: UFRS, 2000 J ENKINS, K. A Histria repensada. So Paulo: Contexto, 2005. KHOURY, Yara Maria Aun, et al. A Pesquisa em histria. So Paulo: tica, 2003. KOSELLECK, R. Histriadosconceitos.In: RevistaEstudosHistricos.Rio de J aneiro: FGV, 1995. MALERBA, J urandir (org.). A Histria escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2006. PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes histricas. So Paulo: Contexto, 2005. RANKE, L. von. Dieideederuniversalhistorie(1835). In: RSEN, J rn. HistriaViva: teoria da histria: formas e funes do conhecimento histrico. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2007. RSEN,J rn.Razohistrica:teoriadahistria:fundamentosdacinciahistrica. Traduo de Estevo Rezende Martins. Braslia: EdUnB, 2001. SILVA, Kalina Vanderlei; Silva, Maciel Henrique. Dicionriodeconceitoshistricos.So Paulo: Contexto, 2005. THOMPSON,E.P.Laformaciondelaclaseobrera.Barcelona:Laia,1977.Apud: KHOURY, Yara Maria Aun, et al. Op. cit.