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JUDICIALIZAÇÃO, ATIVISMO JUDICIAL E LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA Luís Roberto Barroso 1 Sumário: I. Introdução. II. A judicialização da vida. III. O ativismo judicial. IV. Objeções à crescente intervenção judicial na vida brasileira. 1. Riscos para a legitimidade democrática. 2. Risco de politização da justiça. 3. A capacidade institucional do Judiciário e seus limites. V. Conclusão I. INTRODUÇÃO Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado um papel ativo na vida institucional brasileira. O ano de 2008 não foi diferente. A centralidade da Corte – e, de certa forma, do Judiciário como um todo – na tomada de decisões sobre algumas das grandes questões nacionais tem gerado aplauso e crítica, e exige uma reflexão cuidadosa. O fenômeno, registre-se desde logo, não é peculiaridade nossa. Em diferentes partes do mundo, em épocas diversas, cortes constitucionais ou supremas cortes destacaram-se em determinadas quadras históricas como protagonistas de decisões envolvendo questões de largo alcance político, implementação de políticas públicas ou escolhas morais em temas controvertidos na sociedade. De fato, desde o final da Segunda Guerra Mundial verificou-se, na maior parte dos países ocidentais, um avanço da justiça constitucional sobre o espaço da política majoritária, que é aquela feita no âmbito do Legislativo e do Executivo, tendo por combustível o voto popular. Os exemplos são numerosos e inequívocos. No Canadá, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de 1 Professor Titular de Direito Constitucional, Doutor e Livre-Docente – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre pela Yale Law School. Autor dos livros Curso de Direito Constitucional Contemporâneo e Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, dentre outros. Advogado.

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JUDICIALIZAÇÃO, ATIVISMO JUDICIAL E LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA

Luís Roberto Barroso1

Sumário: I. Introdução. II. A judicialização da vida. III. O ativismo judicial. IV.

Objeções à crescente intervenção judicial na vida brasileira. 1. Riscos para a

legitimidade democrática. 2. Risco de politização da justiça. 3. A capacidade

institucional do Judiciário e seus limites. V. Conclusão

I. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado

um papel ativo na vida institucional brasileira. O ano de 2008 não foi diferente. A

centralidade da Corte – e, de certa forma, do Judiciário como um todo – na tomada de

decisões sobre algumas das grandes questões nacionais tem gerado aplauso e crítica, e

exige uma reflexão cuidadosa. O fenômeno, registre-se desde logo, não é peculiaridade

nossa. Em diferentes partes do mundo, em épocas diversas, cortes constitucionais ou

supremas cortes destacaram-se em determinadas quadras históricas como protagonistas

de decisões envolvendo questões de largo alcance político, implementação de políticas

públicas ou escolhas morais em temas controvertidos na sociedade.

De fato, desde o final da Segunda Guerra Mundial verificou-se, na

maior parte dos países ocidentais, um avanço da justiça constitucional sobre o espaço

da política majoritária, que é aquela feita no âmbito do Legislativo e do Executivo,

tendo por combustível o voto popular. Os exemplos são numerosos e inequívocos. No

Canadá, a Suprema Corte foi chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de

1 Professor Titular de Direito Constitucional, Doutor e Livre-Docente – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre pela Yale Law School. Autor dos livros Curso de Direito Constitucional Contemporâneo e Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro, dentre outros. Advogado.

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os Estados Unidos fazerem testes com mísseis em solo canadense. Nos Estados

Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema

Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a

compatibilidade, com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um

muro na fronteira com o território palestino. A Corte Constitucional da Turquia tem

desempenhado um papel vital na preservação de um Estado laico, protegendo-o do

avanço do fundamentalismo islâmico. Na Hungria e na Argentina, planos econômicos

de largo alcance tiveram sua validade decidida pelas mais altas Cortes. Na Coréia, a

Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído

por impeachment2.

Todos estes casos ilustram a fluidez da fronteira entre política e

justiça no mundo contemporâneo. Ainda assim, o caso brasileiro é especial, pela

extensão e pelo volume. Circunstâncias diversas, associadas à Constituição, à

realidade política e às competências dos Poderes alçaram o Supremo Tribunal Federal,

nos últimos tempos, às manchetes dos jornais. Não exatamente em uma seção sobre

juízes e tribunais – que a maioria dos jornais não tem, embora seja uma boa idéia –,

mas nas seções de política, economia, ciências, polícia. Bastante na de polícia.

Acrescente-se a tudo isso a transmissão direta dos julgamentos do Plenário da Corte

pela TV Justiça. Em vez de audiências reservadas e deliberações a portas fechadas,

como nos tribunais de quase todo o mundo, aqui se julga sob o olhar implacável das

câmeras de televisão. Há quem não goste e, de fato, é possível apontar

inconveniências. Mas o ganho é maior do que a perda. Em um país com o histórico do

nosso, a possibilidade de assistir onze pessoas bem preparadas e bem intencionadas

decidindo questões nacionais é uma boa imagem. A visibilidade pública contribui para

a transparência, para o controle social e, em última análise, para a democracia.

II. A JUDICIALIZAÇÃO DA VIDA

2 Ran Hirschl, The judicialization of politics. In: Whittington, Kelemen e Caldeira (eds.), The Oxford Handbook of Law and Politics, 2008, p. 124-5.

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Judicialização significa que algumas questões de larga

repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e

não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo

– em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a

administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma

transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na

linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno

tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão

diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro. A seguir, uma tentativa de

sistematização da matéria.

A primeira grande causa da judicialização foi a redemocratização

do país, que teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988. Nas

últimas décadas, com a recuperação das garantias da magistratura, o Judiciário deixou

de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro

poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto

com os outros Poderes. No Supremo Tribunal Federal, uma geração de novos

Ministros já não deve seu título de investidura ao regime militar. Por outro lado, o

ambiente democrático reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de

consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a

proteção de seus interesses perante juízes e tribunais. Nesse mesmo contexto, deu-se a

expansão institucional do Ministério Público, com aumento da relevância de sua

atuação fora da área estritamente penal, bem como a presença crescente da Defensoria

Pública em diferentes partes do Brasil. Em suma: a redemocratização fortaleceu e

expandiu o Poder Judiciário, bem como aumentou a demanda por justiça na sociedade

brasileira.

A segunda causa foi a constitucionalização abrangente, que

trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo

político majoritário e para a legislação ordinária. Essa foi, igualmente, uma tendência

mundial, iniciada com as Constituições de Portugal (1976) e Espanha (1978), que foi

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potencializada entre nós com a Constituição de 1988. A Carta brasileira é analítica,

ambiciosa3, desconfiada do legislador. Como intuitivo, constitucionalizar uma matéria

significa transformar Política em Direito. Na medida em que uma questão – seja um

direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma

norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica,

que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. Por exemplo: se a Constituição

assegura o direito de acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é

possível judicializar a exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate

sobre ações concretas ou políticas públicas praticadas nessas duas áreas.

A terceira e última causa da judicialização, a ser examinada aqui,

é o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, um dos mais abrangentes do

mundo4. Referido como híbrido ou eclético, ele combina aspectos de dois sistemas

diversos: o americano e o europeu. Assim, desde o início da República, adota-se entre

nós a fórmula americana de controle incidental e difuso, pelo qual qualquer juiz ou

tribunal pode deixar de aplicar uma lei, em um caso concreto que lhe tenha sido

submetido, caso a considere inconstitucional. Por outro lado, trouxemos do modelo

europeu o controle por ação direta, que permite que determinadas matérias sejam

levadas em tese e imediatamente ao Supremo Tribunal Federal. A tudo isso se soma o

direito de propositura amplo, previsto no art. 103, pelo qual inúmeros órgãos, bem

como entidades públicas e privadas – as sociedades de classe de âmbito nacional e as

confederações sindicais – podem ajuizar ações diretas. Nesse cenário, quase qualquer

questão política ou moralmente relevante pode ser alçada ao STF.

De fato, somente no ano de 2008, foram decididas pelo Supremo

Tribunal Federal, no âmbito de ações diretas – que compreendem a ação direta de

inconstitucionalidade (ADIn), a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e a

argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) – questões como: a) o

3 Oscar Vilhena Vieira, Supremocracia, Revista de Direito do Estado 12, 2008, no prelo. 4 Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição constitucional, 2005, p. 146.

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pedido de declaração de inconstitucionalidade, pelo Procurador-Geral da República,

do art. 5º da Lei de Biossegurança, que permitiu e disciplinou as pesquisas com

células-tronco embrionárias (ADIn 3.150); (ii) o pedido de declaração da

constitucionalidade da Resolução nº 7, de 2006, do Conselho Nacional de Justiça, que

vedou o nepotismo no âmbito do Poder Judiciário (ADC 12); (iii) o pedido de

suspensão dos dispositivos da Lei de Imprensa incompatíveis com a Constituição de

1988 (ADPF 130). No âmbito das ações individuais, a Corte se manifestou sobre

temas como quebra de sigilo judicial por CPI, demarcação de terras indígenas na

região conhecida como Raposa/Serra do Sol e uso de algemas, dentre milhares de

outros.

Ao se lançar o olhar para trás, pode-se constatar que a tendência

não é nova e é crescente. Nos últimos anos, o STF pronunciou-se ou iniciou a

discussão em temas como: (i) Políticas governamentais, envolvendo a

constitucionalidade de aspectos centrais da Reforma da Previdência (contribuição de

inativos) e da Reforma do Judiciário (criação do Conselho Nacional de Justiça); (ii)

Relações entre Poderes, com a determinação dos limites legítimos de atuação das

Comissões Parlamentares de Inquérito (como quebras de sigilos e decretação de

prisão) e do papel do Ministério Público na investigação criminal; (iii) Direitos

fundamentais, incluindo limites à liberdade de expressão no caso de racismo (Caso

Elwanger) e a possibilidade de progressão de regime para os condenados pela prática

de crimes hediondos. Deve-se mencionar, ainda, a importante virada da jurisprudência

no tocante ao mandado de injunção, em caso no qual se determinou a aplicação do

regime jurídico das greves no setor privado àquelas que ocorram no serviço público.

É importante assinalar que em todas as decisões referidas acima, o

Supremo Tribunal Federal foi provocado a se manifestar e o fez nos limites dos

pedidos formulados. O Tribunal não tinha a alternativa de conhecer ou não das ações,

de se pronunciar ou não sobre o seu mérito, uma vez preenchidos os requisitos de

cabimento. Não se pode imputar aos Ministros do STF a ambição ou a pretensão, em

face dos precedentes referidos, de criar um modelo juriscêntrico, de hegemonia

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judicial. A judicialização, que de fato existe, não decorreu de uma opção ideológica,

filosófica ou metodológica da Corte. Limitou-se ela a cumprir, de modo estrito, o seu

papel constitucional, em conformidade com o desenho institucional vigente.

Pessoalmente, acho que o modelo tem nos servido bem.

III. O ATIVISMO JUDICIAL

A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto,

da mesma família, freqüentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens.

Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no

contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional

que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos

referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa.

Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou

objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma

atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição,

expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de

retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a

sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira

efetiva.

A idéia de ativismo judicial está associada a uma participação

mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais,

com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura

ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação

direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e

independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de

inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em

critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a

imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de

políticas públicas.

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As origens do ativismo judicial remontam à jurisprudência norte-

americana. Registre-se que o ativismo foi, em um primeiro momento, de natureza

conservadora. Foi na atuação proativa da Suprema Corte que os setores mais

reacionários encontraram amparo para a segregação racial (Dred Scott v. Sanford,

1857) e para a invalidação das leis sociais em geral (Era Lochner, 1905-1937),

culminando no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudança da

orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal (West Coast v.

Parrish, 1937). A situação se inverteu completamente a partir da década de 50, quando

a Suprema Corte, sob a presidência de Warren (1953-1969) e nos primeiros anos da

Corte Burger (até 1973), produziu jurisprudência progressista em matéria de direitos

fundamentais, sobretudo envolvendo negros (Brown v. Board of Education, 1954),

acusados em processo criminal (Miranda v. Arizona, 1966) e mulheres (Richardson v.

Frontiero, 1973), assim como no tocante ao direito de privacidade (Griswold v.

Connecticut, 1965) e de interrupção da gestação (Roe v. Wade, 1973).

O oposto do ativismo é a auto-contenção judicial, conduta pela

qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. Por

essa linha, juízes e tribunais (i) evitam aplicar diretamente a Constituição a situações

que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento

do legislador ordinário; (ii) utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração

de inconstitucionalidade de leis e atos normativos; e (iii) abstêm-se de interferir na

definição das políticas públicas. Até o advento da Constituição de 1988, essa era a

inequívoca linha de atuação do Judiciário no Brasil. A principal diferença

metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial

procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem contudo

invadir o campo da criação livre do Direito. A auto-contenção, por sua vez, restringe o

espaço de incidência da Constituição em favor das instâncias tipicamente políticas.

O Judiciário, no Brasil recente, tem exibido, em determinadas

situações, uma posição claramente ativista. Não é difícil ilustrar a tese. Veja-se, em

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primeiro lugar, um caso de aplicação direta da Constituição a situações não

expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do

legislador ordinário: o da fidelidade partidária. O STF, em nome do princípio

democrático, declarou que a vaga no Congresso pertence ao partido político. Criou,

assim, uma nova hipótese de perda de mandato parlamentar, além das que se

encontram expressamente previstas no texto constitucional. Por igual, a extensão da

vedação do nepotismo aos Poderes Legislativo e Executivo, com a expedição de

súmula vinculante, após o julgamento de um único caso, também assumiu uma

conotação quase-normativa. O que a Corte fez foi, em nome dos princípios da

moralidade e da impessoalidade, extrair uma vedação que não estava explicitada em

qualquer regra constitucional ou infraconstitucional expressa.

Outro exemplo, agora de declaração de inconstitucionalidade de

atos normativos emanados do Congresso, com base em critérios menos rígidos que os

de patente e ostensiva violação da Constituição: o caso da verticalização5. O STF

declarou a inconstitucionalidade da aplicação das novas regras sobre coligações

eleitorais à eleição que se realizaria em menos de uma ano da sua aprovação. Para

tanto, precisou exercer a competência – incomum na maior parte das democracias – de

declarar a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, dando à regra da

anterioridade anual da lei eleitoral (CF, art. 16) o status de cláusula pétrea. É possível

incluir nessa mesma categoria a declaração de inconstitucionalidade das normas legais

que estabeleciam cláusula de barreira, isto é, limitações ao funcionamento parlamentar

de partidos políticos que não preenchessem requisitos mínimos de desempenho

eleitoral.

Por fim, na categoria de ativismo mediante imposição de condutas

ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas, o

5 Cláudio Pereira de Souza Neto, Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político: uma crítica consequencialista à decisão do STF na ADIN 3685, Interesse público 37, 2006.

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exemplo mais notório provavelmente é o da distribuição de medicamentos e

determinação de terapias mediante decisão judicial. A matéria ainda não foi apreciada

a fundo pelo Supremo Tribunal Federal, exceto em pedidos de suspensão de

segurança. Todavia, nas Justiças estadual e federal em todo o país, multiplicam-se

decisões que condenam a União, o Estado ou o Município – por vezes, os três

solidariamente – a custear medicamentos e terapias que não constam das listas e

protocolos do Ministério da Saúde ou das Secretarias Estaduais e municipais. Em

alguns casos, os tratamentos exigidos são experimentais ou devem ser realizados no

exterior. Adiante se voltará a esse tema.

O binômio ativismo-autocontenção judicial está presente na maior

parte dos países que adotam o modelo de supremas cortes ou tribunais constitucionais

com competência para exercer o controle de constitucionalidade de leis e atos do

Poder Público. O movimento entre as duas posições costuma ser pendular e varia em

função do grau de prestígio dos outros dois Poderes. No Brasil dos últimos anos,

apesar de muitos vendavais, o Poder Executivo, titularizado pelo Presidente da

República, desfruta de inegável popularidade. Salvo por questões ligadas ao uso

excessivo de medidas provisórias e algumas poucas outras, é limitada a superposição

entre Executivo e Judiciário. Não assim, porém, no que toca ao Congresso Nacional.

Nos últimos anos, uma persistente crise de representatividade, legitimidade e

funcionalidade no âmbito do Legislativo tem alimentado a expansão do Judiciário

nessa direção, em nome da Constituição, com a prolação de decisões que suprem

omissões e, por vezes, inovam na ordem jurídica, com caráter normativo geral.

O fenômeno tem uma face positiva: o Judiciário está atendendo a

demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo parlamento, em temas

como greve no serviço público, eliminação do nepotismo ou regras eleitorais. O

aspecto negativo é que ele exibe as dificuldades enfrentadas pelo Poder Legislativo – e

isso não se passa apenas no Brasil – na atual quadra histórica. A adiada reforma

política é uma necessidade dramática do país, para fomentar autenticidade partidária,

estimular vocações e reaproximar a classe política da sociedade civil. Decisões

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ativistas devem ser eventuais, em momentos históricos determinados. Mas não há

democracia sólida sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem

Congresso atuante e investido de credibilidade. Um exemplo de como a agenda do país

delocou-se do Legislativo para o Judiciário: as audiências públicas e o julgamento

acerca das pesquisas com células-tronco embrionárias, pelo Supremo Tribunal Federal,

tiveram muito mais visibilidade e debate público do que o processo legislativo que

resultou na elaboração da lei.

IV. OBJEÇÕES À CRESCENTE INTERVENÇÃO JUDICIAL NA VIDA BRASILEIRA

Três objeções podem ser opostas à judicialização e, sobretudo, ao

ativismo judicial no Brasil. Nenhuma delas infirma a importância de tal atuação, mas

todas merecem consideração séria. As críticas se concentram nos riscos para a

legitimidade democrática, na politização indevida da justiça e nos limites da

capacidade institucional do Judiciário.

1. Riscos para a legitimidade democrática

Os membros do Poder Judiciário – juízes, desembargadores e

ministros – não são agentes públicos eleitos. Embora não tenham o batismo da vontade

popular, magistrados e tribunais desempenham, inegavelmente, um poder político,

inclusive o de invalidar atos dos outros dois Poderes. A possibilidade de um órgão não

eletivo como o Supremo Tribunal Federal sobrepor-se a uma decisão do Presidente da

República – sufragado por mais de 40 milhões de votos – ou do Congresso – cujos 513

membros foram escolhidos pela vontade popular – é identificada na teoria

constitucional como dificuldade contramajoritária6. Onde estaria, então, sua

legitimidade para invalidar decisões daqueles que exercem mandato popular, que

foram escolhidos pelo povo? Há duas justificativas: uma de natureza normativa e outra

filosófica.

6 Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16 e s.

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O fundamento normativo decorre, singelamente, do fato de que a

Constituição brasileira atribui expressamente esse poder ao Judiciário e,

especialmente, ao Supremo Tribunal Federal. A maior parte dos Estados democráticos

reserva uma parcela de poder político para ser exercida por agentes públicos que não

são recrutados pela via eleitoral, e cuja atuação é de natureza predominantemente

técnica e imparcial. De acordo com o conhecimento tradicional, magistrados não têm

vontade política própria. Ao aplicarem a Constituição e as leis, estão concretizando

decisões que foram tomadas pelo constituinte ou pelo legislador, isto é, pelos

representantes do povo. Essa afirmação, que reverencia a lógica da separação de

Poderes, deve ser aceita com temperamentos, tendo em vista que juízes e tribunais não

desempenham uma atividade puramente mecânica7. Na medida em que lhes cabe

atribuir sentido a expressões vagas, fluidas e indeterminadas, como dignidade da

pessoa humana, direito de privacidade ou boa-fé objetiva, tornam-se, em muitas

situações, co-participantes do processo de criação do Direito.

A justificação filosófica para a jurisdição constitucional e para a

atuação do Judiciário na vida institucional é um pouco mais sofisticada, mas ainda

assim fácil de compreender. O Estado constitucional democrático, como o nome

sugere, é produto de duas idéias que se acoplaram, mas não se confundem.

Constitucionalismo significa poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O

Estado de direito como expressão da razão. Já democracia signfica soberania popular,

governo do povo. O poder fundado na vontade da maioria. Entre democracia e

constitucionalismo, entre vontade e razão, entre direitos fundamentais e governo da

maioria, podem surgir situações de tensão e de conflitos aparentes.

Por essa razão, a Constituição deve desempenhar dois grandes

papéis. Um deles é o de estabelecer as regras do jogo democrático, assegurando a

participação política ampla, o governo da maioria e a alternância no poder. Mas a 7 Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 2002, p. 64; Friedrich Müller, Métodos de trabalho do direito constitucional, 2005, p. 6-7.

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democracia não se resume ao princípio majoritário. Se houver oito católicos e dois

muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro grupo deliberar jogar o segundo pela

janela, pelo simples fato de estar em maior número. Aí está o segundo grande papel de

uma Constituição: proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a

vontade circunstancial de quem tem mais votos. E o intérprete final da Constituição é

o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e

pelos direitos fundamentais, funcionando como um forum de princípios8 – não de

política – e de razão pública9 – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias

políticas ou concepções religiosas.

Portanto, a jurisdição constitucional bem exercida é antes uma

garantia para a democracia do que um risco. Impõe-se, todavia, uma observação final.

A importância da Constituição – e do Judiciário como seu intérprete maior – não pode

suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do Legislativo. A

Constituição não pode ser ubíqua10. Observados os valores e fins constitucionais, cabe

à lei, votada pelo parlamento e sancionada pelo Presidente, fazer as escolhas entre as

diferentes visões alternativas que caracterizam as sociedades pluralistas. Por essa

razão, o STF deve ser deferente para com as deliberações do Congresso. Com exceção

do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em

relação a tudo mais os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos.

Juízes e tribunais não podem presumir demais de si próprios – como ninguém deve,

aliás, nessa vida – impondo suas escolhas, suas preferências, sua vontade. Só atuam,

legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões,

com base na Constituição.

2. Risco de politização da Justiça 8 Ronald Dworkin, The forum of principle. In: A matter of principle, 1985. 9 John Rawls, O liberalismo político, 2000, p. 261. 10 Daniel Sarmento, Ubiqüidade constituconal: os dois lados da moeda, Revista de Direito do Estado 2:83, 2006. Embora ela se irradie por todo o sistema, e deva sempre estar presente em alguma medida, ela não deve ser invocada para asfixiar a atuação do legislador.

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Direito é política, proclamava ceticamente a teoria crítica do

Direito, denunciando a superestrutura jurídica como uma instância de poder e

dominação. Apesar do refluxo das concepções marxistas na quadra atual, é fora de

dúvida que já não subsiste no mundo contemporâneo a crença na idéia liberal-

positivista de objetividade plena do ordenamento e de neutralidade absoluta do

intérprete. Direito não é política. Somente uma visão distorcida do mundo e das

instituições faria uma equiparação dessa natureza, submetendo a noção do que é

correto e justo à vontade de quem detém o poder. Em uma cultura pós-positivista, o

Direito se aproxima da Ética, tornando-se instrumento da legitimidade, da justiça e da

realização da dignidade da pessoa humana. Poucas críticas são mais desqualificantes

para uma decisão judicial do que a acusação de que é política e não jurídica11. Não é

possível ignorar, porém, que a linha divisória entre Direito e Política, que existe

inegavelmente, nem sempre é nítida e certamente não é fixa12.

A ambigüidade refletida no parágrafo anterior impõe a

qualificação do que se entende por política. Direito é política no sentido de que (i) sua

criação é produto da vontade da maioria, que se manifesta na Constituição e nas leis;

(ii) sua aplicação não é dissociada da realidade política, dos efeitos que produz no

meio social e dos sentimentos e expectativas dos cidadãos; (iii) juízes não são seres

sem memória e sem desejos, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia

e, conseqüentemente, sua subjetividade há de interferir com os juízos de valor que

formula. A Constituição faz a interface entre o universo político e o jurídico, em um

esforço para submeter o poder às categorias que mobilizam o Direito, como a justiça, a

segurança e o bem-estar social. Sua interpretação, portanto, sempre terá uma dimensão

política, ainda que balizada pelas possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento

vigente.

11 Paul Kahn, Comparative constitutionalism in a new key, Michigan Law Review 101:2677, 2002-3, p. 2688-9. 12 V. Eduardo Mendonça, A inserção da jurisdição constitucional na democracia: algum lugar entre o direito e a política, mimeografado, 2007.

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Evidentemente, Direito não é política no sentido de admitir

escolhas livres, tendenciosas ou partidarizadas. O facciocismo é o grande inimigo do

constitucionalismo13. O banqueiro que doou para o partido do governo não pode ter

um regime jurídico diferente do que não doou. A liberdade de expressão de quem

pensa de acordo com a maioria não pode ser protegida de modo mais intenso do que a

de quem esteja com a minoria. O ministro do tribunal superior, nomeado pelo

Presidente Y, não pode ter a atitude a priori de nada decidir contra o interesse de quem

o investiu no cargo. Uma outra observação é pertinente aqui. Em rigor, uma decisão

judicial jamais será política no sentido de livre escolha, de discricionariedade plena.

Mesmo nas situações que, em tese, comportam mais de uma solução plausível, o juiz

deverá buscar a que seja mais correta, mais justa, à luz dos elementos do caso

concreto. O dever de motivação, mediante o emprego de argumentação racional e

persuasiva, é um traço distintivo relevante da função jurisdicional e dá a ela uma

específica legitimação14.

Quando se debateu a criação do primeiro tribunal constitucional

na Europa, Hans Kelsen e Carl Schmitt travaram um célebre e acirrado debate teórico

acerca de quem deveria ser o guardião da Constituição. Contrário à existência da

jurisdição constitucional, Schmitt afirmou que a pretensão de judicialização da política

iria se perverter em politização da justiça15. No geral, sua profecia não se realizou e a

fórmula fundada no controle judicial de constitucionalidade se espalhou pelo mundo

com grande sucesso. Naturalmente, as advertências feitas no capítulo anterior hão de

ser levadas em conta com seriedade, para que não se crie um modelo juriscêntrico e

elitista, conduzido por juízes filósofos.

Nessa linha, cabe reavivar que o juiz: (i) só deve agir em nome da

Constituição e das leis, e não por vontade política própria; (ii) deve ser deferente para 13 Paul Kahn, Comparative constitutionalism in a new key, Michigan Law Review 101:2677, 2002-2003, p. 2705. 14 Scott M. Noveck, Is judicial review compatible with democracy?, Cardozo Public Law, Policy & Ethics 6:401, 2008, p. 420. 15 Carl Schmitt, La defensa de la Constitución, 1998, p. 57.

15

com as decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respeitando a presunção de

validade das leis; (iii) não deve perder de vista que, embora não eleito, o poder que

exerce é representativo (i.e, emana do povo e em seu nome deve ser exercido), razão

pela qual sua atuação deve estar em sintonia com o sentimento social, na medida do

possível. Aqui, porém, há uma sutileza: juízes não podem ser populistas e, em certos

casos, terão de atuar de modo contramajoritário. A conservação e a promoção dos

direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição

de funcionamento do constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do

Judiciário, nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma lei

inconstitucional, dá-se a favor e não contra a democracia16.

3. A capacidade institucional do Judiciário e seus limites

A maior parte dos Estados democráticos do mundo se organizam

em um modelo de separação de Poderes. As funções estatais de legislar (criar o direito

positivo), administrar (concretizar o Direito e prestar serviços públicos) e julgar

(aplicar o Direito nas hipóteses de conflito) são atribuídas a órgãos distintos,

especializados e independentes. Nada obstante, Legislativo, Executivo e Judiciário

exercem um controle recíproco sobre as atividades de cada um, de modo a impedir o

surgimento de instâncias hegemônicas17, capazes de oferecer riscos para a democracia

e para os direitos fundamentais. Note-se que os três Poderes interpretam a

Constituição, e sua atuação deve respeitar os valores e promover os fins nela previstos.

No arranjo institucional em vigor, em caso de divergência na interpretação das normas

constitucionais ou legais, a palavra final é do Judiciário. Essa primazia não significa,

porém, que toda e qualquer matéria deva ser decidida em um tribunal. Nem muito

menos legitima a arrogância judicial.

16 Gustavo Binenbojm, A nova jurisdição constitucional brasileira, 2004, p. 246. 17 A expressão é do Ministro Celso de Mello. V. STF, Diário da Justiça da União, 12 maio 2000, MS 23.452/RJ, Rel. Min. Celso de Mello.

16

A doutrina constitucional contemporânea tem explorado duas

idéias que merecem registro: a de capacidades institucionais e a de efeitos sistêmicos18.

Capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder está mais habilitado a

produzir a melhor decisão em determinada matéria. Temas envolvendo aspectos

técnicos ou científicos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o

árbitro mais qualificado, por falta de informação ou conhecimento específico.

Formalmente, os membros do Poder Judiciário sempre conservarão a sua competência

para o pronunciamento definitivo. Mas em situações como as descritas, normalmente

deverão eles prestigiar as manifestações do Legislativo ou do Executivo, cedendo o

passo para juízos discricionários dotados de razoabilidade. Em questões como

demarcação de terras indígenas ou transposição de rios, em que tenha havido estudos

técnicos e científicos adequados, a questão da capacidade institucional deve ser

sopesada de maneira criteriosa.

Também o risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejados

pode recomendar, em certos casos, uma posição de cautela e deferência por parte do

Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para

realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça19. Ele nem sempre dispõe das

informações, do tempo e mesmo do conhecimento para avaliar o impacto de

determinadas decisões, proferidas em processos individuais, sobre a realidade de um

segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público. Tampouco é

passível de responsabilização política por escolhas desastradas. Exemplo emblemático

nessa matéria tem sido o setor de saúde. Ao lado de intervenções necessárias e

meritórias, tem havido uma profusão de decisões extravagantes ou emocionais em

matéria de medicamentos e terapias, que põem em risco a própria continuidade das

políticas públicas de saúde, desorganizando a atividade administrativa e

18 V. Cass Sunstein e Adrian Vermeulle, Intepretation and institutions, Public Law and Legal Theory Working Paper No. 28, 2002. 19 Ana Paula de Barcellos, Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático, Revista de Direito do Estado 3:17, 2006, p. 34.

17

comprometendo a alocação dos escassos recursos públicos20. Em suma: o Judiciário

quase sempre pode, mas nem sempre deve interferir. Ter uma avaliação criteriosa da

própria capacidade institucional e optar por não exercer o poder, em auto-limitação

espontânea, antes eleva do que diminui.

V. CONCLUSÃO

A judicialização e o ativismo são traços marcantes na paisagem

jurídica brasileira dos últimos anos. Embora próximos, são fenômenos distintos. A

judicialização decorre do modelo de Constituição analítica e do sistema de controle de

constitucionalidade abrangente adotados no Brasil, que permitem que discussões de

largo alcance político e moral sejam trazidas sob a forma de ações judiciais. Vale

dizer: a judicialização não decorre da vontade do Judiciário, mas sim do constituinte.

O ativismo judicial, por sua vez, expressa uma postura do

intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição,

potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador

ordinário. Trata-se de um mecanismo para contornar, bypassar o processo político

majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir

consenso. Os riscos da judicialização e, sobretudo, do ativismo envolvem a

legitimidade democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional

do Judiciário para decidir determinadas matérias.

Os riscos para a legitimidade democrática, em razão de os

membros do Poder Judiciário não serem eleitos, se atenuam na medida em que juízes e

tribunais se atenham à aplicação da Constituição e das leis. Não atuam eles por

vontade política própria, mas como representantes indiretos da vontade popular. É

certo que diante de cláusulas constitucionais abertas, vagas ou fluidas – como

20 Luís Roberto Barroso, Da falta de efetividade à constitucionalização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. In: Temas de direito constitucional, tomo IV, 2009, no prelo.

18

dignidade da pessoa humana, eficiência ou impacto ambiental –, o poder criativo do

intérprete judicial se expande a um nível quase normativo. Porém, havendo

manifestação do legislador, existindo lei válida votada pelo Congresso concretizando

uma norma constitucional ou dispondo sobre matéria de sua competência, deve o juiz

acatá-la e aplicá-la. Ou seja: dentre diferentes possibilidades razoáveis de interpretar a

Constituição, as escolhas do legislador devem prevalecer, por ser ele quem detém o

batismo do voto popular.

Os riscos da politização da justiça, sobretudo da justiça

constitucional, não podem ser totalmente eliminados. A Constituição é, precisamente,

o documento que transforma o poder constituinte em poder constituído, isto é, Política

em Direito. Essa interface entre dois mundos dá à interpretação constitucional uma

inexorável dimensão política. Nada obstante isso, ela constitui uma tarefa jurídica.

Sujeita-se, assim, aos cânones de racionalidade, objetividade e motivação das decisões

judiciais, devendo reverência à dogmática jurídica, aos princípios de interpretação e

aos precedentes21. Uma corte constitucional não deve ser cega ou indiferente às

conseqüências políticas de suas decisões, inclusive para impedir resultados injustos ou

danosos ao bem comum ou aos direitos fundamentais. Mas somente pode agir dentro

das possibilidades e dos limites abertos pelo ordenamento jurídico.

No tocante à capacidade institucional e aos efeitos sistêmicos, o

Judiciário deverá verificar se, em relação à matéria tratada, um outro Poder, órgão ou

entidade não teria melhor qualificação para decidir. Por exemplo: o traçado de uma

estrada, a ocorrência ou não de concentração econômica ou as medidas de segurança

para transporte de gás são questões que envolvem conhecimento específico e

discricionariedade técnica. Em matérias como essas, em regra, a posição do Judiciário

deverá ser a de deferência para com as valorações feitas pela instância especializada,

desde que possuam razoabilidade e tenham observado o procedimento adequado.

21 Um avanço civilizatório que ainda precisamos alcançar é o do respeito amplo aos precedentes, como fator de segurança jurídica, isonomia e eficiência. Sobre o tema, v. Patrícia Perrone Campos Mello, Precedente: o desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo brasileiro, 2007.

19

Naturalmente, se houver um direito fundamental sendo vulnerado ou clara afronta a

alguma outra norma constitucional, o quadro se modifica. Deferência não significa

abdicação de competência.

Em suma: o Judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la

valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos,

inclusive em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramajoritária, nessas

hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia. Nas demais situações, o

Judiciário e, notadamente, o Supremo Tribunal Federal deverão acatar escolhas

legítimas feitas pelo legislador, ser deferentes para com o exercício razoável de

discricionariedade técnica pelo administrador, bem como disseminar uma cultura de

respeito aos precedentes, o que contribui para a integridade22, segurança jurídica,

isonomia e eficiência do sistema. Por fim, suas decisões deverão respeitar sempre as

fronteiras procedimentais e substantivas do Direito: racionaliade, motivação, correção

e justiça.

Uma nota final: o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da

solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser

eventual e controlado. Em dose excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão

do Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que aflige a democracia

brasileira: a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder

Legislativo. Precisamos de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes.

22 Ronald Dworkin, O império do direito, 1999, p. 271 e s.

20

ANEXO ALGUNS FATOS E DEZ DECISÕES RELEVANTES EM 2008

I. ALGUNS FATOS RELEVANTES

1. Mudança na presidência

Em maio desse ano, chegou ao seu termo o mandato da Ministra

Ellen Gracie na presidência do Supremo Tribunal Federal. Nomeada pelo Presidente

Fernando Henrique Cardoso, foi a primeira a mulher a integrar a Corte e a presidi-la.

Além da forte carga simbólica abrigada nesses dois fatos, o período foi marcado por

avanços na modernização e informatização do Tribunal, e pela regulamentação de dois

relevantes institutos introduzidos pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004: a súmula

vinculante e a repercussão geral. Seguindo o sistema de rodízio por antigüidade

adotado pela Corte, tomou posse o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que foi

igualmente nomeado para a Corte pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso. O

novo Presidente é Professor da Universidade de Brasília (UnB) e, antes de se tornar

Ministro, foi Procurador da República e Advogado-Geral da União.

2. Súmulas vinculantes

Ao longo de 2008, foram editadas dez súmulas vinculantes, que se

somaram às três pré-existentes. Os temas foram os mais variados: uso de salário

mínimo como indexador (Súmula 4); defesa técnica por advogado em processo

disciplinar (Súmula 5); remuneração de praças no serviço militar (Súmula 6); não

auto-aplicabilidade do art. 192, § 3º da Constituição enquanto vigorou (juros reais de

12%) (Súmula 7); prescrição e decadência do crédito tributário (Súmula 8); recepção

do art. 127 da Lei de Execução Penal (Súmula 9); reserva de plenário para afastar

incidência de lei ou ato normativo (Súmula 10); restrições ao uso de algemas (Súmula

11); taxa de matrícula em universidade pública (Súmula 12) e vedação do nepotismo

nos três Poderes (Súmula 13). Algumas súmulas provocaram intenso debate público e

21

polêmica, não apenas por seu conteúdo, mas pela alegação de que o número reduzido

de precedentes em relação a algumas delas daria ao STF, com sua edição, um papel

quase normativo.

3. Repercussão geral

A operacionalização do instituto da repercussão geral promete um

impacto significativo na qualidade e na quantidade das questões a serem julgadas. As

estatísticas de 2008 já deverão exibir essa nova realidade, beneficiada por

procedimentos como o plenário virtual, a devolução de recursos múltiplos e o

sobrestamento de processos na origem. O controle da própria agenda e a redução

contínua da carga de trabalho permitirão que o Tribunal progressivamente concentre

sua atuação no papel de corte constitucional, julgando não mais do que algumas

centenas de casos por ano. O passo seguinte deverá ser a eliminação de uma série de

competências originárias e recursais que não se justificam e não têm par em nenhum

país do mundo. No modelo que se está desenhando, o Supremo Tribunal Federal

poderá se dedicar com mais vagar e visibilidade aos grandes temas que cabem a um

tribunal constitucional: proteção e promoção dos direitos fundamentais, preservação

das regras do jogo democrático, separação de Poderes, federação e outros

seletivamente escolhidos pela maioria da Corte, de acordo com as circunstâncias de

cada época.

4. Audiências públicas sobre interrupção da gestação no caso de anencefalia

Sob a condução do Ministro Marco Aurélio, relator do processo,

foi realizada uma série de quatro audiências públicas, no âmbito da ADPF 54. Na ação

se pede ao Supremo Tribunal Federal que interprete conforme a Constituição os

artigos do Código Penal que tratam do aborto para declarar que eles não incidem na

hipótese de interrupção da gestação de fetos anencefálicos. Foram ouvidas entidades

religiosas, médicas, científicas, professores, parlamentares e Ministros de Estado.

22

Também estiveram presentes mulheres que passaram pela experiência de ter uma

gestação nessas condições. Apesar do antagonismo das posições, o debate foi rico e

cordial. A maioria das entidades religiosas que participaram das audiências se

manifestaram contrariamente à possibilidade de interrupção da gestação no caso de

anencefalia, inclusive a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a

Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família e a Associação Médico-Espírita do

Brasil. A totalidade das entidades científicas, acadêmicas e de classe defenderam o

direito de a mulher interromper a gestação, se assim desejar, aí incluídos o Conselho

Federal de Medicina, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, o Conselho

Federal dos Direitos da Mulher, a Escola de Gente e o Instituto de Bioética, Direitos

Humanos e Gênero – Anis. No mesmo sentido se pronunciaram os Ministros da Saúde,

José Gomes Temporão, e da Mulher, Nilcéa Freire. O julgamento é esperado para o

primeiro semestre de 2009.

5. A polêmica dos habeas corpus

Outro fato marcante do ano de 2008 foi a concessão de habeas

corpus, pelo Presidente do STF, em casos de prisão temporária de personalidades

conhecidas, cujos processos tiveram grande visibilidade. Vislumbrando abuso de

poder nas medidas, o Ministro Gilmar Mendes – cujas decisões foram ratificadas pelo

Plenário – deflagrou um debate que polarizou diversos setores da sociedade. Quando

pessoas esclarecidas e bem intencionadas divergem com a profundidade verificada

nesse episódio, é sinal que há dificuldades sérias na interlocução, pela ausência de

premissas comuns. Do episódio é possível extrair uma conclusão: o sistema punitivo

no Brasil – esse que começa no inquérito policial, passa pelo Ministério Público, pelo

Judiciário, pela execução penal e deságua no sistema penitenciário – está desarrumado.

É preciso repensá-lo do ponto de vista filosófico e normativo, rearrumá-lo nos seus

valores, propósitos e conceitos. Todos os ramos do Direito vivem, em épocas

diferentes, situações de crise. Esse parece ser o caso do direito penal e do direito

processual penal no Brasil.

23

II. DEZ CASOS JULGADOS EM 2008

1. Constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias (ADIn 3.510/DF, Rel. Min. Carlos Britto)

Por maioria, a Corte julgou improcedente ação direta de

inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador-Geral da República contra o art. 5º da

Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2205). O referido artigo, em seus diferentes

dispositivos, autorizava e disciplinava as pesquisas científicas com embriões humanos

resultantes dos procedimentos de fertilização in vitro, desde que inviáveis ou

congelados há mais de três anos. Prevaleceu o voto do relator, Ministro Carlos Ayres

Britto, no sentido de que não havia, na hipótese, violação ao direito à vida, nem

tampouco ao princípio da dignidade da pessoa humana. A posição do relator, julgando

a ação totalmente improcedente, prevaleceu por seis votos a cinco. Dos cinco votos

vencidos, dois deles tinham, como traço central, a proibição de destruição do embrião

(Ministros Menezes Direito e Ricardo Lewandowski). Os outros três, sem se oporem à

pesquisa que comprometesse o embrião, entendiam dever ficar explicitada na decisão a

existência obrigatória de um órgão central de controle dessas pesquisas (Ministros

Cezar Peluso, Eros Grau e Gilmar Mendes).

2. Vedação do nepotismo nos três Poderes (ADC 12, Rel. Min. Carlos Britto; e RE 579.951/RN, Rel. Min. Ricardo Lewandowski)

Em ação declaratória de constitucionalidade ajuizada pela

Associação dos Magistrados Brasileiros, o Plenário do STF declarou a

constitucionalidade da Resolução nº 7, de 2005, do Conselho Nacional de Justiça, que

proibia a nomeação de parentes de membros do Poder Judiciário, até o terceiro grau,

para cargos em comissão e funções gratificadas. Entendeu-se que, independentemente

de lei específica, a proibição deveria ser extraída dos princípios constitucionais da

moralidade e da impessoalidade. Na seqüência, ao julgar recurso extraordinário

oriundo do Rio Grande do Norte, no qual se discutia a validade da nomeação de

24

parentes de vereador e de vice-prefeito para cargos públicos, o Tribunal estendeu a

vedação do nepotismo aos Poderes Executivo e Legislativo, aprovando a Súmula de nº

13, com o seguinte teor: "A nomeação de cônjuge, companheiro, ou parente, em linha

reta, colateral ou por afinidade, até o 3º grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de

servidor da mesma pessoa jurídica, investido em cargo de direção, chefia ou

assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de

função gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste

mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal."

3. Prisão por dívida. Virada na jurisprudência (HC’s 87.585/TO, Rel. Min. Marco Aurélio e 92.566, Rel. Min. Marco Aurélio; RE’s 349.703, Rel. p/ ac. Min. Gilmar Mendes e 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso).

No conjunto de casos identificados acima, o STF reviu sua antiga

jurisprudência na matéria, relativamente à possibilidade de prisão do depositário infiel.

Diante da circunstância de o Brasil ser signatário do Pacto de San Jose da Costa Rica,

que restringe a prisão por dívida ao descumprimento inescusável da prestação

alimentícia, passou a considerar derrogadas as leis que previam a prisão do depositário

infiel, inclusive nas hipóteses de alienação fiduciária e de depósito judicial. O Tribunal

se dividiu em relação à posição hierárquica dos tratados e convenções internacionais

sobre direitos humanos firmados pelo Brasil. Prevaleceu nos julgamentos a tese do

Ministro Gilmar Mendes, que sustentou o status supra-legal, mas infraconstitucional

de tais atos. Ficaram vencidos, no ponto, os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso,

Eros Grau e Ellen Gracie. O Ministro Marco Aurélio entendeu não ser indispensável

uma definição sobre este ponto para fins daqueles julgamentos e absteve-se de se

pronunciar sobre ele.

4. Demarcação de terras indígenas na área conhecida como Raposa/Serra do Sol (Pet. 3388/RR, Rel. Min. Carlos Britto)

25

O julgamento ainda não foi concluído, mas oito votos já foram

proferidos. Por sua importância, merece referência. Na ação proposta por Senador da

República pleiteou-se a declaração de nulidade da Portaria 534/2005, do Ministro da

Justiça, e do Decreto homologatório do Presidente da República, que demarcaram as

terras indígenas na área referida. Foram alegados inúmeros fundamentos, que incluíam

vícios no procedimento, riscos para a segurança nacional, violação do princípio

federativo, falta de proporcionalidade e conseqüências econômicas graves para o

Estado de Roraima. O Relator, Ministro Carlos Ayres Britto, julgou improcedente o

pedido e chancelou a demarcação contínua contida no ato impugnado, rejeitando a

demarcação em ilhas, como requerido. Em seu voto, o Ministro Menezes Direito

propôs procedência parcial, impondo “condições” que, na verdade, resultavam da

interpretação de disposições constitucionais aplicáveis. Trata-se de território nacional e

de terras pertencentes à União, que pode enviar as Forças Armadas e a Polícia Federal

para desempenho de suas funções institucionais, bem como conserva a competência

para licenciar atividades de exploração de potenciais hidráulicos e extração mineral,

dentre outras. Esta posição, à qual aderiu o relator, contava com oito votos quando se

deu o pedido de vista do Ministro Marco Aurélio.

5. Inelegibilidade e vida pregressa de candidatos a cargos eletivos (ADPF 144/DF, Rel. Min. Celso de Mello)

A ação foi ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros

(AMB) e tinha por fundamento a interpretação do art. 14, § 9º da Constituição Federal,

que prevê que lei complementar estabelecerá casos de inelegibilidade, levando em

conta a vida pregressa dos candidatos. A Justiça Eleitoral de diversos Estados havia

negado registro a candidatos condenados em processos criminais e administrativos,

independentemente do trânsito em julgado dessas decisões. Essa posição não foi

endossada pelo Tribunal Superior Eleitoral e, contra essa linha de entendimento, opôs-

se a AMB. O STF julgou improcedente o pedido, sob dois fundamentos principais: a)

havendo reserva de lei complementar, violaria a divisão funcional de Poderes decisão

judicial que, na falta da lei, instituísse outras hipóteses de inelegibilidade; b) o

26

acolhimento do pedido vulneraria os princípios constitucionais da presunção de

inocência e do devido processo legal. Votaram vencidos os Ministros Carlos Britto e

Joaquim Barbosa.

6. Restrições ao uso de algemas (HC 91.952/SP, Rel. Min. Marco Aurélio).

O Tribunal, por unanimidade, anulou decisão condenatória

proferida pelo Tribunal do Júri, em razão de o acusado ter sido mantido

desnecessariamente algemado durante toda a sessão. Entendeu-se que, no caso, não

havia uma justificativa socialmente aceitável para submeter o acusado a tal

humilhação, vulneradora da dignidade da pessoa humana e do princípio da não-

culpabilidade, inclusive por induzir nos jurados a percepção de que se estaria diante de

acusado de alta periculosidade. Em desdobramento desse julgamento, foi editada a

Súmula 11, com o seguinte teor: "Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e

de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte

do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de

responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da

prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do

Estado". Alguns setores criticaram a edição da súmula, sob o fundamento de que ela se

basearia em um único precedente, quando a constituição exige reiteradas decisões

(CF, art. 103-A).

7. Passe livre para deficientes no transporte coletivo (ADIn 2.649/DF, Rel. Min. Carmen Lúcia)

O Tribunal, por maioria, julgou improcedente pedido de

declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 8.899/94, que concede passe livre no

sistema de transporte coletivo interestadual às pessoas portadoras de deficiência,

comprovadamente carentes. A autora da ação sustentou que a Lei afrontava os

princípios da isonomia e da livre iniciativa, bem como o direito de propriedade. Em

seu voto, a relatora, Ministra Cármen Lúcia, fez referência à Convenção sobre os

27

Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada pelo Brasil, em 2007, e à

preponderância do princípio da solidariedade, inscrito no art. 3º da Constituição.

Também foi afastado o argumento de que haveria violação ao art. 170 da Constituição,

uma vez que a livre iniciativa deve ser regulada nos termos da lei, considerando os

demais princípios constitucionais da ordem econômica que também merecem amparo,

como a dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais. Assentou

ainda a Relatora que eventual desequilíbrio da equação econômico-financeira do

contrato poderia ser sanado por ocasião da negociação de tarifa com o poder

concedente.

8. Suspensão da Lei de Imprensa do regime militar (ADPF 130/DF, Rel. Min. Carlos Britto)

O Tribunal suspendeu, em medida cautelar, um conjunto de

disposições da Lei de Imprensa (Lei nº 5.250, de 9.02.1967), editada ao tempo do

regime militar. De acordo com o relator, Ministro Carlos Ayres Britto, tais previsões

não eram compatíveis com o padrão de democracia e de liberdade de imprensa

concebido pelo constituinte de 1987-88, que se apóia em dois pilares: a) informação

em plenitude e de máxima qualidade; e b) transparência ou visibilidade do poder, seja

ele político, econômico ou religioso. A cautelar foi referendada pelo Plenário,

vencidos, em parte, os Ministros Menezes Direito, Eros Grau e Celso de Mello, que

suspendiam toda a lei, autorizando a aplicação da legislação ordinária, civil e penal; e

o Ministro Marco Aurélio, que não conhecia da ADPF.

9. Sigilo judicial e Comissões Parlamentares de Inquérito (MS 27.483/DF, Rel. Min. Cezar Peluso).

O Tribunal, por maioria, referendou decisão liminar concedida

pelo relator, Ministro Cezar Peluso, em favor de operadoras de telefonia. O ato

impugnado consistia em requisição, feita pela CPI instituída para investigar escutas

telefônicas clandestinas, no sentido de que lhe fossem remetidos os dados referentes a

28

todas as decisões judiciais e mandados de interceptação telefônica cumpridos no ano

de 2007. Por se tratar de informações protegidas por sigilo judicial, as operadoras

ficaram no seguinte dilema: se não atendessem à requisição, sujeitavam-se à

imputação de crime de desobediência; se fornecessem os dados, estariam violando

segredo de justiça, sem autorização judicial, fato igualmente típificado como crime. A

maioria entendeu que CPI não tem o poder de quebrar sigilo imposto a processo

sujeito a segredo de justiça, havendo, na matéria, reserva de jurisdição. A decisão

explicitou que, se a Comissão demonstrasse interesse, as operadoras deveriam

encaminhar um conjunto amplo de informações explicitadas no julgado, mas

preservando o sigilo das partes. Vencido o Ministro Marco Aurélio, que reconhecia o

poder da CPI para requisição das informações pretendidas.

10. Isenção da Cofins sobre sociedades profissionais e revogação por lei ordinária (RE’s 377457/PR e 381964/MG, Min. Gilmar Mendes)

O Tribunal declarou legítima a revogação, por lei ordinária (art.

56 da Lei 9.430/96), da isenção do recolhimento da Contribuição para o

Financiamento da Seguridade Social (Cofins) sobre as sociedades civis de prestação de

serviços, que havia sido instituída por lei complementar (art. 6º, II, da LC 70/91).

Reiterando orientação fixada no julgamento da ADC 1/DF, sustentou a maioria: a) a

inexistência de hierarquia constitucional entre lei complementar e lei ordinária, que

apenas se distinguiriam em razão da matéria reservada à primeira pela própria

Constituição; b) a inexigibilidade de lei complementar para disciplina dos elementos

próprios à hipótese de incidência das contribuições previstas no texto constitucional.

Vencidos os Ministros Eros Grau e Marco Aurélio que davam provimento aos

recursos, para que fosse mantida a isenção estabelecida no art. 6º, II, da LC 70/91. Em

seguida, na apreciação do pedido de modulação de efeitos temporais, verificou-se um

empate, com cinco votos a favor e cinco contrários. O Tribunal proclamou o resultado

como desfavorável à modulação, por entender que esta somente poderia ser concedida

por voto de dois terços dos membors da Corte, aplicando, por analogia, o disposto no

art. 27 da Lei 9.868/99. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil

29

submeteu ao Presidente do STF um arrazoado sustentando que, na hipótese, por não

ter havido declaração de inconstitucionalidade, a modulação poderia ser feita por

maioria absoluta, devendo-se, portanto, colher o voto faltante. O acórdão ainda não foi

publicado e, conseqüentemente, ainda não houve oportunidade para novo

pronunciamento sobre o ponto.

Marcha da Maconha: reivindicação ou

apologia ao crime? POR ARTIGO DO LEITOR MILTON CORRÊA DA COSTA

06/05/2011 0:00 / ATUALIZADO 03/11/2011 22:28

Será realizada, através de uma liminar concedida pelo 4º Juizado Especial

Criminal, neste sábado, na Zona Sul no Rio, mais uma edição da chamada

Marcha da Maconha. Militantes pró-legalização da cannabis, que se auto-

afirmam progressistas da causa, obtiveram um habeas corpus preventivo

que garante a realização do evento. A autorização, no entanto, impede

expressamente, e não poderia ser diferente - a Lei de Entorpecentes (nº

11.343/06) está em pleno vigor em território nacional - o uso de qualquer

substância entorpecente durante a marcha. Ou seja, a autorização judicial

para a realização da marcha não é sinônimo de "liberou geral" ou de

apologia ao uso de drogas. Portanto, no trajeto da marcha, não há área de

exclusão à ação policial.

O evento tem que se desenvolver na observância dos preceitos legais da

ordem pública e fumar maconha continua até agora sendo crime. Não se

trata, inclusive, de nenhuma medida judicial extraordinária uma vez que a

constituição brasileira, nos moldes do estado democrárico de direito,

permite manifestações reivindicatórias (pacíficas) em vias públicas,

mediante autorização e permissão prévias das autoridades competentes,

observados os aspectos do necessário planejamento no que tange a

medidas de segurança pública, defesa civil e circulação viária. Até aí, tudo

bem.

Ocorre, no entanto, que tal evento, que invoca incrementar o debate sobre

políticas públicas visando a descriminalização e legalização da maconha

para o uso, comércio e plantio para consumo próprio, constitui tema de

discussão extremamente complexa na sociedade brasileira e em todo

mundo, onde não há verdades absolutas. Usuários da droga chegam a

afirmar, em defesa da causa, que a cannabis traz mais benefícios ao

organismo do que malefícios. Alguns afirmam que a maconha acarretaria

ao indivíduo menos mal do que o tabaco e o álcool, e se estes são

legalizados por que não a maconha? Como se a legalidade de um mal fosse

argumento convincente para legalizar outro.

Tais argumentos, no entanto, à exceção do uso da cannabis para fins

medicinais, já devidamente comprovado com sucesso em experiências no

mundo, não nos mostram cientificamente que fumar 'baseado' faz bem em

todos os casos. Se muitos a usam durante anos e não afeta suas vidas,

também é fácil contra-argumentar que alguns fumam cigarro ou usam

álcool a vida toda e não morrem por tal dependência, apesar de termos

conhecimento de que tais drogas (lícitas) trazem graves danos à saúde.

Estudos e pesquisas mostram, inclusive, que a maconha não é droga tão

inofensiva assim. O hábito de fumar maconha frequentemente, mesmo em

pouca quantidade, pode danificar seriamente a área do cérebro

responsável pela memória, segundo estudo feito na Universidade Federal

de São Paulo (Unifesp).

Os resultados mostram que os déficits no armazenamento de informações

e na evocação da memória nos usuários persistiram após um tempo médio

de 14 dias de abstinência. A parte do cérebro mais atingida é a responsável

pelo processamento da memória e pela execução de atividades complexas

que requerem planejamento e gerenciamento das informações. Quando o

uso é crônico e se inicia antes dos 15 anos de idade, o risco de danos é

ainda maior, devido ao efeito tóxico e cumulativo da substância da

maconha no desempenho cerebral .

O fato é que, como toda droga, a maconha, tal e qual o álcool, é uma

perigosa porta de entrada para drogas mais pesadas como o o crack, a

cocaína, o ecstasy e agora também o oxi, um subproduto da cocaína, mais

letal do que o crack, que chegou ao país através do Acre. Registre-se que

num debate recente, na Comissão de Assuntos Sociais do Senado,

concluiu-se que a venda indiscriminada de bebidas a jovens, sem o devido

controle, além de funcionar como uma espécie de porta de entrada para o

consumo de outras drogas, seria argumento suficiente para derrubar

qualquer inciativa de liberação do consumo de drogas no país.Se o

programa nacional de combate ao crack não consegue frear o avanço do

uso de tal substância, atingindo hoje apenas 1/3 dos 95% dos municípios

brasileiros envoltos com agrave problemática, por que ainda pensar em

legalizar o uso da maconha pondo em mais risco toda a juventude?

Sobre o perigo do crack o médico psiquiatra Emanuel Fortes Silveira

Cavalcanti, representante da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP),

presente ao debate da comissão do Senado, lembrou que o consumo da

droga tem aumentado no país e que, em Goiás, por exemplo, 60% dos

julgamentos de crimes têm como réus usuários da droga. Ele não poupou

críticas à "falta de controle" do governo sobre as indústrias químicas que

fabricam éter e acetona, insumos fundamentais para o refino da cocaína e,

por consequência, do crack, que é um derivado da droga.

O fato é que drogas não agregam valores sociais positivos e tèm sido causa

da destruição de jovens e de muitas famílias. O 'mundo colorido'

preconizado pelos usuários de drogas é falso. Ademais, não se pode legislar

para beneficiar uma minoria que fuma maconha e afirma levar uma vida

normal. Não. Uma legislação sobre esse tema deve ter por objetivo a

proteção de toda a sociedade, não de minorias.

Quando o assunto é drogas o melhor caminho é a prevenção ao uso e a

repressão qualificada ao tráfico. Que a marcha do próximo sábado no Rio

não se transforme num instrumento de apologia às drogas. Tentar mostrar

que a maconha é um grande 'barato' é argumento falso.

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/in/marcha-da-maconha-reivindicacao-ou-apologia-ao-crime-2900819#ixzz3ZKilpke9 © 1996 - 2015. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização. !

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADPF 187 SOBRE A “MARCHA DA MACONHA”

Representantes do Judiciário: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Ministros A favor Contra

Antonio Cezar Peluso 1

Carlos Ayres Britto 1

Carmen Lúcia Antunes Rocha 1

Ellen Gracie Northfleet 1

José Celso de Mello Filho 1

Marco Aurélio Mello 1

Enrique Ricardo Lewandowski 1

Luiz Fux 1

Total 8 0

Representante do Legislativo: Advocacia-Geral da União

Representante do Executivo: Procuradoria-Geral da República

Procurador-Geral da República A favor Contra

Luís Inácio Adams 1

Total 10 0

Representante da Sociedade Civil Organizada – “Amicus Curiae”

Amici curiae

Associação Brasileira de Estudos Sociais de Psicoativos – ABESUP

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM

Advogado-Geral da União A favor Contra

Roberto Gurgel 1

Total 9 0

Ementa: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - ADMISSIBILIDADE [...] MÉRITO: “MARCHA DA MACONHA” - MANIFESTAÇÃO LEGÍTIMA, POR CIDADÃOS DA REPÚBLICA, DE DUAS LIBERDADES INDIVIDUAIS REVESTIDAS DE CARÁTER FUNDAMENTAL: O DIREITO DE REUNIÃO (LIBERDADE-MEIO) E O DIREITO À LIVRE EXPRESSÃO DO PENSAMENTO (LIBERDADE-FIM) - A LIBERDADE DE REUNIÃO COMO PRÉ- CONDIÇÃO NECESSÁRIA À ATIVA PARTICIPAÇÃO DOS CIDADÃOS NO PROCESSO POLÍTICO E NO DE TOMADA DE DECISÕES NO ÂMBITO DO APARELHO DE ESTADO - CONSEQUENTE LEGITIMIDADE, SOB PERSPECTIVA ESTRITAMENTE CONSTITUCIONAL, DE ASSEMBLEIAS, REUNIÕES, MARCHAS, PASSEATAS OU ENCONTROS COLETIVOS REALIZADOS EM ESPAÇOS PÚBLICOS (OU PRIVADOS) COM O OBJETIVO DE OBTER APOIO PARA OFERECIMENTO DE PROJETOS DE LEI, DE INICIATIVA POPULAR, DE CRITICAR MODELOS NORMATIVOS EM VIGOR, DE EXERCER O DIREITO DE PETIÇÃO E DE PROMOVER ATOS DE PROSELITISMO EM FAVOR DAS POSIÇÕES SUSTENTADAS PELOS MANIFESTANTES E PARTICIPANTES DA REUNIÃO - ESTRUTURA CONSTITUCIONAL DO DIREITO FUNDAMENTAL DE REUNIÃO PACÍFICA E OPONIBILIDADE DE SEU EXERCÍCIO AO PODER PÚBLICO E AOS SEUS AGENTES - VINCULAÇÃO DE CARÁTER INSTRUMENTAL ENTRE A LIBERDADE DE REUNIÃO E A LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO - DOIS IMPORTANTES PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A ÍNTIMA CORRELAÇÃO ENTRE REFERIDAS LIBERDADES FUNDAMENTAIS: HC 4.781/BA, REL. MIN. EDMUNDO LINS, E ADI 1.969/DF, REL. MIN. RICARDO LEWANDOWSKI - A LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO UM DOS MAIS PRECIOSOS PRIVILÉGIOS DOS CIDADÃOS EM UMA REPÚBLICA FUNDADA EM BASES DEMOCRÁTICAS - O DIREITO À LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO: NÚCLEO DE QUE SE IRRADIAM OS DIREITOS DE CRÍTICA, DE PROTESTO, DE DISCORDÂNCIA E DE LIVRE CIRCULAÇÃO DE IDEIAS – ABOLIÇÃO PENAL (“ABOLITIO CRIMINIS”) DE DETERMINADAS CONDUTAS PUNÍVEIS - DEBATE QUE NÃO SE CONFUNDE COM INCITAÇÃO À PRÁTICA DE DELITO NEM SE IDENTIFICA COM APOLOGIA DE FATO CRIMINOSO - DISCUSSÃO QUE DEVE SER REALIZADA DE FORMA RACIONAL, COM RESPEITO ENTRE INTERLOCUTORES E SEM POSSIBILIDADE LEGÍTIMA DE REPRESSÃO ESTATAL, AINDA QUE AS IDEIAS PROPOSTAS POSSAM SER CONSIDERADAS, PELA MAIORIA, ESTRANHAS, INSUPORTÁVEIS, EXTRAVAGANTES, AUDACIOSAS OU INACEITÁVEIS - O SENTIDO DE ALTERIDADE DO DIREITO À LIVRE EXPRESSÃO E O RESPEITO ÀS IDEIAS QUE CONFLITEM COM O PENSAMENTO E OS VALORES DOMINANTES NO MEIO SOCIAL - CARÁTER NÃO ABSOLUTO DE REFERIDA LIBERDADE FUNDAMENTAL (CF, art. 5º, incisos IV, V e X; CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Art. 13, § 5º) - A PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL À LIBERDADE DE PENSAMENTO COMO SALVAGUARDA NÃO APENAS DAS IDEIAS E PROPOSTAS PREVALECENTES NO ÂMBITO SOCIAL, MAS, SOBRETUDO, COMO AMPARO EFICIENTE ÀS POSIÇÕES QUE DIVERGEM, AINDA QUE RADICALMENTE, DAS CONCEPÇÕES PREDOMINANTES EM DADO MOMENTO HISTÓRICO-

CULTURAL, NO ÂMBITO DAS FORMAÇÕES SOCIAIS - O PRINCÍPIO MAJORITÁRIO, QUE DESEMPENHA IMPORTANTE PAPEL NO PROCESSO DECISÓRIO, NÃO PODE LEGITIMAR A SUPRESSÃO, A FRUSTRAÇÃO OU A ANIQUILAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS, COMO O LIVRE EXERCÍCIO DO DIREITO DE REUNIÃO E A PRÁTICA LEGÍTIMA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO, SOB PENA DE COMPROMETIMENTO DA CONCEPÇÃO MATERIAL DE DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL - A FUNÇÃO CONTRAMAJORITÁRIA DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO - INADMISSIBILIDADE DA “PROIBIÇÃO ESTATAL DO DISSENSO” - NECESSÁRIO RESPEITO AO DISCURSO ANTAGÔNICO NO CONTEXTO DA SOCIEDADE CIVIL COMPREENDIDA COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO QUE DEVE VALORIZAR O CONCEITO DE “LIVRE MERCADO DE IDEIAS” - O SENTIDO DA EXISTÊNCIA DO “FREE MARKETPLACE OF IDEAS” COMO ELEMENTO FUNDAMENTAL E INERENTE AO REGIME DEMOCRÁTICO (AC 2.695-MC/RS, REL. MIN. CELSO DE MELLO) - A IMPORTÂNCIA DO CONTEÚDO ARGUMENTATIVO DO DISCURSO FUNDADO EM CONVICÇÕES DIVERGENTES - A LIVRE CIRCULAÇÃO DE IDEIAS COMO SIGNO IDENTIFICADOR DAS SOCIEDADES ABERTAS, CUJA NATUREZA NÃO SE REVELA COMPATÍVEL COM A REPRESSÃO AO DISSENSO E QUE ESTIMULA A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS DE LIBERDADE EM OBSÉQUIO AO SENTIDO DEMOCRÁTICO QUE ANIMA AS INSTITUIÇÕES DA REPÚBLICA - AS PLURISSIGNIFICAÇÕES DO ART. 287 DO CÓDIGO PENAL: NECESSIDADE DE INTERPRETAR ESSE PRECEITO LEGAL EM HARMONIA COM AS LIBERDADES FUNDAMENTAIS DE REUNIÃO, DE EXPRESSÃO E DE PETIÇÃO - LEGITIMIDADE DA UTILIZAÇÃO DA TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO NOS CASOS EM QUE O ATO ESTATAL TENHA CONTEÚDO POLISSÊMICO - ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL JULGADA PROCEDENTE.

(ADPF 187, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 15/06/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-102 DIVULG 28-05-2014 PUBLIC 29-05- 2014)

Do inteiro teor – Voto do Ministro Celso de Mello:

“Na realidade, esses julgamentos revelam o caráter eminente da liberdade de reunião, destacando-lhe o sentido de instrumentalidade de que ele se reveste, ao mesmo tempo em que enfatizam a íntima conexão que existe entre essa liberdade jurídica e o direito fundamental à livre manifestação do pensamento. O Supremo Tribunal Federal, em ambos os casos, deixou claramente consignado que o direito de reunião, enquanto direito-meio, atua em sua condição de instrumento viabilizador do exercício da liberdade de expressão, qualificando-se, por isso mesmo, sob tal perspectiva, como elemento apto a propiciar a ativa participação da sociedade civil, mediante exposição de ideias, opiniões, propostas, críticas e reivindicações, no processo de tomada de decisões em curso nas instâncias de Governo. É por isso que esta Suprema Corte sempre teve a nítida percepção de que há, entre as liberdades clássicas de reunião e de manifestação do pensamento, de um lado, e o

direito de participação dos cidadãos na vida política do Estado, de outro, um claro vínculo relacional, de tal modo que passam eles a compor um núcleo complexo e indissociável de liberdades e de prerrogativas político-jurídicas, o que significa que o desrespeito ao direito de reunião, por parte do Estado e de seus agentes, traduz, na concreção desse gesto de arbítrio, inquestionável transgressão às demais liberdades cujo exercício possa supor, para realizar-se, a incolumidade do direito de reunião, tal como sucede quando autoridades públicas impedem que os cidadãos manifestem, pacificamente, sem armas, em passeatas, marchas ou encontros realizados em espaços públicos, as suas ideias e a sua pessoal visão de mundo, para, desse modo, propor soluções, expressar o seu pensamento, exercer o direito de petição e, mediante atos de proselitismo, conquistar novos adeptos e seguidores para a causa que defendem.”

“A essencialidade dessa liberdade fundamental, que se exterioriza no direito de qualquer pessoa reunir-se com terceiros, pacificamente, sem armas, em locais públicos, independentemente de prévia autorização de órgãos ou agentes do Estado (que não se confunde com a determinação constitucional de “prévio aviso à autoridade competente”), revela-se tão significativa que os modelos político-jurídicos de democracia constitucional sequer admitem que o Poder Público interfira no exercício do direito de reunião. Isso significa que o Estado, para respeitar esse direito fundamental, não pode nem deve inibir o exercício da liberdade de reunião, ou frustrar-lhe os objetivos, ou inviabilizar, com medidas restritivas, a adoção de providências preparatórias e necessárias à sua realização, ou omitir-se no dever de proteger os que a exercem contra aqueles que a ela se opõem, ou, ainda, pretender impor controle oficial sobre o objeto da própria assembleia, passeata ou marcha.”

“Tudo isso torna necessário debater e examinar o significado e o alcance de determinadas liberdades fundamentais – a liberdade de reunião, a liberdade de manifestação do pensamento e, também, o direito de petição – cujo exercício tem sido inviabilizado, pelo Poder Público, sob a equivocada interpretação de que manifestações públicas (e pacíficas), como a “Marcha da Maconha”, configurariam a prática do ilícito tipificado no art. 287 do Código Penal, que define, como entidade delituosa, a “apologia de fato criminoso”, não obstante destinadas, tais manifestações, a veicular ideias, a transmitir opiniões, a formular protestos e a expor reivindicações (direito de petição), com a finalidade de sensibilizar a comunidade e as autoridades governamentais, notadamente os seus legisladores, para a delicada questão da descriminalização (“abolitio criminis”) do uso das drogas ou de qualquer substância entorpecente específica.” “É importante destacar, de outro lado, Senhor Presidente, que, ao contrário do que algumas mentalidades repressivas sugerem, a denominada “Marcha da Maconha”, longe de pretender estimular o consumo de drogas ilícitas, busca, na realidade, expor, de maneira organizada e pacífica, apoiada no princípio constitucional do pluralismo político (fundamento estruturante do Estado democrático de direito), as ideias, a visão, as concepções, as críticas e as propostas daqueles que participam, como organizadores ou como manifestantes, desse evento social, amparados pelo exercício concreto dos direitos fundamentais de reunião, de livre manifestação do pensamento e de petição.”

Do inteiro teor – Voto Ministro Luiz Fux:

“A realização de manifestações ou eventos públicos nos quais seja emitida opinião favorável à descriminalização do uso de entorpecentes – ou mesmo de qualquer outra conduta – não pode ser considerada, de per se, como apologia ao crime, por duas razões. A primeira delas é lógica e de rara simplicidade: se ocorre uma manifestação em que se defende o fim da proibição legal de uma determinada prática, quer-se que a mesma passe a ser considerada legalmente admissível, deixando de ser crime. (...) A segunda razão é de cunho substancial: a proteção constitucional da liberdade de expressão garante a livre emissão de opinião, inclusive quanto à descriminalização de condutas. Há que se compreender o alcance da liberdade de expressão constitucionalmente assegurada.”

“No que concerne à liberdade de expressão, por seu turno, a limitação é legal, mas igualmente legítima. O art. 287 do Código Penal estabelece limite ao exercício da liberdade de expressão, baseado na proteção da paz pública, particularmente naquilo que se refere ao impedimento da sua disseminação de prática criminosa, assim definida em juízo de ponderação previamente efetuado pelo legislador. (...) Com efeito, resta preservado o núcleo essencial da liberdade de expressão, que se traduz, in casu, na livre manifestação do pensamento favorável à descriminalização do uso de substância entorpecente, vedando-se apenas o estímulo, a incitação, o incentivo a esse uso. O indivíduo é livre para posicionar-se publicamente a favor da exclusão da incidência da norma penal sobre o consumo de drogas e lhe é dado, inclusive, o direito de convencer o outro a compartilhar de seu entendimento, mas não ao consumo do entorpecente propriamente dito.”

“Nessa ordem de ideias, a decisão de mérito nesta ADPF, a prevalecer o entendimento esposado neste voto, permitirá ao cidadão a livre manifestação de seu pensamento na esfera pública, quando favorável à descriminalização do consumo de entorpecentes, sem a ameaça de uma repressão estatal (...). Por outro lado, às autoridades públicas será imposto maior esforço argumentativo (como convém a qualquer restrição das liberdades fundamentais) para justificar o enquadramento da conduta do indivíduo na tipificação penal da apologia ao crime. A simples participação em movimentos pró- descriminalização das drogas, como a “Marcha da Maconha” ou outros, não dará supedâneo à prisão ou a processo penal – será necessário que se verifique, caso a caso, a efetiva incursão na prática delitiva prevista no art. 287 do Código Penal, o louvor à prática do uso do entorpecente em si (se e enquanto esta ainda for prevista em lei como crime).

De igual modo, também não se poderá entender como exercício da liberdade de expressão a efetiva prática da atividade delitiva cuja descriminalização se defende; ao revés, o consumo da droga constituirá evidente excesso e, assim, incursão na conduta penalmente tipificada. O uso do entorpecente proibido, ainda que no contexto da “Marcha da Maconha” ou evento congênere, não configura simples manifestação de pensamento ou forma de protesto, mas – ao menos enquanto vigente a legislação atual – a prática de crime. Por fim, há outra restrição que não pode ser ignorada. A manifestação de pensamento favorável à descriminalização do consumo entorpecentes, cabível no exercício

da liberdade de expressão, pressupõe, como já assinalado, a autonomia individual. Diante disso, não é adequado que crianças e adolescentes, cuja autonomia é limitada – ainda que temporariamente –, sejam levados à participação ativa no evento.”

“Em virtude do acima exposto, voto no sentido da PROCEDÊNCIA DO PEDIDO, de modo a que, mediante a interpretação conforme a Constituição do art. 287 do Código Penal, seja afastada a incidência do mencionado dispositivo legal sobre as manifestações e eventos públicos realizados em defesa da legalização das drogas, ou de qualquer substância entorpecente específica, observados os seguintes parâmetros:

1) trate-se de reunião pacífica, sem armas, previamente noticiada às autoridades públicas quanto à data, ao horário, ao local e ao objetivo, e sem incitação à violência;

2) não haja incitação, incentivo ou estímulo ao consumo de entorpecentes na sua realização;

3) não haja consumo de entorpecentes na ocasião;

4) não haja a participação ativa de crianças e adolescentes na sua realização.”

!

Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro Tribunal de Justiça Órgão Especial

Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 0052756-30.2013.8.19.0000 e nº 0053071-58.2013.8.19.0000 Repte. 1 : Diretório Regional do Partido da República Repte. 2 : Seccional do Estado do Rio de Janeiro da Ordem dos

Advogados do Brasil Rpdo. 1 : Exmo. Sr. Governador do Estado do Rio de Janeiro Rpdo. 2 : Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Legislação : Lei Estadual nº 6.583, de 11 de setembro de 2013 Relator originário: Desembargador SERGIO DE SOUZA VERANI Relatora designada: Desembargadora NILZA BITAR

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei Estadual regulamentando o direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento (Artigos 15, inciso XVI, da Constituição da República, e 23, da Constituição do Estado). Estabelecimento de vedação ao uso de máscara ou qualquer outra forma de ocultar o rosto do cidadão com o propósito de impedir-lhe a identificação. Conceituação de arma para fins do exercício do direito fundamental em apreço. Determinação da autoridade à qual se deve fazer a prévia comunicação da manifestação. Alegação de vícios formais e materiais na norma impugnada. Teses trazidas pelos representantes e pelo amicus curiae que não se sustentam. Inexistência, na legislação em comento, de qualquer ofensa à ordem constitucional vigente. Representações que se julgam improcedentes, declarando, por conseguinte, a constitucionalidade da Lei Estadual nº 6.583/2013.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 0042756-30.2013.8.19.0000 e nº 0042756-30.2013.8.19.0000, A C O R D A M os Desembargadores que compõem o

Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro Tribunal de Justiça Órgão Especial

colendo Órgão Especial do egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em, por maioria de votos, julgar improcedentes as Representações, nos termos do voto da Relatora designada para lavratura do acórdão, vencidos os Des. Sergio Verani, Relator originário, Caetano Costa, Nildson Cruz, Odete Knaack e Henrique Figueira, que julgavam procedentes os pedidos.

Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2014 (Sessão)

Desembargadora NILZA BITAR Relatora designada

Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro Tribunal de Justiça Órgão Especial

Ações Diretas de Inconstitucionalidade nº 0052756-30.2013.8.19.0000 e nº 0053071-58.2013.8.19.0000 Repte. 1 : Diretório Regional do Partido da República Repte. 2 : Seccional do Estado do Rio de Janeiro da Ordem dos

Advogados do Brasil Rpdo. 1 : Exmo. Sr. Governador do Estado do Rio de Janeiro Rpdo. 2 : Exmo. Sr. Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Legislação : Lei Estadual nº 6.583, de 11 de setembro de 2013 Relator originário: Desembargador SERGIO DE SOUZA VERANI Relatora designada: Desembargadora NILZA BITAR

RELATÓRIO E VOTO Processos relatados pelo i. Relator originário, Des. Sergio de

Souza Verani, às fls. 164/168 (proc. nº 52756-30.2013) e fls. 203/207 (proc. nº 53071-58.2013).

Divergi de S. Exa. para julgar improcedentes as representações

em comento, declarando, em consequência, a constitucionalidade da legislação em cotejo pelos seguintes fundamentos.

Trata-se da Lei Estadual n. 6.583, de 11 de setembro de 2013, a

qual regulamentou o direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento (art. 23 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro).

Inobstante os enfáticos e elaborados argumentos expendidos

pelos representantes em suas exordiais, bem como pelo amicus curiae em sua manifestação, não se vislumbra, na norma sob ataque, qualquer mácula ao ordenamento constitucional vigente.

Sabe-se que nenhum direito é ilimitado. Até os direitos e

garantias fundamentais consagrados no art. 5º da Constituição da República podem sofrer restrições e condicionamentos. Nem mesmo o direito à vida é absoluto, haja vista a previsão, ainda que em tese, de pena de morte, em caso de guerra declarada (art. 5º, inc. XLVII, da CRFB). Na precisa lição de INGO WOLFGANG SARLET:

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“(…) a ideia de que os direitos fundamentais não são absolutos, no sentido de absolutamente blindados contra qualquer tipo de restrição na sua esfera subjetiva e objetiva, não tem oferecido maiores dificuldades, tendo sido, de resto, amplamente aceiro do direito constitucional contemporâneo (…).”1

Porque estabelecidas no plano constitucional, tais limitações,

quando se tratar de direitos individuais, somente podem ser concebidas por expressa disposição constitucional, ou então por lei stricto sensu, promulgada com fundamento direto na própria Constituição.2 Conforme ensina ROBERT ALEXY:

“Uma norma somente pode ser uma restrição a um direito fundamental se ela foi compatível com a Constituição. Se ela for inconstitucional, ela até pode ter a natureza de uma intervenção, mas não de uma restrição. Com isso, fica estabelecida uma primeira característica: normas são restrições a direitos fundamentais somente se forem compatíveis com a Constituição.”3

Assim é que são mencionados por doutrina e jurisprudência quatro requisitos4 que informam o válido estabelecimento de tais limites, a saber: (i) justificação da medida, (ii) adequação do modo, (iii) proporcionalidade dos fins almejados e (iv) limitação dos meios de restrição.5

No caso específico dos autos, está-se a tratar dos limites que o

legislador infraconstitucional pode impor aos cidadãos para o exercício do direito de reunião. A questão que se deve fazer, desse modo, para o deslinde da presente controvérsia é: as exigências trazidas pela Lei Estadual nº 6.583/2013 se inserem nas condicionantes próprias e pertinentes a seu exercício e à preservação de direitos de terceiros?

1 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, 11. ed, p. 396-7. 2 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. São Paulo:Saraiva, 2009, 3. ed., p. 28. 3 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, 1. ed, p. 281. 4 “Requisitos são condições ou elementos necessários para a existência, a validade e/ou a eficácia do objeto, podendo ser intrínsecos ou extrínsecos ao mesmo, sendo, portanto, o gênero, dos quais são espécies os “pressupostos” (condições extrínsecas do objeto) e os “elementos” (partes do todo, intrínsecas ao objeto)”. Cf. MELLO, Celso A. Bandeira de, Curso de Direito Administrativo. 11. ed., p. 274-277 5 MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 37.

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Para tanto, confira-se o texto integral da indigitada Lei:

O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Faço saber que a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será protegido pelo Estado nos termos desta Lei. Art. 2º É especialmente proibido o uso de máscara ou qualquer outra forma de ocultar o rosto do cidadão com o propósito de impedir-lhe a identificação. Parágrafo único. É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Art. 3º O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será exercido: I - pacificamente; II - sem o porte ou uso de quaisquer armas; III - em locais abertos; IV - sem o uso de máscaras nem de quaisquer peças que cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação; V - mediante prévio aviso à autoridade policial. § 1º – Incluem-se entre as armas mencionadas no inciso II do caput, as de fogo, brancas, pedras, bastões, tacos e similares. § 2º - Para os fins do inciso V do caput, a comunicação deverá ser feita à delegacia em cuja circunscrição se realize ou, pelo menos, inicie a reunião pública para manifestação de pensamento. §3º – A vedação de que trata o inciso IV do caput deste artigo não se aplica às manifestações culturais estabelecidas no calendário oficial do Estado. §4º – Para os fins do Inciso V do caput deste artigo a comunicação deverá ser feita ao batalhão em cuja circunscrição se realize ou, pelo menos, inicie a reunião pública para a manifestação de pensamento; §5º – Considera-se comunicada a autoridade policial quando a convocação para a manifestação de pensamento ocorrer através da internet e com antecedência igual ou superior a quarenta e oito horas.

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Art. 4º As Polícias só intervirão em reuniões públicas para manifestação de pensamento a fim de garantir o cumprimento de todos os requisitos do art. 3º ou para a defesa: I - do direito constitucional a outra reunião anteriormente convocada e avisada à autoridade policial; II - das pessoas humanas; III - do patrimônio público; IV - do patrimônio privado. Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Rio de Janeiro, em 11 de setembro de 2013. SÉRGIO CABRAL Governador

Nesse passo, considerando-se os quatro requisitos acima

mencionados, vê-se que não há qualquer abuso por parte do legislador infraconstitucional. Senão vejamos:

As medidas limitativas estão perfeitamente justificadas. Improcede a alegação de que a norma constitucional sob análise

prescinde de regulamentação. Nesse diapasão, impõe-se destacar que, a nossos sentir, a teoria

externa6 dos limites dos direitos fundamentais é a que melhor permite compreender o âmbito de proteção de tais direitos, bem como a esfera de suas limitações.

Note-se que o direito de reunião possui condicionantes

estabelecidas nas próprias Cartas Políticas Nacional e local:

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA Art. 5º - (…) XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;

6 Sobre as teorias externa e interna dos limites dos direitos fundamentais, cf. ALEXY, Robert. Op. cit., p. 277-278.

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CONSTITUIÇÃO DO ESTADO Art. 23 - Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo exigido apenas prévio aviso à autoridade. Parágrafo único - A força policial só intervirá para garantir o exercício do direito de reunião e demais liberdades constitucionais, bem como para a defesa da segurança pessoal e do patrimônio público e privado, cabendo responsabilidade pelos excessos que cometer.

Não se trata, como querem crer os autores, de norma de eficácia

plena, mas, sim, de eficácia contida, “(…) de aplicabilidade direta, imediata, mas não integral, porque sujeitas a restrições previstas ou dependentes de regulamentação que limite sua eficácia e aplicabilidade”.7 É dizer: a norma que prevê o direito de reunião produz, desde já e independentemente de qualquer regulamentação, seus efeitos. No entanto, a própria norma traz elementos que limitam por si - ou permitem limitar - sua eficácia.

Despiciendo existir uma cláusula explícita de reserva legal na

norma constitucional extraída dos dispositivos em tela8, até porque constituídos de conceitos jurídicos indeterminados, o que leva a reconhecer que demandam regulamentação em sede legal.

Assim, a própria existência do direito de reunião pressupõe que

haja prévia comunicação à autoridade competente, que a manifestação guarde natureza pacífica e que não haja uso de armas pelos participantes, competindo à lei regulamentar o exercício de tal direito ao especificar a autoridade à qual se deva fazer a comunicação, o que desnaturaria o caráter pacífico do evento e os tipos de arma vetados. Como bem posto pelos preclaros Procuradores de Justiça subscritores do parecer ministerial (fls. 103):

“Se os termos constitucionais exigem um juízo de valor sobre seu conteúdo, não se afigura inconstitucional a regulamentação destes aspectos abertos na norma.

7 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2005, 24. ed, p. 260. 8 MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 40.

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“O Estado pode, portanto, regular o direito constitucional de reunião para definir melhor o conceito de pacificidade e para determinar a autoridade competente a quem deverá ser comunicada a realização da reunião. “Evidentemente, a regulação destes conceitos abertos não pode ser feita para restringir o direito de reunião, pena de inconstitucionalidade”.

E é isso precisamente o que faz, na espécie, a Lei Estadual nº

6.583/2013: regulamenta o exercício do direito fundamental de reunião, naquilo que autorizado pela própria Constituição e sem qualquer mácula a seu núcleo essencial.

Quanto à comunicação à autoridade competente, o fenômeno da

desconcentração da Administração Pública em suas diversas esferas justifica sobejamente a expedição de ato legislativo informando ao cidadão o(s) órgão(s) ao(s) qual(is) deve ser dirigida tal comunicação.

Em relação à pacificidade da reunião, não poderia ser mais

didático o mestre alemão ROBERT ALEXY ao discorrer sobre disposição idêntica constante da Constituição alemã:

“A cláusula „pacificamente e sem armas‟ pode ser interpretada como uma formulação resumida de uma regra, que transforma os direitos prima facie decorrentes do princípio da liberdade de reunião em não-direitos definitivos (…). A regra expressa pela cláusula restringe a realização de um princípio constitucional. Sua peculiaridade consiste no fato de que foi o próprio constituinte que estabeleceu a restrição definitiva. A disposição constitucional tem, nesse sentido, a natureza de regra. Mas, por trás do nível da regra, o nível do princípio mantém sua importância. Se está claro que uma reunião não é pacífica, ela não goza da proteção do art. 8º. No entanto, para se avaliar se uma reunião não é pacífica, é necessária, em todos os casos duvidosos, uma interpretação do conceito de não-pacificidade”.9

Forçoso inferir daí que a cláusula da pacificidade admite

perfeitamente regulamentação em nível infraconstitucional. Em tal contexto, identificou o legislador comportamento que,

embora à primeira vista não pareça ofensivo à exigência constitucional,

9 ALEXY, Robert. Op. cit., p. 287-8.

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vinha sendo usado por pessoas mal-intencionadas para transmudar esse caráter pacífico: o uso de máscaras.

A inovação veio a reboque das manifestações populares

ocorridas no inverno do ano de 2013, iniciadas contra um reajuste das tarifas de transporte público e logo transbordadas para reivindicações outras no tecido social da comunidade.

Nesse contexto, alguns cidadãos, inspirados em movimentos

alienígenas, passaram a se valer de máscaras para ocultar suas faces e, lamentavelmente, praticar uma série de atividades criminosas contra terceiras pessoas, contra patrimônios, públicos e privados, e contra a própria e legítima causa política (o que, aliás, acabou por fazer com que esta perdesse gradativamente o apoio da população, como posteriormente será demonstrado).

De certo, acaso não tivesse havido as notórias cenas de

vandalismo – e fatos notórios prescindem de prova –, não haveria o clamor pela proibição das malfadadas máscaras.

Resta irretorquível que a mens legislatoris não foi a de liquidar o

direito fundamental à reunião daqueles que quisessem se mascarar, mas, ao contrário, salvaguardar este próprio direito em relação aos demais participantes da manifestação, bem como outros direitos igualmente fundamentais que vinham sendo ameaçados e agredidos pelos vilipendiadores da ordem.

Ordem, note-se, não como preceito positivista ou militaresco

para que os de esquerda bradem que seu chamado emana cerceamento de liberdades políticas ou individuais, ou que os de direita se alimentem de sua ausência para, nutrindo-se pelas mãos de seus sinistros irmãos, acabem por defender a volta da ditadura, pois a democracia não pode restringir a baderna.

Baderna que tem sua origem na italiana Marietta Maria Baderna

que nasceu em Castel San Giovanni, Parma, em 1828, e fez sua estreia como bailarina profissional em 1843. Em 1848, foi apresentada como prima ballerina assoluta, sendo considerada uma das mais importantes bailarinas de sua geração. No Brasil, Marietta estreou em 29 de setembro de 1849, no balé "Il Ballo delle Fate" (“A Dança das Fadas”). Aqui, encantou-se com as danças das negras e com o canto de resistência dos escravos e se fez uma

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bailarina do povo, incorporando os passos do lundu, da cachuca e da umbigada, danças de passos fortes e sensuais.

Suas apresentações eram sempre seguidas de seus fãs que a

ovacionavam e batiam os pés no chão de madeira, gritando ao final seu sobrenome: “Baderna! Baderna!”

Dançava tanto nos salões da alta sociedade quanto nas ruas e

seu público passou a ser chamado de "badernistas" ou "baderneiros". Estudantes e trabalhadores a idolatravam como símbolo de brasilidade. Já a elite, que antes achava a Baderna como símbolo de elegância, passou a entender como sinônimo de arruaça e libertinagem.

Marietta Baderna foi uma rebelde. Desafiou sua época, a elite, o

conservadorismo e os reacionários. Foi uma artista que nasceu no berço do ballet clássico e deitou no leito das danças populares. Baderna e seus baderneiros, contudo, nunca se esconderam por trás de máscaras.

Assim, como todos os que lutaram pelas liberdades do povo

brasileiro. Todas as lutas do povo brasileiro foram às claras, ainda que em meio às ditaduras das mais ferrenhas.

As manifestações do povo brasileiro, ainda que algumas pelos

motivos hoje considerados errados, como a Revolta da Vacina, sempre foram feitas sem a necessidade de se esconder, e muitas delas com a população sabendo que corria risco de prisão, tortura ou morte.

As maiores manifestações deste país foram feitas por brasileiros

sem máscaras, fossem elas de direita ou de esquerda:

- A Revolta da Vacina em 1904 - Suicídio de Getúlio Vargas em 1954 - http://acervo.estadao.com.br/noticias/personalidades,getulio-vargas,520,0.htm - Marcha da Família e Marcha da Vitória em 1964 - http://www.band.uol.com.br/m/conteudo.asp?id=/100000673466/&programa=/Brasil/&editoria=/noticias/ - Comícios das Diretas Já em 1984 - http://nucleodememoria.vrac.puc-rio.br/70anos/no-tempo/ha-30-anos/1984/movimento-diretas-ja

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Nessa última, estavam sem máscaras: Tancredo Neves, Leonel Brizola, Miguel Arraes, José Richa, Ulysses Guimarães, André Franco Montoro, Dante de Oliveira, Mário Covas, Gérson Camata, Orestes Quércia, Carlos Bandeirense Mirandópolis, Luiz Inácio Lula da Silva, Eduardo Suplicy, Roberto Freire, Luís Carlos Prestes, Fernando Henrique Cardoso, Vander Ramos, Marcos Freire, Fernando Lyra, Jarbas Vasconcelos e, dentre personalidades em geral, destacaram-se Sócrates, Christiane Torloni, Mário Lago, Gianfrancesco Guarnieri, Fafá de Belém, Chico Buarque, Martinho da Vila, Osmar Santos, Juca Kfouri, entre outros.

- Impeacheament de Fernando Collor em 1992 - http://nupps.usp.br/corrupteca/?post_type=case&p=561

Mesmo em épocas em que a vida de todos estava sob risco, o

povo brasileiro não se intimidou, foi às ruas e mostrou sua cara ao se manifestar contra a ditadura ou a oligarquia que tomava o poder em pleno estado de exceção:

- A Passeata dos Cem Mil - http://pt.wikipedia.org/wiki/Passeata_dos_Cem_Mil#mediaviewer/File:Vladimir-palmeira-discursando-durante-a-passeata-dos-cem-mil-em-1968.jpg

Nessa manifestação, com rostos expostos, estavam presentes, lado a lado, nomes como: José Dirceu, José Serra, Tancredo Neves, Moreira Franco, Wladimir Palmeira, Caetano Veloso, Chico Buarque, Zuenir Ventura, Lula, Alfredo Sirkis, Cacá Diegues, Caetano Veloso, César Benjamin, Clarice Lispector, Dilma Rousseff, Edu Lobo, Fernando Gabeira, Gilberto Gil, Grande Otelo, Hélio Pellegrino, Luís Travassos, Marieta Severo, Milton Nascimento, Nana Caymmi, Nara Leão, Orestes Quércia, Paulo Autran, Tancredo Neves, Tônia Carrero, Vera Silvia Magalhães.

Desnecessário lembrar que, diferente do que a nossa sociedade

vive hoje em tempo de liberdade e de exercício de democracia plena, depois do evento, o então presidente Costa e Silva se reuniu com líderes da sociedade civil, oportunidade em que estes reivindicaram o fim da censura e a restauração das liberdades democráticas.

Por óbvio, como sabemos, nenhuma dessas reivindicações foi

aceita. Os manifestantes não desistiram e realizaram outra manifestação com cerca de 50 mil pessoas, e ampliando também o protesto a outros Estados. Mas, à medida que cresciam as manifestações contra a ditadura,

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também crescia a ação repressiva do governo militar em todo o território nacional. Por fim, a repressão acabou por prender Vladimir Palmeira e depois outros 650 estudantes no Rio de Janeiro.

Apesar da repressão, as manifestações estudantis continuaram,

até 13 de dezembro de 1968, sempre de cara limpa, quando foi promulgado o AI-5 (Ato Institucional nº 5), marcando o início dos "Anos de chumbo" da Ditadura Militar brasileira.

Não é isso o que se quer. Hoje se vê, anacronicamente, manifestantes saindo às ruas

pedindo a volta dos militares, como se a democracia não pudesse, por si só, ser suficiente para cuidar dos excessos e educar a todos nós para nela viver e conviver com o diferente, com aqueles que de nós discordam.

Não podemos deixar que a população creia que a democracia

careça de instrumentos de controle e limites para assegurar o direito à livre manifestação e o direito à reunião em locais públicos sem que precisemos esconder o rosto, e sem que a sociedade tenha como se proteger dos excessos ou daqueles que, na verdade, não desejam apenas se manifestar pacificamente.

Já não se pode entender a ofensiva contra prédios públicos e

privados, mesmo que sejam bancos, ou as sedes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, que podem ser alvos da ira dos mais exaltados, quanto mais o ataque à Biblioteca Nacional, como se deu nos protestos no Rio de Janeiro. É o barbarismo que a democracia, o Estado de Direito e as Constituições Federal e Estadual não acobertam ao garantir a todos o direito fundamental de reunião para manifestação pública.

Tem-se, com isso, a baderna, mas de viés inconstitucional,

porque mascarada e atentatória tanto à causa pela qual os manifestantes de caras limpas foram às ruas, quanto à democracia, que exige que por eventual abuso no exercício do direito sejam responsabilizados aqueles que se excederam.

A vedação ao uso de máscaras se justifica, assim, na medida em

que não haveria como individualizar e imputar tal responsabilidade.

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Ora, o próprio caráter coletivo da reunião (afinal, não existe reunião de um só) dilui e mescla as individualidades dos participantes pela multidão que os cerca, sendo o indivíduo mascarado um covarde e antidemocrático que se esconde de todos e de si mesmo. Só se mostra bravo atrás de uma máscara!

E isso não é uma suposição. Confira-se:

Folha de São Paulo A primeira manifestação de rua no Rio de Janeiro após a entrada em vigor da lei que proíbe máscaras nos protestos transcorreu de maneira pacífica nesta sexta-feira (13) e se dispersou logo depois das 23h. Concentrada mais uma vez no entorno do Palácio Guanabara, sede do governo do Rio, na zona sul da cidade, a manifestação contra o governador Sergio Cabral reuniu cerca de cem manifestantes, menos do que o número de policiais destacados para a proteção do governo: 150 homens. (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/09/1342003-sem-mascaras-protesto-de-rua-no-rio-tem-mais-pms-que-manifestantes.shtml)

Todavia, o pior que está por trás das máscaras não é o abuso, a

covardia, a violência, mas sim a destruição da democracia conquistada a tanto custo pelo povo brasileiro. Uma democracia que custou vidas, que custou mentes torturadas, que custou famílias afastadas, que custou corpos sem um funeral. É esta democracia que é posta em dúvida toda vez que dela abusam e toda vez que dizem que ela não pode se defender sozinha, que precisa da força bruta para pôr as coisas em ordem.

Não é justo que a democracia pague pela máscara do covarde,

se ela quer que ele seja livre para se reunir e se manifestar. A democracia pode se defender, e sua defesa se materializa justamente nos limites postos aos direitos individuais.

Apenas para ilustrar o que acontece com a sociedade quando

abusam dos instrumentos da democracia, veja-se que ocorreu nas recentes eleições e nos protestos contemporâneos à edição da lei que ora se julga: a taxa de aprovação da população a estes foi paulatinamente despencando, conforme pesquisa do Datafolha de fevereiro de 2014.

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Opinião sobre o uso de máscaras pelos manifestantes (Resposta estimulada e única, em %)

SÃO PAULO RIO DE JANEIRO 11/09/2013 e 14/02/2014

A favor 9 8 Contra 89 90 Indiferente 1 1 Não sabe 1 0

A maioria dos moradores da cidade Rio de Janeiro apoia os protestos e manifestações que vem ocorrendo na capital fluminense, mas vê ação de partidos nesse tipo de evento e aponta algumas regras para sua realização. Para 85%, por exemplo, os organizadores deveriam informar a polícia com antecedência sobre as manifestações. Além disso, a população se divide quanto ao bloqueio das ruas durante esses eventos (53% são contra, 44% são a favor); é majoritariamente crítica em relação à ação policial; e tem opinião amplamente negativa a respeito de movimentos como o black block e suas táticas. Essas informações fazem parte de pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha nos dias 13 e 14 de fevereiro de 2014, junto a 645 moradores da cidade do Rio de Janeiro com 16 anos ou mais. A margem de erro do estudo é de 4 pontos para mais ou para menos para o total da amostra. De forma geral, 56% dos cariocas são a favor dos protestos que vêm ocorrendo na capital fluminense, outros 40% são contrários, 3% dizem ser indiferentes, e 1% não soube responder. Entre os homens, o apoio fica acima da média (63%), e fica abaixo da média entre as mulheres (50%).

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O apoio também cai conforme a idade: entre os que têm entre 16 e 24 anos, 74% são a favor dos protestos, índice que fica em 36% entre os cariocas com 60 anos ou mais. A análise pela renda familiar mostra que na fatia dos mais ricos o apoio é mais alto, e diminui conforme cai o ganho dos entrevistados. Entre aqueles com renda igual ou superior a dez salários, 71% têm opinião positiva sobre esses eventos, índice que vai a 44% entre aqueles com renda de até dois salários mínimos. *Envolvimento de partidos* Para 84% da população adulta da cidade do Rio de Janeiro, há envolvimento de partidos políticos nas manifestações que vêm ocorrendo na cidade. Questionados sobre quais seriam esses partidos, 68% não souberam responder, 7% indicaram o PT, 7% mencionaram o PSol, 5% citaram o PSTU, 2%, o PSDB, e 1%, o PMDB, entre outros com menor percentual. É válido ressaltar que a pesquisa foi realizada logo após a denúncia de que os participantes dos protestos receberiam dinheiro por sua participação e que políticos e partidos estariam por trás da cooptação desses manifestantes. A denúncia foi feita pelo advogado dos réus acusados de envolvimento na morte do cinegrafista Santiago Andrade. Organização dos protestos A maioria (85%) dos cariocas é a favor dos organizadores dos protestos avisarem à polícia com antecedência sobre esses atos. Outros 12% são contrários a esse aviso prévio, 2% são indiferentes, e 1% não tem opinião. Esse apoio se mantém em todas as faixas de idade e renda analisadas. Na fatia dos que estudaram até o ensino fundamental, 90% apoiam o aviso com antecedência à polícia, índice que cai para 78% entre os que estudaram até o ensino superior. O bloqueio de ruas durante as manifestações é condenado por 53%, enquanto 44% apoiam a medida. Novamente, há diferença entre os que estudaram até o ensino fundamental (63% contra o bloqueio) e aqueles com ensino superior (45% contra, 51% a favor). Entre os jovens, 64% são a favor de bloquear ruas para manifestações, índice que cai para 30% entre os mais velhos. Eficiência da polícia A conduta da polícia durante as manifestações é vista como muito eficiente por 8% dos cariocas, e 49% avaliam que é um pouco ineficiente. Para 40%, porém, a polícia é nada eficiente durante

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sua ação nos protestos, e há ainda 2% que não têm opinião sobre o assunto. Entre os mais escolarizados, fica acima da média (46%) o índice dos que avaliam a ação policial como nada eficiente. E o contrário ocorre entre os menos escolarizados (34% veem o trabalho da polícia como nada eficiente). (http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2014/02/17/protestos-no-rio-de-janeiro.pdf)

Com as máscaras, só quem perde são os cidadãos de bem, o

Estado de Direito e a democracia. Os extremistas, sejam de esquerda ou de direita, são coirmãos no ataque à democracia e usam os inocentes moderados que defendam algumas de suas teses como esbirros para seus malfeitos, obstando que ela, a democracia, se valha de instrumentos justos, legais e legítimos, para a sua própria salvaguarda, sob a escusa de que tais instrumentos são métodos de cerceamento de liberdades ou de incentivo ao anarquismo, dependendo do viés político mal-intencionado de quem está por trás dos argumentos.

Na verdade, o que uma democracia quer de seu povo é

maturidade; é que ele saiba ser crítico, corajoso, sem medo de dizer o que pensa, sem medo de questionar as autoridades, de questionar a deificação de magistrados, de políticos. Mas a democracia também quer, na outra face da mesma moeda, que o povo tenha responsabilidade e se eduque na própria democracia, e que saiba que ele está ali, muitas vezes, criticando a si mesmo quando vai às ruas, apontando o dedo para si próprio, e, portanto, não pode usar máscara, pois foi ele, sem máscara, que foi às urnas, elegeu aquele que fez a lei ou a aplicou, que autorizou o aumento dos preços públicos, que aumentou a taxa de juros, que estabeleceu políticas que geraram incremento da miséria e do desemprego etc..

Cada um que protesta tem que olhar para o outro ao seu lado e

saber que democracia e Estado de Direito é poder se reunir, é poder se manifestar, é poder encarar quem você crítica sem retaliação, é ter a responsabilidade de arcar com seus atos na mesma medida dele. E é não poder fazer tudo isso em anonimato, porque a sociedade brasileira se fez com pessoas que fizeram história e abriram caminhos com os rostos expostos.

Os limites são necessários para que a própria democracia possa

se defender daqueles que bradam pela ordem imposta à força e dos demais

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que os alimentam através da desordem e do terror imposto ao Estado de Direito.

A democracia se limita para evitar o retrocesso à ditadura e à

tirania, destra ou sinistra, e para sobreviver ao caos do desgoverno e da anarquia, antes que o ser humano atinja um grau de maturidade e consciência tal que respeite per si os demais indivíduos e se possa prescindir de restrições legais aos direitos individuais.

Do mesmo modo, justificado está o fato de a Lei ter trazido um

rol exemplificativo de armas vedadas. Primeiramente porque, como acima esclarecido, trata-se de

conceito jurídico indeterminado, exigindo complementação por parte do legislador ordinário, não havendo, como se verá a seguir, qualquer infringência à competência legislativa privativa da União.

Além disso, como asseverado de modo certeiro pelo “Fiscal da

Lei” (fls. 107), a norma se justifica em razão de seu nítido caráter educativo:

“A rigor, a lei nem precisaria esclarecer tal fato, mas, levando em consideração o estágio atual em que se encontra o exercício da cidadania, o esclarecimento é adequado a fim de informar aos participantes de futuras manifestações em locais públicos sobre as vedações que constitucionalmente lhe são impostas, pena de não estrem preenchidos os elementos do direito fundamental de reunião”.

Em suma, mais além de estabelecer direitos, deveres e sanções,

a lei serve, também, como instrumento de educação para a cidadania, colaborando para a “(…) formação de pessoas responsáveis e solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo, tendo como referência os valores dos direitos humanos”.10

O modo empregado para veiculação das restrições é o

adequado.

10 Governo de Portugal. Ministério da Educação e Ciência. Educação para a Cidadania. Disponível em: http://www.dgidc.min-edu.pt/educacaocidadania/. Acesso em: 28 nov. 2014.

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Cuida-se de lei stricto sensu11, com fundamento direto no art. 23

da Carta Estadual – até mesmo porque o regulamenta. Não há falar, pois, nem em afronta a competência privativa da

União para legislar sobre cidadania, sobre material bélico e sobre direito penal, nem em violação à competência legislativa dos Municípios para dispor sobre posturas concernentes à organização da urbe.

A expressão “cidadania” inserta no inc. XIII do art. 22 da CRFB

(“Compete privativamente à União legislar sobre: (…) nacionalidade, cidadania e naturalização“) diz respeito ao status do “nacional (brasileiro nato ou naturalizado) no gozo dos direitos políticos e participantes da vida do Estado12 Como brilhantemente arrematado pelo Parquet (fls. 109):

“O direito de reunião não é um direito de cidadania, mas direito fundamental que integra patrimônio jurídico até de quem não é cidadão. O estrangeiro, embora não seja cidadão, tem garantido em seu patrimônio jurídico os direitos fundamentais”.

Não se constata, tampouco, infração à competência privativa da

União para legislar sobre material bélico. O art. 22, inc. XXI, da CRFB (“normas gerais de organização,

efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares”) cuida expressa e exclusivamente da competência privativa da União para estabelecer as normais gerais de organização das polícias e corpos de bombeiros militares estaduais, inclusive quanto ao material bélico que eles poderão utilizar. E é assim que o faz o Decreto n. 88.777, de 30 de setembro de 1983, recepcionado como lei ordinária.

Ademais, os precedentes do e. STF trazidos pela OAB/RJ são

explícitos em tratar de casos de leis estaduais que disciplinavam autorização e fiscalização do comércio e do porte de armas de fogo, o que, por óbvio, não se aplica ao caso em comento.

Tampouco se diga que, ao apresentar um rol exemplificativo de

“armas” para os fins da Lei, a Alerj “fixou elástica e antidemocrática

11 SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 400-1. 12 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2012, 28. ed., p. 218.

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interpretação do que deve ser considerado com arma”. Mais uma vez nos socorrendo do parecer do Ministério Público (fls. 107):

“(…) o § 1º do art. 3º apenas esclarece, repita-se, conceito jurídico indeterminado e o faz de modo adequado, porque não se afigura razoável, até aos olhos do homem comum, que pedra, bastões e tacos ou similares não se possam ser verdadeiras armas contra pessoas e bens se desvirtuadas de sua destinação natural. “Se a própria doutrina entende que tais objetos podem ser transmudados em armas, pode a lei esclarecer que tais objetos serão considerados armar se utilizados como meios de agressão. “Este fato, como já dito, é tão óbvio que basta o recurso do senso comum para ver que qualquer pessoa considerará uma pedra ou um bastão como arma se utilizado como meio de agressão”.

Nem se afirme que, por não estipular sanções por descumprimento, a Lei carrearia o caso para a seara penal. É evidente o sofisma, porquanto a sanção salta à vista e ela não é de caráter penal – embora esta até possa também existir –, mas sim, administrativa: havendo emprego de armas, simplesmente não existe direito de reunião. A sanção, no caso, é administrativa, com a exclusão do cidadão infrator da manifestação, por evidente abuso, ou mau uso, do direito de reunião, e isso não precisa estar escrito, pois é corolário lógico da norma.

Por outro lado, muito embora a administração de espaços

públicos (ruas, praças etc.) seja da alçada municipal – o que, de fato, importaria em competência legislativa local –, incumbe ao Estado, através de suas forças policiais, a segurança pública de pessoas e patrimônios. Assim, se há razão de ordem e segurança públicas para se determinar a comunicação prévia à autoridade municipal, igualmente há para que sejam comunicadas as autoridades estaduais, consoante disciplinado na Lei, a fim de que cada qual possa exercer regulamente seus misteres.

Argui-se, ainda, a inconstitucionalidade da lei objeto desta Ação

direta sob o fundamento da existência de vício por decoro parlamentar. Cuida-se de inovação acadêmica, conforme a qual a existência

de compra de votos de parlamentares corromperia o processo legislativo,

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dando azo à declaração de inconstitucionalidade sob o fundamento da quebra do decoro parlamentar13

Entretanto, nada obstante a grandiloquência argumentativa da

tese, é imperioso se afirmar que ela não encontra qualquer guarida quer no seio da Corte constitucional pátria, quer neste colendo Órgão Especial.

Ainda que se admita, em tese, a validade da teoria apresentada,

no presente caso não há qualquer demonstração nos autos de que os parlamentares fluminenses que aprovaram a lei em questão tenham sido corrompidos a votar a favor do indigitado projeto.

Ora, não se pode admitir que o tão-só fato de pertencer à base

parlamentar do Chefe do Executivo e aprovar os projetos de seu interesse seja prova de corrupção. A se acolher tal entendimento, apenas os projetos da minoria não estarão viciados por falta de decoro parlamentar, isso sim a soar, com a devida vênia, teratológico e atentatório aos princípios da soberania popular e da harmonia entre os Poderes.

Os fins almejados são proporcionais à restrição trazida. Deveras, é patente que a intensão do legislador ordinário não foi

a de impor uma restrição ao direito individual de reunião por mero capricho, mas sim, salvaguardar os direitos dos demais participantes da manifestação e de outras pessoas, transeuntes ou não.

Repise-se, por oportuno, que a proibição do uso de máscaras

constitui, sim, uma “(…) restrição a um direito fundamental, porque em virtude de sua vigência surge, no lugar da liberdade prima facie, uma não liberdade definitiva de igual conteúdo”14. Porém, porque atendidos os requisitos ora analisados, a norma restritiva deve ser tida como compatível com o texto constitucional.

Não se perca de vista o importante precedente normativo

insculpido no art. 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, exsurgida no contexto da Revolução Francesa em 1789:

13 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2011, 15. ed., p. 235. 14 ALEXY, Robert. Op. cit., p. 283.

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Art. 4. - La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à autrui: ainsi, l'exercice des droits naturels de chaque homme n'a de bornes que celles qui assurent aux autres Membres de la Société la jouissance de ces mêmes droits. Ces bornes ne peuvent être déterminées que par la Loi.

Em suma: a liberdade do ser humano é amplíssima, encontrando

limites, porém, exatamente naquilo que não venha a obstaculizar aos demais concidadãos o gozo dos mesmos direitos, sendo que tais limites apenas podem ser determinados pela lei.

A aparente antinomia entre direitos fundamentais deve ser

resolvida pela técnica da ponderação de interesses, orientada pelos princípios da supremacia da Constituição, segundo o qual esta “(…) veicula normas jurídicas de máxima hierarquia no sistema de direito Positivo, figurando como fundamento de validade de todo o ordenamento normativo”15, e da unidade da Constituição, conforme o qual se “(…) confere ao ordenamento e à Lei Suprema uma lógica jurídica, proporcionando uma funcionalidade”.16

Assim, havendo colisão entre direitos constitucionalmente

tutelados, o método a ser utilizado para se dirimir a controvérsia é aferir, entre os interesses contrapostos, aquele que possua, no caso concreto, maior preeminência e menor restrição na ordem jurídica constitucional, limitando-se um direito fundamental para salvaguardar outro, observando-se, sempre, o respeito ao núcleo essencial do direito limitado – assunto a ser tratado adiante.

Dessa forma, ao contrário do afirmado pelos representantes, a

vedação ao uso de máscaras se mostra perfeitamente proporcional ao fim maior de preservar os direitos fundamentais dos demais cidadãos.

Completamente despropositado e desarrazoado o argumento

autoral de que “a utilização de máscaras é instrumento do próprio exercício do direito fundamental de livre manifestação e de protesto, como mecanismo de demonstrar indignação”.

15 GOMEIRO, Bruno. A Ponderaçao de interesses na constituição Federal Brasileira. Disponível em: http://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/10144/10144.PDF. Acesso em: 28 nov. 14. 16MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2012, 4. ed., p. 29/30.

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Ora, é imperioso reconhecer que a vedação ao uso de máscaras

não impede ninguém de se reunir e muito menos de se manifestar. Impede apenas o indivíduo de fugir de suas responsabilidades e arcar com as consequências de possíveis exageros na medida constitucional prevista.

Que direito a máscara lhe dá ou cerceia se, no seu dia-a-dia, em

cada rua, há uma câmera de vigilância? Se, em cada mão, há um celular com câmera?

O direito à livre manifestação e o direito de reunião tem limites

dados pela própria Constituição, seja impedindo o anonimato, seja impedindo que a reunião venha obstar outra anteriormente marcada, seja obstando que se assegure o direito de resposta e o ressarcimento a qualquer lesão perpetrada pelo excesso na manifestação.

A multidão, por si só, é uma massa de pessoas sem rosto, a

individualidade se perde, cada um deixa de ser si mesmo para ser o grupo e é isto que torna um ato de violência distante do grupo, é neste momento que aquele indivíduo deve ser isolado para não contaminar a essência do protesto e da manifestação política pacífica.

No momento em que um dos participantes destoa da intenção do

grupo e se torna indivíduo e não mais conjunto ao ser violento, fora do contexto pacífico do estado de direito democrático, é que ele tem que ser individualizado para que não se julgue toda uma causa carreada por milhares, pela atitude de um às vezes ali colocado para destruir a própria causa.

A máscara esconde o indivíduo da própria causa que o sustenta e

isto sim é antidemocrático e inconstitucional. Isso porque a máscara o coloca em situação especial de

assegurar a si o anonimato e a corolária irresponsabilidade – civil, administrativa e penal – por seus atos e de suas opiniões, deixando-lhe confortavelmente escondido em meio a uma multidão.

Oculto pela máscara, que lhe permite se omitir entre os seus,

vulnera todos os demais, tornando frágeis todos aqueles que ali estão de peito aberto e rosto descoberto, sem saber que a qualquer momento poderão pagar pelo pecado alheio.

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A vedação se reveste de razoabilidade, na medida em que a máscara encobre toda a face e inviabiliza identificação. Com razão o Parquet ao discorrer que (fls. 105):

“(…) não pode o participante utilizar-se de meios para alcançar o anonimato. O encobrimento do rosto em manifestação pública num regime democrático, em que os direitos fundamentais estão garantidos, não pode ser permitido exatamente porque implica no anonimato. É fato notório, que dispensa prova fática ou argumentativa, que o rosto é o elemento principal de identificação da pessoa. Se o rosto é encoberto, tal fato implica necessariamente no anonimato, prática vedada pelo texto constitucional.”

Confundir os “caras-pintadas” de 1992 com os mascarados de

2013 é, no mínimo, pueril. Afinal, jamais houve notícia de abuso ou violência por parte daqueles primeiros. Além disso, aquelas pinturas eram simplórias, e jamais impediram, quer dolosa, quer culposamente, a identificação de quem quer que fosse.

Já as máscaras, como afirmado, porque encobrem todo o rosto, é

método hábil a pôr seu usuário no proibido anonimato. Acresça-se, ainda, que a Lei em comento vedou máscaras e “qualquer outra forma de ocultar o rosto do cidadão com o propósito de impedir-lhe a identificação”, pelo que uma pintura que chegue a ocultar totalmente o rosto do cidadão ao ponto de impedir sua identificação – e isso é tecnicamente possível – também está vetada.

Em suma, os fins almejados são proporcionais à restrição trazida,

que protege a democracia, as causas, as manifestações e, ao contrário do que se pensa, protege também os direitos individuais, ao invés de cerceá-los.

Tampouco procedem as teses de que os direitos fundamentais de

manifestação de pensamento e de reunião não se confundiriam e de que o uso de máscaras não constituiria anonimato para fins de limitação constitucional ao exercício de livre manifestação.

Confiram-se os dispositivos constitucionais:

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

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XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;

Uma interpretação semântica e axiológica dos termos de tais

enunciados não autoriza outra conclusão que não a de que o direito de reunião é expressão coletiva do direito à manifestação de pensamento.17

Afinal, para que se reuniriam pessoas em um local aberto ao

público, de forma pacífica e sem armas, se não para, de forma grupal, difundir determinadas ideias?

O procedente do STF acerca da proibição de carros de som em manifestações coletivas públicas em nada se confunde com o presente caso, até porque, ao contrário de encobrir o anonimato, o carro de som espanca qualquer dúvida acerca dos líderes e da organização da manifestação.

Não se olvide que o parágrafo único do art. 23 da Carta Estadual, em sua parte final, expressamente afirma que cabe responsabilização dos cidadãos por excessos que porventura venham a cometer.

Ora, se a Constituição é um todo uno e harmônico, a ser

interpretado sistematicamente, não restam dúvidas de que o direito de reunião é o próprio direito de manifestação de pensamento, só que exercido coletivamente, ao qual está também vedado o anonimato. E igualmente inconteste que tal vedação é concretizada e devida e formalmente regularizada pela vedação ao uso de máscaras.

Por fim, a limitação não se vê de caráter absoluto. Como já dito, os direitos fundamentais são perfeitamente

restringíveis. Contudo, a fim de aferir a constitucionalidade da restrição, cabe ao intérprete perquirir se foram respeitados os “limites dos limites” que devem informar a ação legislativa ao restringir os direitos individuais.18

17 MORAES, Alexandre de. Op. cit., p. 82-3. 18 MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 41.

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Tome-se, por paradigma, nesse aspecto, a precisa lição da Professora JANE PEREIRA, in verbis:

“(…) a tarefa de interpretação constitucional visando a determinar as situações protegidas pelos direitos fundamentais envolve duas etapas, que consistem em: i) identificar o conteúdo do direito (seus contornos máximos, sua esfera de proteção), e ii) precisar os limites externos que decorrem da necessidade de conciliá-lo com outros direitos e bens constitucionalmente protegidos.”19

Ou seja, hão de ser analisadas se presentes as condições de

legitimidade das restrições dos direitos fundamentais, de sorte que “(…) a atividade limitadora do Estado deve ser, também, uma atividade limitada”, balizada pelos “(…) diversos obstáculos normativos que restringem a possibilidade de o poder público limitar os direitos fundamentais”20, sistematizadas nos seguintes princípios: (i) proporcionalidade; (ii) reserva legal; (iii) generalidade; (iv) esclarecimento do direito fundamental em questão; e (v) preservação do núcleo essencial do direito.

A necessidade de lei em sentido estrito veiculando as medidas

restritivas e a proporcionalidade entre estas e os fins almejados já foram objeto de escorreita análise acima.

A questão da generalidade acaba por ser corolário lógico da

reserva legal, já que se trata de um atributo necessário da validade da lei. Ademais, simples leitura do texto legislativo atacado revela tal característica, porquanto não destinada a uma pessoa ou a um grupo de pessoas específicos, valendo para todo e qualquer cidadão que opte pelo uso de máscaras no curso de uma reunião pública para fins de manifestação.

De igual modo, não se faz preciso muito esforço intelectual para

se constatar que a Lei objeto da presente ADIN cuida do direito fundamental de reunião.

Resta, assim, indagar se, de alguma forma, a vedação ao uso de

máscaras configura mácula ao núcleo essencial ao direito fundamental previsto no art. 23 da CERJ. Deveras, não se pode conceber que as

19 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, 1. ed., p. 146. 20 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op. cit., p. 297-8.

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limitações - quer as estatuídas no texto da Constituição, quer as veiculadas por meio de legislação infraconstitucional - embaracem o exercício dos direitos fundamentais a ponto de inutilizá-los.

Nesse passo, não há qualquer inconstitucionalidade na vedação

ao uso de máscaras, porquanto não ser razoável admitir que se constitua em óbice que embarace ou mesmo inviabilize o direito de reunião.

Ora, em que medida o não uso de máscaras compele alguém a

não exercer o direito de reunião? A nosso sentir, apenas se a intenção do manifestante era, de algum modo, escuso ou ilícito.

Foram diversos os exemplos apresentados neste voto de

situações em que cidadãos brasileiros ousaram desafiar até mesmo o regime ditatorial então vigente no país para, sem máscaras, exercerem o direito de reunião. E nos próprios protestos de 2013, a grande maioria apresentou-se sem máscaras ou alguma outra forma de ocultar o rosto com o propósito de impedir-lhe a identificação.

Isso, por si só, demonstra que a vedação não consubstancia

qualquer forma de atentado ao núcleo essencial do direito fundamental em apreço.

Afetar o núcleo essencial do direito de reunião seria, por

exemplo, exigir que todos estivessem de ponta-cabeça, ou estabelecer o horário de meia-noite às quatro horas da madrugada, ou exigir uma distância mínima de um quilômetro de afastamento entre os participantes, ou a acima mencionada proibição do uso de carro de som. Em suma, situações que, quer por suas próprias naturezas, quer pela de uma reunião em si, atingiriam todos os pretensos participantes ao ponto de tornar inviável, na prática, o exercício do direito.

No caso, como exaustivamente tratado, a proibição do uso de

máscaras, além de materializar a própria vedação ao anonimato previsto na Constituição, não obsta, em caráter absoluto, o pleno exercício do direito de reunião.

Dessarte, inexistindo na legislação objeto das presentes

representações qualquer ofensa à ordem constitucional vigente, impõe-se julgar improcedentes os seus pedidos, declarando, por conseguinte, a sua constitucionalidade in totum.

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É como voto.

Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2014

Desembargadora NILZA BITAR

Relatora designada

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ÓRGÃO ESPECIAL Diretas de Inconstitucionalidade nos 0052756-30.2013.8.19.0000 e 0053071-58.2013.8.19.0000 Repte. 1: DIRETÓRIO REGIONAL DO PARTIDO DA REPÚBLICA Repte. 2 : ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SEÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Repdo 1 : ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Repdo 2: EXMO. SR. GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Legislação: Lei nº 6528, de 11 de setembro de 2013 – Estado do Rio de Janeiro. Relator: Des. SÉRGIO VERANI

VOTO VENCIDO

“Bloom: Sou pela reforma da moral municipal e dos dez mandamentos puros. Novos mundos para os velhos. União de todos, o judeu, o muçulmano e o gentio. Três acres e uma vaca para cada filho natural. Coches-fúnebres-salão a motor. Trabalho manual compulsório para todos. Todos os parques públicos abertos dia e noite. Lava-louças elétricos. Tuberculose, aluação, guerra e mendicância devem cessar já. Anistia geral, carnaval semanal, licença de uso de máscaras, abonos para todos, esperanto a fraternidade universal. Não mais patriotismo de mama-bares e impostores hidrópicos. Dinheiro livre, amor livre e uma igreja laica livre num estado laico livre.” (James Joyce – Ulisses – trad. Antônio Houaiss)

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Votei no sentido de julgar procedente o pedido nas duas

representações por inconstitucionalidade. A Lei 6.528, de 11 de setembro de 2013, ao regulamentar a

norma constitucional (art. 23, da Constituição Estadual), restringe e limita a própria garantia contida na norma, tornando-se, por isso, inconstitucional:

“LEI Nº 6528 DE 11 DE SETEMBRO DE 2013 REGULAMENTA O ARTIGO 23 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO. O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Faço saber que a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º - O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será protegido pelo Estado nos termos desta Lei. Art. 2º - É especialmente proibido o uso de máscara ou qualquer outra forma de ocultar o rosto do cidadão com o propósito de impedir-lhe a identificação. Parágrafo Único - É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. Art. 3º - O direito constitucional à reunião pública para manifestação de pensamento será exercido: I - pacificamente; II - sem o porte ou uso de quaisquer armas; III - em locais abertos; IV - sem o uso de máscaras nem de quaisquer peças que cubram o rosto do cidadão ou dificultem sua identificação; V - mediante prévio aviso à autoridade policial. § 1º - Incluem-se entre as armas mencionadas no inciso II do caput as de fogo, brancas, pedras, bastões, tacos e similares. § 2º - Para os fins do inciso V do caput, a comunicação deverá ser feita à delegacia em cuja circunscrição se realize ou, pelo menos, inicie a reunião pública para manifestação de pensamento.

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§3º - A vedação de que trata o inciso IV do caput deste artigo não se aplica às manifestações culturais estabelecidas no calendário oficial do Estado. §4º - Para os fins do Inciso V do caput deste artigo a comunicação deverá ser feita ao batalhão em cuja circunscrição se realize ou, pelo menos, inicie a reunião pública para a manifestação de pensamento; §5º - Considera-se comunicada a autoridade policial quando a convocação para a manifestação de pensamento ocorrer através da internet e com antecedência igual ou superior a quarenta e oito horas. Art. 4º - As Polícias só intervirão em reuniões públicas para manifestação de pensamento a fim de garantir o cumprimento de todos os requisitos do art. 3º ou para a defesa: I - do direito constitucional a outra reunião anteriormente convocada e avisada à autoridade policial; II - das pessoas humanas; III - do patrimônio público; IV - do patrimônio privado. Art. 5º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

A Constituição Estadual do Rio de Janeiro garante:

Art. 23 - Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo exigido apenas prévio aviso à autoridade. Parágrafo único - A força policial só intervirá para garantir o exercício do direito de reunião e demais liberdades constitucionais, bem como para a defesa da segurança pessoal e do patrimônio público e privado, cabendo responsabilidade pelos excessos que cometer.

José Afonso da Silva, em seu clássico “Aplicabilidade das

Normas Constitucionais”, comenta norma sobre liberdade de reunião da Constituição Federal de 1967, Emenda 1/1969, com conteúdo bem mais restritivo que a da Carta de 1988:

“O § 27 do art. 153 da Constituição de 1969 falava em

ordem como conceito restritivo do direito de reunir-se sem armas

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(in verbis: “Todos podem reunir-se sem armas, não intervindo a autoridade senão para manter a ordem. A lei poderá determinar os casos em que será necessária a comunicação prévia à autoridade, bem como a designação, por esta, do local da reunião”). A Constituição vigente não aceita mais essa restritiva, pois a prática revelou que o mais importante era a manutenção da ordem, como se esta fosse a função primordial do poder político, esquecido de que não existe uma ordem ideal. Há, sem dúvida, uma tensão entre ordem e progresso, que são dois aspectos do processo social, um estático e outro dinâmico. Ao poder político cabe a função de manter um mínimo de ordem e estimular um máximo de progresso. “As instituições devem continuamente ser ajustadas, renovadas, transformadas. E só o poder político dispõe de meios necessários para assumir essa função reformadora. Em suma, a ordem social verdadeira é muito mais uma obra a fazer e refazer no curso do tempo, do que um dado completo a conservar tal qual é.” Essas justas palavras de Lapierre bem mostram a dificuldade de dar um conceito de ordem pública, mas também ressaltam a imprescindível moderação que se deve adotar na utilização do poder de polícia, autorizado a limitar a eficácia das normas constitucionais consagradoras de situações subjetivas ativas, como são estas a que estamos dedicando nossa atenção.

Se nenhuma ordem é jamais perfeita e definitiva, claramente se percebe a impossibilidade de fixar-lhe um conceito com validade universal e permanente. Certamente que sua manutenção não pode transmudar numa arbitrariedade, pois que somente autoriza a atuação da competência discricionária do poder, e menos ainda pode este, sob a capa de manutenção da ordem pública, reprimir as postulações do progresso.” (Malheiros, 3ª ed., páginas 109/110).

Na Carta de 1967, a restrição da norma constitucional derivava

não da lei, mas do conceito de “ordem pública”, caracterizando-se como norma de eficácia contida, ainda que de aplicabilidade imediata, onde a intervenção do legislador tem sentido de restringir o âmbito de sua eficácia e aplicabilidade, em vez de ampliá-lo.

Servindo-se da contribuição da doutrina norte-americana sobre

o traço característico da norma auto-aplicável (correspondente, mutatis mutandis, às de eficácia plena), José Afonso da Silva cita o magistério de Ruy Barbosa: “quando, completa no que determina, lhe é suplérfluo o auxílio supletivo da lei, para exprimir tudo o que intenta, e realizar tudo o que exprime” (idem, Ibidem, pág. 99). Ainda segundo Ruy Barbosa, normas constitucionais auto-aplicáveis por natureza seriam aquelas que consubstanciam:

“I – vedações e proibições constitucionais;

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II – os princípios da declaração dos direitos fundamentais do homem

III – as isenções, imunidades e prerrogativas constitucionais.

Além dessas, pelo conceito acima, também são auto-

aplicáveis as que não reclamem, para a sua execução: I – a designação de autoridades, a que se cometa

especificamente essa execução; II – a criação ou indicação de processos especiais de sua

execução; III – o preenchimento de certos requisitos para sua

execução; IV – a elaboração de outras normas legislativas que lhes

revistam de meios de ação, porque já se apresentam armadas por si mesmas desses meios, ou seja, suficientemente explícitas sobre o assunto de que tratam” (idem, ibidem, pág. 75).

E tal é o caso da norma do art. 23 da Carta Estadual. Também Ruy Barbosa, em artigo de 1918, já criticava acórdão

do STF em que se reconhecia “à Polícia a faculdade de, em certos casos, limitar o direito de reunião, amparada pela Constituição Federal”:

“Ora, se me dizem como o venerando accordam invocado, que a Constituição nos dá a liberdade legal de reunião, mas entrega a polícia o arbítrio de prohibir o uso dessa liberdade, toda vez que, no conceito da polícia se entender haver motivos fundados para receiar que dessa liberdade se abuse, eu concluo que tal liberdade é uma irrisão, é uma hypothese, é uma zombaria, um nada porque, senhores, o receio, é, a palavra do accordam invocado, o receio é um estado de espírito, é uma impressão íntima, é um facto psychologico.” (Revista dos Tribunais, dezembro de 2009, Edição Histórica, pág. 46).

Como sabido, a classificação tripartite proposta por José

Afonso da Silva discrimina as normas constitucionais em três categorias: normas constitucionais de eficácia plena, de eficácia contida e de eficácia limitada ou reduzida.

“Por isso, pode-se dizer que as normas de eficácia plena sejam de aplicabilidade direta, imediata e integral sobre os interesses objeto de sua regulamentação jurídica, enquanto as normas de eficácia limitada são de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida, porque somente incidem totalmente sobre esses interesses após uma normatividade ulterior que lhes

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desenvolva a eficácia, conquanto tenham uma incidência reduzida e surtam outros efeitos não essenciais, ou, melhor, não dirigidos aos valores-fins da norma, mas apenas a certos valores-meios e condicionantes, como melhor se esclarecerá depois. As normas de eficácia contida também são de aplicabilidade direta, imediata, mas não integral, porque sujeitas a restrições previstas ou dependentes de regulamentação que limite sua eficácia e aplicabilidade” (idem, ibidem, pág. 83).

As normas de eficácia contida, ou restringível, estão sujeitas a

limitações pelo legislador ou mesmo pelo alcance que se emprestar a conceitos indeterminados que abrigam. Diferentemente, as normas de eficácia plena – maioria, aliás, no texto constitucional – “incidem diretamente sobre os interesses a que o constituinte quis dar expressão normativa. São de aplicabilidade imediata, porque dotadas de todos os meios e elementos necessários à sua executoriedade. No dizer clássico, são auto-aplicáveis. As condições gerais para essa aplicabilidade são a existência apenas do aparato jurisdicional, o que significa: aplicam-se só pelo fato de serem normas jurídicas, que pressupõem, no caso, a existência do Estado e de seus órgãos” (idem, ibidem, págs. 10/102).

O Instituto dos Advogados do Brasil, na qualidade de amicus

curiae, afirma haver mistura de duas normas de propósitos distintos, isto é, “vedação de anonimato”, que objetiva aspectos indenizatórios, com a liberdade de reunião na expressão coletiva das passeatas e manifestações populares das ruas.

A OAB sustenta em sua representação que o Estado não pode

censurar, inviabilizar ou restringir o núcleo essencial dos direitos fundamentais de manifestação, bem como o acesso à informação, de sorte que a vedação ao uso de máscaras colide com o núcleo essencial do direito de manifestação, sendo a norma impugnada extremamente desproporcional e não se coaduna com o ordenamento jurídico, trazendo danos irreparáveis à democracia e aos Direitos Fundamentais.

Pinto Ferreira ensina:

“O direito de reunião já era reconhecido no art. 16 da Declaração da Pensilvânia de 1776 e o foi expressamente com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 (art. XX), que prevê o direito de reunião pacífica conjuntamente com o de associação.”

“O texto constitucional vigente compreende tanto as reuniões em recinto fechado como aquelas realizadas a céu

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aberto. As restrições ao direito de reunião são unicamente as que estão previstas na Lei Magna, e não em lei ordinária.”

“A autoridade não pode proibir reuniões fora da sistemática do texto constitucional.” (Comentários à Constituição Federal, Saraiva, 1º vol., pg. 91, 92, 93).

Trata-se de lei casuística, que reflete a incompetência, a

ineficiência, a deficiência dos órgãos responsáveis pela segurança pública. E o despreparo do Estado em lidar com as questões político-sociais.

O jornal “O Globo”, em sua edição de 18/02/2014, publicou

artigo do professor de História Contemporânea da UFF Daniel Aarão Reis, intitulado “modus in rebus”:

“O pesar suscitado pela morte do cinegrafista Santiago

Andrade é compreensível. Os jornalistas estão indignados, porque não é de hoje que têm sido hostilizados por policiais e manifestantes. Assim, é num quadro de forte emoção que despontam propostas para coibir a escalada de violência que assombra o país.

É preciso, no entanto, considerar o contexto e equilibrar os ângulos de análise. O contexto nos mostra um tempo de violência crescente, nas ruas, nos estádios de futebol, nas explosões de ira popular nos bairros, nas cidades, no mundo rural, na crueldade desatada contra mulheres, gays e crianças. Destaca-se aí, em particular, a ação da polícia. Ela bate, fere, tortura e mata de uma forma demencial, o que se evidencia nos índices que aferem suas práticas.

Fazer dos manifestantes bodes expiatórios, acusando-os de formar “organizações criminosas” e de praticar “terrorismo”, não é a melhor forma de homenagear Santiago Andrade nem de aperfeiçoar a democracia.

E é disso que se trata: homenagear o homem que morreu e melhorar a democracia em que vivemos. Se este for o objetivo, é preciso seguir o conselho dos antigos, formulado por Horácio: modus in rebus – medida própria para fazer as coisas.”

As manifestações populares não podem ser controladas e

regulamentadas com a rigidez que cerceia a criatividade, característica

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fundamental de qualquer manifestação pública, seja de natureza política, cultural, social, carnavalesca.

O uso de máscaras – impregnado pelo seu histórico simbolismo

-, além de adereços, faixas, cartazes, rostos pintados, tudo integra a cultura popular das manifestações.

Não cabe à lei estabelecer regras sobre o modo, a maneira do

comportamento, das atitudes, dos gestos, das vestimentas durante as manifestações; não cabe à lei moldar e modelar o comportamento.

A polícia deve ser preparada para evitar e conter os eventuais

excessos e abusos nas manifestações, mas respeitando as garantias constitucionais. É preciso romper, na formação do policial, com o modelo histórico das práticas fundadas na violência, no desrespeito à cidadania e à dignidade da pessoa humana.

A antiga e permanente criminalização dos movimentos

populares integra essas práticas antidemocráticas. O nosso Código Penal de 1890 criminalizava a “capoeiragem” (art. 402), igualmente o Código de Menores de 1927.

A historiadora Laura Mello e Souza, em sua obra

“Desclassificados do Ouro – a pobreza mineira no sec. XVIII”, constata que “A Justiça foi uma das facetas do Poder que melhor contribuíram para a manutenção do sistema colonial. Nas Minas, mais do que em qualquer outra parte, a violência, a coerção e a arbitrariedade foram as suas características.” “Mais uma vez, o que se nota é um medo difuso ante o incontrolável, o desenquadrado, o que foge à política de normalização.”

A lei 6.528/2013 revela esse “medo difuso” do Estado frente às

manifestações populares. E restringe a garantia constitucional do direito à reunião (art. 5º, XVI, Constituição Federal; art. 23, Constituição Estadual). Como se a lei tivesse o poder de abolir da vida social modos e grupos específicos, como o denominado Black Block.

A lei 6.528/2013 ainda confunde liberdade de reunião com liberdade de pensamento. O anonimato é vedado na manifestação do pensamento (art. 5º, IV, Constituição Federal).

Nas manifestações públicas, se houver necessidade de

identificação, a polícia tem os meios próprios e legais para isso. Aliás, o uso de máscara até facilita essa eventual necessidade de identificação.

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A lei 6.528/2013 constitui uma afronta à garantia constitucional e viola o princípio da vedação ao retrocesso.

O ilustre Procurador da Assembléia menciona alguns países –

Alemanha, Áustria, Bélgica, Canadá, França, Itália, Suíça, Estados Unidos -, considerados exemplos democráticos, onde há restrições às manifestações. Não se pode esquecer, porém, que nas eleições para o Parlamento Europeu, em maio de 2014, houve um grande avanço nos partidos da direita ultra radical, exatamente nos países mencionados, na defesa dos valores vinculados à xenofobia, ao racismo, à homofobia, ao antissemitismo, um ressurgimento da incontrolável intolerância dos tempos da Inquisição.

É missão do Poder Judiciário garantir a concretização dos

direitos fundamentais. A permanência da lei 6.528/2013 passa a constituir um

exemplo do conceito que Nicos Poulantzas enuncia sobre a lei: “A lei organiza o funcionamento da repressão física, designa e

gradua as modalidades, enquadra os dispositivos que a exercem. A lei é, neste sentido, o código da violência pública organizada.” (O Estado, o Poder, o Socialismo – Graal, 1981, pág. 86).

Ao restringir a garantia constitucional do direito á reunião, a lei

6.528/2013 cria um espaço de Estado de Exceção (Giorgio Agamben). O meu voto, pois, é para julgar procedentes as representações e

declarar a inconstitucionalidade da lei 6.528, de 11 de setembro de 2013.

Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2014.

Data do julgamento

SÉRGIO VERANI Des. Relator