Literatura Portuguesa 2

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PONTA GROSSA - PARANÁ 2011 EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Português Espanhol Jefferson Luiz Franco Rosana Apolonia Harmuch Silvana Oliveira LICENCIATURA EM LITERATURA PORTUGUESA 2

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PONTA GROSSA - PARANÁ2011

EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

PortuguêsEspanhol

Jefferson Luiz FrancoRosana Apolonia Harmuch

Silvana Oliveira

LICENCIATURA EM

LITERATURA PORTUGUESA 2

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CRÉDITOS

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSANúcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância - NUTEAD

Av. Gal. Carlos Cavalcanti, 4748 - CEP 84030-900 - Ponta Grossa - PRTel.: (42) 3220-3163

www.nutead.org2011

Pró-Reitoria de Assuntos AdministrativosAriangelo Hauer Dias – Pró-Reitor

Pró-Reitoria de GraduaçãoGraciete Tozetto Góes – Pró-Reitor

Divisão de Educação a Distância e de Programas EspeciaisMaria Etelvina Madalozzo Ramos – Chefe

Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a DistânciaLeide Mara Schmidt – Coordenadora Geral

Cleide Aparecida Faria Rodrigues – Coordenadora Pedagógica

Sistema Universidade Aberta do BrasilHermínia Regina Bugeste Marinho – Coordenadora Geral

Cleide Aparecida Faria Rodrigues – Coordenadora AdjuntaSilvana Oliveira – Coordenadora de Curso

Marly Catarina Soares – Coordenadora de Tutoria

Colaborador FinanceiroLuiz Antonio Martins Wosiack

Colaboradora de PlanejamentoSilviane Buss Tupich

Projeto GráficoAnselmo Rodrigues de Andrade Junior

Colaboradores em EADDênia Falcão de BittencourtJucimara Roesler

Colaboradores em InformáticaCarlos Alberto Volpi Carmen Silvia Simão CarneiroAdilson de Oliveira Pimenta Júnior

Colaboradores de PublicaçãoMárcia Monteiro Zan – RevisãoGideão Silveira Cravo – RevisãoNatália Moreira Eloy – Diagramação

Colaboradores OperacionaisCarlos Alex CavalcanteEdson Luis MarchinskiThiago Barboza Taques

João Carlos GomesReitor

Carlos Luciano Sant’ana VargasVice-Reitor

Todos os direitos reservados ao Ministério da EducaçãoSistema Universidade Aberta do Brasil

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação BICEN/UEPG.

Fanco, Jefferson Luiz Fanco, Jefferson Luiz Fanco, Jef F825l Literatura Portuguesa 2 / Jefferson Luiz Franco, Rosana Apolônia Harmuch, Silvana Oliveira. Ponta Grossa : UEPPG/NUTEAD, 2011. 120 p. : il Licenciatura em Português / Espanhol - Educação a distância.

1. Literatura portuguesa - poesia. I. Harmuch, Rosana Apolônia. II. Oliveira, Silvana. III.T

CDD : P469.1

F825l Literatura Portuguesa 2 / Jefferson Luiz Franco, Rosana Apolônia Harmuch, Silvana Oliveira. Ponta Grossa : UEPPG/NUTEAD, 2011.

CDD : P469.1

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APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL

A Universidade Estadual de Ponta Grossa é uma instituição de ensino superior estadual, democrática, pública e gratuita, que tem por missão responder aos desafios contemporâneos, articulando o global com o local, a qualidade científica e tecnológica com a qualidade social e cumprindo, assim, o seu compromisso com a produção e difusão do conhecimento, com a educação dos cidadãos e com o progresso da coletividade.

No contexto do ensino superior brasileiro, a UEPG se destaca tanto nas atividades de ensino, como na pesquisa e na extensão Seus cursos de graduação presenciais primam pela qualidade, como comprovam os resultados do ENADE, exame nacional que avalia o desempenho dos acadêmicos e a situa entre as melhores instituições do país.

A trajetória de sucesso, iniciada há mais de 40 anos, permitiu que a UEPG se aventurasse também na educação a distância, modalidade implantada na instituição no ano de 2000 e que, crescendo rapidamente, vem conquistando uma posição de destaque no cenário nacional.

Atualmente, a UEPG é parceira do MEC/CAPES/FNED na execução do programas Pró-Licenciatura e do Sistema Universidade Aberta do Brasil e atua em 38 polos de apoio presencial, ofertando, diversos cursos de graduação, extensão e pós-graduação a distância nos estados do Paraná, Santa Cantarina e São Paulo.

Desse modo, a UEPG se coloca numa posição de vanguarda, assumindo uma proposta educacional democratizante e qualitativamente diferenciada e se afirmando definitivamente no domínio e disseminação das tecnologias da informação e da comunicação.

Os nossos cursos e programas a distância apresentam a mesma carga horária e o mesmo currículo dos cursos presenciais, mas se utilizam de metodologias, mídias e materiais próprios da EaD que, além de serem mais flexíveis e facilitarem o aprendizado, permitem constante interação entre alunos, tutores, professores e coordenação.

Esperamos que você aproveite todos os recursos que oferecemos para promover a sua aprendizagem e que tenha muito sucesso no curso que está realizando.

A Coordenação

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SUMÁRIO

■ PALAVRAS DOS PROFESSORES 7

■ OBJETIVOS E EMENTA 9

A ÉPICA CAMONIANA 11 ■ SEÇÃO 1 - Camões e Os lusíadas 12

■ SEÇÃO 2 - Episódios analisados 21

CESÁRIO VERDE 67 ■ SEÇÃO 1 - A modernidade dum ocidental 68

■ SEÇÃO 2 - As mulheres no poema ‘O sentimento dum Ocidental’ 80

FERNANDO PESSOA, OS HETERÔNIMOS E MENSAGEM 87 ■ SEÇÃO 1 - Os heterônimos e Alberto Caeiro, o mestre 89

■ SEÇÃO 2 - Os heterônimos: Álvaro de Campos e Ricardo Reis 97

■ SEÇÃO 3 - Mensagem, de Fernando Pessoa 107

■ PALAVRAS FINAIS 114

■ REFERÊNCIAS 116

■ NOTA SOBRE OS AUTORES 120

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PALAVRAS DOS PROFESSORES

Bem-vindo ao estudo da Literatura Portuguesa II!Aqui você encontrará três grandes representantes da poesia portuguesa:

Luiz Vaz de Camões, Cesário Verde e Fernando Pessoa, dos quais você certamente já possui muitas informações, por conta da importância deles no conjunto de toda a produção poética em Portugal.

Naturalmente há muitos e muitos outros excelentes representantes da poesia em terras lusitanas e esperamos que você, embalado(a) por estes, procure ler e estudar muitos outros.

Para melhor aproveitamento da disciplina, recomendamos que você adquira um volume de Os lusíadas, para acompanhar o estudo de alguns episódios desse poema épico que, como foi escrito no século XVI, se utiliza de alguns vocábulos pouco comuns na contemporaneidade. Do mesmo modo, as referências a fatos históricos e à mitologia não devem ser vistas como escolhos na sua leitura, pelo contrário, esperamos que você se sinta motivado(a) a, de fato, aproveitar esse momento tão importante na sua formação profissional.

Para facilitar um pouco, na plataforma você encontrará um glossário com algumas informações mais específicas a respeito do poema camoniano.

Em relação a Cesário Verde, como centramos o estudo em um poema, não é necessária a compra do livro , embora você possa fazê-lo (até para ampliar sua biblioteca pessoal) ou baixá-lo do site www.dominiopublico.gov.br. O mesmo vale para Os lusíadas.

É importante ainda que você adquira também um exemplar do livro Mensagem, de Fernando Pessoa, tema da última unidade da disciplina.

Boas leituras e um ótimo aproveitamento das orientações que preparamos aqui para você.

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OBJETIVOS E EMENTA

ObjetivOs ■ Apresentar alguns textos significativos da poesia portuguesa, estabelecendo

relações entre os mesmos e oferecendo ferramentas para uma análise crítica

desse conjunto.

■ Ler e analisar textos dos autores selecionados, reconhecendo as características

definidoras dessa produção.

ementaEstudo da obra dos autores portugueses Luiz Vaz de Camões, Cesário Verde e

Fernando Pessoa.

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A épica camoniana

ObjetivOs De aPRenDiZaGem

■ Refletir sobre as condições de produção, circulação e recepção da obra Os

lusíadas.

■ Estabelecer e discutir as relações dos textos selecionados para este livro

com outros tipos de discurso e com os contextos que os inserem.

■ Relacionar os textos literários a serem lidos com os problemas e concepções

dominantes na cultura do período em que foram escritos e com os problemas

e concepções do presente.

ROteiRO De estUDOs ■ SEÇÃO 1 - Camões e Os lusíadas

■ SEÇÃO 2 - Episódios Analisados

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SEÇÃO 1 CAMÕES E OS LUSÍADAS

Luiz de CamõesCréditos: George J Hagar (1847-1921)

Dominio Público, via Wikimedia Commons

1. Camões e Os lusíadas

A partir deste momento, você tem a oportunidade de realizar

um contato direto com um dos textos mais importantes não apenas da

Literatura Portuguesa, mas dos constituídos em Língua Portuguesa. Os

lusíadas faz parte do que podemos chamar de patrimônio coletivo, ou

seja, ocupa um lugar de destaque no conjunto de riquezas, como diz

Umberto Eco, imateriais que os seres humanos vão produzindo ao longo

da sua existência.

Você, com certeza, já ouviu falar bastante sobre essa tão importante

obra da literatura em Língua Portuguesa. E, claro, já sabe que essa

importância atravessou, inclusive, as fronteiras do idioma. A partir deste

momento do seu curso de Letras, você tem, portanto, a maravilhosa

oportunidade de se debruçar sobre ela e, sem abrir mão do prazer da

leitura, refletir profissionalmente sobre os aspectos que tornam essa

epopeia tão significativamente parte do que somos todos, inclusive nós

brasileiros do século XXI, aparentemente tão distantes não apenas da

época da produção do texto (a publicação data de 1578), como também

do período ali figurado (a descoberta do caminho marítimo para a Índia).

Se você consultar o Dicionário de termos literários, do professor

Massaud Moisés, encontrará a seguinte definição para a poesia épica:

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“deve girar em torno de assunto ilustre, sublime, solene, especialmente vinculado a cometimentos bélicos; deve prender-se a acontecimentos históricos, ocorridos há muito tempo, para que o lendário se forme e/ou permita que o poeta lhes acrescente com liberdade o produto da sua fantasia; o protagonista da ação há de ser um herói de superior força física e psíquica, embora de constituição simples, instintivo, natural; o amor pode inserir-se na trama heroica, mas em forma de episódios isolados. (...) Do ponto de vista da estrutura, o poema épico se desdobraria em três partes autônomas: a proposição, a invocação e a narração. A narração deve obedecer a uma sequência lógica; entretanto, à ordem cronológica seria preferível a artificial, que surpreende a ação em meio (in medias res).” (2004, p. 184)

Feita a leitura da obra, é possível pensar se esses preceitos foram

ou não seguidos por Camões. Mas é claro que você precisa, para efetivar

esse exercício de modo adequado, lembrar que ir ao dicionário e fazer essa

verificação só é possível porque estamos tratando de uma obra produzida

quando os modelos clássicos estavam vigentes. Para uma revisão sobre

os modos como a crítica literária aborda os textos, reveja seus estudos de

Teoria Literária.

Também é importante que você retome as considerações feitas no

livro anterior de Literatura Portuguesa quando as reflexões sobre o fazer

literário estavam, muito frequentemente, inseridas no corpo do texto

ficcional, no que os estudos de Teoria Literária convencionaram chamar

de ‘ironia romântica’ (as muitas digressões presentes em Viagens na

minha terra, assim como a caricatura do poeta romântico, efetivada no

personagem Tomás de Alencar, de Os Maias e, finalmente, o permanente

refletir de Alberto Soares, sobre o livro de memórias que compunha, em

Aparição foram os exemplos mais detidamente estudados para demonstrar

como a crítica literária, a partir do final do século XVIII, passou a ser

exercida, em grande medida, pelos próprios autores). Assim, você terá

condições de compreender que, no mundo em que Camões viveu, escrever

bons textos significava, como ficou claro na definição apresentada acima,

pelo professor Massaud Moisés, obedecer a uma série de regras, visto

que a beleza estava na simetria, na harmonia entre as partes.

E que mundo é esse em que Camões viveu, para entendermos os

padrões de beleza lá vigentes. O século XVI, em termos de narrativa,

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retomou as epopeias do chamado mundo antigo, quando, mais ou menos

entre o século XII e o VIII antes de Cristo, ouvir trechos da Ilíada ou

da Odisseia era algo tão corriqueiro quanto é para nós acessarmos a

internet ou irmos ao cinema e assistirmos a filmes ou documentários

sobre determinada época passada. Da mesma forma que reconhecemos

um modo de fazer filmes de ficção no nosso mundo (reconhecemos

imediatamente um estilo próprio do contemporâneo, diferentemente

do que percebemos ao ver cinema mudo, por exemplo), os cidadãos

do mundo antigo reconheciam no verso um modo muito específico de

registrar os feitos de seus antepassados (como você bem sabe, Os lusíadas,

recuperando essa forma de registro, foi produzido em versos).

Tanto a Ilíada quanto a Odisseia são considerados poemas épicos

naturais ou primitivos, já que foram produzidos espontaneamente e de

forma anônima. Eram cantos populares que começaram a circular pouco

tempo depois da guerra entre gregos e troianos, na tentativa de expressar

o pensamento de grupos para os quais a noção de Estado ainda não

estava definida. Por volta do século VIII, os fragmentos dessas narrativas

de guerra teriam sido unificados por um suposto aedo ou cantor popular

a que a tradição deu o nome de Homero.

O poeta grego Homero, ladeado por Dante (à esquerda) e pelo romano Virgílio, em afresco do pintor Rafael, no Palácio do Vaticano

Crédito: Wikkimedia Commons

Essas epopeias tiveram uma enorme influência na cultura romana,

sobretudo na época do nascimento de Cristo, quando se funda o Império

como forma de organização política em Roma, tanto que, preocupado

em legitimar os valores de Roma pela arte, o imperador Otávio Augusto

encomendou ao poeta Virgílio (um dos três maiores poetas romanos da

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época, juntamente com Horácio e Ovídio, todos dependentes da proteção

de Mecenas ou do próprio imperador) um poema épico que fosse

semelhante aos homéricos. E assim foi produzida a Eneida, narrativa

das aventuras de Eneias, herói troiano que, depois de ter sua cidade

destruída pelos gregos, foi obrigado a buscar um lugar seguro para si e

seus seguidores. É desse modo que ele chega ao Lácio, de onde partirão

os fundamentos para a posterior grandeza de Roma.

Se os textos homéricos são, como se disse, espontâneos, os da

Eneida são feitos sob encomenda com claros objetivos políticos e

possuem, portanto, um autor a quem coube colocar em ordem, ainda que

artística, a história e os mitos daquele povo. De forma similar, quando

Camões produz Os lusíadas há um interesse em registrar as origens de

Portugal até a expansão mercantilista vivida durante o Renascimento,

com destaque para a descoberta do caminho marítimo para as Índias,

ocorrida entre 1497 e 1499, sob o comando de Vasco da Gama.

Naturalmente Camões não foi o único escritor interessado em

louvar as honras de Portugal. O italiano Angelo Poliziano se ofereceu

a D. João II (responsável pela descoberta do Cabo das Tormentas,

levada a efeito por Bartolomeu Dias, em 1478) para compor em latim

um poema que narrasse a história de Portugal. No Cancioneiro Geral, de

Garcia de Resende, de 1516, também há referências nesse sentido. Mas

o interesse não era apenas dos poetas, pois também alguns historiadores

propriamente ditos se manifestaram, como foi o caso de João de Barros

(1497-1562), que pretendeu compor uma espécie de enciclopédia a partir

dos feitos dos portugueses na Europa, na África, na Ásia e na América.

Não há precisão a respeito do nascimento de Camões, que deve

ter ocorrido em 1525. O mesmo é possível dizer sobre a sua formação:

não há registros oficiais, mas é muito provável que ele tenha frequentado

a Universidade de Coimbra. O que se sabe com certeza é que foi um

homem que desde muito jovem acumulou uma imensa erudição, que

incluía conhecimentos de literatura, mitologia, história, geografia e

astronomia. Era também, como atesta tanto a sua produção lírica (não

contemplada diretamente nesta disciplina) quanto Os lusíadas, um

profundo conhecedor dos sentimentos humanos.

Camões permaneceu como poeta palaciano por algum tempo na

corte de D. Manuel e depois partiu para o Oriente. Lá ficou por quase

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vinte anos, inclusive boa parte de Os lusíadas foi escrita em Goa. Em

1570, o poeta volta em definitivo para Portugal onde, patrocinado pelo rei

D. Sebastião (1554-1578), publica em 1572 o poema épico Os lusíadas.

A cidade indiana de Goa, que já foi parte dos territórios portugueses na ÍndiaCrédito: Wikkimedia Commons

Apesar de o poema ter muito claramente um ideário político-

ideológico, ou seja, evidenciar a concepção de que Portugal tinha

uma missão civilizadora que incluía impor sua religião e sua doutrina

política, é preciso que não se perca de vista o fato de que ele alcança uma

extraordinária elevação artística. Se o ponto de partida é a viagem de

Vasco da Gama à Índia, eventos anteriores a ela serão narrados (como por

exemplo o famoso episódio conhecido como o Velho do Restelo); assim

como os que se darão durante o deslocamento (aqui o mais conhecido

é o do Gigante Adamastor) e, naturalmente, os que organizam a volta

para Portugal (o episódio da Ilha dos Amores, em que Camões descreve

a máquina do Mundo, é o mais representativo desse momento). Muitos

desses eventos, como se pode perceber, são revestidos de fantasia, de

referências à mitologia, de um modo de narrar que autoriza que se

referende o lugar ocupado por esse texto no conjunto de produções

excepcionais no universo literário.

Mais que a história de Portugal, Os lusíadas registra o humano que

há em todos nós, mesmo quando se trata, como é aqui o caso, de cidadãos

do século XXI. Como é comum em todas as obras literárias que sobrevivem

ao tempo, o que temos é a representação das grandezas e das fragilidades

de homens incumbidos de encontrar um sentido para a sua existência,

daí a busca pelo desconhecido e, claro, por conhecer os próprios limites.

Pensando numa comparação um tanto temerária, desvendar e dominar o

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mar, nos séculos XV e XVI, equivale, guardadas as devidas proporções,

às tentativas contemporâneas de conquista espacial; equivale, portanto,

à representação do homem na tentativa de vencer a si mesmo e suas

limitações.

Referências ao mar e seus perigos, lendas pagãs, celebração do sexo,

o exotismo do mundo oriental, recriação de lendas do passado português,

intrigas e amores entre os deuses, tudo se funde na narração do feito de

Vasco da Gama. Valorização da força física e da arte da guerra também

são temas recorrentes, por isso é importante compreender, sob pena de

julgar Camões com os olhos contemporâneos, que não é a violência que é

ali colocada em lugar de destaque, mas sim as normas do gênero épico,

ou seja, as qualidades guerreiras do povo escolhido como tema precisam

ser destacadas. Além dessa questão de gênero literário, também é preciso

lembrar que o mundo em que Os lusíadas foi composto vivia a expansão do

Cristianismo, o que se confundiu, muitas vezes, com o ideal de guerra santa.

Para o leitor do mundo contemporâneo, em geral, os episódios

considerados líricos (tanto aqueles em que as agruras do amor são trazidas

para o centro, quanto aqueles em que as incertezas humanas ocupam

esse lugar) de Os lusíadas agradam mais, visto que os movimentos em

prol da expansão de território e de crença são hoje interpretados com

alguma ressalva. É o caso, por exemplo, dos episódios de Inês de Castro,

do Velho do Restelo, do Gigante Adamastor e da Ilha dos Amores, que

veremos mais adiante.

1.1 ESTRUTURA

Os lusíadas impressiona por variados motivos, um deles, a estrutura,

que pode ser resumida em números: o poema é dividido em 10 cantos,

distribuídos em 1102 estrofes, todas de oito versos (oitavas) decassílabos.

São, portanto, 8816 versos, rigidamente metrificados e rimados (o

esquema de todas elas é ABABABCC). Os ideais clássicos de simetria e

harmonia foram, como se vê, levados muito a sério por Camões.

Essa rigidez se revela também em outros aspectos: a Ilíada, a Odisseia,

assim como a Eneida se iniciam com uma proposição e uma invocação, ou

seja, começam com a apresentação dos propósitos, dos objetivos, o anúncio

propriamente dito do assunto a ser ali tratado, seguido de um pedido,

quase uma oração, às musas, para que garantissem a inspiração necessária

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para levar a efeito o que havia sido apresentado. Em Os lusíadas não é

diferente. Acompanhe as três primeiras estrofes do poema:

As armas e os barões assinalados,Que da ocidental praia Lusitana,Por mares nunca de antes navegados,Passaram ainda além da Taprobana,Em perigos e guerras esforçados,Mais do que prometia a força humana,E entre gente remota edificaramNovo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosasDaqueles Reis, que foram dilatandoA Fé, o Império, e as terras viciosasDe África e de Ásia andaram devastando;E aqueles, que por obras valerosasSe vão da lei da morte libertando;Cantando espalharei por toda parte,Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do TroianoAs navegações grandes que fizeram;Cale-se de Alexandro e de TrajanoA fama das vitórias que tiveram;Que eu canto o peito ilustre Lusitano,A quem Neptuno e Marte obedeceram:Cesse tudo o que a Musa antígua canta,Que outro valor mais alto se alevanta.

Como você pode perceber, nas duas primeiras estrofes temos um

único período, em que se enumera o que o verbo no futuro do presente

‘espalharei’ (penúltimo verso da segunda estrofe) afirma: divulgar, em

forma próxima da música (Cantando), as grandezas dos portugueses: os

nobres guerreiros, os reis expansionistas, assim como os heróis e reis que

se imortalizaram através de outras obras (E aqueles que por obras valerosas

/ Se vão da lei da morte libertando:). Na terceira estrofe, os escolhidos

são os navegantes portugueses, comparados aos maiores navegantes da

Antiguidade, para, como seria de se esperar, colocar os lusitanos acima de

todos os outros: repare na sequência de uso dos verbos ‘Cessem’, ‘cale-se’

e ‘Cesse’. Tudo, portanto, que se sabia ou que se havia louvado até então

pode ser minimizado, já que ‘outro valor mais alto se alevanta’.

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Nas duas estrofes seguintes, as da Invocação, o que se faz é pedir

uma ajudinha nessa tão grande empreitada:

E vós, Tágides minhas, pois criadoTendes em mim um novo engenho ardente,Se sempre em verso humilde celebradoFoi de mim vosso rio alegremente,Dai-me agora um som alto e sublimado,Um estilo grandíloquo e corrente,Porque de vossas águas, Febo ordeneQue não tenham inveja às de Hipoerene.

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,E não de agreste avena ou frauta ruda,Mas de tuba canora e belicosa,Que o peito acende e a cor ao gesto muda;Dai-me igual canto aos feitos da famosaGente vossa, que a Marte tanto ajuda;Que se espalhe e se cante no universo,Se tão sublime preço cabe em verso.

O vocativo ‘Tágides minhas’ (referência às entidades portuguesas

que, à maneira das ninfas da mitologia, habitariam o Tejo) vem

acompanhado do pedido: ‘Dai-me agora um som alto e sublimado’; logo

na estrofe seguinte: ‘Dai-me uma fúria grande e sonorosa,’. O uso do

‘agora’ permite que percebamos que a voz enunciadora afirma já ter

recebido auxílio das Tágides inspiradoras, para outro tipo de texto (releia

o terceiro e o quarto versos), mas agora o assunto é outro, por isso as

referências a ‘estilo grandíloquo’, a ‘fúria grande e sonorosa’, ‘de tuba

canora e belicosa’. A Invocação se encerra com o desejo de que não

apenas se alcance o proposto, mas que o canto ‘se espalhe e se cante no

Universo’, o que não há dúvidas de que se efetivou.

A partir da sexta estrofe, tem início a dedicatória do poema , em que

o ‘eu’ que narra se dirige a Dom Sebastião, tecendo-lhe elogios e, mais

precisamente, tentando garantir o que de fato se deu: o apoio financeiro

para a publicação. Até a estrofe de número 18, temos a louvação de

Portugal, mas sobretudo do jovem rei que, à época, tinha 18 anos e era

obcecado pela ideia de conquistar grande parte do mundo, começando

pelo norte da África. Não deixe de acompanhar em seu volume de

Os lusíadas a forma como o texto colabora no engrandecimento, na

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idealização da nação portuguesa, incitando o rei a levar adiante o projeto

de garantir a autonomia política do país e a difusão do Cristianismo entre

povos considerados pagãos.

Com a estrofe 19, Camões nos apresenta os navegantes já no meio

da viagem, em pleno oceano Índico. A estrutura se dá, portanto, na forma

que a teoria literária convencionou chamar de in medias res, expressão

latina que significa, ao pé da letra, ‘no meio das coisas’. Só bem à frente,

no Canto IV, no já mencionado episódio do Velho do Restelo, é que são

narrados os eventos relativos ao momento da partida de Portugal, de

modo que a narrativa começa pelo meio da viagem.

Edição de “Os lusíadas” datada de 1609. A primeira edição, de 1572, teve apenas 200 exemplares hoje raríssimos

Crédito: Wikkimedia Commons

Num ritmo acelerado de surpresas e aventuras, somos apresentados

ao assunto geral do poema, a viagem de Vasco da Gama, mas também à

interferência dos deuses da mitologia greco-latina, assim como às lendas

dos primeiros habitantes da Lusitânia, à formação do Estado português

por Afonso Henriques, aos empreendimentos dos treze primeiros reis

portugueses até chegar a D. Manuel (1469-1521), responsável por

incumbir Vasco da Gama de desbravar os oceanos.

1. Dom Afonso Henriques (1106-1185) 2. D. Sancho I (1154-1211)

3. D. Afonso II (1185-1223) 4. D. Sancho II (1209-1248) 5. D. Afonso

III (1211-1279) 6. D. Dinis (1279-1325) 7. D. Afonso IV (1291-1357)

8. D. Pedro I (1320-1367) 9. D. Fernando (1345-1383) 10. D. João I

(1356-1433) 11. D. Duarte (1391-1438) 12. D. Afonso V (1432-1481)

13. D. João II (1455-1495)

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Há, portanto, dois planos muito evidentes em Os lusíadas: um

histórico e outro mítico, que se cruzam ao longo da viagem. Historicamente,

Camões cria uma estratégia: coloca os navegantes fazendo uma parada

em Melinde, na costa africana, onde são recebidos pelo rei, a quem

Vasco da Gama narra, cronologicamente, a história de Portugal desde

sua fundação até o momento em que está se dando a viagem. No plano

mítico, destaca-se a figura de Vênus, deusa do amor, e a de Baco, deus

do vinho. Em polos opostos, ela protege os portugueses, porque os acha

semelhantes aos latinos, enquanto Baco tenta impedi-los de chegar à

Índia, temendo perder seus súditos nas terras indianas. Como se sabe, a

viagem será um sucesso, tanto que, na volta para casa, Vênus os premia

com a visita à mítica Ilha dos Amores, em que os prazeres da carne serão

acompanhados de um prêmio de caráter intelectual: o conhecimento da

máquina do Mundo como se verá mais adiante.

SEÇÃO 2EPISÓDIOS ANALISADOS

2.1. INÊS DE CASTRO

O leitor é claramente uma das preocupações nesse episódio de

evidente vinculação histórica narrado em Os lusíadas, visto que o

poema toma o partido de Inês, estimulando a piedade em relação a essa

personagem que se tornou parte da cultura portuguesa. A união real de

Inês de Castro com o príncipe D. Pedro I (lembre-se de que o nosso D. Pedro

I, o que proclamou a nossa independência, era, em Portugal, D. Pedro

IV) não foi aceita pelo poder português (ela era espanhola), representado

pelo rei D. Afonso IV e seus conselheiros, que determinaram que ela

fosse executada. Acompanhe em seu volume, no Canto III, estrofes 98 a

135. O texto narra antecedentes históricos à tragédia de Inês: o reinado

de D. Afonso IV foi marcado por duas grandes guerras, a primeira contra

Castela (ver em especial a estrofe 99, Canto III) e a segunda que ficou

conhecida como a Batalha de Salado (estrofes 107-117, Canto III). Essa

batalha aconteceu no dia 28 de outubro de 1340, na cidade de Tarifa, na

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Andaluzia, às margens do rio Salado, contra as forças muçulmanas, ou

seja, mesmo estando Portugal e Castela em permanente conflito, nesse

caso, em nome de um bem comum (a manutenção do Cristianismo)

juntam-se e derrotam o inimigo. Confira nas estrofes 103-105, do Canto

III, o discurso da rainha de Castela, pedindo ajuda ao rei português,

momento de grande relevância, visto que Camões, uma vez mais, coloca

os portugueses em posição de superioridade.

Na economia narrativa, é logo após a vitória na Batalha de Salado,

momento em que o rei retorna a Portugal, feliz e satisfeito, que se dá o

“caso triste e Dino de memória / Que do sepulcro os homens desenterra, /

Aconteceu da mísera e mesquinha / Que despois de ser morta foi rainha.”

(estrofe 118, Canto III).

OS FATOS REAIS DA TRAJETÓRIA DE INÊS:

1320: Em Coimbra, a 8 de abril, nasce o príncipe D. Pedro, filho de D. Afonso IV, rei de Portugal.

1340: D. Afonso IV participa na batalha do Salado ao lado de Afonso XI de Castela, é a vitória decisiva da cristandade sobre os mouros da Península Ibérica. Inês de Castro, dama galega, vem para Portugal no séquito de D. Constança, noiva castelhana de D. Pedro; paixão adúltera e fulminante de Pedro por Inês.

1345: Nasce D. Fernando, filho de D. Constança e de D. Pedro.

1349 ?: Morte de D. Constança.

1354: Influenciado pelos Castro (irmãos de Inês), D. Pedro mostra-se disposto a intervir nas lutas dinásticas castelhanas.

1355: A 7 de janeiro, com o consentimento d’el-Rei D. Afonso IV, nos paços de Santa Clara (Coimbra), Diogo Lopes Pacheco, Pedro Coelho e Álvaro Gonçalves degolam Inês de Afonso IV, nos paços de Santa Clara (Coimbra), Diogo Lopes Pacheco, Pedro Coelho e Álvaro Gonçalves degolam Inês de Afonso IV, nos paços de Santa Clara (Coimbra), Diogo Lopes

Castro; revolta de D. Pedro contra o pai.

1357: Morte de D. Afonso IV; D. Pedro sobe ao trono e manda executar os assassinos de Inês de Castro.

1361: Do Mosteiro de Santa Clara (Coimbra) para o Mosteiro de Alcobaça, D. Pedro I manda trasladar os restos mortais de Inês de Castro.

1367: A 18 de janeiro morre D. Pedro I, em Estremoz.

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Túmulos de Inês e de D. Pedro, no mosteiro de Alcobaça, em PortugalCrédito: Wikkimedia Commons

A partir da estrofe 119, temos a escolha do modo como a história

real de Inês de Castro foi contada por Camões: o tratamento dado ao

ocorrido coloca em destaque as forças do amor, personificado, como

responsável pela tragédia dos amantes. Os eventos políticos que cercaram

o assassinato são escassamente explorados. Confira:

119“Tu só, tu, puro Amor, com força crua,Que os corações humanos tanto obriga,Deste causa à molesta morte sua,Como se fora pérfida inimiga.Se dizem, fero Amor, que a sede tuaNem com lágrimas tristes se mitiga,É porque queres, áspero e tirano,Tuas aras banhar em sangue humano.

120“Estavas, linda Inês, posta em sossego,De teus anos colhendo doce fruto,Naquele engano da alma, ledo e cego,Que a fortuna não deixa durar muito,Nos saudosos campos do Mondego,De teus fermosos olhos nunca enxuto,Aos montes ensinando e às ervinhasO nome que no peito escrito tinhas.

121“Do teu Príncipe ali te respondiamAs lembranças que na alma lhe moravam,Que sempre ante seus olhos te traziam,Quando dos teus fermosos se apartavam:De noite em doces sonhos, que mentiam,

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De dia em pensamentos, que voavam.E quanto enfim cuidava, e quanto via,Eram tudo memórias de alegria.

122“De outras belas senhoras e PrincesasOs desejados tálamos enjeita,Que tudo enfim, tu, puro amor, despreza,Quando um gesto suave te sujeita.Vendo estas namoradas estranhezasO velho pai sesudo, que respeitaO murmurar do povo, e a fantasiaDo filho, que casar-se não queria,

123“Tirar Inês ao mundo determina,Por lhe tirar o filho que tem preso,Crendo co’o sangue só da morte indinaMatar do firme amor o fogo aceso.Que furor consentiu que a espada fina,Que pôde sustentar o grande pesoDo furor Mauro, fosse alevantadaContra uma fraca dama delicada?

124“Traziam-na os horríficos algozesAnte o Rei, já movido a piedade:Mas o povo, com falsas e ferozesRazões, à morte crua o persuade.Ela com tristes o piedosas vozes,Saídas só da mágoa, e saudadeDo seu Príncipe, e filhos que deixava,Que mais que a própria morte a magoava,

125“Para o Céu cristalino alevantandoCom lágrimas os olhos piedosos,Os olhos, porque as mãos lhe estava atandoUm dos duros ministros rigorosos;E depois nos meninos atentando,Que tão queridos tinha, e tão mimosos,Cuja orfandade como mãe temia,Para o avô cruel assim dizia:

126- “Se já nas brutas feras, cuja mente

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Natura fez cruel de nascimento,E nas aves agrestes, que somenteNas rapinas aéreas têm o intento,Com pequenas crianças viu a genteTerem tão piedoso sentimento,Como coa mãe de Nino já mostraram,E colos irmãos que Roma edificaram;

127- “Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito (Se de humano é matar uma donzela Fraca e sem força, só por ter sujeito O coração a quem soube vencê-la) A estas criancinhas tem respeito, Pois o não tens à morte escura dela; Mova-te a piedade sua e minha,Pois te não move a culpa que não tinha.

128- “E se, vencendo a Maura resistência,A morte sabes dar com fogo e ferro,Sabe também dar vicia com clemênciaA quem para perdê-la não fez erro.Mas se to assim merece esta inocência,Põe-me em perpétuo e mísero desterro,Na Cítia f ria, ou lá na Líbia ardente,Onde em lágrimas viva eternamente.

129“Põe-me onde se use toda a feridade,Entre leões e tigres, e vereiSe neles achar posso a piedadeQue entre peitos humanos não achei:Ali com o amor intrínseco e vontadeNaquele por quem morro, criareiEstas relíquias suas que aqui viste,Que refrigério sejam da mãe triste.” -

130“Queria perdoar-lhe o Rei benino,Movido das palavras que o magoam;Mas o pertinaz povo, e seu destino(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.Arrancam das espadas de aço finoOs que por bom tal feito ali apregoam.Contra uma dama, ó peitos carniceiros,

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Feros vos amostrais, e cavaleiros?

131“Qual contra a linda moça Policena,Consolação extrema da mãe velha,Porque a sombra de Aquiles a condena,Co’o ferro o duro Pirro se aparelha;Mas ela os olhos com que o ar serena(Bem como paciente e mansa ovelha)Na mísera mãe postos, que endoudece,Ao duro sacrifício se oferece:

132“Tais contra Inês os brutos matadoresNo colo de alabastro, que sustinhaAs obras com que Amor matou de amoresAquele que depois a fez Rainha;As espadas banhando, e as brancas flores,Que ela dos olhos seus regadas tinha,Se encarniçavam, férvidos e irosos,No futuro castigo não cuidosos.

133“Bem puderas, ó Sol, da vista destesTeus raios apartar aquele dia,Como da seva mesa de Tiestes,Quando os filhos por mão de Atreu comia.Vós, ó côncavos vales, que pudestesA voz extrema ouvir da boca fria,O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,Por muito grande espaço repetisses!

134“Assim como a bonina, que cortadaAntes do tempo foi, cândida e bela,Sendo das mãos lascivas maltratadaDa menina que a trouxe na capela,O cheiro traz perdido e a cor murchada:Tal está morta a pálida donzela,Secas do rosto as rosas, e perdidaA branca e viva cor, coa doce vida.

135“As filhas do Mondego a morte escuraLongo tempo chorando memoraram,E, por memória eterna, em fonte pura

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As lágrimas choradas transformaram;O nome lhe puseram, que inda dura,Dos amores de Inês que ali passaram.Vede que fresca fonte rega as flores,Que lágrimas são a água, e o nome amores.

136“Não correu muito tempo que a vingançaNão visse Pedro das mortais feridas,Que, em tomando do Reino a governança,A tomou dos fugidos homicidas.Do outro Pedro cruíssimo os alcança,Que ambos, imigos das humanas vidas,O concerto fizeram, duro e injusto,Que com Lépido e António fez Augusto.

137“Este, castigador foi rigorosoDe latrocínios, mortes e adultérios:Fazer nos maus cruezas, fero e iroso,Eram os seus mais certos refrigérios.As cidades guardando justiçosoDe todos os soberbos vitupérios, Mais ladrões castigando à morte deu,Que o vagabundo Aleides ou Teseu.

138“Do justo e duro Pedro nasce o brando, (Vede da natureza o desconcerto!)Remisso, e sem cuidado algum, Fernando,Que todo o Reino pôs em muito aperto:Que, vindo o Castelhano devastandoAs terras sem defesa, esteve pertoDe destruir-se o Reino totalmente;Que um fraco Rei f az fraca a forte gente.

Ao escolher personificar o Amor (grafado alegoricamente com

maiúscula), Camões coloca Inês no mesmo patamar de outras grandes

apaixonadas da humanidade, espalhadas pela literatura de diversos

países: Dido, Cleópatra, Julieta, Lindoia, Moema, Iracema, Lucíola,

Emma Bovary, Ana Karenina e muitas outras. Para tornar o episódio

ainda mais comovente, Camões lança mão de um expediente que confere

esse tom dramático ao texto (Aristóteles, que tanto valorizou o terror e

a piedade, certamente teria aprovado essa escolha): a partir da estrofe

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126, a própria Inês assume a fala. Discursa em nome de sua inocência,

advogando em favor dos filhos que tivera com Pedro, netos, portanto, de D.

Afonso, diante do próprio rei, o que, se na realidade dos fatos não caberia

(o rei mandou matá-la, naturalmente não estava presente no momento da

execução), no texto literário funciona muito bem. Morre Inês, enaltecida

pelo amor e pela coragem de enfrentar de cabeça erguida a sentença real

(estrofes 131 e 132, Canto III).

Da estrofe 136 até a 138, do Canto III, temos a narrativa da sangrenta

vingança de Pedro que, após se tornar rei, mata os assassinos de Inês,

assim como do modo violento como passou a castigar os súditos que, no

entender dele, mereciam também a morte. Não foi à toa que D. Pedro

ganhou o epíteto de Pedro, o cru (cruel). O episódio termina (estrofe 138)

com a menção ao herdeiro do trono, D. Fernando “Que todo o reino pôs

em muito aperto; (...) / Que um fraco rei faz fraca a forte gente”, e portanto

com a clara tomada de posição (algo equivalente ao que chamamos de

narrador intruso) da voz narrativa, que faz questão de sublinhar que

a tentativa de impedir que um dos filhos de Inês assumisse o trono

português revelou-se uma vitória de Pirro (rei de Épiro, atual Macedônia,

que em 280 a.C. derrotou os romanos em uma famosa batalha vencida

com alto custo em perdas humanas e financeiras. Desde então seu nome

é associado a vitórias potencialmente causadoras de prejuízos).

A lenda de que D. Pedro teria exumado o corpo de Inês e obrigado

um sacerdote a oficiar o casamento entre eles gerou o famoso ditado “Inês

é morta”, para se referir a situações em que qualquer providência que

possa ser tomada já não alterará o acontecido. Mas, você deve imaginar

o quanto essa história se tornou cara aos portugueses; a trágica história

dos amantes se tornou parte da cultura do povo lusitano e, naturalmente,

inspirou muitas outras obras. Confira algumas no box ao lado.

A Castro ou Tragédia muy sentida e Elegante de Dona Inês de Castro, de António Ferreira é a primeira tragédia clássica portuguesa, tendo por base a vida e morte de Inês de Castro, publicada em 1587.Em 1997, foi publicado Inês de Portugal, um romance histórico de autoria do escritor português João Aguiar, inicialmente escrito como roteiro para o filme Inês de Portugal.Em 1803, em Milão, Niccolò António Zingarelli apresentou a ópera Inês de Castro, inspirada nos amores de Pedro e Inês.

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2.2. VELHO DO RESTELO – CANTO IV

Contrariando o espírito laudatório, característica maior do discurso

das epopeias, o episódio do Velho do Restelo (assim o Epílogo) nos

apresenta uma série de críticas ao governo português, em seu ideal

expansionista e consequente descuido com os problemas internos do

país. O expediente camoniano foi, aqui no Canto IV, recuar o tempo

do enunciado para o momento da partida: a praia do Restelo (local de

onde partiram os navegantes, no dia 8 de julho de 1497) é escolhida

para figurar as reações daqueles que ficavam em Portugal, sobretudo

mulheres, crianças e idosos, enquanto os homens saíam em busca de

riqueza e poder.

Chegada de Vasco da Gama em Calicute, em 1498

Crédito: Wikkimedia Commons

Não deixe de dar atenção ao fato de que aqui as vozes são (como no

caso de Inês) dadas aos que não são protagonistas da viagem.

A partida propriamente dita começa na estrofe 84 (confira em seu

exemplar), com a procissão solene e as despedidas. Na 94 é que se inicia

a fala desse que é um dos personagens mais ilustres de Os lusíadas:

A ARMADA DE VASCO DA GAMA ERA COMPOSTA POR QUATRO NAUS: SÃO GABRIEL, DE VASCO DA GAMA; SÃO RAFAEL, DE PAULO DA GAMA E BÉRRIO, DE NICOLAU COELHO; UMA QUARTA NAU TRANSPORTAVA OS ALIMENTOS

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94“Mas um velho d’aspeito venerando,Que ficava nas praias, entre a gente,Postos em nós os olhos, meneandoTrês vezes a cabeça, descontente,A voz pesada um pouco alevantando,Que nós no mar ouvimos claramente,C’um saber só de experiências feito,Tais palavras tirou do experto peito:

95- “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça Desta vaidade, a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C’uma aura popular, que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades neles experimentas!

96- “Dura inquietação d’alma e da vida,Fonte de desamparos e adultérios,Sagaz consumidora conhecidaDe fazendas, de reinos e de impérios:Chamam-te ilustre, chamam-te subida,Sendo dina de infames vitupérios;Chamam-te Fama e Glória soberana,Nomes com quem se o povo néscio engana!

97- “A que novos desastres determinasDe levar estes reinos e esta gente?Que perigos, que mortes lhe destinasDebaixo dalgum nome preminente?Que promessas de reinos, e de minasD’ouro, que lhe farás tão facilmente?Que famas lhe prometerás? que histórias?Que triunfos, que palmas, que vitórias?

98- “Mas ó tu, geração daquele insano,Cujo pecado e desobediência,Não somente do reino soberanoTe pôs neste desterro e triste ausência,Mas inda doutro estado mais que humanoDa quieta e da simples inocência,Idade d’ouro, tanto te privou,Que na de ferro e d’armas te deitou:

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99- “Já que nesta gostosa vaidadeTanto enlevas a leve fantasia,Já que à bruta crueza e feridadePuseste nome esforço e valentia,Já que prezas em tanta quantidadesO desprezo da vida, que deviaDe ser sempre estimada, pois que jáTemeu tanto perdê-la quem a dá:

100- “Não tens junto contigo o Ismaelita,Com quem sempre terás guerras sobejas?Não segue ele do Arábio a lei maldita,Se tu pela de Cristo só pelejas?Não tem cidades mil, terra infinita,Se terras e riqueza mais desejas?Não é ele por armas esforçado,Se queres por vitórias ser louvado?

101- “Deixas criar às portas o inimigo,Por ires buscar outro de tão longe,Por quem se despovoe o Reino antigo,Se enfraqueça e se vá deitando a longe?Buscas o incerto e incógnito perigoPor que a fama te exalte e te lisonge,Chamando-te senhor, com larga cópia,Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?

102- “Ó maldito o primeiro que no mundoNas ondas velas pôs em seco lenho,Dino da eterna pena do profundo,Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!Nunca juízo algum alto e profundo,Nem cítara sonora, ou vivo engenho,Te dê por isso fama nem memória,Mas contigo se acabe o nome e glória.

103- “Trouxe o filho de Jápeto do CéuO fogo que ajuntou ao peito humano,Fogo que o mundo em armas acendeuEm mortes, em desonras (grande engano).Quanto melhor nos fora, Prometeu,E quanto para o mundo menos dano,Que a tua estátua ilustre não tiveraFogo de altos desejos, que a movera!

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104- “Não cometera o moço miserandoO carro alto do pai, nem o ar vazioO grande Arquiteto co’o filho, dandoUm, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.Nenhum cometimento alto e nefando,Por fogo, ferro, água, calma e frio,Deixa intentado a humana geração.Mísera sorte, estranha condição!”

O discurso imponente e corrosivo não deixa dúvidas quanto ao

ponto de vista desse que representa, metonimicamente, a voz de muitos

dos descontentes. Ressalta-se a imprudência da viagem e os reais motivos

por trás da motivação religiosa: cobiça, glória, poder. Apresentado como

“de aspeito venerando” e “cum saber só de experiências feito” (estrofe

94), o Velho ganha então a imediata simpatia do leitor, que ‘ouve’

respeitosamente a sua fala que, entre outras associações, aproxima a

aventura portuguesa de toda a trajetória humana. Adão é, por exemplo,

utilizado como amostra das consequências da desobediência: “Mas, ó tu,

geração daquele insano / Cujo pecado e desobediência” (estrofe 98). Da

mesma forma, na estrofe 103, outro desobediente famoso é trazido à cena:

trata-se do mito de Prometeu, filho de Jápeto, era um dos Titãs revoltosos

contra o reinado de Júpiter. Depois de ter feito uma estátua de barro,

Prometeu roubou o fogo dos deuses para dar vida à sua criatura; seu

castigo foi ter o fígado permanentemente sendo comido pelos abutres e

reconstituído. O Velho do Restelo chega a desejar que Prometeu nunca

tivesse feito o que fez, assim o homem não teria sido tentado com o desejo

de criar.

Como estamos diante de um poema de moldes clássicos, o texto

nos autoriza a pensar no Velho do Restelo e nos demais personagens que

ficam à margem da viagem como uma representação do coro tradicional

grego, cuja função nas tragédias antigas era justamente a de promover

uma reflexão, através de comentários de caráter filosófico, moral, ético etc.

Assim, a fala do Velho do Restelo se dirige ao rei de Portugal à época, mas

também a mim e a você que lê este texto neste momento. A advertência é

ao humano de modo muito amplo.

Mas, do ponto de vista estrutural, não se pode esquecer que

todos os Cantos do poema se encerram de modo muito similar, trata-

se do epifonema, um procedimento retórico que se caracteriza por ser

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exclamativo e servir como uma espécie de arremate reflexivo. Confira

essa presença dos epifonemas relendo os finais dos Cantos do poema.

O escritor português José Saramago

Crédito: Mario Antonio Pena / Wikkimedia Commons

2.3. GIGANTE ADAMASTOR

Outro episódio igualmente famoso, até popular é possível afirmar,

em Os lusíadas é o do surgimento, quando os navegantes estão muito

próximos do Cabo das Tormentas, local de grande perigo (hoje renomeado

para Cabo da Boa Esperança), de uma assustadora criatura de imensas

No romance Memorial do convento, do escritor português José Saramago (único de língua portuguesa a receber um Nobel de Literatura e que faleceu recentemente), encontramos a seguinte passagem: “E se para isso tiveram tempo, quadrilheiros houve que se gozaram das mulheres dos presos, que a tanto se sujeitaram as pobres para não perder os seus maridos, porém desesperadas os viam depois partir, enquanto os aproveitadores se riam delas (...). Já vai andando a récua dos homens de Arganil, acompanham-nos até fora da vila as infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó doce e a récua dos homens de Arganil, acompanham-nos até fora da vila as infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó doce e a récua dos homens de Arganil, acompanham-nos até fora da

amado esposo, e outra protestando, Ó filho, a quem eu tinha vila as infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó doce e amado esposo, e outra protestando, Ó filho, a quem eu tinha vila as infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó doce e

só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha, não se acabavam as lamentações (...), e então uma grande voz se levanta, é um labrego de tanta idade já que o não quiseram, e grita subindo a um valado que é púlpito dos rústicos, Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, o não quiseram, e grita subindo a um valado que é púlpito dos rústicos, Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, o não quiseram, e grita subindo a um valado que é púlpito

ó pátria sem justiça, e tendo assim clamado, veio dar-lhe um quadrilheiro uma cacetada na cabeça, que ali mesmo o deixou por morto”. (SARAMAGO, 1999, p. 284). Como você percebe, há aqui um claro exercício intertextual entre este trecho e o episódio do Velho do Restelo.

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proporções. Tudo começa nas estrofes 37 e 38, do Canto V, em que ocorre

o que podemos chamar de introito do episódio: em meio à calmaria, os

navegantes percebem algo de errado, julgam estar diante da formação

de uma terrível tempestade, quando são surpreendidos pelo gigante.

Tamanha é a surpresa e o medo que o próprio capitão, Vasco da Gama,

não hesita em demonstrar sua inquietação e pede ajuda divina (confira,

especialmente os quatro últimos versos da estrofe 38).

CANTO V37“Porém já cinco Sóis eram passados Que dali nos partíramos, cortando Os mares nunca doutrem navegados, Prósperamente os ventos assoprando, Quando uma noite estando descuidados, Na cortadora proa vigiando,Uma nuvem que os ares escurece Sobre nossas cabeças aparece.

38“Tão temerosa vinha e carregada,Que pôs nos corações um grande medo;Bramindo o negro mar, de longe bradaComo se desse em vão nalgum rochedo.- “Ó Potestade, disse, sublimada!Que ameaço divino, ou que segredoEste clima e este mar nos apresenta,Que mor cousa parece que tormenta?” -

39“Não acabava, quando uma figuraSe nos mostra no ar, robusta e válida,De disforme e grandíssima estatura,O rosto carregado, a barba esquálida,Os olhos encovados, e a posturaMedonha e má, e a cor terrena e pálida,Cheios de terra e crespos os cabelos,A boca negra, os dentes amarelos.

40“Tão grande era de membros, que bem possoCertificar-te, que este era o segundoDe Rodes estranhíssimo Colosso,Que um dos sete milagres foi do mundo:

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Com um tom de voz nos fala horrendo e grosso,Que pareceu sair do mar profundo:Arrepiam-se as carnes e o cabeloA mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.

41“E disse: — “Ó gente ousada, mais que quantasNo mundo cometeram grandes cousas,Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,E por trabalhos vãos nunca repousas,Pois os vedados términos quebrantas,E navegar meus longos mares ousas,Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,Nunca arados d’estranho ou próprio lenho:

42- “Pois vens ver os segredos escondidosDa natureza e do úmido elemento,A nenhum grande humano concedidosDe nobre ou de imortal merecimento,Ouve os danos de mim, que apercebidosEstão a teu sobejo atrevimento,Por todo o largo mar e pela terra,Que ainda hás de sojugar com dura guerra.

43- “Sabe que quantas naus esta viagem Que tu fazes, fizerem de atrevidas, Inimiga terão esta paragemCom ventos e tormentas desmedidas.E da primeira armada que passagemFizer por estas ondas insofridas,Eu farei d’improviso tal castigo,Que seja mor o dano que o perigo.

44- “Aqui espero tomar, se não me engano, De quem me descobriu, suma vingança.E não se acabará só nisto o dano Da vossa pertinace confiança;Antes em vossas naus vereis cada ano,Se é verdade o que meu juízo alcança,Naufrágios, perdições de toda sorte,Que o menor mal de todos seja a morte.

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45- “É do primeiro Ilustre, que a venturaCom fama alta fizer tocar os Céus,Serei eterna e nova sepultura,Por juízos incógnitos de Deus.Aqui porá da Turca armada duraOs soberbos e prósperos troféus;Comigo de seus danos o ameaçaA destruída Quíloa com Mombaça.

46- “Outro também virá de honrada fama,Liberal, cavaleiro, enamorado,E consigo trará a formosa damaQue Amor por grã mercê lhe terá dado.Triste ventura e negro fado os chamaNeste terreno meu, que duro e iradoOs deixará dum cru naufrágio vivosPara verem trabalhos excessivos.

47- “Verão morrer com fome os filhos caros,Em tanto amor gerados e nascidos;Verão os Cafres ásperos e avarosTirar à linda dama seus vestidos;Os cristalinos membros e perclarosA calma, ao frio, ao ar verão despidos,Depois de ter pisada longamenteCo’os delicados pés a areia ardente.

48- “E verão mais os olhos que escaparemDe tanto mal, de tanta desventura,Os dois amantes míseros ficaremNa férvida e implacável espessura.Ali, depois que as pedras abrandaremCom lágrimas de dor, de mágoa pura,Abraçados as almas soltarãoDa formosa e misérrima prisão.” -

49“Mais ia por diante o monstro horrendoDizendo nossos fados, quando alçadoLhe disse eu: — Quem és tu? que esse estupendoCorpo certo me tem maravilhado.-A boca e os olhos negros retorcendo,

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E dando um espantoso e grande brado,Me respondeu, com voz pesada e amara,Como quem da pergunta lhe pesara:

50- “Eu sou aquele oculto e grande Cabo,A quem chamais vós outros Tormentório,Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,Plínio, e quantos passaram, fui notório.Aqui toda a Africana costa acaboNeste meu nunca visto Promontório,Que para o Pólo Antarctico se estende,A quem vossa ousadia tanto ofende.

51- “Fui dos filhos aspérrimos da Terra,Qual Encélado, Egeu e o Centimano;Chamei-me Adamastor, e fui na guerraContra o que vibra os raios de Vulcano;Não que pusesse serra sobre serra,Mas conquistando as ondas do Oceano,Fui capitão do mar, por onde andavaA armada de Netuno, que eu buscava.

52- “Amores da alta esposa de PeleuMe fizeram tomar tamanha empresa.Todas as Deusas desprezei do céu,Só por amar das águas a princesa.Um dia a vi coas filhas de NereuSair nua na praia, e logo presaA vontade senti de tal maneiraQue ainda não sinto coisa que mais queira.

53- “Como fosse impossível alcançá-la Pela grandeza feia de meu gesto, Determinei por armas de tomá-la, E a Doris este caso manifesto.De medo a Deusa então por mim lhe fala;Mas ela, com um formoso riso honesto,Respondeu: — “Qual será o amor bastanteDe Ninfa que sustente o dum Gigante?

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54- “Contudo, por livrarmos o Oceano De tanta guerra, eu buscarei maneira, Com que, com minha honra, escuse o dano.”Tal resposta me torna a mensageira.Eu, que cair não pude neste engano, (Que é grande dos amantes a cegueira) Encheram-me com grandes abondanças O peito de desejos e esperanças.

55- “Já néscio, já da guerra desistindo,Uma noite de Dóris prometida,Me aparece de longe o gesto lindoDa branca Tétis única despida:Como doido corri de longe, abrindoOs braços, para aquela que era vidaDeste corpo, e começo os olhos belosA lhe beijar, as faces e os cabelos.

56- “Ó que não sei de nojo como o conte!Que, crendo ter nos braços quem amava, Abraçado me achei com um duro monte De áspero mato e de espessura brava.Estando com um penedo fronte a fronte, Que eu pelo rosto angélico apertava Não fiquei homem não, mas mudo e quedo, E junto dum penedo outro penedo.

57- “Ó Ninfa, a mais formosa do Oceano,Já que minha presença não te agrada,Que te custava ter-me neste engano,Ou fosse monte, nuvem, sonho, ou nada?Daqui me parto irado, e quase insanoDa mágoa e da desonra ali passada,A buscar outro inundo, onde não visseQuem de meu pranto e de meu mal se risse,

58- “Eram já neste tempo meus irmãosVencidos e em miséria extrema postos;E por mais segurar-se os Deuses vãos,Alguns a vários montes sotopostos:E como contra o Céu não valem mãos,

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Eu, que chorando andava meus desgostos,Comecei a sentir do fado inimigoPor meus atrevimentos o castigo.

59- “Converte-se-me a carne em terra dura, Em penedos os ossos sefizeram,Estes membros que vês e esta figuraPor estas longas águas se estenderam; Enfim, minha grandíssima estaturaNeste remoto cabo converteramOs Deuses, e por mais dobradas mágoas,Me anda Tétis cercando destas águas.” -

60“Assim contava, e com um medonho choroSúbito diante os olhos se apartou;Desfez-se a nuvem negra, e com um sonoroBramido muito longe o mar soou.Eu, levantando as mãos ao santo coroDos anjos, que tão longe nos guiou,A Deus pedi que removesse os durosCasos, que Adamastor contou futuros.

A colossal estátua de bronze dedicada ao Sol que guardava a entrada do porto de Rodes foi erguida cerca de 300 anos antes de Cristo. Tinha aproximadamente

30 metros de altura e era considerada por gregos e romanos uma das sete maravilhas do mundo. As outras eram: a Pirâmide de Quéops (única construção

da lista que resiste até hoje); os Jardins suspensos da Babilônia; a Estátua de Zeus em Olímpia; o Templo de Ártemis em Éfeso; o Mausoléu de Halicarnasso e

o Farol de AlexandriaCrédito: Wikkimedia Commons

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Como você percebeu, a partir da estrofe 39, até a 59, o episódio

centra-se em Adamastor. Temos, primeiramente, a descrição do gigante

(estrofes 39 e 40), cujo aspecto é de fato assustador (ele é comparado

ao Colosso de Rodes); a seguir, o próprio Adamastor fala (estrofes 41

a 59), apresentando profecias terríveis para o futuro dos navegantes

portugueses.

Não deixe dar bastante atenção à estrofe 49, em que o valente capitão

Vasco da Gama, num ímpeto de imensa coragem, interpela o gigante,

pedindo explicações a ele. Temos, então, na narração de Adamastor,

uma outra comovente e trágica história de amor, em mais um episódio

em que a épica (não nos esqueçamos de que o gigante é colocado por

Camões no exato lugar que representava o maior perigo, ou seja, vencer

o gigante equivale a vencer os percalços da natureza) e a lírica se unem.

Adamastor, um dos Titãs que se rebelou contra Júpiter (seus irmãos se

chamavam Encélado, Egeu e Centímano), encarregou-se de enfrentar o

Oceano, numa tentativa de se aproximar da ninfa Tétis, esposa de Peleu,

filha de Nereu e Dóris, por quem estava perdidamente apaixonado.

Usando a mãe da ninfa como intermediária, Adamastor ameaça guerrear

contra o Oceano, se não fosse correspondido. Enganado, ele comparece

a um suposto encontro com Tétis, mas, ao abraçá-la, percebe estar diante

de um rochedo, o que o metamorfoseia no Cabo das Tormentas. Traído

e infeliz, na estrofe de número 60, Adamastor parte, chorando, o que,

mais uma vez, nos coloca diante da grandeza e importância do poema:

Camões, que nos apresentara uma criatura da qual navegantes e leitores

só poderiam sentir medo, provoca, mais uma vez, terror e piedade.

O gigante menciona, especificamente, três acidentes que aconteceram depois da viagem de Vasco da Gama (1497-1499) e antes da publicação de Os lusíadas: 1. a morte de Bartolomeu Dias, em 1500. Ele descobrira, em 1487, o Cabo das Tormentas. 2. a morte de D. Francisco de Almeida, primeiro vice-rei da Índia, ocorrida em uma guerra contra os africanos, no Cabo 2. a morte de D. Francisco de Almeida, primeiro vice-rei da Índia, ocorrida em uma guerra contra os africanos, no Cabo 2. a morte de D. Francisco de Almeida, primeiro vice-rei da

das Tormentas. 3. a morte de Manuel de Sousa de Sepúlveda, em um naufrágio, em 1552, e depois contando a triste história de amor que o transformou (ele era um dos Titãs) no gigante que se coloca diante dos lusitanos.

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Da mesma forma que Inês de Castro, Adamastor é colocado como

mais uma vítima do Amor, o que, neste caso, permite uma aproximação

com a narrativa de A Bela e a Fera (embora aqui se possa pensar num

contraste também no próprio gigante, entre sua feiúra e sua suavidade).

E, como se percebe na leitura do episódio, há, no caso de Adamastor, um

fortíssimo componente erótico, seu desejo pelo corpo da ninfa o condena.

Em resumo, o episódio se utiliza de elementos muito antagônicos: de

um lado, a louvação do poder e da coragem dos portugueses, de outro, a

melancolia presente na narrativa amorosa; conquista de um lado, perda

do outro.

Adamastor continua muito presente na literatura: você verá, na Unidade III deste livro, a obra Mensagem (1934), de Fernando Pessoa, na qual o autor recria essa mitológica figura, através de um procedimento que podemos chamar de paródico. Trata-se do poema ‘O Monstrengo’.

Mas, antes mesmo de Fernando Pessoa se apropriar da comovente figura, o poeta brasileiro Olavo Bilac escreveu, em 1898, um poemeto heroico intitulado Sagres, em comemoração ao quarto centenário da descoberta do caminho marítimo para as Índias, em que Adamastor é citado como comemoração ao quarto centenário da descoberta do caminho marítimo para as Índias, em que Adamastor é citado como comemoração ao quarto centenário da descoberta do caminho

um vencido pela força conquistadora dos portugueses.

Ainda na literatura brasileira, temos na coletânea de contos Primeiras estórias, de João Guimarães Rosa, publicada em 1962, um conto intitulado ‘Os irmãos Dagobé’, em que um dos personagens principais é descrito como enorme e violento. Trata-se de Damastor Dagobé, assassinado por Liojorge, um indivíduo muito pacato. Os irmãos de Damastor, Doricão, Dismundo e Derval, de quem se espera uma vingança terrível, optam pelo contrário: não só não se vingam de Liojorge, como o deixam ajudar a carregar o caixão de Damastor. Aqui também, como se vê, a força descomunal é vencida pela coragem.

Mais recentemente, na própria literatura portuguesa, Adamastor fez mais uma aparição. Trata-se do já aqui citado Memorial do convento, de José Saramago; confira: “Uns dias antes dera-se em Mafra um milagre, que foi ter vindo do mar uma grande tempestade de vento e deu com a igreja de madeira em terra, mastros, tábuas, vigas, barrotes, de confusão com os panos, foi como o sopro gigantesco de Adamastor, se Adamastor soprou, quando lhe dobravam o cabo dos seus e nossos trabalhos”. (SARAMAGO, 1999, p. 128).

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2.4. ILHA DOS AMORES

Esse é, sem nenhuma dúvida, o episódio mais sensual de Os

lusíadas. Nele Camões exercita seu poder de sedução com a linguagem em

elevadíssimo grau: os portugueses, ao voltar para casa, recebem de Vênus,

sua permanente protetora, uma espécie de prêmio (um happy hour, diriam

os contemporâneos) depois dos numerosos esforços (lembremos que dos

148 homens que partiram, apenas 55 retornaram à terra natal; dos quatro

navios que iniciaram a viagem, somente um retornou): uma visita à mítica

Ilha dos Amores, habitada por belíssimas e seminuas ninfas. Mas, antes que

se pense que se trata unicamente de sexo, é preciso considerar que Vasco

e seus comandados receberão, da ninfa Tétis, a líder de todas as outras, o

maior de todos os prêmios: verão a máquina do Mundo. Além, portanto, do

alimento para o corpo, os escolhidos terão acesso, em forma de alegoria, ao

que podemos chamar, comparativamente, de a ‘face de deus’, pois verão as

engrenagens do universo em pleno funcionamento, verão o que a nenhum

outro homem foi concedido: o conhecimento máximo. Você percebe, portanto,

a importância de que se reveste esse episódio, mais que chegar à Índia, os

portugueses chegam ao nível mais elevado de compreensão do cosmos. Não

deixe de perceber que a Máquina descrita no poema obedece ao modelo

ptolomaico do universo (geocêntrico), pois, apesar de Galileu já ter afirmado

(e antes dele Copérnico), naquela época, que a Terra girava em torno do Sol

e não o contrário, essa posição ainda não era aceita com muito conforto.

Complexa representação dos movimentos dos corpos celestes

segundo a organização geocêntrica do sistema solar imaginada por Ptolomeu

Crédito: Wikkimedia Commons

Ptolomeu foi um astrônomo egípcio, embora cidadão romano. Viveu no século II d.C e desenvolveu a tese de que a Terra era o centro do universo. Galileu Galilei (1564-1642), italiano, afirmou o contrário: o sistema era solar, ou seja, a Terra é que gira ao redor do Sol. Ele chegou a ser preso e precisou, publicamente, desdizer suas afirmações para escapar a uma condenação à morte.

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A importância do episódio também pode ser medida pelo espaço

que ocupa na epopeia, pois em torno de vinte por cento do texto todo é

destinado à Ilha dos Amores. O início se dá na estrofe 18, do Canto IX

e vai até o final desse Canto, na estrofe 95. Prossegue, no Canto X, da

estrofe 1 até a 143, quase no final do Canto, e de Os lusíadas são, como

se vê, quase dois Cantos inteiros. Naturalmente, a parte mais famosa e

comentada é a que corresponde às estrofes 54-83, ora mais, ora menos,

conforme a apreciação do leitor, onde se dá o ápice do erotismo, numa

verdadeira festa dos sentidos. Até a estrofe de número 63, os sentidos são

convocados a apreciar a beleza natural do lugar, a exuberante natureza

que se apresenta aos olhos dos marinheiros; da 64 em diante, o centro

passa a ser a beleza feminina e, consequentemente, o sexo. Não deixe de

aproveitar a oportunidade para refletir sobre um importante aspecto dos

estudos literários em geral: como diferenciar uma obra de arte de simples

pornografia ou discurso apelativo? Lembremo-nos de que sexo sempre foi

um tema constante na arte e, claro, também na literatura, o que torna a

nós, profissionais de Letras, de certa forma obrigados a pensar sobre essa

diferenciação.

Canto IX

66Mas os fortes mancebos, que na praia Punham os pés, de terra cobiçosos, Que não há nenhum deles que não saia De acharem caça agreste desejosos, Não cuidam que, sem laço ou redes, caia Caça naqueles montes deleitosos, Tão suave, doméstica e benigna, Qual ferida lha tinha já Ericina.

67Alguns, que em espingardas e nas bestas, Para ferir os cervos se fiavam, Pelos sombrios matos e florestas Determinadamente se lançavam: Outros, nas sombras, que de as altas sestas Defendem a verdura, passeavam Ao longo da água que, suave e queda, Por alvas pedras corre à praia leda.

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68Começam de enxergar subitamente Por entre verdes ramos várias cores, Cores de quem a vista julga e sente Que não eram das rosas ou das flores, Mas da lã fina e seda diferente, Que mais incita a força dos amores, De que se vestem as humanas rosas, Fazendo-se por arte mais formosas.

69Dá Veloso espantado um grande grito: “Senhores, caça estranha, disse, é esta! Se ainda dura o Gentio antigo rito, A Deusas é sagrada esta floresta. Mais descobrimos do que humano espírito Desejou nunca; e bem se manifesta Que são grandes as coisas e excelentes, Que o mundo encobre aos homens imprudentes.

70“Sigamos estas Deusas, e vejamos Se fantásticas são, se verdadeiras.” Isto dito, velozes mais que gamos, Se lançam a correr pelas ribeiras. Fugindo as Ninfas vão por entre os ramos, Mas, mais industriosas que ligeiras, Pouco e pouco sorrindo e gritos dando, Se deixam ir dos galgos alcançando.

71De uma os cabelos de ouro o vento leva Correndo, e de outra as fraldas delicadas; Acende-se o desejo, que se ceva Nas alvas carnes súbito mostradas; Uma de indústria cai, e já releva, Com mostras mais macias que indignadas, Que sobre ela, empecendo, também caia Quem a seguiu pela arenosa praia.

72Outros, por outra parte, vão topar Com as Deusas despidas, que se lavam: Elas começam súbito a gritar, Como que assalto tal não esperavam. Umas, fingindo menos estimar

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A vergonha que a força, se lançavam Nuas por entre o mato, aos olhos dando O que às mãos cobiçosas vão negando.

73Outra, como acudindo mais depressa A vergonha da Deusa caçadora, Esconde o corpo n’água; outra se apressa Por tomar os vestidos, que tem fora. Tal dos mancebos há, que se arremessa, Vestido assim e calçado (que, coa mora De se despir, há medo que ainda tarde) A matar na água o fogo que nele arde.

74Qual cão de caçador, sagaz e ardido, Usado a tomar na água a ave ferida, Vendo no rosto o férreo cano erguido Para a garcenha ou pata conhecida, Antes que soe o estouro, mal sofrido Salta n’água, e da presa não duvida, Nadando vai e latindo: assim o mancebo Remete à que não era irmã de Febo.

75Leonardo, soldado bem disposto, Manhoso, cavaleiro e namorado, A quem amor não dera um só desgosto, Mas sempre fora dele maltratado, E tinha já por firme pressuposto Ser com amores mal afortunado, Porém não que perdesse a esperança De ainda poder seu fado ter mudança,

76Quis aqui sua ventura, que corria Após Efire, exemplo de beleza, Que mais caro que as outras dar queria O que deu para dar-se a natureza. Já cansado correndo lhe dizia: “Ó formosura indigna de aspereza, Pois desta vida te concedo a palma, Espera um corpo de quem levas a alma.

77“Todas de correr cansam, Ninfa pura,

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Rendendo-se à vontade do inimigo, Tu só de mi só foges na espessura? Quem te disse que eu era o que te sigo? Se to tem dito já aquela ventura, Que em toda a parte sempre anda comigo, Ó não na creias, porque eu, quando a cria, Mil vezes cada hora me mentia.

78“Não canses, que me cansas: e se queres Fugir-me, por que não possa tocar-te, Minha ventura é tal que, ainda que esperes, Ela fará que não possa alcançar-te. Espora; quero ver, se tu quiseres, Que subtil modo busca de escapar-te, E notarás, no fim deste sucesso, Tra la spica e la man, qual muro è messo.

79“Ó não me fujas! Assim nunca o breve Tempo fuja de tua formosura! Que, só com refrear o passo leve, Vencerás da fortuna a força dura. Que Imperador, que exército se atreve A quebrantar a fúria da ventura, Que, em quanto desejei, me vai seguindo, O que tu só farás não me fugindo!

80“Pões-te da parte da desdita minha? Fraqueza é dar ajuda ao mais potente. Levas-me um coração, que livre tinha? Solta-me, e correrás mais levemente. Não te carrega essa alma tão mesquinha, Que nesses fios de ouro reluzente Atada levas? Ou, depois de presa, Lhe mudaste a ventura, e menos pesa?

81“Nesta esperança só te vou seguindo: Que, ou tu não sofrerás o peso dela, Ou na virtude de teu gesto lindo Lhe mudarás a triste e dura estrela: E se se lhe mudar, não vás fugindo, Que Amor te ferirá, gentil donzela, E tu me esperarás, se Amor te fere:

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E se me esperas, não há mais que espere.”

82Já não fugia a bela Ninfa, tanto Por se dar cara ao triste que a seguia, Como por ir ouvindo o doce canto, As namoradas mágoas que dizia. Volvendo o rosto já sereno e santo, Toda banhada em riso e alegria, Cair se deixa aos pés do vencedor, Que todo se desfaz em puro amor.

83Ó que famintos beijos na floresta, E que mimoso choro que soava! Que afagos tão suaves, que ira honesta, Que em risinhos alegres se tornava! O que mais passam na manhã, e na sesta, Que Vénus com prazeres inflamava, Melhor é experimentá-lo que julgá-lo, Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.

84Desta arte enfim conformes já as formosas Ninfas com os seus amados navegantes, Os ornam de capelas deleitosas De louro, e de ouro, e flores abundantes. As mãos alvas lhes davam como esposas; Com palavras formais e estipulantes Se prometem eterna companhia Em vida e morte, de honra e alegria.

85Uma delas maior, a quem se humilha Todo o coro das Ninfas, e obedece, Que dizem ser de Celo e Vesta filha, O que no gesto belo se parece, Enchendo a terra e o mar de maravilha, O Capitão ilustre, que o merece, Recebe ali com pompa honesta e régia, Mostrando-se senhora grande e egrégia.

86Que, depois de lhe ter dito quem era, Com um alto exórdio, de alta graça ornado, Dando-lhe a entender que ali viera

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Por alta influição do imóvel fado, Para lhe descobrir da unida esfera Da terra imensa, e mar não navegado, Os segredos, por alta profecia, O que esta sua nação só merecia,

87Tomando-o pela mão, o leva e guia Para o cume dum monte alto e divino, No qual uma rica fábrica se erguia De cristal toda, e de ouro puro e fino. A maior parte aqui passam do dia Em doces jogos e em prazer contino: Ela nos paços logra seus amores, As outras pelas sombras entre as flores.

88Assim a formosa e a forte companhia O dia quase todo estão passando, Numa alma, doce, incógnita alegria, Os trabalhos tão longos compensando. Porque dos feitos grandes, da ousadia Forte e famosa, o mundo está guardando O prémio lá no fim, bem merecido, Com fama grande e nome alto e subido.

89Que as Ninfas do Oceano tão formosas, Tethys, e a ilha angélica pintada, Outra coisa não é que as deleitosas Honras que a vida fazem sublimada. Aquelas proeminências gloriosas, Os triunfos, a fronte coroada De palma e louro, a glória e maravilha: Estes são os deleites desta ilha.

90Que as imortalidades que fingia A antiguidade, que os ilustres ama, Lá no estelante Olimpo, a quem subia Sobre as asas ínclitas da Fama, Por obras valorosas que fazia, Pelo trabalho imenso que se chama Caminho da virtude alto e fragoso, Mas no fim doce, alegre e deleitoso:

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91Não eram senão prémios que reparte Por feitos imortais e soberanos O mundo com os varões, que esforço e arte Divinos os fizeram, sendo humanos. Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte, Eneias e Quirino, e os dois Tebanos, Ceres, Palas e Juno, com Diana, Todos foram de fraca carne humana.

92Mas a Fama, trombeta de obras tais, Lhe deu no mundo nomes tão estranhos De Deuses, Semideuses imortais, Indígetes, Heroicos e de Magnos. Por isso, ó vós que as famas estimais, Se quiserdes no mundo ser tamanhos, Despertai já do sono do ócio ignavo, Que o ânimo de livre faz escravo.

93E ponde na cobiça um freio duro, E na ambição também, que indignamente Tomais mil vezes, e no torpe e escuro Vício da tirania infame e urgente; Porque essas honras vãs, esse ouro puro Verdadeiro valor não dão à gente: Melhor é, merecê-los sem os ter, Que possuí-los sem os merecer.

94Ou dai na paz as leis iguais, constantes, Que aos grandes não deem o dos pequenos; Ou vos vesti nas armas rutilantes, Contra a lei dos inimigos Sarracenos: Fareis os Reinos grandes e possantes, E todos tereis mais, o nenhum menos; Possuireis riquezas merecidas, Com as honras, que ilustram tanto as vidas.

95E fareis claro o Rei, que tanto amais, Agora com os conselhos bem cuidados, Agora com as espadas, que imortais Vos farão, como os vossos já passados; Impossibilidades não façais,

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Que quem quis sempre pôde; e numerados Sereis entre os Heróis esclarecidos, E nesta Ilha de Vénus recebidos.

CANTO X

75Despois que a corporal necessidadeSe satisfez do mantimento nobre,E na harmonia e doce suavidadeViram os altos feitos que descobre,Tétis, de graça ornada e gravidade,Pera que com mais alta glória dobreAs festas deste alegre e claro dia,Pera o felice Gama assi dizia:

76- “Faz-te mercê, barão, a SapiênciaSuprema de, cos olhos corporais,Veres o que não pode a vã ciênciaDos errados e míseros mortais.Sigue-me firme e forte, com prudência,Por este monte espesso, tu cos mais.”Assi lhe diz e o guia por um matoÁrduo, difícil, duro a humano trato.

77Não andam muito que no erguido cumeSe acharam, onde um campo se esmaltavaDe esmeraldas, rubis, tais que presumeA vista que divino chão pisava.Aqui um globo vêm no ar, que o lumeClaríssimo por ele penetrava,De modo que o seu centro está evidente,Como a sua superfícia, claramente.

78Qual a matéria seja não se enxerga,Mas enxerga-se bem que está compostoDe vários orbes, que a Divina vergaCompôs, e um centro a todos só tem posto.Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,Nunca s’ergue ou se abaxa, e um mesmo rostoPor toda a parte tem; e em toda a parteComeça e acaba, enfim, por divina arte,

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79Uniforme, perfeito, em si sustido,Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.Vendo o Gama este globo, comovidoDe espanto e de desejo ali ficou.Diz-lhe a Deusa: — “O transunto, reduzidoEm pequeno volume, aqui te douDo Mundo aos olhos teus, pera que vejasPor onde vás e irás e o que desejas.

80“Vês aqui a grande máquina do Mundo,Etérea e elemental, que fabricadaAssi foi do Saber, alto e profundo,Que é sem princípio e meta limitada.Quem cerca em derredor este rotundoGlobo e sua superfícia tão limada,É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,Que a tanto o engenho humano não se estende.

81“Este orbe que, primeiro, vai cercandoOs outros mais pequenos que em si tem,Que está com luz tão clara radiandoQue a vista cega e a mente vil também,Empíreo se nomeia, onde logrando Puras almas estão daquele BemTamanho, que ele só se entende e alcança,De quem não há no mundo semelhança.

82“Aqui, só verdadeiros, gloriososDivos estão, porque eu, Saturno e Jano,Júpiter, Juno, fomos fabulosos,Fingidos de mortal e cego engano.Só pera fazer versos deleitososServimos; e, se mais o trato humano Nos pode dar, é só que o nome nossoNestas estrelas pôs o engenho vosso.

83“E também, porque a santa Providência,Que em Júpiter aqui se representa,Por espíritos mil que têm prudênciaGoverna o Mundo todo que sustenta(Ensina-lo a profética ciência,

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Em muitos dos exemplos que apresenta);Os que são bons, guiando, favorecem,Os maus, em quanto podem, nos empecem;

84“Quer logo aqui a pintura que variaAgora deleitando, ora ensinando,Dar-lhe nomes que a antiga PoesiaA seus Deuses já dera, fabulando;Que os Anjos de celeste companhiaDeuses o sacro verso está chamando,Nem nega que esse nome preminenteTambém aos maus se dá, mas falsamente.

85“Enfim que o Sumo Deus, que por segundasCausas obra no Mundo, tudo manda.E tornando a contar-te das profundasObras da Mão Divina veneranda,Debaxo deste círculo onde as mundasAlmas divinas gozam, que não anda,Outro corre, tão leve e tão ligeiroQue não se enxerga: é o Móbile primeiro.

86“Com este rapto e grande movimentoVão todos os que dentro tem no seio;Por obra deste, o Sol, andando a tento,O dia e noite faz, com curso alheio.Debaxo deste leve, anda outro lento,Tão lento e sojugado a duro freio,Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,Duzentos cursos faz, dá ele um passo.

87“Olha estoutro debaxo, que esmaltadoDe corpos lisos anda e radiantes,Que também nele tem curso ordenadoE nos seus axes correm cintilantes.Bem vês como se veste e faz ornadoCo largo Cinto d, ouro, que estelantesAnimais doze traz afigurados,Apousentos de Febo limitados.

88“Olha por outras partes a pintura

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Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:Olha a Carreta, atenta a Cinosura,Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo;Vê de Cassiopeia a fermosura E do Orionte o gesto turbulento;Olha o Cisne morrendo que suspira,A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.

89“Debaxo deste grande Firmamento,Vês o céu de Saturno, Deus antigo;Júpiter logo faz o movimento,E Marte abaxo, bélico inimigo;O claro Olho do céu, no quarto assento, E Vénus, que os amores traz consigo;Mercúrio, de eloquência soberana;Com três rostos, debaxo vai Diana.

90“Em todos estes orbes, diferenteCurso verás, nuns grave e noutros leve;Ora fogem do Centro longamente,Ora da Terra estão caminho breve,Bem como quis o Padre omnipotente,Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,Os quais verás que jazem mais a dentroE tem co Mar a Terra por seu centro.

91“Neste centro, pousada dos humanos,Que não somente, ousados, se contentamDe sofrerem da terra firme os danos,Mas inda o mar instábil exprimentam,Verás as várias partes, que os insanosMares dividem, onde se apousentamVárias nações que mandam vários Reis,Vários costumes seus e várias leis.

92“Vês Europa Cristã, mais alta e claraQue as outras em polícia e fortaleza.Vês África, dos bens do mundo avara,Inculta e toda cheia de bruteza;Co Cabo que até’aqui se vos negara,Que assentou pera o Austro a Natureza.Olha essa terra toda, que se habita

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Dessa gente sem Lei, quási infinita.

93“Vê do Benomotapa o grande império,De selvática gente, negra e nua,Onde Gonçalo morte e vitupérioPadecerá, pola Fé santa sua.Nace por este incógnito HemispérioO metal por que mais a gente sua.Vê que do lago donde se derramaO Nilo, também vindo está Cuama.

94“Olha as casas dos negros, como estãoSem portas, confiados, em seus ninhos,Na justiça real e defensãoE na fidelidade dos vizinhos;Olha deles a bruta multidão,Qual bando espesso e negro de estorninhos,Combaterá em Sofala a fortaleza, Quedefenderá Nhaia com destreza.

95“Olha lá as alagoas donde o NiloNace, que não souberam os antigos;Vê-lo rega, gerando o crocodilo,Os povos Abassis, de Crista amigos;Olha como sem muros (novo estilo)Se defendem milhor dos inimigos;Vê Méroe, que ilha foi de antiga fama,Que ora dos naturais Nobá se chama.

96“Nesta remota terra um filho teuNas armas contra os Turcos será claro;Há-de ser Dom Cristóvão o nome seu;Mas contra o fim fatal não há reparo.Vê cá a costa do mar, onde te deuMelinde hospício gasalhoso e caro;O Rapto rio nota, que o romance Da terra chama Obi; entra em Quilmance.

97“O Cabo vê já Arómata chamado,E agora Guardafú, dos moradores,Onde começa a boca do afamado

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Mar Roxo, que do fundo toma as cores;Este como limite está lançadoQue divide Asia de Africa; e as milhoresPovoações que a parte Africa temMaçuá são, Arquico e Suaquém.

98“Vês o extremo Suez, que antigamenteDizem que foi dos Héroas a cidade(Outros dizem que Arsínoe), e ao presenteTem das frotas do Egipto a potestade.Olha as águas nas quais abriu patenteEstrada o grão Mousés na antiga idade.Ásia começa aqui, que se apresentaEm terras grande, em reinos opulenta.

99“Olha o monte Sinai, que se ennobreceCo sepulcro de Santa Caterina;Olha Toro e Gidá, que lhe faleceÁgua das fontes, doce e cristalina;Olha as portas do Estreito, que feneceNo reino da seca Ádem, que confinaCom a serra d’Arzira, pedra viva,Onde chuva dos céus se não deriva.

100“Olha as Arábias três, que tanta terraTomam, todas da gente vaga e baça,Donde vêm os cavalos pera a guerra,Ligeiros e feroces, de alta raça;Olha a costa que corrre, até que ceraOutro Estreito de Pérsia, e faz a traçaO Cabo que co nome se apelidaDa cidade Fartaque, ali sabida.

101“Olha Dófar, insigne porque mandaO mais cheiroso incenso pera as aras; Mas atenta: já cá destoutra bandaDe Roçalgate, e praias sempre avaras,Começa o reino Ormuz, que todo se andaPelas ribeiras que inda serão clarasQuando as galés do Turco e fera armadaVirem de Castelbranco nua a espada.

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102“Olha o Cabo Asaboro, que chamadoAgora é Moçandão, dos navegantes;Por aqui entra o lago que é fechadoDe Arábia e Pérsias terras abundantes.Atenta a ilha Barém, que o fundo ornadoTem das suas perlas ricas, e imitantesA cor da Aurora; e vê na água salgadaTer o Tígris e Eufrates üa entrada.

103“Olha da grande Pérsia o império nobre,Sempre posto no campo e nos cavalos,Que se injuria de usar fundido cobreE de não ter das armas sempre os calos.Mas vê a ilha Gerum, como descobreO que fazem do tempo os intervalos,Que da cidade Armuza, que ali esteve, Ela o nome despois e a glória teve.

104“Aqui de Dom Filipe de Meneses Se mostrará a virtude, em armas clara,Quando, com muito poucos Portugueses,Os muitos Párseos vencerá de Lara.Virão provar os golpes e revesesDe Dom Pedro de Sousa, que provaraJá seu braço em Ampaza, que deixadaTerá por terra, à força só de espada.

105“Mas deixemos o Estreito e o conhecido Cabo de Jasque, dito já Carpela, Com todo o seu terreno mal querido Da Natura e dos dões usados dela; Carmânia teve já por apelido. Mas vês o fermoso Indo, que daquela Altura nace, junto à qual, também Doutra altura correndo o Gange vem?

106“Olha a terra de Ulcinde, fertilíssima,E de Jáquete a íntima enseada;Do mar a enchente súbita, grandíssima,E a vazante, que foge apressurada.A terra de Cambaia vê, riquíssima,

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Onde do mar o seio faz entrada;Cidades outras mil, que vou passando,A vós outros aqui se estão guardando.

107“Vês corre a costa célebre IndianaPera o Sul, até o Cabo Comori,Já chamado Cori, que Taprobana (Que ora é Ceilão) defronte tem de si. Por este mar a gente Lusitana,Que com armas virá despois de ti,Terá vitórias, terras e cidades,Nas quais hão-de viver muitas idades.

108“As províncias que entre um e o outro rioVês, com várias nações, são infinitas:Um reino Mahometa, outro Gentio,A quem tem o Demónio leis escritas. Olha que de Narsinga o senhorioTem as relíquias santas e benditasDo corpo de Tomé, barão sagrado,Que a Jesu Cristo teve a mão no lado.

109“Aqui a cidade foi que se chamavaMeliapor, fermosa, grande e rica;Os Ídolos antigos adorava Como inda agora faz a gente inica.Longe do mar naquele tempo estava,Quando a Fé, que no mundo se pubrica,Tomé vinha prègando, e já passaraProvíncias mil do mundo, que ensinara.

110“Chegado aqui, pregando e junto dandoA doentes saúde, a mortos vida,Acaso traz um dia o mar, vagando,Um lenho de grandeza desmedida.Deseja o Rei, que andava edificando,Fazer dele madeira; e não duvidaPoder tirá-lo a terra, com possantesForças d’ homens, de engenhos, de alifantes.

111“Era tão grande o peso do madeiro

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Que, só pera abalar-se, nada abasta;Mas o núncio de Cristo verdadeiroMenos trabalho em tal negócio gasta:Ata o cordão que traz, por derradeiro, No tronco, e fàcilmente o leva e arrastaPera onde faça um sumptuoso temploQue ficasse aos futuros por exemplo.

112“Sabia bem que se com fé formadaMandar a um monte surdo que se mova,Que obedecerá logo à voz sagrada,Que assi lho ensinou Cristo, e ele o prova.A gente ficou disto alvoraçada;Os Brâmenes o têm por cousa nova;Vendo os milagres, vendo a santidade,Hão medo de perder autoridade.

113“São estes sacerdotes dos GentiosEm quem mais penetrado tinha enveja;Buscam maneiras mil, buscam desvios,Com que Tomé não se ouça, ou morto seja.O principal, que ao peito traz os fios,Um caso horrendo faz, que o mundo vejaQue inimiga não há, tão dura e fera,Como a virtude falsa, da sincera.

Estátua romana representa a luta amorosa entre um sátiro e uma ninfa, do museu Capitolini, na Itália

Crédito: Wikkimedia Commons

Um dos argumentos que podemos utilizar em favor do fato de que

Camões constrói uma obra de arte, mesmo quando fala explicitamente

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de sexo, é a linguagem. Lembre-se da máxima criada por Horácio: ut

pictura poesis, ou seja, a poesia é como a pintura e releia algumas das

estrofes desse episódio, tentando fazer essa associação. Há quem diga

que Camões realmente se inspirou em uma iluminura persa, do século

XIV, para ‘desenhar’ a sua Ilha dos Amores. Jamais saberemos isso com

certeza, mas o fato que importa é que o termo plasticidade se aplica

perfeitamente às descrições efetuadas por ele.

Não deixe de perceber o que já foi referido sobre os finais dos

Cantos: a presença do epifonema, a espécie de arremate reflexivo com o

qual eles se encerram. Na estrofe 93, do Canto IX, isso é feito de forma

muito evidente (você já deve ter esbarrado nessa estrofe em algum outro

lugar, que não em Os lusíadas, visto que ela é muito citada, como exemplo

de moralidade).

No Canto X, após um banquete oferecido por Tétis, ela os conduz

ao alto de um monte, para que vejam, como foi dito aqui, a máquina do

Mundo. A dúvida aqui, de qualquer leitor atento, seria como é possível

que seres mitológicos atribuíssem o funcionamento do mundo a uma

máquina, à ciência, portanto, e não a eles mesmos, que desde o início

da epopeia tentam ora ajudar, ora atrapalhar as aventuras dos intrépidos

representantes do desejo justamente de possuir mais conhecimento e

assim ultrapassar limites. Mais uma vez, Camões nos oferece seu imenso

talento, colocando na voz de Tétis a explicação de que eles, os deuses,

nada mais são do que ornamentos para a poesia, instrumentos para

embelezar a arte, de modo que o humano é que ali ganha posição de

destaque.

Mas, como se sabe, e Camões também sabia, os homens nem sempre

sabem o que fazer com o conhecimento que lhes é dado, o que explica o

tom melancólico do epílogo. Acompanhe a seguir.

2.5. EPÍLOGO – CANTO X

144Assi foram cortando o mar sereno,Com vento sempre manso e nunca irado,Até que houveram vista do terrenoEm que naceram, sempre desejado.Entraram pela foz do Tejo ameno,E à sua pátria e Rei temido e amado

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O prémio e glória dão por que mandou,E com títulos novos se ilustrou.

145Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenhoDestemperada e a voz enrouquecida,E não do canto, mas de ver que venhoCantar a gente surda e endurecida.O favor com que mais se acende o engenhoNão no dá a pátria, não, que está metidaNo gosto da cobiça e na rudezaDüa austera, apagada e vil tristeza.

146E não sei por que influxo de DestinoNão tem um ledo orgulho e geral gosto,Que os ânimos levanta de continoA ter pera trabalhos ledo o rosto. Por isso vós, ó Rei, que por divinoConselho estais no régio sólio posto,Olhai que sois (e vede as outras gentes)Senhor só de vassalos excelentes.

147Olhai que ledos vão, por várias vias,Quais rompentes liões e bravos touros,Dando os corpos a fomes e vigias,A ferro, a fogo, a setas e pelouros,A quentes regiões, a plagas frias,A golpes de Idolátras e de Mouros,A perigos incógnitos do mundo,A naufrágios, a pexes, ao profundo.

Dirigindo-se diretamente ao rei, o discurso aqui reitera a coragem

dos navegantes, dispostos, como “liões e bravos touros”, a morrer pela

pátria, mas reitera também o cansaço diante dos esforços empreendidos,

assim como a decepção diante do estado em que se encontrava Portugal.

O excesso de empenho em acumular riquezas através das conquistas

no ultramar trouxe sérios problemas econômicos ao país, a queda na

produção agrícola obrigou-os a importar excessivamente, de modo que

as dívidas se acumularam. Além disso, uma enorme quantidade de

homens envolvidos nas viagens morriam, gerando uma também enorme

quantidade de mulheres e crianças abandonadas que, sem opção de

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trabalho e sobrevivência, eram colocadas na miséria.

De forma bastante elegante, o discurso afirma ter “a lira

destemperada” (estrofe 145), ou seja, associa, mais uma vez, o poema

à música. Lembre-se de que essa referência estava já presente na

primeira estrofe, como convém a um texto com tão claras influências das

epopeias clássicas, afinal, ao menos as duas primeiras (Ilíada e Odisseia)

sobreviveram através do canto popular.

Vamos aqui fazer uma pausa no estudo da épica camoniana, para

nos referir a um poeta brasileiro, do século XX (que você certamente

estudará em maiores detalhes na disciplina de Literatura Brasileira)

e que foi muito influenciado pela obra de Camões. Trata-se de Carlos

Drummond de Andrade e, para ilustrar essa tão intensa presença do

poeta português na poesia do mineiro, acompanhe o poema intitulado

justamente A Máquina do Mundo:

E como eu palmilhasse vagamenteuma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindona escuridão maior, vinda dos montese de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriupara quem de a romper já se esquivavae só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,sem emitir um som que fosse impuronem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeçãocontínua e dolorosa do deserto,e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcendea própria imagem sua debuxadano rosto do mistério, nos abismos.

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Abriu-se em calma pura, e convidandoquantos sentidos e intuições restavama quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,se em vão e para sempre repetimosos mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,a se aplicarem sobre o pasto inéditoda natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz algumaou sopro ou eco ou simples percussãoatestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,em colóquio se estava dirigindo:“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,mesmo afetando dar-se ou se rendendo,e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riquezasobrante a toda pérola, essa ciênciasublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,esse nexo primeiro e singular,que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardenteem que te consumiste... vê, contempla,abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,o que nas oficinas se elabora,o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,os recursos da terra dominados,e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestreou se prolonga até nos animaise chega às plantas para se embeber

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63UNIDADE 1

no sono rancoroso dos minérios,dá volta ao mundo e torna a se engolfar,na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,suas verdades altas mais que todosmonumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solenesentimento de morte, que floresceno caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relancee me chamou para seu reino augusto,afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em respondera tal apelo assim maravilhoso,pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelode ver desvanecida a treva espessaque entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadaspresto e fremente não se produzissema de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,e como se outro ser, não mais aquelehabitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontadeque, já de si volúvel, se cerravasemelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;como se um dom tardio já não foraapetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,desdenhando colher a coisa ofertaque se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousarasobre a estrada de Minas, pedregosa,e a máquina do mundo, repelida,

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se foi miudamente recompondo,enquanto eu, avaliando o que perdera,seguia vagaroso, de mãos pensas.

Há semelhanças muito evidentes entre os dois poemas, não é mesmo?

Repare na rigorosa composição métrica e estrófica do poema, mas também

no clima de tensão que se estabelece logo no início, um fim de tarde que

se anuncia como escuro e assustador. Somos quase levados a acreditar

que surgiria ali um novo Adamastor (há inclusive a presença da “estrada

pedregosa”), mas o que vemos é um indivíduo a quem é a máquina do

mundo se abre, gloriosa (repare no longo trecho entre aspas, em que ela

é descrita). E aqui as diferenças entre os dois poemas se revelam bastante

contundentes, pois, ao contrário dos navegantes portugueses, premiados e

eufóricos, este, legítimo representante do homem contemporâneo, recusa

o acesso a esse privilégio. A recusa, aliás, é formalmente anunciada ao

se grafar máquina do mundo em minúsculas, ao contrário do que faz

Camões; há aqui, portanto, um modo muito distinto de se conceber a

máquina, ela não se reveste da mesma importância que recebeu no mundo

clássico, um mundo muito crente nas esperanças de que o conhecimento

levaria o homem a uma vida mais digna e mais justa. Descrente desse,

digamos, avanço, que o humano poderia ter experimentado, a máquina

de Drummond não consegue seduzir. Por isso o eu-lírico baixa os olhos

e segue, negando-se à máquina. São duas visões filosóficas muito

distintas que nos são apresentadas nos dois textos, nesse exercício tão

claro de intertextualidade (afinal, é perfeitamente possível ler o poema

de Drummond sem nunca ter lido o episódio da Máquina do Mundo de

Camões e vice-versa, mas é preciso reconhecer que o conhecimento dos

dois enriquece nosso modo de compreendê-los).

Estátua do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, localizada no Rio de Janeiro

Crédito: Wikkimedia Commons

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1 - Você vai ler a seguir a primeira estrofe da obra Caramuru, cujo subtítulo é ‘Poema épico do descobrimento da Bahia’, publicado em 1781, pelo brasileiro Frei José de Santa Rita Durão. Compare-a com a primeira estrofe de Os Lusíadas, de Camões, e aponte as similaridades que podem ser notadas entre elas. Na sua opinião, pode-se afirmar que Durão se utilizou do texto camoniano?

De um varão em mil casos agitado,Que as praias discorrendo do OcidenteDescobriu o recôncavo afamadoDa capital brasílica potente;Do Filho do Trovão denominado,Que o peito domar soube à fera gente,O valor cantarei na adversa sorte,Pois só conheço herói quem nela é forte.

2 - Releia em seu volume de Os lusíadas, no Canto V, as estrofes 81 a 84. Explique a importância delas no contexto geral da obra, considerando a imponente homenagem que Camões promove nessa epopeia portuguesa.

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Cesário Verde

ObjetivOs De aPRenDiZaGem

■ Refletir sobre as condições de produção, circulação e recepção da poesia

de Cesário Verde.

■ Estabelecer e discutir as relações dos textos selecionados para este livro

com outros tipos de discurso e com os contextos que os inserem.

■ Relacionar os textos literários a serem lidos com os problemas e concepções

dominantes na cultura do período em que foram escritos e com os problemas

e concepções do presente.

ROteiRO De estUDOs ■ SEÇÃO 1 - A modernidade dum ocidental

■ SEÇÃO 2 - As mulheres no poema ‘O sentimento dum Ocidental’

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Jefferson Luiz FrancoRosana Apolonia Harmuch

Silvana Oliveira

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SEÇÃO 1 A MODERNIDADE DUM OCIDENTAL

A partir desta segunda unidade, estudaremos a obra do poeta

Cesário Verde, que viveu no final do século XIX, bem distante, portanto,

de Camões, o que nos coloca diante de uma produção distinta, mas

igualmente importante, inclusive como forma introdutória à produção

que será estudada na última parte deste material, a de Fernando Pessoa.

O título desta seção é um evidente trocadilho com o poema mais

famoso do poeta português Cesário Verde (1855-1886): O sentimento

dum Ocidental, ao qual daremos aqui mais atenção. Gestado durante

seis meses, o poema foi finalmente publicado em 10 de junho de 1880

em Portugal a Camões, publicação extraordinária do Jornal de viagens e,

contrariando as expectativas do autor, não causou impacto.

Magoado, ele desabafou em uma carta de 29 de agosto de 1880, a

António de Macedo Papança, Conde de Monsarás, também poeta:

Ah! Quanto eu ia indisposto contra tudo e contra todos! Uma poesia minha, recente, publicada numa folha bem impressa, limpa, comemorativa de Camões, não obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma observação. Ninguém escreveu, ninguém falou, nem um noticiário, nem uma conversa comigo; ninguém disse bem, ninguém disse mal! Apenas um crítico espanhol chamava às chatezas dos seus patrícios e dos meus colegas – pérolas – e afirmava – fanfarrão! – que os meus versos ‘hacen malisima figura em aquellas páginas impregnadas de noble espiritu nacional.’ (SERRÃO, 1957, p. 210-211).

Na mesma carta, chegou a afirmar: “Literariamente parece que

Cesário Verde não existe”. Adiantado para seu tempo, Cesário Verde

não poderia mesmo obter reconhecimento naquele momento. Foram

necessários vários anos e muitas leituras de sua obra para que seu lugar,

hoje garantido, de destaque na poesia portuguesa fosse ocupado. Há

que se destacar que esse reconhecimento se iniciou justamente com dois

outros poetas: Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, embora ainda

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no século XIX alguns poucos críticos tenham tido sua atenção voltada

para os textos de Cesário, mas as reações se dividiram. Por um lado, em

um enorme desprezo, como a sugestão de um articulista do Diário de

Portugal, de que Cesário não deveria se esquecer de que todos os poetas

devem ter uma enorme gaveta dedicada ao bom senso, destinada ao

sacrifício de determinados textos. Por outro, em uma tão grande surpresa

que provocava um elogioso silêncio. Um exemplo é o depoimento de

Fialho de Almeida, em carta ao editor Manuel Gomes, que lhe pedira

que prefaciasse uma edição de O livro de Cesário Verde:

se te disser, meu caro Gomes, que ao começar a escrever dele a mão me treme, e o espírito me divaga sob uma cor de medo religioso, se te contar que há quatro noites redigi notas para elucidar este prefácio, sem que até agora nenhuma me explique cientificamente o sonho por onde visionava o seu talento, farás ideia talvez da fascinação que esse extraordinário rapaz lançou no meu juízo, e da angústia rude que o teu pedido derrama (RODRIGUES, p. 46).

A obra de Cesário teve que esperar algum tempo para que a crítica

literária se sentisse melhor equipada para lidar com ela. O século XX,

sobretudo a partir de sua segunda metade, se encarregou disso. De

fato foi preciso que se consolidasse, entre outras coisas, o conceito de

modernidade para que Cesário fosse melhor compreendido.

Essa noção de modernidade se explicita no poema que

acompanharemos a partir daqui: O sentimento dum Ocidental.

I. Ave-MariaNas nossas ruas, ao anoitecer,Há tal soturnidade, há tal melancolia,Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresiaDespertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,O gás extravasado enjoa-me, perturba;E os edifícios, com as chaminés, e a turbaToldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem carros de aluguer, ao fundo,Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!Ocorrem-me em revista, exposições, países:

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Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,As edificações somente emadeiradas:Como morcegos, ao cair das badaladas,Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!De um couraçado inglês vogam os escaleres;E em terra num tinir de louças e talheresFlamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;Um trôpego arlequim braceja numas andas;Os querubins do lar flutuam nas varandas;Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!Seus troncos varonis recordam-me pilastras;E algumas, à cabeça, embalam nas canastrasOs filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;E apinham-se num bairro aonde miam gatas,E o peixe podre gera os focos de infecção!

II. Noite FechadaToca-se às grades, nas cadeias. SomQue mortifica e deixa umas loucuras mansas!O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,

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Bem raramente encerra uma mulher de <<dom>>!

E eu desconfio, até, de um aneurismaTão mórbido me sinto, ao acender das luzes;À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes,Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,E as tascas, os cafés, as tendas, os estancosAlastram em lençol os seus reflexos brancos;E a Lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas;Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas, num recinto público e vulgar,Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,Um épico doutrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,Nesta acumulação de corpos enfezados;Sombrios e espectrais recolhem os soldados;Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalariaDos arcos dos quartéis que foram já conventos:Idade Média! A pé, outras, a passos lentos, Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avivesUma paixão defunta! Aos lampiões distantes,Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes,Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristasDescem dos magasins, causam-me sobressaltos;Custa-lhes a elevar os seus pescoços altosE muitas delas são comparsas ou coristas.

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E eu, de luneta de uma lente só,Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:Entro na brasserie; às mesas de emigrados,Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

III. Ao gásE saio. A noite pesa, esmaga. NosPasseios de lajedo arrastam-se as impuras.Ó moles hospitais! Sai das embocadurasUm sopro que arripia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu pensoVer círios laterais, ver filas de capelas,Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do CatolicismoResvalam pelo chão minado pelos canos;E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cutileiro, de avental, ao torno,Um forjador maneja um malho, rubramente;E de uma padaria exala-se, inda quente,Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

E eu que medito um livro que exacerbe,Quisera que o real e a análise mo dessem;Casas de confecções e modas resplandecem;Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintarCom versos magistrais, salubres e sinceros,A esguia difusão dos vossos reverberos,E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa,Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,A sua traîne imita um leque antigo, aberto,Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

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Desdobram-se tecidos estrangeiros;Plantas ornamentais secam nos mostradores;Flocos de pós-de-arroz pairam sufocadores,E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentesOs candelabros, como estrelas, pouco a pouco;Da solidão regouga um cauteleiro rouco;Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

“Dó da miséria!... Compaixão de mim!...”E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,Pede-me esmola um homenzinho idoso,Meu velho professor nas aulas de Latim!

IV. Horas mortasO tecto fundo de oxigénio, de ar,Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

Por baixo, que portões! Que arruamentos!Um parafuso cai nas lajes, às escuras:Colocam-se taipais, rangem as fechaduras,E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

E eu sigo, como as linhas de uma pautaA dupla correnteza augusta das fachadas;Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,As notas pastoris de uma longínqua flauta.

Se eu não morresse, nunca! E eternamenteBuscasse e conseguisse a perfeição das cousas!Esqueço-me a prever castíssimas esposas,Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhoes! Que de sonhos ágeis,Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas,Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir,E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes,Nós vamos explorar todos os continentesE pelas vastidões aquáticas seguir!

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Mas se vivemos, os emparedados,Sem árvores, no vale escuro das muralhas!...Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhasE os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

E nestes nebulosos corredoresNauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

Eu não receio, todavia, os roubos;Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes;E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes,Amareladamente, os cães parecem lobos.

E os guardas, que revistam as escadas,Caminham de lanterna e servem de chaveiros;Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregularDe prédios sepulcrais, com dimensões de montes,A Dor humana busca os amplos horizontes,E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

Retratando um longo passeio pelas ruas de Lisboa, como você viu, o

poema é dividido em quatro grandes blocos: Ave-Marias; Noite Fechada;

Ao gás e Horas Mortas. Há nessa divisão uma clara sequência temporal

delimitada por esses subtítulos, representativos, ao mesmo tempo, do

avanço da noite sobre a cidade cada vez mais industrializada e também

da suspeita crescente de fracasso do projeto de progresso racionalista

característico da segunda metade do século XIX.

Essa desconfiança permeia todo o texto e é apenas uma das marcas

da evidente dualidade constante do poema. Colocado diante de um

mundo em transição, no qual a velha ordem era subjugada e escorraçada

para dar lugar aos ícones industriais do século XX (máquinas, aço e

eletricidade), o poeta trabalha para englobar a dinâmica desse cenário

em mudança acelerada dentro de uma estrutura formal rígida.

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Cada um dos quatro blocos é constituído por 11 estrofes de quatro

versos cada, somando um total de 44 quartetos, sempre com decassílabos

iniciais seguidos de três alexandrinos, obedecendo ao esquema de rimas

A-B-B-A. A rigidez na construção do poema é bastante reveladora, parece

sugerir uma tentativa desesperada de impor alguma ordem à realidade

que circunda o caminhante, como se os olhos não dessem conta de

apreender o novo que se descortinava. Baudelaire, em seus escritos

iniciais, havia se mostrado fascinado por esse admirável mundo novo;

mais tarde, ele próprio percebeu o alto preço pago pela sociedade para

que esse projeto se concretizasse, ou seja, percebeu quão enganadora era

essa ideia de progresso, já em 1855, no ensaio sobre a moderna ideia de

progresso aplicada às belas artes, citado pelo teórico Marshal Berman:

Existe ainda outro erro muito atraente, que eu anseio por evitar, como ao próprio demônio. Refiro-me à ideia de ‘progresso’. Esse obscuro sinaleiro, invenção da filosofância hodierna, promulgada sem a garantia da Natureza ou de Deus – esse farol moderno lança uma esteira de caos em todos os objetos do conhecimento (...). Tome-se qualquer bom francês, que lê o seu jornal, no seu café, pergunte-se-lhe o que ele entende por progresso, e ele responderá que é o vapor, a eletricidade e a luz do gás, milagres desconhecidos dos romanos,

CHARLES BAUDELAIRE (1821 - 1867) É CONSIDERADO O HOMEM QUE MUDOU A LITERATURA MODERNA. FOI TRADUTOR, POETA, CRÍTICO DE ARTE E LITERATO, PARA MUITOS, O PONTO MAIS ALTO DO SÉCULO XIX, NAS LETRAS.

Baudelaire retratado pelo fotógrafo Gaspard-Félix Tournachon

Crédito: Wikkimedia Commons

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testemunho incontestável de nossa superioridade sobre os antigos. Tal é o grau de escuridão que se instalou nesse cérebro infeliz! (1986, p. 135).

Com certeza você se lembrou da máquina do mundo de Drummond,

não é mesmo? A semelhança não é coincidência, é a visão de mundo

que coincidia. Voltemos ao poema: na segunda estrofe da quarta parte

de O sentimento dum Ocidental, Horas mortas, quando o silêncio da

madrugada já se sobrepôs ao burburinho do entardecer, o eu-lírico nos

diz: “Um parafuso cai nas lajes, às escuras: / Colocam-se taipais, rangem

as fechaduras”, evidenciando a frágil estrutura dessa sociedade. Fascínio

e assombro se mesclam ao longo do poema, tentando atingir uma possível

(ou impossível?) síntese.

Pensando ainda no aspecto arquitetônico de O sentimento dum

Ocidental, ele explica, ao menos em parte, o estranhamento causado

pelo autor. Cesário literalmente constrói seu poema, na esteira de Poe,

traduzido por Baudelaire, ou seja, insere a noção de artefato, em que a

linguagem é trabalhada de modo que as palavras não percam sua essência

material de objetos. Cesário vai ao cerne da questão poética: como dizer,

só com palavras, que estão sempre aquém dos desejos? Por isso, Cesário

rompe com seu tempo ao problematizar o conceito de poesia, por isso ele

praticamente pinta as ruas de Lisboa para nós leitores (novamente o ut

pictura poesis), por isso o tradicionalmente feio ganha estatuto de beleza,

por isso ele lamenta não possuir outra postura diante da arte, como fica

evidente, por exemplo, nos seguintes versos da terceira parte: “E eu que

medito um livro que exacerbe. / Quisera que o real e a análise mo dessem;

(...) Longas descidas! Não poder pintar / Com versos magistrais, salubres

e sinceros, / A esguia difusão dos vossos reverberos. / E a vossa palidez

romântica e lunar!” O uso da palavra pintar é bastante sintomático da

busca do poeta por essa visualização do poema.

Os versos revelam também o desejo de adotar uma postura mais

racional, resultante do real e da análise desse real, como queriam os

seguidores de Flaubert (autor de Madame Bovary) e de Zola (autor de

Germinal). Esse caminho lhe está vetado, como também está o romântico.

O eu-lírico vê (e registra) a beleza da noite e da lua, símbolo tão caro

aos românticos, mas confessa não poder pintar apenas isso, há mais,

muito mais. Há a violência, a miséria, ratoneiros imberbes, exploração,

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prostituição e a beleza também reside nesses elementos. E, embora haja

a confissão metalinguística de que “E eu, de luneta de uma lente só, / Eu

acho sempre assunto a quadros revoltados;” isso é questionável, ou pelo

menos gera belas contradições, já que há momentos em que o fascínio

escapa das mãos do poeta e se revela, como por exemplo, na estrofe que

segue, a terceira da segunda parte, um dos momentos mais plásticos do

poema: “A espaços, iluminam-se os andares, / E as tascas, os cafés, as

tendas, os estancos / Alastram em lençol os seus reflexos brancos; / E a

lua lembra o circo e os jogos malabares.” A noite fechada deixa de ser

fechada, artificialmente ela passa a ser iluminada, dizemos nós pobres

mortais, Cesário diz que os reflexos brancos se alastram formando um

lençol de luz, o que dá à rua um aspecto circense, assume-se que ela é

o novo palco dos homens, onde se darão os novos embates, como o da

família que se deslumbra diante do luxo no poema Os olhos dos pobres,

de Baudelaire e como o do professor de latim que pede esmolas em O

sentimento dum Ocidental, esses os heróis da modernidade, conceito

bastante explicitado por Baudelaire:

A maioria dos poetas que se ocuparam de temas realmente modernos contentaram-se com temas conhecidos e oficiais – esses poetas ocuparam-se de nossas vitórias e de nosso heroísmo político. Mesmo assim fazem-no de mau grado e só porque o governo ordena e lhes paga os honorários. E, no entanto, há temas da vida privada bem mais heroicos. O espetáculo da vida mundana e das milhares de existências desregradas que habitam os subterrâneos de uma cidade grande (...) provam que precisamos apenas abrir os olhos para reconhecer nosso heroísmo. (BENJAMIN, 1989, p. 77).

Apesar das muitas semelhanças, o depoimento de Jorge Listopad,

tradutor de Cesário para o francês, dá a medida da importância da ruptura

promovida por esse poeta, inclusive em relação a Baudelaire:

O seu baudelairismo, proclamado por ele próprio e tão proclamado por seus exegetas, a sua estética simbolista e outras derivantes, as suas contradições entre o romantismo e o realismo e até entre as suas raízes aldeãs e a sua inspiração citadina, tudo isso se nos revela parcialmente verdadeiro e apenas para os poemas menores,

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como disse tão bem Jacinto do Prado Coelho, totalmente falso para os outros. (...) Baudelaire e seus consortes não me bastavam, nem sob o ponto de vista linguístico, nem semântico, nem da estrutura do verso, nem sentimentalmente (...). A estética febril e intensa do genial poeta francês não tem nada em comum com os poemas mais fortes de Cesário, que sabia como um dos primeiros na poesia mundial, talvez como Heine, dar às palavras mais correntes, mais cotidianas, mais banais e até manifestamente mais anti-poéticas, uma força criadora do real e mais do que real. Em resumo ele soube libertar a palavra e, com a palavra, os sentimentos, como só tentaram fazer mais tarde os poetas do século XX. (RODRIGUES, p. 85).

O verso que aparece ao final de O sentimento dum Ocidental, na

primeira estrofe de Horas mortas, é um verdadeiro achado e creio servir

como um bom exemplo dessas imagens revitalizadoras da palavra: “Vêm

lágrimas de luz dos astros com olheiras”. Essa plasticidade, ou esse

Impressionismo como querem muitos, se verifica muito claramente em

O sentimento dum Ocidental, por vários motivos, podemos citar alguns.

a) A cidade é mostrada por Cesário em vários momentos diferentes,

do fim da tarde à madrugada, de modo que a luz que incide sobre

ela vai sofrendo alterações. Exemplos de cada uma das quatro

partes que compõem o poema: Ave-Marias “O céu parece baixo

e de neblina, (...) / E os edifícios, com as chaminés, e a turba, /

Toldam-se duma cor monótona e londrina.” Noite fechada “A

espaços iluminam-se os andares,” Ao gás “Não poder pintar (...) /

A esguia difusão dos vossos revérberos” ou “Apagam-se nas frentes

/ Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;” Horas mortas “O

teto fundo de oxigênio, d’ar, / Estende-se ao comprido,” ou “E nestes

nebulosos corredores”.

b) O ritmo da cidade, das pessoas é mostrado em processo, em

movimento, ou seja, como se fossem pequenos flashes, daí porque

outra associação muito comum desse poema é feita com o cinema,

como se os olhos do caminhante fossem uma câmera tentando

registrar inclusive as alterações desse ritmo, já que a cidade vai se

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aquietando lentamente. Como na pintura impressionista, o externo

é visto em constante modificação, em permanente fragmentação. É a

solidificação daquilo que Baudelaire já havia dito: “A Modernidade

é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo

a outra metade o eterno e o imutável.” (1996, p. 25)

c) Assim como para os poetas realistas, também para Cesário e

os impressionistas, a realidade é o foco de interesse, o que muda

é o que fazer com ela. A tentativa é de registrar o que o objeto

desencadeia no observador, num claro desejo de fusão entre

sensibilidade e razão. Isso explica a permanente oscilação entre a

objetividade e a subjetividade, tão marcantes em O sentimento dum

Ocidental, como acontece, por exemplo, nos seguintes versos: “O

bulício, o Tejo, a maresia / Despertam-me um desejo absurdo de

sofrer.”, “Levando à via férrea os que se vão. Felizes! Ocorrem-me

em revista, exposições, países: Madri, Paris, Berlim S. Petersburgo,

o mundo!”, “E eu desconfio, até, de um aneurisma / Tão mórbido me

sinto, ao acender das luzes; / À vista das prisões, da velha Sé, das

cruzes, / Chora-me o coração que se enche e se abisma.”, “E aquela

velha, de bandos! Por vezes, / A sua traîne imita um leque antigo,

aberto, aberto, / Nas barras verticais, a duas tintas.”, ou ainda “E

eu sigo, como as linhas de uma pauta, / A dupla correnteza augusta

das fachadas; / Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, / As

notas pastoris de uma longínqua flauta.”

d) Na busca de traduzir sensações, detalhes, são comuns as frases

curtas, as muitas referências cumulativas, as sinestesias, que, no

conjunto, nos fornecem um mundo que precisa ser redimensionado

no momento da leitura, precisa ser materializado, até porque não

há por parte dos artistas a intenção de promover nenhum juízo,

nenhuma investigação, a ideia é que o receptor seja estimulado

(sequer importa que o estímulo seja real ou não) a vivenciar suas

próprias sensações a partir das do criador. Em O sentimento dum

Ocidental, predominam, é claro, as sugestões visuais, mas há

também as olfativas, auditivas e táteis: ao cair das badaladas, num

tinir de louças e talheres, / e os sinos de um tanger monástico e

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devoto, / um sopro que arrepia os ombros quase nus, / ainda quente,

um cheiro salutar e honesto a pão no forno, resvalam pelo chão

minado pelos canos; / Da solidão regouga um cauteleiro rouco; /

Um parafuso cai nas lajes, às escuras.

Mulheres chinesas trabalham como mineiras em foto de fins do século XIX

Crédito: Wikkimedia Commons

SEÇÃO 2AS MULHERES NO POEMA ‘O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL’

A modernidade de O sentimento dum Ocidental se revela também

na eleição da figura da mulher como um dos símbolos desse novo mundo.

O tema foi comum em Baudelaire, embora nele a imagem tenha sido

buscada na Grécia, como se a mulher merecedora do status de heroína

fosse a lésbica, combinação de erotismo viril e grandeza do mundo

antigo. Em Cesário, em especial em O sentimento dum Ocidental, são

muitas as mulheres, de classes sociais distintas, de belezas igualmente

distintas, e, como em muitos outros poemas dele, todas parecem acentuar

ou ao menos manter a distância entre elas e o seu observador. É como se

Cesário ressaltasse na nova sociedade a manutenção de um jogo de poder

entre homens e mulheres, já que elas ocupam o espaço público da rua,

e não necessariamente para se prostituir, passam fazer parte da força de

trabalho, são fortes e ao mesmo tempo não perdem a sensualidade, embora

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muitas vezes sejam descritas como fúteis, luxuosas, excessivamente

preocupadas com a moda.

Nas duas primeiras partes do poema, Ave-Marias e Noite fechada,

surgem dois grupos de mulheres trabalhadoras voltando para suas casas.

Um formado por aquelas que exercem uma atividade mais pesada:

“apressam-se as obreiras; / E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,

/ Correndo com firmeza, assomam as varinas, / Vêm sacudindo as ancas

opulentas! / Seus troncos varonis recordam-me pilastras; / E algumas,

à cabeça, embalam nas canastras / Os filhos que depois naufragam nas

tormentas. / Descalças! Nas cargas de carvão, / Desde manhã à noite,

a bordo das fragatas; / E apinham-se num bairro aonde miam gatas, /

E o peixe podre gera os focos de infecção!”, e outro por costureiras e

floristas. O poeta parece fazer questão de registrar que as mulheres não

apenas trabalham fora de suas casas, mas também que muitas o fazem

numa atividade que exige força, vigor físico, atributos tradicionalmente

masculinos. É interessante perceber que apenas ao primeiro grupo é

mencionada a maternidade e apenas o segundo causa sobressaltos no

eu-lírico. Mantém-se, portanto uma clara oposição entre os dois, fruto é

claro da distinção social que é acentuada ainda mais quando são citadas

as elegantes diante das vitrines, observando joias. Essas causam outro

sentimento: “Aos lampiões distantes, / Enlutam-me, alvejando, as tuas

elegantes, / Curvadas a sorrir às montras dos ourives.”

Em Ao gás, surgem, pela primeira vez no poema, as impuras que se

arrastam no lajedo. A escolha do verbo para tentar dar conta do movimento

delas é significativa, já que não parece haver muito entusiasmo nele.

São citadas também, ironicamente, as burguesinhas do Catolicismo,

equilibrando-se no chão molhado durante uma procissão, o que desperta

no eu-lírico a lembrança das freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Essa não é a única referência crítica em relação à religião católica, há

várias ao longo do texto. E surgem ainda mais duas mulheres igualmente

luxuosas, ambas fazendo compras. A primeira é descrita como a “grande

cobra, a lúbrica pessoa, / Que espartilhada escolhe uns xales com

debuxo! / Sua excelência atrai, magnética, entre luxo,” Mais uma vez, as

passantes, tão citadas por Baudelaire, fascinam o observador. A segunda

é uma senhora de fitas nos cabelos, bastante diferente das velhinhas

baudelairianas: “Por vezes, / A sua traîne imita um leque antigo, aberto,

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/ Nas barras verticais, a duas tintas. Perto, / Escarvam à vitória, os seus

meclemburgueses.”

Em Horas mortas, quando o eu-lírico experimenta um devaneio

romântico, um desejo de perfeição, surgem as mulheres estereotipadas

pela literatura romântica e, claro, pela ideologia burguesa, imagina

castíssimas esposas, mães e irmãs estremecidas, mas para ele elas são

parte do delírio de constituição de um futuro impossível “Nós vamos

explorar todos os continentes / E pelas vastidões aquáticas seguir!”, como

se essas mulheres fossem parte de um passado que não pode mais ser

reconstruído, tal qual o passado de glórias dos navegantes portugueses.

Ao contrário de Baudelaire, que quer a exclusão, quer marcar a diferença

em relação aos outros homens, Cesário sonha, deseja ser incorporado.

E, finalmente, as últimas mulheres citadas, nessa madrugada, são,

novamente, as imorais, nos seus roupões ligeiros, / Tossem, fumando,

sobre a pedra das sacadas. Mais uma vez, as prostitutas são mostradas de

um modo deprimente, pouco ou nada sedutor. Cesário, mais até do que

Baudelaire, parece se deixar seduzir pelo luxo feminino, embora registre

a beleza apenas aparentemente contraditória da miséria de muitas das

prostitutas.

No quadro “O sofá” do pintor francês Henri de Toulouse-Lautrec, datado de 1896, duas prostitutas aguardam clientes

Crédito: Wikimmedia Commons

Essa constante referência ao universo feminino pode sugerir a

metaforização da cidade descrita pelo poeta como sendo também uma

mulher, palmilhada, explorada, buscada, mas a longa caminhada se

encerra com um grande pessimismo, com a certeza da ausência de saída

para o ser humano, pois a luz do progresso é não apenas, mas também,

uma ilusão, já que ela, se por um lado tornou os caminhos mais claros,

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por outro mostrou a inexistência de um caminho único, de uma verdade

única “Mas se vivemos, os emparedados, / Sem árvores, no vale escuro

das muralhas!...” A cidade sufoca e, em meio aos prédios, o homem

continua sua busca infrutífera “E, enorme, nesta massa irregular / De

prédios sepulcrais, com dimensões de montes, / A Dor humana busca os

amplos horizontes, / E tem marés, de fel, como um sinistro mar!”. Essa é a

última estrofe do poema e nela, assim como na palavra vivemos da estrofe

anterior, Cesário faz questão de universalizar a dor, incluir-se entre os

que buscam uma saída nos amplos horizontes, faz comunhão com a dor,

propositadamente em maiúscula. Se a Paris de Baudelaire foi descrita por

ele como atroz, cruel, a Lisboa de Cesário também o é, mas é sobretudo

triste, até porque o poeta português nega a si mesmo o distanciamento de

um mero observador, um flâneur individualista e superior (resquícios do

Romantismo).

É claro que Cesário Verde compôs muitos outros poemas e você

pode, depois dessas considerações sobre O sentimento dum Ocidental,

lê-los e tentar perceber ressonâncias desses elementos aqui expostos.

Quanto maior é a nossa familiaridade com os textos poéticos, mais fácil

fica trabalhar com eles, seja em atividades para disciplinas como esta,

seja nas aulas que preparamos para nossos alunos.

1 - Apresente uma análise do poema a seguir, de Cesário Verde, considerando em especial os aspectos formais (métrica, estrofação, rimas etc) e a plasticidade.

DESLUMBRAMENTOSMilady, é perigoso contemplá-la,Quando passa aromática e normal,Com seu tipo tão nobre e tão de sala,Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,Eu vejo-a, com real solenidade,Ir impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me atrai como um tesouro:O seu ar pensativo e senhoril,A sua voz que tem um timbre de ouro

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E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina...E é, na graça distinta do seu porte,Como a Moda supérflua e feminina,E tão alta e serena como a Morte!...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,Britânica, e fazendo-me assombrar;Grande dama fatal, sempre sozinha,E com firmeza e música no andar!

O seu olhar possui, num jogo ardente,Um arcanjo e um demônio a iluminá-lo;Como um florete, fere agudamente,E afaga como o pêlo dum regalo!

Pois bem. Conserve o gelo por esposo,E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,O modo diplomático e orgulhosoQue Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,Sem sorrisos, dramática, cortante;Que eu procuro fundir na minha chamaSeu ermo coração, como um brilhante.

Mas cuidado, mi1ady, não se afoite,Que hão de acabar os bárbaros reais;E os povos humilhados, pela noite,Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor do Luxo, nas estradas,Sob o cetim do Azul e as andorinhas,Eu hei-de ver errar, alucinadas,E arrastando farrapos - as rainhas!

2 - Ainda em relação ao poema Deslumbramentos, que aproximações é possível fazer entre a imagem de mulher aqui esboçada e as que são descritas em O sentimento dum Ocidental? Não se esqueça de citar trechos dos poemas para justificar suas afirmações.

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Fernando Pessoa, os heterônimos e Mensagem

ObjetivOs De aPRenDiZaGem

■ Conhecer, compreender e analisar a poesia de Fernando Pessoa;

■ Compreender a poesia dos principais heterônimos pessoanos no contexto

da produção do poeta;

■ Relacionar a produção do autor aos demais autores portugueses e

estrangeiros.

ROteiRO De estUDOs ■ SEÇÃO 1 - Os heterônimos e Alberto Caeiro, o mestre

■ SEÇÃO 2 - Os heterônimos: Álvaro de Campos e Ricardo Reis

■ SEÇÃO 3 - Mensagem, de Fernando Pessoa

UN

IDA

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Jefferson Luiz FrancoRosana Apolonia Harmuch

Silvana Oliveira

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88UNIDADE 3

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Nesta unidade você terá a oportunidade de conhecer um dos

maiores poetas portugueses, cuja obra é referência para todos que, de

uma forma ou outra, se aproximam da literatura e da língua portuguesa.

O nome de Fernando Pessoa (1888-1935) se confunde com o

Modernismo em Portugal; sua presença artística ocupa um espaço

significativo na cultura europeia e em toda a produção em língua

portuguesa desde a sua estreia como ensaísta, em 1912, na revista A

Águia.

Nascido em Durban, na África do Sul, quando sua família estava

instalada lá, Fernando Pessoa foi alfabetizado também em língua inglesa,

do que resultaram muitas composições nesta língua.

Em 1915, Fernando Pessoa inaugura a Revista Orpheu, na

qual desenvolve sua múltipla identidade artística, que mais tarde se

consolidará nos seus heterônimos principais: Alberto Caeiro, Álvaro de

Campos e Ricardo Reis.

Os estudos desta unidade se concentram primeiramente na poesia

dos heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis; em

seguida você acompanhará um estudo do longo poema Mensagem, único

livro publicado em vida do autor, no ano de 1934, assinado por ele próprio.

O poeta português Fernando Pessoa. Foto de seu bilhete de identidade, feita aos 40 anos de idade

Crédito: Wikimmedia Commons

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89UNIDADE 3

SEÇÃO 1 OS HETERÔNIMOS E ALBERTO CAEIRO, O MESTRESEÇÃO 1 OS HETERÔNIMOS E ALBERTO CAEIRO, O MESTRESEÇÃO 1

O princípio do “fingimento poético” de Fernando Pessoa ensina

a cada um de nós que a poesia expressa verdades não pessoais ou

confessionais, mas sim verdades múltiplas e possíveis de serem

compartilhadas, na medida em que o poeta é um criador/fingidor.

Nesse princípio também se baseia, como você verá, a lógica dos

heterônimos pessoanos.

AutopsicografiaO poeta é um fingidor.

Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,Na dor sentida sentem bem,

Não as duas que ele teve,Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de rodaGira, a entreter a razão,Esse comboio de cordaQue se chama coração.

Fernando Pessoa

Hetero: Do Grego héteros, outro, diferenteÓnoma: nomeHetero: Do Grego héteros, outro, diferenteÓnoma: nomeHetero: Do Grego héteros, outro, diferente

Designa o autor que publica obra com nome alheio, ou como sua obra que não lhe pertence. Este primeiro sentido está hoje obscurecido pelo que lhe emprestou Fernando Pessoa (1888-1935), poeta português da mais alta categoria que assinou grande parte da sua obra com os nomes de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Vicente Guedes, assinou grande parte da sua obra com os nomes de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Vicente Guedes, assinou grande parte da sua obra com os nomes de Alberto

Antonio Mora, Alexander Search e outros. Tais nomes dizem respeito a outros seres, poetas e prosadores, em que Pessoa se multiplicava: possuem identidade própria, “biografia” diferenciada e a sua produção estética ou filosófica ostenta características peculiares e inconfundíveis. Os heterônimos assim personalizados resultariam de um desdobramento semelhante ao do dramaturgo, radicado no esforço de

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Veja que, para definir o que é “heterônimo”, Massaud Moisés se

vale do exemplo de Fernando Pessoa.

Ao criar seus principais heterônimos, Fernando Pessoa deu vida

a verdadeiras entidades poéticas, sem existência física concreta, mas

com uma verdade artística intensa. Para os seus principais heterônimos

(Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis) o poeta criou biografias

individuais, assim como identidades poéticas e emocionais próprias. Por

isso são nomes que figuram no mundo poético com relativa autonomia.

Com certeza, você já teve a experiência de se deparar com poemas

completos ou fragmentos atribuídos a um dos heterônimos sem que

houvesse menção complementar ao fato de que se tratava, na verdade,

de Fernando Pessoa.

Os primeiros versos do poema Tabacaria, de 15 de agosto de 1928,

do heterônimo Álvaro de Campos, são muito famosos. Talvez você tenha

lido esses versos em perfis de redes sociais online ou mesmo como

epígrafes de escritos contemporâneos na internet:

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

O poema Tabacaria é um longo poema, uma verdadeira profissão

de fé do poeta-heterônimo Álvaro de Campos.

O fato de estes versos circularem livremente com a autoria atribuída

a um certo poeta chamado Álvaro de Campos, sem que se faça menção ao

nome de Fernando Pessoa, nos coloca a força desta criação pessoana, que

assume, em muitas situações, uma identidade autônoma, num fenômeno

abranger, gnoseologicamente, todas as modalidades do real: cada um dos seres que povoam o mundo interior do poeta corresponderia a uma das formas-padrão de conhecimento do mundo e dos homens.Diferente de pseudônimo, ou seja, nome falso ou suposto por meio do qual um escritor dá a lume as próprias obras.Definição de Heterônimo, segundo o estudioso Massaud Moisés (Dicionário de Termos Literários, Cultrix, 1995, p. 274).

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de leitura que aceita o jogo dramático proposto por Fernando Pessoa de

fazer estes poetas, criações suas, “encenarem” na realidade o exercício

múltiplo da poesia.

Página manuscrita do poema “O guardador de rebanhos”, de Alberto Caieiro, heterônimo de

Fernando PessoaCrédito: Wikimmedia Commons

1.1. Alberto Caeiro, o mestre

Entendido o conceito de heterônimo, passemos agora ao heterônimo

que Fernando Pessoa chamava o Mestre: Alberto Caeiro.

Em carta ao amigo Adolfo Casais Monteiro (1980, p. 102), o próprio

Fernando Pessoa explica como lhe surgiram Ricardo Reis, ainda em

penumbra, e de modo mais preciso, Alberto Caeiro. Vejamos:

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já não me lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de março de 1914 – acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderia ter

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outro assim. Abri com o título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei o nome desde logo de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. (...)

O poema O Guardador de Rebanhos, composto por 49 divisões, é

o retrato poético de Alberto Caeiro. Filosofia da linguagem em forma

de poesia, neste poema Caeiro expressa a angústia da palavra diante

daquilo que se quer apreender e prega o olhar e a existência como

estados alheios ao pensar, na medida em que “pensar é estar doente dos

olhos”. No entanto, é a poesia de Caeiro uma verdadeira ode – elogio – à

palavra, sem a qual a existência e a realidade pura do olhar não podem

alcançar expressão. Neste paradoxo filosófico se realiza a aparente leveza

da poesia de Alberto Caeiro.

Observe alguns trechos do poema O Guardador de Rebanhos,

tendo em vista sempre a compreensão dos comentários que fixamos em

seguida. Com isso, a sua percepção de qual é a “verdade poética” que

habita Caeiro vai se aprofundar.

É claro que esse exercício não prescinde da leitura integral do

poema O Guardador de Rebanhos, disponível na internet, em vários sites

para consulta integral e também, é claro, na obra completa do poeta

Fernando Pessoa, editada pela Nova Aguilar (1986).

O que nós vemos das coisas são as coisas.

Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?

Veja que há em Caeiro um esforço por ser objetivo, um desejo de

que a “coisa” coincida com o seu sentido, numa mágica que eliminasse

qualquer subjetividade que contaminasse a verdade da coisa ela mesma.

Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que

conhecê-la,

Porque conhecer é nunca ter visto pela primeira vez

E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.

Para Caeiro é preciso exercitar o olhar contra o pensamento; contra

o conceito ele propõe o olhar da primeira vez, o olhar virgem, que não

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necessita da palavra ou dos modos de dizer inventados pela linguagem.

Observe que esse anseio expresso pela poesia de Caeiro é

justamente isso: um anseio e uma impossibilidade, uma vez que estamos

todos dentro da linguagem e condenados a ela, para o bem e para o mal.

Quando Caeiro expressa o desejo de “ver” sem o pensamento ele está

enfrentando o velho paradoxo de buscar um olhar original sobre o mundo

e sobre as coisas: o olhar da primeira vez, o olhar anterior à linguagem.

Eu nem sequer sou poeta: vejo.

(...)

Eu não tenho filosofia, tenho sentidos.

(...)

Eu nunca passo para além da realidade imediata.

Para além da realidade imediata não há nada.

(...)

Isso é o que hoje é.

E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo.

(...)

A minha poesia é natural como levantar-se o vento.

A naturalidade e objetividade almejadas pelo poeta revelam o

princípio de verdade da poesia de Caeiro, uma verdade natural na qual

se acredita, a verdade da existência das coisas por si, sem a intervenção

de um pensamento que as nomine e domine. No entanto, é de palavras

que se faz a poesia; as palavras que pregam o olhar frente ao exercício

do pensar já são, a seu modo, uma apreensão do mundo e um domínio

sobre ele.

Se o poeta diz: eu sou uma árvore ou eu sou um rio, na naturalidade

da existência desses entes, já não é árvore nem rio. São palavras,

compostas sempre num contexto de subjetividade, de individualidade.

Você compreende que estamos diante de um profundo exercício de

filosofia da linguagem?

A poesia de Caeiro leva a pensar sobre o que é a palavra diante da

coisa que ela denomina. Faz pensar em quais são as relações entre o que

existe e o que delas se diz.

Por esta lucidez e complexidade é que Fernando Pessoa concebe

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Alberto Caeiro como “o mestre”. Mestre do exercício das palavras diante

do pasmo do mundo.

Tomemos agora o texto XX do poema O Guardador de Rebanhos:

Pôr-do-sol sobre o rio Tejo, em Portugal, visto da Torre de BelémCrédito: Erkki Kaila / Panoramio

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeiaPorque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grande naviosE navega nele ainda,Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,A memória das naus.

O Tejo desce de EspanhaE o Tejo entra no mar em Portugal.Toda a gente sabe isso.Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeiaE para onde ele vaiE donde ele vem.E por isso, porque pertence a menos gente,É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.Para além do Tejo há a AméricaE a fortuna daqueles que a encontram.Ninguém nunca pensou no que há para alémDo rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

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O rio Tejo, famoso por cruzar a cidade de Lisboa e servir de saída

para o mar e para o mundo, é o rio que faz pensar, já que sobre ele muitas

coisas são ditas e pensadas. O Rio Tejo é maior do que o rio da minha

aldeia, mas mais belo é o rio da minha aldeia, pois sobre ele não paira o

pensamento, e sim o olhar.

O anseio de olhar sem a intervenção do pensamento se realiza sobre

o rio que não tem nome, apenas existe na aldeia (É mais livre e maior o rio

da minha aldeia). Essa “virgindade” do olhar é impossível sobre um rio

famoso e “nominado” como é o caso do rio Tejo.

Se você viajar até a cidade de Lisboa, no momento em que avistar

o rio Tejo já terá no seu pensamento várias imagens do rio, todas elas

anteriores à sua experiência de ver efetivamente o rio, então, como diz

Caeiro, sua percepção do rio já estará “contaminada”, não será possível

olhar sem a interferência do pensamento.

É nesse sentido que o rio da minha aldeia se presta mais

verdadeiramente ao olhar sem o pensamento.

Percebamos, no entanto, que ao refletir sobre essa interferência do

pensar sobre o olhar, Caeiro não diz que devemos então nos imbecilizar e

prescindir do pensamento de forma absoluta. O que ele faz, em sua poesia,

é um profundo exercício sobre o funcionamento da linguagem, ele explora

os modos de ver e a relação desses modos de ver com a linguagem.

O nome Tejo é produto da dinâmica de linguagem que determina o

nome, a apreensão do objeto. No momento em que damos nome ao objeto,

nos separamos dele e o entregamos para o mundo e para o pensamento

alheio, o pensamento opera pela lógia sujeito-objeto.

Caeiro prega a ruptura desta lógica como um exercício poético

que torne o sujeito parte do objeto, numa fusão do existente. Assim seria

possível dizer: eu sou o rio.

A naturalidade com que o poeta opõe os dois rios encobre a

complexidade da sua concepção de poesia:

Procuro dizer o que sinto

Sem pensar em que o sinto.

Procuro encostar as palavras à ideia

E não precisar dum corredor

Do pensamento para as palavras.

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“Não precisar do corredor que leve o pensamento às palavras” é

fazer coincidir o que se vê com o que se diz. É este o anseio e a procura

de Alberto Caeiro.

Esse desejo de objetividade quase imediata marca a poesia de

Caeiro e o credencia a um objetivismo recorrente.

Para fins didáticos, a poesia de Alberto Caeiro pode ser dimensionada

a partir do esquema abaixo.

TEMÁTICAS ASPECTOS ESTILÍSTICOSa) Objetivismo- Apagamento do sujeito, ausência do “eu emocional”;- Preferência pela exterioridade;- Integração e comunhão com a natureza;

b) Sensacionismo – predomínio das sensações visuais (o olhar);

c) Posicionamento formalmente contrário à metafísica e à filosofia;

d) Louvação do físico e do existente concreto.

a) Verso livre, sem preocupação com a métrica, com a rima ou ritmo.

b) Linguagem prosaica;

c) Simplicidade do vocabulário;

d) Estilo discursivo;

e) Uso da oralidade e do coloquial;

f) Uso do presente do indicativo;

g) Poucas metáforas;

h) Associações e paralelismos diretos.

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SEÇÃO 2 OS HETERÔNIMOS: ÁLVARO DE CAMPOS E SEÇÃO 2 OS HETERÔNIMOS: ÁLVARO DE CAMPOS E SEÇÃO 2

RICARDO REIS

2.1. Álvaro de Campos

Para nos aproximarmos do segundo heterônimo estudado aqui,

vejamos, de início, algumas palavras de Álvaro de Campos sobre o

heterônimo que discutimos no item anterior, Alberto Caeiro:

Por meio dessas palavras de Álvaro de Campos sobre Alberto

Caeiro, você pode perceber que o criador de ambos, Fernando Pessoa,

encena entre eles uma relação de mestre e discípulo devotado. Álvaro de

Campos, assim como Ricardo Reis, professam uma atitude de respeito e

afeto por Caeiro e, assim como o próprio Fernando Pessoa, se referem a

ele como “o mestre”.

A concepção do heterônimo Álvaro de Campos é narrada a Casais

Monteiro na mesma carta em que Fernando Pessoa dá a conhecer o

processo de nascimento de Caeiro. Vejamos:

Notas para a recordação do meu mestre Caeiro:

Vejo ainda, com claridade da alma, que as lágrimas da lembrança não empanam, porque a visão não é externa... Vejo-o diante de mim, vê-lo-ei talvez eternamente como primeiro o vi. Primeiro, os olhos azuis de criança que não tem medo; depois os malares já um pouco salientes, a cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que vinha de dentro e era uma calma, e não de fora, porque não era expressão nem feições. (...)Nunca vi triste o meu mestre Caeiro. Não sei se estava triste quando morreu, ou nos dias antes. Seria possível sabê-lo, mas a verdade é que nunca ousei perguntar aos que assistiram à morte qualquer coisa da morte ou de como ele a teve.

(BERARDINELLI, Cleonice. FERNANDO PESSOA: Obras em Prosa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1986, p. 107).

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(...) Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de

mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro,

Ricardo Reis e Álvaro de Campos. (...) Álvaro de Campos é alto (1,75m

de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-

se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; (...) Campos

entre branco e moreno. (...) Álvaro de Campos teve uma educação vulgar

de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro

mecânica e depois naval. (...)

Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e

inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever.

Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se

concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para

escrever e não sei o quê (...) (PESSOA, 1980).

A poesia de Álvaro de Campos, mais diretamente do que os

outros heterônimos, representa as vanguardas artísticas em Portugal.

Sua produção pode ser vista em fases diferentes, num movimento de

alternância e auto-reflexão próprias do modernismo português.

O homem moderno, suas angústias, sua autoconsciência, o

comprometimento com o século, com a técnica, tudo isso combinado

com a noção problemática de uma individualidade aparecem na obra de

Campos de forma marcante.

Para melhor compreender a dicção poética deste heterônimo,

vejamos o poema Lisbon Revisited, de 1926.

Cidade de LisboaCrédito: Wikimmedia Commons

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LISBON REVISITED

Álvaro de CamposNada me prende a nada.Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.Anseio com uma angústia de fome de carneO que não sei que seja –

5 Definidamente pelo indefinido...Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequietoDe quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver na rua.

10 Não há na travessa achada número de porta que me deram,

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.Até os meus exercícios sonhados sofreram derrota.Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.Até a vida só desejada ma farta – até essa vida...

15 Compreendo a intervalos desconexos;Escrevo por lapsos de cansaços;E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme:Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;

20 Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,Nos campos últimos da alma onde memoro sem causa(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),

25 Nas estradas e atalhos das florestas longínquasOnde supus o meu ser,Fogem desmantelados, últimos restosDa ilusão final,

Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,30 As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo.Cidade da minha infância, pavorosamente perdida...Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,

35 E aqui tornei a voltar, e a voltar.E aqui de novo tornei a voltar?

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Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

40 Outra vez te revejo,Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo -,Transeunte inútil de ti e de mim,Estrangeiro aqui como em toda parte,

45 Casual na vida como na alma,Fantasma a errar em salas de recordações,Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangemNo castelo maldito de ter que viver...

Outra vez te revejo,50 Sombra que passa através das sombras, e brilha

Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,

E entra na noite como um rastro de barco se perdeNa água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,55 Mas, ai, a mim não me revejo!

Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim – Um bocado de ti e de mim!...

Este longo poema de 58 versos organizados em 11 estrofes

irregulares e livres atesta o estado de angústia interior que ao mesmo

tempo se espelha em uma cidade que não representa para o poeta um

índice de identidade. O não pertencimento, ora execrado, ora louvado,

faz do poeta um eterno estrangeiro. Estrangeiro à cidade, estrangeiro à

própria vida.

Formalmente, você pode observar que Campos investe nos versos

livres, bastante irregulares, com um movimento sintático que, em alguns

momentos surpreende, como é exemplo o verso:

Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago

Jacinto do Prado Coelho (1980) reconhece na poesia de Campos

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uma última fase – a partir de 1916 – de abatimento, atonia, aridez interior,

descontentamento de si e dos outros. Brusco e oprimido, as suas palavras

são nesta fase mais humanas, lateja nelas maior sinceridade. O poeta

se apresenta decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão de

Fernando Pessoa ele mesmo no ceticismo, na dor de pensar e nas saudades

de uma infância perdida ou de qualquer coisa de irreal e impossível de

se alcançar.

Para Eduardo Lourenço (1973), o poema Lisbon Revisited pode ser

dividido em duas partes, assim propostas:

PRIMEIRA PARTE – do verso 1 ao 30, em que o poeta se apresenta

com uma “consciência aguda do seu espaço humano definitivamente

bloqueado” (Idem, p. 195).

SEGUNDA PARTE - do verso 31 até o final do poema, em que o poeta

projeta a sua desorientação, o seu esfacelamento interior na cidade que

revê. Nesta parte, todas as estrofes iniciam com o verso “Outra vez te

revejo”, dirigido à cidade, espaço em que o poeta busca uma referência

de si mas não encontra:

Transeunte inútil de ti e de mim,

Estrangeiro aqui como em toda parte. (...)

Mas, ai, a mim não me revejo!

A cidade torna-se em espelho de uma fragmentação interior que não

pode – e não deseja – inteirar-se, como se a própria noção de totalidade

estivesse perdida. Essa perspectiva moderna da poesia de Campos é o

que o diferencia substancialmente da poesia de Caeiro, na medida em

que aceita esse estado de estranheza e fragmentação conscientemente.

O discurso de Caeiro confrontado com esse estado de angústia e

lucidez pode ser percebido, no entanto, como a busca por um estado de

“pureza sensorial” que só seria possível alcançar por meio da negação

absoluta do pensamento e da consciência. Um estado, portanto, impossível

de ser experimentado a não ser como exercício intelectual. Justamente

por essa condição, podemos dizer que Alberto Caeiro e Álvaro de Campos

estão, ambos, a falar da mesma coisa: os limites e potencialidades da

linguagem diante da realidade.

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Pense sobre isso: leia os poemas de Caeiro e de Campos buscando

perceber os aspectos que os aproximam, a despeito de apresentarem uma

dicção poética tão diferente.

Álvaro de Campos é o heterônimo pessoano que mais facilmente

associamos ao século da técnica e do movimento. Sua poesia é baseada

num princípio enérgico e nervoso, de onde brota um discurso eloquente

sobre o mundo exterior, do não-eu, mas também um discurso muito

potente sobre identidade; lembremos os primeiros versos de Tabacaria,

já mencionados aqui: Não sou nada/Nunca serei nada/Não posso querer

nada/À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

A partir das leituras propostas aqui e de outras que você com certeza

empreenderá da poesia de Álvaro de Campos, propomos o quadro-síntese

abaixo:

TEMÁTICAS ASPECTOS ESTILÍSTICOS

a) Temática associado ao mundo da técnica, o modernismo do “século”;

b) Trasgressão de uma moral estabelecida;

c) Angústia e dor de “pensar”;

d) Reflexões sobre a função e o estatuto da arte e da poesia;

e) Consciência de um estranhamento existencial e afetivo;

f) Questionamento dos valores éticos e estéticos do seu tempo.

a) Versos livres e, em geral, longos;

b) Uso expressivo e abundante de pontuação: exclamação, interrogação, reticências;

c) Repetições; apóstrofes repetidas;

d) Rimas no interior do verso;

e) Construções nominais e infinitivas.

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2.2. Ricardo Reis

Os jardins do Castelo de Sintra, em Portugal Crédito: Kev Moore / Panoramio

Ricardo Reis é o heterônimo que espelha a formação clássica de

Fernando Pessoa, a sua poesia “pagã” liga-se também à natureza, mas de

forma diferente daquela de Alberto Caeiro, ao menos nas proposições de

linguagem.

A crítica insiste em associar a produção de Ricardo Reis ao

epicurismo e ao estoicismo:

(1914?)

O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as cousas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reação momentânea. Quando reparei em que estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que a ia desenvolvendo. Achei-a bela e calculei interessante se a desenvolvesse segundo princípios que não adoto nem aceito. Ocorreu-me a ideia de a tornar um neoclassicismo “científico” (...) reagir contra duas correntes – tanto contra o romantismo moderno, como contra o neoclassicismo às Maurras. (...) (BERARDINELLI, Cleonice. FERNANDO PESSOA: Obras em Prosa. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1986, p. 139).

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Com base nestas filosofias, Ricardo Reis pregava a máxima:

Abdica

E sê rei de ti próprio.

Cauteloso e resignado, Reis professa um estado de felicidade

relativa, em que a resignação e o culto dos prazeres modestos seriam

a garantia de uma liberdade interior. Tal postura resulta em um estado

existencial de usufruto tranquilo e consciente das coisas acessíveis na

vida, sem demasiado esforço ou risco.

EPICURISMO

Epicurismo é o sistema filosófico ensinado por Epicuro de Samos, filósofo ateniense do século IV a. C., e seguido depois por outros filósofos, chamados epicuristas.Epicuro acreditava que o maior bem era a procura de prazeres modestos de forma a atingir um estado de tranquilidade (ataraxia) e de libertação do medo, assim como a ausência de sofrimento corporal (aponia) através do conhecimento do funcionamento do mundo e da limitação dos desejos. A combinação desses dois estados constituiria a felicidade na sua forma mais elevada. Embora o epicurismo seja uma forma de hedonismo (já que declara o prazer como o único valor intrínseco), a sua concepção da ausência de dor como o maior prazer e a sua apologia da vida simples tornam-no diferente do que vulgarmente se chama “hedonismo”.

(http: / /pt .wikipedia.org/wiki/Epicurismo)

ESTOICISMO

O estoicismo é uma doutrina filosófica fundada por Zenão de Cítio, que afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um Logos divino (noção que os estoicos tomam de Heráclito e desenvolvem). A alma está identificada com este princípio divino, como parte de um todo ao qual pertence. Este logos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graças a ele o mundo é um kosmos (termo que em grego significa “harmonia”).O estoicismo propõe viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em relação a tudo que é externo ao ser. O homem sábio obedece à lei natural reconhecendo-se como uma peça na grande ordem e propósito do universo, devendo assim manter a serenidade perante as tragédias e coisas boas.

(http: / /pt .wikipedia.org/wiki/Estoicismo)

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105UNIDADE 3

Percebe-se nisso, está claro, uma atitude de ponderação que guarda

um ceticismo e uma descrença nas paixões do corpo e do espírito.

A poesia de Ricardo Reis apresenta-se fortemente marcada por um

vocabulário clássico que faz uso de referências do mundo grego e latino.

Do ponto de vista formal, seus versos também apresentam-se de forma

mais regular do que os dos outros heterônimos, quase sempre na forma

de decassílabos.

Quando Fernando Pessoa se refere a Reis na carta a Casais

Monteiro, ele o faz nos seguintes termos: “Ricardo Reis, educado num

colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois

se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por

educação alheia, e um semi-helenista por educação própria” (PESSOA,

1980, p. 231).

Vejamos então, como essas características se traduzem na poesia de

Ricardo Reis:

Vem sentar-se comigo, Lídia, à beira do rio.Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamosQue a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.(Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vidaPassa e não fica, nada deixa e nunca regressa,Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.Mais vale saber passar silenciosamenteE sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outroOuvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as

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No colo, e que o seu perfume suavize o momento –Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-á de mim depoisSem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamosNem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira-rio,Pagã triste e com flores no regaço. (12-06-1914)

Observe que o poema pode ser dividido em 3 (três partes),

organizadas segundo uma lógica discursiva que remete aos princípios

indicados nos comentários iniciais sobre Ricardo Reis:

Primeira parte – (primeira e segunda estrofes) o eu-lírico manifesta o

desejo epicurista de aproveitar o momento presente, sem que qualquer

outra preocupação com passado ou futuro contamine a fruição do aqui-

agora;

Segunda parte – (terceira, quarta e quinta estrofes) – o eu-lírico manifesta

um movimento de desapego e resignação, disposto a renunciar ao gozo do

momento, que é a própria vida, preferindo uma atitude de contemplação

neutra do espetáculo do mundo e do correr do tempo (rio);

Terceira parte – (duas últimas estrofes) – o eu-lírico explica a motivação

da renúncia, ou seja, deixa entender que não gozar a vida ou gozá-la

dá no mesmo, e ao renunciar ao gozo, liberta-se também do sofrimento

que a lembrança do gozo poderia provocar quando o rio alcançar o mar

(figuração da morte).

Para fins didáticos, indicamos abaixo um quadro de características

que poderão servir de roteiro para a sua leitura de outros poemas de

Ricardo Reis:

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TEMÁTICAS ASPECTOS ESTILÍSTICOS

a) Epicurismo: crença na fruição de uma felicidade amena, resultado de uma vida com base na tranquilidade ou indiferença capaz de evitar a perturbação;

b) Estoicismo: culto de uma certa apatia diante de tudo que pode perturbar e causar dor; aceitação das leis da vida e do Destino;

c) A fruição do aqui-agora, o Carpe Diem de Horácio;

d) Racionalização das emoções;

e) Autocontrole e domínio das emoções.

a) Vocabulário e sintaxes clássicas (latinas);

b) Versos metrificados e rimados;

c) Uso de versos sem rima, mas sempre com o uso de elementos de ritmo (aliteração, assonância e rimas interiores);

d) Estilo denso e muito elaborado.

SEÇÃO 3MENSAGEM, DE FERNANDO PESSOASEÇÃO 3MENSAGEM, DE FERNANDO PESSOASEÇÃO 3

Brasão de armas de Portugal, com a coroa monárquica.Crédito: Wikimmedia Commons

O livro Mensagem (1998), de Fernando Pessoa, foi publicado

pela primeira vez em 1934, um ano antes da morte do poeta. Escrito

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por Fernando Pessoa – ele mesmo, o livro é o registro do que o poeta

considerou um único poema dividido em 3 partes, assim intituladas:

1. Brasão – cujos poemas referenciam-se na própria imagem do

Brasão português, quando da conquista do território que mais

tarde será Portugal. Esta primeira parte do poema subdivide-

se, por sua vez, em 5 (cinco) outras partes, cada uma delas

representando uma divisão do brasão: Os campos; Os castelos;

as quinas; a coroa e o timbre.

2. Mar português – cujos poemas referenciam-se, de forma

concentrada, no período da expansão marítima de Portugal.

Nesta parte do livro, o mar confunde-se com a vocação

portuguesa pela viagem.

3. O Encoberto – cujos poemas são a figuração do sebastianismo

como profecia e esperança de Portugal após o período das

conquistas marítimas e início da decadência política e econômica

que alcança o século XX, momento da escrita do livro.

O livro Mensagem é tido, em algumas abordagens críticas, como

um livro de temática nacionalista, no entanto, esse viés é reducionista se

levarmos em conta a complexidade da composição e o aspecto crítico que

o poeta incute ao seu discurso sobre Portugal.

Os poemas que compõem o todo de Mensagem foram escritos em

diferentes fases da vida do poeta, abarcando o período que vai de 1912 –

quando Fernando Pessoa já falava no aparecimento de um supra Camões

– até 1934, ano da publicação do livro.

Pelo tratamento dado à história de Portugal e ao período das grandes

navegações, é impossível não associar o livro Mensagem aos Lusíadas,

de Camões. Além do aspecto histórico envolvido, temos ainda o caráter

de texto épico, expresso na alusão a uma vocação gloriosa que Portugal

manifestou com a expansão marítima e que poderia ainda manifestar em

um futuro pensado pelo poeta.

a) Primeira Parte: O Brasão

Primeiro/Ulisses

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109UNIDADE 3

O mito é o nada que é tudoO mesmo sol que abre os céusÉ um mito brilhante e mudo -O corpo morto de Deus,Vivo e desnudo...............................................Este, que aqui aportou,Foi por não ser existindo.Sem existir nos bastou.Por não ter vindo foi vindoE nos criou...............................................Assim a lenda se escorreA entrar na realidade.E a fecundá-la decorre.Em baixo, a vida, metadeDe nada, morre (PESSOA, 1998, p. 21).

Este poema está na primeira parte do livro Mensagem e faz

referência à questão da origem, da fundação de Portugal. Ulisses é o

herói da Odisseia, de Homero, que, segundo reza a lenda, teria fundado

a cidade de Lisboa.

A origem estaria no mito. Mas o que é o mito?

O mito em Fernando Pessoa é o milagre que torna possível a vida,

metade de nada. Sem nada que o justifique a si mesmo o homem funda-

se no mito. A compreensão do momento em que o mito funda um sentido

para o mundo – na palavra é, portanto, a compreensão da vida mesma.

Para Cassirer, a expressão artística é responsável pelo rompimento

do círculo mágico em que está presa a consciência mítica:

Na perspectiva mágica do mundo, em particular, o encantamento verbal é sempre acompanhado pelo encantamento imagético. Mesmo assim, a imagem só alcança sua função puramente representativa e especificamente estética, quando o círculo mágico ao qual fica presa a consciência mítica é rompido e reconhecido não como uma configuração mítico-mágica, mas como uma forma particular de configuração (1972, p. 115).

No poema, Fernando Pessoa não menciona o mito de forma a narrar

a história do navegador Ulisses, mas faz algo que poderíamos chamar de

“reflexão” sobre o funcionamento do mito. Para que o leitor compreenda

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que o poema tem também a função de filiar os portugueses à estirpe do

grande navegador Ulisses, é preciso que se conheça a lenda de que Ulisses

é o fundador da cidade de Lisboa e, portanto, o fundador de Portugal, pai

de todos os portugueses.

Todos os demais poemas desta primeira parte do livro fazem

referência a diferentes personagens da história de Portugal sem, contudo,

narrar a vida ou os eventos de que essas personagens teriam participado.

É como se o poeta contasse com o conhecimento histórico do leitor e

usasse cada um dos poemas para apresentar um ponto de vista lírico-

político da personagem histórica em questão.

Veja o caso do poema que menciona no título o rei D. Sebastião,

também da primeira parte Brasão:

QUINTA – D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL (20-02-1933)

Louco, sim, louco, porque quis grandezaQual a sorte a não dá.Não coube em mim minha certeza;Por isso onde o areal estáFicou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomemCom o que nela ia.Sem a loucura o que é o homemMais que a besta sadia,Cadáver adiado que procria?

Dom SebastiãoCrédito: Wikimmedia Commons

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Veja que Fernando Pessoa omite qualquer referência biográfica ao

rei D. Sebastião, que ainda aparecerá em outros poemas das duas outras

partes do livro Mensagem.

O poema que alude a Dom Sebastião nesta primeira parte é, na

verdade, uma reflexão sobre a loucura, e o posicionamento do eu-lírico é

claramente favorável à loucura. Conhecendo a biografia de D. Sebastião

e os fatos que foram a sua ruína, o leitor saberá que, de fato, sua vida foi

marcada pela “loucura”. Loucura como marca do desejo, da paixão e da

Décimo sexto rei de Portugal, filho do príncipe D. João e de D. Joana de Áustria, nasceu em Lisboa a 20 de janeiro de

Décimo sexto rei de Portugal, filho do príncipe D. João e de D. Joana de Áustria, nasceu em Lisboa a 20 de janeiro de

Décimo sexto rei de Portugal, filho do príncipe D. João e de

1554, e morreu em Alcácer Quibir, a 4 de agosto de 1578. Sucedeu a seu avô D. João III sendo o seu nascimento

esperado com ansiedade, enchendo de júbilo o povo, pois a coroa corria o perigo de vir a ser herdada por outro neto

de D. João III, o príncipe D. Carlos, filho de Filipe II de Espanha.

De saúde precária, D. Sebastião mostrou desde muito cedo duas grandes paixões: a guerra e o zelo religioso. Cresceu na convicção de que Deus o criara para grandes feitos, e,

educado entre dois partidos palacianos de interesses opostos - o de sua avó que pendia para a Espanha, e o do seu tio-

avô o cardeal D. Henrique favorável a uma orientação nacional -, D. Sebastião, desde a sua maioridade, afastou-se abertamente dum e doutro, aderindo ao partido dos validos, homens da sua idade, temerários a exaltados, que estavam

sempre prontos a seguir as suas determinações.

Nunca ouviu conselhos de ninguém, e entregue ao sonho anacrónico de sujeitar a si toda a Berbéria e trazer à sua

soberania a veneranda Palestina, nunca se interessou pelo povo, nunca reuniu cortes nem visitou o País, só pensando

em recrutar um exército e armá-lo, pedindo auxílio a Estados estrangeiros, contraindo empréstimos a arruinando os cofres do reino, tendo o único fito de ir a África combater Estados estrangeiros, contraindo empréstimos a arruinando os cofres do reino, tendo o único fito de ir a África combater Estados estrangeiros, contraindo empréstimos a arruinando

os mouros.

Chefe de um numeroso exército, na sua maioria aventureiros e miseráveis, parte para a África em junho de

1578; chega perto de Alcácer Quibir a 3 de agosto e a 4, o exército português esfomeado e estafado pela marcha e

pelo calor, e dirigido por um rei incapaz, foi completamente destroçado, figurando o próprio rei entre os mortos.

Disponível em http://www.arqnet.pt/portal/portugal/temashistoria/sebastiao.html(consultado em 17 de novembro

de 2010, às 20h20min);

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ambição.

Nos poemas sobre D. Sebastião que aparecerão nas outras partes de

Mensagem você perceberá que a “loucura” de D. Sebastião contaminou

o povo português dando origem ao “sebastianismo”.

Esses poemas serão disponibilizados nas orientações online da

disciplina de Literatura Portuguesa II para que você possa exercitar a

leitura do poema e fazer as relações entre as três partes do livro.

1 – Selecione – dentro da bibliografia proposta neste livro - um poema de cada um dos heterônimos estudados nesta unidade – Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis – e compare as estratégias de linguagem e as temáticas presentes nos poemas selecionados.

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114PALAVRAS FINAIS

PALAVRAS FINAIS

Com este livro demos continuidade aos seus estudos da literatura

portuguesa. Lembre-se de que sua formação no Curso de Letras o habilita

a trabalhar de modo especializado com o texto literário, seja em sala de

aula, seja como teórico e crítico literário, emitindo análises e avaliações

formais disso que chamamos literatura.

Acreditamos que os estudos deste livro aprofundaram a percepção

de cada um de vocês em relação ao universo cultural português e também

demonstraram as múltiplas abordagens possíveis para três importantes

autores da literatura em língua portuguesa.

Encaramos a literatura como um fenômeno artístico, com

implicações históricas, sociais e existenciais. Nesse sentido podemos

pensar a literatura como um acontecimento, tanto quando é produzida,

como quando é consumida pelo leitor.

O trabalho desta disciplina centrou-se, em especial, na abordagem

específica de três grandes autores da poesia portuguesa, é claro que você

não precisa limitar-se apenas às obras estudadas aqui, há muita coisa a

ser conhecida; além da literatura produzida em Portugal, temos grandes

autores escrevendo em língua portuguesa em outros países: isso sem

falar no Brasil, cuja literatura é também seu foco de estudo na disciplina

de Literatura Brasileira. Temos vários escritores importantes escrevendo

em português na África. Mia Couto, por exemplo, é um escritor

moçambicano que produz obras muito importantes para a literatura em

língua portuguesa, Luandino Vieira é outro escritor africano, de Angola,

com várias obras publicadas no Brasil. Outro bastante conhecido no Brasil

é José Eduardo Agualusa, também de Angola.

A literatura vai acompanhá-lo ao longo de todo o Curso de Letras

e temos certeza de que as análises e discussões apresentadas aqui serão

muito úteis para a continuidade dos seus estudos de literatura.

As autoras deste livro colocam-se à sua disposição para quaisquer

comentários, dúvidas, sugestões ou simplesmente para um bate-papo.

Fique à vontade para entrar em contato conosco.

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115PALAVRAS FINAIS

Muito obrigada!

Jefferson Luiz Franco

Email: [email protected]

Rosana Apolonia Harmuch

Email: [email protected]

Silvana Oliveira

Email: [email protected]

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116REFERÊNCIAS

REFERÊNCIAS

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BAUDELAIRE, Charles. As flores das flores do mal. Tradução de Guilherme de Almeida. Rio de Janeiro: Ediouro.

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução: Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.

BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Organizador: Teixeira Coelho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura)

BAUDELAIRE, Charles. Um comedor de ópio. Tradução: Annie Paulette Marie Cambe. Rio de Janeiro: Newton Compton Brasil, 1996.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução: Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.

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____________________. (org.). FERNANDO PESSOA: Obras em Prosa – Volume Único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986.

_________________ (org.). FERNANDO PESSOA: Obra Poética – Volume Único. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986.

BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução: Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

BRÉCHON, Robert. Fernando Pessoa – estranho estrangeiro. Trad. Maria Abreu e Pedro Tamen. Rio de Janeiro: Record, 1999.

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CIDADE, Hernani. Tendências do lirismo contemporâneo. Lisboa: Portugália, 1939.

CIRURGIÃO, António. O “Olhar Esfíngico” da Mensagem de Fernando Pessoa.

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GAMA, Rinaldo. O guardador de signos – Caeiro em Pessoa. São Paulo: Perspectiva / Instituto Moreira Salles, 1995.

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AUTORES

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NOTA SOBRE OS AUTORES

jeffeRsOn LUiZ fRanCOGraduado em Letras pela Universidade Federal do Paraná, é

professor titular de Língua Portuguesa da Universidade do Brasil –

Unibrasil, há 5 (cinco) anos e professor concursado da Rede Estadual de

Ensino do Paraná.

ROsana aPOLOnia HaRmUCHGraduada em Letras pela Unicentro – Campus de Guarapuava, com

Doutorado em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná –

UFPR - e professora adjunta do Departamento de Letras Vernáculas da

Universidade Estadual de Ponta Grossa.

siLvana OLiveiRaGraduada em Letras pela UEPG, com Doutorado em Teoria Literária

pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP - e professora

adjunta do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Estadual

de Ponta Grossa.