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O Sindicalismo: adaptação ou resistência?

Q Doenças profissionais: nova legislação

O População de rua: não há lugar para eles

& A crise econômica brasileira

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Q Nasce uma hiperburguesia

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QUINZENA Nc 275

CURTAS GM - 14/01/99

Saída de dólares chegou a US$ 1 bi

As saídas de recursos do Brasil para o exterior somaram ontem (13/01/99) entre (US$ 900 milhões e US$ 1 bilhão, acumulando US$ 3,1 bilhão nos primeiros 13 dias do ano. Somente pelo câmbio comercial saíram cerca de US$ 700 milhões, informou a assessoria do Banco Central (BC); o restante foi convertido pelo flutuante.

Segundo o BC, os bancos comerciais chegaram a com- prar US$ 1,7 bilhão mas não chegaram a remeter todo esse volume para o exterior. Os números do movimento de recur- sos no câmbio estão sendo atentamente acompanhados pelo mercado financeiro porque são considerados a medida exa- ta da credibilidade da nova política. Como o mercado de fu- turo de câmbio funcionou apenas parcialmente ontem, mui- tos bancos fizeram hedge no mercado à vista.

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Metalúrgico de Jundiaí aceita redução de salário

Os 1.700 metalúrgicos da Sifco do Brasil, empresa de forjaria de Jundiaí-SP, dicidiram ontem pela redução da jor- nada de trabalho e dos salários. A empresa alega que per- deu 20% do seu f^tvramento e os únicos pedidos são do mercado externo. Caso os metalúrgicos não aceitassem a redução proposta pela empresa, 300 trabalhadores seriam demitidos. A redução de 15% nos salários e vão trabalhar apenas quatro dias por semana.

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General Motors A General Motors discute hoje (15/01/99), a redução de

20% da jornada e 10% dos salários em reunião com direto- res do Sindicato dos Metalúrgicos de São Caetano do Sul, onde a montadora alega existir um excedente de mil do total de 8,7 mil funcionários. Essa é uma das alternativas, apre- sentada ontem, durante reunião com os sindicalistas. Outra possibilidade é retomar o programa de demissão voluntária (PDV) ou adotar a suspensão temporária do contrato de tra- balho, de fevereiro a julho, mas sem garantia de retorno de todos.

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Previdência Aproveitando o agravamento da crise econômica e a re-

percussão negativa da imagem do Brasil no exterior, as lide- ranças da base do governo no Congresso fecharam ontem um acordo para votar o projeto que trata da cobrança da con- tribuição previdenciária dos servidores inativos, dos pensio- nistas e do aumento das alíquotas para os fucionários ativos da União, ainda na convocação extraordinária.

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Credibilidade do País cai nos EUA e no FMI

A equipe econômica perdeu credibilidade em Washington não apenas pela decisão inesperada de acelerar a desvalori- zação do real, depois de ter garantido que a medida estava afastada, mas pela maneira como agiu, sem consultar seus interlocutores no Departamento do Tesouro dos EUA e no FMI. A frustração é maior por parte dos diretores do Fundo e economistas americanos que puseram sua reputação em jogo, em 98, quando apoiaram o acordo entre o Brasil e a entidade.

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A soma total da dívida externa da América Latina é de 650 bilhões de

dólares. - Outubro de 1998

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Expediente

O boletim QuiflZeilcl é uma publicação do: CPV - Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro

Rua São Domingos, 224 - Térreo - Bela Vista CEP 01326-000 - São Paulo - SP

Caixa Postal 65107 - CEP 01390-970 Telefone (011)3104-7995

Fax (OU) 3104-3133

O objetivo do boletim é divulgar uma seleção de material informativo, analítico e opinativo, publicado na grande imprensa, partidária e alternativa e outras fontes

importantes existentes nos movimentos. A proposta do boletim é ampliar a circulação dessas informações, facilitando o debate sobre as questões políticas em

pauta na conjuntura.

Caso você queira divulgar algum tex- to no OuinZCIlcl, basta nos enviar. Pedimos que se atenha a, no máximo, 8 laudas. Textos que ultrapassem este limi- te estarão sujeitos a cortes, por imposi- ção de espaço

Equipe de editoração e diagramação Boletim Quinzena : Maria Ap. Rezende Camargo, Luiz Rosalvo e Leonor Marques da Silva. Ilustração: Ohi e Mouzar Benedito

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Trabalhacl€re§ Debate Sindical - Novembro/Dezembro/Janeiro 1998/99 - N0 29

Estrutura sindical: construção e resistência

Augusto Buonicore*

No momento em que o governo tenta implodir a estrutura sindical em vigor e reacende a polêmica sobre o tema, o autor apresenta um relato histórico abordando sua origem e

desenvolvimento. O artigo evidencia as inúmeras contradições desta trajetória, com as resistências efetuadas e as cisões entre as correntes sindicais. A exemplo do passado,

novamente as elites dominantes procuram interferir na organização dos trabalhadores. Antes, fizeram esforços para tutelar o sindicalismo; agora, investem abertamente na sua

divisão para facilitar a exploração capitalista.

A Revolução de 30 representou um momento de rup- tura na vida nacional. Ela teve conseqüências pro-

fundas no estruturamento político/jurídico do Estado brasilei- ro e refletiu-se imediatamente no movimento sindical. O sindicalismo no pós-30 não seria mais o mesmo que fora nas décadas anteriores. As condições históricas particulares em que se deu a revolução levaram ao surgimento de um Estado cuja composição política interligou as oligarquias agrárias dis- sidentes, a nascente burguesia industrial e a burocracia esta- tal (civil e militar). A nova correlação de forças excluiu a possibilidade da hegemonia política de uma das forças soci- ais integrantes do bloco no poder.

O equilíbrio instável de forças entre as diversas frações das classes proprietárias possibilitou uma maior autonomia da burocracia estatal, permitindo-lhe aplicar uma política de desenvolvimento (industrialização mais incorporação das massas populares) que não coincide inteiramente com os in- teresses imediatos de nenhuma das classes no poder. A ten- tativa de incorporação, de maneira subordinada, das massas populares urbanas ao Estado visava a constituição de uma base social (popular) de apoio ao projeto de desenvolvimento engendrado pela burocracia estatal.

Estabelece-se após 1930 uma política bifronte que se as- senta simultaneamente na tentativa de integração/manipula- ção das massas trabalhadoras. Os meios privilegiados nesse processo foram a legislação trabalhista e a estrutura sindical corporativa. Não foi à toa que uma das primeiras medidas do governo provisório de Getúlio Vargas foi criar o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e que este imediatamente te- nha elaborado um novo projeto para reorganizar a atividade sindical no país. Já no início de 31, o governo baixa o decreto 19.770, criando um sistema sindical corporativo, atrelado ao Estado, que se organiza verticalmente e por categorias pro- fissionais.

Segundo Antunes, "este decreto criou as condições sobre as quais, pouco a pouco, se consolidou a estrutura sindical brasileira. Entre os seus princípios básicos já constava a su- bordinação dos sindicatos ao Estado, através da intervenção do Ministério do Trabalho junto às diretorias... O seu caráter

desmobilizador também se expressava nas restrições impos- ta à atuação dos estrangeiros, que constituam a parcela poli- ticamente mais avançada dentre os operários, além da proi- bição explícita ao sindicato de exercer qualquer atividade política e ideológica". (Antunes, 1988)

O projeto determinava também a existência de apenas um sindicato oficial por categoria, proibia a unificação hori- zontal dos sindicatos e estabelecia uma estrutura sindical ver- tical assentada nas federações e confederações. A lei proi- bia que os novos sindicatos se filiassem a organizações inter- nacionais sem a prévia autorização do Ministério do Traba- lho. A nova lei sindical estabelecia penalidades para o não cumprimento de suas determinações. Penalidades que iam da simples multa até o fechamento do sindicato, passando pelas intervenções e substituições de diretorias eleitas.

As correntes combativas rejeitam o atrelamento e lutam pelo sindicato livre

O projeto de lei sobre sindicalização recebeu duras críti- cas dos setores organizados do movimento operário. Anarco- sindicalistas, comunistas, trotskistas, socialistas e até mesmo alguns setores conservadores do movimento sindical se posicionaram contra o referido projeto. O nível de resistência a nova lei foi desigual nas diversas categorias e nos diversos Estados. Em São Paulo, o estado mais industrializado do país e onde existia uma forte influência das correntes de esquer- da, a resistência foi maior. No Rio de Janeiro, onde predomi- nava o chamado "sindicalismo amarelo", a resistência foi menor, ocorrendo, inclusive, uma adesão ativa à nova estru- tura sindical estatal.

Os comunistas brasileiros combateram energicamente a implantação do sindicalismo oficial. Num artigo publicado em julho de 1931 afirmariam: "O governo e seus agentes locais esforçam-se energicamente para ter sob o seu con- trole as organizações operárias, pretendendo desempenhar um papel de árbitro "imparcial" nos conflitos. O digno coroamento desta política é a ultra-reacionária lei sobre os sindicatos elaborada pelo governo federal". E conclui: "os sindicatos revolucionários não poderão aceitar ou adaptar- se a nova lei". (Carone, 1982).

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Trabalhadores

Os comunistas passaram a criticar sistematicamente os sindicatos oficiais criados por elementos ministerialistas e as diretorias classistas que pediam reconhecimento de suas en- tidades junto ao Ministério do Trabalho. Em um manifesto dirigido aos trabalhadores das fábricas de tecidos de São Paulo, afirmariam: "Alguns operários, diretores de sindica- tos, dizem que colaboram (ou fingem colaborar) nestas orga- nizações fascistas, para arregimentarem os trabalhadores e depois colocaram-se contra. Estes operários, que assim pen- sam enganar o governo, terão dentro de pouco tempo o re- sultado desastroso de sua ingenuidade ... e terão ainda por cima o desprezo da massa que foi por ele traída e amarrada de pés e mãos ao carro da burguesia." (Caròne, 1982)

Até 32, os comunistas excluíam as diretorias dos sindica- tos oficiais de sua proposta de frente única sindical. Somente no início deste ano, o Comitê Central decidiu mudar a sua posição e defender a atuação nos sindicatos oficiais, consti- tuindo "oposições sindicais" que deveriam travar uma luta enérgica contra as direções ministerialistas. Mas nos sindi- catos que dirigiam, eles continuariam defendendo a completa autonomia em relação ao Estado, não permitindo que fossem oficializados.

A resistência nas direções dos sindicatos livres em São Paulo parece ter surtido efeito e isto pode ser constatado pelos dados fornecidos pelo próprio Ministério do Trabalho. No primeiro ano da lei de sindicalização, apenas dois sindica- tos haviam pedido reconhecimento; no ano posterior esse número subiu para seis - um índice irrosório. A situação só começa a se reverter à partir de 1933.

A ofensiva do Ministério do Trabalho para dividir as entidades de classe

Diante da resistência, o Ministério do Trabalho desenca- deia um amplo processo de divisão das organizações sindi- cais. Ao lado dos sindicatos livres passam a incentivar a cri- ação de entidades oficiais, reconhecidas pelo Estado. Em ja- neiro de 33, aproveitando de uma crise no seio da União dos Operários em Fiação e Tecelagem, foi criado o sindicato ofi- cial. A direção desta nova entidade foi assumida por Mário Rotta. Vários sindicatos, inclusive oficiais, denunciaram o fato de Rotta não pertencer a categoria a mais de 15 anos e ser na ocasião dono de pensão, além de membro de uma associ- ação fascista. Isto contrariava os próprios dispositivos da lei de sindicalização, mas, mesmo assim, ele recebeu a carta de reconhecimento sindical em maio de 1934. (Araújo, 1994)

Ao lado da combativa União dos Operários Metalúrgicos de São Paulo foi criado, em 32, o Sindicato dos Metalúrgicos sob direção ministerialista. A categoria passou a ter então duas organizações. Uma reconhecida pelo governo, mas sem respaldo das massas, e outra mais representativa, mas sem ser reconhecida. A mesma coisa aconteceu com os traba- lhadores da Light. Só na cidade de São Paulo foram criados também sindicatos oficiais, paralelos, na base dos vidreiros, chapeleiros, hoteleiros, comerciários, condutores, entre ou- tros. (Araújo, 1994)

Não foi sem motivo que eles foram considerados, por to- das as correntes combativas do movimento operário, como

"sindicatos paralelos" que tinham por função dividir os traba- lhadores e colocá-los sob a tutela do Estado burguês. É bom lembrar que, mesmo sem a unicidade sindical, existia uma relativa unidade organizacional entre os trabalhadores brasi- leiros antes de 1930. Uma unidade que, em tese, era defendi- da por todas as correntes de esquerda. Talvez, naquele mo- mento, os únicos defensores da pluralidade sindical fossem as correntes católicas.

Como o expediente de dividir as bases dos sindicatos li- vres não atingiu plenamente seus objetivos, o governo dá, então, um novo e decisivo passo no sentido de realizar seus planos. Em novembro de 32, Vargas cria as Juntas de Conci- liação e Julgamento para solucionar os conflitos trabalhistas, mas, ao mesmo tempo restringe o acesso a elas apenas aos trabalhadores sindicalizados nas organizações oficiais. O pior , ainda estava por vir. No início de 34 é criada uma lei de féri- as, só que ela condicionava o exercício deste direito à partici- pação do trabalhador no sindicato já oficializado.

A diretoria da Associação dos Empregados do Comér- cio protestaria contra tais medidas: "Esta lei não força, apa- rentemente, os proletários a se sindicalizar mas, aos pou- cos, vemos que o governo provisório está dando aos sindi- catos oficiais todos os poderes legais para agirem em nome de determinada profissão ou corporação, embora tais sindi- catos se componham de apenas algumas dezenas de ade- rentes ... O intuito do Governo Provisório é evidente. Ven- do o pouco sucesso numérico dos sindicatos oficiais, teve a idéia, sem dúvida genial, de forçar os operários não sindica- lizados ou pertencentes somente aos sindicatos livres a se sindicalizarem oficialmente."

Manobra do governo força o atrelamento: trotskistas são os primeiros a aderir

A política adotada pelo governo Vargas cria maiores difi- culdades para aqueles que desejavam manter suas entidades à margem da tutela do Ministério do Trabalho. Mesmo nas organizações com maior tradição de luta pode-se constatar um aumento da pressão interna vinda de grupos interessados em oficializar os sindicatos e mesmo das bases que deseja- vam gozar dos benefícios e direitos que só a oficialização poderia trazer.

O melhor exemplo disso ocorreu na União dos Trabalha- dores Gráficos de São Paulo (UTG), entidade sob hegemonia trotskista. Ela se posicionara duramente contra a lei de sindicalização. Em 1932, afirmaria num manifesto: "Aqui em São Paulo, onde a política do Ministério do Trabalho não pode firmar-se pela existência de uma decidida vanguarda operá- ria, cresce a organização no sentido de se fazer uma frente única de ferro contra a sindicalização, de não deixar medrar a má semente do divisionismo, de lutar sistematicamente con- tra as tendências da cisão nas corporações".

Mas em fevereiro de 34, a situação já era bem diferente. Através do jornal da UTG, os trotskistas afirmavam desola- dos: "Diante da nova lei de férias ... a nossa existência de sindicato livre está seriamente ameaçada. Observamos que a tendência manifestada por alguns companheiros, para a oficialização da UTG, se reforça cada vez mais. Podemos

'€ ser humane deixa de ser escravo quando se converte em arquiteto do seu próprio destino" Che Suevara

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mesmo adiantar que, hoje, quase a totalidade da corporação é pela oficialização do nosso sindicato não só para a obten- ção de férias, como também para salvar a própria unidade organizatória dos trabalhadores".

Após a decisão de solicitar a oficialização da UTG, os trotskistas dão uma guinada na sua política e passam a priorizar a unidade de ação com as direções de sindicatos oficiais. A direção da UTG defenderia então a construção de uma nova federação assentada exclusivamente nestas entidades. Para eles, ao contrário do que afirmavam em 32, a lei de sindicalização "foi se tornando, contra a vontade dos seus idealizadores, um poderoso canalizador de descontentamen- to de classe". Os trotskistas também criticam duramente as correntes adeptas dos sindicatos livres. (Araújo)

Em maio de 1934, os anarquistas perdem a direção da União dos Trabalhadores da Light para um grupo pró-oficialização. As sucessivas derrotas dos anarquistas são um indício das mudanças na correlação de forças no movimento sindical, gra- ças a intervenção ativa do Ministério do Trabalho.

Os comunistas dirigiriam duras críticas as posições dos trotskistas de ingressar e defender a estrutura sindical corporativa. Mas, no final de 1934, os comunistas começam a dar maior atenção aos sindicatos oficiais, participando mais ativamente dos processos eleitorais para renovação de suas diretorias. Diferentemente dos trotskistas, os comunistas não reduziam seu campo de atuação aos sindicatos oficiais e nem defendiam a estrutura sindical corporativa criada no pós-30.

Com o golpe de 35, o governo destrói últimos vestígios do sindicalismo autônomo

Apesar das dificuldades impostas pelo governo e seus ali- ados, algumas entidades sobreviveram, com certa representatividade, até o fechamento do regime em 1935. A Assembléia Constituinte de 1934 chegou a eliminar a discri- minação ao direito de férias, estendendo-o a todos os traba- lhadores. Também aprovou, contra a vontade do governo, a autonomia e o direito a pluralidade sindical. O artigo 120 da nova carta constitucional ganhou a seguinte redação: "Art. 120, parágrafo único: A lei assegurará a pluralidade sindical e a completa autonomia dos sindicatos".

Mas o governo não estava disposto a aceitar esta derrota. Dois dias da promulgação da nova Constituição, que deveria garantir a completa autonomia sindical, o governo baixa um novo decreto que regulamentava o processo de reconheci- mento das entidades sindicais e mantinha a maior parte das restrições já existente na lei de sindicalização de 1931. As- sim, a Constituição de 34, no que diz respeito à liberdade e à autonomia sindical, jamais foi efetivamente cumprida.

Em abril de 1935, diante do avanço da recém criada Ali- ança Nacional Libertadora dirigida pelos comunistas, o go- verno aprova a Lei de Segurança Nacional. No dia 11 de julho, a ANL é colocada na ilegalidade e, em novembro, organiza um levante armado contra o governo. A repressão que se seguiu ao levante pôs fim aos últimos vestígios do sindicalismo livre em nosso país. Os sindicatos não oficiais, sob a direção de anarquistas e comunistas, foram fechados e suas lideranças foram perseguidas. As diretorias de sin-

Trabal liacl€re§

dicatos oficiais não afinadas com o governo sofreram inter- venções.

Em 1939, visando reforçar o atrelamento dos sindicatos, o governo promulga o decreto-lei 1.402, que criava o enquadramento sindical. Na exposição de motivos que enca- minhou o projeto, o Ministério do Trabalho afirmava: "Com a instituição desse registro (sindical), toda a vida das associa- ções profissionais passará a gravitar em torno do Ministério do Trabalho: nele nascerão; com ele crescerão; ao lado dele se desenvolverão; nele se extinguirão". (Morais Filho, 1978)

No mesmo ano é criado o Imposto Sindical e com eles surgem novos mecanismos de controle sobre a administra- ção sindical. O imposto tem a finalidade de dar vida à estru- tura burocratizada, dirigida pelos interventores do Ministé- rio do Trabalho. A nova estrutura toma sua forma definitiva em 1943 com a edição do decreto-lei 5.542, que denomi- nou-se Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Consti- tuía-se, assim, uma estrutura sindical vertical e integrada ao Estado brasileiro.

A Constituinte de 46 não alterou essa legislação, preser- vando os instrumentos de subordinação dos sindicatos ao Estado. Nos momentos de ascenso das lutas sindicais: já nas fases de defensiva, ela é aplicada com rigor. O golpe de 64 nem precisou de uma nova legislação - aplicou a que existia há décadas. Somente na Constituinte de 88 é que a estrutura sindical sofreu importantes mudanças no rumo da sua maior autonomia. O Estado reduziu o poder de intervenção nos sin- dicatos e perdeu outros instrumentos de submissão das enti- dades de classe. □

* Historiador, doutorando em ciências sociais pela Unicantp/SP e membro do Conselho de Redação das Debate Sindical

BIBLIOGRAFIA

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(continua próxima página)

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Trabalhadcres

Público-RJ- Novembro/98 - N0 27

A crise do sindicalismo: adaptação ou resistência?

Júlio Turra*

Hoje, em todo o mundo, fala-se na crise do sindicalismo. É fato que os sindicatos enfrentam uma situação di-

fícil, que se reflete na queda do número de sindicalizados e na perda de influência das organizações sindicais em dife- rentes países.

Existe uma base objetiva para essa situação. Na última década, uma brutal ofensiva contra os direitos sociais e tra- balhistas, em nome das exigências de competitividade das empresas no quadro da "globalização" capitalista, tem sido desenvolvida por empresários e governos visando "reduzir o custo do trabalho". A forma que toma essa ofensiva é a de desregulamentação ou flexibilização de direitos anteriormen- te conquistados e inscritos em legislações trabalhistas ou em convenções e acordos coletivos arrancados pelas organiza- ções sindicais.

Num mundo crescentemente controlado pelo capital especulativo, em detrimento do investimento na produção de bens, as altas taxas de desemprego que hoje se verifi- cam da Europa à América Latina e o crescimento do tra- balho informal (inclusive nos Estados Unidos), que não atende a qualquer norma ou regra contratual, são fatores que se somam para enfraquecer os sindicatos. Afinal, a razão de ser dos sindicatos sempre foi a de estabelecer regras que limitassem a superexploração da força de tra- balho por parte do capital.

Há vozes interessadas que explicam que os "sindicatos saíram de moda", investindo na quebra de qualquer vínculo de solidariedade entre os trabalhadores, visando quebrar a própria noção do que constituímos uma classe com interes-

ses comuns e opostos, ao mesmo tempo, aos interesses da- queles que se beneficiam da exploração da força de trabalho.

Entretanto, os trabalhadores, tanto do setor privado como do setor público, necessitam mais do que nunca da organiza- ção sindical, isto é, de uma organização independente dos patrões e dos governos, autônoma em relação aos partidos políticos, para lutar por melhores condições de trabalho, por salário e emprego, para defender as conquistas hoje ameaçadas de destruição no altar da "desregulamentação".

Nós, aqui no Brasil, e os servidores públicos em primeiro lugar, sabemos da violência dos ataques contra o mundo do trabalho, que são a marca das receitas econômicas aplicadas a mando do FMI. Em vários países do mundo, a atual crise econômica e financeira que abala os "mercados" cobra um alto preço dos trabalhadores, a exemplo do recente pacote de FHC, que, além de atacar direitos, acena com demissões e mais um ano sem reajuste para o funcionalismo.

Aqueles que estão por trás das instituições que aplicam as políticas de "ajuste" (como o FMI), os governos dos "pa- íses ricos" (liderados pelos EUA) e as multinacionais sabem, por outro lado, que a violência das suas medidas provoca situações de explosividade social, como se viu na Indonésia, na Coréia do Sul e na própria Rússia, que podem se tornar incontroláveis.

Para prevenir tais situações, eles buscam cooptar os sin- dicatos para serem parceiros na aplicação de suas políticas, argumentando que é necessário um "novo sindicalismo" que, em vez de defender os interesses da força de trabalho, deve- ria se preocupar com o "interesse de toda a sociedade civil"

'O ser humane deixa de ser escravo auande se cenvette em arquitete de seu uréurie destine" Che Guevara

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Trabalhadcres

(uma abstração que reúne sob o mesmo rótulo explorados e exploradores, empresas e sindicatos, igrejas e ONGs).

Numa palavra: propõe aos sindicatos que se adaptem às exigências do capital e deixem de ser organizações classistas. É um caminho que levaria da crise atual do sindicalismo a um virtual desaparecimento dos sindicatos como organismos de luta dos trabalhadores. Do nosso ponto de vista, a superação positiva da crise do sindicalismo passa por reencontrar o ca- minho do trabalho cotidiano com as bases, na recuperação da democracia sindical, no esforço para unificar sindicatos afins - atualizado no Brasil pela intenção manifesta do gover- no FHC de pulverizar a organização sindical por empresas - fazendo do sindicato uma trincheira de resistência ao proces- so destrutivo impulsionado pelo capitalismo deste fim de sé-

culo, que não afeta apenas os trabalhadores mas o conjunto da humanidade. O sindicato tem o lugar insubstituível de or- ganizar e representar os interesses da classe daquele que vivem do trabalho assalariado, e nesse sentido, não pode ser "parceiro" daqueles que vivem da exploração capitalista.

Toda crise carrega em seu bojo tanto a possibilidade de destruição do existente quanto de sua superação positiva. Não é diferente com a crise atual do sindicalismo. Tudo depende da intervenção consciente dos homens, e nesse caso, dos próprios sindicalistas, para que da crise renasça fortalecido um sindicalismo classista, democrático e de luta, princípios que nortearam a fundação da CUT há quinze anos. □

* Membro da executiva nacional da CUT

Massas - 2a quinzena de Dezembro/98 - N0 164

Quinzena de luta do movimento operário Ford anuncia demissão em massa e sindicato limita-se a reclamar que

não foi notificado Ford anunciou que demitirá 2.800 operários na unidade de

São Bernardo, o que corresponde a 43% do seu efetivo. Para evitar qualquer tipo de manifestação, os trabalhadores estão recebendo em casa a notícia de que serão demitidos. Segun- do a montadora, o corte só não foi feito antes devido ao com- promisso feito com o governo para não demitir antes das elei- ções, o que comprometeria a reeleição de FHC. GM, Mercedes e VW, que também assinaram o acordo, utiliza- ram-se do chamado "programa de demissões voluntárias", pondo na rua 3.500 trabalhadores. A Ford, por esse método, demitiu 202. Cumprindo o acordo, com FHC reeleito, a montadora disse que não há mais motivos para manter as medidas até então adotadas (redução de jornada, férias cole- tivas, licença remunerada, etc.) e que é hora de demitir em massa, sem problemas. Descaradamente, e como se não sou- besse de nada, a direção do sindicato se disse "chocada" com a notícia e correu aos pés dos patrões implorando cle- mência para que estes pelo menos esperem passar o "perío- do natalino e de ano novo" para que os trabalhadores possam passar "as festas tranqüilos". A seguir, Luiz Marinho foi aos jornais dizendo que não há nada a fazer. Não admitimos re- dução de salários, nem retirada de conquistas dos trabalha- dores, muito menos demissões. Rechaçamos a posição de traição da direção do sindicato e chamamos os trabalhadores a levantarem a bandeira da ESCALA MÓVEL DE SALÁ- RIOS, o que significa dividir as horas de trabalho existentes entre todos os trabalhadores, sem redução salarial.

Condutores rechaçam parcelamento do 13° salário e decidem entrar em

greve novamente Os donos das empresas de ônibus de São Paulo continu-

am firmes em seu objetivo de atacar cada vez mais os salári- os dos trabalhadores. Com a desculpa esfarrapada de que estão sem dinheiro, atrasam constantemente o pagamento de

salários. Agora estão querendo botar goela abaixo dos tra- balhadores o pagamento do salário em prestações. Querem parcelar o 13° salário e até o vale-refeição. Dessa forma, os patrões garantem o seu lucro, fazendo com que os trabalha- dores mantenham a sua força de trabalho, alimentando-se o mínimo possível, e parceladamente. Os trabalhadores rechaçaram o ataque e decidiram novamente pela greve (já haviam parado na semana anterior), a partir de 21/12. Agora resta saber se o Sindicato levará essa luta até o fim, ou se continuará optando por paralisações parciais. Sabemos per- feitamente que esse tipo de movimento parcial não surte ne- nhum efeito junto aos patrões, pelo menos em benefício dos trabalhadores. Muito pelo contrário, o que observamos é que os patrões utilizam os trabalhadores, nessas circunstâncias, para obter alguma vantagem. No caso dos condutores, que- rem pressionar a prefeitura para que esta pague sua dívida junto aos patrões. Os trabalhadores devem ficar de olho na direção do sindicato e cobrar uma postura combativa por parte desta. Só assim poderão levar a greve à vitória, barrando as demissões e obrigando os patrões a pagar o que devem.

Trabalhadores ocupam torre da Manchete e tiram emissora do ar

Os donos das TV Manchete se negam a pagar os salários dos trabalhadores, que já estão atrasados há mais de três meses. Em função do atraso, os funcionários da emissora também estão fazendo greve desde outubro, para obrigar o patrão caloteiro a quitar sua dívida. Com a indiferença patro- nal e já sem dinheiro para comer, os trabalhadores radicalizaram o movimento e decidiram pela ocupação da torre da emissora, no Sumaré/SP, interrompendo a transmissão normal e colocando no ar cartazes de protestos do tipo "estamos passando fome". A idéia dos patrões é, além de não pagar os salários, demitir uma parcela do quadro funcio- nal. Os trabalhadores sabem que a radicalização e o enfrentamento direto fazem os patrões tremerem nas bases. Pois tratam-se de métodos da classe operária e se chocam com os interesses dos capitalistas. Sabem também que o ob-

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4 I IS/I NA Nc 275 $

Trabal hadcres

jetivo dos patrões sanguessugas é explorar ao máximo os seus escravos. Porém, os parasitas em crise já não conse- guem sequer sustentar esses escravos. Pois que morram eles e em cima de seus escombros a classe operária erga uma sociedade sem explorados e exploradores, ou seja, a sociedade socialista.

Sindicato e VVV se unem para quebrar disposição de luta dos trabalhadores

A VW vem ameaçando constantemente demitir em massa nas fábricas de São Bernardo e Taubaté. Com essa ameaça e com a ajuda imprescindível do sindicato, a montadora vem tirando fatias cada vez maiores dos salários dos operários. Em negociatas com a direção do sindicato, vem também conseguindo quebrar toda e qualquer disposição de luta dos trabalhadores.

Toda vez que a montadora anuncia algum corte, os pelegos correm a chamar assembléias para dizer aos operários que aceitem o ataque e ainda agradeçam por não terem sido demitidos. Recentemente, em assembléia, os trabalhadores negaram aos pelegos carta branca para que os vendidos negociassem com a montadora a retirada de conquistas (re- dução salarial, parcelamento do 13o salário, diluição da PLR, etc). Porém, na semana seguinte, os traidores se rearticularam, fizeram uma verdadeira campanha de terror junto aos operários (ameaçando com uma lista de 7.500 no- mes que seriam demitidos antes do natal), chamaram nova

assembléia e conseguiram seu objetivo, que é o mesmo da montadora: fazer com que os trabalhadores aceitem quieti- nhos o ataque desferido pelo patrão. Pelo acordo, os salários serão reduzidos em 15%, e os operários teoricamente traba- lharão um dia a menos na semana. Falamos teoricamente por- que está em vigor a chamada bolsa de horas de trabalho, que permite aos patrões ampliarem a jornada de trabalho de acor- do com suas necessidades, sem ter de pagar hora-extra por isso. A verdade é que a redução é mesmo de salário. E tem mais: os burocratas do sindicato ainda mentiram aos operários dizendo que o acordo garantiria o emprego de todos por 5 anos.

Não há nenhuma garantia de emprego. Há apenas uma promessa da empresa em manter o nível de emprego se não houver queda na produção. A arma da demissão pode ser usada tranqüilamente pelos patrões. Marinho, o pelegão trai- dor cara-de-pau não se coloca contra as demissões e diz que "é preciso um mecanismo mais longo" e que "um calendário de desligamento" dá mais tranqüilidade aos trabalhadores. Como se vê, a meta da montadora é demitir e ao mesmo tem- po cortar salários para garantir seu lucro.

Quanto aos operários e demais trabalhadores, para evitar as demissões e os ataques dos capitalistas às suas condições de vida, resta se levantarem numa luta unitária, passando por cima da burocracia sindical traidora e organizando a GREVE GERAL POR TEMPO INDETERMINADO. □

Boletim Especial - Saúde do Trabalhador - Novembro de 1998 Sindicato dos Metalúrgicos Betim, Igarapé e Bicas Saúde

INSS divulga nova legislação sobre doenças profissionais

Normas que regulamentam casos de DORT, PAIR, Benzenismo e Pneumoconiose, que serão anunciadas nesta sexta-feira, trarão prejuízo

para os trabalhadores Nesta sexta-feira, dia 20, a partir das 13 horas, a Cen-

tral Única dos Trabalhadores de Minas Gerais (CUT-MG) fará uma grande manifestação em frente à por- taria do INSS, em Belo Horizonte, para protestar contra as novas normas regulamentadoras de doenças adquiridas no local de trabalho. Neste dia, o INSS estará anunciando para a comunidade o novo conteúdo das normas técnicas que, segundo a avaliação de especialistas no assunto, irá dificul- tar ainda mais a comprovação de que estas doenças foram adquiridas na fábrica e a concessão de benefícios aos tra- balhadores acidentados. As novas normas já estão em vigor em todo do país desde o dia 19 de agosto deste ano.

Com as mudanças, a partir de agora, só serão encami- nhados á Perícia Médica do INSS os casos em que o Laudo do Exame Médico (LEM), que integra a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), comprovar que o trabalhador

está incapacitado para o trabalho por um período superior a 15 dias. A alteração traz prejuízos, especialmente, aos metalúrgicos acometidos por Perda Auditiva Induzida por Ruído (PAIR), que se desenvolve de maneira lenta e progressiva. Mas os danos não atingem apenas as vítimas da PAIR. Os trabalhadores que estão expostos ou já manifestaram algum sintoma de DORT (Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho), até pouco tempo caracterizado como LER (Lesão por Esforços Repetitivos), Benzenismo e Pneumoconiose.

"Em resumo, as alterações promovidas pelo governo aten- dem a dois objetivos específicos: reduzir a quantidade de be- nefícios pagos pelo INSS e beneficiar as empresas", avalia a engenheira de segurança do Sindicato, Marta de Freitas.

É por isso que o Sindicato estará participando das manifes- tação promovida pela CUT-MG em frente à portaria do INSS. "Ainda que estas normas já estejam em vigor, não podemos

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ficar calados enquanto o governo está retirando uma con- quista nossa: o direito à saúde", observa o diretor do Sindica- to Rogério Djalma. Ele aproveita para convidar todos os tra- balhadores metalúrgicos de Betim, Igarapé e Bicas a partici- parem do protesto.

Saúde

O Sindicato irá colocar à disposição dos interessados ôni- bus especiais que sairão de sua sede às 11 horas da próxima sexta-feira. Para integrar a delegação, basta entrar em con- tato com o Sindicato até esta quinta-feira e confirmar a pre- sença pelo telefone 532-2766. Não deixe de participar.

Normas dificultam caracterização de doenças do trabalho

As alterações promovidas pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) nas normas técnicas que regulamen- tam as doenças adquiridas no local de trabalho devem dificul- tar a concessão de benefícios aos trabalhadores acidentados.

A opinião é do coordenador médico do Núcleo de Saúde Ocupacional da Previdência Social (Nusat), Ivan Cunha Melo, para quem as novas normas, já em vigor desde 19 de agosto deste ano, limitam uma série de conquistas existentes no que diz respeito aos direitos previdenciários e às doenças ocupacionais. As novas normas promovem mudanças signi- ficativas nas leis que se referem ás Lesões por Esforços Repetitivos (LER), Benzenismo, Perda Auditiva Induzida por Ruído (PAIR) e as Pneumoconioses (Silicoses).

Uma das principais alterações é que, a partir de agora, só serão encaminhados á Perícia Médica da Previdência aque- les casos em que o Laudo do Exame Médico (LEM), que faz parte da Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT), com- prove que o indivíduo está incapaz para o trabalho por mais de 15 dias. Aí está a raiz do problema.

Segundo Ivan, algumas doenças, mesmo que limitem a capacidade de trabalho, não impedem o trabalhador de exe- cutar suas funções. "Como o PAIR é uma doença que co- meça de maneira muito lenta e pode demorar até 20 anos para se manifestar, a maioria dos médicos não vai afirmar que o trabalhador está incapaz", diz.

A possibilidade de não atestar a incapacidade para o traba- lho, no caso da PAIR, está expressa em um dos itens da norma do INSS. "... De maneira geral", diz a norma, "a perda auditi- va neurosensorial (lesão nervosa dentro do ouvido) ou mesmo a redução da capacidade auditiva não interfere nas habilidades requeridas na maioria das atividades operacionais".

"Isto não é verdade", rebate o médico e fiscal do Traba- lho, Aírton Marinho da Silva, da Delegacia Regional do Tra- balho (DRT), também professor de Medicina do Trabalho na Faculdade de Ciências Médicas da UFMG. "Um metalúrgico que trabalha com prensas depende muito da audição para desempenhar bem seu trabalho. A audição é um sentido im- portantíssimo, que interfere sim na habilidade do trabalhador, porque prejudica a comunicação e até o recebimento de or- dens", esclare.

O novo texto do INSS diz, ainda, que "a PAIR não deve desclassificar o trabalhador para o exercício profissional, pois além de não interferir em sua capacidade laborativa, pode não ser de origem ocupacional". Para o técnico de seguran- ça do Sindicato, Osvaldo Xavier, o INSS busca, na verdade, uma forma de descaracterizar a doença como do trabalho.

"E uma maneira de retirar da empresa a responsabilidade

pelo local e as condições inadequadas de trabalho", afirma.

Perícia não vai atender o trabalhador

O coordenador médico do Nusat avalia que as novas nor- mas têm em comum o fato de dificultarem o acesso dos tra- balhadores acidentados à Perícia Médica do INSS, único se- tor que, do ponto de vista legal, pode reconhecer oficialmente a doença.

Segundo ele, caso o trabalhador não tenha acesso à perí- cia, será praticamente impossível estabelecer o chamado "nexo causai" - fator que relaciona a doença com o trabalho. "Assim, se tornará mais difícil a concessão do auxílio aciden- te", salienta Ivan. "Este trabalhador não terá um direito que a lei lhe confere. E isto é o mais preocupante", completa.

"O trabalhador, sem dúvida, fica prejudicado", concorda Aírton. Segundo a norma, "uma seqüela (prejuízo) indenizável refere-se ao segurado, nunca cabendo a concessão de auxí- lio acidente pela inadequação do ambiente, cuja correção é obrigação da empresa". "Então, se a fábrica é dela e não do trabalhador", observa Airton.

Em alguns momentos, a nova legislação do INSS chega a ser cruel quando trata da não possibilidade de indenização. "Todos os casos de incapacidade funcional, com redução da capacidade auditiva sem repercussão laborativa ou simples diagnóstico de perda auditiva se constatados configuram um estado de alteração não indenizável dentro da legislação previdenciária", diz o texto do INSS.

Registro das doenças pode desaparecer

As novas normas do INSS também tendem a favorecer a chamada subnotificação das doenças, ou seja, o desapareci- mento do registro nas estatísticas nacionais. Esta possibilida- de preocupa o coordenador médico do Nusat, que faz previ- sões nada animadoras.

"A medida que o médico do trabalho reconhecer que exis- tem trabalhadores com um quadro inicial da doença, mas, ao mesmo tempo, notar que estes casos não estão sendo nem examinados na Perícia Médica, o que pode acontecer é que provavelmente as CATs vão deixar de ser emitidas". Ele acrescenta que se a Perícia não examinar o trabalhador e não estabelecer o nexo, também não haverá como saber quantos trabalhadores estão portando determinada doença.

A questão é bem mais grave do que parece. "Sem o res- paldo do perito, o trabalhador está apto para voltar ao traba- lho. A empresa, percebendo que este funcionário já tem uma

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QUINZENA Nc 27J 1€

determinada limitação, vai demiti-lo", afirma o técnico de segurança do Sindicato, Osvaldo Xavier. "Se a empresa re- ceber de volta um empregado que já tem uma lesão, nenhum empresário irá mantê-lo no emprego. Na primeira oportuni- dade, ele será demitido", concorda Airton.

Normas vinculam concessão de benefícios

Segundo os espcialistas, outra questão polêmica está no fato de, nas novas normas, estar estabelecido que "o auxílio acidente será sempre precedido de auxílio doença prévio". "Vinculou-se, erradamente, na norma, a concessão de um benefício a outro", avalia Ivan.

Atualmente, de acordo com o Regulamento dos Benefícios da Previdência Social, o auxílio doença é devido ao trabalhador acidentado que fica incapacitado para o seu trabalho por mais de 15 dias. "Mas", reafirma Ivan, "se nem encaminhado à Perí- cia ele será, é certo que não terá acesso ao benefício".

No caso da PAIR, a situação é um pouco pior. "O traba- lhador vai ficar afastado esperando o quê, se a lesão é irreversível?", questiona Airton, acrescentando que, desta forma, "o perito não vai conceder auxílio doença". "Vai ha- ver, certamente, uma redução na concessão do auxílio aci- dente", completa Ivan.

O auxílio acidente, que corresponde a 50% do salário benefício que deu origem ao auxílio doença por acidente de trabalho, é concedido como indenização ao segurado quan- do, mesmo após a consolidação das lesões sofridas, o traba- lhador apresenta dificuldades para exercer a mesma função. "Se o acidentado não terá auxílio doença, ele também nunca vai ter auxílio acidente", afirma Airton.

Retrocesso para os trabalhadores Além da PAIR, as novas normas em vigor também va-

lem para os casos de Lesão por Esforço Repetitivo, silicose e benzenismo.

De acordo com Ivan, do Nusat, no caso da LER, "é um absurdo considerar que o indivíduo só será reabilitado, rece- berá auxílio acidente ou ser aposentado em casos de final de linha, numa situação extremamente avançada, estando com lesões visíveis a olho nú". "E mais um retrocesso para os trabalhadores", afirma.

No que se refere à silicose - doença causada pelo depó- sito de poeira mineral nos pulmões - o problema não é menos grave. "O indivíduo que está com silicose em seu quadro inicial, não foi afastado do trabalho ou não mudou a sua fun- ção vai ter uma doença fatal. O pulmão vai chegar a um determinado ponto em que o trabalhador não conseguirá respi- rar nem para realizar mínimas atividades, como tomar banho ou calçar sapato", explica.

A situação é idêntica para os casos de benzenismo. "O benzeno é um produto químico que leva a uma grande inci- dência de câncer no sangue. Exposto a ele e sem ser afasta- do do trabalho, o indivíduo poderá morrer rapidamente", diz.

"O desaguar desta situação para mim é nítido. Estas nor- mas podem até não ter a conotação de favorecer as empre- sas, mas elas prejudicam os trabalhadores", completa.

Saúde

SAT a caminho da privatização Para o coordenador medito do Nusat, Ivan Cunha, as novas

normas do INSS podem estar abrindo caminho para uma pos- sível privatização do Seguro Acidente de Trabalho (SAT), que, "talvez seja o verdadeiro filé da previdência social no país".

Segundo ele, os benefícios da Previdência são movidos com um fluxo de caixa. Se o caixa está reduzido, são conce- didos menos benefícios e, evidentemente, esta situação inte- ressa a qualquer seguradora", diz. "Nós não temos provas, mas a impressão que temos é de que, realmente, há uma de- terminação para que haja uma redução da concessão de be- nefícios previdenciários no país", especula.

Convênio prisma prejudica metalúrgicos

Muitos trabalhadores portadores de doenças adquiridas no local de trabalho costumam ter que enfrentar outro problema sério: a classificação da doença profissional como comum.

Os prejuízos causados pelo "erro" na classificação são muitos - como por exemplo a perda da estabilidade de um ano, prevista na Lei 8.213/91 - e têm dificultado o acesso à indeni- zação, caso o trabalhador reclame este direito na Justiça.

No posto Prisma, da Fiat Automóveis, a prática de subnotificação de doenças tipicamente profissionais tem sido comum. "Nas últimas semanas, com o grande número de demissões ocorridas na Fiat, ao efetuar as homologações o Sindicato tem observado que muitos trabalhadores portado- res dessas doenças tiveram o benefício a que tinham direito subnotificado no posto Prisma da empresa", informa o técni- co de segurança do Sindicato, Osvaldo Xavier.

E o caso do metalúrgico Sebastião Tadeu Ferreira de Sou- za, 42 anos, que trabalhou na Fiat durante sete anos. Portador de LER (atual DORT), o metalúrgico foi atendido no posto médico da Fiat e encaminhado a cirurgia. Após a fase de recuperação, ele foi submetido a sessões de fisioterapia na própria empresa e recebeu alta para voltar ao trabalho, po- rém, sendo desviado de função.

O desvio de função por si só poderia ser considerado como o reconhecimento da empresa de que o problema de saúde do trabalhador foi adquirido na fábrica.

O convênio Prisma, administrado pela empresa, entretando fez constar na Carteira Profissional doença comum. Detalhe que Sebastião Tadeu só tomou conhecimento ao ter a sua rescisão ressalvada pelo Sindicato, que orientou o trabalha- dor sobre a subnotificação e os seus direitos.

Para Osvaldo Xavier, as recentes mudanças promovidas pelo governo federal nas normas técnicas apontam para o caminho de dificultar o reconhecimento das doenças tipica- mente relacionadas ao trabalho.

Para saber se o seu benefício foi concedido como do- ença profissional ou comum, o trabalhador deverá verifi- car na carta de concessão do INSS se constam os códi- gos 91, de auxílio-doença de acidente de trabalho, ou 31, referente ao auxílio-doença comum. No caso do convê- nio Prisma da Fiat, o metalúrgico deverá exigir que seja

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informado a ele qual o número e o código do benefício. Visando enfrentar essa realidade, o Sindicato está prepa-

rando um dossiê sobre a saúde dos trabalhadores da base. O documento será apresentado durante audiência pública na Assembléia Legislativa pleiteada pela Comissão Intersindical de Saúde da CUT/MG, com apoio do deputado Odelmo Leão (PT). A entidade também promoverá palestras em sua sede para informar os trabalhadores e definir estratégias conjun- tas de prevenção e combate às doenças profissionais.

Fiscalização do INSS não sabe quantas empresas foram autuadas este ano

O coordenador substituto do Serviço de Fiscalização do INSS em Minas, Márcio Soares Pereira, não soube informar quantas empresas foram autuadas este ano por descumprirem a determinação que as obriga a enviar ao setor de concessão de benefícios e ao Sindicato a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) quando o trabalhador é acometido por doen- ça profissional ou sofre algum acidente na fábrica. "Não te- nho estes números", disse Pereira.

A Lei 8.213/91 prevê, inclusive, multa para as empresas que deixam de emitir a CAT em caso de acidente ou doença adquirida no local de trabalho.

"A empresa deverá comunicar o acidente de trabalho à Previdência Social até o primeiro dia útil seguinte ao da ocor- rência e, em caso de morte, de imediato, à autoridade com- petente, sob pena de multa variável entre o limite mínimo e o limite máximo do salário-de-contribuição, sucessivamente aumentada nas reincidências, aplicada e cobrada da Previ- dência Social", é o que diz a lei.

Descompasso entre os órgãos dificulta solução para o problema

Segundo o Decreto 2.172/97, que regulamenta a conces- são de benefícios pela Previdência Social, caso a empresa não emita a CAT mas o acidente ou doença profissional se- jam comprovados pela Perícia Médica do INSS, o setor res- ponsável pela concessão de benefícios deve, então, comuni- car o fato à Fiscalização para a aplicação e cobrança da multa devida. Pereira, no entanto, não sabe dizer quais são os postos de concessão de benefício que têm encaminhado de- núncias à fiscalização do INSS.

"Se a empresa não encaminha a CAT não tomamos co- nhecimento do acidente ou doença", afirmou. Um claro sin- toma de que os postos de concessão de benefício e a fiscali- zação do INSS têm caminhado em direções opostas. O coor- denador substituto disse ainda que "as informações relacio- nadas a acidente de trabalho estão mais ligadas ao Ministério do Trabalho. Ao mesmo tempo, entretanto, ele afirma que, caso a empresa não emita a CAT, cabe ao setor de fiscaliza- ção do INSS emitir o laudo de infração.

O descompasso entre os diversos órgãos responsáveis pela assistência ao trabalhador fica ainda mais claro quando Pe- reira é questionado sobre o alto índice de DORT (antiga LER) registrado em Minas. Embora um levantamento realizado pelo Núcleo de Saúde Ocupacional (NUSAT) da Previdência So-

Saúde

ciai tenha levantado no ano passado, que em todo o Estado mais de 90% dos casos de doença profissional se referiam à DORT, o chefe substituto afirmou não ter conhecimento des- tes dados. "Estes dados estão em poder dos médicos da Pe- rícia Médica do INSS. Sugiro que a Perícia Médica envie um relatório de ocorrências para o Ministério do Trabalho, pois esta obrigação está na Constituição".

Pereira também não soube afirmar quantas ações regres- sivas contra empresas que lesionam trabalhadores em virtu- de de condições de trabalho inadequadas foram propostas este ano pelo INSS. "Esta questão diz respeito ao Ministério do Trabalho", informou. A ação regressiva pode ocorrer quan- do fica provado que a empresa está adoecendo trabalhado- res, repassando-os ao INSS, mas não ataca as causas dos problemas, ou seja, o ambiente de trabalho inadequado.

O artigo 176, do Decreto 611/92 prevê, entretanto, que "nos casos de negligência quanto às normas padrão de segu- rança e higiene do trabalho indicadas para a proteção indivi- dual e coletiva, a Previdência Social proporá ação regressiva contra os responsáveis". *

De acordo com a lei, esta ação só poderá ser ajuizada pelo INSS, portanto, ao contrário do que afirma o coordena- dor substituto.

Dicas para a sua saúde ♦ A nova legislação dificulta a caracterização da doença

como adquirida no trabalho depois que o trabalhador estiver demitido. Portanto, logo aos primeiros sintomas de doença profissional, procure um médico de sua confiança para avali- ar a gravidade do problema e, se possível, acompanhar a evo- lução ou não do caso e mantenha cópia de todo e qualquer documento que lhe for repassado (receita médica, atestado, comprovante de fisioterapia, etc). Se você não tiver um mé- dico de sua confiança, procure o Departamento de Saúde do Sindicato para receber informação.

♦ É comum o trabalhador ter o diagnóstico de sua doença negado pelos médicos. Ao negarem o diagnóstico, este médicos estão descumprindo o artigo 59 do Código de Ética Médica, que os obriga a fornecer o diagnóstico, "salvo quando a comunica- ção direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal". Por- tanto, se algum médico se negar a informá-lo sobre o seu real estado de saúde, lembre a ele o que diz o Código.

♦ O Sindicato orienta a todos os trabalhadores que não esperem o problema se manifestar ou tomar-se grave. Caso você identifique no local em que você trabalha alguma situa- ção (posto de trabalho inadequado, agentes poluidores noci- vos à saúde, etc) que possa fazer com que você adoeça, comunique o Sindicato.

♦ Valorize a atuação da Comissão Interna de Prevenção a Acidentes (CIPA) na empresa em que você trabalha. É a CIPA quem, na prática, deve lutar pela preservação da saúde do trabalhador enquanto ele estiver na fábrica. Cabe aos cipeiros exigir os equipamentos de proteção individual necessários à segurança do trabalhador e comunicar a empresa as situações que representam risco à integridade física dos colegas. □

C ser humane deixa de ser escrave auande se converte em arquitete d€ seu prcnrio destine" CUe euevara

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Mulher

Linha Direta - Dezembro/98 - N0 390

Verdadeiro ou falso?

"A libertação da mulher é condição fundamental para a libertação de toda a humanidade"

Karl Marx

Ivete Garcia*

Nós mulheres vivemos muito, mas também trabalha- mos bastante, temos filhos, os criamos, os educamos

em dupla jornada de trabalho, às vezes tripla ou até quádrupla. Atentas, disponíveis a qualquer momento, basta um choro ou uma febre fora de hora, e quem se levanta no meio da noite?

Responsáveis pela educa- ção dos filhos, pela estabilida- de familiar e pela administra- ção doméstica na maioria dos lares brasileiros, os papéis de- sempenhados pelas mulheres ainda são pouco reconhecidos pela sociedade.

Como se isso ícsse pouco, conforme dados do IBGE de 1997, no Brasil, as mulheres re- cebem cerca de 60% da remu- neração paga aos homens pelo mesmo tipo de trabalho realiza- do. Basta ser mulher para o sa- lário ser menor que o do homem. O quadro de mercado de traba- lho formal ou informal repete as características da realidade do- méstica, sendo agravado pela de- sigualdade de oportunidades en- tre homens e mulheres, além de outras formas de discriminação como raça ou origem.

Além disso, a prestação de serviços de natureza domésti- ca não é considerada na contagem de tempo para a Previ- dência Social no Brasil. Quando as mulheres conseguem com- pletar o tempo para aposentadoria, ainda têm que se sujeitar a proventos aviltantes e menores que os dos companheiros do sexo oposto.

A frase solta do presidente "Desrespeitando" Henrique Cardoso, que aliás é um especialista no (des)trato com traba- lhadores, sem-terra, aposentados e a população em geral, mais uma vez mostra toda sua (in)habilidade e (in)competência ao dizer que mulher vive muito e trabalha pouco.

HAORíçORES

Se vivemos muito, isso com certeza não se deve à ação do governo federal, uma vez que os maiores cortes de gastos são nas áreas sociais e, em especial, na saúde. Se trabalha- mos pouco, deve ser conseqüência da política recessiva e de

desemprego imposta pelo FMI e adotada por FHC.

A reação das mulheres não poderia ser outra senão repu- diar essa declaração tão infe- liz, inoportuna e falsa, bem como refutar a política nefas- ta de FHC. Justo neste mo- mento em que discutimos os Direitos Humanos, a Consci- ência Negra e o Combate à Violência Contra a Mulher, re- cebemos com profunda indig- nação mais essa violência.

Partindo de alguém que possui quatro aposentadorias superiores ao teto do INSS de R$ 1.081,50, conquistadas antes da idade limite de 65 anos, a atitude de FHC é ina- ceitável.

O que esperar mais de al- guém que (des)governa um país campeão em desigualda-

des, em desrespeito aos direitos humanos, que privatiza (en- trega) portos, estradas, empresas energéticas e telefônicas, que usa mais medidas provisórias que os atos arbitrários dos governos militares, que compra votos para garantir sua ree- leição, que usa métodos escusos para derrubar seus próprios auxiliares de (des)confiança.

A resposta das mulheres não pode ficar somente na in- dignação ou nas manifestações de repúdio. Devemos, de for- ma organizada, exigir a retratação pública do presidente e continuar lutando pela igualdade de oportunidades entre ho- mens e mulheres em todos os setores, consolidando os direi- tos humanos e resgatando a cidadania. D

*é socióloga, vereadora e membro da Comissão Executiva do DM de Santo André e da Secretaria Nacional de Mulheres do PT.

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/Hov. Popular Sem Fronteiras - N0 265

População de rua: não há lugar para eles Grades de ferro, lanças e outros recursos compõem a chamada

arquitetura antimendigo, em praças, viadutos, edifícios e igrejas. Paulo Pereira Uma

A moradora de rua Ana Maria tem uma barriga ainda niúda, mas já começa a sentir os movimentos do

bebê de um lado para outro, como "um peixinho dentro do aquário".

O marido, Carlos Roberto, ri à toa, nesse que parece um dos poucos momentos de felicidade em meio à dureza da vida nas ruas.

É o primeiro filho do casal, que há seis meses trocou o barraco de uma favela da Zona Sul da cidade de São Paulo por viadutos e praças do centro.

"Do jeito que as coisas iam, não dava mais. O aluguel estava caro pra chuchu, e a comida também. Tudo caro. Sem trabalho, não dá!", queixa-se Roberto.

Antes de ser mais um entre os aproximadamente 1,7 mi- lhão de paulistanos desempregados, "tirava o sustento da vida" como peão de obra. "Este país vai de mal a pior".

Assim como o bebê se movimenta no útero da mãe, os pais andam de um canto para outro da cidade, à procura de um lugar seguro para se esconder e dormir.

Já perderam a conta dos viadutos, praças e marquises que algum dia, nesses meses, e por algum tempo lhes servi- ram de moradia, até a polícia os desalojar e levar seus pou- cos pertences.

Cidade cercada O problema não é só a polícia, diz Roberto. De uns tem-

pos para cá, a vida tem ficado ainda mais difícil para quem faz da rua sua morada. "Estão colocando grade em tudo quanto é canto. A cidade está ficando todinha cercada", explica.

São Paulo não tem apenas ruas fechadas por cancelas, guaritas postadas em esquinas e casas rodeadas por cercas eletrificadas. Agora, bancos, teatros, hotéis e lojas do centro da cidade instalam grades de ferro pontiagudas em parapei- tos de vitrines e janelas. O objetivo: evitar que pessoas indesejadas sentem ou deitem nos espaços vazios.

Alguns até colocam em ação um dispositivo que os mora- dores de rua batizaram de "chuveirinho" ou "lavagem auto- mática". Trata-se de um cano, fixado no teto da marquise, que em determinadas horas da madrugada lança jatos d'água sobre a calçada.

A moda faz escola. Cercas de ferro compõem também cada vez mais o cenário de pátios e entradas de igrejas, e o objetivo é o mesmo: manter distantes os mendigos.

Há pouco mais de um ano, grades vêm ocupando até o último centímetro quadrado de cimento ou verde de muitos locais públicos, como praças, jardins, parques ou vão livres de passarelas e viadutos.

Na recém-inaugurada estação Parada Inglesa, da linha Norte-Sul do metrô, há espaços cercados de grades e pilares de concreto sob o viaduto. Um detalhe é inovador, em termos de arquitetura antimendigo: o piso debaixo do viaduto foi construído com paralelepípedos desnivelados e em pé.

Vale tudo para evitar a permanência dos moradores de rua no lugar. Outras estações, inclusive, estão sendo projetadas sem marquises.

Como lixo Algumas praças da região central ganharam algo a mais

que simples grades. Parte de sua área acabou virando esta- cionamento para a Companhia de Engenharia de Tráfego ou para a Polícia Militar.

Órgãos da Prefeitura e do Estado alegam que medidas como essas são adotadas por motivo de segurança, para "pro- teger os bens públicos dos vândalos".

Para entidades e organizações não-governamentais que lutam pela defesa dos direitos dos moradores de rua, isso tem outro nome: "intolerância e desrespeito".

O engenheiro Luiz Kohara, presidente do Centro de Di- reitos Humanos Gaspar Garcia, diz que se trata, na verdade, de uma verdadeira "faxina", essa que está sendo patrocina- da pelos poderes público e privado.

"Querem afastar o povo de rua do centro da cidade. A cerca de ferro é conseqüência de uma forma de pensar e de tratá-lo como lixo", afirma Kohara, que desde 1976 trabalha com a população de rua.

Para ele, o que está por trás da arquitetura antimendigo é também uma "postura de repressão", adotada pelos gover- nos municipais e estadual.

Essa repressão não se manifesta apenas em grades e nos "arrastões" patrocinados pela polícia. Há outras formas, mais sutis, que poucos percebem: "A maioria dos banheiros públi- cos da região central, por exemplo, está sendo fechada".

Pura covardia A queixa dos moradores de rua contra o "cerco" é geral.

Depois que colocaram grades ao redor de um banco que lhe servia de abrigo, o baiano Paulo Rogério Santos passou a dormir no relento, numa das calçadas da famosa Avenida Paulista, coração financeiro da cidade.

Ele, que há quatro anos deixou Jacobina, no interior da Bahia, para tentar a vida em São Paulo, diz que é "pura co- vardia" o que estão fazendo. "Ninguém pode mais ficar de- baixo de ponte ou marquise. Só sobra mesmo a rua".

E já que a rua é o único jeito, Rogério preferiu escolher

'€ ser liumane deixa de ser escravo ciuandc se ccnverte em arquitete de seu prouríe destine" Ciie Guevara

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uma bem movimentada. "Procuro sempre dormir em lugares onde passa muita gente. É mais seguro", ele diz. Certa vez, foi agredido por um grupo de rapazes desconhecidos, que diziam apenas "não gostar de mendigo".

Além de "arranjar uns trocados", estendendo o boné a quem passa pela calçada, Rogério também cata latinhas de alumínio em frente a restaurantes e bares da redonde- za. No fim da tarde, vai ao ferro-velho junto com o "irmão de rua" Roberto Aparecido. Pagam-lhe cinqüenta centa- vos o quilo.

Sobre os albergues que a Prefeitura coloca à disposição dos moradores de rua, Rogério é taxativo: "Não vou mais para albergue, de jeito nenhum. Lá tem muito maloqueiro, e a gente é tratado mal. Parece uma prisão".

A assessoria de imprensa da Secretaria Municipal da Fa- mília e Bem-Estar Social informa que os quinze albergues da cidade operam com apenas 60% de sua capacidade. "O que leva uma pessoa a recusar um abrigo, mesmo à custa de passar muito frio durante o inverno, é o desejo de manter sua autonomia e não se submeter a regras".

Projeto barrado O padre Júlio Lancellotti, vigário episcopal do povo de rua

da arquidiocese de São Paulo, tem outra opinião. Ele consi- dera que os albergues devem passar por profundas refor- mas. "O modelo implantado só controla, em vez de educar para a liberdade".

Lancellotti informa que, em maio de 1997, foi aprovada pela Câmara dos Vereadores da Lei 12.316, de autoria da vereadora petista Aldaíza Sposati, que tentava levar em con- ta as necessidades da população de rua.

Por essa lei, a Prefeitura ficava obrigada a implantar ime- diatamente mais albergues em todas as regiões da capital, com centros de serviços e restaurantes para os moradores de rua, entre outras medidas, e um horário ampliado de en- trada e saída.

O prefeito Celso Pitta, porém, suspendeu a lei, alegando inconstitucionalidade. Segundo ele, somente o Executivo pode propor leis que impliquem em gastos próprios.

Em maio de 1998, numa reunião com representantes do Fórum das Organizações dos Moradores de Rua, o prefeito prometeu apresentar à Câmara "outro projeto de lei, em vista de uma política de atendimento aos moradores de rua, que hoje necessitam de um amparo legal". Até hoje, nada.

Solidariedade zero Temas como arquitetura antimendigo, fechamento de ba-

nheiros públicos, construção de novos abrigos e violência ur- bana, entre outros, foram debatidos durante um simpósio in- ternacional realizado na Faculdade de Arquitetura e Urba- nismo da Universidade de São Paulo (USP), no início do mês passado.

Na ocasião, arquitetos, geógrafos, sociólogos e outros es- tudiosos, do Brasil e do exterior, refletiram sobre os "espaços públicos e a exclusão social".

Para uma das organizadoras do evento, a professora Ermínia Maricato, "o tratamento que vem sendo dado ao povo

de rua espelha o grau de desigualdade social do país". Ermínia, que já foi secretária municipal da Urbanização

durante a gestão da prefeita Luíza Erundina (PSB/SP), acre- dita que a sociedade não é apenas desigual. "É também ex- tremamente preconceituosa e pouco solidária".

O que mais preocupa a arquiteta é o surgimento de um tipo de arquitetura que não congrega, mas divide ainda mais as pessoas. "Isso é fruto da globalização, no sentido que des- monta as soluções coletivas, afirma a individualidade e a dis- puta. A solidariedade fica em último plano".

"Estética da iniqüidade"

Vigário episcopal do povo de rua da arquidiocese de São Paulo, o padre Júlio Lancellotti, a resposta mais

adequada contra esse tipo de procedimento é a solidarieda- de. Uma solidariedade que "não se esgota no episódio natali- no, mas que dura o ano todo".

Como o senhor avalia esse tipo de arquitetura de se- gregação, que está tomando pé nos centros urbanos?

Júlio Lancellotti - E mais uma forma de violência con- tra a população de rua. A arquitetura, uma ciência criada para congregar e acolher as pessoas, está sendo usada para afastar. No fundo, isso agrava ainda mais o apartheidsoc'\a\ em que vivemos. Em vez de eliminar a pobreza, estão que- rendo acabar de vez com os pobres. Além disso, em nome da segurança, privatizam o espaço público.

Pode explicar melhor? - A cidade está ficando com muitos espaços proibidos à

população de rua. O critério de participação é econômico. Quem tem dinheiro, pode. No shopping, por exemplo, não há uma cerca tão acintosa, mas o povo da rua não pode entrar, como não pode circular em determinados locais públicos da cidade.

Como definiria esse tipo de exclusão? - É a estética da iniqüidade. É pura hipocrisia tentar elimi-

nar dos olhos o problema que todos estão vendo. Os pobres incomodam. Até Igrejas entraram nessa

onda... - A cultura do apartheid está se espalhando por todos os

setores da sociedade. Em geral, as Igrejas também não sa- bem trabalhar com a população de rua. Acabam querendo agradar ao mesmo tempo a quem promove a segregação social e aos apartados, excluídos.

De que tipo de solidariedade a população de rua precisa ?

- Natal é uma ocasião em que se fazem muitas iniciativas, que, em geral, não têm continuidade. Falta um compromisso para assumir o povo de rua, com liberdade, o ano todo. Não basta dar comida para o povo de rua. É preciso se compro- meter para que esse povo desfrute da liberdade de comer o que quiser e quando quiser.

A solidariedade não pode ser um episódio natalino. E pre- ciso ir além. O gesto deve se transformar num compromisso cotidiano. □

"€ ser humane deixa de ser escrave ciuandc se converte em arquiteto de seu próprio destino" Che Guevara

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Eccnemia Jornal dos Economistas - Outubro/98 - N0 114 CORECON/RJ - SINDECON/RJ - IERJ

Crise asiática e crise da economia burguesa Entre as inúmeras vítimas da atual crise capitalista se encontram - além da

hecatombe humana - mitos da teologia econômica, tratados como ciência nas universidades e nos meios de comunicação. Neste sentido, o conceito de

"destruição criadora", de Schumpeter, tem, enfim, um efeito saudávelepositivo para a humanidade.

Heinz Dieterich Steffan*

Predição e cientifícidade Graças aos trabalhos e Hempel-Oppenheimer, sabe

mos que a capacidade preditiva de uma dada ciência reflete o grau de sua cientifícidade, pois a estrutura lógica de uma predição científica é idêntica à da explicação. Se, tendo como referência as últimas crises, avaliarmos a economia burguesa a partir desse critério, veremos que a taxa de êxito de seus prognósticos provavelmente não supera a da astrolo- gia. Foi assim com as predições de Michel Camdessus sobre a crise da Rússia; a laudatio do Banco Mundial e do FMI, em 1997, sobre as "economias sãs" da Coréia, Malásia, Tailândia, Indonésia e Filipinas; as predições sobre a capaci- dade creditícia dos países neocoloniais nos anos 70; os prog- nósticos feitos antes dos colapsos mexicanos de 1982 e 1994; e, novamente, a interpretação da crise asiática proposta pelo governo Clinton e o FMI.

O governo americano e o FMI enfocaram a crise a partir de três suposições: (a) tratava-se apenas de "pequenas in- conveniências no caminho" (Clinton); (b) era uma crise lo- cal; (c) o FMI poderia restaurar a estabilidade econômica sem maiores problemas. Todas as hipóteses se revelaram falsas.

A crise já é mundial. O crescimento do produto mundial, previsto pelo FMI, em outubro de 1997, para 4,3%, cairá em 1998 e 1999 para algo em torno de 1,5%. Se levarmos em conta a taxa de crescimento da população, veremos que o capitalismo está estagnado, podendo até mesmo apresentar um crescimento/»^ capita negativo nos próximos anos. O Japão, maior economia da Ásia, está em recessão profunda. Brasil e México, as maiores economias da América Latina, enfrentam iliquidez aguda.

Em vez de controlar a crise, o FMI entrou (a) em um sério problema de liquidez para operações futuras de ajuda, (b) teve que abandonar sua ortodoxia fiscal e monetária, e (c) gerou sérias tensões com as elites asiáticas por causa de suas políticas consideradas neocoloniais.

Os constantes equívocos de predição dos experts bur- gueses nos conduzem a uma interferência ineludível: eles não podem prever o comportamento do sistema porque não com- preendem as relações causais - determinísticas, probabilísticas e aleatórias - entre suas principais variáveis. Logo, para tra- tar de seu objetivo de estudo, têm que lançar mão de descri-

ções adhoc, explicações postfestum e modelos platônicos. Em resumo: a economia burguesa - excetuando-se certos

métodos matemáticos e algumas correlações empíricas (ver- dadeiras porém triviais, por serem evidentes) - é, essencial- mente, um sistema de propaganda, ou uma teologia. O totem (Deus) desta teologia é o livre mercado.

O mercado Os executivos e ideólogos do capital geralmente definem

o mercado como um sistema que possui duas grandes propri- edades: (a) é de natureza cibernética e (b) apresenta eficiên- cia, justiça e compatibilidade com a democracia superiores às obtidas pela ação do Estado.

Vejamos se isso é verdade. Um sistema cibernético se caracteriza por sua capacidade de auto-regular-se, em interação com o entorno. Neste sentido, o capitalismo é um sistema cibernético. Mas é um sistema cibernético sui generis, pois seu comportamento está determinado essen- cialmente pelas decisões e interesses de uma elite empre- sarial global que soma mais ou menos 2 mil capitalistas (ao contrário do sistema solar, cujas forças determinantes e cuja lógica de evolução escapam completamente da influência humana).

Os economistas do sistema ocultam esta verdade para atingir objetivos doutrinários: (a) pretendem livrar a burgue- sia de suas responsabilidades sociopolíticas, pois, se o mer- cado mundial é um sistema "auto-regulado" (ou seja, situado fora do controle humano), então empresários e políticos não são responsáveis pelos desastres capitalistas; (b) querem paralisar a resistência ao neoliberalismo, pois, se este repre- senta forças universais, então resistir seria quixotesco. Foi isso que Ruggieri, chefe da Organização Mundial do Comér- cio, quis expressar, ao dizer que "querem parar a globalização" era equivalente a "querer parar a rotação da Terra".

A "mão invisível" de Adam Smith foi o primeiro conceito doutrinário que a economia burguesa cunhou para este siste- ma cibernético sui generis: reflete o caráter auto-regulador do mercado capitalista, mas o apreende sob forma ideológi- ca, afirmando o dogma da otimização do esforço econômico humano. Fiedrich Von Hayek, Milton Friedmann e outros pro- pagandistas da economia burguesa simplesmente moderni- zaram o tema com os jargões do momento.

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Ecencmía Se o mercado é uma instituição produzida pelo homem -

como a guerra -, não há nenhuma razão a priori que impe- ça os homens de guiá-lo. Se o capitalismo (global) não res- ponde aos interesses das maiorias, isso não ocorre porque sua constituição sistêmica o impossibilite, mas porque os in- teresses e poderes das elites o tornam impermeável às ne- cessidades das maiorias.

Ainda mais ideológica que a noção até aqui discutida é a noção de "livre mercado", ou seja, de um mercado que atua obedecendo aos determinantes de oferta e de- manda, sem regulação por parte do Estado e da socieda- de. Começando com as duas mercadorias centrais do sis- tema (trabalho e capital), passando pelos mercados setoriais mais importantes no mundo (agricultura, aero- náutica, automóveis, informática, etc), até a instituição capitalista por excelência (as bolsas de valores) - nada no mundo real sustenta essa ficção. Se o livre mercado existisse, o capital poderia economizar os altos salários dos 20 mil funcionários do Banco Mundial, do FMI e dos ministérios da Economia.

Tampouco há evidências empíricas para sustentar o mito de que uma economia de mercado seja, a priori, mais efici- ente, justa e democrática que uma economia planificada. Se isso fosse correto, não se entenderia por que, em situa- ções de guerra, quando as nações precisam atingir a máxi- ma eficiência possível, todos os Estados interferem no sis- tema para edificar economias centralmente planejadas e controladas, como ocorreu, por exemplo, nos Estados Uni- dos, Alemanha e Japão durante a Segunda Guerra Mundi- al. O mesmo vale para a reação americana ao trauma do Sputnik ou à incapacidade competitiva de sua indústria de micro-chips nos anos 80. Segundo a lógica de Von Hayek e demais neoliberais, o comportamento capitalista deveria apontar em direção contrária.

Estas reflexões têm uma implicação importante: a diferen- ça entre a economia planejada, ou socialista, e a capitalista de mercado não consiste em que a primeira opere como um sis- tema de decisões humanas e a segunda como um sistema auto-regulado não-humano. A dinâmica de ambos os siste- mas depende de coletivos humanos, um formado por funcio- nários estatais de um partido político, o outro por donos, exe- cutivos e políticos vinculados ao capital. Não há razão para se pensar que as decisões do segundo coletivo são mais eficien- tes, democráticas e justas que as do primeiro. Não há evidên- cias empíricas que o demonstrem.

A medida do valor Outro dos grandes problemas científicos da economia bur-

guesa decorre da ausência de um sistema de unidades de medida absolutas dos valores objetivos de produtos e servi- ços. A física ainda estaria na alquimia medieval se operasse (como o faz a economia burguesa com sua teoria subjetiva do valor) com medidas erráticas e subjetivas, nas quais o valor de mercado de uma empresa pode ser de US$ 6 bilhões em um determinado momento e, duas semanas depois, de US$ 3 bilhões (como ocorreu quando da crise asiática), apesar de o capital físico e "humano" da empresa permanecer exatamen- te o mesmo.

Já é tempo de resgatar a economia política das mãos dos executivos e propagandistas do capital e devolver a essa dis- ciplina o status científico e ético que deveria ter, como um subsistema da polis que dá de comer a todos os seus cida- dãos, em lugar de ser uma máquina de produção de lucros, que destrói não só milhões de vidas a cada ano, mas o próprio sentido da existência humana como tal. □

*Heinz Dieterich Steffan, é doutor em Ciências Sociais e Eco- nômicas, Universidade Autônomas Metropolitana, México.

Inverta - 02 a 08/12/98 - N0 183

Nos últimos 30 dias para o ano de viragem do século Nos últimos 30 dias de 1998 e em todos os recantos

do planeta, o influxo dos acontecimentos realçam, com toda nitidez, os problemas fundamentais que atormen- tarão a humanidade durante o ano de viragem do século XX ao XXI. E quais são, em linhas gerais, os acontecimentos presentes nestes últimos 30 dias?

Sem dúvida, a crise econômica que emergiu com o crack da bolsa de Hong Kong, em outubro de 1997, ameaçando toda a economia mundial capitalista durante todo o ano de 1998, a repetir a depressão econômica de 1929, constitui um destes problemas. Ela não somente pôs a nu a ideologia neoliberal que revestiu o processo de globalização das rela- ções econômicas dos últimos 30 anos, como revelou tam- bém a completa falência deste modo de produção para su- perar as contradições que ele mesmo criou em seu desen- volvimento. Assim, a crise econômica recolocou no centro

das preocupações humanas, neste final de século, o proble- ma do Socialismo. E neste contexto, à pergunta "por quem os sinos dobram"? Pode-se dizer com certeza: não é pelo capitalismo!

O primeiro problema do qual a humanidade não tem como se desfazer nestes últimos dias que antecedem a 1999 é o problema da fome e da miséria. Elas atingem a mais de um bilhão de seres humanos em todo o planeta. A relativa expli- cação deste fato encontra-se nos dados do consumo mundial, fornecidos pela ONU, em que apenas 225 supermagnatas con- centram a riqueza equivalente a 47% da população de todo o planeta; e entre estes, apenas 3 (Bill Gates, o sultão de Brunei e F. Anschutz) concentram uma soma de riquezas maior que o PIB dos 48 países mais pobres. Em linhas gerais, 20% da população mundial consome 86% de tudo que é produzido no planeta, enquanto 80% da população se mata pelas migalhas

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Ecencmía

dos 14% restantes. Mas o que leva a tal desproporção no consumo, entre a população, da produção mundial, senão o direito de propriedade privada desta mesma produção. Neste caso, o problema da fome coloca na ordem do dia o problema da forma social de propriedade. E a questão que se coloca é a seguinte: é possível superar o problema da fome e da misé- ria no mundo, mantendo-se a forma social de propriedade, isto é, sob a forma social de propriedade privada capitalista?

Par e passo a esta situação desesperadora, encontra-se também inextricável a estes últimos dias o problema da epide- mia do desemprego que atinge cerca de um bilhão de trabalha- dores em todo o planeta. E este problema é tão maior, quando se considera a onda de privatização dos serviços públicos (saú- de, educação, água potável, luz e esgotamento sanitário) e a redução das conquistas trabalhistas, que corta o salário indire- to dos trabalhadores, pois sob o influxo do gigantesco exército industrial de reserva, resulta na queda exponencial da massa salarial em relação ao capital, na produção mundial de bens e serviços e, em conseqüência, cresce também o trabalho infor- mal dando curso a um novo processo de acumulação primiti- va... Um retorno à barbárie. Quem não acredite, explique-se: Por que mais e mais voltam a crescer as denúncias de traba- lho escravo em todo o mundo? Por que mais e mais voltam as denúncias sobre a exploração do trabalho infantil? Tudo não parece com aquelas narrativas de Marx em "O Capi- tal"? Sem dúvida, o desemprego, cuja abordagem mais vul- gar repousa sua causa na mecânica conseqüência da revolu- ção tecnológica (substituição do homem pela máquina), não justifica sua humanidade, mas tão somente sua inumanidade, já que a revolução tecnológica não é a causadora de desem- prego, mas aqueles que a controlam e aplicam com o objetivo da obtenção de mais lucros, mais e mais propriedade sobre o capital... Portanto, a utilização do desemprego no modo de produção capitalista, cuja própria lógica de desenvolvimento aplica tecnologia e exército industrial de reserva (desempre- go latente, flutuante ou estagnado), é um meio para obtenção de mais-valia e lucro, em síntese acumulação de propriedade privada sobre o capital: Monopólio.

Um outro problema fundamental que se apresenta para humanidade, nestes últimos dias que antecedem 1999, são as epidemias, entre as quais se destaca a Aids que, segundo divulgação dos dados oficiais, atinge cerca de 30 milhões de pessoas em todo o mundo, e o retorno de epidemias anterior- mente consideradas resolvidas, como a tuberculose e lepra. Neste particular, mais de um terço de toda humanidade se encontra sob esta ameaça. Aqui a questão fundamental é: até que ponto os recursos destinados a pesquisas para con- trole e cura destes males têm sido suficientes? E conjunta- mente à questão, poderia a descoberta da cura resolver este problema? Parece que a resposta a estas duas questões, nos dias atuais, se resume a uma única resposta: não. Em primei- ro lugar, porque o retorno de antigas epidemias, já há muito consideradas erradicadas e curáveis, como Tuberculose, Hanseníase e outras, demonstra que não basta a cura; são necessários programas que dêem acesso a todos a educação de prevenção destas epidemias e endemias, do mesmo modo

que o controle e a cura. Em segundo lugar, há um problema relativo aos investimentos neste tipo de pesquisa e tecnologia, pois, pela dimensão de catástrofe destas doenças, sua utiliza- ção para fins lucrativos diretos sofreria a coerção social. Deste modo toda revolução tecnológica, que atinge a biogenética, se produz a conta-gotas nos laboratórios e centros de pesqui- sas das grandes corporações privadas. No domínio público, tudo se resume à ótica da redução do estado na economia. Aqui o tamanho da dificuldade pode-se medir pelo fato de que nos EEUU gastam-se 8 bilhões de dólares em cosméti- cos, enquanto o resto do mundo gasta 6 bilhões em educa- ção; no fato dos europeus gastarem 11 bilhões de dólares em guloseimas e sorvetes, enquanto os países mais pobres gas tam 9 bilhões no pagamento dos serviços sanitários e água potável. Em resumo, seria por demais imaginar que a propri- edade privada sobre as descobertas da cura da Aids, Câncer e outros males inverossímeis à humanidade impossibilitaria que todos pudessem ter acesso a cura? Que a capitalização da produção desta cura implica o necessário mercado de consumo ou demanda e que sem esta não há aquela? Então o problema para a humanidade continua e se apresentará com mais violência e ameaçador.

Contudo, salta-nos aos olhos o problema da Democracia, realçada, nos últimos dias com o processo de extradição, exi- gido pelos juizes espanhóis contra o General Ditador e As- sassino Augusto Pinochet. Nele se sintetiza a solução não somente do feixe de questões que a humanidade ergue como problemas e a espera por solução, a reclamar a possibilidade de um mundo mais justo, digno e igualitário. Aqui o problema não é o julgamento de um assassino, que exterminou milha- res de pessoas direta e indiretamente. Não estamos também falando do julgamento da tortura, como método de aniquila- mento humano, pela tara; não se está falando também dos valores democráticos burgueses e cínicos, como os que pre- gam o governo americano. Aqui o problema posto pela hu- manidade é o problema da democracia, como regime político e institucional que repousa num corpo doutrinário de valores (ou princípios) que se nega pela essência, ou seja, a ditadura de classe, seja sob vestes militares ou civis. E isto não é nada mais que a revelação da sua limitação e incapacidade para solucionar os problemas humanos.

Os postulados doutrinários do liberte, igualité e fraternité, sob o mando do governo do povo, pelo povo e para o povo, se consuma na idéia de quem é o povo? Neste particular o dici- onário burguês responde: "Conjunto de indivíduos que falam a mesma língua, têm costumes e hábitos idênticos, afinidade de interesses, uma história e tradições comuns". E deste modo, não estamos falando de povo nenhum em particular, porque este conceito, via de regra, não se aplica, em sua totalidade, ao povo de nenhum país do mundo, sob o regime capitalista. Neste, a propriedade privada opõe frontalmente interesses, história e tradições, subdividindo este povo em classes, e a língua que prevalece é sempre aquela dos proprietários. Neste sentido, o julgamento de Pinochet pelos europeus, cuja língua não lhe é estranha, os costumes não lhes são estranhos, mui- to menos os interesses e tradições, particularmente a Espanha

€ ser humane deí^a de ser escrave ciuandc se cenverte em arauítétc de seu prépríe destine" Che euevara

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de Franco, nada fere este conceito genérico que permeia os valores democráticos burgueses. Mas acontece que os prin- cípios democráticos também se expressam pelos direitos dos povos e nações à soberania e autodeterminação, não permi- tindo a ingerência de uns sobre os outros. E tendo em vista isso, trata-se de um ato de violação da soberania do povo chileno o julgamento de Pinochet pelo povo espanhol ou fran- cês, ou inglês, ou holandês... etc.

Assim, a própria luta pela democracia violenta a própria democracia, e o exercício desta última nega-se a si mesmo como instrumento de soberania e legitimidade de estados e nações. Mas o que há de novo neste problema, se o próprio ato golpista, que levou Pinochet ao Palácio de La Mofíeda, assassinou o presidente eleito. Salvador Allende, e com ele milhares de chilenos que defendiam a manutenção do gover- no socialista, democraticamente eleito pelo povo; além disso contou com a contumaz ajuda militar e financeira dos EEUU?

Então de que soberania reclamar agora? Mas nada disso

Eccnomía

apaga o fato do fracasso da democracia como forma de go- verno capaz de proporcionar justiça, igualdade e dignidade, e ao mesmo tempo soberania e independência, sob o regime capitalista.

Deste modo volta-se à questão inicial dos problemas pos- tos pela humanidade neste final de século e que ecoam nes- tes últimos dias para o início do ano de viragem do milênio. Neles estão com toda força a questão do socialismo. E se a Europa julga Pinochet, não julga-o somente pela atrocidade do assassinato e tortura de milhares de chilenos, mas sobre- tudo pelo assassinato de uma via para o socialismo, que até o momento tem sido o principal conteúdo de todo o processo deste novo retorno da social-democracia aos governos da Europa e seus valores democráticos burgueses. Mas, neste caso, cedo ou tarde entram contradição com a própria essên- cia deste conteúdo, e o socialismo continuará como problema para a humanidade no capitalismo, que se soluciona pela re- volução proletária. □

Revista Sem Terra - Jul/Ago/Set/98 - N° 5

A crise econômica brasileira Reinaldo Gonçalves*

As reservas internacionais do país sofreram perdas de US$ 30 bilhões em dois meses, tendo caído 40%,

pois se reduziram de mais de US$ 72 bilhões para US$ 42 bilhões. A inadimplência de pessoas físicas tem batido recor- des históricos em São Paulo nos últimos meses. Os índices mais altos nos últimos quarenta anos. O número de carnes em atraso cresceu 81% em setembro de 1998, comparativa- mente ao mesmo mês de 1997. Metade das pessoas deixa- ram em atraso mais de 491 mil carnes porque perderam o emprego. De fato, em São Paulo, para cada quatro pessoas trabalhando há um desempregado.

Enquanto o país se afunda na crise econômica e social, o "dinamismo" da economia brasileira concentra-se na "indús- tria do medo", que tem crescido 40% ao ano, vendendo bens e serviços como treinamento anti-sequestro, escolta, armas e carros blindados. Isto faz parte da herança trágica do gover- no FHC.

Verdades ocultas Na reunião do FMI, em Washington, no final de setembro,

autoridades da área econômica do governo FHC escutaram verdades que, aqui no país, procuram esconder do povo bra- sileiro. Dentre elas, destaca-se a vergonhosa concentração de renda, negligenciada pelo governo FHC. E mais, fica evi- dente, em Washington, que a crise do Brasil decorre de erros cometidos pelo governo. A culpa da crise é do governo FHC que provocou o enorme endividamento externo do país, o perigoso aumento da dívida externa de curto prazo, e a ma- nutenção artificial do dólar barato.

As turbulências recentes no cenário internacional só afe- taram países com governos incompetentes e irresponsáveis.

que jogaram suas economias em uma situação de vulnerabilidade externa e, portanto, em trajetórias de instabi- lidade e crise. Entretanto, há vários países que estão muito longe de uma situação de crise, como a China, a índia, a Nova Zelândia, a Austrália, Portugal, França, etc.

As conseqüências de mais um governo FHC são evidentes. Não há dúvida de que a política econômica de FHC significará uma recessão profunda no futuro próximo. Este ano, o PIB bra- sileiro deverá crescer, na melhor das hipóteses, apenas 1% e a "descida de ladeira" deverá se acelerar e não será surpresa alguma se a renda cair 5% em 1999. A trajetória da renda e da produção no governo FHC é medíocre - desaceleração - recessão - depressão. FHC é crise e instabilidade.

Receituário de sempre O governo FHC submete-se em Washington às pressões

de organismos multilaterais e de governos de países interes- sados no mercado brasileiro. Submeter-se a um acordo com o FMI é procurar a receita não para a cura dos males do país, mas sim para o agravamento dos seus problemas. O receituário do FMI não funcionou nem na América Latina e nem na África nos anos 80. O FMI também fracassou nas suas iniciativas recentes na Ásia neste último ano.

O resultado de um acordo com o FMI é previsível: recessão profunda, desemprego dramático, turbulência social e maior vulnerabilidade externa. Quem duvidar é só ver a nossa pró- pria trajetória nos anos 80 e observar a dramaticidade de alguns países asiáticos no momento.

O FMI não está preocupado com os verdadeiros proble- mas do país. Seu objetivo é defender os interesses dos agen- tes do sistema financeiro internacional.

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O pacote de recursos externos que está sendo negociado deverá envolver corte indiscriminado de gastos públicos, contratação brutal do crédito, manutenção de elevadas taxas de juros e do processo de liberalização comercial, financeiro e cambial. Na ótica do FMI, para que não haja impacto infla- cionário significativo da desvalorização cambial no curto pra- zo, será preciso uma queda dramática do nível de renda dos brasileiros. Quanto menor a desvalorização cambial negocia- da entre o FMI e o governo FHC, maior será a recessão econômica.

Não devemos esquecer que países asiáticos, com gover- no muito mais comprometidos com a defesa da economia nacional do que o governo FHC, tiveram que fazer acordos que provocaram uma depressão econômica sem preceden- tes na Ásia. Estima-se quedas do PIB em 1998 de 15% na Indonésia, 8% na Tailândia e 7% na Coréia do Sul.

Abertura forçada Os governos dos países desenvolvidos, ao desembolsa-

rem recursos num pacote de socorro para o governo FHC, exigirão concessões (não escritas, mas compromissos políti- cos que serão cobrados regularmente). Pode-se esperar, en- tão, pressões para maior acesso ao mercado brasileiro de bens e serviços (por exemplo, aceleração da Alça); manu- tenção da vulnerabilidade externa do país com o avanço da liberalização comercial, financeira e cambial; grandes e bons negócios na privatização; concessões de serviços públicos; e o alinhamento cada vez mais automático do Brasil às posi- ções hegemônicas nos foros internacionais.

A vulnerabilidade externa e a perda de soberania deverão aumentar ainda mais. Se o Brasil não fosse um país e sim uma pessoa, poderíamos falar em perda da própria dignidade do brasileiro.

De que forma o governo FHC, no seu segundo mandato, pretende enfrentar os problemas criados por ele mesmo no primeiro mandato?

As medidas anunciadas pelo governo para enfrentar a atual crise econômica caracterizam-se por quatro aspec- tos. O primeiro é que elas refletem a "linha de menor resis- tência", no sentido de que optaram por medidas que são mais fáceis do ponto de vista operacional. Este é o caso do aumento da alíquota da CPMF de 0,2% para 0,38%, do au- mento da contribuição previdenciária dos servidores fede- rais da ativa para até 20% e a instituição de uma alíquota de 11 % para os servidores inativos, além do aumento da alíquota da Cofins. Deve-se notar que o projeto de reforma tributá- ria, que deve enfrentar fortes resistências, ainda não foi concluído pelo governo.

O segundo aspecto refere-se ao evidente conteúdo de in- justiça fiscal envolvido nas principais medidas do governo. A CPMF é um imposto altamente regressivo, pois a mesma alíquota é aplicada sobre os cheques, independentemente do valor. Assim, um cheque no super mercado para comprar a cesta básica do trabalhador é taxado com a mesma alíquota de um cheque emitido pelos ricos para a construção de um jardim de inverno em uma casa de alto luxo.

O terceiro aspecto refere-se ao fato de que as medidas

I mu miei do governo vão incidir mais pesadamente sobre forças soci- ais mais frágeis da sociedade. Este é o caso do aumento da contribuição previdenciária dos servidores públicos federais.

O quarto e último aspecto é que as medidas de ajuste fiscal negligenciam a causa básica da atual crise macroeconômica, que é a vulnerabilidade das contas exter- nas. Assim, a redução da renda e dos gastos das pessoas deverá ter um impacto relativamente pouco expressivo sobre as contas externas do país, que estão muito deficitárias. Isto decorre do fato de que o problema das contas externas é conseqüência, em grande medida, do processo de liberalização cambial, financeira e comercial iniciado por Collor e aprofundado e ampliado por FHC. O governo decidiu manter o atual processo de liberalização, que beneficia as classes ricas e dominantes, e coloca o país em uma trajetória perma- nente de instabilidade e crise.

Medidas alternativas Pode-se contrastar o ajuste fiscal do governo FHC, com

base nas medidas aplicadas, com medidas alternativas de ajus- te fiscal que, além de terem um impacto maior em termos de arrecadação, envolveriam um elemento de progressividade fiscal (ricos pagando proporcionalmente mais do que os po- bres), e seriam importantes para reduzir o desequilíbrio das contas externas.

Como medida alternativa ao pacote fiscal do governo pode- se mencionar o imposto único sobre riqueza, também conheci- do como imposto de solidariedade. Este imposto difere do im- posto anual sobre grandes fortunas, cujo projeto de lei do pró- prio FHC é tão generoso com os ricos, que acaba tendo um efeito mínimo sobre a arrecadação fiscal. O imposto único so- bre grandes fortunas, ou imposto de solidariedade, já foi aplica- do em várias economias européias (Bélgica, Alemanha, Fran- ça, etc), quando estas se encontraram em verdadeiras encru- zilhadas, que exigiam sacrifícios do povo, mas também das elites. Daí, a idéia de um imposto de solidariedade.

Para se ter uma idéia do impacto de um imposto aplicado de uma única vez sobre o patrimônio dos ricos, deve-se levar em conta que o estoque líquido de riqueza privada no Brasil em 1995 era de R$ 1.857 bilhões, isto é, quase dois trilhões de reais. Esta riqueza total está composta da seguinte forma: construções - R$ 1.370 bilhões; máquinas e equipamentos - R$ 322 bilhões; bens de consumo - R$ 113 bilhões; e ativos financeiros (líquido) - R$ 52 bilhões. Há evidência de que 53% desta riqueza esteja concentrada no grupo das famílias mais ricas do país, isto é, 1 % da população brasileira controla uma riqueza da ordem de US$ I trilhão.

Um imposto único de 10% sobre a riqueza das famílias mais ricas significaria algo como R$ 100 bilhões. Mesmo que haja uma perda, por motivos operacionais de cerca de 30%, o efeito em termos de arrecadação fiscal seria da ordem de R$ 70 bilhões. A importância deste número é facilmente vis- ta quando constatamos que a estimativa do ajuste fiscal do governo FHC é algo próximo a R$ 25 bilhões.

Remessas ao exterior Outra medida alternativa seria um imposto sobre remessa

"€ ser humane deixa de ser escrave ciuande se ccnvette em arauitetc de seu ureprie destine" Clie Guevara

CLINZENA Nc 275 2C

Eccncmía de valores para o exterior. Neste sentido, todos os que com- prassem dólares no mercado cambial seriam obrigados a re- colher para os cofres públicos um determinado percentual. Para ilustrar, somente no mês de outubro de 1998 no merca- do de câmbio foram comprados US$ 15 bilhões para fins comerciais (importação) e financeiro. Neste valor não estão incluídas as transações no mercado de câmbio flutuante. O imposto sobre remessas de valores para o exterior de 10% representaria uma arrecadação fiscal de pelo menos US$ 1,5 bilhão, ou aproximadamente R$ 1,8 bilhão em um único mês. No ano, a arrecadação poderia chegar a R$ 22 bilhões.

A vantagem especifica deste imposto sobre remessa de valores para o exterior é que ele reduziria, além do déficit público, o elevado déficit das contas externas do país. As medidas propostas pelo governo FHC não têm esta vanta-

gem e deverão manter o país numa trajetória permanente de instabilidade e crise.

Em 1999, o desemprego poderá chegar a níveis estarrecedores e socialmente explosivos. A violência urbana e rural deverá crescer exponencialmente. A elite tenta se proteger, comprando bens e serviços da "indústria do medo", enquanto a classe média exasperada vai exigir cada vez mais disciplina, ordem e repressão. A trajetória de instabilidade e crise provocada pelos erros, incompetência e inoperância do governo FHC colocam cada vez mais em risco o próprio Es- tado, a sociedade e a democracia. O

* Reínaldo Gonçalves, éprofessor titular de Economia Internaci- onal da UFRJe vice-presidente do Conselho Regional de Econo- mia/RJ

Gazeta Mercantil - 14 de Janeiro de 1999

Bolsas despencam em todo mundo Ações do setor financeiro reagem mal com a perspectiva

de queda no lucro dos bancos Elaine F. Bast

de São Paulo, com Reuters

As principais bolsas mundiais caíram ontem depois da notícia da demissão de Gustavo Franco e da desva-

lorização de 8,24% do real. Os papéis do setor financeiro despencaram diante da perspectiva de que os bancos tenham que aumentar suas provisões para empréstimos duvidosos na região, podendo refletir-se em queda nos lucros do setor.

Nos Estados Unidos, o índice Daw Jones perdeu 1,32%, indo para 9.349,56 pontos. Os papéis dos maiores bancos do país lideraram as perdas. As ações do JP Morgan caí- ram 4,81%, enquanto as do Citigroup 6,36%. Os bancos norte-americanos, de acordo com dados do Federal Reser- ve (Fed, o banco central norte-americano), possuem no País cerca de US$ 25,6 bilhões investidos. "O ponto crucial é saber se o Brasil será capaz de tranqüilizar o investidor da- qui para frente, já que o mercado ainda está muito inseguro em relação ao que aconteceu com Ásia e Rússia no último ano", disse Adrian Davis, estrategista do ABN Amro em Londres.

A Bolsa de Buenos Aires registrou a maior perda da América Latina: queda de 10,2%. As ações do Banco Galícia caíram 14,1%. A baixa na bolsa provocou uma alta de 185 pontos base na taxa de overnight, que foi para 9,58%. Ontem, o ex-ministro da economia. Domingo Cavallo, dis- se que a turbulência financeira que atingiu o Brasil não deverá afetar a paridade do peso argentino ao dólar. Seus comentários reforçaram os do secretário de planejamento econômico, Rogério Frigelio, de que a taxa de conversão do peso ao dólar não seria modificada. O medo de pres- sões sobre o peso mexicano - que se desvalorizou 4% on- tem em relação ao dólar - e uma conseqüente alta nas taxas de juros empurraram a Bolsa do México, que per-

deu 4,6%. As ações do Banco Banamex, o maior do país, caíram 10,6%. A bolsa chilena perdeu 5%. Segundo analis- tas, os mercados latino-americanos continuarão sob pres- são até que haja sinais claros de que o real não terá uma desvalorização muito além dos 8,2% verificados ontem.

A Espanha liderou as baixas na Europa. O índice Ibex-35 da Bolsa de Madri caiu 6,88% - a maior queda de sua história - depois de um pregão dramático. As ações da Telefônica de Espafia desvalorizaram-se 7,2%. O setor financeiro espanhol, com cerca de US$ 36,6 bilhões investidos na América Lati- na, viu o valor de suas ações afundar. Os papéis do Banco Santander caíram 8% enquanto os do Bilbao Viscaya desva- lorizaram-se 9%.

Em Frankfurt, o índice Dax-30 registrou baixa de 5,16%. Os papéis do Deutsche Bank - segundo maior banco euro- peu - despencaram 5,5%. "A reação do investidor europeu foi mais exagerada e "sentimental" do que embasada em fa- tos concretos. Uma desvalorização de 10% não deveria pro- vocar tanto impacto, mas uma desvalorização de 30% seria diferente", disse Roger Monson, chefe de pesquisa do Rabobank.

Em Londres, os papéis do Lloyds Bank e do HSBC lide- raram as quedas, com baixa de 5,38% e 7,13%, respectiva- mente. O índice FT-100, principal indicador, caiu 3,04%. Na França, o índice CAC-40 caiu 3,5%, indo para 3.958,72 pontos. As ações do setor bancário e automotivo puxaram a baixa. Os papéis da Renault, que em dezembro anunciou US$ 1 bilhão de investimentos no País, caíram 8,62%. As ações do Banque Nacionale de Paris, que na última semana anunciou a pretensão de expandir suas atividades no Brasil, perderam 6,73%. □

"C ser humane deixa de §er escravo cniandc se converte em arauíteto do seu próprio destino" Che Guevara

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Eccnemía O Estado de São Paulo - 14 de Janeiro de I999

Mudança no câmbio Repercussões

- Antônio Corrêa Lacerda, presidente do Conselho Federai de Economia - "A flexibilização do câmbio deverá ajudar o País a reto- mar a normalidade na economia. A medida vai premiar os exporta- dores e a retomada das vendas externas não ocorrerá de forma rápida, pois alguns mercados estão desaquecidos, mas o exporta- dor terá melhores condições de competitividade no exterior".

- Fernando Homem de Melo, especialista em economia agrícola da Fipe/USP - "A agricultura, que era um setor bastante prejudica- do pela política cambial, deverá ser beneficiada pela desvalorização no câmbio. Do ponto de vista macroeconômico, é mau sinal o fato de o câmbio estar trabalhando no teto da banda. É sinal de que o mercado está testando esse limite, o que significa que, ou o Banco Central vende seus dólares e perde reservas, ou não vende e pode criar desconfiança no mercado".

- Luís Carlos Delben Leite, presidente da Associação Brasilei- ra das Indústrias de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) - "Com um câmbio mais flexível, sem dúvida haverá mais espaço para a redução dos juros. Tenho defendido a flexibilização do câmbio para que as exportações sejam ampliadas e, com isso, seja retomado o desenvolvimento".

- Inês Corrêa de Souza, diretora de Finanças do Centro Corporativo da Companhia Vale do Rio Doce - "A Vale já estava preparada, desde setembro, para mudanças no câmbio e, em razão disso, as dívidas em dólar da Vale estavam protegidas, por instru- mentos financeiros, de oscilações no preço da moeda norte-america- na em relação ao Real. Estávamos muito cautelosos na administração do caixa da empresa.

- Odair Abate, econoinista-chefe do Lloyds Bank - "As medidas foram boas: não tão fortes para comprometer a estabilidade, mas suficientes para melhorar as perspectivas com a balança comercial. A nova fórmula vai exigir, porém, uma unidade consistente entre os membros da equipe de Fernando Henrique Cardoso e um processo de comunicação firme do governo, no sentido de mostrar que a nova política veio para ficar. No novo quadro, há espaço para a queda gradual dos juros".

- Alfredo Rizkallah, presidente da Bolsa de Valores de São Paulo - "A flexibilização cambial deve aumentar o risco para quem especula com dólar, uma vez que não há mais a minibanda. Além disso, a medida permite maior flexibilidade também na política de juros e deverá ter impacto positivo nas exportações".

- Dany Rappaport, economista-chefe do Banco Santander- "A nova política cambial é uma excelente saída se der certo. Se o dólar operar pressionado no teto da nova banda, de R$ 1,32, ao longo deste ano, chegará ao final de 99 cotado a R$ 1,35.0 BC estabeleceu, na verdade, uma taxa cambial quase fixa e a resposta do mercado será dada nas próximas poucas semanas. O sucesso da nova política será sinalizado pela volta do investidor externo e a queda dos juros".

- Ademerval Garcia, presidente da Associação Brasileira de Exportadores de Citros (Abecitrus) - "A desvalorização deve pro- vocar aumento na lucratividade do setor, mas não contribuirá para a expansão das exportações. Deverá apenas capitalizar o setor para a nova safra, mas é insuficiente para elevar a capacidade de investi- mento, que exige uma série de condições. Não adianta esperar gran- des milagres".

Como as medidas no câmbio afetam seu bolso Reflexo imediatos ♦ Vai ficar mais pesado quitar fatura de despesas inter-

nacionais com o cartão de crédito, com vencimento desde ontem.

♦ As viagens ao exterior ficaram mais caras ♦ As dívidas em dólar aumentaram

♦ As parcela do leasing de carro atreladas à variação cambial vão comprometer uma parcela maior do orçamento do comprador

♦ Produtos importados vão ficar mais caros ♦ Dinheiro aplicado em dólares ou em fundos que re-

muneram de acordo com variação cambial tiveram ganho extra

♦ Aplicação em bolsa tende a ficar exposta a maior ins- tabilidade

♦ Taxas de juros contam com espaço maior para cair, mas o nervosismo do mercado não impede que elas subam no curto prazo

Quem ganha ♦ Investidores com dinheiro em dólar ou fundos cambiais

♦ Exportadores, porque produtos ganham competitividade no exterior.

♦ Quem é credor em dólar

Quem perde ♦ Devedores em dólar

♦ Importadores, porque produtos importados ficam mais caros

♦ Consumidor de produtos importados, porque o preço em real sobe

♦ Governo, porque a desvalorização aumenta sua dívida (interna e externa) atrelada ao dólar e porque os juros ainda altos continuam castigando as contas públicas

O que fazer? ♦ Não vale a pena sair da aplicação atual fora do vencimen-

to para empregar dinheiro em aplicações atreladas ao dólar. ♦ Não assuma dívidas em dólar. Quem já tiver dívidas

em dólar deve procurar proteção em aplicações que garan- tam a variação cambial.

♦ Quem estiver viajando ao exterior e levando o cartão de crédito deve procurar fazer uma reserva em dólares para pagar a fatura depois.

♦ Procure não assumir financiamento agora, porque a tendência é de queda das taxas, se as medidas de desvalori- zação derem resultado

♦ Dê preferência aos fundos Dl, porque acompanham a oscilação das taxas de Juros

'C ser humane defca de ser escravc auandc se converte em arquitete de seu nrénríe destine" Che Guevara

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Nacícnal Revés do Avesso - Outubro/98 - N0 10

Nasce uma hiperburguesia Uma nova classe se apossa das alavancas do poder mundial

Denis Duelos*

iltibiüc

uando se fala de capitalismo mundializado pensa-se em geral num planeta dominado por um punhado de

multibilionários que, porém, sozinhos não podem controlar as alavancas do poder. Contemporaneamente à globalização está emergindo uma nova burguesia paga, cujas ambições amea- çam as classes médias nacionais.

Mas esta nova classe poderá assegurar a sobrevivência do sistema sem nutrir-se da cultura política e cívica das bur- guesias tradicionais.

Segundo o filósofo Clèment Rosset, a vida não tem outro sentido senão a alegria do real contrapondo ao nada. Mas nós humanos, mal suportando a alegria spinosiana, nos apres- samos a fabricar um sentido para todos: como aquilo do alto e do baixo. A história como simulação parecer ser uma luta para inventar esta altura da qual fica pra cima dos outros como se fossem inferiores, obrigando-os a crer quando são renitentes.

A criação do universo liberal não foge a esta fórmula, e consente a autoproclamada elite sobrevoar o oceano dos não graduados. Não se poderia compreender as evoluções eco- nômicas sem considerar que elas participam do mesmo jogo das potências comparadas. Hoje porém a potência não se mede mais com os parâmetros do estado nação, mas com as das multinacionais. Uma nova grade reconstrói a jogada sim- bólica e social em questão, escondida atrás do abstrato fluxo do dinheiro. Emerge então uma nova classe dirigente de ex- tensão universal que chegou o momento de analisar.

O jogo infantil que consiste em reconhecer no próprio ir- mão um objeto de desejo somente para poder expropriá-lo, condena os dominadores a uma solidão sitiada pelo ódio. Para sobreviver, a elite deve pois se organizar em classe. Na cir- culação dos valores, cada aposta faz falir grupos de proprie- tários de títulos, enquanto aumenta sempre mais a faixa dos trabalhadores empobrecidos e dos desempregados. Como lembra Jean-Claude Milner num livro acusador, se não man- tivesse o próprio peso numérico graças a rendas salariais subtraídas da luta política ao mecanismo infernal da plusvalia, a burguesia desapareceria dentro de algumas décadas.

Com maior razão na globalização: no livre jogo do merca- do planetário, o capitalismo rapidamente se esfaleceria. Por isso deve remunerar uma vasta classe dirigente mundial, bem mais numerosa que restrito grupo dos poucos milhares de multibilionários identificados pela revista "Forbes". Se não o fizesse, e se contentasse com um crescimento da própria ri- queza de 1% ao ano, num mundo onde ao crescimento corresponde o empobrecimento, antes do fim do próximo sé- culo, um grupo de famílias riquíssimas teria o domínio absolu- to do destino da humanidade.

L

O avesso da potência Essa potência porém terá o seu avesso: quando 90% das

pessoas dependerem dos mesmos, conhecidos patrões, estes últimos viverão com medo de uma revolta fatal. Daí a impor- tância vital, para o capitalismo mundial, do crescimento de uma hiperburguesia numericamente proporcional a sua nova potencialidade que entra na relação de civilidade com as ou- tras componentes de "seu" mundo. Porém sem um estado regulador comensurado a ela, sem critérios negociados de formação da elite mundial, como produzir a burguesia en- quanto classe? Como pô-la em relação às classes médias? Ela pode acrescentar o próprio poder somente destacando- se dos outros, ignorando o olhar dos outros (pode-se notá-lo pela impossibilidade de conseguir financiamentos para estu- dos sobre a burguesia mundial).

Visto que se considera "acima" do resto do mundo, cha- maremos hiperburguesia a classe dirigente que está emer- gindo, distinta porém dos mega-patrimônios e das aristocra- cias do dinheiro, desde há tempo internacionais, dos quais constitui o prolongamento funcional, o exército dos "colabo- radores imediatos". A hiperburguesia se aproxima à "overclass" do politólogo Michael Lind, embora a sua reali- dade esteja bem distante da idéia de "hiperclasse" futurista e romântica retomada por Jacques Attali.

A hiperburguesia conjuga às posições de potência alguns sinais de coesão cultural. Os primeiros derivam dos lugares que ocupam no interior dos grupos financeiros, de consultoria ou nas indústrias jurídicas; em outras palavras, nas salas de comando dos fluxos monetários e das decisões de autorida- de. Pode-se descer até ao gerenciamento estratégico da pro- dução, mas sabendo que os grandes patrimônios (e as suas cabeças pensantes, os self made men multibilionários) têm deixado a indústria pela finança, a informática, a mídia, a dis- tribuição, os artigos de luxo ou o turismo, a hiperclasse de- senvolveu-se distanciando-se do mundo da engenharia.

Mais ainda que a alta classe anglo-americana da qual aco- lheu a herança, a hiperburguesia mundial é distribuição dos postos chaves, de influência e decisão rápida, como aqueles que consentiria a intervenção cirúrgica combinada sobre as moedas asiáticas, trazendo sobretudo lucro para os investi- mentos ocidentais na zona de perigo. A derrocada efetiva mas circunscrita, de centenas de milhões de habitantes, indi- ca em que nível se põe a atividade de decisão da hiperburguesia - mais eficaz politicamente que financeira.

No que diz respeito ao estilo de vida, inicialmente a hiperburguesia assumiu como modelo a classe endinheirada americana e internacional. Esta última, de preferência resi- dente nas metrópoles, operou uma primeira fusão entre ren-

'€ ser humane deixa de ser escravo auande se converte em arauítetc de seu nrcpríc destine" Che Cuevara

QUINZENA Nc 275 23

Naeíenal

da e enquadramento gerencial, simbolizada entre outras coi- sas pela notável componente das ações nos mega-salários dos seus membros. Enquanto a alta classe americana é pro- vavelmente protestante ou judia mais que católica, mais pró- ximo ao episcopalismo que metodista ou batista, a hiperburguesia mundial admite as mais diversas possibilida- des. Ainda que provenha da Ásia ou da América Latina, a adesão ao individualismo puritano encontra melhor acolhida (como testemunha o imenso sucesso do pentecostalismo).

O modelo americano serve de exemplo para toda hiperburguesia. Percebe-se nitidamente o tipo "internacional costeiro", laureado em uma das mais cotadas universidades privadas dos Estados Unidos, falando com uma acentuação estrita, inclinada aos vinhos franceses e aos queijos de im- portação, que lê Harper's Magazine, segue MacNeil ou Lehrer na CBs, se ainda tem a TV, joga squash e passa todo ano dois meses na Europa. Bem diferente o tipo "continental local", diplomado em qualquer pequena universidade de estado, de pronuncia arrastada, que rega de cerveja suas panquecas à manteiga de amendoim, joga bowling, olha a rede via cabo "Nashville" e passa alguns fins de semana em Disneyland ou em Las Vegas.

Portanto onde se constituíram elites internacionais, quer tenham tido origem de membros reconvertidos da nomencla- tura, como na Rússia ou de uma tradição de corporações que o partido comunista nunca destruiu, como na China, uma hiperburguesia sempre teve a possibilidade de configurar a própria gênese. E também aqui, como nas Américas, esses diversos rebentos não nasceram das atividades empresariais, mas dos encargos assalariados. Como a hiperburguesia naci- onal que a precedeu, a hiperburguesia deixa a maior parte do risco empresarial à pequena renda dos aposentados, que pre- ferem administrar partindo de posições independentes das incertezas do mercado; e o faz tanto mais eficazmente en- quanto nos muitos casos estas incertezas estão sob o seu controle.

Os "hiperclassistas" integram os seus salários graças às comissões, enquanto o seu status está garantido sobretudo pela burocracia privada. Nos Estados Unidos, é a classe dos "chief executive officer" que assegura uma remuneração cem vezes superior ao salário do operário de base. A hiperburguesia é, pois, não diversamente da velha classe dos dirigentes re- munerados mas num grau demasiadamente superior, uma organização política da renda permanente; e a estabiliza tam- bém mais eficazmente graças à intermediação das corporações profissionais, que funcionam como agências de colocação e alavanca do poder direto (um exemplo é a famo- sa American Bar Association). A hiperburguesia não se jus- tapõe às burguesias nacionais ou regionais, as substitui.

A estratégia do cuco Jean Claude Milner sustenta a hipótese de que o capitalis-

mo pode enfim dispensar a burguesia, e que os "hiper-salári- os" em tempo ou dinheiro (que são indexados ao capital para entreter uma vasta classe média) tenderão a reduzir-se para destinar sempre maiores riquezas à plusvalia. Em parte tem razão, embora não possa se omitir de ver que a necessidade

da burguesia, política e simbólica, da parte do capitalismo, não se desminta com a passagem ao nível mundial. A redu- ção drástica das mega-retribuições é real, mas diz respeito apenas às frações da burguesia um tempo ligadas ao mecenatismo do estado ou às indústrias com bases nacio- nais, cuja importância estratégica diminuiu.

Mas por que a hiperburguesia suplanta as velhas burgue- sias estabilizadas em lugar de se agregar a elas num nível superior?

Por três razões interrelacionadas. Em primeiro lugar a burguesia, que os capitalistas instituíram por motivos políti- cos, depende da sua lógica. Não se pode dizer: "Constitua- mos os capitães da indústria em classe dirigente" e afirmar ao mesmo tempo que "os patrões são os agentes dos propri- etários das ações". Se se opta pela segunda fórmula, é nor- mal que um dirigente contratado para subdividir uma empre- sa em dez partes, das quais seis devem ser fechadas, seja cem vezes melhor pago do que o clássico presidente-diretor geral, demasiadamente ligado a uma paternalista lógica in- dustrial de longo termo.

Se a política do capital concede a preeminência a quem o faz circular mais rapidamente em relação a quem produz valor, a escala das graduações se desloca da burguesia pro- dutiva a uma burguesia dos investimentos financeiros. Não se pode sustentar ao mesmo tempo que "a máxima qualifica- ção é determinada pelos diplomas" e que "o que conta ver- dadeiramente é a capacidade de fazer funcionar o teatro de mediação para cativar as massas". Se se opta pela segunda mensagem, fica normal que o apresentador televisivo seja pago muito mais que um docente universitário que ele faz aparecer ou desaparecer da grande tela todas as vezes que serve.

A segunda razão é econômica. Quando a circulação pre- valece sobre a produção e o crescimento líquido diminui, todo superaquecimento paga-se com um baque. A nova hiperburguesia não se estabelece sob um excedente durá- vel criado pela economia de escala (a centralização mundi- al) mas sobre a partilha do bolo cujo volume não cresceu muito, e se apossa dos rendimentos já atribuídos a outras frações da burguesia.

A última razão é organizativa onde assume o comando central, a hiperburguesia ocupa as funções de quem a prece- deu, porém numa escala mundial (onde até aquele momento dominava uma oligarquia capitalista sem poderes político di- retos). Ora como bem sabe os militares, as dimensões do estado maior são independentes do número de soldados: não se pode ser mais que alguns milheiros a decidir sobre os mo- vimentos de um exército, seja ele composto de cem mil ho- mens ou de dez milhões. Quanto às funções subalternas con- tinuam a existir somente onde não se dispõe de comandos moderníssimos porque não estão em condições de colocar a crescente multiplicidade dos teatros operativos num vértice bem informado, capaz de dar simultaneamente miríades de ordens. E uma vez que estes sistemas moderníssimos são abundantes (informatização, coligamento em redes, gerenciamento racional, etc.) não se necessita que o estado-

"€ ser humane deixa de ser escravc ciuande se converte em arquitete de seu nropríe destine" Che Guevara

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Nacícnal maior de uma economia mundial simplificada, disponha de mais pessoal dos velhos centros locais.

Não só a velha burguesia dirigente não voltará a ter sua função, como também, supondo que mantenha seus cargos atuais, embora muito onerosos segundo a novas matizes de valores, conservará somente a sombra de sua potência passa- da. Gigantescos conglomerados de múltiplas atividades podem agora ser dirigidas por pequeno número de chefes, e todos os velhos grupos que tomavam decisões, ainda que absorvidos em níveis mais elevados, ficam esvaziados de sua função diri- gente para se tomarem centros intermediários encarregados de aplicar uma política decidida sempre mais acima.

Esta desclassificação se aplica seja aos quadros existen- tes, seja aos jovens diplomados. Por exemplo, um jovem en- genheiro, que se formou nas melhores universidades france- sas e do exterior nos contou as suas vicissitudes em Rhône- Poulenc, depois da fusão do grupo com o gigante americano Rorer: L'Os quadros americanos desembarcaram o dia se- guinte à fusão. No começo porém é claro: querem dispor dos lugares estratégicos também nos níveis intermediários. Para mim não existem mais as mesmas perspectivas de carreira de uns anos atrás".

Seria ingênuo crer que as substituições de elites tecna- burocráticas nacionais ou federais por uma elite da rede mun- dial interessem somente a sociedades exuberantes (EUA) ou caóticas (ex-países comunistas). O mesmo processo re- fere-se também à Europa, onde de outro lado a hiperburguesia visa a destruição preventiva da burguesia funcional de um futuro estado comunitário. Em qualquer lugar pode-se espe- rar o mesmo resultado: redução das remunerações e das res- ponsabilidades das categorias do velho enquadramento, que vêem suas responsabilidades diminuídas e desestabilizadas. A sua lealdade é minada, a tal ponto de se tornarem vulnerá- veis à corrupção. A hiperburguesia "nidifica" junto às bur- guesias nacionais, mas apressa-se em abandoná-las assim que puder.

O jogo econômico já sem outras barreiras além dos filtros predispostos pelas direções das empresas, utiliza mais ou me- nos seletivamente várias formas de socialização nacional. Atra- vés desses "ramos" constituem-se um vilarejo multicultural elitista, mais ou menos invisível, enquanto as suas redes coloni- ais se fundam no cenário ambiental. Surge assim no interior do tecido tradicional mil luxuosos enclaves, na realidade sempre mais destacados da sorte das classes médias.

Uma cultura predatória Aparentemente, os "novos gentios chegado ao quartel"

são menos racistas, mais democráticos, mais abertos e infor- mais que as velhas elites arrogantes e jactanciosas, ampara- das em Cambridge ou no XVI quarteirão, que viajavam mais exclusivamente de clube em clube e se casavam dentro a classe social, apresentando as certidões genealógicas. Mas é suficiente uma crise de financiamento da classe média ordi- nária para dar-se conta de que foi um novo aperto no bote. Enquanto a diferença é protegida sem preocupação com os gastos, acontece às vezes que a sociedade se revolta: como quando a corte de apelação da Califórnia estabeleceu que as

barreiras erguidas em volta do município de Whitley Heights (Los Angeles) constituíam um "retorno ilegal aos tempos feudais" (sic).

Certamente, uma parte da antiga burguesia dirigente será cooptada por aquela nova. O falso novo rico na realidade rebento de uma boa família arruinada, permanece um perso- nagem clássico das histórias de sucesso (success stories). Porém a adaptação exigida para entrar e fazer parte da hiperburguesia exclui uma reconversão majoritária das elites clássicas na nova elite: a mudança de "capital cultural" é damasiadamente custosa. A capacidade adquirida pela bur- guesia nacional de negociar suas relações com a sociedade não serve mais, em um sistema de valores alicerçado na ve- loz dilapidação.

De fato, foram costurados alianças entre velhos e novos patrimônios. As elites ameaçadas se apressaram em com- pletar com estadas em Harvard os estudos politécnicos dos seus caros rebentos. Mas desta vez a concorrência é dura e se requer bem mais que um verniz cultural a mais. Não é suficiente aprender as técnicas de gerenciamento ou o direi- to americano. Trata-se de mais rapidamente possível dar as costas a Goethe, a Molière ou a Nô para aprender os rudi- mentos de uma cultura improvisadamente mundializada.

A classe média no torniquete Também neste caso, nenhum sinal de pertença, embora

no desespero pode garantir a cooptação na nova classe; e a agitação browniana dos quadros das empresas públicas, ou dos "nós duros" que preparam em vantagem própria a liqui- dação dos velhos dinossauros, é praticamente vã. Uma vol- ta reestruturada a empresa para apresentá-la, como nova, aos investidores mundializados, serão os primeiros a cair como vítimas das mudanças. E quanto mais derem prova de preventivo zelo colaboracionistas, tanto mais ficarão de- siludidos. Os novos dirigentes não avaliam seus subordina- dos pelo grau de adesão ao dogma liberal nem do seu mau inglês internacional; tampouco da docilidade durante os está- gios multinacionais onde se aprendem a governance e a implacabilidade no despedir os mais fracos; julgam-nos em base a sua cultura profunda, arraigada desde a mais jovem idade.

Ora, a diferença dos grandes capitalistas cujas novas con- quistas apontavam à duração e à transmissão (os Rotschild, os Albrecht, os Mulliez, os Livanos, os Hass, os Walton, os Cargill, os Agnelli, os Tsai Wan Lin, etc.) o hiperburguês tem dificuldades em "patrimonializar" os ganhos 'as vezes assom- brosos especulativos. Ainda que à frente dos exércitos, não é mais completamente aceito no inner cercle. Obteve a esta- bilização dos seus rendimentos mas não ainda a perenidade social. Assim, por exemplo, os dirigentes de Calpers, o fa- moso instituto dos fundos pensionais dos funcionários da Califórnia, bem mais potentes que os banqueiros de negóci- os, não possuindo patrimônios pessoais ou familiares.

A reconversão das elites comporta uma verdadeira e pró- pria deflação cultural, comparada à simplificação dos valores do jogo do dinheiro, exonerados de todas obrigações com a sociedade civil.

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Nacicnal

A nova hiperburguesia desvaloriza antes de tudo a cultura cívica. Como observa Michael Lind, uma nova escola de his- toriadores tende a apagar as histórias nacionais, relativizadas a tal ponto de serem totalmente superadas pela religião ou pela economia. Às afirmações do filósofo inglês Michael Oakeshott, para o qual não existe uma "história da França", Lind replica não sem humorismo que "uma coisa chamada França deixou sinais mais duradouros que uma coisa chama- da Michael Oakeshott". Certamente. Porém a revisão da his- tória para banir dela a nação como sujeito histórico perti- nente é reveladora de um movimento de fundo.

Precisamente, essa posição revisionista não propõe nada em substituição à função simbólica civilizadora do debate na- cional. No curso de uma pesquisa, Richard J. Barnet e John Cavanagh entrevistaram alguns dirigentes dos grupos multinacionais que deram prova de ignorar "as conseqüências sociais e políticas das escolhas produtivas dos respectivos grupos e de suas iniciativas (...) As responsabilidades que estão dispostos a reconhecer que possuem são globais, em- bora tenham ao mesmo tempo um espírito bairrístico". Os autores da pesquisa tiraram uma conclusão de que "as idéias sobre as modalidades de uma transição para uma ordem pós- nacional, única alternativa à desordem anárquica e à desa- gregação das nações, têm escassas probabilidades de ver a luz nas salas de reunião das direções de grupos".

Por outro lado, a hiperburguesia é anticultural. E por quê? Se o valor supremo é a ação através de capitais capazes de transformar a riqueza de inteiros continentes, a hiperclasse funcional recusa o que poderia frear a mudança do valor atri- buído aos seus objetos pelos humanos. É iconoclasta, porque a finalidade do dinheiro é a evaporação bolsista dos objetos, manifestação última da capacidade de provocar a ruína dos outros.

Individualmente, o herói do jogo de azar financeiro deve manifestar uma inteligência fora do comum, com a bagagem de uma elevada cultura (George Soros, Vincente Bolloré, etc). Mas como coletivo, a hiperburguesia se encerra no pró- prio ódio aos intelectuais arrogantes (que a obrigam a re- fletir sobre a sua destrutividade, enquanto o que quer é só a labareda) e na sua recusa das "despesas excessivas" da Unesco ou da Comissão Européia (que a obriga à socializa- ção quando deseja somente isolar-se). Cultiva ao invés uma atração desmoderada pelas formas ostentadas do único va- lor do domínio: ter tudo maior que o vizinho, mais visível, melhor protegido, infinitamente mais caro etc.

A falsa vila romana, a rosa de piscinas gigantes, os des- miolados prados ingleses, a sinfonia dos veículos multicores não são exclusividade de um Citizen Kane dos anos 30; são ao contrário o sinal de uma hiperburguesia que prolifera e se reconhece como tal de uma a outra parte do mundo. E contemporaneamente ao nauseante mau gosto dos acumula- dores se impor o furor lúdico com o qual se eliminam as pre- ciosas conquistas do ócio, esta liberdade política e culta de toda classe dirigente civilizada.

A classe média, socializada pela universidade, se reen- contra encaixada no torniquete entre duas inculturas que se

afirmam como uma mesma "nova cultura mundial". À classe média-baixa pede-se escolher os seus valores (chapéus, ca- misetas, sapatos, nomes dos personagens do serial) entre aqueles dos "vencedores do mundo", por melhor escarnecer as respectivas elites locais; e estas aceitam passivamente ainda mais o espetáculo humilhante dos poderosos e opulen- tos que perseguem ideiais ocos de qualquer experiência que não seja corriqueira ostentação.

Os telões de Bill Gates A velha burguesia culta, que busca abrigo associando-se

a classe média gerada graças aos delicados mecanismos es- tatais, ficou agora reduzida a resistir às reformas, invariavel- mente destrutivas das várias esquerdas e direitas, obtidas no estrato cultural, investigação e universidade preocupada em deslocar a substância para a hiperburguesia, jovem cuco do qual se deveria satisfazer o insaciável apetite.

A recusa de transferir as estruturas culturais e cívicas para horizontes improváveis não é somente resistência do passado, mas expressão de uma experiência: somente um sistema de referências culturais pode impedir aos patrões que o poder tomou a demente de abandonar-se ao saque, à de- monstração da sua onipotência. E este sistema - que ordena os processos inovadores, torna doces as escolhidas do con- sumo e as socializa, determina formas de poupança menos irracionais que o puro e simples jogo (investimento em obje- tos de arte ou mecenatismo, por exemplo) - pode provir so- mente de uma "república de opiniões" que, por definição, foge ao mercado. Entre a extinção dos valores (um exemplo: as grandes obras projetadas em telões na vasta casa de Bill Gates em Seattle, com o resultado de apagá-las do anonimato digi- tal) e uma forma civilizada, há lugar para um comentário dis- cutido e acolhido pela instituição universitária. Ora, esta últi- ma existe exclusivamente em relação ao desejo de cultura das populações, não por mudanças de valores impostos pelos patrões que possuem dinheiro.

"Mundíalistas" contra "bairristas" Na espera do reconhecimento de instituições culturais

mundiais, existe pois um déficit da civilização da nova classe; a sua "grotesca" falta de cultura nas questões civis que vão além das relações de força lhe permite ficar monstruosa- mente aquém das próprias pulsões de domínio, selvagemente cultivada sob risco de todo futuro aceitável.

Tudo será selvagem no país da hiperclasse? A nova superburguesia pretende-se humanista, universalista e multirracial. Ostenta bons sentimentos e uma extrema gene- rosidade diante do esoterismo, ameaçado, desde os yanomami até os pigmeus. Tem a pretensão de ter superado a questão étnica. O tema do multiculturalismo integral (que reconcilia hindus, hispânicos, asiáticos e negros pedindo desculpa pelo escravismo e genocídio) se reencontra promovido ao estado de ideologia oficial, transfigurado num nível supra-nacional, em oposição a estados nacionais denegridos por seus valores retrógrados se não racistas.

Mas este pluralismo se limita a autorizar algum matrimô- nio misto muito publicizado ou a organizar superficial relacio- namento de encontros bem ordenados (clubes, festas nas

'€ ser humane deixa de ser escravo quando se converte em arquiteto do seu próprio destino" Che Guevara

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Nacícnal

empresas, etc), enquanto no centro das relações da superburguesia se encontram de qualquer maneira os bran- cos, que possuem maiores benefícios que membros negros ou hispânicos da classe média que têm boa consciência do multiculturalismo que não os obriga a modificar suas práticas de discreto apartheid. A endogamia persistente das elites brancas que controlam boa parte da riqueza tem raízes na prática ancestral de um nomadismo que ultrapassa as socie- dades locais que as diferencia das elites sulamericanas, mais abertas e mais inseridas.

Endogamia e ascensão ao status de "classe federal", e depois internacio1.dl, têm sempre jogado junto nesta tradição, que permitiu à superclasse não desaparecer e ocupar o espa- ço do ex-império britânico circumplanetário, do qual herdou uma bivalência: "pensar liberal" como condição para "viver a direita".

Do multiculturalismo ecumênico passa-se a sustentar ambiguamente os particularismos. Não que a hiperburguesia seja sectária, mas "nativismos" e fundamentalismos lhe per- mitem fundamentar recusa às integrações nacionais que im- plicam uma regulamentação cívica dos seus direitos ao in- vestimento. Também aqui, bivalência de fato: aborrecem-se os Christian Reconstructionists (direita religiosa america- na) ou a Frente Nacional de Le Pen, porém os sucessos de reivindicações de escolas étnicas e confessionais ajudam a superclasse a dissolver as lealdades cívicas, transversais dos estados que a contrastam. A divisão eleitoral dos Estados Unidos entre batistas, episcopais e católicos, a reafirmação das contraposições culturais entre o sul e o norte da Alema- nha, os regionalismos triunfantes na Espanha e na Itália só podem alegrar a hiperburguesia pelos danos que estes fenô- menos trazem à unidade estatal, nacional ou federal.

Por outro lado, a sua indulgência em relação à mentalida- de sectária, nos remete a uma das fontes do seu próprio fun- cionamento: graças a Max Weber, sabemos que as Igrejas no limite da seita permitem plasmar excelentes perfis de ven- dedores, eticamente confiáveis, moralmente controláveis, tra- balhadores obstinados. Michael Lind tem, pois, razão quando afirma que é uma deletéria aliança o encontro entre multiculturalistas e "autoctonistas" porque divide em frag- mentos subculturais o que resta das identidades comuns.

O multiculturalismo mundialista da hiperburguesia escon- de além do mais, uma forma de desprezo de novo gênero sobre a qual se apoia por se impulsionar: os dos "mundialistas" contra os "bairristas", sobretudo habitantes do sul; aos quais se teria pois o direito de tirar lugares paradisíacos de valor global. A este título, a aquisição de terrenos na Amazônia por parte de associações de ecologistas norte-americanos têm muito em comum com a privatização de um lago argentino por parte dos atores "democráticos" de Hollywood, ou como o fechamento de imensas zonas florestais em Castella (Espanha), na Sologne ou no Tarn, em benefício das associa- ções de caças ou de pesca que organizam as atividades re- creativas dos simpáticos aposentados.

Sentimento bons ou democracia? Enfim, como espelho de si mesma, a hiperburguesia cria

uma nova subclasse, também esta deixada fora das seguran- ças sociais, porém esta vez jogando-a mais "para baixo", que provém de qualquer lugar de um trabalho migrante mais que imigrante, e em parte engajada para o serviço particular da hiperburguesia. Assim, mesmo quando a porcentagem de imi- grantes clandestinos é baixa em proporção à população de um país como os Estados Unidos, a economia que eles sus- tentam é sobretudo doméstica e clientela?Na hiperburguesia, faz parte do "bom tom" ter em casa, família de filipinos, em- bora as relações de proximidade (necessariamente mais ne- gociadas e portanto mais igualitárias) inspirem ainda as bur- guesias clássicas. A hiperburguesia está fascinada pelo glo- bal, que agrega ao mundialismo clássico dos seus predeces- sores um meio instantâneo para controlar o conjunto das re- lações humanas. Mas no entrelaçar estas novas relações sim- bólicas aos altos como aos baixos níveis, esta se mostra inca- paz de ver que o aqui e o agora, o corpóreo, a vizinhança, são reais quanto o virtual "on line". E não percebe a indiferença do real nas comparações das inquietudes do poder, seduzida como é pela paixão do sentido (tê-lo ou não tê-lo, estar no centro ou na periferia, ser elevado ou rebaixado, etc).

Não se pode portanto pedir à hiperburguesia que admita o lado positivo das velhas estruturas que protegeram a socie- dade porque com sanha a está demolindo. Todavia, não pode desvencilhar-se da cultura que constrói um estilo de consu- mos legítimo, nem tampouco pode deixar de lado a cultura política, a única realidade que possibilita a sobrevivência ao caos do qual tira prazer. Entre dois objetivos complementa- res e contraditórios - transcrever o domínio social em fenô- meno mundial e subsistir como nova elite - a hiperburguesia deverá construir um compromisso, ou perecer nos redemoi- nhos dos conflitos armados incontroláveis.

Os problemas políticos da hiperburguesia podem ser sin- tetizado num só: preencher o vazio de instituições que po- deriam frear, com o seu compromisso, as suas próprias ten- dências suicidas. Neste sentido, o universalismo democráti- co é uma perspectiva que passa pela construção de instân- cias mundiais a partir das atuais fundações internacionais. Uma forma eficaz de resistência das burguesias civilizadas e das classes médias cultas poderia consistir em exigir a suspensão das operações de diminuição das estruturas cul- turais (independência econômica, solidariedade social, inves- tigação, educação), como premissa à formação de estruturas "paneuropéias" ou mundiais alicerçadas no respeito à diver- sidade das línguas, das sociedades e das culturas. Em torno a um objetivo como este, a hiperburguesia pode negociar o seu lugar futuro com as outras estruturas do mundo que contri- bue a unificar. Para o melhor ou para o pior. □

*Denis Duelos, é sociólogo, diretor da pesquisa junto ao Centro Nacional para a Investigação Científica (CNRS) Paris,

Traduzido de Le Monde Diplomatique, setembro de 1998, n" 8-9, ano V.

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Inverta - 09 a 15/12/98-N0 184

Intemacíenal

Fidel Castro: "Estamos vivendo uma hora decisiva da humanidade"

"Ao procurar idéias para nossos povos estamos buscando caminhos para o mundo". Afirmou Fidel no Conselho Latinoamericano do

SELA durante a jornada dedicada à dinâmica das relações externas da América Latina e do Caribe".

"Estamos vivendo uma hora decisiva da humanidade e o tema que estamos examinando não tem a ver com um país isolado nem com nosso hemisfério, mas que ao tratar de buscar idéias, de buscar caminhos para nossos povos, estamos necessariamente buscando caminhos para o mun- do, nosso mundo, esse mundo que, hoje está numa batalha, inclusive, pela sobrevivência, porque marcha no mesmo barco que, se afundar, será com todos, ricos e pobres, cren- tes e não crentes".

Com esta afirmação o Comandante em Chefe Fidel Cas- tro iniciou no dia 2/12, sua intervenção de pouco mais de duas horas, no encerramento da primeira jornada da XXIV Reunião Ordinária do Conselho Latino-Americano, dedicada integralmente a dinâmica de relações exteriores da América Latina e do Caribe, tema principal escolhido para esta edição do encontro anual do órgão ministerial do SELA.

O presidente cubano centrou sua exposição nos argumen- tos que vinha analisando nos seus discursos recentes, sobre as graves conseqüências da crise financeira internacional no contexto do inevitável processo de globalização que vive o mundo e as soluções que devemos encontrar para o proble- ma do tipo de globalização que queremos.

E tem soluções, precisou assinalando que, pode-se colo-

car como exemplo o que está sendo feito por Cuba para aju- dar os povos centroamericanos devastados pelo furacão Mitch e o programa integral de saúde proposto pelo governo de Cuba: Não se sabe o que se pode fazer com um pouco de boa vontade e com idéias.

A sessão foi iniciada por Fidel que expressou a grande honra que representava a celebração daquele foro em solo cubano, e destacou o grande apreço que tem Cuba pelo tra- balho que vem sendo feito pelo Sistema Econômico Latino- Americano, e recordou, do momento da constituição do SELA há alguns anos, como havia sido feito o convite para que Cuba se integrasse ao órgão, quando nenhum outro organismo in- ternacional o fazia.

Posteriormente foi desenvolvido um painel de alto nível, que serviu de base para os debates que se seguiram com os chefes de delegações dos estados-membros, sobre o tema central deste Conselho, em que foram expostas as conside- rações de Carlos Moneta, secretário permanente do SELA, que presidiu a sessão, juntamente com Fidel, Carlos Lage, vice-presidente do Conselho de Estado, Ibrahim Ferradaz, ministro para investimento estrangeiro. □

Granma Diário

O Trabalho - Nov/Dez/98 - N0 448

África: O imperialismo no banco dos réus Dirigentes políticos e sindicais de 17países africanos convocam

Tribunal Internacional. Brasil terá delegação. José Carlos Miranda

Acontecerá no final de fevereiro próximo um Tribunal Internacional parajulgar os crise cometidos pelo im-

perialismo contra os povos da África. Sua primeira sessão será na África do Sul, na cidade de Joannesburgo. Sua convocatória está sendo divulgada e discutida em diversos países do mundo, incluindo o Brasil.

A decisão de organizar o tribunal foi tomada em 27, 28 de fevereiro e 1° de março de 1998, em Abdijan, na Costa do Marfim (África Ocidental), durante uma conferência com sindicalistas e dirigentes políticos de 17 países africanos, orga-

nizada pelo AcIT e o Synaseg (Sindicato dos Trabalhadores em Eletricidade de Gás da Costa do Marfim), com o objetivo de discutir a situação dos povos e trabalhadores do continente.

O continente africano, submetido a séculos de opressão escravocrata e colonial, vem sofrendo nas últimas décadas as terríveis conseqüências dos planos de Ajuste Estrutural do FMI e do Banco Mundial. Os relatos dos trabalhadores reu- nidos na conferência não deixam dúvida: a continuidade da política do imperialismo ameaça diretamente a existência dos trabalhadores e povos da África.

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Internacícnal

A principal resolução da conferência foi o lançamento da Convocatória pela realização de um Tribunal Internacional para identificar e julgar os responsáveis pela catástrofe cri- minosa que ameaça a existência dos trabalhadores e dos povos da África.

O futuro da humanidade A convocatória identifica a trágica situação da África: "Milhões de homens, mulheres e crianças são forçados a

vagar de um lugar a outro, em uma viagem cujo destino final é a morte. (...)

O último relatório do PNUD (Programa das Nações Uni- das para o Desenvolvimento) apresenta a previsão de que, nos próximos 10 anos, se nada mudar, a expectativa de vida média em um importante número de países africanos deve cair em 20 anos, passando a uma média de 33 anos.

Nas cidades, há uma geração inteira de jovens sem emprego. No quadro do Ajuste Estrutural não se emprega mais nos serviços públicos e as fábricas fecham uma após outra. (...)

Mesmo já tendo pago duas vezes o total de sua dívida externa, entre 1980 e 1996, a África subaariana (ao sul do deserto do Saara) está hoje três vezes mais endividada que há 16 anos atrás. (...)

Dirigimos nosso convite de participação no Tribunal In- ternacional a todos que são conscientes de que na África, através dos Planos de Ajuste Estrutural - cuja realidade se tornou universal (segundo so próprios dirigentes do FMI e do

Banco Mundial) -, se joga por antecipação o futuro de toda a humanidade.

Todo o passado de escravidão e colonialismo na África não bastou para saciar a fome do imperialismo no continente africano. O combate pela sobrevivência dos trabalhadores e povos na África é a luta pela nossa própria existência e de toda humanidade.

África de Brasil Em nosso país, este tribunal toca fundo nos problemas da

classe trabalhadora, pois um dos crimes contra os povos ne- gros foi seu seqüestro na terra natal para a formação de mão- de-obra escrava, largamente usada no passado no Brasil. Com a abolição da escratura, a situação dos negros não mudou no fundamental, pois a burguesia manteve sua exploração, sob a forma do trabalho assalariado.

A discriminação racial tornou-se um instrumento suple- mentar de exploração dos negros no interior da opressão so- bre a classe operária. É por este motivo que, para pegar um exemplo, os salários dos negros são mais baixos, no geral, do que o dos brancos. Ou, para tomar outro exemplo, a juventu- de negra é especialmente perseguida pela polícia.

Responder positivamente à Convocatória de Abidjan, cons- tituindo comitês de apoio ao Tribunal Internacional e bata- lhando para construirmos uma delegação que compareça à África do Sul, é mais do que solidariedade. É reatar os laços de uma luta comum contra a opressão do imperialismo, que nega um futuro para os negros, na África e no Brasil. □

Inverta - 18 a 24/11/98 - N0 181

Revista dos Estados Unidos diz que Brasil é escora da crise mundial

A revista norte-americana, Fortune Américas, fez uma inálise conjuntural da situação econômica do Brasil

frente à Crise Asiática. Segundo a Revista Fortune Améri- cas, a crise econômica no Brasil, que é nona economia do mundo, pode levar a um problema sem precedentes tanto para a América Latina como para todo o mundo ocidental, já que o Brasil sozinho deve US$ 111 bilhões, mais da metade da dívida externa de toda a América Latina que é de US$ 210 bilhões.

Segundo a revista, o que levou o Brasil a toda essa pro- blemática econômica foram uma série de medidas tomadas no início do Plano Real, segundo os analistas estrangeiros foram: o aumento do capital estrangeiro valorizou o Real, o que ajudou a diminuir a inflação, mas acabou causando um déficit comercial crescente para o país e a resposta do go- verno foi a vinculação do Real ao dólar com desvalorização ajustável sem causar inflação, para dar confiança aos inves- tidores estrangeiros. Entretanto, esse financiamento ao défi- cit público só durou até outubro do ano passado e foi estou- rar com a crise asiática que fez com que o Brasil elevasse os juros para 40%, para evitar uma saída de dólares das reser-

vas cambiais, sendo que estas atitudes criaram uma asfixia da economia e aumentou o déficit público para mais de 7% do PIB.

Depois do colapso da Rússia, em agosto passado, os ban- queiros internacionais se deram conta de que o Brasil era uma economia debilitada, com um crescente déficit orçamen- tário e uma enorme dívida para vencer (US$ 92 bilhões nos últimos três meses de 1998) e com uma taxa de juros de 50% ao ano, mostrou que os rumores de uma possível ajuda do FMI e a saída de US$ 20 bilhões nos últimos meses causada pela fuga dos capitais especulativos.

Os analistas da Revista Fortune Américas mostram que esse corte enorme do orçamento pode ser um tiro pela cula- tra, uma vez que juros altos são uma enorme receita de recessão profunda que pode assustar ainda mais os investi- dores estrangeiros. Outra alternativa seria a súbita desvalori- zação do Real que poderia criar uma enorme inflação que mais uma vez assustaria os investidores estrangeiros, que somente de investimentos diretos dos EUA em 1997 no Bra- sil somaram cerca de US$ 4,55 bilhões o maior de todo o mercado emergente mundial. □

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Internacícnal

O Estado de São Paulo - 14 de Janeiro de 1999

Brasil: tensão mundial Crise aumenta risco de recessão na América Latina

Por Jonathan Friedland, Craie Torres e Thomas Vosel

Repórteres do The Wall Street Journal

Cidade do México - Para os vizinhos do Brasil na Amé- rica Latina, o momento é decisivo.

A súbita renúncia do presidente do Banco Central e a subsequente desvalorização do real resultarão em menor ofer- ta de capital, juros mais altos e crescimento mais lento para a Argentina e México. Como resultado, toda a região entrará em recessão em 1999, dizem economistas.

"Já ia ser um ano difícil para a região e o que o Brasil fez vai torná-lo ainda pior", diz Lawence Goodman, economista da Global Economic Associates em Nova York.

Isso certamente procede se a reação inicial dos merca- dos regionais servir como referência. Por toda a América Latina, os mercados de moedas, ações e títulos de dívida so- freram intensa pressão ontem à medida que os já tensos in- vestidores cortaram ainda mais sua exposição aos ativos re- gionais. Foi uma reprise da onda desenfreada de vendas ocor- ridas em setembro depois que a Rússia decretou a moratória sobre o pagamento de sua dívida externa.

Apagar o incêndio Agora a resposta foi praticamente a mesma. Autoridades

governamentais de toda a região correram para explicar as diferenças entre suas relativamente saudáveis variáveis eco- nômicas e as do Brasil. A reação do ministro da Fazenda do México, José Angel Gúrria, foi típica. Durante entrevistas pelo rádio ontem, ele ressaltou a saudável posição fiscal do México e o baixo nível de pagamentos de dívidas que o país terá nos próximos meses.

As tentativas de persuasão foram acompanhadas de ação em pelo menos três países. No México, o banco central usou seu mecanismo de intervenção automática para reduzir a volatilidade do peso, e logo depois, aumentou pela sétima vez o chamado "corto", um mecanismo de contabilidade usado para sugar liquidez do sistema bancário. No Chile, o banco central também interveio para acalmar as pressões sobre o peso local vendendo dólares. No Equador, as autoridades monetárias elevaram a taxa de empréstimos do interbancário sete vezes durante o dia, que foi de 87% para impressionan- tes 130%.

Menor alavancagem Taxas de juros mais altas, impostas ou não foram

registradas por toda a região à medida que os investidores demandavam maior rendimento em obrigações internacionais em dólares e em ativos denominados em moeda local. No entanto, os operadores disseram que, ao fim do dia, o alarga- mento dos spreads não era tão acentuado como foi registra-

do imediatamente após o colapso da Rússia. Eles acrescen- taram que isso indica que os investidores estão menos alavancados do que estavam há alguns meses e que muitos investidores não-dedicados - os mais inclinados a vender na hora do pânico -já haviam saído da América Latina.

Os mercados de valores imobiliários, que no geral des- pencaram no começo do dia, também recuperaram-se um pouco, praticamente pelas mesmas razões. O índice Merval da Argentina caiu 10,2% e o índice IPC do México fechou com queda de 4,4%. Essa derrocada soma-se a vários dias de baixa nos mercados desde o começo do ano.

Mesmo se os mercados não tivessem entrado em colap- so, os economistas dizem que a maioria dos países latino- americanos seria obrigada a manter taxas de juros altas no futuro próximo para conseguir atrair capital. Isso levou os economistas a começar uma revisão das já fracas perspecti- vas de crescimento econômico em 1999 para muitos países. Especialmente no caso da Argentina, o maior parceiro co- mercial do Brasil na América Latina, que mantém um regime de moeda conversível em dólares na taxa de um para um. "Neste ponto, (minha expectativa de crescimento) é próxima de zero", diz Guilhermo Mondino, um diretor da Fundación Mediterrânea, um instituto de pesquisas de Buenos Aires. "Mas as chances de crescimento negativo aumentam a cada minuto".

Argentina mantém paridade Mondino espera que a Argentina enfrente novamente alto

desemprego e salários em queda, exatamente como foi de- pois da repentina desvalorização mexicana no final de 1994. Naquela época, as autoridades argentinas autorizaram a eco- nomia a contrair até 4,6% e o desemprego a subir para 18,4%, ao invés de abandonar a paridade com o dólar.

A Argentina mantém essa posição. A paridade com o dólar "pode e deve ficar estável, apesar da volatilidade. Estamos provando isso crise após crise", disse o vice-minis- tro de finanças Pabio Guidotti. "A Argentina nunca vai des- valorizar".

A economia mexicana também deve sofrer o impacto negativo dos problemas no Brasil, mas é privilegiada por seus fortes laços comerciais com a ainda forte economia norte- americana. O foco político mais imediato, então, está centrado em como prevenir a pressão para a queda do peso com a exacerbada alta da inflação que já ameaça liquidar o poder de compra. Numa entrevista ontem, o presidente do banco central Guilhermo Ortiz disse que os passos dados para aper-

'C ser humane deixa de ser escrave ciuandc se converte em arquitete de seu nrénrie destine" Clie Guevara

CLINZCNA Nc 275 3C

tar a política monetária na desvalorização do Brasil devem enviar um claro sinal de que o México "é absolutamente sé- rio" em manter um limite na alta dos preços.

"Nosso desafio agora é como nos diferenciar", disse Ortiz. "Temos uma sólida situação fiscal, uma política monetária consistente e uma taxa cambial flutuante que, ultimamente, espelha a economia".

Não é assim tão fácil para outros países latino-america- nos. Na Venezuela, analistas dizem que o bolívar está sobrevalorizado em até 30% e que o recém empossado go- verno do presidente Hugo Chavez não deixou claro como

Internacícnal planeja financiar um déficit fiscal que é ainda maior do que o Brasil em relação ao PIB.

A Colômbia também enfrenta alguns grandes problemas. As altas taxas de juros e os derrapantes preços das proprie- dades evidenciaram uma crise no sistema financeiro, pressi- onando um já grande déficit orçamentário.

Para o economista do Merrill Lynch Inc. Gray Newman o efeito das medidas do Brasil não são nada agradáveis. As ações brasileiras "adiam a recuperação em muitos países e aumen- tam as previsões de que mais problemas vão emergir", afirma. "A América Latina encara tempos difíceis à frente". □

Gazeta Mercantil - 15 de Janeiro de 1999

Estados Unidos Inflação de 1,6% foi a menor em 12 anos

Em 1986 os preços ao consumidor americano subiram ainda menos, 1,1%, por causa do grande barateamento da energia

Caren Boluin Reuters

Os preços ao consumidor praticamente não subiram nos Estados Unidos em dezembro, fazendo com que

o principal indicador oficial da inflação encerasse 1998 com seu menor crescimento anual nos últimos 12 anos, anunciou ontem o Departamento do Trabalho. O índice dos Preços ao Consumidor (IPC) cresceu 0,1% no mês passado, depois de ter registrado um aumento de 0,2% em novembro. Com isto, a elevação para todo o ano de 1998 chegou a apenas 1,6% - a menor desde o aumento de 1,1 % registrado em 1986, quan- do o IPC se manteve baixo por causa da queda violenta dos preços da energia.

"Os números continuam mostrando a mesma coisa: um sólido crescimento com inflação baixa", disse Charles Reinhard, estrategista de aplicações em renda fixa do ABN Amro. Em dezembro, houve uma elevação no IPC básico, atentamente acompanhado pelo mercado, que exclui os cus- tos oscilantes de alimentos e energia, mas isto se deveu em grande parte a um pico dos custos do tabaco.

"Se os preços do tabaco tivessem permanecido inalterados, o básico só teria subido um décimo (de ponto percentual) e 'todos os itens' não teriam sofrido qualquer modificação", dis- se Patrick Jackman, economista do Departamento de Esta- tística do Trabalho. O IPC básico cresceu 0,3% no mês pas- sado, depois de um aumento de 0,2% em novembro.

O aumento dos preços do tabaco era amplamente espe- rado depois dos anúncios feitos pelas indústrias do setor e os economistas tendem a considerá-lo um fenômeno isolado, que não reflete as tendências econômicas. Jackman disse à "TV Reuters" que são iminentes novos aumentos de preços dos produtos de tabaco, com o fim dos descontos oferecidos pe- los fabricantes e com a decretação de um aumento do produ- to na Califórnia, o maior Estado da federação americana, em janeiro. "Portanto, mais adiante, ainda haverá alguns aumen- tos nos preços do tabaco", afirmou.

Os números mais recentes sobre a inflação foram mais

positivos do que a maioria dos economistas havia projetado e sua divulgação contribuiu para sustentar os preços dos títulos americanos.

Uma pesquisa da "Reuters" mostrou que os economistas haviam projetado um aumento de 0,2% do IPC em dezem- bro, e um aumento de 0,4% do índice básico.

Os custos da energia caíram 1,4% em dezembro, regis- trando um declínio de 8,8% durante o ano passado. Os pre- ços dos produtos de tabaco subiram 18,3% no mês passado, encerrando o ano com aumento de 31,8%. No último mês, os custos dos alimentos permaneceram inalterados, enquanto os preços das habitações aumentaram 0,1%.

Os custos da energia foram um fator fundamental na re- dução dos preços no ano passado. Os problemas econômi- cos na Ásia e em muitas economias emergentes provocaram um declínio da demanda de petróleo e de outras mercadorias, contribuindo para uma redução ainda maior nos custos da gasolina e do óleo para aquecimento.

Mas, ao contrário de 1986, a forte pressão para a queda da inflação foi evidente em uma ampla gama de setores econômi- cos. Os fabricantes de bens, como vestuário e produtos eletrôni- cos, foram obrigados a reduzir drasticamente os preços, devido a uma demanda fraca na lenta economia global, proporcionando consideráveis pechinchas para os consumidores americanos.

Desemprego Em outro relatório divulgado ontem, o Departamento do

Trabalho informou que os novos pedidos de seguro-desem- prego caíram ligeiramente na semana passada, mas que o declínio não foi tão acentuado quanto os economistas previ- am. Os pedidos iniciais de seguro-desemprego chegaram a 352.000 na semana encerrada no dia 9 de janeiro, menos do que a cifra revista de 356.000 na semana anterior. Os econo- mistas haviam prognosticado que os pedidos de seguro-de- semprego cairiam para 333.000. □

"€ ser humane deixa de ser escravc uiiamlc se converte em arcmitete de seu prénrie destine" Che Guevara

CLINZCNA Nc 275 31

I M III lllícl AVCNDANOCPV

MANIFESTO COMUNISTA

Marx-Engels

"Manifesto Comunista" de Marx e Engels

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'€ ser humane deixa de ser escrave uiiaiide se ccnverte em arauítete de seu préuríe destine" Che euevara

QUINZENA Nc 275 32

Cultura

vmm Atrás do balcão, o rapaz de cabeça pelada e avental olha o crioulão de

roupa limpa e remendada, acompanhado de dois meninos de tênis branco, um mais velho e outro mais novo, mas ambos com menos de dez anos.

Os três atravessam o salão, cuidadosa mas resolutamente, e se dirigem para o cômodo dos fundos, onde há seis mesas desertas.

O rapaz de cabeça pelada vai ver o que eles querem. O homem pergunta em quanto fica uma cerveja, dois guaranás e dois pãezinhos.

- Duzentos e vinte. O preto concentra-se, aritmético, e confirma o pedido. - Que tal o pão com molho? - sugere o rapaz. - Como? - Passar o pão no molho da almôndega. Fica muito mais gostoso. O homem olha para os meninos. - O preço é o mesmo - informa o rapaz. - Está certo. Os três sentam-se numa das mesas, de forma canhestra, como se o esti-

vessem fazendo pela primeira vez na vida. O rapaz de cabeça pelada traz as bebidas e os copos e em seguida, num

pratinho, os dois pães com meia almôndega cada um. O homem e (mais do que ele) os meninos olham para dentro dos pães, enquanto o rapaz cúmpli- ce se retira.

Os meninos aguardam que a mão adulta leve solene o copo de cerveja até à boca, depois cada um prova o seu guaraná e morde o primeiro bocado do pão.

O homem toma a cerveja em pequenos goles, obsevando criteriosamente o menino mais velho e o menino mais novo absorvidos com o sanduíche e a bebida.

Eles não têm pressa. O grande homem e seus dois meninos. E permanecem para sempre, humanos e indestrutíveis, sentados naquela mesa.

Os melhores contos Autor: Wander Piroli -1963

Memória 01/01/1959 - Vitorio da Revolução Cubana.

01/01/1994 - Insurreição camponesa indígena zapatista no México. 02/01/1981 - José Manuel de Souza, "Zé Piau", lavrador, vítima dos grileiros de terras

do Pará, no Brasil. 06/01/1992 - Augusto Maria e Augusto Conte, militantes, mártires da solidariedade e da causa dos

direitos humanos na Argentina. 09/01/1959 - Nasce Rigoberta Menchú, em Chimel, Departamento de El Quiché, Guatemala.

'O ser limiuim dei^a de §er escravc ciuandc se ccnverte em arciuítetc de seu prépríc destine" Che Cuevara