literatura portuguesa

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1 Prof. Ismael Dantas www.dantas.pro.br [11] 8517-1911 prof.ismael.dantas@gmail.com twitter. com/profismael Gil Vicente O Teatro Popular......................................................................................................... 02 Gil Vicente................................................................................................................. 02 Julgamento Crítico.................................................................................................... 03 Resumo sucinto da obra Vicentina:........................................................................ 05 Farsa de Inês Pereira ................................................................................................. 05 Auto da Índia .............................................................................................................. 18 Auto da Alma .............................................................................................................. 25 Auto da Barca do Inferno ............................................................................................ 35 Auto da Feira .............................................................................................................. 43 Farsa do Velho da Horta...............................................................................................53 Auto da Lusitânia ....................................................................................................... 60 Auto de Mofina Mendes ..............................................................................................65 Romagem de Agravados ........................................................................................... 67 O Juiz da Beira.............................................................................................................70 Quem tem Farelos?.....................................................................................................73 Textos Complementares acerca do Teatro Vicentino:............................................76 Teatro pré-vicentino.....................................................................................................76 A vida de Gil Vicente .................................................................................................. 77 Gil Vicente, a Idade Média e o Renascimento........................................................... 79 Crítica Social ............................................................................................................ 80 Trilogia das Barcas ..................................................................................................... 84 A Sátira Social em Gil Vicente.................................................................................... 87 Características da obra vicentina................................................................................ 89 Gil Vicente, um dos escritores mais notáveis do Quinhentismo Português............... 90 O Teatro ..................................................................................................................... 91 Atividades................................................................................................................... 95. Fonte de Consulta ...................................................................................................100

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Prof. Ismael Dantas www.dantas.pro.br [11] 8517-1911 [email protected]

twitter. com/profismael

Gil Vicente

O Teatro Popular......................................................................................................... 02 Gil Vicente................................................................................................................. 02 Julgamento Crítico.................................................................................................... 03 Resumo sucinto da obra Vicentina:........................................................................ 05 Farsa de Inês Pereira ................................................................................................. 05 Auto da Índia .............................................................................................................. 18 Auto da Alma .............................................................................................................. 25 Auto da Barca do Inferno ............................................................................................ 35 Auto da Feira .............................................................................................................. 43 Farsa do Velho da Horta...............................................................................................53 Auto da Lusitânia ....................................................................................................... 60 Auto de Mofina Mendes ..............................................................................................65 Romagem de Agravados ........................................................................................... 67 O Juiz da Beira.............................................................................................................70 Quem tem Farelos?.....................................................................................................73 Textos Complementares acerca do Teatro Vicentino:............................................76 Teatro pré-vicentino.....................................................................................................76 A vida de Gil Vicente .................................................................................................. 77 Gil Vicente, a Idade Média e o Renascimento........................................................... 79 Crítica Social ............................................................................................................ 80 Trilogia das Barcas ..................................................................................................... 84 A Sátira Social em Gil Vicente.................................................................................... 87 Características da obra vicentina................................................................................ 89 Gil Vicente, um dos escritores mais notáveis do Quinhentismo Português............... 90 O Teatro ..................................................................................................................... 91 Atividades................................................................................................................... 95. Fonte de Consulta ...................................................................................................100

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O Teatro Popular

“Teatro Popular - Durante a Idade Média, a atividade teatral em Portugal se resumiu aos momos, arremedilhos e entremezes, breves representações de caráter religioso, satírico ou burlesco. Teatro de índole popular, caracterizava-se por uma linguagem, temas e forma de encenação acessíveis ao povo, e às vezes com a sua direta participação. Na origem, constituía o teatro profano, oposto aos mistérios e milagres, manifestações do teatro religioso então predominante”. (Massaud Moisés, in «Literatura Portuguesa através dos textos»).

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Gil Vicente

Dramaturgo português que viveu pelos fins do século XV (Guimarães -1465? / Lisboa? – 1536). É considerado criador do Teatro Português pela apresentação, em 1502, com o «Monólogo do Vaqueiro» (também conhecido como «Auto da Visitação»). A obra teatral de Gil Vicente faz parte da primitiva dramaturgia península, ao lado do espanhol Juan Del Encina. Parte considerável de sua obra está escrita em língua castelhana, a começar por sua primeira obra, o «Monólogo do Vaqueiro» (1502). Gil Vicente é considero pela crítica literária a maior figura da literatura renascentista portuguesa antes de Luís Vaz de Camões. Há dois aspectos na sátira de Gil Vicente: divertir o público e redimir o ser humano, conforme o lema da comédia antiga: ridendo castigat mores (rindo, corrige os costumes). Alguns dos seus versos valem apenas como aforismo. Confira: “Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube”. (Harold Ramanzini, in «Literatura Gramática e Criatividade») Posted by Dantas

Quanto às modalidades do teatro vicentino:

- Moralidades: Monólogo do Vaqueiro (ou Auto da Visitação), Auto do Pastoril Castelhano, Auto dos Reis Magos, Auto da Fé, Auto da Mofina Mendes, a Trilogia das Barcas (Auto da Barca do Inferno, Auto da Barca do Purgatório, Auto da Barca da Glória), Auto da Alma, Auto da Feira entre outras. - Farsas: Auto da Índia, O Velho da Horta, Quem tem farelos?, Farsa de Inês Pereira, O Juiz da Beira, Farsa dos Almocreves, Romagem dos Agravados entre outras. - Comédias: Comédia de Rubena, Comédia do Viúvo, Floresta de Engano, Amadis de Gaula, Auto da Lusitânia (tragicomédia) entre outras.

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Julgamento Crítico De José Maria D’Andrade Ferreira (Gil Vicente - Nossos Clássicos, vol. 105):

“Gil Vicente, reagindo contra a pressão clássica, funda o teatro nacional, em que o espírito da sátira zomba dos dois grandes poderes do tempo, da fidalguia e do clero, diante do próprio rei e de sua corte. (...) O seu teatro, como expressão literária, é o espelho daqueles tempos, e os reinados de Dom Manuel e Dom João III, refletem-se cheios de vida mais genuinamente em todas as suas cenas do que nas crônicas de Garcia de Resende. A originalidade, que os infamadores coevos tentaram negar-lhe, o mais poderoso dote do seu talento. (...) Os chistes de que ele apimenta as falas de seus personagens, a intenção moral que ele põe nas suas criações, são resultados fecundos de seus dotes criadores.”

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De Carolina Michaёlis de Vasconcelos (Gil Vicente - Nossos Clássicos, vol. 105):

“Já enunciei, diversas vezes, a tese que Gil Vicente, otimamente dotado pela natureza, ávido de aprender, apto a configurar, lendo o que antes e depois de 1502 lhe era acessível, e tirando a cada leitura elementos para a sua educação espiritual, se compenetrara, necessariamente, na infância e na mocidade, de ideias medievais, adotando uma concepção escolástica – de filosofia teologante ou teologia filosofante. Colocado nos umbrais do tempo moderno podia ser influído todavia na idade viril pelas correntes caudalosas das ideações do Renascimento.”

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De Fidelino Figueiredo (Gil Vicente - Nossos Clássicos, vol. 105):

“... enquanto o teatro clássico ia caminhado para a concentração dos seus efeitos emotivos pela pratica rigorosa da disciplina das unidades de ação, de tempo e de lugar, de limitação do número de personagens, de eliminação de todos os elementos antidramáticos e de unificação ou homogeneidade do seu tom – o auto de Gil Vicente caminhava para ampliação dos seus temas, para o aumento da população do palco, para uma duração cada vez maior da ação, não da representação, e para a mais audaciosa justaposição dos lugares.”

................................................................................................ De Hernani Cidade (Gil Vicente - Nossos Clássicos, vol. 105):

“O que a sua obra patenteia é que era homem de bem extraordinários talentos, altos e vários. Ao que se depreende das cartas de D. Manuel que lhe dizem respeito, era ele a um tempo cenógrafo e músico, dramaturgo e poeta-poeta, sobretudo. (...) Interessa em Gil Vicente o artista que soube surpreender todo o pinturesco do espetáculo da vida; o psicólogo atento à intimidade das almas; o poeta capaz de profundamente sentir e sugestivamente comunicar os sentimentos e as ideias de mais íntima e funda ressonância: o homem, finalmente, no mais compreensivo sentido da palavra, em simpatia comunhão com os seus contemporâneos, cujas aspirações, entusiasmos, ideias encontram na sua obra, não apenas o eco nítido, senão também a lúcida consciência diretiva.” De I.S. Révah (Gil Vicente - Nossos Clássicos, vol. 105):

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“A obra vicentina não é só uma esplendida realização literária; palpita nela de modo espantosamente vivo a sociedade portuguesa do primeiro terço do século XVI, com as suas classes, os seus vícios, os seus impulsos intelectuais e religiosos.”

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De S. Spina (Presença da Literatura Portuguesa – Era Medieval): “A sua autonomia intelectual, a ortodoxia das suas ideias religiosas e a coragem expressa no seu teatro de crítica social, explicam o parentesco do seu ideário com o pensamento reformista do tempo; explicam, também o prestígio de que gozou na corte, onde a proteção da Rainha Velha D. Leonor, viúva de D. João II, e logo a seguir a do próprio rei D. João III, mantiveram o esplendor do teatro vicentino durante 34 anos.”

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.............................................................................................. De António José Saraiva (História da Cultura em Portugal vol. II Gil Vicente - Reflexão da Crise): “Gil Vicente não faz mais do que glosar o «Bem-aventurados» os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus» do Sermão da Montanha. Mas esta frase evangélica, repelida mecanicamente por outros, parece ter nele um conteúdo substancial. Ora esta utopia dos simples e ignorantes, que imaginam o Céu como uma serra farta de gado, que não sabem rezar, que desejam aos anjos, como recompensa, um bom casamento, em talvez algum significado. Pelo menos acentua o caráter negativo da ideologia vicentina na medida em que se opõe a um mundo real de mercadores, senhores feudais e pregadores eruditos. Aqueles que nada têm, nem terra, nem sabedoria, nem arte de viver, são os perfeitos, estão à porta do paraíso e deles é o reino dos céus. Uma espécie de idade de ouro é sonhada por Gil Vicente no mundo pastoril”.

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De António José Saraiva (Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval): “Gil Vicente não pode ser considerado independentemente, como um autor sem antecedentes, um fenómeno miraculoso. Considera-o também um inovador que transformou os antigos momos do Paço em comédias e tragicomédias”.

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............................................................................................ ______ NOTAS: coevo [é] – coetâneo. (Coetâneo – que vive ou viveu na mesma época.) chiste – dito gracioso; pilhéria. ávido - que deseja com ânsia, com ardor. ideação – ato ou efeito de idear; formação de ideias; idealização. escolástico – escolar; modesto; despretensioso; relativo à escolástica; diz-se do método das escolas medievais.

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Resumo sucinto da obra vicentina

Farsa de Inês Pereira

A Farsa de Inês Pereira é o desenvolvimento

dramático do provérbio “mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube”. Gil Vicente desenvolveu este dito popular que lhe foi dado por alguns fidalgos que desconfiavam da sua honestidade literária. O mote foi muito bem trabalhado, provando assim Mestre Gil que a calúnia não tinha razão de ser. Trata-se de uma história com princípio, meio e fim, à maneira da Farsa da Índia ou do Velho da Horta. É uma sátira social, cuja ação dramática expõe uma história satírica. Foi o primeiro provérbio glosado em teatro.

Em Gil Vicente a estrutura da “farsa” pode ser feita de quatro maneiras: poderá constituir um episódio arrancado à vida real, como acontece na farsa Quem tem Farelos? ; pode ainda ser uma série de episódios sem ligação, como o Clérigo da Beira; ainda uma série de episódios ligados a uma personagem principal como no Juiz da Beira, onde intervém o mesmo Pero Marques, feito juiz, mas sem a noção dos processos jurídicos que defende. Teremos, finalmente, uma ação dramática completamente desenvolvida. Esta última estrutura é a que corresponde à Farsa de Inês Pereira. Todas as cenas se desenrolam num contexto lógico.

Após uma introdução realizada por Inês que canta e põe de parte o trabalho que estava fazendo, enquanto a mãe foi à missa, esta se zanga. Ter uma filha preguiçosa não agrada a ninguém, muito pior quando ela só pensa em maridos e casamentos! Chega uma alcoviteira – Lianor Vaz – que traz à jovem uma proposta de casamento de um certo Pero Marques, rico, mas estúpido e boçal. Inês não o quer. Ela sonha com um bom “tangedor de viola” e que seja bem falante. Ele irá aparecer trazido pelos Judeus casamenteiros – Latão e Vidal – e esta Inês, fantasiosa e sonhadora logo se sente atraída pelo escudeiro, aceitando casar com ele. O pior virá a seguir! Ele é cruel, egoísta e autoritário. A vida de casada é um perfeito inferno. Felizmente que ele morre em Arzila. É a libertação do cativeiro da pobre moça que nunca imaginou ser tão infeliz. Lianos Vaz aparece de novo. Volta a falar-lhe no casamento com Pero Marques, agora que ele ainda está muito mais rico. A experiência da vida conjugal foi para ela uma lição. Agora, aceitará o moço estúpido que lhe proporcionará uma existência de liberdade. O amor não interessa. Ela já não tem ilusões! E a farsa irá terminar pela ida de ambos, já casados, à feira, onde Inês se encontrará com um antigo namorado, um falso Ermitão. Traído pela mulher na sua fidelidade conjugal ele, o “asno”, de nada se apercebe. Assim Inês arranja um marido que a “leva” e se livra do “cavalo” que a derrubara.

A Farsa de Inês Pereira é, pois, uma comédia de caráter e de costumes da vida doméstica, com “tipos” bem definidos. Trata-se, igualmente, de um ótimo documento para o conhecimento de ditados populares e cantigas, o que prova o interesse de Gil Vicente pela poesia tradicional. (Maria Amélia Ortiz da Fonseca, in Gil Vicente Farsa de Inês Pereira).

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A passagem que se vai ler corresponde ao delicioso diálogo em que Pero Marque vem pedir a má de Inês em casamento.

Chega Pero Marques aonde elas estão, e diz: Digo que esteis muito embora. Folguei ora de vir cá... Eu vos escrevi de lá a cartinha, senhora... Assim ...que de maneira... Mãe Tomai aquela cadeira. Pêro E que val aqui uma destas? (31) Inês (Ó Jesus! Que Jão das Bestas! Olhai aquela canseira!) Assentou-se com as costas para elas, e diz: Eu cuido que não estou bem... Mãe Como vos chamais, amigo? Pero Eu Pero Marques me digo, como meu pai, que Deus tem. Faleceu, perdoe-lhe Deus! que fora bem escusado, E ficamos dous eréus. (32) Porém, meu é o morgado. (33) Mãe De morgado é vosso estado? Isso viria dos céus. Pero Mais gado tenho eu já quanto, e o mor de todo o gado, digo maior algum tanto. E desejo ser casado, prouguesesse ao Espírito Santos!, com Inês, que eu me espanto quem me fez seu namorado. Parece moça de bem, E eu de bem, er também. Ora vós ide lá vendo se lhe vem melhor ninguém, a segundo o que eu entendo. Cuido que lhe trago aqui peras da minha pereira... hão-de estar na derradeira. (34) Tende ora, Inês, por i. (35) Inês E isso hei-de ter na mão? Pero Deitai as peias no chão. (36)

Inês As perlas para enfiar.. três chocalhos e um novelo... e as peias no capelo... (37)

E as peras? onde estão?

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Pero Nunca tal me aconteceu... Algum rapaz mas comeu, que as meti no capelo, eficou aqui o novelo, e o pente não se perdeu. Pois trazia-as de boa mente... Inês Fresco vinha o presente, com folhinhas borrifadas! Pero Não, que elas vinham chentadas (38)

cá em fundo, no mais quente. Vossa mãe foi-se? Ora bem! Sós nosdeixou ela assi, Cant'eu quero-me ir daqui, (39)

não diga algum demo alguém... Inês E Vós que, me havíeis de fazer? Nem ninguém que há-de dizer? (O galante despejado!) Pero Se eu fora já casado, doutra arte havia de ser... como homem de bom recado. (40)

Inês (Quão desviado este está! Todos andam por caçar suas damas sem casar e este... tomade-o lá!). Pero Vossa mãe é lá no muro? Inês Minha mãe eu vos seguro que ela venha cá dormir. Pero Pois, senhora, eu quero-me ir, antes que venha o escuro. Virá cá Lianor Vaz, veremos que lhe dizeis... Inês Homem, não aporfieis, que não quero, nem me apraz. Ide casar a Cascais! Pero Não vos anojarei mais, ainda que saiba estalar; (41)

e prometo não casar até que vós não queirais.

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(Estas vos são elas a vós! (42)

Anda homem a gastar calçado, e quando cuida que é aviado, escarnefucham de vós!) (43)

Não sei se fica lá a peia... Pardeus! Bom ia ia eu à aldeia! Senhora, cá fica o fato... Inês Olhai se o levou o gato... Pero Inda não tendes candeia! Ponho por cajo que alguém (44)

vem como eu vim agora, e vos acha só a tal hora. Parece-vos que será bem? Ficai-vos ora com Deus, çarrai a porta sobre vós, (45)

com vossa candeazinha... E sicais sereis vós minha: (46)

entonces veremos nós...

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Personagens Caracterização

Tipos Linguagem Comportamento

Inês

Monologada, irônica, crítica, revoltada.

Preguiçosa, leviana, alegre namoradeira, vaidosa, infiel vingativa, sabida, fingida, teimosa.

Pero Marques

Monologada, tímida, afetiva, obsequiosa.

Ignorante, submisso, rude, discreto, respeitador, honesto, leal, generosos, ingênuo, trabalhador.

Mãe

Rude, proverbial, familiar, vulgar.

Conselheira, amiga, sincera, ajuizada.

Lianor Vaz

Familiar, descontrolada, epítetos.

Conselheira, amiga, cômica, ajuizada.

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Personagens Caracterização

Tipos Linguagem Comportamento

Escudeiro

Monologada, galante, irônica, epítetos.

Mentirosos, desleal, preguiçoso, ambicioso, vaidoso, cauteloso, gabarola, gracejador.

Latão e Vidal

Atabalhoada, trocadilhos, convincente, desconexa, exclamativa, interrogativa.

Interesseiros, mentirosos, casamenteiros, fingidos, artificiosos.

Moço do Escudeiro

Refilona, revoltada.

Pobre, serviçal, leal.

Ermitão

Ambígua, castelhana, galante, persuasiva.

Persistente, adulador, falso, mentiroso, infeliz, parasita.

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A Sátira Social na Farsa de Inês Pereira

Na Farsa de Inês Pereira as personagens constituem «tipos» vicentinos. O papel da mulher no século XVI aí está representado em Inês, a Mãe e Lianor Vaz. A sátira social está presente, com maior ou menor intensidade, consoante a intriga a requer. Analisemos, em primeiro lugar, o desempenho de Inês. É uma rapariga solteira, com grande pesar seu. Antes tivesse «filhos de três em três» pois não estaria tão sozinha. Ela pretende casar-se com alguém que pertença a um nível social superior ao seu. É natural que levando a vida que levava, sempre fechada em casa (nem sequer ia à missa!), sem poder ir à janela e sempre obrigada às lides caseiras desejasse emancipar-se. A autoridade e os conselhos da Mãe enfastiam-na. «Lavrar» não é com ela! Embora quisesse casar-se depressa, em boa verdade pretendia escolher marido do seu agrado. Não era ambiciosa em matéria de riquezas. Um homem rico não lhe interessava. Queria-o instruído, elegante, educado, bem falante, que a fizesse sentir-se orgulhosa da escolha que fizera. A sua presunção é muito! O pobre Pêro Marques não lhe serve, campônio como é, tão deselegante, tão boçal. Ele é um «simplório» e isso não agrada à moça, que se sente muito superior a ele. Seria mal empregada em tal marido! Pêro Marques simboliza o homem do campo, o lavrador honrado e bem intencionado, em oposição ao Escudeiro que é, ou parece ser, ligado à corte. Este problema do antagonismo entre o camponês e o homem cortesão, dois tipos tão antitéticos, irá ser bem desenvolvido por Sá de Miranda. A corte simbolizava luxo e devassidão Temos, assim, a sátira social na pessoa de Inês. Falemos, agora, do clérigo. A história que Lianor Vaz conta parece ser inventada pelo menos, a Mãe de Inês não acredita nela. Um tal clérigo queria abusar dela e, uma vez mais, Gil Vicente ataca a classe eclesiástica. Lianor conta a sua «história» com todos os pormenores. Ele agarrou-a e rasgou-lhe o «cabeção da camisa», tal a fúria que dele se apossara. Ela bem quis gritar mas estava rouca, «com tosse e catarro» e as palavras não lhe saíam da garganta. O clérigo pretendia saber se ela era «macho ou fêmea». É evidente que nada conseguiu porque Lianor fugiu salva por um tal Vasco de Fois, que era alferes-mor da Ordem de Cristo, em Tomar, onde a farsa foi representada. Está, assim, posto a nu o carácter dos clérigos, dos falsos religiosos, cuja vida se não coadunava com a missão religiosa a que haviam devotado. Quanto ao Escudeiro, outro «tipo» vicentino, ele é muito frequente na obra de Mestre Gil. Dando-se ares de grande personalidade, sabendo, como ele próprio diz, «ler e escrever», «tanger viola», e cantar, não passa de um «rascão», isto é, um vadio e um vagabundo que vai vivendo de expedientes e pretende uma mulher de posses e que seja «donzela». Claro que Inês só tinha a seu favor a beleza, a garridice e a frescura juvenil. Quando o »Moço» se queixa deter os sapatos rotos, de dormir no chão «com o tecto por manta» e de não ter que comer, ele tudo lhe promete para depois de casado. Parece-nos que o dinheiro teria de vir de Inês! Fanfarrão e covarde irá mostrar-se tal como é ao morrer às mãos de «um pastor mouro» quando ia a fugir de uma batalha, enclausurada tivesse exclamado: «oh que nova tão suave»!

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Lianor Vaz não chega a ser o «tipo» perfeito das alcoviteiras. Ela não pretende lucros ao arranjar o casamento para Inês. Fá-lo por amizade. Bem diferente é das verdadeiras «alcoviteiras» de Gil Vicente-Brizida Vaz, por exemplo, ou Ana Dias e Branca Gil. Estas mulheres gozavam de grande prestigio na sociedade do tempo. Em oposição a Lianor Vaz temos os «Judeus casamenteiros» que operam por interesse. Eram igualmente bem conceituados e emprestavam dinheiro a juros. São, pois, estes, os breves apontamentos que colhemos quanto à sátira social na Farsa de Inês Pereira. (Maria Amália Ortiz da Fonseca, in «Gil Vicente Farsa de Inês Pereira»).

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............................................................................................ ______ NOTAS: lide – lida; canseira; combate. campónio – camponês. [Campônio – port. Do Brasil] boçal – estúpido,ignorante, rude, grosseiro. cortesão – homem que freqüenta a corte. Home de maneiras distintas e amáveis.

sevassidão - qualidade ou conduta de devasso; libertinagem. Desregramento de costumes.

clérigo – pessoa que recebeu ordens sacras.

camisa – peça de vestuário feminino para dormir. [Camisola - Brasil] alferes [é] – antigo posto do exercito brasileiro correspondente ao atual segundo–tenente. coadunar - conformar(-se), combinar-(se), harmonizar-se). tanger - tocar (instrumento musical). Tocar (gado). garridice – qualidade do que garrido; elegância. roto [ô] - que se rompeu; feito em pedaços; quebrado. algoz [ó ou ô] – carrasco. Pessoa cruel, desumana.

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ESTUDO DO TEXTO «Farsa de Inês Pereira» (Leia a peça na integra)

01) Provão - 2002 Como é seca a velhice! Leixai-me ouvir e folgar, que não me hei-de contentar de casar com parvoíce.

A protagonista de Inês Pereira profere as palavras acima pa-ra justificar à mãe a decisão de não se casar com Pero Marques. Nas cenas finais, já viúva do escudeiro autoritário com quem escolhera casar, a personagem decide aceitar o antigo pretendente, que lhe parece talhado para ser marido traído. Com essa trajetória da personagem, Gil Vicente comprova a máxima popular que é tomada como mote de seu texto: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube.

As considerações acima, associadas ao contexto da obra, permitem a afirmação correta de que o autor

(A) produziu a reviravolta no enredo da farsa humanística como manobra para garantir a dignidade da heroína,representante dos valores sociais que emergiam.

(B) fez a protagonista viver a tragédia da inocência, e sua humilhação final mostra a impossibilidade da preservação do pretendido registro idealista.

(C) escolheu o gênero que lhe permitisse tratar o amor e a estrutura social como forças fatalisticamente irreconciliáveis, impondo o banimento da heroína do grupo social a que pertence.

(D)) se preocupou, como é usual no gênero escolhido, em mostrar que a heroína se ajustou a uma nova situação e à sociedade como um todo, recurso que permitiu a Gil Vicente evidenciar a hipocrisia de seu tempo.

(E) deu à farsa o tratamento típico da tragédia – a heroína ao vencer uma série de provas desafia o destino – recurso escolhido para criticar, pelo riso, costumes de seu tempo. 02) Leia as três afirmações abaixo a respeito da Farsa de Inês Pereira. I – Pode ser colocada como representante do teatro de costumes vicentino. II – Encaixa-se na tradição da farsa medieval sobre o adultério feminino desenvolvida por Gil Vicente. III – Inês Pereira é uma moça que vive na vila e pretende subir de condição. a) Todas estão corretas. b) Todas estão incorretas. c) Apenas a I e a II estão corretas. d) Apenas a I e a III estão corretas. e) Apenas a II e a III estão corretas.

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03) “Inês canta dois versos em castelhano. Levanta-se da cadeira onde costurava. Finge estar trabalhando e inicia o seu monólogo. Queixa-se da vida que leva, sempre fechada em casa e obrigada a realizar as lides caseiras. Como poderá ela viver toda a vida desse modo? Não é nenhum macaco nem coruja para estar sempre encerrada «como panela sem asa/que está num lugar». Se a vida são dois dias para que há-de ela conformar-se? Como as outras moças também ela quer rir, folgar e sair quando lhe apetecer. Pretende estar à janela para se distrair.” Comente acerca da importância da introdução do texto?

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................................................................................................ 04)Aponte a dicotomia entre Lianor Vaz e os Judeus casamenteiros

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................................................................................................ 05)Estabeleça a antítese entre Inês e a Mãe.

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06)Caracterize as atitudes de Inês ao longo de toda a Farsa.

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............................................................................................... 07)O diálogo final entre marido e mulher é bastante elucidativo. Como Gil Vicente retrata esse diálogo?

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09)Para responder à questão, leia os versos seguintes, da famosa Farsa de Inês Pereira, escrita por Gil Vicente: Andar! Pero Marques seja! Quero tomar por esposo quem se tenha por ditoso de cada vez que me veja. Meu desejo eu retempero: asno que me leve quero, não cavalo valentão: antes lebre que leão, antes lavrador que Nero. Sobre a Farsa de Inês Pereira, é correto afirmar que é um texto de natureza: (A) satírica, pertencente ao Humanismo português, em que se ridiculariza a ascensão social de Inês Pereira por meio de um casamento de conveniências.

(B) didático-moralizante, do Barroco português, no qual as contradições humanas entre a vida terrena e a espiritual são apresentadas a partir dos casamentos complicados de Inês Pereira.

(C) religiosa, pertencente ao Renascimento português, no qual se delineia o papel moralizante, com vistas à transformação do homem, a partir das situações embaraçosas vividas por Inês Pereira.

(D) reformadora, do Renascimento português, com forte apelo religioso, pois se apresenta a religião como forma de orientar e salvar as pessoas pecadoras.

(E) cômica, pertencente ao Humanismo português, no qual Gil Vicente, de forma sutil e irônica, critica a sociedade mercantil emergente, que prioriza os valores essencialmente materialistas. 10)O argumento da peça A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, consiste na demonstração do refrão popular “Mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”. Identifique a alternativa que não corresponde ao provérbio, na construção da farsa: (A) A segunda parte do provérbio ilustra a experiência desastrosa do primeiro casamento.

(B) O escudeiro Brás da Mata corresponde ao cavalo, animal nobre, que a derruba.

(C) O segundo casamento exemplifica o primeiro termo, asno que a carrega.

(D) O asno corresponde a Pero Marques, primeiro pretendente e segundo marido de Inês.

(E) Cavalo e asno identificam a mesma personagem em diferentes momentos de sua vida conjugal.

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11)Em Farsa de Inês Pereira (1523), Gil Vicente apresenta uma donzela casadoura que se lamenta das canseiras do trabalho doméstico e imagina casar-se com um homem discreto e elegante. O trecho a seguir é a fala de Latão, um dos judeus que foi em busca do marido ideal para Inês, dirigindo-se a ela: "Foi a coisa de maneira, tal friúra e tal canseira, que trago as tripas maçadas; assim me fadem boas fadas que me soltou caganeira... para vossa mercê ver o que nos encomendou." friúra: frieza, estado de quem está frio maçadas: surradas fadem: predizem

Sobre o trecho, é correto afirmar:

a) Privilegia a visão racionalista da realidade por Gil Vicente, empregada pelo autor para atender as necessidades do homem do Classicismo.

b) É escrito com perfeição formal e clareza de raciocínio, pelas quais Gil Vicente é considerado um mestre renascentista.

c) Retrata uma cena grotesca em que se notam traços da cultura popular, o que não invalida a inclusão de Gil Vicente entre os autores do Humanismo.

d) Sua linguagem é característica de um período já marcado pelo Renascimento, o que se evidencia pela referência de Gil Vicente a figuras mitológicas clássicas, como as "boas fadas".

e) Revela em Gil Vicente uma visão positiva do homem de fé que se liberta da doença pelo recurso à divindade. 12) Prove que o mote «mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube» está bem desenvolvido.

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Auto da Índia

“O Auto da Índia é a primeira farsa de Gil Vicente, representada em 1509 perante a Rainha D. Leonor, viúva de D. João II. A tentativa foi magistralmente lograda. O poeta-ourives tomou como tema um aspecto marginal da história da expansão portuguesa no Ultramar: a sua repercussão na fidelidade conjugal. A heroína do auto aproveita a ausência do marido (que embarcou para a Índia) para se divertir. O que a põe em situação embaraçosa é a presença simultânea, na sua casa, de dois admiradores, Lemos e o Castelhano fanfarrão. O auto termina com a chegada do marido, a quem a heroína descreve, de modo bem diferente da realidade, a vida que levara na sua ausência.” (1)

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Muito embora a obra se apresente como uma peça num só ato, à maneira da época, ela mostra nitidamente a existência de partes. Assim, podemos ver nela três momentos:

1º) A expectativa da partida – Revela-se aí toda a ansiedade da Ama e apreensão

pela demora do embarque.

................................................................................................ 2º) O adultério – Longe do marido, Constança deixa-se conquistar facilmente por

um castelhano e antigo pretendente, chamado Lemos.

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................................................................................................ 3º) O regresso do marido – Aproxima-se o termo da viagem e o simples anúncio do

regresso do marido perturba a Ama. A chegada provoca nela certo desespero; no entanto, disfarça, alude a promessas feitas, à aflição vivida durante a ausência e até à falta de apetite.

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Entram nela estas figuras: Ama, Moça, Castelhano, Lemos, Marido. (2) Moça Jesu! Jesu! Que é ora isso? É porque se parte a armada? Ama Olha de a mal estreada! Eu hei de chorar por isso? Moça Por minh' alma que cuidei 5 e que sempre imaginei, que choráveis por noss' amo. Ama Por qual demo ou por qual gamo ali, má hora chorarei? Como me leixa saudosa! 10 Toda eu fico amargurada! Moça Pois por que estais anojada? Dizei-mo, por vida vossa. Ama Leixa-m' ora, era má, que dizem que não vai já. 15 Moça Quem diz esse desconcerto? Ama Disseram-mo por mui certo, que é certo que fica cá. O Concelos me faz isto. Moça S'eles já estão em Restelo, 20 como pode vir a pelo? melhor veja eu Jesus Cristo; isso é quem porcos há menos. Ama Certo é que bem pequenos são meus desejos que fique. 25 Moça A armada está muito a pique. Ama Arreceio al menos. Andei na má hora e nela a amassar e biscoutar para o demo levar 30 à sua negra canela e agora dizem que não. Agasta-se-m'o coração que quero sair de mim. Moça Eu irei saber s'é assim. 35 Ama Hajas a minha benção.

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Vai Moça e fica a Ama dizendo: Ama A Santo António rogo eu que nunca mo cá depare: não sinto quem não s'enfare de um diabo Zebedeu. 40 Dormirei, dormirei, boas novas acharei. São João no ermo estava, e a passarinha cantava. Deus me cumpra o que sonhei. 45 Cantando vem ela e leda. Moça Dai-m' alvíssaras, senhora, já vai lá de foz em fora. Ama Dou-te uma touca de seda. Moça Ou, quando ele vier, 50 dai-me do que vos trouxer. Ama Ali muitieramá! agora há- de tornar cá? que chegada e que prazer! [...]

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................................................................................................ _____ NOTAS: 3)mal estreada: desastrada. 8)gamo: marido enganado 9)má hora: em má hora. 12)anojada: aborrecida, enfadada. 14)eramá: em má hora. 16)desconcerto: disparate, desproposito. 19)Concelos: Vasconcelos. 21)vir a pelo: vir a propósito. 26)a pique: a ponto (de partir). 27)al demenos: ao menos, pelo menos. 31) à sua negra canela: para a Índia. 36)benção: na época, bênção era vocábulo oxítono. 39)s’enfare: se aborreça. 40)Entenda-se: de um diabo como o meu (marido). 52)muitierama: em muito má hora (1). COELHO, Jacinto do Prado (org.). Dicionário das literaturas portuguesa, brasileira e galega. 3º ed, Porto, Figueirinhas, 1978. p. 76.

(2)MOURA, Gilberto (Org.). Teatro de Gil Vicente. Lisboa: Ulisseia, 1991.

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Personagens Caracterização

Tipos Linguagem Comportamento

Constança

Popular, realista, crítica, objetiva, dubitativa, exclamativa, irônica, figurada.

Manhosa, leviana, infiel, resmungona, exaltada, vaidosa, vulnerável, desonesta, sensual, mentirosa, curiosa,

Moça

Popular, proverbial,desarticulada, crítica, objetiva, irônica.

Alegre, amiga, serviçal, dissimulada, fingida, ingênua, convincente, observadora,resmungona, confidente, conselheira.

Castelhano

Castelhana, disparatada, objetiva, satírica, falsa, galante, gabarolas, cômica, denotativa, madrigalesca, enfática, exagerada, teatral

Fanfarrão, palrador, manhoso, atiradiço, adulador, mentiroso, teimoso, pretensioso, vaidoso, cortejador.

Lemos

Popular, exagerada, teatral, objetiva, realista, imaginativa, desarticulada.

Megalômano, guloso, fingido, apaixonado, conquistador, pobre, alegre.

Marido

Popular, comunicativa, narrativa, objetiva, afetiva.

Ingênuo, confiante, simples, bondoso, amigo.

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A Sátira Social no Auto da Índia

O Auto da Índia é a primeira farsa de Gil Vicente, representada em 1509 perante a rainha D. Leonor, viúva de D. João II. A tentativa foi magistralmente lograda. Mestre Gil tomou como tema um aspecto marginal da história da expansão portuguesa no Ultramar: a sua representação na fidelidade conjugal. A heroína aproveita a ausência do marido, que embarcara para a Índia, para se divertir. O que a põe em situação embaraçosa é a presença simultânea de dois admiradores – Lemos e o Castelhano fanfarrão. Erradamente classificada de Auto, a obra em questão é, com efeito, uma farsa, com todos os ingredientes que ela comporta. Etimologicamente, a palavra farsa significa entremeio, recheio. É uma pequena peça, profana, acentuadamente cómica, que se entremeava nas representações teatrais populares, em França, na Idade Média. Depois passou a designar peça cómica e, finalmente, certa forma ou grau de comédia caracterizada pela despreocupação quanto à verossimilhança e pela truculência dos processos. Na compilação da obra de Gil Vicente, feita pelos seus filhos Luís Vicente e Paula Vicente, em 1562, as farsa constituem o quarto livro. Os Autores eram, em geral, de caráter divino. Ora o Auto da Índia nada tem que nos lembre religião. As personagens são todas profanas, arrancadas à vida quotidiana, com seus defeitos e virtudes, muito embora as personagens do Auto da Índia nos apareçam com as suas deficiências morais, muito acima das «boas qualidades», se exceptuarmos o caso da Moça. Se Constança é uma mulher infiel, uma adúltera, ela é-o, não apenas pela situação em que se encontra, pois o marido está ausente, na Índia, mas sim porque ela é, por força do seu carácter, infiel em qualquer circunstância. O facto de o marido estar longe, não explica nem desculpa a atitude da mulher. Sabemos, porque ela própria se nos confessa que, quando ele ia à pesca a poucos quilómetros de casa, a infidelidade já existia. Gil Vicente pretende pôr em evidencia as consequencias nefastas da partida das armadas para longes terras. Já o Velho do Rastelo, nos Lusíadas, nos diz que a “dura inquietação da alma e da vida” é uma «fonte de desamparos e adultérios». Pretendia-se ganhar dinheiro, ganhar honrarias, ganhar poder político. A ambição era desmedida. Os “fumos da Índia” enfeitiçavam os homens mais crédulos. Todos se propunham partir. Todos alimentavam ilusões que, na maior parte das vezes, se desfaziam perante a realidade. No Auto da Índia está latente uma verdadeira comedia de costumes, de maus costumes,, verdade se diga. Constança é retratada com todo o pormenor psicológico. Gilberto Moura, na introdução à sua obra, Teatro de Gil Vicente, escreve: «A principal qualidade histórica desta peça, cujo titulo lhe foi atribuído, é a de representar a introdução do real contemporâneo no nosso teatro. Pela primeira vez m Portugal se contava no palco qualquer coisa,e essa coisa era matéria de actualidade para o povo, objecto das preocupações de uns e do riso incontido de outros. Preocupação, porque o adultério representava o factor mais importante da desagregação das famílias, um perigo moral e social. Riso, pelo cómico contrastante operado no comportamento da esposa leviana, fulminando por um lado o marido de doestos cruéis durante a sua ausência, e desejando a sua morte; e hiprocritamente solicita pelo outro, dulcerosa e interessada após a chegada dele. » Se Constança é aquela mulher abominável que nos conhecemos, a Moça é, pelo contrario,uma rapariguinha simples, honesta,brincalhona, que não concorda com as infidelidades da Ama. Também aquela é um produto da sociedade da época, na medida em que é obrigada a trabalhar para ganhar o pão de cada dia. Muito ela atura, mas a necessidade a isso a obriga. O meio social de Constança não é dos piores. Embora ela seja uma ignorante, uma fútil, parece-nos a ter quaisquer problemas financeiros. A partir, o marido deixara-a bem recheada.

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Por outro lado, a sua casa, embora pequena, tinha o necessário. Duas divisões, a cozinha e o quarto, mas também isso era vulgar na época, nas classes médias. Era quanto lhe bastava para receber garbo os seus “namorados!”. Como era o quarto dependência apresentável , aí se passava tudo. A cama tinha de estar sempre presente, por força das circunstancias. Isso facilitava os encontros amorosos. Se repararmos nos comparsas do Auto – O Lemos e o Castelhano vinagreiro -, veremos que eles correspondem a “tipos” da sociedade no tempo de Gil Vicente, o que não significa que os não haja nos momentos presentes. O Castelhano é um produto da influência de Castela no nosso país, onde imperava o castelhanismo. Ambos pretendentes são pobres, embora alardeando uma riqueza que não possuem. São um produto da época. A sátira social está em ambos representada. O próprio Marido de Constança, que seguira viagem para a Índia na armada de Tristão da Cunha, corresponde aos anseios do mundo que rodeava Gil Vicente. A infidelidade conjugal está também presente na Farsa de Inês Pereira embora, quanto a nós, mais atenuada. Há que reparar que em ambos os casos os maridos são ingénuos, simples, confiantes. Nem Pêro Marques nem o marido de Constança desconfiam das suas mulheres. A sátira está presente em ambos os casos. A obra vicentina, não obstante o seu medievalismo, não deixa de inspirar-se nas realidades do momento e de ser uma pintura viva dos costumes e dos tipos contemporâneos. Descreve e observa com realismo. Gil Vicente esteve sempre atento à sociedade que o rodeava e às realidades imediatas. O seu teatro, embora quase sempre cáustico e zombeteiro, adopta uma posição dignificante perante a família. Naquele tempo, muito frequentemente o casamento era imposto à mulher, que nem sempre escolhia o noivo. Os pais entregavam as filhas a maridos de que elas não gostavam. O caso de Constança poderá bem ser um deles. Sabemos quanto ela detestava o pobre marido, chegando a desejar-lhe a morte. Ele era, como a própria mulher afirma, “um fastio”. Não a satisfazia. O amor era letra morta. E é essa insatisfação que decerto a atira para os braços do Lemos e do Castelhano. Não que os amasse. Mas a necessidade física impunha-se-lhe, tanto mais que se sentia «fermosa e jovem». (Maria Amália Ortiz da Fonseca, in «Gil Vicente Auto da Índia»);

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................................................................................................ ______ NOTAS: lograr –conseguir; alcançar. entremear – colocar(-se) entre duas coisas; intercalar(-se). verosimilhança - qualidade do que verosímil. verosímil – que parece ser verdadeiro; em que não repugna acreditar; provável. exceptuar - fazer exceção de; excluir. [ Brasil – excetuar] nefasto – que causa desgraça; funesto. doesto [ê] – insulto; injúria. [Doestar – dirigir doestos a; insultar] solícito – diligente; cuidadoso. garbo – elegância; distinção; donaire. cáustico – que queima; que cauteriza; [fig.] importuno; mordaz; sarcástico.

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ESTUDO DO TEXTO «Auto da Índia » [Leia o texto integral] 01)A que se deve o título?

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02) Caracteriza as personagens femininas «Ama» e «Moça», física e psicologicamente.

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03) Estabeleça dicotomia entre «Lemos» e o «Castelhano».

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04) Quais os temas sociais que Gil Vicente expõe nesta peça. Explica-os.

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................................................................................................ 05) Prove que o Auto da Índia é uma Farsa e não um Auto, conforme o título.

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Auto da Alma (1518)

Do ponto de vista teológico, o Auto da Alma é a expressão dramática do velho tema do Peregrino – paradigma do destino do Homem. A existência humana é uma contínua luta entre as forças do bem (na peça representadas pelo o Anjo) e as solicitações do Mal (encarnadas na figura do Diabo.) São, pois, dois mundos que lutam por impor a sua supremacia, articulados como estão à vontade do homem (livre-arbítrio). Do ponto de vista social, a peça de Gil Vicente, depois da acusação e o castigo dos crimes, com penas infernais, na Trilogia das Barcas, parece propor ao homem o caminho seguro para redimir os seus pecados e atingir assim a glória eterna. A passagem que vamos transcrever expressa um destes momentos antinômicos em que vive a Alma, solicitada pelas forças contrárias do Bem e do Mal. (*)

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.............................................................................................. O ANJO À ALMA ........................................ 120 Andemos a estrada nossa; olhai: não torneis atrás, o imigo (1) à vossa vida gloriosa, porá grosa, (2) 125 Não creiais a Satanás, vosso perigo! Continuai ter o cuidado no fim de vossa jornada, e (3) a memória 130 que o espírito atalaiado (4) do pecado caminha sem temer nada pera a Glória. E nos laços infernais. 135 e nas redes de tristura tenebrosas, da carreira, que passais não caiais: siga vossa fermosura 140 as gloriosas. (5)

______ NOTAS: 1)imigo: inimigo; 2)grosa: obstáculos; 3)Subentende-se: continuai a ter; 4)atalaiado: acautelado; 5)as gloriosas: isto é, as almas.

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Adianta-se o Anjo, e vem o Diabo e diz: Tão depressa, ó delicada, alva pomba, para onde isso? Quem vos engana, e vos leva tão cansada 145 por estrada, que somente não sentis, (6) se sois humana? Não cureis de vos matar, que ainda estais em idade 150 de crescer (7) Tempo há i para folgar e caminhar: vivei à vossa vontade e havei prazer.

155 Gozai, gozai dos bens da terra, procurai por senhorios e haveres. Quem da vida vos desterra à triste serra? 160 Quem vos fala em desvarios Por (8) prazeres? Esta vida é descanso, doce e manso, não cureis doutro paraíso: 165 Quem vos põe em vosso siso (9) outro remanso? Alma Não me detenhais aqui; deixa-me ir que e al (10) me fundo. (11) Diabo Oh! descansai neste mundo, 170 que todos fazem assi. Não são embalde os haveres, não são embalde os deleites, e fortunas; não são debalde os prazeres 175 e comeres: tudo são puros afeites (12) das criaturas: para os homens se criaram. ______ NOTAS: 6)Entenda-se: a ponto de não sentirdes que... ;7)crescer: engrandecer-se; 8)por: em vez de; 9)siso: entendimento; 10)al: outra coisa; 11)me fundo: me firmo; 12)afeites: atributos

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Dai folga à vossa passagem 180 de hoje a mais; (13) descansai, pois descansaram os que passaram por esta mesma romagem (14) que levais. 185 O que a vontade quiser, quanto o corpo desejar, tudo se faça. Zombai de quem vos quiser Repreender, 190 querendo-vos marteirar (15) tão de graça. (16) Tornara-me, se a vós fora. (17) Is tão triste, atribulada, que é tormenta. (18) 195 Senhora, vós sois senhora imperadora, (19) não deveis a ninguém nada. sede isenta. (20) Anjo Oh! andai; Quem vos detém? 200 Como vindes para a glória devagar! Ó meu Deus! Ó sumo bem! já ninguém não se preza (21) da vitória 205 em se salvar Já cansais, alma preciosa? Tão asinha (22) desmaiais? Sede esforçada! (23) Oh! Como viríeis trigosa (24) 210 e desejosa, se vísseis quanto ganhais nesta jornada! Visite a nossa loja virtual Caminhemos, Caminhemos! Esforçai ora, alma santa, 215 esclarecida! ______ NOTAS: 13)de hoje a mais: doravante; 14)romagem: peregrinação; 15)marteirar: martirizar; 16) tão de graça: tão sem motivos; 17)Entenda-se: eu mudaria de rumo, se estivesse em seu lugar; 18)é tormenta: isto é, a vossa vida; 19)imperadora: soberana, de vontade livre; 20)isenta: livre; 21)se preza: se orgulha; 22)asinha: depressa; 23)sede esforçada: tende coragem; 24)trigosa: apressada, pressurosa.

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Adianta-se o Anjo, e torna Satanás: Que vaidades e que extremos (25) tão supremos! Para que é essa pressa tanta? Tende vida! (26) 220 Is muito desautorizada, (27) descalça, pobre, perdida, de remate. (28)

Não levais de vosso nada, Amargurada. 225 Assi passais esta vida em disparate? Vesti ora este brial; (29) metei o braço por aqui: rra esperai. 230 Oh! Como vem tão real! Isto tal me parece bem a mi: ora andai. 235 Uns chapins (30) haveis mister de Valença: ei-los aqui. Agora estais vós mulher de parecer. (31) Ponde os braços presuntuosos: (32) isso si! 240 Passeai-vos mui pomposa, daqui para ali, e de lá para cá, e fantasiai. Agora estais vós formosa como a rosa; tudo vos mui bem está. 245 Descansai!

Torna o Anjo à Alma, dizendo: Anjo Que andais aqui fazendo? Alma Faço o que vejo fazer pelo mundo.

Anjo 250 Ó Alma, is-vos perdendo! Correndo vos is meter no profundo! (33)

[Versos 120-252] ______ NOTAS: 25)extremos: excessos; 26)tende vida: gozai a vida; 27)Entenda-se: caminhais mui miserável; 28)de remate: enfim; 29)brial: vestido de seda ou brocado fino; 30)chapins: sapatos elegantes, usados antigamente pelas mulheres; 31)de parecer: digna de admiração; 32)presuntuosos: com vaidade; 33)profundo: inferno. (*)SPINA, Segismundo. Presença da literatura portuguesa era medieval. São Paulo - Rio de Janeiro: Difel, 1977. p.165-170.

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Personagens Caracterização

Tipos Linguagem Comportamento

Anjo

Angélica, pura, afectiva, convincente, sabedora, objectiva, moralista, crítica, combativa.

Conselheiro, paciente, persistente, compreensivo, esperançoso, preocupado, generoso, constante, solidário.

Alma

Implorativa, submissa, exclamativa, interrogativa, confessional.

Teimosa, influenciável, corruptível, embaraçada, cansada, fraca, ansiosa, inquieta, angustiada, fantasiosa, resistente, insegura.

Diabo

Zombeteira, atacante, opinosa, irritante, interrogativa, exclamativa, aliciante, instigadora, manipuladora, contundente.

Adulador, perigoso, esperto, obstinado, despeitado, renitente, persistente, teimoso, derrotista, impaciente, mundanal, insidioso,

2º Diabo

Vulgar, exclamativa, interrogativa, explicativa.

Conformista, resignado, esperançoso.

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Personagens Caracterização

Tipos Linguagem Comportamento

Santo Agostinho

Mística, teológica, judiciosa, esclarecida, digna, lírica, emotiva, respeitável, eloquente, evangélica, doutrinara.

Humano, condoído, exortativo, benévolo.

Igreja

Estimulante, exclamativa, interrogativa, repreensiva, redentora, afectiva, doutrinaria, cristã.

Hospitaleira, acolhedora, solidária, compreensiva, misericordiosa.

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A Moralidade no Auto da Alma O Auto da Alma é, na classificação da edição organizada por Luís Vicente e Paula Vicente, filhos do poeta, um Auto de Devoção e, como Auto que é, as suas personagens são hieráticas, isto é, tiradas da Bíblia. O Auto começou por ser totalmente hierático, mas, com o tempo, foi tomando aspecto diferente, contendo partes profanas. A moralidade está aqui bem exemplificada. A Alma joga a sua salvação e a sua ascensão ao Céu, debatendo-se entre o Anjo e o Diabo. Sujeita ao pecado, ela mal se pode arrastar até à santa Madre Igreja. Insegura, perturba-se emocionalmente perante todas as ofertas e manhas do Diabo que tão bem a sabe subornar. Que pode ele fazer? A sua «fraca natureza» embaraça-a e daí não saber como caminhar, se para a frente, se para trás. Deixa-se finalmente seduzir pelos «bens terrenos». A vaidade é, talvez, o seu principal pecado. Colocada insistentemente entre o Bem e o Mal, começa por se deixar vencer, embora, por vezes, ofereça alguma resistência. O Diabo poderá parecer mais poderoso que o Anjo, mas será este que vencerá e a levará até à «santa estalajadeira». Vemos a moral, mas esta vitória é cheia de problemas intermédios. As suas objecções são ditadas pelo poder do pecado, a que ela, de início, não consegue reagir. Só a persistência do Anjo poderá conduzi-la ao verdadeiro «estado de graça». Só ele não desiste da batalha. Só ele, que simboliza o Bem, tem a força necessária para lhe garantir a Eternidade, no seio de Deus, que a criou, lhe deu livre arbítrio, vontade libertada, memória e entendimento. Colocada no mundo terreal, onde o mal tem um papel predominante, ela é, afinal, o fruto desse mesmo mundo, porque não soube cuidar da sua perfeição. Todos os bens pecaminosos se perdem na hora da morte. Para que servirão, pois, este «brial», esses «chapins de Valença», esse colar, esse brincos e os dez anéis? A moral católica pretende afastá-la dos perigos que assaltam toda a Humanidade. O ser humano, frágil como é, só poderá salvar-se com o arrependimento e a fé e, daí, a moralidade do todo o Auto da Alma. Na Igreja, lavando-se «com as suas próprias lágrimas», a alma encontra a reabilitação desejada. Aprenderá o verdadeiro sentido da Vida e aprenderá, também, os preceitos católicos a que deverá obedecer. A santa Madre Igreja será, para ela, a «estalagem» onde se curará e onde lhe serão servidos os mantimentos que voltarão a restituir-se as forças que havia perdido na sua tão longa caminhada - «a triste carreira desta vida!» E a «guarida» aí está, pronta e recompensá-la, a reconfortá-la, pronta a restituir-lhe a graça de Deus, pronta a perdoar-lhe os pecados. (Maria Amália Ortiz da Fonseca, in «Gil Vicente Auto da Alma».)

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............................................................................................ ______ NOTAS: chapim – antigo calçado de senhora; patim. [Do esp. chapín] estalajadeira – Mulher que possue ou administra estalagem. hierático - respeitante às coisas sagradas; religioso.[Do gr. hieratikós, «sacerdotal»] brial – túnica feminina, presa na cintura. Espécie de camisola que usavam os antigos cavaleiros.

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ESTUDO DO TEXTO «Auto da Alma» [Leia o texto integral] 01)Metrifique os dois versos e justifique a metrificação.

Alma Tende sempre mão em mim, Porque hei de empeçar

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.............................................................................................. O2) Nos versos acima há o uso incessante de sons nasais. Comente acerca desses sons:

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................................................................................................ 03)O adjetivo é uma das classes morfológicas mais utilizadas no Auto da Alma, o que se prende com uma estratégia discursiva que é, em muitos momentos, de persuasão. Aparece quer antes, que depois do substantivo, que ainda e depois. E assume várias funções. Quais são essas? Vejam os exemplos: triste carreira v.2), perigosos perigos (v.4), preciosa riqueza (v.76), pousada verdadeira (vv. 426 e 427), Alma santa (v. 340), laços infernais (v. 134) celestes flores olorosas (vv. 51 e 52), diabólicas maldades violetas (vv. 448 e 449).

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.......................................................................................... 04)Comentar acerca do uso recorrentes dos léxicos «caminho», «jornada», «viagem», «estrada» e «carreira».

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................................................................................................ 05)As metáforas e metonímias são recursos inseparáveis da obra literária. Gil Vicente utiliza desses recursos: «este vale temeroso/e lacrimoso» (v.606 e 607 – metáforas); «triste de Jerusalé /homecida (vv.688 e 607- metonímias ). Comente acerca dos sentidos desenvolvidos.

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06)Justifique o uso pleonasmo no verso «perigoso perigos» (v.4).

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............................................................................................... 07)Identifique alguns verbos no presente do indicativo e no modo imperativo. E justifique o seu emprego.

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............................................................................................... 08)Comente acerca do «ponto de exclamação» (!).

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............................................................................................... 09)A linguagem oscila entre o tom implorativo, exclamativo, interrogativo, apelativo confessional e lírico. Transcreva algumas dessas linguagens no contexto.

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................................................................................................ 10)Comentar acerca do tema.

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................................................................................................ 11)Estabelecer a dicotomia entre o Anjo e o Diabo.

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12)Caracterizar o personagem Santo Agostinho

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................................................................................................ 13)Provar que o Auto é um de «moralidade»

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................................................................................................ 14)Qual a crítica fundamental deste Auto?

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................................................................................................ 15)Gil Vicente mostra-se profundo conhecedor dos textos bíblicos, em vários momentos da sua produção dramática. O estudioso I.S. Révah defende que esta peça teatral, Auto da Alma, é uma interpretação alegórica da parábola evangélica. Qual essa parábola?

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«Só o homem que viver na religião poderá chegar ao Céu, onde a morte e a dor não têm lugar»

_____ NOTAS: alegórico: que encerra a alegoria. alegoria: é uma figura de retórica pela qual uma figura concreta representa uma idéia, um conceito, uma abstração. Em outras palavras: exposição dum pensamento sob forma figurada. parábola [Lit.] – narrativa alegórica que envolve preceito moral: Jesus usava parábolas para ensinar certos conceitos.

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Inferno, painel português do século XVI [Museu das Janelas Verdes, Lisboa]

Auto da Barca do Inferno

O Auto da Barca do Inferno, intitulado por G.V de Auto de Moralidade, foi o primeiro a ser representado, e nele nada faz suspeitar que o poeta pretendesse segui-lo com duas posteriores prefigurações, a do Purgatório e da Glória. Possivelmente por estimulo da rainha D. Leonor, concebeu a sequência em mais dois autos que, embora compostos em épocas e línguas diferentes, passariam a constituir juntamente com o primeiro um a trilogia. Se G. V., entretanto, não seguiu um plano desde a Primeira Barca, a relação entre elas, a partir do segundo Auto, é evidente, basicamente inspiradas na mesma concepção religiosa, segundo a qual as almas sofrem a condenação ou merecem a salvação de acordo com a vida terrena que levaram. Na Primeira Barca, as almas chegam a um braço de mar, onde aportam dois batéis: um tripulado por Diabos, que as conduzirá o inferno; outro, dirigindo por Anjos, que as levará ao Paraíso, consoante os pecados que cometeram enquanto presas aos seus corpos terrestres. Desfilam, assim diante de dois batéis uma galeria de personagens da sociedade portuguesa, das quais se salvam apenas quatro Cavaleiros «por morrerem pelejando por Cristo». (Massaud Moisés, in «Pequeno Dicionário de Literatura Portuguesa»).

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Diabo À barca, à barca, houlá!, que temos gentil maré! - Ora venha o carro a ré! (1) Comp. Feito, feito! Diabo Bem está! 5 Vai ali, muitieramá, (2) e atesa aquele palanco (3) e despeja aquele banco, pera a gente que virá. À barca, à barca, hu-u! Asinha, que se quer ir! (4) 10 Oh, que tempo de partir, louvores a Berzebu! - Ora, sus! que fazes tu?! Despeja todo esse leito! Comp. Em bonora, logo é feito! 15 Diabo Abaixa aramá esse cu! (5) Faze aquela poja lesta e alija aquela driça. (6) Comp. Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, Iça! 20 Diabo Oh, que caravela esta! Põe bandeiras, que é festa. Verga alta! Âncora a pique! - Ó poderoso dom Anrique, cá vindes vós?!...Que cousa é esta?... 25 Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz: Fidalgo Esta barca onde vai ora, que assi `stá apercebida? Diabo Vai para a ilha perdida, (7) e há-de partir logo ess'ora. Fidalgo Para lá vai a senhora? 30 Diabo Senhor, a vosso serviço. Fidalgo Parece-me isso cortiço... Diabo Porque a vedes lá de fora.

Fidalgo Porém, a que terra passais? Diabo Para o inferno, senhor. 35 Fidalgo Terra é bem sem-sabor. Diabo Quê?... E também cá zombais? Fidalgo E passageiros achais pera tal habitação? Diabo Vejo-vos eu em feição 40 para ir ao nosso cais... Fidalgo Parece-te a ti assi!... Diabo Em que esperas ter guarida? Fidalgo Que deixo na outra vida

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quem reze sempre por mi. 45 Diabo Quem reze sempre por ti?! .. Hi!, Hi!, Hi!, Hi!, Hi!, Hi!, Hi!... E tu viveste a teu prazer, cuidando cá guarecer por que rezam lá por ti?!... 50 Embarca ! Ou embarcai!, que haveis de ir à derradeira... (8) Mandai meter a cadeira, (9) que assim passou vosso pai. (10) Fidalgo Quê? Quê? Quê? E assim lhe vai?! (11) 55 Diabo Vai ou vem, embarcai prestes. Segundo lá escolhestes, (12) assim cá vos contentai. Pois que já a morte passastes, haveis de passar o rio. 60 Fidalgo Não há aqui outro navio? Diabo Não, senhor, que este fretastes, e primeiro que expirastes me tínheis dado sinal. Fidalgo Que sinal foi esse tal? 65 Diabo Do que vós vos contentastes. (13) Fidalgo A estoutra barca me vou. - Hou da barca, para onde is? Ah, barqueiros, não me ouvis? Respondei-me! Hou-lá! Hou!... -Por Deus, aviado estou! (14) Quanto a isto é já pior. Oue jericocins, salvanor! (15)

Cuidam cá que sou eu grou. (*) ______ NOTAS: 1)a caro: expressão enigmática. Seria o mesmo que a carom, termo náutico, com o valor de em frente? 2)muitierama: em hora muito má. 3)Entenda-se estica a corda (para içar a vela). 4)asinha: depressa. 5)aramá (ou eramá): em má hora; aqui com o significado de “infeliz”. 6)poja: corda que serve para virar a vela; driça: corda para levantar a vela. 7)ilha perdida: inferno 8)à derradeira: afinal. 9) O Fidalgo era seguido por um criado que lhe trazia uma cadeira. 10)Entenda-se: o pai do Fidalgo havia ido para o inferno nas mesmas circunstâncias. 11)Isto é: é este o teu desejo? 12)lá: na terra. 13)Quer dizer: de que vivestes uma vida de prazeres e pecados. 14)Como se dissesse: estou mal arranjado. 15)Isto é: estes asnos não me entendem; pensam que falo como grou.

(*)SPINA, Segismundo (Org.) Obras-primas do teatro vicentino. São Paulo: Difel, 1983. p.107-109.

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Personagens

Caracterização

Tipos

Linguagem

Comportamento

Fidalgo

Altiva, petulante.

Vaidoso, presunçoso, soberbo, opressor.

Onzeneiro

Vulgar.

Avarento, usurário.

Parvo

Chocarreira, desbragada.

Cômico, crítico, simples, ingênuo.

Sapateiro

Vulgar

Ladrão

Frade

Exuberante

Libertino, mundano (dançarino esgrimista).

Alcoviteira

Dengosa

Inculcadeira.

Judeu

Desbragada

Sacrílego.

Corregedor

Identificada com a profissão (vocabulário e latim tabeleónico)

Corrupto, parcial.

Procurador

Vulgar.

Atrevido, convencido.

Enforcado

Coloquial.

Crédulo, ignorante.

Cavaleiros

Peremptória.

Decididos, seguros.

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A Sátira Social no Auto da Barca do Inferno

O Auto da Barca do Inferno é exemplo acabado da sátira de Gil Vicente aos usos e (maus costumes do seu tempo, em especial ao poder corruptor do dinheiro e ao desregramento sexual. Ele faz desfilar os representantes da nobreza, do clero, da magistratura, da burguesia e do povo com seus vícios (e virtudes, alguns), perante o juízo do Anjo e do Diabo, que os vão condenando ou absolvendo, de acordo com o padrão oficial de conduta moral. A nobreza é representada pelo Fidalgo (D. Anrique), em quem se satiriza a ostentação de grandeza, a soberba presunçosa e o desprezo pelos humildes. O clero é representado pelo Frade (Frei Gabriel), criticado pela simonia e dissolução de costumes. A magistratura é representada pelo Corregedor e pelo Procurador, cujas corrupção, venalidade e rapacidade são salientadas e tanto mais graves sendo eles «filhos da ciência», isto é, homem cultos e responsáveis. A burguesia comercial é representada pelo Onzeneiro, que usufrui de largos juros, arrancados aos necessitados: pelo Sapateiro (João Anão), que explora os fregueses com o seu comércio, e pela alcoviteira (Brízida Vaz), traficante de carne branca e inculcadeira. O povo é representado pelo Enforcado, que revela a ignorância e a credulidade manejável pelo Judeu (Jema Fará), que ninguém quer, e pelo criado do Fidalgo, a moça do Frade (Florença e as moças da Alcoviteira, meros apêndices dos poderosos, sem voz e sem vontade, mais objectos que pessoas. Ao Diabo cabe a dissecação das mazelas morais dos réus, como principal advogado de acusação. O contraste entre a sua intervenção e a do Anjo constitui também uma apreciação crítica profunda. Às instantes solicitações do Diabo para que entrem os passageiros na barca do Inferno (por si mesmos condenados) opõe o Anjo a recusa da entrada na barca da Glória. À argumentação do Diabo, que procura convencer a vontade, opõe-se a decisão irrevogável do Anjo, que a despreza.

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Sem ter conseguido a síntese entre as forças opostas que se defrontavam, Gil Vicente:

1.Exaltou a expansão ultramarina prosseguida oficialmente, na cena final do Auto da Barca do Inferno (Cavaleiros), como na Exortação da Guerra e no Auto da Fama, mas escreveu também o Auto da Índia sobre os efeitos das longas viagens na estabilidade e moralidade da vida familiar.

2.Escreveu o Auto da Alma, de um cristianismo ortodoxo e tradicional, mas no Auto da Barca do Inferno criticou o clero menor –frades e cónegos – e no Auto da Barca da Glória a sua crítica atingiu a própria Igreja, nas pessoas dos seus mais altos dignitários.

3.Satirizou fortemente o Judeu no Auto da Barca do Inferno (até no símbolo que transportava), mas numa carta a D. João III, sobre os frades de Santarém, defendeu os cristãos-novos de sectárias acusações.

4.No entanto, no Auto da Barca do Inferno (e mais abertamente no Auto da Barca da Glória) defendeu que é pelas obras terrestres que cada um se salva ou se condena, quando os protestantes afirmavam que só a Fé é salvadora, mostrando-se assim obediente à crença oficial.

No dizer de André de Resende, contemporâneo de Gil Vicente, este era «autor e actor muito hábil em dizer verdades disfarçadas em facécias e em criticar costumes entre leves gracejos». Essas verdades, apreciadas anos depois, pela censura inquisitorial, foram castigadas: 1-Com a proibição da publicação de mais de uma dezena de autos, em todo ou em parte. 2- Com a supressão de passagens várias. 3- Com a alteração de sentido de muitos versos. (*)

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........................................................................................... ______ NOTAS:

presunçoso [ô] - que tem presunção; pretensioso; vaidoso. simonia – comércio ilícito de objetos sagrados, indulgência ou benefícios eclesiásticos . venalidade - qualidade do que se vende, de quem é venal. venal – que se pode vender. Venenoso. rapacidade – qualidade de rapace; instinto ou gosto da rapina; [fig.] avidez. rapace – que rouba; que rapina; rapinante; ávido de lucro. inculcadeira - mulher que inculca; alcoviteira. inculcar – dar indicações a respeito de; indicar; recomendar. Repetir com insistência para imprimir (algo) na mente de alguém; repisar. alcoviteiro – que alcovita. Corretor de prostituta. alcovitar – servir de intermediário em relações amorosas; fazer intriga. facécia - dito zombeteiro. cônego – titulo do sacerdote secular que é membro de um cabido.[Cónego - Portugal] cabido – corporação dos cônegos de uma catedral ou de uma colegiada. (*)GONÇALVES, Maria José e EUSÉBIO, António. Gil Vivente Auto da Barca do Inferno. Lisboa: Publicações Europa-América, 1987.

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ESTUDO DO TEXTO «Auto da Barca do Inferno» [Leia o texto na integra] 01)Provão 1998 O Auto da Barca do Inferno pertence ao movimento literário do Humanismo, em Portugal, porque Gil Vicente

(A)critica a Igreja pela venda indiscriminada de indulgências e pela vida desregrada dos padres.

(B) preocupa-se somente com a salvação do homem após a morte, sem se voltar para os problemas sociais da época.

(C) equilibra a concepção cristã da salvação após a morte com a visão crítica do homem e da sociedade do seu tempo.

(D) tem como única preocupação criticar o homem e as mazelas sociais do momento histórico em que está inserido.

(E) critica a Igreja, ao defender com entusiasmo os princípios reformistas disseminados pela Reforma protestante.

02)O teatro, de suas origens ao século XIX, se serve do verso como forma de expressão. Fiel à tradição, Gil Vicente fez uso das métricas mais utilizadas na poesia medieval. Faça a escansão de alguns dos versos e classifique o tipo de verso.

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............................................................................................ 03)No Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente critica três classes sociais. Quais são essas classes?

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............................................................................................ 04)Indique as personagens que, no texto, representam a nobreza, o clero e o povo.

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05)Indique a afirmação correta sobre o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente:

a) É intricada a estruturação de suas cenas, que surpreendem o público com a inesperado de cada situação.

b) O moralismo vicentino localiza os vícios, não nas instituições, mas nos indivíduos que as fazem viciosas.

c) É complexa a critica aos costumes da época, já que o autor primeiro a relativizar a distinção entre Bem e o Mal.

d) A ênfase desta sátira recai sobre as personagens populares mais ridicularizadas e as mais severamente punidas.

e) A sátira é aqui demolidora e indiscriminada, não fazendo referência a qualquer exemplo de valor positivo. 06)Fidalgo, Onzeneiro, Parvo, Sapateiro, Frade, Alcoviteira, Judeu, Corregedor, Procurador, Enforcado e Cavaleiros são personagens do Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente.

Analise as informações abaixo e selecione a alternativa incorreta cujas características não descrevam adequadamente a personagem.

a) O Onzeneiro idolatra o dinheiro, é agiota e usurário; de tudo que juntara, nada leva para a morte, ou melhor, leva a bolsa vazia.

b) O Frade representa o clero decadente e é subjugado por suas fraquezas: mulher e esporte; leva a amante e as armas de esgrima.

c)Alcoviteira tem uma linguagem dengosa e melíflua.

d) O Corregedor representa a justiça e luta pela aplicação integra e exata das leis; leva papéis e processos. 07) Considerando a peça Auto da Barca do Inferno como um todo, indique a alternativa que melhor se adapta à proposta do teatro vicentino.

A) Preso aos valores cristãos, Gil Vicente tem como objetivo alcançar a consciência do homem, lembrando-lhe que tem uma alma para salvar.

B) As figuras do Anjo e do Diabo, apesar de alegóricas, não estabelecem a divisão maniqueísta do mundo entre o Bem e o Mal.

C) As personagens comparecem nesta peça de Gil Vicente com o perfil que apresentavam na terra, porém apenas o Onzeneiro e o Parvo portam os instrumentos de sua culpa.

D) Gil Vicente traça um quadro crítico da sociedade portuguesa da época, porém poupa, por questões ideológicas e políticas, a Igreja e a Nobreza.

E) Entre as características próprias da dramaturgia de Gil Vicente, destaca-se o fato de ele seguir rigorosamente as normas do teatro clássico.

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Auto da Feira

Moralidade composta por Gil Vicente «nas matinas do Natal», cerca de 1527. O A. representa o mundo sob a forma duma feira em que os principais vendedores são um Serafim e o Diabo. O primeiro freguês é nem mais nem menos que Roma, símbolo do Papado. A violência do ataque vicentino à cúria romana surpreende-nos, tendo em atenção a data aproximada do auto. As outras personagens (maridos e mulheres queixosos dos respectivos cônjuges, campônios e camponesas, as quais oferecem as suas mercadorias a dois compradores que lhes fazem a corte) exprimem igual desprezo pelas virtudes que o Serafim vende. O auto acaba com uma cantiga entoada pelas camponesas em louvor da Natividade. (Jacinto do Prado Coelho, in «Dicionário de Literatura Portuguesa»).

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................................................................................................ Entra primeiramente Mercúrio, e posto em seu assento, diz: MERCÚRIO Para que me conheçais, e entendais meus partidos, (1) todos quantos aqui estais afinai bem os sentidos, 5 mais que nunca, muito mais. Eu sou estrela do céu, e depois vos direi qual, e quem me cá descendeu e a que, e todo o al (2) 10 que me a mi aconteceu.

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E porque a astronomia anda agora mui maneira, mal sabida e lisonjeira, eu, à honra deste dia, 15 vos direi a verdadeira. Muitos presumem saber as operações dos céus, e que morte hão de morrer, e o que há de acontecer 20 aos anjos e a Deus. E ao mundo e ao diabo. E que o sabem têm por fé; e eles todos em cabo terão um cão pelo rabo, 25 e não sabem cujo é. E cada um sabe o que monta (3)

nas estrelas que olhou; e ao moço que mandou, não lhe sabe tomar conta 30 de um vintém que lhe entregou. Porém, quero-vos pregar, sem mentiras nem cautelas, o que per curso de estrelas se poderá adivinhar, 35 pois no céu nasci com elas. E se Francisco de Melo (4)

que sabe ciência avondo, (5)

diz que o céu é redondo, e o Sol sobre amarelo; 40 diz verdade, não lho escondo. Que, se o céu fora quadrado, não fora redondo, senhor. E, se o Sol fora azulado, d' azul fora a sua cor, 45 e não fora assi dourado. E porque está governado por seus cursos naturais, neste mundo onde morais nenhum homem aleijado, 50 se for manco e corcovado, não corre por isso mais.

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E assi os corpos celestes vos trazem tão compassados, que todos quantos nascestes, 55 se nascestes e crescestes, primeiro fostes gerados. E que faze [m] os poderes dos sinos resplandecentes? Fazem que todalas gentes 60 - ou são homens ou mulheres, ou crianças inocentes. E porque Saturno a nenhum influi vida contina, a morte de cada um 65 é aquela de que se fina, e não de outro mal nenhum. Outrossim o terremoto, que às vezes causa perigo, faz fazer ao morto voto 70 de não bulir mais consigo, Cantá (6) de seu próprio moto. E a claridade encendida dos raios piramidais causa sempre nesta vida 75 que quando a vista é perdida, os olhos são por demais. E que mais quereis saber desses temporais e disso, senão que, se quer chover, 80 está o céu para isso, e a terra para a receber? a Lua tem este jeito: vê que clérigos e frades já não têm ao céu respeito, 85 mingua-lhes as santidades, e cresce-lhes o proveito. (*)

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................................................................................................ ______ NOTAS: 1)partidos: expedientes; 2)o al: o mais; 3)monta: interessa, importa; 4)Francisco de Melo: célebre matemático da época; 5)avondo: em abundância; 6)cantá: certamente. (*)SPINA, Segismundo. Presença da literatura portuguesa era medieval. São Paulo: Difel, 1977. p.170-173.

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Personagens

Caracterização

Tipos

Linguagem

Comportamento

Mercúrio

Alatinada, desaticulada, galhofeira, paradoxal, crítica, popular, materialista, incisiva, direta, trocadilho,

Trocista, observador, palavroso, cômico, conversador, conversador,

Tempo

Exortativa, solene, explicativa, judiciosa, teológica,

Conselheiro, estimulante, funcional, preocupado,

Serafim

Séria, respeitável, elevada angélica, invocativa, exortativa, estimulante, receptiva, informativa,

Conselheiro, crítico, religioso, sensível, sincero, confiante, moralista,

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Personagens

Caracterização

Tipos

Linguagem

Comportamento

Diabo

Comparativa, ofensiva, explicativa, arcaica, interrogativa, dialogante, livre, divertida, disparatada, Judiciosa, afectada, entusiástica, opinosa, condenável, depreciativa, intimativa, prepotente, renitente, aliciante, cínica,

Comunicativo, irônico, incrédulo, maldoso, aliciante, negociante, pretensioso, desonesto, materialista, arrogante, irresponsável, competitivo, malífluo, decidido, perverso, Irritante, conflituoso, observador, manhoso,inclemente, tentador, comerciante, enganador, ruim , censurável, agressivo, impertinente, fanfarrão, persistente,

Roma

Repetitiva, confessional, informativa, implorativa, interrogativa, explicativa, documental, pessimista, reflexiva, materialista, culta, declarativa, conscienciosa, apelativa,invocativa, assisada,

Ansioso, desolado, crente, Desiludido, esperançoso, angustiado, arrependido, inseguro, queixoso, ambicioso, pecador, Consternado,

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Amâncio Vaz

Popular, recriminativa, insidiosa, explicativa, crítica, referencial, atacante, Depreciativa,

Desiludido, queixoso, infeliz, exagerado, invejoso, Resmungão, cruel, esperto, Inclemente, insatisfeito,, duro, galhoteiro, alegre, observador, irónico,

Dinis Lourenço

Recriminatória,incisiva, explicativa, referencial, atacante, depreciativa, reprovativa,

Insofrida, queixoso, esperto, insatisfeito, desiludido, gafolheiro, alegre, observador, irónico

Branca Annes

Popular, recriminativa, explicativa, inclemente, atacante, depreciativa, impiedosa, objectiva, autoritária, injuriosa, exagerada, disparatada,

Déspota, insatisfeita, revoltada, censurável, materialista, enérgica, irrelevante, incisiva, impetuosa, refilona, activa, caturra, decidida, irascível, Combativa, agressiva, céptica,

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Marta Dias

Popular, simples, conformista,

Materialista, mansa, resignada, piedosa, crente, conformada, calma,

Nove moças dos montes

Popular, graciosa, jovem, rural, provérbios, despretensiosa, directa, incisiva, realista, materialista, agressiva,

Jovial, alegre, ajuizada, feliz, galhofeira, honesta, saudáveis, festivas, gentis, travessas, simples,

Três moços

Popular,

Galhofeiros, joviais, Conversadores, alegres, respeitadores, ingênuos,

Vicente

Popular, epítetos, interrogativa, exagerada, sutil, intencional, coloquial, objectiva,

Namorador, adulador, descontraído, galanteador, Alegre, observador, atrevido, arrojado,

Mateus

Popular, rural, epítetos, interrogativa, intencional, coloquial, exclamativa, objectiva, desconcertante,

Cortejador, galhofeiro, adulador, atrevido, galanteador, namorador,alegre, observador, malicioso,

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Posted by Dantas

A Moralidade no «Auto da Feira»

Bem analisado, o Auto da Feira é uma «moralidade» em toda sua extensão. Se bem repararmos, por exemplo, na introdução feita por Mercúrio, veremos que este, além de criticar e ridicularizar a astronomia, se detém, igualmente, nas pessoas que tudo julgam saber sobre todas as matérias. Mera vaidade! O homem supõe possuir «todo o saber». Faz alarde dos seus conhecimentos, por vezes errados. É um defeito que abarca toda a humanidade. Há que criticar e condenar semelhante atitude. Que o homem se reduz à sua ignorância e não ambicione discutir assuntos que não entende. Mercúrio tem razão, e com toda a sua sagacidade irónica e crítica, brinca com o espectador, eleva-o, no fundo, a meditar. A personagem Tempo, que é alegórica, refere-se à Cristandade «que he toda gastada / só em serviço da opinião», porque se consome em contendas doutrinárias. Ele – o Tempo – só tem para trocar preceitos morais: virtudes, conselhos «maduros», justiça, verdade, paz e o temor de Deus, «que he já perdido em todos Estados». Segundo ele, as virtudes foram-se dissipando «de dias em dias». Há que renová-las, há que voltar a nelas acreditar e fugir às tentações demoníacas que arrastam o homem para o pecado. E surge-nos, com especial destaque, a figura do Serafim. É ele o grande construtor da Verdade. É ele o que rege o Bem e dá ao ser humano a sabedoria divina, que o deve conduzir na «estrada da vida». Ele se esforça, bem pretende vender a sua mercadoria, mas a verdade é que todo o mundo se perde em vãos desejos materiais. Ainda desta vez, Gil Vicente condena a corrupção da Igreja, verbera os Papas por causa da venda das indulgências e aponta-lhes a vida modelar dos primeiros pontífices. O Serafim chama todos à «feira da Virgem, /Senhora do mundo/exemplo de paz, pastora dos anjos/luz das estrelas!»/Será o Serafim quem se manterá em cena ao longo de todo o Auto. O Diabo interpõe-se, como é de sua missão. Os dois não se entendem. Falam uma linguagem antitética, pois o Demo consegue vender tudo quanto lhe apetece. Nunca ninguém «lhe tolhe que não ganhe sua vida!» Que vende ele? Mentiras, manhas, pecados, «artes de enganar». Coisas boas não interessam «porque não trazem proveito». Para ele, que ilude os feirantes «ser ruim é o que importa». As boas pessoas nunca encontram a felicidade. Ele «vende muito perigo», mas é esse mesmo perigo que atrai o ser humano! O Serafim condena-o, chama-lhe «ladrão», mais isso não importa. Afinal, não é ele o senhor absoluto nessa «feira das virtudes?». As pessoas procuram-no e ele a todos satisfaz.

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A acção do Serafim manter-se-á até o final. É ele quem pretende «vender consciência», mas a verdade é que a própria Branca Annes e a Marta Dias declaram não saberem, sequer, o «que isso é». Querem «um sombreiro», «uma pucarinha para mel» e um tecido grosseiro e rústico. A Roma pretende o Serafim vender «paz, verdade e fé», mas como conseguir? Ela anda perdida em guerras sucessivas. A luxúria e a prepotência assolam a classe eclesiástica. Só erros e pecados! Quanto daria o pobre Serafim para pôr termo à maldade que é a perdição do mundo. Como se sentiria ele feliz se alcançasse dos homens a bondade e o bom senso Nem Roma consegue entendê-lo. Ele propõe-lhe dar paz «em troco de santa vida», mas para ela isso é impossível. Como poderá ela fugir às guerras? Se os próprios cristãos a desbaratam, onde estará então o seu socorro? A parte profana do Auto não deixa de ser uma «moralidade», pois se os dois compadres – Amâncio Vaz e Dinis Lourenço- se queixam das mulheres, isso só revela a sua pouca paciência e humanidade. Nunca ninguém está contente com o que tem e inveja-se a sorte do vizinho. As duas mulheres – Branca e Marta – sofrem do mesmo mal. São desumanas e não perdoam «as faltas» dos maridos. Só incompreensão e desamor! Só a ausência do «temor a Deus» e a inconsciência dos seus próprios defeitos! O próprio Serafim nada consegue delas. Até as moças do monte não lhes interessa «a virtude». Segundo elas, não dá pão nem maridos, que é o que elas desejam. Uma vez mais, o conflito entre o mundo espiritual e o material. É curioso o que sobre o Auto da Feira escreve António José Saraiva na sua obra Gil Vicente e o Fim do Teatro Medieval: O mundo contingente, limitado, acidental, buliçoso, o mundo dos casamentos, do pão , das ladeiras da serra, dos «púcaros de mel», dos sombreiros, dos anéis, das estações e dos perdões papais, dos jubileus e das mentiras, o mundo que é observável e descritível, revela-se em irremediável antimonia com o tranquilo e infinito mundo da pastora dos anjos, de que é mensageira a luz das estrelas, cujas mercadorias são Justiça, Paz, Verdade, temor de Deus. É a luta dos dois mundos. É a rebelião entre o Bem e o Mal. (Maria Amélia Ortiz da Fonseca, in «Gil Vicente Auto da Feira»).

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................................................................................................ _____ NOTAS: apetecer – causar apetite; interessar, agradar. tolher – impedir de mover-se, de agir; pôr obstáculos. púcaro – pequeno vaso com asa. [Var.: púcara.] desbaratar – dissipar; vender por preço baixo; derrotar; desordenar-se. antinomia - contradição entre duas leis ou princípios. Oposição recíproca de duas coisas ou pessoas. [Do gr. antinomía, «contradição nas leis».] irremediável – que não se pode remediar; que não tem conserto ou solução; irreparável.

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ESTUDO DO TEXTO

«Auto da Feira» [Leia o texto na integra]

01)Estabelecer a dicotomia entre o Serafim e o Diabo.

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............................................................................................ 02)Comente acerca do ponto crucial do auto.

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............................................................................................... 03)Analisar a atitude das mulheres de ambos.

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............................................................................................ 04)Para maior facilidade de estudo podemos considerar o Auto da Feira constituído por três partes. Quais são essas partes?

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Lucas Cranach (1472-1553), o Velho

Farsa do Velho da Horta (1512)

“Gil Vicente, nesta farsa, relata as peripécias decorrentes de um frustrado amor senil, cujo protagonista, um velho sessentão e proprietário de uma horta, se apaixona subitamente por uma jovem compradora. Insensível às solicitações do Velho, zombando mesmo das suas tontarias, o diálogo entre os dois sobe para o primeiro plano, poético pelo lirismo romântico do Velho apaixonado, e altamente cômico pela ironia empolgante com que a Moça responde ao pretendente. Após a cena que vamos transcrever, seguem-se as astucias profissionais de uma alcoviteira que promete ao Velho a posse do objeto amado, mas que, mediante promessas lisonjeiras e de próximo êxito, acaba por extorquir toda a riqueza do Velho. Intervém finalmente a Justiça, que acaba por prender a alcoviteira, dissipando-se assim, não só a doce miragem do pobre enamorado, como a sua fortuna; e mais não lhe fica, como remate doloroso, senão ouvir de uma nova freguesa a noticia de casamento daquela que lhe reacendera por alguns instantes o ardor da juventude. (S, Spina, in «Presença da Literatura Portuguesa – Era Medieval»)

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Entra a Moça na horta e diz o Velho:

Velho Senhora, benza-vos Deus. Moça Deus vos mantenha, Senhor. Velho Onde se criou tal flor? Eu diria que nos céus. Moça Mas no chão. Velho Pois damas se acharão que não são vosso sapato (1)

Moça Ai! como isso é tão vão, e como as lisonjas são de barato. Velho Que buscais vós cá, donzela, senhora, meu coração? Moça Vinha ao vosso hortelão, por cheiros para a panela. Velho E a isso vinde vós, meu paraíso, minha senhora, e não a al? Moça Vistes vós! Segundo isso, nenhum Velho não tem siso natural.

Velho: Ó meus olhinhos garridos! Minha rosa! meu arminho! Moça: Onde é o vosso ratinho? (2) Não tem os cheiros colhidos? Velho: Tão depressa vinde vós, minha condessa, meu amor, meu coração! Moça: Jesu! Jesu! que coisa é essa? E que prática tão avessa da razão!

Falai, falai doutra maneira: mandai-me dar a hortaliça. Velho Grã fogo d’ amor me atiça, ó minha alma verdadeira! Moça: E essa tosse? Amores de sobre-posse (3) serão os da vossa idade: o tempo vos tirou a posse. (4) Velho: Mais amo, que se moço fosse com a metade.

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Moça: E qual será a desastrada, que atende (5) vosso amor? Velho: Ó minh’ alma e minha dor, quem vos tivesse furtada! (6) Moça: Que prazer! Quem vos isso ouvir dizer cuidará que estais vós vivo, ou que sois para viver! (7)

Velho: Vivo não no quero ser, mas cativo. Moça: Vossa alma não é lembrada que vos despede esta vida? Velho: Vós sois minha despedida, minha morte antecipada. Moça: Que galante! Que rosa! Que diamante! Que preciosa perla fina! Velho: Ó fortuna triunfante! Quem meteu um velho amante com menina! O maior risco da vida, e mais perigoso, é amar; que morrer é acabar, e amor não tem saída. E pois (8) penado, ainda que amado, vive qualquer amador; que fará o desamado, e sendo desesperado de favor? (9) Moça: Ora, dá-lhe lá favores! Velhice, como te enganas! (10)

Velho: Essas palavras ufanas acendem mais os amores. Moça: Bom homem! Estais às escuras; Não vos vedes como estais? Velho: Vós me cegais com tristuras, mas vejo as desaventuras que me dais.

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Moça: Não vedes que sois já morto, e andais contra a natura? Velho: Ó flor da mor fermosura, quem vos trouxe a este meu horto? Ai de mim! Porque, assi como vos vi, cegou minha alma, e a vida; e está tão fora de si que em partindo vós daqui, é partida. Moça: Já perto sois de morrer: donde nasce esta sandice, que, quanto mais na velhice, amais os velhos viver? E mais querida, quando estais mais de partida, é a vida que leixais? Velho: Tanto sois mais homicida, que, quando amo mais a vida, ma tirais. Porque a minha hora dagora val vinte anos dos passados; que (11) os moços namorados a mocidade os escora. (12)

Mas um velho, em idade de conselho, (13) de menina namorado... Ó minha alma e meu espelho! Moça: Ó miolo de coelho mal assado! Velho: Quanto for mais avisado (14) quem d’ amor vive penando, terá menos siso amando, porque é mais namorado. Em conclusão, que amor não quer razão, nem contrato, nem cautela, nem preito, nem condição, mas penas de coração sem querela.

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Moça: Hulos (15) esses namorados? Desinçada (16) é a terra deles: olho mau (17) se meteu neles: namorados de cruzados, (18)

isso si. Velho: Senhora, eis-me eu aqui, que não sei senão amar. Ó meu rosto d’alfeni! Que em forte ponto vos vi (19)

neste pomar! Moça: Que velho tão sem sossego! Velho: Que garridice (20) me viste? Moça: Mas dizei, que me sentiste, remelado, meio cego? Velho: Mas de todo, por mui namorado modo me tendes minha senhora já cego de todo em todo. Moça: Bem está quando tal lodo. se namora. Velho: Quanto mais estais avessa, mais certo vos quero bem. Moça: O vosso hortelão não vem? Quero-me ir, que estou de pressa. Velho: Ó formosa, Toda minha horta é vossa. Moça: Não quero tanta franqueza. (21) Velho: Não por me serdes piedosa (22)

porque, quanto mais graciosa, sois crueza. Cortai tudo, sem partido (23)

senhora, se sois servida, seja a horta destruída, pois seu dono é destruído. Moça: Mana minha, achastes vós a daninha, porque não posso esperar, Colherei alguma couisinha, somente por ir asinha (24)

e não tardar.

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Velho: Colhei, rosa, dessas rosas, minhas flores, colhei flores, Quisera que esses amores foram pérlas preciosas e de rubis o caminho por onde is, e a horta de ouro tal, com lavores mui sutis, pois Deus fazer-vos quis angelical. Ditoso é o jardim que está em vosso poder: podeis, senhora, fazer dele o que fazeis de mim. Moça: Que folgura! Que pomar e que verdura! Que fonte tão esmerada! Velho: N’água olhai vossa figura:, vereis minha sepultura ser chegada.

[Versos 30-208.]

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................................................................................................ Atenção! Leia o texto integral...

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NOTAS: 1)Entenda-se: que se igualam a vós. 2)ratinho: designação biroa do hortelão. 3)sobre-posse: forçados, artificiais. 4)posse: energia, vitalidade. 5)atende: dê atenção. 6)Entenda-se: olá pudesse casar-me convosco a furto, clandestinamente. 7)Entenda-as: ou que tendes longa vida 8)pois: visto que. 9)desesperado de favor: desesperançado de correspondência. 10)ufanas: presunçosas. 11)que: porque. 12)escora: ampara. 13)conselho: reflexão. 14)avisado: ajuizado. 15)Hulos: onde. 16)desinçada: livre. 17)olho mau: mau-olhado. 18)de cruzados: de dinheiro, de dotes. 19)em forte ponto: em má hora. 20)garridice: elegância. 21)franqueza: liberalidade. 22)Entenda-se: não sou liberal com o fim de que tenhais piedade de mim. 23)sem partido: à vontade; 24)asinha: depressa.

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ESTUDO DO TEXTO 01)Faça um levantamento quanto ao aspecto formal.

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................................................................................................ 02)Comente acerca da temática do texto

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03)Estabeleça a dicotomia entre a linguagem do Velho e da Moça.

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04)Trace a característica da «Moça»

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05)Trace a característica da Alcoviteira.

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Auto da Lusitânia

Representada ao Rei D. João III em 1532, esta peça, como o próprio autor declara a certa altura, gira em torno da origem de mitológica de Portugal: a ninfa Lisibea, de magnificente beleza, após acender paixão no Sol, dele teve uma filha, Lusitânia, cuja formosura chegara aos ouvidos de Portugal. Este, apaixonado perdidamente por ela, desencadeia tal ciúme em Lisbea, que vem a falecer. Enterrada na montanha Feliz Deserta, sobre ela se edificou uma cidade que, por causa do nome da ninfa, veio a denominar-se Lisboa. Da lenda, Gil Vicente extrai o episódio do encontro entre Lusitânia e Portugal, ao qual também concorrem Mercúrio e algumas deusas, cujo “capelães”, Dinato e Berzebeu, se dispõem a relatar a Lúcifer “tudo quanto aqui se monta.” O diálogo em que ambos se desincumbem de sua missão constitui a cena que a seguir se transcreve. Nota-se, ainda, que a primeira parte da peça contém a descrição duma família judaica ao tempo de Gil Vicente. (*)

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................................................................................................ Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz: Ninguém: Que andas tu aí buscando? Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar: delas não posso achar, porém ando porfiando por quão bom é porfiar. Ninguém: Como hás nome, cavaleiro? Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro e sempre nisto me fundo.

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Ninguém: Eu hei nome Ninguém, e busco a consciência. (Berzebeu para Dinato) Belzebu: Esta é boa experiência! Dinato, escreve isto bem. Dinato: Que escreverei, companheiro? Belzebu: Que Ninguém busca consciência. e Todo o Mundo dinheiro. (Ninguém para Todo Mundo) Ninguém: E agora que buscas lá? Todo o Mundo: Busco honra muito grande. Ninguém: E eu virtude, que Deus mande que tope com ela já.

(Berzebeu para Dinato) Belzebu: Outra adição nos acude: escreve aí, a fundo, que busca honra Todo o Mundo e Ninguém busca virtude.

(Ninguém para Todo o Mundo) Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse? Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse tudo quanto eu fizesse. Ninguém: E eu quem me repreendesse em cada cousa que errasse.

(Berzebeu para Dinato) Belzebu: Escreve mais. Dinato: Que tens sabido? Belzebu: Que quer em extremo grado Todo o Mundo ser louvado, e Ninguém ser repreendido. (Ninguém para Todo o Mundo) Ninguém: Buscas mais, amigo meu? Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê. Ninguém: A vida não sei que é, a morte conheço eu.

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(Berzebeu para Dinato) Belzebu: Escreve lá outra sorte. Dinato: Que sorte? Belzebu: Muito garrida: Todo o Mundo busca a vida e Ninguém conhece a morte.

(Todo Mundo para Ninguém) Todo o Mundo: E mais queria o paraíso, sem mo ninguém estorvar. Ninguém: E eu ponho-me a pagar quanto devo para isso. (Berzebeu para Dinato) Belzebu: Escreve com muito aviso. Dinato: Que escreverei? Belzebu: Escreve que Todo o Mundo quer paraíso e Ninguém paga o que deve. (Todo Mundo para Ninguém) Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar, e mentir nasceu comigo. Ninguém: Eu sempre verdade digo, sem nunca me desviar. (Berzebeu para Dinato) Belzebu: Ora escreve lá, compadre, não sejas tu preguiçoso! Dinato: Quê?

Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso, E Ninguém diz a verdade. (Ninguém pra Todo Mundo) Ninguém: Que mais buscas? Todo o Mundo: Lisonjear. Ninguém: Eu sou todo desengano. (Berzebeu para Dinato) Belzebu: Escreve, ande lá mano! Dinato: Que me mandas assentar?

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Belzebu: Põe aí mui declarado, não te fique no tinteiro: Todo o Mundo é lisonjeiro, e Ninguém desenganado.

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............................................................................................... ______ NOTAS: perfiando = porfiando – insistindo, teimando.

perfiar = porfiar - procurar obter.

honra - respeito social.

ande la mano! – mãos à obra!

nisto me fundo – nisto me sustento; nisto me fundamento.

tope - encontre.

adição - ato de aditar, isto é acrescentar uma declaração; acrescentamento.

açude – ocorre.

mor bem qu’esse – bem maior que esse; outra coisa de valor.

grado – vontade.

garrida – elegante; bonita. Obviamente, é pura ironia de Berzebeu.

estorvar - incomodar; atrapalhar.

ma - me+a. Contração dos pronomes pessoais oblíquos, objeto indireto e direto, respectivamente.

mo - me+o. Contração do pronome objeto indireto me com o pronome demonstrativo objeto direto o. Entenda-se no texto: sem ninguém estorvar isto a mim.

folgo - tenho prazer, gosto.

lisonjear - elogiar.

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ESTUDO DO TEXTO 01)Comente acerca dos aspectos formais.

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................................................................................................ 02)Comente as figuras de «Todo o Mundo» e «Ninguém», caracterizando-as.

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................................................................................................ 03)Explique a ironia presente na escolha dos nomes das personagens Todo o Mundo e Ninguém, tendo em vista o conteúdo de suas falas.

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................................................................................................ 04) O texto afirma que:

a)todo o mundo é mentiroso. d)ninguém diz a verdade. b)Ninguém é mentiroso. e)Todo o Mundo é mentiroso. c)todo o mundo diz a verdade

05) No fragmento do«Auto da Lusitânia», o autor utiliza um recurso estilístico que consiste no emprego de vocábulos antônimos, estabelecendo contrastes, como "vida/morte", "louvado/repreendido", e outros. Esse recurso é conhecido como: [ ] eufemismo [ ] apóstrofe [ ] sinestesia [ ] antítese (*) MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 2003. p.70-73.

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Auto de Mofina Mendes

O Auto de Mofina Mendes tem originariamente o nome de Auto dos Mistérios da Virgem. Foi representado em Êvora a 24 de Dezembro de 1534, perante o rei D. João III. É constituído por três partes: a primeira é respeitante à Anunciação, a segunda desenvolve o episódio profana de Mofina Mendes e a terceira com carácter religioso, refere-se ao Nascimento de Jesus. É precedido dum prólogo estranho, cujo conteúdo discorda da matéria do auto. As donzelas que acompanham a virgem leem textos que profetizam o aparecimento duma mulher eleita, da qual nascerá o redentor do género humano. O anjo Gabriel vem anunciar-lhe essa mensagem de Deus. No entanto, no mundo a vida segue o seu curso. Os pastores apascentam os seus rebanhos, mas o auto, para recrear o público durante o tempo que ocorre da Anunciação ao Nascimento, dá especial relevo a um episódio pastoril: o de Mofina Mendes, que perde os seus gados, é despedida, mas idealizas um futuro com a venda de um pote de azeite. (1)

Figuras:

A Virgem Paio Vaz Prudência Pessival Pobreza Mofina Mendes Humildade Braz Carrasco Fé Barba Triste O Anjo Gabriel Tibaldino S. José Anjo

[...]

Mofina: Vou-me à feira de Trancoso logo, nome de Jesu, e farei dinheiro grosso. Do que este azeite render comprarei ovos de pata, que é a coisa mais barata que eu de lá posso trazer; estes ovos chocarão; cada ovo dará um pato, e cada pato um tostão, que passará de um milhão e meio, a vender barato. Casarei rica e honrada por estes ovos de pata, e o dia que for casada sairei ataviada com um brial de escarlata, e diante o desposado, que me estará namorando: virei de dentro bailando assim dest'arte bailado, esta cantiga cantando. [...]

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TUDO DO TEXTO 01)Quem narra aparentemente o texto?

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................................................................................................ 02)O texto apresenta uma espécie de devaneio da personagem principal. Quais são os desejos revelados através desse devaneio?

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................................................................................................ 03)Como você entendeu a referência a Jesus relacionada com dinheiro grosso?

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........................................................................................... 04)Qual o verso que indica que o texto foi escrito para ser representado e cantado?

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................................................................................................ 05)A personagem principal valoriza os ideais religiosos da Idade Média ou valores materiais?

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............................................................................................ Atenção! Leia a peça na integra: «Auto de Mofina Mendes» ______ NOTAS: brial – vestido de carmesin de precioso tecido. atavida - enfeitada (1)RAMOS. Feliciano. “Gil Vicente e o teatro do renascimento”. In: História da literatura Portuguesa. Braga: Livraria Cruz, 1967, p. 232.

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Romagem de Agravados (1523)

Como no teatro de revistas de hoje, nesta peça Gil Vicente faz desfilar um variadíssimo elenco de descontentes: duas religiosas que protestam contra as regras da vida conventual; tipos que aspiram a títulos nobiliárquicos; frades que fingem piedade para conseguir um bispado; meninas pretendentes a damas do Paço, e para isso tomam lições de civilidade e etiqueta etc. Por bem - como já dissemos - o próprio gosto petrarquista de exprimir os ardores passionais por meio de antíteses, imitado pelos poetas quinhentistas, é satirizado por Gil Vicente: Colopêndio é um exemplo desse tipo passional que vive estados sentimentais contraditórios gerados pelo amor. (*)

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................................................................................................ (*)SPINA, Segismundo. Presença da literatura portuguesa - era medieval. São Paulo: Difel, s/d.

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Vêm Colopêndio e Bereniso, e diz:

Colopêndio Pois Amor o quis assi, que meu mal tanto me dura, não tardes triste ventura, que a dor não se doi de mi, e sem ti não tenho cura.

Foges-me, sabendo certo que passo perigo marinho, e sem ti vou tão deserto que, quando cuido que acerto, vou mais fora de caminho. Porque tais carreiras sigo, e com tal dita nasci nesta vida, em que não vivo, que eu cuido que estou comigo, e ando fora de mi. Bernaert van Orley (1491-1542)

Quando falo, estou calado; quando estou, entonces ando; quando ando, estou quedado; quando durmo, estou acordado; quando acordo, estou sonhando; quando chamo, então respondo; quando choro, entonces rio; quando me queimo, hei frio; quando me mostro, me escondo; quando espero, desconfio. Não sei se sei o que digo, que (1) cousa certa não acerto; se fujo de meu perigo, cada vez estou mais perto de ter mor guerra comigo. (2)

Prometem-me uns vãos cuidados (3)

mil mundos favorecidos, com que serão descansados; e eu acho-os todos mudados em outros mundos perdidos. Já não ouso de cuidar, nem posso estar sem cuidado; mato-me por me matar, onde estou não posso estar sem estar desesperado. Parece-me quanto vejo Tudo triste com razão: cousas que não vem nem vão essas são as que desejo, e todas pena me dão.

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Eu remédio não espero porque aquela em que me fundo para mi que tanto a quero tem o coração de Nero (5) para me tirar do mundo. Beroniso Quem sofrimentos vendesse quanto ouro ganharia que eu por um só lhe daria a vida se a tivesse como quando Deus queria. Porque é tal meu padecer sem ninguém de mi ter dó, que as pragas de Faraó não se houveram de escrever nem os agravos de Jó. Colopêndio Ai de mi que estou em tal risco de penosa confusão que tenho já o coração feito pedra de corisco, e meu espírito carvão. Minha alma com tal perigo deseja ser de animal, porque de mi lhe vem mal, meu bem pesa-lhe comigo, e eu quero-lhe mal mortal. Bereniso Ó irmão, onde te vás? Colopêndio Juro às dores que sustenho que não sei se vou se venho. Tu, senhor meu, mo dirás, Que eu de mi novas não tenho.

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..................................................................................... ______ NOTAS: (*)SPINA, Segismundo. Presença da literatura portuguesa - era medieval. São Paulo: Difel, s/d.

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O Juiz da Beira

Figuras: Pêro Marques, Porteiro, Ferreiro, Vasco Afonso, Ana Dias, Sapateiro, Escudeiro, Moço do Escudeiro, Preguiçoso, Bailador, Amador, Brioso. Esta farsa que se adiante segue é o seu argumento desta maneira: diz o autor que este Pêro Marques, como foi casado com Inês Pereira, se foram morar onde ele tinha sua fazenda, que era lá na Beira, onde o fizeram juiz. E porque dava algumas sentenças disformes por ser homem simples, foi chamado à corte e mandaram-lhe que fizesse uma audiência diante de el-rei. Foi representada ao mui nobre e cristianíssimo rei D. João, o terceiro em Portugal deste nome, em Almeirim, na era do Senhor de 1525. (*)

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............................................................................................ Entra Pêro Marques dizendo: Olhai vós bem qu’este sou eu homem de boa ventura, empacho nunca me atura, e he-de dizer o meu coma qualquer criatura. 5 Pêro Marques sou da Beira e juiz mexericado; deram-me lá um julgado por cajo de Inês Pereira com que embora sou casado. 10 Passou-se cá um mandado nega por me dar canseira que logo em toda maneira viesse e vim emprazado bofá com fraca esmoleira. 15

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E porque me tem tenção Diogo Lopes de Carvalho por me meter em trabalho diz que não cumpro a Ordenação e que para juiz não valho. 20 Que ele é muito de apertar Com juízes de siqueiro Ora eu, por não ser paceiro vim cá para me amostrar que sou eu homem inteiro. 25 Ora assi que de maneira minha hóspeda Inês Pereira Deus a benza sabe ler e quanto me faz mister para eu ir pela carreira 30 De que eu contente sam. soma avonda que assi lê-me ela o caderno ali onde sê a Ordenação de cabo a rabo em par de mi. 35 Do que pertence ao juiz; e assi como ela diz assi xe-mo faço eu; e em terra de Viseu ninguém não me contradiz. 40 Vem um porteiro apregoando: Quem quiser vir arrendar as charnecas de Coruche antes que o lanço mais puxe que se querem arrematar. São terras novas guardadas 45 que nunca foram lavradas. Oh que matos para pão! que vales para açafrão e canas açucaradas.!

[...] ______ NOTAS: 3 – Não tem papas na língua.

4 – Hei-de dizer a minha opinião.

7 – Juiz contra o qual foi movida sindicância ou processo. 9 – por cajo = por causa. 10 – embora = em boa hora, felizmente. 12 – nega por = apenas para. 14 – vim emprazado = vim com prazo fixado.

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15 – bofá = pronúncia rústica de abofé = com boa-fé, isto é: sinceramente. Com fraca esmoleira = com fracas ajudas de custo.

16 – Porque me tem má vontade.

17 – Desembargador do Paço com funções de inspetor judicial.

19 – A Ordenação era a compilação da legislação em vigor. 22 – siqueiro = soalheiro. Conversa de sequeiro: conversa ociosa. No teatro de Chiado e de Prestes encontra-se madrugo de sequeiro, no sentido de vadio. Talvez juiz de sequeiro signifique juiz sem estudos, juiz rural. 23 – paceiro = homem da corte. Que ou aquele que frequenta o paço real; palaciano; cortesão. 27 – minha hóspeda = minha esposa (forma arcaica já no século XVI).

29-30 – Sabe tudo quanto é preciso para eu seguir carreira. 32 – Soma e avonda tem o mesmo sentido: em suma, enfim. 33 – 34 – Lê a parte do caderno onde se encontra a lei referente ao caso a julgar. 37 – xe-me faço: arremedo da pronúncia beiro, que carrega o che.

41 – Todo o pregão do porteiro é humorístico e visa denunciar a corrupção da justiça na corte. 43 – antes que o lance mais puxe = antes de subir o lance. O pregoeiro tinha o dever de levar a almoeda ao lanço mais alto, mas prometia não o fazer a quem se entendesse com ele na «alfândega da cortiçada»... 45-46 – terras guardadas: terras vedadas. Que nunca foram lavradas: o cultivo dos campos de Coruche é antiquíssimo. Ambas as afirmações se destinavam, portanto, a provocar o riso. 47-49 – As terras, inundadas pelas cheias do Sorraia, não se prestam para pão. O açafrão e a cana-de-açúcar eram importados e não se cultivavam em nosso território.

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................................................................................................ (*)SARAIVA, Maria de Lourdes (Org.). Gil Vicente sátiras sociais. Lisboa: Publicação Europa-América, 1988.

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Quem Tem Farelos?

Apariço e Ordonho, moços de esporas de dois escudeiros, perguntam em voz alta: Quem Tem Farelos?, para prepararem a palhada para as montadas de seus amos. Encontram-se, reconhecem-se e trocam, entre si, as chufas habituais. Passam depois a falar dos amos, aos quais põem pelas ruas da amarguras, apodando-os de fanfarrões, covardes e pelintras que aparentam de ricaços e de fidalgos e imaginam bem trovar e tanger, quando, na verdade, não são, afinal, mais que dois impostores sem mérito nem préstimo algum. Aires Rosado, amo de Apariço, não tarda a aparecer, justificando exuberantemente as informações do moço: as trovas que faz à sua dama e as cantigas que lhe endereça, debaixo da janela, bem como as palavras que com ela troca, revelam bem a sua insensatez devendo notar-se, porém, que a cantiga Si dormis, doncella não é da autoria de Gil Vicente, mas, com certeza, da tradição popular. Isabel, moça leviana e presumida, dá-lhe atenção, talvez mais por vaidade do que por outra causa. Da conversa entre os dois, apenas se ouve o que o escudeiro lhe diz, e é esta, talvez, a parte mais cómoda da farsa, mas também a mais difícil de interpretar, embora o autor declare que, «pelas palavras que ele responde, se pode conjecturar o que lhe ela diz». A conversa do escudeiro é interrompida pelo ladrar dos cães e pelo miar dos gatos; por fim, a mãe de Isabel acorda e desce a rua, crivando de invectivas e pragas o escudeiro, que acaba por se retirar, corrido, cantando uma cantiga de despedida, tão insulsa como as outras da sua convencional autoria. A velha, ficando só com Isabel, começa a increpá-la pelo seu leviano procedimento, respondendo-lhe esta malcriadamente e sustentando que a última ocupação que lhe agrada e é a própria é alindar-se ao espelho, pintar-se, pentear-se, morder os beicinhos, estudar sorrisos, aprender a responder de pronto aos galanteios e outras coisas semelhantes. A mãe aconselha-a, então, a lavrar (costurar), fiar, tecer e até amassar, ocupações estas que ela repete, com desdém, terminando por lhe dizer que, como já vai amanhecendo, vai tratar, mas é de almoçar. E assim termina a farsa. (*)

........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... (*)ANDRADA, Ernesto de Campos de (Org.). Quem tem Farelos? por Gil Vicente. Lisboa: Seara Nova, 1973.

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Farsa de «Quem tem Farelos»

Figuras: Aires Rosado, Escudeiro; Apariço, Ordonho Criados; Velha, mãe de Isabel.

Este nome da Farsa seguinte - «Quem Tem Farelos?» - pôs-lho o vulgo. É o seu argumento que um escudeiro mancebo, por nome Aires Rosado, tangia viola e a esta causa, ainda que sua moradia era muito fraca, continuamente era namorado. Trata-se aqui duns amores seus, Foi representada na mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa ao muito excelente e nobre Rei D. Manuel primeiro deste nome, nos Paços da Ribeira, era do Senhor de 1515.

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Vêm Apariço e Ordonho, moços de esporas, a buscar farelos, e diz logo:

APARIÇO

Quem tem farelos?

ORDONHO Quien tiene farelos? (quem tem farelos?)

APARIÇO Ordonho! Ordonho! espera mi. (Ordonho! Espera por mim.) Ó fideputa ruim! (seu filho da puta!)

Sapatos tens amarelos, (estás tão bem) já não falas a ninguém. (que já não falas com ninguém.)

ORDONHO

Como te va, compañero? (como você vai, companheiro?)

APARIÇO

S'eu moro c'um escudeiro, (se eu moro junto com um escudeiro) como e pode a mi ir bem? (como posso ir bem?)

ORDONHO

Quien es tu amo? di, hermano? (Quem é teu amo, quem é a pessoa que você serve, me diga, meu irmão?)

APARIÇO

É o demo que me tome! (é o diabo que vive comigo) Morremos ambos de fome (morremos de fome) e de lazeira todo ano (e de miséria o ano inteiro)

ORDONHO

Con quien vive? (para quem ele serve?)

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ESTUDO DO TEXTO Quem tem farelos? [Leia a peça na integral]

Isabel – Isto vai sendo de dia. Eu quero, mãe, almoçar. Mãe – Eu te farei amassar... Isabel – Esse é outra fantasia.

I)Quanto ao aspecto fônico:

01)Metrifique a estrofe acima. 02)Como se classificam os versos quanto ao número de sílabas? E justifique o seu emprego.

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03)Qual o esquema rimático da estrofe?

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II)Síntese de características vicentinas.

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III)Qual a situação central da peça?

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______ NOTAS: chufa - ação de chufar; zombaria. apodar - dirigir a apodos a; motejar de; alcunhar, depreciando; comparar. apodo [ô] – alcunha afrontosa; motejo; zombaria. trovar – fazer ou cantar trovas; cantar em verso [Do prov. trobar, «achar» (as rimas)] tanger – tocar (instrumento musicais); tocar (animais). presumido – vaidoso; presunçoso; afetado. insulso sem sal; insosso; [fig.] que não tem graça; desenxabido. [Do lat. insulsu-, «insípido»] increpar – repreender; acusar; censura. desdém – desprezo com orgulho; desafetação. invectivo - que tem o carácter de invectica; injurioso; agressivo. Moços de esporas – que serviam na cavalariça, para depois ascenderem na carreira. palhada - mistura de palha, farelos e água. Apariço – forma popular de Aparício.

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Textos complementares acerca do teatro vicentino Teatro pré-vicentino O Teatro medieval, entre nós, revestiu sempre uma forma frustre e rudimentar. Os jograis e jogralesas, com seus cânticos, recitativos e danças, foram os primeiros actores. Das suas habilidades faziam parte, em alguns casos, os trejeitos, a imitação caricatural de pessoas, as graças e ditos jocosos e chocarreiros. «Arremedavam», Isto é, faziam «arremedilhos», nas praças públicas, nos templos e nos paços dos reis. Santa Rosa de Viterbo, no Elucidário, cita um documento do século XII,que alude a dois jograis, Bonamis e Acompaniado, da corte de D. Sancho I, e aos seus «arremedilhos”, que também se podem chamar «arremedos». Os «arremedos» com aspectos licenciosos chegaram a tomar cabimento nos próprios templos, o que moveu a Igreja e o Estado a intervir para reprimir tais abusos. Os «arremedilhos», também designados por «jogos de escarnho» dada a sua tendência quase habitual para escarnecer e gracejar, eram ainda correntes em Portugal nos fins do século XV. O rei D. João II, como consta de documento datado de 23 de Abril de 1482, mandou tirar da cadeia, onde cumpria determinada pena, um escolar em artes muito dado à prática de «arremedilhos». O jovem actor sabia «arremedar» os ofícios divinos e pregar em italiano para dizer inconveniências. Dotado de bastante maleabilidade dramática deu uma sessão de «arremedilhos», em que imitou um capelão, um rabino, um tabelião e ainda outras personagens. Além dos «arremedos», tiveram grande voga na Idade Média, os «momos» (por alguns também denominados «entremezes»), espectaculosas figurações de animais e pessoas. Tais reproduções, de natureza profana ou religiosa, revestiam, às vezes, aspectos desproporcionados, cómicos e carnavalescos. Exibiam animais imaginários ou reais, ou, por exemplo, naus e castelos. Também apresentavam homens sob a forma de animais, graças ao recurso a uma apropriada indumentária animal. Dão notícias de momos reais: Rui de Pina, na Crónica de Afonso V, e Garcia de Resende, na Crónica de D. João II, o primeiro cronista, ao relatar a celebração do casamento da Infanta D. Leonor com o imperador Frederico da Alemanha, o segundo a propósito das festas realizadas em Évora, em 1492. O gosto por estas diversões públicas, denominadas «momos» ou «entremezes», muito concorreu para o progresso cenográfico do teatro, porquanto tinha complicadas exigências técnicas e reclamava uma grande variedade de trajes. Existiu, portanto, um teatro profano pré-vicentino, mas dele não sobreviveu qualquer monumento literário. Todavia, essa experiência dramática foi continuada e desenvolvida por Gil Vicente. (*) ______ NOTAS: frustre – de qualidade inferior; rude; escasso. jogral – artista que, na Idade Média, ganhava a vida declamando poemas, cantando e tocando instrumentos musicais; trovador. Em outras palavras: artista que tocava vários instrumentos e cantava versos alheios. jocoso [ô] – que provoca riso; alegre, engraçado. (f. e pl.: [ó]). chocarreiro - aquele que diz chocarrice. [Chocarrice – comentário zombeteiro; gracejo geralmente desrespeitoso.] arremedar – imitar grosseira ou ridiculamente. [Arremedava o teatro vicentino] arremedilho – representação teatral curta e chistosa, de caráter popular; entremez, farsa. momo – representação dramática por meio de mímica; momice; farsa satírica; ator dessa farsa; [fig.] zombaria. Bras. Figura inspirada em momo, e que personifica o carnaval. entremez – pequena composição dramática, jocosa ou burlesca; farsa.

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A Vida de Gil Vicente A biografia de Gil Vicente está cheia de mistérios e incertezas. Apenas se conhecem com relativa segurança os incidentes biográficos que ilustram a actividade artística e literária do dramaturgo. Seria descendente de uma família de ourives e teria nascido em Guimarães (1), porventura, à volta de 1465 ou 1466. Teria partido muito novo para Lisboa, aí recebendo uma acurada educação moral e intelectual, nos primeiros anos. Uma discriminação mais íntima do ideário vicentino permitiu aventar a hipótese de que Gil Vicente se ilustrou em alguma das grandes universidades do tempo. O Prof. Joaquim de Carvalho inclina-se a admitir estas duas audaciosas proposições, contra o parecer tradicional (2): Gil Vicente foi indivíduo de ilustração variada, Gil Vicente fez estudos regulares. «O estudo das fontes da sua obra pode ajudar a esclarecer a extensão do seu saber e, talvez alcance inculcar a escola e o país em que estudou: se só em Portugal, se em Portugal e em Salamanca, e ainda se, após alguns anos em Salamanca, frequentou Paris, embora durante menos tempo e com menor assiduidade.”(3). Gil Vicente acusa o gosto pelas ciências teológicas e filosóficas do tempo. Manifesta-se familiarizado com os intelectuais contemporâneos, e interessado por muitos grandes anseios da época. É notável a sua independência de pensamento. No julgamento e apreciação dos fenómenos humanos e das ocorrências do mundo, a sua inteligência exerce-se, em geral, sem subordinação a ideias feitas e a superstições. É nele forte a propensão para ver de frente as realidades, o que o integra no experiencialismo do Renascimento. Em janeiro de 1531, um forte abalo císmico atingiu o País, causando danos e semeando o pânico. Outros tremores de terra se seguiram a este, com pequenos intervalos. A quando do último, Gil Vicente estava de passagem em Santarém, onde começou a correr insistentemente que os tremores de terra eram castigos da Providência, determinados pela falta de fé dos judeus. Gil Vicente convocou então os elementos da classe eclesiástica para uma reunião na crasta de São Francisco. Aí proferiu um sermão célebre, em que afirma serem os tremores de terra «acontecimentos que precedem da natureza», e não provem da cólera divina. E deplorando que se aceitasse de animo leve tal suposição, assevera finalmente nesse sermão: «não é prudência dizerem-se tais cousas publicamente, nem mesmo, nem menos serviço de Deus; porque pregar não há-de ser praguejar. As vilas e cidades dos reinos de Portugal, principalmente Lisboa, se há muitos pecados, há infindas esmolas e romarias, muitas missas e orações, e procissões, jejuns, disciplinas e infindas obras pias, públicas e secretas. E se alguns há que são ainda estrangeiros na nossa fé e se consentem, devemos imaginar que se faz porventura com tão santo zelo, que Deus é disso muito servido, e parece mais justa virtude aos servos de Deus e seus pregadores, animar a estes e confessá-los e procurá-los, que escandalizá-los e corrê-los por contentar a desvairada opinião do vulgo». O clero e o povo mudaram de parecer após as objurgatórias deste católico avisado e esclarecido. Gil Vicente dá conhecimento a D. João III da sua intervenção pacifica e muito realista, numa carta em que relata os acontecimentos. As classes dominantes reconhecem o prestígio artístico deste cortesão. A Corte admira-o e anima-o a prosseguir após a representação da sua primeira obra, em 1502. A aura dramática de Gil Vicente chega aos conventos, e a abadessa do Convento de Odivelas pede-lhe a representação de um auto no seu mosteiro, pedido que o dramaturgo acolhe favoravelmente. E lá se representou em Odivelas o belíssimo Auto da Cananeia, no ano de 1534. Ainda neste mesmo ano, D. João III assiste em Évora à exibição do Auto de Mofina Mendes.

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A sua carreira dramática termina com a representação da comedia de Floresta de Enganos, em 1536, estando presente D. João III, o grande protector e assíduo admirador de Gil Vicente. Temendo certamente o Rei que se pudesse perder uma obra de tanto merecimento, ou que se dispersasse em publicações que já circulava, ordenou a Gil Vicente que coligisse as suas obras, tarefa a que o escritor se consagrou nos últimos tempos da vida. Sobre as circunstâncias da existência familiar de Gil Vicente, dispõe-se ainda de parcas informações. Casou primeiramente com Branca Bezerra, nascendo deste casamento Gaspar e Belchior Vicente. Em segundas núpcias, contraiu matrimônio com Melícia Rodrigues. Nasceram então os filhos: Valéria, Paula e Luís Vicente. Estes dois últimos defendem a glória literária do pai, levando a cabo e publicando a Compilação da Obras de Gil Vicente. Luís Vicente, no prólogo da Compilação, faz notar a D. Sebastião que as obras do pai foram «algumas delas feitas por serviços de Deus, e todas em serviço de vossos avós, e de que eles muito gostaram». Acrescenta mais que o próprio D. Sebastião «gosta muito delas, e lê e folga de ouvir representadas». Esta afeição intelectual dos reis e príncipes dedicada a Gil Vicente, teve seus começos com a Rainha D. Leonor, viúva de D. João II, que pressentiu o génio do dramaturgo. Este homem de letras, segundo parece definitivamente averiguado por Braacamp Freire, era também artista consumado na arte de ourivesaria. (4) Ourives da Rainha D. Leonor, que lhe encomendou várias obras, desempenhou também na Casa da Moeda o cargo de «mestre da balança». Em casa, entregava-se, simultaneamente, ao labor dramático e ao ofício de ourives. Teria sido o lavrante da Custódia de Belém, uma obra-prima da ourivesaria nacional. O rei D. Manuel, por alvará de 15 de Fevereiro de 1509, nomeia Gil Vicente «vedor das obras de oiro e prata» que se venham a fazer no Convento de Tomar, Hospital de Todos os Santos, e Mosteiro de Nossa Senhora de Belém. O cinzelador de metais preciosos manifestou-se tão hábil como o dramaturgo. Teve Gil Vicente uma existência gloriosa e cheia de trunfos. Viveu apaixonadamente para a arte e para os mais nobres ideais. Morreu em Évora, por fins de 1536, ou já no início do de 1537, tendo previamente composto o epitáfio para a campa onde, jaz, no mosteiro de S. Francisco daquela cidade. (*) ______ NOTAS: aventar – apresentar, lembrar, sugerir (ideia, proposição etc). propensão – pendor, tendência, vocação para determinada coisa. (Ana Paula sempre mostrou propensão para fazer pesquisas literárias.) crasta – claustro [Do lat. claustra, pl. de claustrum, «lugar fechado») objurgatória - censura; repreensão áspea. cortesão – homem que vive na corte; indivíduo cortês. coligir – reunir em coleção; juntar. parco – que é pouco, escasso. [É uma pessoa de hábitos parcos, mas de muita generosidade com os outros.] folgar - dar folga a; alargar; desapertar; divertir-se; ter prazer ou satisfação em alguma coisa; gostar. ourivesaria - arte de ourives; loja ou oficina onde se vendem ou fazem objetos de ouro e prata. (1)Feliciano Ramos, Gil Vicente e a sua Obra (in Auto da Alma de Gil Vicente, 1962). (2) Caroline Michaelis de Vasconcelos, Notas Vicentinas, IV: Cultura: Cultura Intelectual e Nobreza Literária. (3) Joaquim de Carvalho, Os Sermões de Gil Vicente e a Arte de Pregar. (4)Braancamp Freire, Gil Vicente Trovador e Mestre de Balança. 2ª edição, Lisboa, 1944.

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Gil Vicente, a Idade Média e o Renascimento Nos fins da Idade Média, o género artístico português entra em novo período evolutivo. É precisamente nessa hora, em que uma longa idade histórica entra em declínio, que se observa uma efervescência crescente do espírito artístico. Gil Vicente, pelo seu temperamento religioso, continua a tradição da Idade Media. O povo, que tão largamente se manifestara nas crónicas de Fernão Lopes, não cessa de incentivar a imaginação artística de Gil Vicente e é um dos motivos mais freqüentes dos seus atos. As suas fontes são essencialmente de índole mediévica: a cidade de Deus, de Santo Agostinho, o uso de alegorias, o interesse pelos temas bíblicos na arte dramática medieval, a imitação inicial de autores espanhóis, como Juan del Encina, etc. Os metros do Cancioneiro também foram muito usados pelo dramaturgo. Esteticamente, o seu pensamento está, em parte, subordinado aos cânones medievais, como ainda recentemente o demonstrou o Prof. Joaquim de Carvalho a respeito do sermão. A obra vicentina, não obstante o seu medievalismo, reage contra a mentalidade supersticiosa e mítica da Idade Média; busca predominantemente, a inspiração nas realidades do momento histórico ; e encerra uma pintura viva dos costumes e dos tipos contemporâneos. Descreve e observa com vivacidades. Nenhum dos escritores latinos do renascimento esteve mais atento do que Gil Vicente à sociedade que o rodeava e às realidades imediatas. Ele conciliou superiormente, na sua arte, a concepção sobrenatural do homem e o gosto pela existência material. Admira muito a Criação, a obra de Deus, mas aspira ao Céu, sonho da alma humana. Esta admirável combinação do transcendente e do sensível é um dos segredos da extraordinária originalidade de Gil Vicente. A afeição ao mundo concreto, provectamente representada na obra vicentina, marca bem a adesão do dramaturgo ao espírito do Renascimento .(*)

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.............................................................................................. ______ NOTAS: Encina – Juan Del Encina (1468/1529). Poeta e dramaturgo espanhol. Um dos pioneiros do teatro profano em seu país. Embora de inspiração religiosa, sua produção dramática revela um espírito humanista ligado à Renascença. Autor, entre outras, das peças: Auto do Natal; Plácido e Vitoriano; Cristino e Febea (esta última uma écloga). Sua obra lírica mais importante é Cancioneiro (1496), coletânea de poemas.

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Crítica Social Os vivos aparecem frequentemente nos seus autos. Às vezes, é irónico e sarcástico, como sucede, por exemplo, no Velho da Horta, onde verbera a fraqueza amorosa de um velho, que se enamorou de «ua moça de muito bom parecer». Depois, num passo da mesma obra, e só para rir, resolve santificar algumas conhecidas damas do Paço: Maria Anriques, Joana de Mendonça, Joana Manuel, Catarina de Figueiró, D. beatriz da Silva, Violante de Lima, Maria de Ataíde. A todas apelida espirituosamente de santas. Mas assiste-se bem depressa à quebra desta generosidade, pois severas repreensões e censuras desfechou Gil Vicente contra a sociedade e contra a gente da época em que viveu. Na sua mordacidade crítica, houve quase sempre justiça e inteligência. A peça, por exemplo, Romagem dos Agravados, é uma sátira de flagrante realismo e uma autêntica parada de descontentes. Desfila ante os espectadores uma série de mulheres, que se não conforma com certos desaires da fortuna. O descontentamento apossa-se também de duas religiosas, Dorósia e Domicília, as quais protestam, com veemência, contra a regra conventual: elas abominam o silêncio, querem falar à vontade e desejam sobretudo mais liberdade. Naquele tempo, muitas raparigas eram lamentavelmente forçadas a ingressar nos conventos, embora sem vocação para a vida religiosa. Que admira, portanto, que tais mulheres repelissem os rigores da clausura? Ao lado do grupo feminino de insatisfeitas, figuravam os inadaptados. Sempre houve por aqueles tempos uma grande procura de títulos nobiliárquicos. É lógico, portanto, que um tal de Cerro Venturoso, sujeito com quatro mil cruzados de renda ambicione, pelo menos, esta coisa simples: ser conde das Berlengas. Fr. Narciso, homem desejoso de honrarias e cheio de «tartufismo», vai-se fingindo muito piedoso, de modo a ver se alcança um bispado. Acha que lhe não escasseia a competência, por exemplo, para ser bispo do «ilhéu de Peniche». E assim Gil Vicente vai anatematizando umas tantas pessoas que não estavam à altura das aspirações que tinham. Na Romagem dos Agravados, perpassa ainda a interessante personagem de Fr. Paço, senhor de boas maneiras, que usava gorra de veludo, luvas e espada dourada. Foi este vistoso cortesão que um dia examinou certo rapaz Bastião, que o pai, desgosto da vida, destina à carreira eclesiástica. O exame oferece diferentes fases de imenso interesse cômico. Começa aquele sacerdote por levar o examinando a ler uns «versozinhos», convidando-o, ao mesmo tempo, a pegar «no papel na mão». Ante esta ordem, o Bastião imagina que o assunto é todo respeitante a «cominhos» e a «açafrão». Fr. Paço mando-o, a seguir, pronunciar A, B, C, D, E, e ele, com desembaraço, repete:«Arre, arre, cedo é».O padre ainda insiste para que ele diga A, X, mas o mocinho limita-se a declarar que «Assis era um alfaiate», que vivia junto da Sé. Desalentado Fr. Paço com este insucesso, desvia o inquérito para a língua latina,e, dirigindo-se ao pequeno, fala assim: «Dize ora Beatus vir». O moço, sem pestanejar, repete: «Vi ora três ratos vir». Depois da prova de latim, segue-se a de canto mas Bastião estropia tudo. Fr. Paço conclui então que o jovem é incapaz de apreender coisa alguma. É na presença do pai que o rapaizinho é submetido a todas estas provas. Aquele, posto que tenha presenciado a insuficiência mental da criança, insiste, muito a sério, em que seu filho «pera tudo tem engenho». Nesta emergência, a mordacidade vicentina visava a cegueira daqueles pais, que teimam em não reconhecer a incapacidade dos filhos e ousam destiná-lo a carreiras incompatíveis com as aptidões que possuem.

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O Fr. Paço também é professor de etiqueta e civilidade. Neste sentido, dá instruções à menina Giralda, pretendente ao lugar de dama do paço. O frade ensina-a a fazer uma «mesura», explica-lhe como deve «dar as passadas», como há-de olhar, e em tudo vai ele próprio explicando. Recomenda-lhe mais: «corpo mui direito», riso sóbrio composto, e falar alguma coisa, de vez em quando. A actividade professoral de Fr. Paço é suficientemente objectiva para, quanto às lições como matéria de cómico, podermos ver em Gil Vicente um precursor de D. Francisco Manuel e de Molière. Quer fazendo crítica dos actos pessoais, quer pondo em destaque o descontentamento social, o grande dramaturgo, apesar do efeito cômico que procura tirar das situações, e da regularidade com caricatura as pessoas e as coisas, está, acima de tudo, empenhado numa alta campanha moralizadora. Sonha uma sociedade de mais perfeita estrutura moral e religiosa. Desde modo, no Auto da Feira,(1527), onde alude à degradação moral do Renascimento, repreende aqueles que «já não têm ao Céu respeito», deplora que, por toda parte, se tenha perdido o «temor de Deus» e que o dinheiro seja a máxima ambição de toda a agente. É uma calamidade moral que Gil Vicente condena. O quadro mostra-se, às vezes, sombrio: mentira, hipocrisia, devassidão, desdém pela honradez, luxuria, desastres e desinteligências na família e a corrupção do clero. Gil Vicente, homem moralmente severo e disciplinado, ergue no Auto da Feira, um vigoroso protesto contra o torpe materialista dos tempos. No Auto das Fadas troça das práticas da feitiçaria. Aparece em cena a feiticeira Genebra Pereira, a qual não só frisa a inocência dos seus propósitos, como expõe a sua acção humanitária, que consiste, por exemplo, em ter pena das mulheres mal-casadas, em auxiliar o «namorado» desiludido, em patrocinar traficâncias e tratar de casamentos. Estas operações executam-se às vezes com o seguinte material de trabalho: fel de coruja, sangue de leão, «rabo» dum peixe chamado «huja», coração de gato preto, etc. Gil Vicente realiza com certa mestria a arte de ridicularizar baixas crendices. Revela uma mentalidade saudável e avessa a preconceitos humilhantes, ao estigmatizar as superstições do povo. Apresenta-se sempre magistralmente familiarizado com a vida quotidiana. No «Auto da Lusitânia», desvia a observação para os episódios da vida caseira. Assim, por exemplo, nessa obra dramática, foca aspectos da vida doméstica dum casal que tinha uma filha chamada Lediça, jovem descuidada e preguiçosa, que desobedecia à mãe e trazia o cabelo mal penteado. O pai aplicava-lhe castigos corporais. Na mesma peça referencia também trabalhos domésticos, como varrer a casa, costurar, lavar a louça. Há alusão ainda ao fuso, à roca, ao dedal e ao menino «Saulinho», que pede um pente à irmã. Tudo isso é muito simples e trivial, mas lembremo-nos de que Gil Vicente, com esse realismo descritivo da vida domestica e com atenção dispensada às crianças, punha em circulação temas que só mais tarde, no século XIX, teriam foros literários. Gil Vicente foi dos primeiros, na Europa, a anunciar o romantismo e o realismo, que ainda vinham muito distantes.

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A sua sátira não poupou as excentricidades dos poetas. Em Colopêndio (Romagem dos Agravados) ridicularizou os poetas amorosos, especialmente os que, à maneira de Petrarca, num soneto célebre, diziam experimentar estados de espírito contraditórios e determinados pelo ardor passional. Este gosto das antíteses sentimentais, também depois expresso num soneto de Camões, era, para Gil, uma extravagância inaceitável. Ora o fidalgo Colopêndio, conturbado por grandes acessos amorosos, julga-se perdido e fora de si, dizendo mesmo «eu de mi novas tenho». O mesmo apaixonado averigua, a seu respeito, o seguinte: quando fala está calado, quando anda está quieto, quando dorme está acordado, quando chora está a rir, ao queimar-se tem frio, e acordado está a sonhar!.. É certo que logo a seguir esclarece: «Não sei se sei o que digo». Neste caso, a tarefa vicentina consistiu em verberar os desvairos de enamorados e a poesia petrarquista das antíteses, que, sem dúvida, conhecia. Mas a galeria das vítimas vicentinas está completa? Não; faltam, pelo menos, os curandeiros e médicos, aos quais Gil Vicente aplicou um correctivo histórico. Foi na Farsa dos Físicos, representada pela primeira vez, provavelmente, 1524, que satirizou os profissionais da arte hipocrática e a astrologia judiciária. Aparece primeiramente em cena um homem bastante incomodado. Está de cama e precisa urgentemente de ser tratado. A curandeira Brásia Dias abeira –se do doente e diagnostica: «frialdade». Tratamento: aplicação de uma «telha quente», tomar um suadouro com uma composição especial e esfregar com unto de coelho determinada parte do corpo. É claro que o tratamento será outro, no caso de se tratar de «quebranto». Nesta segunda hipótese, o enfermo untará simplesmente o cotovelo com um remédio feito de favas da Guiné incenso e sumo de marmelo. Em virtude da persistência da doença, quatro médicos examinam sucessivamente o doente. Nenhum reconhece o tratamento despropositado de Brásia, e todos eles, com uma regularidade desconcertante,se desmentem uns outros. E chega então o primeiro físico: Mestre Felipe. Diagnostica: febre que «procede de cardíaca». Tratamento: tomar um clister «d’água de cevada» misturada com farelo, comer «alface esparregada» e beber água «cozida com rosmaninho». Depois deste Galeno, pronuncia-se Mestre Fernando. Este entende, porém, que a doença é toda de rins, desejoso de patentear os seus vastos conhecimentos, apressa-se, logo de entrada, a fazer a exposição em latim, de vários preceitos médicos. Profere alguns dislates. Quanto a dieta, o seguinte: «comer cousa leve», mas nunca lebre, coelho, porco, congro, lampreia, tubarão etc. O Terceiro físico, Mestre Anriques, diagnostica: «febre sincopal». E vem finalmente o último médico. Trata-se do «Físico Torres», um engenho Esculápio, que buscava nos astros a explicação de todas as doenças. Assim, mal se acha junto do enfermo, começa imediatamente a dissertar sobre os planetas Júpiter, Saturno, Mercúrio, e após algumas considerações astrológicas, chega à conclusão de que não existe «causa» alguma que pudesse ter originado uma «febre verdadeira». Entretanto, com imperturbável gravidade, faz notar que, para bem curar, é indispensável o conhecimento das doutrinas astronómicas de Ptolomeu. Observa mais que as sangrias se devem fazer de harmonia com o movimento das estrelas. Enfim, quanto ao diagnostico, encontra-se em absoluto desacordo com os três físicos que o precederam. Na opinião de Torres, o enfermo sofre do baço. Por consequência, preconiza o seguinte regime alimentar: comer lentilhas ou abóbora cozida, caldo de ervilhas e beber água cozida com avenca. Recomenda também que o padecente seja sangrado no dia imediato.

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A situação dos físicos é sumamente humilhante, pois os espectadores sabem, desde o início da peça, qual é o verdadeiro achaque do enfermo, e, por conseguinte, surpreendem, com toda nitidez, a imperícia dos médicos . Neste arranjo especial, orientado de modo a alcançar o Maximo efeito satírico, sobressai a habilidade do comediógrafo. Um moço que assiste a toda esta comédia galénica, e que também conhece o mal de que sofre o amo, um clérigo, vai presenciando, estupefacto, as considerações dos médicos. E diz o criado, sorrindo: «Está a doença em Bilbau e vós andais à procura dela por «Entre Douro e Minho». E tinha razão. Na verdade, o enfermo não estava apoquentado por «frialdade», não tinha a febre que o terceiro físico apontou, também não sofria dos rins, nem do baço: tratava-se apenas de um padecimento amoroso. É que uma certa Branca Dinisa não correspondeu ao seu pretenso apaixonado, e daí a doença sentimental deste, que os «físicos» se mostram incapazes de descobrir, errando constantemente o diagnóstico. Na Farsa dos Físicos lançou Gil Vicente o ridículo sobre a ciência médica do tempo. Os médicos vicentinos são incapazes e ignorantes. Tentam encobrir a incompetência técnica, pelo recurso a mero verbalismo e aos disparates médicos da época. A ali se afirma a preocupação charlatanesca de ostentar saber e ludibriar o doente e o público. A Farsa dos Físicos é uma das peças dramáticas em que mais transluz a propensão trocista de Gil Vicente. Ao escrever a Farsa dos Físicos, Gil Vicente tratou de documentar-se medicamente. A própria Brásia Dias receitava mezinhas e remédios que se remendavam em velhos tratamentos médicos, chegando alguns a ser estudados por Amato Lusitano e Garcia de Orta. Ela receitava, como depois Amato, o incenso e o sumo de marmelo, por exemplo. A terapêutica vicentina baseia-se no estudo de livros de medicina, como está averiguado. Os quatros médicos que, um a um, vão examinar o doente, são conhecidos «físicos» contemporâneos. O primeiro a intervir, Mestre Filipe, é doutor em medicina e catedrático de astronomia na Universidade de Lisboa. Este físico de prestígio tenha então uns 55anos. Mestre Fernando era medico do Marquês de Vila real e homem de raça judaica. Mestre Anriques, o terceiro médico, parece que se doutorara em Paris, e talvez por ser de origem espanhola, falava castelhano. O Mestre Torres (chamava-se Tomás de Torres), médico,astrólogo e matemático. Era muito consultado por D. Manuel e ensinou astrologia a D. João III, que lhe dispensava a maior proteção. Então a Farsa dos Físicos demonstra, mais uma vez, como Gil Vicente, em arte, copiava do vivo e do natural e era um espírito lido e ilustrado. (*)

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Trilogia das Barcas Gil Vicente hauriu largamente na sociedade em que vivia a matéria cómica dos seus autos. Guiou, por vezes, uma intenção meramente galhofeira. Casos há, porém, em que Gil Vicente julga os homens e os invectiva por virtude da sua repreensível conduta. A Trilogia das Barcas documenta superiormente o idealismo ético e combativo de Gil Vicente. A acção destes três autos, Barca do Inferno, Barca do Purgatório e Barca da Glória, decorre em lugares extra-terrenos e no mundo do além do túmulo. O desenvolvimento da acção pressupõe a aceitação da imortalidade da alma e das convicções doutrinarias que responsabilizam o homem depois da morte, pelo bem ou pelo mal que praticou durante a existência terrena. Estamos em presença das crenças católicas de Gil Vicente, e de uma preferência literária por temas respeitantes à existência da vida futura, e aos lugares onde o homem viverá eternamente, em estado de felicidade ou de perpétua condenação. Conhece-se a circulação em Portugal dessa literatura, inspirada nos lugares em que estacionará a alma após a morte. Na Idade Média esses temas inspiram outros escritores como já sabemos, e impressionam agora também o dramaturgo Gil Vicente. Havia o gosto de evocar a hipotética mansão em que decorre a existência futura, quer fosse para fazer temer a Justiça de Deus, quer fosse para antegozar a felicidade que prometia. A Barca do Inferno «foi representada de câmara, para consolação da muito católica rainha D. Maria, estando enferma do mal de que faleceu, em 1517; a Barca do Purgatório foi representada, em 1518, perante a Rainha D. Leonor, no Hospital de Todos os Santos, em Lisboa; a Barca da Glória teve a primeira representação em 1519, em Almeirim, com a assistência de D. Manuel. No primeiro auto, dos acima citados, são incriminadas, recebendo como sanção da sua má conduta a condenação às penas do inferno, varias pessoas do povo e um fidalgo. Apenas se salva um pobre de espírito, um ser irresponsável, assim como quatro cavaleiros da Ordem de Cristo, que morreram pela Pátria «nas partes d’África». Gil Vicente, integrado na mística expansionista da época, sentiu que as lutas contra o Mouro, em África, eram de uma cruzada em defesa da Fé, e, por conseguinte, os que, por ela, caíssem, na morte mereciam o prémio da vida eterna. No Auto da Barca do Purgatório, mantêm-se os objectivos de crítica social da primeira Barca e, em consequência disso, os delinquentes vão para o Purgatório expiar as culpas que praticaram. Salva-se um “menino de tenra idade”. Os condenados são pessoas de baixa categoria social. Segue-se, cronologicamente, o Auto da Barca da Glória, onde são violentamente acusadas personagens da mais elevada jerarquia social: um conde, um duque, um rei, um bispo, um arcebispo, um cardeal, um papa, etc. Estes incriminados são, em parte, informados do seu destino e das razões que os condenaram ao sofrimento eterno. Eles afligem-se, entristecem-se, e até se desesperam. Um chega a escutar o ruído tenebroso do “lago dos leões”, onde irá ser devorado por dragões. No entretanto, os afortunados delinquentes só sofrem um tormento moral, pois que, à última hora, surge inesperadamente Jesus, que os leva para o céu.

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Apesar de ser bem maior do que a dos outros a sua culpabilidade, os tripulantes da terceira Barca são arbitrariamente favorecidos, não padecendo mais que a tortura de nervos. Quer dizer, à medida que caminhamos da primeira barca para a terceira, a criminalidade aumenta, enquanto que as penalidades diminuem de severidade. Gil Vicente faz depender as penalidades da hierarquia social: é complacente para os grandes e severo para os pequenos. A parcialidade judiciária de Gil Vicente, nas condenações que proferiu, tornam-se bem palpáveis. A complacência vicentina não é apenas louvável compaixão cristã, mas advém da aceitação, por parte do dramaturgo, das limitações que lhe impunham, tacitamente, as classes dirigentes e influentes. Além disso, os pecadores usufruem um benefício que é conferido pelo dogma da Redenção. Há lógica teológica na sentença proferida por Gil Vicente, mas nas duas primeiras Barcas é manifesta a desigualdade de tratamento. (*)

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........................................................................................................... _____ NOTAS (*)RAMOS, Feliciano. História da literatura portuguesa. Braga: Livraria Cruz, 1967. desaire –falta de elegância ou distinção. nobiliárquico – relativo a nobiliarquia; que tem caráter de nobreza. tartufismo ou tartufice – qualidade, ato ou dito de tartufo.

tartufo – indivíduo hipócrita; velhaco; devoto fingido. [Do it. Tartufo, antr., personagem da comédia italiana, aproveitada por Molière] escassear – tornar menos farto; faltar.

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Berlengas – arquipélago das Berlengas está situado a 16 km a oeste de Peniche. O arquipélago é um possante bloco granítico. Peniche – cidade portuguesa no distrito de Leiria. gorra [ô] - espécie de barrete. [Barrete – espécie de boné] mesura – referência que se faz, cumprimentado; cortesia;vênia; salva. verberar - repreender veemente; censurar. desvairo – ato ou efeito de desvairar; loucura; desatino. frialdade – qualidade do que é frio; frio. unto – gordura. [Do lat. unctu-, «boa mesa; óleo perfumado»] untar – esfregar com unto ou qualquer substância oleosa. esparregado – guisado de ervas, depois de cozidas, picadas e espremidas. Lus. Creme de espinafre. dislate- disparate; asneira. congro – peixe robusto e longo, de pele lisa, da fam. dos Murenídeos, comum em Portugal. lampreia – peixe ciclóstomo. achaque – doença habitual mas sem gravidade; defeito moral; vício; pretexto; imputação sem fundamento [Do ár. ax-xaqq, «dúvida; suspeita»] galénico - relativo a Cláudio Geleno, médico grego muito afamado (131-201), ou à sua doutrina médica. estupefacto – assombrado; pasmado; boquiaberto. trocista – que ou aquele que faz troça ou gosta de fazer troça. (Troça – ato ou efeito de troçar; escárnio; zombaria). mezinha - líquido para clister; [fig.] remédio caseiro. haurir – retirar para fora de lugar profundo; extrair. Esgotar, consumir. Aspirar. invectivar – dizer ou lançar invectiva; insultar, injuriar.[Invectiva – injúria] antegozar – gozar antecipadamente. jerarquia – subordinação gradativa de poderes; hierarquia; classe tenro – que se pode cortar, aprtir ou mastigar facilmente; mole; recente; [fig.] novo; delicado. expiar – remir (uma culpa ou um crime) por meio de penitencia; sofrer as consequências de. tácito – não expresso por palavras, subentendido, implícito arcebispo – bispo responsável por uma determinado arquidiocese D. Francisco Manuel – D. Francisco Manuel de Melo (1608/1666). Escritor, político e militar português. Molière – Jean-Baptiste Poquelin Molière (1622/1673). Dramaturgo francês. Usou as suas obras para criticar os costumes da época. As peças «Tartufo» (1664); «Don Juan» (1665) e «O Misantropo» (1666) são consideras obras-primas da literatura universal. Molière é um dos mestres da comédia satírica. Petrarca – Francesco Petrarca (1304/1374). Poeta e humanista italiano. Em 1327, conheceu Laura de Noves, que lhe inspirou um amor platônico. Este amor durou até o fim de sua vida, sobrevivendo às virgens, às pesquisas eruditas, à vida na corte e às honrarias. «a morte parecia bela no seu belo semblante». Ptolomeu – Ptolomeu astrônomo, matemático e geógrafo grego (século II).

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A sátira social em Gil Vicente “A sátira tem uma intenção moralizadora. Mete a ridículo pessoas, instituições, ideologias ou a própria sociedade, censurando vícios e defeitos, apontando erros e incoerências. Pode ser em verso ou em prosa. Os Romanos e os Gregos cultivaram-na. Ela foca as fraquezas humanas. Na Idade Média o Clero foi um dos alvos principais. No Renascimento o gênero satírico foi muito popularizado. Entre nós a sátira foi cultivada desde os primeiros documentos literários. Há que lembrar, por exemplos, as Cantigas de Escárnio e Maldizer. Encontramo-la igualmente no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende. Em Gil Vicente deparamos com “tipos” bem característicos: alcoviteiras, criados, pajens, escravos negros, judeus, pastores, serranas, feiticeiras, escudeiros, moças namoradeiras, maridos atraiçoados, ciganas e muitos outros. Em Gil Vicente não há só depravados. Nele encontramos as crianças, os amores puros dos pastores, as mães conselheiras e até aquela figura admirável do Auto da Cananeia que pede a Jesus lhe salve a filha endemoninhada! André de Resende, o célebre humanista, de vasto saber e uma erudição sólida e cujas obras se encontram dispersas pelas bibliotecas da Europa, em edições raras e de difícil acesso, referindo-se a Gil Vicente, escreveu: Gil, autor e também ator, eloquente e muito hábil em dizer verdades entre gracejos; Gil, habituado a censurar maus costumes entre leves gracejos. A sátira de Gil Vicente abrange as três classes sociais: clero, nobreza e povo. Haverá, por vezes, exageros, mas estes são intencionais. As suas personagens constituem caricaturas. São típicos na sua obra, os frades devassos, como o que encontramos, por exemplo, no Auto da Barca do Inferno que traz pela mão a sua Florença e que pretende entrar com ela na barca do Anjo. Há ainda o falso Ermitão da Farsa de Inês Pereira que faz uma corte descarada à moça, conseguindo os seus intentos desonestos. É o clero secular aquele que Mestre Gil melhor satiriza. A vida mundana que levam não se coaduna com a missão religiosa a que se devotaram. A Igreja nunca foi diretamente atacada como instituição mas várias circunstâncias nos aparecem, tais como o negócio das indulgências, que, como sabemos, tão criticado foi por Lutero, o culto supersticioso, a tendência para explicar os fenômenos naturais por intervenção direta de Deus. Gil Vicente só alude ao alto clero no Auto da Barca da Glória (em castelhano) onde um papa, um cardeal, um arcebispo e um bispo são salvos do Inferno por um milagre de Jesus Cristo. No que respeita à nobreza esta apresenta-se-nos decadente e ignorante. Os fidalgos, embora cheios de prosápia, são pobres de espírito e de instrução. No mesmo Auto da Barca da Glória a que já aludimos, participam um imperador, um rei, um duque e um conde, salvos, igualmente, pelo poder de Jesus. O escudeiro é outro «tipo» alvejado pela sátira vicentina. São pelintras e vadios (rascões) dão-se ares de grandes personagens mas não pagam aos criados nem lhes dão que comer nem os vestem decentemente como acontece na Farsa dos Almocreves, na Farsa de Inês Pereira e Quem tem Farelos?. São como parasitas que vão vivendo de expedientes. Gil Vicente não poupou, igualmente, as profissões liberais: o juiz, o corregedor, o procurador, o meirinho e o oficial de justiça. Os próprios médicos – os físicos – não escapam à crítica vicentina. Igualmente o povo não é esquecido. Alguns plebeus vaidosos teimam em subir na escala social. Temos o onzeneiro que emprestava dinheiro a 11%, os almocreves, os soldados, marinheiros, pastores, lavradores e todos os outros «tipos» a que fizemos referência ao longo deste capítulo. A sua sátira não poupou os poetas. Em Romagem dos Agravados ridicularizou os poetas amorosos, especialmente os que, à

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maneira de Petrarca, num soneto célebre, diziam experimentar estados de espíritos contraditórios e determinados pelo ardor passional. Bastante propenso a pôr à vista as mazelas sociais, Gil Vicente insiste no relato da indiferença pela vida perfeita. As moças da aldeia, no Auto da Feira, de cesto à cabeça, vão para a feira a cantar. Verifica-se, no entanto, que estas raparigas se desinteressam muito da vida moral e alimentam mais aspirações mundanas. Nestas almas femininas, tão indiferentes à pureza interior, esfusia, no entanto, a alegria. Elas cantam animadamente. No Auto da Feira aparecem as mulheres descontentes com o seu casamento. Há, também, duas freiras que se não conformam com a vida de clausura. Elas querem falar à vontade e desejam, sobretudo, mais liberdade. Vêmo-las na Romagem dos Agravados. Ao lado do grupo feminino das insatisfeitas, alinham os inadaptados. Procuram-se títulos nobiliárquicos, como acontece com uma das personagens da referida Romagem dos Agravados, um tal Cerro Ventoso, sujeito com quatro mil cruzados de renda, que pretende ser conde das Berlengas e Fr. Narciso, ambicioso e galhofeiro que pretende ser eleito bispo do «ilhéu de Peniche». A sátira social em Gil Vicente é, pois, muito vasta. Muito haveria ainda para mencionar, o que não cabe no âmbito reduzido deste trabalho. (Maria Amélia Ortiz Fonseca, in «Gil Vicente – Farsa de Inês Pereira»)

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........................................................................................... ______ NOTAS: coadunar - conformar(-se), combinar-(se), harmonizar-se). Indulgência - disposição para perdoar culpas ou pecados (próprios ou alheios); clemência, perdão. prosápia – linhagem; ascendência. Vaidade; orgulho; bazófia. aludir – fazer alusão a; referir-se a; mencionar. pelintra – que não sente vergonha de seus atos condenáveis; sem-vergonha. meirinho – antigo funcionário judicial correspondente ao Oficial de Justiça. onzeneiro – onzenário. Intrigante, mexeriqueiro. onzenário - relativo à onzena; que contém onzena. Usurário, agiota. onzena – juro de onze por cento (11%); [fig.] juro exorbitante. almocreve [é] – indivíduo que tem por profissão conduzir bestas de carga; carregador. esfuziar – fazer zumbir ou sibilar. [Esfusiar ?]

Teatro Popular - “Durante a Idade Média, a atividade teatral em Portugal se resumiu aos momos, arremedilhos e entremezes, breves representações de caráter religioso, satírico ou burlesco. Teatro de índole popular, caracterizava-se por uma linguagem, temas e forma de encenação acessíveis ao povo, e às vezes com a sua direta participação. Na origem, constituía o teatro profano, oposto aos mistérios e milagres, manifestações do teatro religioso então predominante”. (Massaud Moisés, in «A literatura Portuguesa através dos textos»)

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Características da obra vicentina “O teatro de Gil Vicente foi considerado, já na época do autor, um teatro rico e original. Foi o primeiro a fazer o texto literário sobre a cenografia e o espetáculo. A princípio buscou as ideias nas representações pastoris de Jun del Encina. Mas a essa experiência integra outros elementos tipicamente populares, desenvolvidos na Idade Média: as narrativas (de origens cavaleirescas), os milagres e misteriosa, as farsas (gênero popular com finalidades satíricas), os entremezes, a mistura do cômico e religioso, a crítica social e o mistério, o lirismo de cantigas etc. De cultura teocêntrica numa época de nítidas transformações, acreditou na necessidade de desnudar o homem, dizer das suas misérias e apontar o caminho para a redenção. O ser humano é seu objeto de preocupação. O homem de seu tempo, de qualquer categoria social, emotivo de reflexão porque vive num contexto em que os costumes de degradam. Gil Vicente cria o retrato do cigano, do judeu, do camponês, da moça casadoura, do papa, do médico, do fidalgo decadente, da alcoviteira, do marido traído e de outros mais que compõem a realidade da época. Ressalta as crenças, o artificialismo, a imoralidade, as superstições. Critica o homem que abandona o campo e se entrega às aventuras do mar. Os costumes são outros. Os novos valores se associam à decadência humana. Criador de tipos sociais, consegue definir o personagem a partir do seu vestuário característico, do tipo psicológico e mesmo de uma linguagem peculiar. Não perdoou nada. Acreditando na função moralizadora do teatro, colocou em cena fatos e situações que relevam a imoralidade dos frades, os religiosos são mais atacados pelo autor. A ambição, a indisciplina e o utilitarismo são a contradição entre o ideal e a prática religiosa. Há críticos que o consideraram pré-reformista, como Teófilo Braga, no século XIX. Mas Gil Vicente, crítico dos costumes, estava longe de expressar (ou propor) a rebelião dos reformistas protestantes. Esses se opuseram à Igreja porque estavam imbuídos de um espírito antropocêntrico fortalecidos e apoiados pela burguesia. Gil Vicente não se identifica com os valores da burguesia. De espírito e formação medievais, ele esteve enraizado numa concepção teológica. A crítica ao homem tem como função abrir sua consciência e reaproximá-lo de Deus. Nesse prisma, é fácil perceber que o autor expressa os valores sociais hierárquico e tradicionais. O pensamento cristão e a crítica aos costumes não chegam a se constituir uma bipolarização: a crítica existe em função do pensamento cristão. O paraíso está reservado ao simples e humilde, ao puro, e não ao frade que, ambicionando a ascensão, utiliza de artifícios pra fingir a palidez do jejum (“Romagem dos Agravados”, 1533).Ou então, os tracionais usurpadores e exploradores do povo: meirinhos, corregedores, juízes – que representam uma justiça com bolsos cheios (“Barca do Inferno”, 1515; “Floresta de Enganos”, 1536).

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A esses personagens que são tipos sociais, opõe-se a figura do lavrador (“Barca do Purgatório”, 1518; “Romagem dos Agravados”): é sugado pelo trabalho, pelos frades e pelos e pelos cobradores de renda. A corte, o clero, o homem do povo, tipos folclóricos ( a alcoviteira, o bobo, a beberrona, o judeu etc.) são somados à figura da moça da vila (“Quem tem Farelos”, 1515; “Farsa de Inês Pereira”, 1523). Sinal dos novos tempos, elas expressam a rebeldia contra o trabalho domestico, ou fidelidade conjugal. E há a figura do soldado que, no “Auto da Índia (1509), parte para o Oriente com propósito de se enriquecer. Além de voltar pobre foi traído pela mulher.” (B. Abdala Júnior, in «História da Literatura Portuguesa»).

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........................................................................................... Gil Vicente, um dos escritores mais notáveis do Quinhentismo Português “Gil Vicente, um dos escritores mais notáveis do Quinhentismo português, foi fundador do teatro em Portugal. Por isso tem sido cognominado “o Plauto Português”. A sua carreira literária (teatral) vai de 1502 a 1536. Em 1502, na câmara da Rainha D. Maria de Castela, no dia seguinte ao nascimento do futuro Rei D. João III, recitou o Monólogo do Vaqueiro (ou Auto da Visitação). Era sua estreia. Tão brilhante, que se exigiu a repetição da peça nas festas do Natal. Em 1536 encerrava a carreira com a representação da Floresta de Enganos, na cidade de Évora. Antes dele, Portugal só conhecia, em matéria de espetáculos cênicos, certo tipo de representações religiosas, muito singelas, de inspiração bíblica ou litúrgica, ao lado de peças cômicas, estas mais frequentes. Tudo isso improvisada, sem pretensões literárias. Assim, é verdadeiramente, e magnificamente, em G. V. que começa o teatro literário português. Infelizmente a sua obra não chegou à posteridade com a pureza textual que seria de desejar. Pouco antes de falecer, iniciou G.V. a tarefa de compilar as peças, espalhadas em folhas volantes. Apenas teve tempo de reunir algumas (folhas volantes impressas e manuscritas), e de escrever a dedicatória ao Rei. Coube ao filho do escritor, Luís Vicente, levar a termo a compilação. Fez-se a impressão em 1561-2. A comparação do texto impresso com a única folha volante conservada evidencia a grave mutilação sofrida pelo original. O próprio Luís Vicente confessa ter “ apurado” os textos recolhidos... Para essa atitude há de ter influído preponderantemente a coação inquisitorial. Além dessa deturpação textual, o filho de G. V. também omitiu algumas peças, alterou a cronologia e confundiu a classificação; Assim sendo, não nos é possível por julgar hoje a autêntica e integral obra vicentina. Apesar disso, na forma em que veio até nós é suficiente para fazer a gloria do maior poeta teatral em língua portuguesa.” (Celso Pedro Luft, in «Dicionário de Literatura Portuguesa e Brasileira»).

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O Teatro O teatro. – Antes do aparecimento de Gil Vicente, não podemos falar num teatro em Portugal, não obstante podemos respigar algumas notícias de dramaturgia religiosa durante a Idade Média e alguns documentos de teatro alegórico de D. João II, um teatro à base de pura cenografia e em que a palavra literária esteve quase inteiramente ausente. Henrique da Mota, conquanto nos ajude a compreender alguma coisa da dramaturgia vicentina, dissolve-se na vegetação da planície, obscurecido pela figura imponente do criador do teatro português. Sem tradição dramática atrás de si, Gil Vicente volta-se para a experiência espanhola de Juan del Encina sobretudo, buscando aí as sugestões iniciais para o seu teatro pastoril da primeira fase. O gênio criador de Gil Vicente, apoiado numa extraordinária vocação poética e numa apreciável formação intelectual, supera imediatamente a enformação estética espanhola e acabar por consolidar o gênero em Portugal com a sua fecunda produção dramática. Vivendo em pleno Renascimento, Gil Vicente não se deixa todavia impregnar daquela concepção horizontal da vida – em que o homem é a medida de todas as coisas; não vibra o menor sopro de paganismo em toda a sua obra, pelo contrário: nela está evidente uma concepção cristã da vida, e da mais rigorosa ortodoxia. A sátira e as peças pias estão continuamente a serviço do missionário, preocupado na edificação do homem e na sua subordinação à Providência.

Suas peças dão-nos a sensação de quem escreve num inteiro à-vontade, com a mais franca autonomia. Gozando naturalmente de uma liberdade de espírito na corte em que vive, explica-se que Gil Vicente fustigue de forma impiedosa toda a sociedade de seu tempo, desde o papa, o rei e o alto clero, até à mais baixa classe social: feiticeiros, alcoviteira e agiotas. A galeria de tipos é riquíssima e variada; os vícios da época são incontáveis e de toda espécie: ridiculariza a imperícia dos médicos (físicos) – na Farsa dos Físicos; as práticas da feitiçaria – no Auto das Fadas; a bazófia nobiliárquia – na Comédia Sobre a Divisa da Cidade de Coimbra, na Farsa do Escudeiro e na Farsa dos Almocreves; o relaxamento dos costumes clericais – no Clérigo da Beira, no Auto da Barca do Inferno, na Inês Pereira; a simonia – no Auto da Feira e na Barca da Glória; a corrupção no seio da família – no Auto da Índia; a nobreza a viver na sua fatuidade e à custa do trabalho alheio – na Farsa dos Almocreves; os adeptos da astrologia – na figura de Mercúrio, logo no início do Auto da Feira. Esta peça, aliás, é uma condenação total da degradação moral do Renascimento, da época em que o Céu e Deus perdem o respeito e o temor dos homens, e em que o dinheiro se torna a mola mestra da vida. Gil Vicente não perdoou também a galantaria cortesã, e o próprio gosto petrarquista das antíteses foi por ele ridicularizada, na figura de Colopêndio, que na Romagem de Agravados expressa os seus desencontrados estados sentimentais ocasionados pelo ardor passional. O que torna imorredouro o seu teatro é, não só esta visão total de uma época complexa e grande na história da cultura ocidental, mas o tratamento de temas universais e a presença dominante de um lirismo carregado dos valores mais legítimos da inspiração poética. Foi a ausência desse lirismo e a consequente insistência nos aspectos cômicos e grosseiros da representação, que levaram ao declínio o teatro que procurou seguir as pegadas de Gil Vicente.

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A compensar a penúria da montagem cênica, o arbitrário da estrutura interna de suas peças, a incapacidade de transportar o drama para as suas criações novelescas, está o alto poder de Gil Vicente na descrição dos tipos, na sucessão de extraordinários quadros à maneira das novelas de cavalaria, e um sopro de lirismo autentico, num testemunho eloqüente de senso artístico: um teatro montado segundo um formalismo estético estaria fadado a não conseguir a colaboração do público, como realmente não conseguiu o teatro renascentista que Sá de Miranda tentou em 1528. O desprezo por aquelas categorias que deram a arquitetura e o equilíbrio do teatro clássico, a sucessão das cenas como num teatro de revista, fazendo o público desfilar com todos os seus vícios perante si mesmo, constituem todo o encanto da arte vicentina e as condições necessárias para a perenidade.

O seu teatro não é apenas uma visão da sociedade de seu tempo em todos os pormenores: é a visão da vida do homem na sua totalidade, desde os mais prosaicos problemas da vida doméstica às mais dramáticas situações morais. Nesta peça é Gil Vicente a focalizar a corrupção da família, o desprezo do trabalho e o abandono do campo - ocasionados pelo espírito de aventura do homem de seu tempo: Gil Vicente inclui-se no símbolo camoniano do Velho de Restelo, que encarna no Poema o sentimento de oposição contra a febre obsessiva da aventura marítima; nesta outra encontramo-lo a dar o devido corretivo para as alcoviteiras – figura que dá uma nota pinturesca à baixa sociedade peninsular e adquire foros no temário da literatura espanhola e portuguesa; mais além é o quadro realíssimo da corja de mulatos, mouros e escravos negros, que, à custa de expedientes e rapina, estão a recolher os resíduos das naus que aportam abarrotadas das especiarias do Oriente; agora a figura quixotesca do nobre decadente, a viver de fantasia, inteiramente divorciado da realidade social; logo mais é o clérigo pretensioso, que tudo faz para galgar melhor posição na hierarquia religiosa; depois, o medico charlatão, a ostentar uma falsa erudição para impressionar a sua clientela. E, para esse desenrolar contínuo, variado, flagrante, de quadros e de tipos, a Renascença ofereceu a Gil Vicente a substância necessária com que animar o seu teatro durante 34 anos. Mas não foram apenas caracteres e aspectos extraídos da realidade que o rodeava: Gil Vicente intuiu situações, motivos e temas de interesse universal, que vieram a ser explorados mais tarde pela literatura dos séculos XVII, XVIII e XIX; o tema caracteristicamente barroco do homem na sua vida dilemática entre as forças do Bem e as solicitações sedutoras do Mal; a própria consciência cristã do homem ocidental, torturado pela ideia de que possui uma alma para salvar. O tema romântico da “mésalliance” que ingressa um pouco tarde na novela passional camiliana, já tem seu esboço no teatro vicentino, quando o dramaturgo censura os pais que destinam seus filhos para o casamento, à revelia dos próprios interesses; em Camilo também proliferam as freiras sem vocação, impostas à vida religiosa pela vontade paterna. Os pais que surram os filhos, o desleixo da donzela que traz constantemente os cabelos em desalinho, a costura de um travesseiro, a lavagem da louça e o trabalho com o fuso e a roca, estas bagatelas da vida caseira que a literatura clássica desconheceu completamente e só os escritores do século XIX conseguiram incluir no temário da literatura, são outras notas que o realismo descritivo de Gil Vicente não se esqueceu de registrar. É neste sentido que Gil Vicente é muito mais realista do que Camões. O poeta épico, na glorificação da ufania heróica e da grandeza do homem do século VI, deixou-se levar pela embriaguez géstica de seu tempo, de que foram vitima sobretudo os homens do reinado manuelino, embriaguez essa que sublimava o poder dos homens e deformava um pouco a realidade histórica, crescida e mitificada na imaginação coletiva. Gil Vicente, ao contrário, preferiu o retrato vivo da sociedade de seu tempo, através das suas misérias, mas em todos os seus recantos. Se Camões expressa a grandeza do homem de Quinhentos, a aventura do espaço e a superação das forças adversas da Natureza, Gil

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Vicente procura exprimir as misérias da vida, o homem na sua pequenez, o homem preso às realidades terrenas, o homem que precisa purificar-se para a salvação de sua alma. O que os aproxima é o sentimento cristão no Épico, expresso pela consciência de cruzada a que se destina seu povo na dilatação da fé; no dramaturgo, subentendido no efeito purificador de sua arte,a ensinar a renúncia e propor o caminho que leva à salvação. Se Gil Vicente procura, pois retratar ao vivo a sociedade de seu tempo, as misérias morais e políticas de então, é perfeitamente explicável que, dentro deste programa previamente traçado para o seu teatro, não se ajustava muito bem o elogio do homem renascentista, a exaltação dos valores épicos, do heroísmo embriagador dos homens de Quinhentos. Matéria dessa ordem brigava com a índole de seu teatro, pois Gil Vicente trazia presente no espírito a função purgadora da dramaturgia. Isto não impediu, entretanto, que chegasse a escrever o Auto da Fama, onde exalta os efeitos portugueses; todavia, no prólogo mesmo está bem manifestado o espírito vicentino na exaltação da fama lusitana: “principalmente pólo infinito dano que os mouros, imigos da nossa fé, recebem dos portugueses na índica navegação”. (S. Spina, in «Presença da Literatura Portuguesa Era Medieval» p. 84-88).

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_____ NOTAS: enformação – ato ou efeito de enformar. enformar – dar forma a; tomar forma, corpo; encorpar; desenvolver-se. Meter na fôrma ou no molde. Renascença (ou renascimento) – período de renovação científica, literária e artística, vulgarmente considerado como iniciado no século XIV e prolongado através dos séculos XV e Xvi, e que se realizou, no plano estético, com base na imitação dos modelos da Antiguidade clássica greco-romana. paganismo - conjunto das ideias, costumes e cultos dos pagãos. pagão – que não foi batizado. Que não pertence a nenhuma das religiões monoteístas (cristã, judia e mulçumana). ortodoxia [ks] – qualidade e condição do que é ortodoxo. Doutrina religiosa considerada legitima. pio – que tem piedade; piedoso, devoto. fustigar – bater repetidamente; açoitar. Castigar por qualquer modo, físico ou moral; maltratar. bazófia - vaidade, ostentação, presunção. [«Cheio de bazófia, discordava de tudo e de todos»]. simonia – comércio ilícito de objetos sagrados, indulgências ou benefícios eclesiásticos. fatuidade – qualidade de quem é fátuo; presunção; vaidade. Galantaria ou galanteria – arte de galantear; galanteio. Fineza, graça, gracejo, delicadeza. [Do fr. galanterie (galantəri) ]

imorredouro - que não é morredouro; que não acaba; imperecível; imortal; eterno. Velho de Restelo - personagem criada por Luís de Camões no canto IV da sua obra Os Lusíadas. O Velho de Restelo simboliza os pessimistas, os conservadores e os reacionários que não acreditavam no sucesso da epopeia dos descobrimentos portugueses. foro [ô] – uso ou privílegio garantido pelo tempo ou pela lei. Tribunal [Sin. , neta acepç.: fórum.] prosaico – relativo ou pertencente à prosa. Trivial, comum; banal. quixotesco [é] - relativo a Dom Quixote, personagem de Cervantes. intuir – perceber ou apreender (algo) por intuição, sem intervenção do raciocínio; deduzi, concluir. mésalliance [mêzalianç] – casamento desigual. camiliano - relativo ao escritor português Camilo Castelo Branco, 1825-1890, ou à sua obra. («Amor de Perdição», «Amor de Salvação» entre outras). fuso – utensílio para fiar a roca. Peça onde se enrola a corda do relógio. roca [ó] – instrumento que serve par afiar. ufania - vaidade desmedida. gesta [є] – façanha; história; acontecimento histórico. [Do lat. gesta, «façanhas»] mitificar - transforma em mito. Exaltar exageradamente qualidade ou atributos de (algo ou alguém). purgação - ato ou efeito de purgar, limpar ou purificar. mouro – indivíduo do povo árabe que ocupou a Península Ibérica durante o século sete séculos. manuelino - relativo ao Rei D. Manuel I de Portugal (1469-1521) e à sua época. Índico - da Índia; indiano. Relativo ao oceano Índico. polo – antiga contr. da prep. por+o art. def. o. imigo – forma arcaica de inimigo. [ Do lat. inimĩcu, «inimigo»]

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Atividades 01)Estudo do texto

Oh! Deus te salve, Maria, cheia de graça graciosa, dos pecadores abrigo! Goza-te com alegria, humana e divina rosa, porque o Senhor é contigo. Ó Virgem, se ouvir me queres, mais te quero inda dizer: benta és tu em mereceres mais que todas as mulheres, nascidas e por nascer.

O fragmento acima pertence à peça: [a] Farsa de Inês Pereira [c] Auto da Alma [e] Auto da Índia

[b] O Velho da Horta [d] Auto da Mofina Mendes 02)A obra tem como tema o ditado popular "Mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube" e trata da questão do casamento por interesse, além de fornecer um retrato fiel dos costumes da época, criticando seus valores superficiais e vazios. O fragmento acima pertence à peça: [a] Farsa de Inês Pereira [c] Auto da Alma [e] Auto da Índia

b] O Velho da Horta [d] Auto da Mofina Mendes 03) Caracteriza o teatro de Gil Vicente: A)A revolta contra o Cristianismo. B)A obra escrita em prosa. C)A elaboração requintada. D)A preocupação com o homem e com a religião. E)A busca de conceitos universais.

04)Aponte a alternativa correta em relação a Gil Vicente: A) Compôs peças de caráter sacro e satírico. B) Introduziu a lírica trovadoresca em Portugal. C)Escreveu a novela Amadis de Gaula. D)Só escreveu peças e português. E)Representa o melhor do teatro clássico português.

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05)Assinale a alternativa incorreta a respeito da obra de Gil Vicente; [A]Embora servisse para o entretenimento da Corte, seu teatro caracterizava-se por ser primitivo, rudimentar e popular.

[B]Algumas de suas peças têm caráter misto, de oscilante classificação como o Auto dos quatro tempos.

[C]Apresenta-se como traço de união entre a Idade Média e a Renascença.

[D]Ao lado da sátira, encontra-se elevados valores cristãos.

[E]Aprofunda-se nos valores clássicos, seguindo rigidamente os padrões do teatro grego. 06)Em que circunstâncias Gil Vicente produziu sua obra?

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............................................................................................... 07)Qual a principal característica da obra de Gil Vicente?

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................................................................................................ 08)Qual a primeira obra de Gil Vicente?

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................................................................................................ 09)Estudo do texto “- Para que é envelhecer esperando pelo vento? .......................................

Partiu em Maio daqui Quando o sangue novo atiça. Parece-te que é justiça?”

O fragmento acima pertence à peça: [A] Farsa de Inês Pereira [B] Quem tem Farelos? [C] Auto da Índia

[D] O Velho da Horta [E] Auto da Mofina Mendes

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10)”Nas peças religiosas o autor coloca sempre em relevo a oposição dos dois mundos: material e sobrenatural, profano e divino, trevas e luzes”.

Assinala alternativa que justifica o enunciado acima:

[A] Auto da Índia [B] Quem tem Farelos? [C] Auto da Alma

[D] O Velho da Horta [E] Farsa de Inês Pereira.

11)A Farsa de Inês Pereira é glosada a partir do provérbio «Antes burro que me leve que cavalo que me derrube». Comente metaforicamente acerca desse provérbio.

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............................................................................................... 12)O texto denuncia a revolta da jovem confinada aos serviços domésticos, o que confere atualidade à obra.Essa afirmação se refere à peça?

[A] Farsa de Inês Pereira [B] o Velho da Horta [C] Quem tem Farelos ?

[D] O Velho da Horta [E] Auto da Índia

13)Qual a peça de Gil Vicente que tem por tema uma das conseqüências das viagens dos descobrimentos: o adultério?

[A] O Velho da Horta [B] Auto da Alma [C] Farsa de Inês Pereira

[D] Auto da Feira [E] Auto da Índia

14) Qual a peça que Gil Vicente termina a sua carreira dramática?

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................................................................................................ 15)A sátira de Gil Vicente abrange as três classes sociais. Quais são essas?

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16)Assinales alternativas corretas e some os valores:

01)Uma das características das obras de Gil Vicente é o recurso a personagens-tipo. As suas personagens não são individuais, isto é, representam sempre um grupo, uma classe social, uma profissão. Desta forma, são uma síntese dos defeitos e virtudes desses grupos. Assim, Gil Vicente satirizava a sociedade, sem atacar diretamente alguma pessoa em particular.

02)Vicente é considerado um poeta-dramaturgo . Dramaturgo por ser criador de teatro e poeta, porque toda a sua obra é escrita em verso. Nas suas obras critica a sociedade do seu tempo, pondo a descoberto muitos dos vícios e hábitos das várias classes sociais. Por isso, se considera a sua obra como um espelho, porque reflete fielmente a sociedade do séc. XV.

04)O teatro de Gil Vicente foi considerado, já na época do autor, um teatro rico e original. Foi o primeiro a fazer valer o texto literário sobre a cenografia e o espetáculo.

08)Os vivos aparecem frequentemente nos seus autos. Às vezes é irônico e sarcástico, como sucede, por exemplo, no Velho da Horta, onde verbera a fraqueza amorosa de um velho, que se enamorou de moça de bom parecer.

16)Suas peças dão-se a sensação de quem escreve num inteiro à-vontade, com a mais franca autonomia. Gozando naturalmente duma liberdade de espírito na corte em que vive, explica-se que Gil Vicente fustigue de forma impiedosa toda sociedade de seu tempo, desde o papa, o rei e o alto clero, até à mais baixa classe social.

32)O teatro medieval, entre nós, revestiu sempre uma forma frustre e rudimentar. Os jograis e jogralesas, com seus cânticos, recitativos e danças, foram os primeiros atores. 64)A análise das personagens vicentinas e da sua importância relativa mostra-nos, em resumo, que Gil Vicente desconheceu os problemas da burguesia urbana assim como os do trabalho artesanal e do assalariados citadinos.

____ 17)Sintetize com suas palavras o teatro pré-vicentino.

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18)Comente acerca da Farsa dos Físicos.

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01)O seu teatro é apenas um visão da sociedade de seu tem pó em todos os pormenores.

02)Gil Vicente intuiu situações, motivos e temas de interesse universal a ser explorados mais tarde pela literatura dos séculos XIII, XVIII e XIX.

04)Gil Vicente preferiu o retrato vivo da sociedade de seu tempo, através das suas misérias, mas em todos os seus recantos.

08)Gil Vicente realiza com certa mestria a arte de ridicularizar baixas crendices.

16)A sátira tem uma intenção moralizadora. Mete a ridículo pessoas, instituições, ideologias ou a própria sociedade, censurando vícios e defeitos, apontando erros e incoerências

32) Gil, autor e também actor, elequente e muito hábil em dizer verdades entre gracejos; Gil Vicente, não era habituado a censurar maus costumes entre leves gracejos.

64)Gil Vicente não poupou, igualmente, as profissões liberais: o juiz, o corregedor, o procurador, o meirinho e o oficial de justiça.

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20)Caracterize as três fases do teatro vicentino.

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2)Além dos textos complementares, pesquise outros textos que estão citados na fonte de consulta.

3)Os textos complementares não foram fotocopiados, foram digitados. Entretanto, poderá haver alguns deslizes ortográficos.

4)Espero que esse resumo sucinto do teatro vincetino, traga-lhe conhecimento do teatro português da Idade Média.

«Dentro de você existe um Gênio, descubra-o!»

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