Macro Análitico Conceitual Da Tecnologia Social

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1 Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia social Renato Dagnino * Flávio Cruvinel Brandão ** Henrique Tahan Novaes *** A Rede de Tecnologia Social (RTS) tem duas características que a diferenciam de outras iniciativas em curso no país, orien- tadas à dimensão científico-tecnológica. A primeira é o marco analítico-conceitual que conforma o que aqui denominamos “tecnologia social” (TS). A segunda é justamente seu caráter de rede. Sem ser excludente àquelas iniciativas, a RTS se arti- cula, em função dessas características, como uma alternativa mais eficaz para a solução dos problemas sociais relacionados a essa dimensão e como um vetor para a adoção de políticas públicas que abordem a relação ciência-tecnologia-sociedade (CTS) num sentido mais coerente com a nossa realidade e com o futuro que a sociedade deseja construir. Este capítulo, escrito por participantes da RTS que se têm dedicado a temas relacionados à TS no plano acadêmico, 1 tem * Professor titular da Universidade de Campinas (Unicamp). ** Assessor do Departamento de Ações Regionais para Inclusão Social da Se- cretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social. *** Economista formado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e mes- trando no Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) da Universidade de Campinas (Unicamp). 1 As dissertações de mestrado de dois dos autores – Dagnino (1976) e Bran- dão (2001) – são uns dos poucos esforços de reflexão acadêmica sobre o te- ma realizado no Brasil.

Transcript of Macro Análitico Conceitual Da Tecnologia Social

  • 1Sobre o marco analtico-conceitualda tecnologia social

    Renato Dagnino*

    Flvio Cruvinel Brando**

    Henrique Tahan Novaes***

    A Rede de Tecnologia Social (RTS) tem duas caractersticasque a diferenciam de outras iniciativas em curso no pas, orien-tadas dimenso cientfico-tecnolgica. A primeira o marcoanaltico-conceitual que conforma o que aqui denominamostecnologia social (TS). A segunda justamente seu carterde rede. Sem ser excludente quelas iniciativas, a RTS se arti-cula, em funo dessas caractersticas, como uma alternativamais eficaz para a soluo dos problemas sociais relacionados aessa dimenso e como um vetor para a adoo de polticaspblicas que abordem a relao cincia-tecnologia-sociedade(CTS) num sentido mais coerente com a nossa realidade e como futuro que a sociedade deseja construir.

    Este captulo, escrito por participantes da RTS que se tmdedicado a temas relacionados TS no plano acadmico,1 tem

    * Professor titular da Universidade de Campinas (Unicamp).* * Assessor do Departamento de Aes Regionais para Incluso Social da Se-

    cretaria de Cincia e Tecnologia para Incluso Social.*** Economista formado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e mes-

    trando no Departamento de Poltica Cientfica e Tecnolgica (DPCT) daUniversidade de Campinas (Unicamp).

    1 As dissertaes de mestrado de dois dos autores Dagnino (1976) e Bran-do (2001) so uns dos poucos esforos de reflexo acadmica sobre o te-ma realizado no Brasil.

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    por objetivo proporcionar ao leitor um conceito de TS que lhepermita o entendimento da proposta de trabalho da RTS e, emconjunto com outros elementos, provoque sua adeso mesma.

    Para isso, trata da primeira dessas caractersticas o marcoanaltico-conceitual da TS , buscando precisar como ele podeser construdo mediante contribuies de natureza bastantediversa at originar o conceito de TS adotado pela rede. Isso feito tendo como referncia a evoluo da reflexo sobre temasrelacionados TS, levada a cabo em nveis internacional e na-cional, e o processo de discusso em curso no mbito da RTSsobre como eles deveriam ser reinterpretados temporal e es-pacialmente de modo a propor, mais do que um conceito pro-priamente dito, um marco analtico-conceitual adequado a seuspropsitos e capaz de conferir-lhe a solidez que requer paraabrir espao num ambiente ainda adverso, pois alinhado comos princpios da tecnologia convencional (TC), a partir do qual,por oposio, a TS vem sendo concebida como alternativa.

    tambm objetivo deste captulo mostrar como o marcoanaltico-conceitual da TS hoje disponvel, cujos contornosaqui se procura esboar, possibilita empreender a construodessa alternativa de modo muito mais efetivo do que no passa-do, alm de mostrar como se d sua influncia na conformaoda segunda caracterstica da RTS, o que feito na seo final docaptulo, fazendo com que ela possa assumir conformaes quea diferenciam de redes similares.

    O captulo se inicia mostrando como aqueles temas estavamsendo abordados pelo movimento da tecnologia apropriada (TA)e a forma como esse movimento estava sendo criticado no inciodos anos 1980, quando perde importncia como elemento via-bilizador, no plano tecnolgico, de um estilo alternativo de de-senvolvimento no mbito dos pases perifricos.

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    Em seguida, em sua quarta e mais longa seo, aborda os de-senvolvimentos tericos que foram surgindo desde ento aolongo da trajetria de consolidao do campo dos Estudos So-ciais da Cincia e da Tecnologia (ESCT)2 e que, partindo de ma-trizes disciplinares e concepes ideolgicas bastante diferen-tes, parecem aportar elementos para o processo de elaboraode um marco analtico-conceitual da TS com os atributos de in-terdisciplinaridade, pluralidade e efetividade, necessrios paraa construo, em bases slidas, da RTS.

    A figura a seguir, concebida durante uma das reunies daRTS, ilustra o percurso que segue o texto, mostrando como omarco analtico-conceitual da TS pode ter sua construo en-tendida a partir da incorporao ao movimento da TA dessascrticas e contribuies. Nela aparece, no centro de uma espiralque procura denotar um processo cumulativo, a viso predomi-nante da TA nos anos 1970. sua volta, ao longo de cada umadas seis setas que para ela convergem, os elementos que se con-sidera importante individualizar como conformadores do marcoanaltico-conceitual da TS, o qual aparece representado como

    2 Nas palavras de Lopez Cerezo (2000, p. 1), um de seus mais conhecidos pes-quisadores ibero-americanos, os estudos sobre cincia, tecnologia e socieda-de (CTS) constituem hoje um vigoroso campo de trabalho em que se trata deentender o fenmeno cientfico-tecnolgico no contexto social, tanto em rela-o com seus condicionantes sociais como no que se refere a suas conseqn-cias sociais e ambientais. O enfoque geral de carter crtico, com respeito clssica viso essencialista e triunfalista da cincia e da tecnologia, e tambmde carter interdisciplinar, concorrendo disciplinas como a filosofia e a histriada cincia e da tecnologia, a sociologia do conhecimento cientfico, a teoriada educao e a economia da permuta tcnica. CTS se originou h trs dca-das a partir de novas correntes de investigao emprica em filosofia e socio-logia, e de um incremento da sensibilidade social e institucional sobre a ne-cessidade de uma regulao pblica de permuta cientfico-tecnolgica. CTSdefine hoje um campo de trabalho bem consolidado institucionalmente emuniversidades, administraes pblicas e centros educativos de diversos pasesindustrializados.

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    uma culminao de um processo em curso, de crescente com-plexidade e riqueza. Cada um desses elementos crtica daTA, economia da inovao, sociologia da inovao, filosofia datecnologia etc. encontra-se associado aos autores cuja con-tribuio foi considerada central e a palavras-chave que a iden-tificam.

    Contribuies ao marco analtico-conceitual da TS

    Figura 1

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    A apresentao desses desenvolvimentos se d de forma su-mria, apenas ao nvel do que parece suficiente para que o leitorinteressado possa acompanhar a linha de argumentao e possaampliar sua compreenso acerca dos mesmos a partir da biblio-grafia indicada. No obstante sua importncia, o quinto e o sextodesenvolvimentos no so abordados neste texto.

    A quarta seo introduz o conceito de adequao sociotc-nica, cuja formulao pretende atender ao objetivo de incorpo-rar de modo articulado esses desenvolvimentos ao marco ana-ltico-conceitual da TS e servir como base de operacionalizaoda TS.

    A TA

    A ndia do final do sculo XIX reconhecida como o berodo que veio a se chamar no Ocidente de TA. O pensamento dosreformadores daquela sociedade estava voltado para a reabi-litao e o desenvolvimento das tecnologias tradicionais, prati-cadas em suas aldeias, como estratgia de luta contra o domniobritnico. Entre 1924 e 1927, Gandhi dedicou-se a construirprogramas, visando popularizao da fiao manual realizadaem uma roca de fiar reconhecida como o primeiro equipamentotecnologicamente apropriado, a Charkha, como forma de lutarcontra a injustia social e o sistema de castas que a perpetuavana ndia. Isso despertou a conscincia poltica de milhes dehabitantes das vilas daquele pas sobre a necessidade da auto-determinao do povo e da renovao da indstria nativa hin-du, o que pode ser avaliado pela significativa frase por ele cunha-da: Produo pelas massas, no produo em massa.

    Ainda sobre as origens do movimento da TA, interessantea opinio de Amlcar Herrera, um dos poucos pesquisadores la-tino-americanos que se dedicaram ao tema. Para ele,

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    o conceito de desenvolvimento de Gandhi inclua uma poltica cien-tfica e tecnolgica explcita, que era essencial para sua implemen-tao. A insistncia de Gandhi na proteo dos artesanatos das aldeiasno significava uma conservao esttica das tecnologias tradicionais.Ao contrrio, implicava o melhoramento das tcnicas locais, a adap-tao da tecnologia moderna ao meio ambiente e s condies dandia, e o fomento da pesquisa cientfica e tecnolgica, para identifi-car e resolver os problemas importantes imediatos. Seu objetivo finalera a transformao da sociedade hindu, atravs de um processo decrescimento orgnico, feito a partir de dentro, e no atravs de umaimposio externa. Na doutrina social de Gandhi o conceito detecnologia apropriada est claramente definido, apesar de ele nuncater usado esse termo (1983, p. 10-11).

    As idias de Gandhi foram aplicadas tambm na RepblicaPopular da China e, mais tarde, influenciaram um economistaalemo Schumacher que cunhou a expresso tecnologia in-termediria para designar uma tecnologia que, em funo deseu baixo custo de capital, pequena escala, simplicidade e res-peito dimenso ambiental, seria mais adequada para os pasespobres. O Grupo de Desenvolvimento da Tecnologia Apro-priada, criado por ele, e a publicao em 1973 do livro Small isbeautiful: economics as if people mattered, traduzido para mais dequinze idiomas, causaram grande impacto, tornando-o conheci-do como o introdutor do conceito de TA no mundo ocidental.

    No obstante, num plano que poderia ser considerado maispropriamente terico, vrios pesquisadores dos pases avanadospreocupados com as relaes entre a tecnologia e a sociedade jhaviam percebido o fato de que a TC, aquela tecnologia que aempresa privada desenvolve e utiliza, no adequada reali-dade dos pases perifricos. Essa preocupao pode ter sua ori-gem datada, para no ir mais longe, na preocupao dos econo-mistas neoclssicos com a questo da escolha de tcnicas ecom o preo relativo dos fatores de produo, to importan-

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    tes para a abordagem do tema do desenvolvimento econmicoem pases perifricos nos anos 1960.

    Foi de fato essa preocupao que originou a reflexo quenos anos 1970 abrangeu outras profisses: a da tecnologia inter-mediria de Schumacher ou da TA, como passou a ser mais ge-nrica e inclusivamente denominada. O movimento da TA, aoalargar a perspectiva anterior da tecnologia intermediria, queconsiderava tecnocrtica , incorporar aspectos culturais, sociaise polticos discusso e propor uma mudana no estilo de de-senvolvimento (Dagnino, 1976), avanou numa direo que nosinteressa discutir.

    Durante as dcadas de 1970 e 1980, houve grande prolife-rao de grupos de pesquisadores partidrios da idia da TA nospases avanados e significativa produo de artefatos tecnol-gicos baseados nessa perspectiva. Embora o objetivo central damaioria desses grupos fosse minimizar a pobreza nos pases doTerceiro Mundo, a preocupao com as questes ambientais ecom as fontes alternativas de energia, de forma genrica e, tam-bm, referida aos pases avanados, era relativamente freqente.

    As expresses que foram sendo formuladas tinham como ca-racterstica comum o fato de serem geradas por diferenciao TC, em funo da percepo de que esta no tem conseguidoresolver, podendo mesmo agravar, os problemas sociais e am-bientais. Cada uma delas refletia os ambientes em que emergiaa preocupao com a inadequao da TC. Algumas indicavam anecessidade de minorar essa inadequao para solucionar pro-blemas conjunturais e localizados, at que as regies ou popula-es envolvidas pudessem ser incorporadas a uma rota de de-senvolvimento tida como desejvel. Esse o caso da tecnologiaintermediria, popularizada por Schumacher.

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    Outras expresses foram criadas no interior de movimentosque, com maior grau de radicalidade, criticavam o contexto socio-econmico e poltico que emoldura a relao CTS. Por entende-rem essa inadequao como algo estrutural e sistmico, procura-vam expressar o carter alternativo em relao a esse contexto quetinha o cenrio que se desejava construir.

    A inclusividade do movimento da TA pode ser avaliada pelaquantidade de expresses, cada uma denotando alguma especi-ficidade, cunhadas para fazer referncia TA. Entre elas, ci-tam-se:

    tecnologia alternativa, tecnologia utpica, tecnologia intermedi-ria, tecnologia adequada, tecnologia socialmente apropriada, tecno-logia ambientalmente apropriada, tecnologia adaptada ao meio am-biente, tecnologia correta, tecnologia ecolgica, tecnologia limpa,tecnologia no-violenta, tecnologia no-agressiva ou suave, tecno-logia branda, tecnologia doce, tecnologia racional, tecnologia humana,tecnologia de auto-ajuda, tecnologia progressiva, tecnologia popular,tecnologia do povo, tecnologia orientada para o povo, tecnologiaorientada para a sociedade, tecnologia democrtica, tecnologia co-munitria, tecnologia de vila, tecnologia radical, tecnologia eman-cipadora, tecnologia libertria, tecnologia liberatria, tecnologia debaixo custo, tecnologia da escassez, tecnologia adaptativa, tecnologiade sobrevivncia e tecnologia poupadora de capital. Essas con-cepes, de alguma forma, tentam, na sua origem, diferenciar-se da-quelas tecnologias consideradas de uso intensivo de capital e pou-padoras de mo-de-obra, objetando-se ao processo de transfernciamassiva de tecnologia de grande escala, caracterstico dos pasesdesenvolvidos, para os pases em desenvolvimento, que podem criarmais problemas do que resolv-los (Brando, 2001, p. 13).

    Embutidas nessas concepes de tecnologia foram estabele-cidas caractersticas como: a participao comunitria no proces-so decisrio de escolha tecnolgica, o baixo custo dos produtosou servios finais e do investimento necessrio para produzi-

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    los, a pequena ou mdia escala, a simplicidade, os efeitos posi-tivos que sua utilizao traria para a gerao de renda, sade,emprego, produo de alimentos, nutrio, habitao, relaessociais e para o meio ambiente (com a utilizao de recursosrenovveis). Passou-se, enfim, a identificar a TA a um conjuntode tcnicas de produo que utiliza de maneira tima os recur-sos disponveis de certa sociedade maximizando, assim, seubem-estar (Dagnino, 1976, p. 86).

    Em funo de suas caractersticas de maior intensidade demo-de-obra, uso intensivo de insumos naturais, simplicidadede implantao e manuteno, respeito cultura e capacita-o locais etc., a TA seria capaz de evitar os prejuzos sociais (eambientais) derivados da adoo das TCs e, adicionalmente,diminuir a dependncia em relao aos fornecedores usuais detecnologia para os pases perifricos.

    O movimento da TA, embora no tivesse sido delineadodessa forma, foi uma importante inovao em termos da teoriado desenvolvimento econmico. A reduo da heterogeneidadeestrutural dos pases perifricos era entendida como deman-dando um ataque diferenciado, nas duas pontas a atrasa-da e rural e a moderna e urbana , e no algo a ser deixadoao sabor da paulatina difuso de um padro de modernidadecomo efeito de transbordamento ou de mancha de leo. Es-te, na realidade, passou a ser duramente criticado, inclusive,pela linha mais ghandiana do movimento. No plano tecnol-gico, em que imperava sem questionamento o modelo da ca-deia linear de inovao que supunha que pesquisa cientficaseguiria a tecnolgica, o desenvolvimento econmico e depoiso social, este passava a ser visto como um objetivo imediato, emsi mesmo, e no com um resultado ex post de uma reao em ca-deia catalisada pelo acmulo de massa crtica cientfica.

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    A preocupao com o desemprego abriu uma interessantelinha de investigao, lamentavelmente no perseguida com anfase devida posteriormente. Ainda que no de maneira expl-cita, a idia da TA supunha que o desemprego nos pases peri-fricos no poderia ser evitado por uma ao contrabalanadoranos setores modernos da economia. Neles no tendia a ocor-rer o mecanismo virtuoso observado nos pases centrais, ondea introduo de tecnologias de maior produtividade criava, da-da a ento relativamente baixa taxa de substituio tecnolgica,oportunidades de emprego, de remunerao freqentementesuperior, em novos ramos industriais. No seria no setor mo-derno que o combate ao desemprego poderia ser travado. O va-zamento das atividades mais intensivas em tecnologia, demaior valor adicionado e remunerao para o exterior caracte-rstica da situao de dependncia , e a escassa probabilidadede que os desempregados tecnolgicos de inadequada quali-ficao pudessem ser retreinados e reincorporados produoeram visualizados como um srio obstculo. O desemprego de-mandava um tratamento global que ia, na realidade, no sentidocontrrio ao que propunha o neoludismo imputado por seuscrticos ao movimento da TA. Tratava-se de proporcionar tecno-logias aos que no tinham acesso aos fluxos usuais pelos quaiselas se difundem.

    A preocupao com o desemprego angariou para o movimen-to da TA importantes aliados, tanto no mbito dos pases avan-ados (talvez por antever os problemas migratrios que poderiacausar) quanto no plano supranacional. Exemplo significativo o da Organizao Internacional do Trabalho (OIT), que se en-volveu com o tema, pelo menos em nvel terico, apoiandoconsidervel nmero de estudos de caso avaliando a utilizao eo desenvolvimento de TA realizados principalmente na sia

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    e na frica. Eles mostraram o melhor desempenho das tecno-logias intensivas em mo-de-obra em termos de seu impactosocial e econmico.

    Talvez tenham sido esses aliados externos, mais do que osquase inexistentes estmulos internos, os responsveis pelasescassas pesquisas cientficas e tecnolgicas em TA desen-volvidas por pesquisadores dos pases perifricos com maiorsensibilidade social. Deve-se reconhecer que, embora ingnua emseu pressuposto, e apesar de pouco coerente com o mainstream,a idia da TA dava vazo ao compromisso social e busca deoriginalidade na seleo de temas de pesquisa de um segmentoda comunidade de pesquisa desses pases.

    As crticas ao movimento da TA

    A maior parte das crticas feitas TA foi formulada a partirde uma posio fundamentada nas idias da neutralidade dacincia e do determinismo tecnolgico criticadas no item destecaptulo dedicado contribuio proveniente da filosofia datecnologia. Por entenderem a cincia como uma incessante einterminvel busca da verdade livre de valores e a tecnologiacomo tendo uma evoluo linear e inexorvel em busca da efi-cincia, os crticos da TA no podiam perceber seu significado.Em vez de entend-la como o embrio de uma superao dopessimismo da Escola de Frankfurt e da miopia do marxismooficial, eles a visualizavam como uma ridcula volta ao passado(Novaes e Dagnino, 2004).

    Se desconsiderarmos esse tipo de crtica, e buscarmos no ou-tro extremo uma formulao baseada num questionamento neutralidade do determinismo tecnolgico, vamos encontrarDavid Dickson (1978), sem dvida o autor que mais longe foina crtica TC e na proposio de uma viso alternativa. Em

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    seu livro Tecnologia alternativa, argumenta que os problemascontemporneos associados tecnologia provm no apenas dosusos para os quais empregada, mas tambm de sua prprianatureza. A tecnologia cumpriria uma dupla funo: no nvelmaterial, mantm e promove os interesses dos grupos sociaisdominantes na sociedade em que se desenvolve; no nvel sim-blico, apia e propaga a ideologia legitimadora desta socieda-de, sua interpretao do mundo e a posio que nele ocupam.

    Sua aguda crtica viso determinista que apregoa a superio-ridade da TC bem caracterizada neste trecho:

    A partir da Revoluo Industrial, e particularmente durante os l-timos cinqenta anos, passou a ser geralmente aceito o fato de queuma tecnologia em contnuo desenvolvimento a nica que oferecepossibilidades realistas de progresso humano. O desenvolvimentotecnolgico, que inicialmente consistiu na melhora das tcnicasartesanais tradicionais, e que posteriormente se estendeu aplicaodo conhecimento abstrato aos problemas sociais, prometeu conduzira sociedade pelo caminho que leva a um prspero e brilhante futuro.O desenvolvimento da tecnologia tem servido inclusive como in-dicador do progresso geral do desenvolvimento social, fazendo comque se tenda a julgar as sociedades como avanadas ou atrasadassegundo seu nvel de sofisticao tecnolgica (Dickson, 1978).

    Criticando a idia de linearidade, que interpreta a mudanasocial como determinada pela mudana tcnica, ele mostra co-mo ela se relaciona a uma equivocada assimilao entre a his-tria da civilizao e a histria da tecnologia. Segundo ele,

    a histria da civilizao, com sua viso unidimensional de progresso,implica que as sociedades podem ser consideradas primitivas ouavanadas segundo seu nvel de desenvolvimento tecnolgico. Essainterpretao encontra-se na base de quase todas as investigaesculturais e antropolgicas levadas a cabo at os primeiros anos denosso sculo, e ainda a mais utilizada para indicar nveis de de-

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    senvolvimento (tambm a descrio mais popular nos livros detextos escolares, assegurando deste modo que essa interpretaoseja mantida pelo sistema educacional). O modelo implcito deevoluo social baseado freqentemente no conceito de deter-minismo tecnolgico, isto , a idia de que o desenvolvimentosocial se encontra determinado quase inteiramente pelo tipo detecnologia que uma sociedade inventa, desenvolve, ou que nela introduzido.

    Uma das crticas ao movimento da TA, nem todas despro-vidas de segundas intenes, era a de que ela deveria ser con-siderada mais um resultado de um sentimento de culpa depesquisadores e empresrios aposentados do Primeiro Mundodo que uma iniciativa capaz de alterar significativamente asituao que denunciava. De fato, a imensa maioria dos gruposde pesquisadores de TA est situada nos pases do PrimeiroMundo, tendo sido muito escassa a incidncia de seu trabalhonas populaes do Terceiro Mundo. Tambm foi escassa a parti-cipao da comunidade de pesquisa desses pases (com exceoda ndia) nesse movimento.

    Essa crtica sugere o que talvez tenha sido (e continue sen-do) sua principal debilidade: o pressuposto de que o simplesalargamento do leque de alternativas tecnolgicas disposiodos pases perifricos poderia alterar a natureza do processo (edos critrios capitalistas) que preside adoo de tecnologia.Mesmo sem acatar o determinismo marxista do movimento daTA que postularia que o desenvolvimento das foras produ-tivas incapaz de transformar as relaes sociais de produoquando no acompanhado por uma mudana poltica to signi-ficativa como a que implica a destruio do capitalismo, possvel mostrar a fragilidade daquele pressuposto.

    Defensores de TA no compreenderam por que o desenvol-vimento de tecnologias alternativas era uma condio apenas

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    necessria e no suficiente para sua adoo pelos grupos so-ciais que pretendiam beneficiar. Em conseqncia, no foramcapazes de conceber processos de gerao e difuso de conheci-mentos alternativos aos usuais que pudessem, por meio do en-volvimento dos atores sociais interessados na mudana de estilode desenvolvimento que propunham, fazer com que a TA fosse,de fato, adotada e, muito menos, que tais processos fossem seincorporando, como fora motora, num movimento auto-susten-tado semelhante ao que caracteriza a TC (Herrera, 1983).

    No obstante, assim como outros aspectos normativos domovimento da TA, o tratamento do problema do desempregoque propugnava supunha reformas no modelo de acumulaocapitalista perifrico que, ainda que no fossem radicais, noeram aceitas pelos interesses dominantes. Da talvez seu escas-so significado para a poltica de cincia & tecnologia (PCT) la-tino-americana (Dagnino, 1998).

    O pluralismo tecnolgico defendido pelo movimento foipercebido por crticos da esquerda como sintoma de seu conser-vadorismo, na medida em que estaria apenas propondo umdown grading da TC, o qual seria, em ltima instncia, funcio-nal aos interesses de longo prazo dos que apoiavam as estrutu-ras de poder injustas que predominavam no Terceiro Mundo.Essa funcionalidade para o modelo de acumulao capitalistados pases perifricos seria conseqncia do fato de que, aopermitir o aumento da produo e o barateamento da fora detrabalho, amenizava a j preocupante marginalizao social eatenuava o desemprego estrutural socialmente explosivo. Dadoque era fundamental para aqueles interesses a manuteno dabaixa remunerao dos trabalhadores no-qualificados deman-dados pela expanso do modelo urbano-industrial implemen-tado, o qual, no limite, poderia ser inviabilizado pela reduodo xodo rural que as TAs causariam, o movimento da TA so-freu um processo de desqualificao e at ridicularizao.

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    conveniente ressaltar que, embora centrada no objetivode desenvolvimento social, sua postura era defensiva, adaptati-va e no-questionadora das estruturas de poder dominantes nosplanos internacional e local. No propunha, ao contrrio do quealegavam seus crticos, uma generalizao miserabilista, ra-dical e retrgrada do emprego de TA. Este era propugnadonos setores atrasados, aos quais as TCs no chegavam ou,quando o faziam, resultavam em evidentes distores sociais eeconmicas. A, sim, a TA se colocava como uma alternativa TC. Mais do que isso, seu emprego poderia levar criao deuma dinmica de difuso semelhante dominante, que tinha osetor moderno como foco, mas que partindo do setor atrasa-do iria encontr-la na fronteira entre eles.

    O movimento da TA teve algum impacto, se no na imple-mentao, pelo menos na formulao da PCT dos governoslatino-americanos (Dagnino, 2004). A necessidade de geraode postos de trabalho que demandassem um investimento menordo que o associado s TCs, sobretudo nos setores mais atrasa-dos (produtores de bens que satisfazem necessidades bsicas),era corretamente apontada como prioritria nos planos de gover-no. Apesar disso, pouco se avanou alm do discurso freqente-mente demaggico dos governos autoritrios da regio, politi-camente comprometidos que estavam em afastar qualquer ameaaaos interesses imediatistas das elites locais.

    As contribuies para o marco analtico-conceitual da TS

    O movimento de TA perde momentum no incio dos anos1980, no por acaso, quando se verifica a expanso em todo omundo do pensamento neoliberal. O fato de o neoliberalismoexcluir por definio a idia de projeto, e mais ainda a consi-

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    derao de um que envolvia a desconstruo e a negao de umde seus pilares a TC como forma de elaborao de um estiloalternativo de desenvolvimento, parece eximir-nos de maiorescomentrios.

    Duas questes merecem destaque para contextualizar ereemergncia de temas relacionados TS num pas perifricocomo o Brasil, no bojo de movimentos como o das Redes de Eco-nomia Solidria (RESs), o das Incubadoras Tecnolgicas deCooperativas Populares (ITCPs), que j abrange quase qua-renta universidades brasileiras, o das empresas recuperadas, odos empreendimentos autogestionrios, que tm na RTS umapossibilidade de integrao.

    Por um lado, o cenrio poltico que, em nvel internacional,manifestou-se por um processo de globalizao unipolar quefavorece os detentores do capital nas economias avanadas epenaliza os pases perifricos, e, em nvel nacional, por umprojeto de integrao subordinada e excludente que agrava nos-so particularmente desigual e predatrio estilo de desenvol-vimento. Nesse cenrio, e talvez porque para muitos que co-meam a pr em prtica um outro projeto j esteja clara suainviabilidade, natural que se difundisse a preocupao com asbases tecnolgicas de um processo que permita a recuperaoda cidadania dos segmentos mais penalizados, a interrupo datrajetria de fragmentao social e de estrangulamento econ-mico interno do pas e a construo de um estilo de desenvol-vimento mais sustentvel. De fato, atores situados ao longo deum amplo espectro de interesses e vises ideolgicas, a exem-plo dos que participam da RTS, passam a se somar a esses mo-vimentos.

    Por outro lado, cabe destacar como, em casos relacionados aoambiente econmico e tecnolgico criado com a difuso do

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    neoliberalismo, foram surgindo desenvolvimentos tericos queparecem aportar elementos para o processo de elaborao domarco analtico-conceitual hoje disponvel para a formulao deum conceito de TS capaz de conferir RTS algumas das ca-ractersticas que demanda.

    Esta seo apresenta nossa interpretao acerca de como po-de ser entendido o processo de construo do marco analtico-conceitual da TS (daqui em diante, simplesmente, marco daTS). O detalhe com que se explora essa questo se deve preo-cupao de evitar o ocorrido no passado, quando conceitos se-melhantes foram engendrados sem adequadas contextualizaohistrico-social e reflexo terica, restringindo-se por isso achance de sucesso dos movimentos aos que serviram de base.

    Nesse sentido, e sem que se discuta a superioridade da ex-presso tecnologia social como uma marca que identifica ospropsitos da RTS, consideramos que ela no deve e nemprecisa ser entendida como um conceito. Na verdade, o im-portante que os elementos constitutivos do marco da TS pro-porcionados pelos desenvolvimentos simbolizados na figura 1sejam de fato incorporados ao processo de consolidao da rede.

    A teoria da inovao: a negao deoferta e demanda e a inovao social

    A contribuio da teoria da inovao fundamental para asuperao de alguns dos defeitos do modelo cognitivo queserviu de substrato para o movimento da TA. Ele critica opouco realismo e aplicabilidade do modelo de oferta e deman-da para tratar questes relativas ao produto conhecimento eprope uma perspectiva baseada na interao de atores no m-bito de um processo de inovao, tal como a estilizada pelateoria da inovao. Ademais, mostra como o conceito de inova-

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    o pode ser entendido de uma forma distinta daquela para aqual foi concebido, dando lugar ao conceito de inovao socialmais adaptado viso de TS.

    Foi, tambm, pouco realista a idia de que a tecnologiaalternativa poderia ser produzida por pessoas que, por partilha-rem dos valores e objetivos que impregnam o cenrio desejvelde maior eqidade, fossem capazes de abandonar procedimen-tos tcnicos profundamente arraigados e alterar procedimentosde concepo (ou de construo sociotcnica) para atender aespecificaes distintas das que do origem s TCs.

    Mas a suposio adicional, de que esses cientistas e tecn-logos bem-intencionados pudessem posteriormente transferir atecnologia gerada para um usurio que a demandasse, tam-bm pouco plausvel luz da teoria da inovao. De fato, a ino-vao supe um processo em que atores sociais interagem desdeum primeiro momento para engendrar, em funo de mltiploscritrios (cientficos, tcnicos, financeiros, mercadolgicos,culturais etc.), freqentemente tcitos e s vezes proposital-mente no-codificados, um conhecimento que eles mesmos voutilizar, no prprio lugar (no caso, a empresa) em que vo serproduzidos os bens e servios que iro incorpor-lo.

    Na realidade, mesmo que o produto pudesse ter seus atri-butos a priori especificados e por isso pudesse ser produzido exante, dificilmente poderia ser transferido e utilizado por outraspessoas com culturas diferentes em ambientes muito distintosdaquele onde foi concebido e com um grau de heterogenei-dade muito maior do que aquele que existe nos empreendi-mentos que utilizam a TC. Se a idia de oferta e demandatem sido abandonada como modelo descritivo e normativo dadinmica que preside TC nas empresas privadas, e substitu-da pela idia de inovao, que dizer da TS?

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    O modelo usualmente utilizado para entender a tecnologianos levaria a conceber a TS como um produto-meta a ser de-senvolvido por uns, nos ambientes em que usualmente se per-seguem resultados de pesquisa, e oferecido, numa espciede mercado de TS, a outros que, supe-se, encontram-se dis-postos a demandar esses resultados. A contribuio da teoriada inovao, ao contrrio, permite entender que a tecnologia e especialmente, pelas suas caractersticas, a TS s se cons-titui como tal quando tiver lugar um processo de inovao, umprocesso do qual emerja um conhecimento criado para atenderaos problemas que enfrenta a organizao ou grupo de atoresenvolvidos. De fato, mesmo nos ambientes mais formalizadosda TC e das empresas, tem-se mostrado como relativamentepouco importante que esse conhecimento seja resultante de al-guma pesquisa previamente desenvolvida, sobretudo se ela sedeu sem a participao daqueles que efetivamente iro comer-cializar os produtos que a tecnologia permitir fabricar.

    Da mesma forma e pelas mesmas razes que a teoria da ino-vao entende cada processo de difuso ou transferncia de umadada tecnologia em uma dada empresa como um processo deinovao com caractersticas particulares, cabe considerar o queno jargo dos participantes da RTS se denomina reaplicaocomo um processo especfico com aspectos distintivos, pr-prios, dado pelo carter do contexto sociotcnico que conota arelao que se estabelece entre os atores com ela envolvidos.

    Ao ser o resultado de um casamento previamente existenteentre a oferta e a demanda assegurado por um novo modode elaborao de projetos de pesquisa,3 a TS poderia prescindirde certificao ou controle de qualidade. Isso porque essas ati-

    3 Algo semelhante ao que estudiosos da relao universidade-empresa tmdenominado modo 2 (Nowotny, Scott e Gibbons, 2001).

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    vidades so demandadas, num determinado processo produti-vo, porque existem fases de produo claramente definidas eso distintos os atores por elas responsveis.

    Assim, entendida como um processo de inovao a ser le-vado a cabo, coletiva e participativamente, pelos atores interes-sados na construo daquele cenrio desejvel, a TS se aproxi-ma de algo que se denominou, em outro contexto, inovaosocial (Dagnino e Gomes, 2000). O conceito de inovao social,entendido ali a partir do conceito de inovao concebido co-mo o conjunto de atividades que pode englobar desde a pes-quisa e o desenvolvimento tecnolgico at a introduo de novosmtodos de gesto da fora de trabalho, e que tem como obje-tivo a disponibilizao por uma unidade produtiva de um novobem ou servio para a sociedade , hoje recorrente no meio aca-dmico e cada vez mais presente no ambiente de policy making.Esse conceito engloba, portanto, desde o desenvolvimento de umamquina (hardware) at um sistema de processamento de infor-mao (software) ou de uma tecnologia de gesto organizao ougoverno de instituies pblicas e privadas (orgware).

    Merecem destaque as condies em que, no Primeiro Mun-do, o conceito de inovao foi cunhado e passa a ter como obje-tivo primordial a competitividade dos pases. L onde surgeo novo paradigma tecnoeconmico baseado na eletroeletrnica,onde um Estado de bem-estar garante um nvel razovel dedesenvolvimento social, onde o trmino da Guerra Fria acirra aconcorrncia intercapitalista e onde o crescimento depende dasoportunidades de exportao e, portanto, da competitividade(sempre entendida em relao ao exterior).

    O conceito de sistema nacional de inovao foi cunhadonesses pases como um modelo descritivo de um arranjo societaltpico do capitalismo avanado arranjo no qual uma teia deatores densa e completa gera, no interior de um ambiente sis-

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    tmico propcio proporcionado pelo Estado, sinais de relevn-cia que levam ao estabelecimento de relaes virtuosas entrepesquisa e produo, inovao nas empresas e competitivi-dade do pas. Posteriormente se transforma num modelo nor-mativo para que esses pases, ao mesmo tempo semelhantes noplano socioinstitucional e complementares no econmico, orien-tem seus governos e grandes empresas em busca da competi-tividade.

    Algo parecido ocorreu, tambm, nos pases perifricos comoo Brasil, onde se tentou emular a criao de sistemas nacionais(e locais) de inovao em busca da competitividade, como seexistissem aquelas condies e aquele arranjo societal (Dagninoe Thomas, 2001). O conceito de sistema aqui utilizado numsentido francamente prescritivo (ou normativo). Isto , como umarranjo a ser construdo mediante aes coordenadas e pla-nejadas, de responsabilidade de um tipo particular de Estadoque, sem pretender substituir e sim alavancar uma incipienteteia de atores ainda incapaz de gerar fortes sinais de relevncia,promova o estabelecimento de relaes virtuosas entre pesqui-sa e produo e um tipo particular de inovao.

    O conceito de inovao social usado em Dagnino e Gomes(2000) para fazer referncia ao conhecimento intangvel ouincorporado a pessoas ou equipamentos, tcito ou codificado que tem por objetivo o aumento da efetividade dos processos,servios e produtos relacionados satisfao das necessidadessociais. Sem ser excludente em relao ao anterior, refere-se aum distinto cdigo de valores, estilo de desenvolvimento, pro-jeto nacional e objetivos de tipo social, poltico, econmico eambiental. Como o anterior, o conceito de inovao socialengloba trs tipos de inovao: hardware, software e orgware.4

    4 Mantivemos os anglicismos porque no nos parece valer a pena cunhar ou-tros termos.

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    A abordagem sociotcnica

    A abordagem sociotcnica, e em especial o processo de cons-truo sociotcnica, um elemento central do conceito deadequao sociotcnica, apresentado mais adiante. E este,como se ver, tem significativa importncia para conceber exi-tosos processos de desenvolvimento de TS. Ao transcender aviso esttica e normativa de produto previamente especi-ficado que caracteriza os conceitos de TA, e ao destacar a ne-cessidade de iniciar um processo nas condies dadas peloambiente especfico onde ele ter de ocorrer, a adequao socio-tcnica confere ao marco da TS maior solidez e eficcia.

    Agrupamos sob essa denominao a perspectiva que se di-fundiu nas duas ltimas dcadas influenciada pela viso cons-trutivista surgida no mbito da nova sociologia da cincia. Privi-legiando a observao de processos que ocorrem no micronvelcom categorias e ferramentas analticas tpicas dos estudos decaso, essa perspectiva foi responsvel pela conformao de umnovo campo de estudos sobre a tecnologia: a sociologia da tec-nologia ou sociologia da inovao (Aguiar, 2002). Nela agrupa-mos trs contribuies baseadas nos conceitos de sistemastecnolgicos, de Thomas Hughes, de ator-rede, associada a Mi-chael Callon, Bruno Latour e John Law, e de construtivismo so-cial da tecnologia, dos socilogos da tecnologia Wiebe Bijker eTrevor Pinch que tm em comum a inteno de abrir acaixa-preta da tecnologia e a metfora que situa a tecnologiajunto sociedade, poltica e economia conformando umtecido sem costuras (Hughes, 1986). Coerentemente, elas senegam a identificar relaes de causalidade monodirecionaisentre o social e o tecnolgico e buscam uma alternativa aoque consideram a tenso paralisante entre o determinismotecnolgico e o determinismo social, incapazes de dar conta da

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    complexidade da mudana tecnolgica. Seu argumento central o de que a tecnologia socialmente construda por grupos so-ciais relevantes no mbito do tecido sem costuras da socie-dade.

    A abordagem do ator-rede, extrapolando o conceito conven-cional de ator, cunha tal expresso para abarcar um conjuntoheterogneo de elementos animados e inanimados, naturaisou sociais que se relacionam de modo diverso, durante umperodo de tempo suficientemente longo, e que so respon-sveis pela transformao incorporao de novos elementos,excluso ou redefinio de outros, reorientao das relaes ou consolidao da rede por eles conformada (Callon, 1987).Esse conjunto de elementos estaria, ento, formado no apenaspelos inventores, pesquisadores e engenheiros, mas tambm pe-los gerentes, trabalhadores, agncias de governo, consumidores,usurios envolvidos com a tecnologia e, mesmo, os objetos ma-teriais (Latour, 1992). Seria ento o tratamento desse novoobjeto de estudo que no admite uma hierarquia que postulea priori uma relao monocausal o acionar do ator-rede , e noda sociedade propriamente dita, nem sequer das relaes so-ciais, o que permitiria entender como se vo conformando si-multaneamente a sociedade e a tecnologia. As redes so entoentendidas como conformadas pela prpria estrutura dos artefa-tos que elas criam e que proporcionam uma espcie de plata-forma para outras atividades.

    A observao emprica, caso a caso, dos interesses, negocia-es, controvrsias, estratgias associados aos elementos huma-nos, assim como dos aspectos relativos aos demais elementosno-humanos e de sua correspondente resistncia e fora relati-va, seria o ponto de partida para entender a dinmica de umasociedade em que as consideraes sociolgicas e tcnicasestariam inextricavelmente ligadas.

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    A abordagem do construtivismo social, tambm conhecidacomo o enfoque da construo social da tecnologia, a que de-senvolveremos com mais detalhes. O construtivismo surgiu emassociao com as abordagens do sistema tecnolgico e ator-rede, tendo em vista as redes que expem as relaes entre osatores sociais e os sistemas tcnicos. Sua origem a sociologiada cincia que, a partir dos anos 1980, passa a se ocupar tam-bm da tecnologia como objeto de estudo no mbito do Pro-grama Forte de Edimburgo (Bloor, 1998).

    A tese central do construtivismo, que comea a se estabe-lecer em 1984, a de que o caminho que vai de uma idia bri-lhante a uma aplicao bem-sucedida longo e sinuoso, entre-meado com alternativas inerentemente viveis, que foramabandonadas por razes que tm mais a ver com valores e inte-resses sociais do que com a superioridade tcnica intrnseca daescolha final.

    As tecnologias e as teorias no estariam determinadas porcritrios cientficos e tcnicos. Haveria geralmente um exce-dente de solues factveis para qualquer problema dado e se-riam os atores sociais os responsveis pela deciso final acercade uma srie de opes tecnicamente possveis. Mais do que is-so: a prpria definio do problema freqentemente mudaria aolongo do processo de sua soluo.

    As tecnologias seriam construdas socialmente na medida emque os grupos de consumidores, os interesses polticos e outrossimilares influenciam no apenas a forma final que toma a tec-nologia, mas seu contedo. Os fundadores do construtivismo Bijker e Pinch ilustram esse argumento com a histria de umconhecido artefato tecnolgico: a bicicleta. Trata-se de um ob-jeto que, como tantos outros, seria hoje visualizado como umacaixa-preta. De fato, comeou sua existncia com formas

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    muito distintas, que iam desde um equipamento esportivo atum veculo de carga. Sua roda dianteira mais alta, necessrianaquele tempo para alcanar maior velocidade (a fora de traoera exercida diretamente na roda dianteira) numa bicicleta usa-da como equipamento esportivo, causava instabilidade, numabicicleta empregada como veculo de transporte, ou descon-forto para as mulheres com longos vestidos (Pinch e Bijker,1990).

    Em sua forma final, observa-se que rodas de igual tamanhoforam sendo paulatinamente adotadas visando segurana emdetrimento da velocidade. No obstante, durante certo pe-rodo, os dois projetos que atendiam a necessidades diferentesconviveram lado a lado. Essa temporria ambigidade do ar-tefato tecnolgico bicicleta foi chamada de flexibilidade inter-pretativa. Tal conceito aponta para o fato de que significadosradicalmente distintos de um artefato podem ser identificadospelos diferentes grupos sociais relevantes, que outorgam sen-tidos diversos ao objeto de cuja construo participam. Isso nosignifica que eles no compartilhem um significado especial doartefato: aquele que utilizado para referenciar as trajetriasparticulares do desenvolvimento que ele percorre.

    Por isso identificar e seguir os grupos sociais relevantesenvolvidos no desenvolvimento de um artefato o ponto departida das pesquisas realizadas pela abordagem do contextoque consideraram a possibilidade de a tecnologia ser uma cons-truo social, e no o fruto de um processo autnomo, end-geno e inexorvel como concebe o determinismo.

    A metfora do tecido sem costura, comum a outras aborda-gens sociotcnicas, origina no mbito do construtivismo o con-ceito de conjunto (ensemble) sociotcnico. Ele denota os arranjosentre elementos tcnicos e sociais que do como resultado uma

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    outra entidade, algo mais do que a simples soma desses ele-mentos, que se converte num novo objeto de estudo emprega-do para explicar tanto a condio tecnolgica da mudana socialquanto a condio social da mudana tecnolgica. Ao relacionaro ambiente social com o projeto de um artefato, cria um marcode significado aceito pelos vrios grupos sociais envolvidos naprpria construo do artefato, que guia sua trajetria de desen-volvimento. Ao mesmo tempo, explica como o ambiente socialinfluencia o projeto de um artefato e como a tecnologia exis-tente influencia o ambiente social.

    O processo de construo sociotcnica, pelo qual artefatostecnolgicos vo tendo suas caractersticas definidas por meio deuma negociao entre grupos sociais relevantes, com prefern-cias e interesses diferentes, depois de passar por uma situaode estabilizao chegaria a um estgio de fechamento (Bijker,1995). Nesse estgio diminui drasticamente a flexibilidade in-terpretativa, e alguns significados originais desaparecem. Damultiplicidade de vises iniciais emerge um consenso entre osgrupos sociais relevantes que reduz a possibilidade de umainovao radical.

    Isso no significa que no projeto mais seguro, ganhador,da bicicleta, que alm de rodas de igual tamanho apresentavasolues tecnolgicas particulares, no se tenham introduzidoinovaes posteriores. Apesar de incrementais, elas levaram aum projeto muito distinto do original. Se no olharmos o pro-duto final em perspectiva, teremos a falsa impresso coe-rente com o determinismo de que o modelo de roda alta erauma etapa inicial, tosca e menos eficiente, de um desenvolvi-mento progressivo. De fato, os dois modelos conviveram duran-te anos e um no pode ser visto como uma etapa de um desen-volvimento linear que conduziu ao outro. O modelo de roda

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    alta era na verdade a origem de um factvel caminho alternati-vo para o desenvolvimento da bicicleta.

    As maneiras diferentes como os grupos sociais interpretam eutilizam um objeto tcnico (a bicicleta, no caso) no lhe so ex-trnsecas. Produzem, ao longo de seu processo de construosociotcnica, mudanas na natureza dos objetos. O que o objetosignifica para o grupo mais poderoso (um equipamento esporti-vo ou um meio de transporte?) determina o que vir a ser quan-do for reprojetado e melhorado (segundo a percepo domi-nante) atravs do tempo. Por essa razo, s possvel entendero desenvolvimento de um artefato tecnolgico estudando ocontexto sociopoltico e a relao de foras entre os diversosgrupos com ele envolvidos.

    A teoria crtica da tecnologia

    Partindo do mesmo tipo de postura em relao TC queadotou o movimento da TA, mas segundo orientao discipli-nar prxima da filosofia da tecnologia, Andrew Feenberg(1999, 2002) explora uma linha de argumentao radical (nosentido etimolgico original: de ir raiz da questo) que nosleva a uma agenda propositiva e concreta sobre como os parti-drios da TS deveriam atuar a fim de potencializar seu desen-volvimento e crescente adoo. Para tanto, retoma um debatecentrado na crtica viso do marxismo tradicional acerca datecnologia que havia ficado parado nos anos 1970 em meio aoenfrentamento entre a linha sovitica e a chinesa de construodo socialismo (Novaes e Dagnino, 2004). Embora outros autorestenham participado desse debate (inclusive o j citado DavidDikson), devido interlocuo que mantm com interpreta-es de grande impacto no meio acadmico, como a da Escolade Frankfurt e a do construtivismo, e a perspectiva inovadora eabarcante de sua contribuio, vamos nos limitar contribuiode Feenberg, concentrando-nos nos dois livros indicados.

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    A forma como Andrew Feenberg aborda a relao CTS su-gere a existncia de uma interlocuo, ainda que nem sempreexplicitada, com a viso da construo social da tecnologia. Talinterlocuo pode ser entendida como uma paulatina politiza-o no macronvel de anlise da trajetria explicativa propostapor essa viso, no sentido da explicitao do contedo de classeque medeia essa relao e que inclusive pela opo metodol-gica que faz por um micronvel de anlise fica obscurecida.

    Um aporte do marxismo idia da construo social da tec-nologia poderia comear com a importncia que este confere aoconceito de grupo social relevante e ao conceito de flexibilida-de interpretativa, que termina por outorgar um sentido espec-fico e consoante com seus interesses ao objeto em construoquando do estgio de fechamento. Se associarmos o conceitode elite de poder (Ham e Hill, 1993) ao de grupo social rele-vante, particularizando seu campo de abrangncia para o que oconstrutivismo social denomina marco tecnolgico que vin-cula o ambiente social ao processo de concepo de um artefato, talvez seja possvel estabelecer uma relao analiticamenteprodutiva com a interpretao marxista moderna da relao CTS(Dagnino, 2002b).

    O construtivismo, ao argumentar que o desenvolvimentotecnolgico envolve conflito e negociao entre grupos sociaiscom concepes diferentes acerca dos problemas e solues, de-safia a viso at ento fortemente dominante entre os estudio-sos da dinmica tecnolgica. A partir da crtica que faz, a esco-lha de cada engrenagem ou alavanca, a configurao de cadacircuito ou programa no podiam mais ser entendidos como de-terminados somente por uma lgica tcnica inerente, e sim poruma configurao social especfica que serve de unidade eescolha.

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    Feenberg, pautando-se principalmente na interpretao doconstrutivismo, e insatisfeito com a viso pessimista da Escolade Frankfurt de que s um deus pode nos salvar da catstrofetecnocultural que a tecnologia capitalista tende a provocar,formula o que ele chama de teoria crtica da tecnologia. Paracaracterizar o modo como se d sua interlocuo com o cons-trutivismo, apresentamos detalhadamente alguns dos conceitoscentrais que ele utiliza.

    O primeiro o de subdeterminao, que se baseia na idiade que nem todos os processos sociais cumulativos de longoprazo de maturao se do em funo de imperativos funcio-nais. Exemplos disso, analisados pela teoria econmica, so asexpectativas inflacionrias, as profecias autocumpridas dos mer-cados financeiros, o efeito de bola-de-neve que ocorre quandocomea a cair o preo de propriedades urbanas. Pinch e Bijker(1990), ao apontarem que, quando existe mais de uma soluopuramente tcnica para um problema, a escolha entre elas tor-na-se ao mesmo tempo tcnica e poltica, sugerindo que as im-plicaes polticas da escolha passaro a estar incorporadas natecnologia que dela resulta, implicitamente aceitam a idia desubdeterminao.

    Outro conceito central presente na explicao de Feenberg(1999) sobre a relao entre tecnologia e sociedade o de podertecnocrtico, relativo capacidade de controlar decises denatureza tcnica. A origem do poder tecnocrtico estaria nasubstituio das tcnicas e da diviso de trabalho tradicionaisengendradas durante a emergncia do capitalismo poder quefunda um novo tipo de organizao (a empresa) e cria, dentrodesse capitalismo nascente, um novo lugar na diviso de traba-lho: o lugar do empresrio-capitalista e, depois, o do gerente eo do engenheiro. O resultado cumulativo da introduo de m-todos e tcnicas que reforam o controle do capitalista sobre o

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    processo de trabalho a tendncia desqualificao crescentedo trabalho e do trabalhador direto e a mecanizao, a qualvem a consolidar o poder dos capitalistas nas novas foras de or-ganizao social que criaram.

    Por ser o resultado de um processo tendencial e contingen-te, ainda que despossudo de um fundamento (direcionalidade)preciso, o conceito de poder tecnocrtico pode ser entendidocomo aparentado ao de subdeterminao. de forma coe-rente com essa viso que Feenberg interpreta a maneira comoo capitalismo atua em relao ao processo de seleo tcnica.Segundo ele, a explicao j estava presente na obra de Marx,na qual h em algumas passagens argumentos que do a enten-der que a escolha entre alternativas tcnicas feita no emfuno de critrios tcnicos, mas sociais. No volume I de O ca-pital, Marx afirma, baseado na anlise que realizou da mudanatcnica que ocorria na Inglaterra: Poder-se-ia escrever todauma histria dos inventos que, a partir de 1830, surgiram ape-nas como armas do capital contra os motins operrios (Marx,1996).

    Essa passagem sugere uma questo importante: ao introdu-zir inovaes, o capitalista no estaria buscando s a acumulaode capital, mas tambm o controle do processo de produo nointerior da empresa. Suas decises tcnicas seriam tomadascom o objetivo de reforar seu poder e manter sua capacidadede tomar, no futuro, decises semelhantes.

    Generalizando, para trazer ao campo de nossa preocupao acrtica do marxismo contemporneo ao socialismo real, poder-se-ia entender a degenerescncia burocrtica como o resultadoda utilizao, num contexto em que os meios de produo j noeram propriedade privada e no existiam relaes fabris de assa-lariamento, de uma tecnologia que no podia prescindir docontrole do capitalista sobre a produo. Isso teria levado cria-

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    o de seu sucedneo o burocrata do socialismo sovitico quecedo se apoiaria no controle do processo produtivo no cho-de-fbrica que lhe era outorgado para auferir benefcios polticos eeconmicos no macronvel, dando origem s tristemente cle-bres nomenclaturas. Nessa interpretao, a posse da iniciativatcnica (ou o controle das decises de natureza tcnica) tem umpoder de determinao semelhante e complementar posse docapital. Ela o que assegura ao capitalista seu lugar privilegia-do como classe na pirmide socioeconmica e de poder po-ltico na sociedade capitalista.

    A manuteno do controle tcnico no seria ento o efeitode um imperativo tecnolgico, mas da maximizao do poder declasse sob as circunstncias especiais de sociedades capitalistas.Essa situao permite entender o modo especfico pelo qual sed o conflito social na esfera tcnica: se alternativas tecnicamen-te comparveis tm implicaes distintas em termos da distri-buio do poder, e se ocorre alguma disputa entre trabalhadorese capitalistas (ou seus representantes tcnicos, os engenheiros),tende a ser escolhida aquela que favorece o controle do processopor estes ltimos.

    Embora um tanto distante da situao que nos envolve, emque o que est em discusso a necessidade de contar comuma TS capaz de alavancar um estilo alternativo de desenvol-vimento, esse tipo de reflexo guarda com ela uma semelhana,uma vez que a TC tende a dificultar sua construo.

    Outro conceito importante na trajetria explicativa desen-volvida por Feenberg (1999) o de autonomia operacional,usado para descrever esse processo de acumulao do poder eque denota tanto os agentes como as estruturas sociais nele en-volvidas. Esse processo iterativo de seleo entre alternativastcnicas viveis de maneira a maximizar a capacidade de inicia-tiva tcnica, que leva preservao e ampliao da autonomia

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    operacional na empresa e da hegemonia na sociedade como umtodo, estaria no ncleo do cdigo tcnico capitalista.

    Outro conceito indeterminismo usado para apontar aflexibilidade e a capacidade de adaptao a demandas sociaisdiferentes que possuem os sistemas tcnicos. Esse conceito,que num certo sentido ope-se aos anteriores e abre uma pers-pectiva especialmente importante para esta discusso, permiteexplicar por que o desenvolvimento tecnolgico no unilineare, ao contrrio, pode se ramificar em muitas direes e prosse-guir ao longo de mais de uma via.

    A importncia poltica da posio de Feenberg clara: seexistem sempre muitas potencialidades tcnicas que se vomanter inexploradas, no so os imperativos tecnolgicos osque estabelecem a hierarquia social existente. A tecnologia pas-sa ento a ser entendida como um espao da luta social no qualprojetos polticos alternativos esto em pugna, e o desenvolvi-mento tecnolgico delimitado pelos hbitos culturais enraiza-dos na economia, na ideologia, na religio e na tradio. O fatode esses hbitos estarem to profundamente arraigados na vidasocial a ponto de se tornarem naturais, tanto para os que sodominados como para os que dominam, um aspecto da distri-buio do poder social engendrado pelo capital que sanciona ahegemonia como forma de dominao.

    As tecnologias efetivamente empregadas seriam seleciona-das, entre as muitas configuraes possveis, segundo um pro-cesso pautado pelos cdigos sociotcnicos estabelecidos pela cor-relao de foras sociais e polticas que delimitam o espao desua consolidao. Os conceitos apresentados permitem enten-der por que a tecnologia, uma vez estabelecida ou fechada(no jargo do construtivismo), passa a validar materialmente es-ses cdigos sociotcnicos.

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    Uma maneira simples de situar o conjunto de aspectos cons-titutivos da teoria crtica no mbito das perspectivas que se ex-pressam em nossa sociedade sobre o tema se d mediante umplano dividido em quatro quadrantes por dois eixos onde se re-presenta a posio dessas perspectivas em relao a duas ques-tes fundamentais: a da neutralidade e a do determinismo. Nafigura a seguir, o eixo vertical da neutralidade representa noextremo superior a percepo que considera a tecnologia comoneutra, isto , livre de valores (ou interesses) econmicos, pol-ticos, sociais ou morais. No extremo inferior, a que a entendecomo condicionada por valores. Segundo a percepo neutra,um dispositivo tcnico simplesmente uma concatenao demecanismos causais; no h qualquer coisa semelhante a umpropsito. J para a percepo que entende a tecnologia comocondicionada por valores, elas, na condio de entidades sociais,tm um modo especial de carregar valor em si prprias.

    No eixo horizontal do determinismo representa-se, noextremo esquerdo, a percepo que considera a tecnologia co-mo autnoma e, no direito, a que a entende como controladapelo homem. De acordo com esta ltima, teramos liberdadepara decidir como a tecnologia se desenvolver; dependeria dens o prximo passo da evoluo dos sistemas tcnicos, pois se-riam humanamente controlveis: nossas intenes determinamos prximos passos de sua evoluo. Conforme a primeira, a in-veno e o desenvolvimento tecnolgico teriam suas prpriasleis imanentes; ns apenas as seguiramos.

    Uma vez que os entendimentos a respeito da natureza doconhecimento tecnolgico (ou, com mais propriedade, tecno-cientfico) representados nos dois eixos so independentes, acombinao das quatro percepes extremas, duas a duas, dorigem a quatro vises que podem ser representadas em cadaum dos quadrantes delimitados pelos dois eixos, tal comomostrado na figura a seguir.

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    Quatro vises sobre a tecnologiaFigura 2

    Fonte: Elaborado pelo autor a partir das proposies de Andrew Feenberg.

    A primeira dessas quatro vises a do instrumentalismo, quecombina as percepes do controle humano da tecnologia e daneutralidade de valores. uma viso moderna padro, que con-cebe a tecnologia como uma ferramenta ou instrumento da es-pcie humana mediante o qual satisfazemos nossas necessidades,determinando a direo do desenvolvimento tecnolgico deacordo com nossa vontade. Qualquer tecnologia pode, portanto,ser utilizada indistintamente para atuar sob qualquer perspectivade valor (ou, de modo simplista, para o bem ou para o mal).

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    A segunda viso a do determinismo, que combina auto-nomia e neutralidade. a viso marxista tradicional segundo aqual o avano tecnolgico (ou o desenvolvimento das foras pro-dutivas) a fora motriz da histria. A tecnologia no contro-lada pelo homem; ela que molda a sociedade mediante as exi-gncias de eficincia e progresso. A tecnologia utiliza o avanodo conhecimento do mundo natural para servir humanidade.Cada descoberta se orienta em direo a algum aspecto de nos-sa natureza, satisfazendo alguma necessidade humana ou esten-dendo nossas faculdades.

    A terceira a do substantivismo, que entende a tecnologiacomo dotada de autonomia e portadora de valores. a viso cr-tica do marxismo tradicional proposta pela Escola de Frankfurt.O pressuposto da neutralidade do avano tecnolgico defendi-do pelo instrumentalismo atribui um valor formal tecnologiacondicionado pela busca da eficincia, a qual pode servir aqualquer concepo acerca da melhor forma de viver. J o com-promisso com uma concepo especfica do bem-viver confe-riria tecnologia um valor substantivo e ela deixaria de ser me-ramente instrumental, como entende o instrumentalismo. Emconseqncia, no poderia ser usada para diferentes propsitosde indivduos ou sociedades que divirjam sobre o que seja obem-viver. Ela deixar de ser um mero instrumento adequadoa qualquer conjunto de valores. Carregar consigo valores quetm o mesmo carter exclusivo das crenas religiosas.

    Uma vez que uma sociedade segue o caminho do desenvol-vimento tecnolgico, inevitavelmente se transforma em umasociedade tecnolgica, que se afina com seus valores imanentescomo a eficincia, o controle e o poder. Valores divergentes dostradicionais alternativos no conseguiriam sobreviver ao de-safio da tecnologia.

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    O determinismo otimista, no sentido de que ao aceitar,como fazem o marxismo tradicional e os tericos da moderni-zao do ps-guerra, a afirmao de que a tecnologia o servoneutro das necessidades humanas, idealizam um final semprefeliz para a histria da espcie. O substantivismo pessimista: aautonomia da tecnologia ameaadora e malvola. Uma vezlibertada, a tecnologia se torna cada vez mais imperialista, con-trolando, um aps o outro, cada domnio da vida social.

    A quarta viso a da teoria crtica, que combina as percep-es da tecnologia como humanamente controlada e como por-tadora de valores. Reconhece as conseqncias catastrficas dodesenvolvimento tecnolgico ressaltadas pelo substantivismo,mas ainda assim v na tecnologia uma promessa de liberdade.O problema no estaria na tecnologia como tal, mas em nossofracasso, at o momento, em criar instituies apropriadas aoexerccio do controle humano sobre ela. Tal viso, pois, concor-da parcialmente com o instrumentalismo (a tecnologia con-trolvel) e com o substantivismo (a tecnologia condicionadapor valores).

    Segundo a teoria crtica, a tecnologia existente emoldura-ria no apenas um estilo de vida, mas muitos possveis estilosdiferentes, cada um refletindo diferentes escolhas de design e di-ferentes extenses da mediao tecnolgica. De fato, emboratodos os quadros tenham molduras, no por isso que esto nomuseu. As molduras so suportes para os quadros que elas deli-mitam. A eficincia emolduraria qualquer tecnologia, masno determinaria os valores compreendidos dentro da moldura.Isto , apesar de as sociedades modernas terem sempre visado eficincia naqueles domnios em que aplicam a tecnologia,afirmar que os domnios de aplicao possvel da tecnologia nopodem compreender nenhum outro valor significativo alm da

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    eficincia negligenciar a capacidade de reprojetamento datecnologia que a sociedade pode vir a desenvolver.

    A eficincia uma moldura (valor formal) que pode carre-gar diversos tipos diferentes de valores substantivos. Na teoriacrtica, as tecnologias no so vistas como ferramentas, mas co-mo suportes para estilos de vida. A teoria crtica da tecnologiaabre-nos a possibilidade de pensar essas escolhas e de submet-las a controles mais democrticos.

    A adequao sociotcnica como operacionalizao da TS

    Esta seo apresenta o conceito de adequao sociotcnica(AST), tributrio das idias desenvolvidas at aqui. Partindo domovimento da TA, das crticas que lhe foram formuladas e dascontribuies acima apresentadas, a AST pretende aportar aomarco da TS com uma dimenso processual, uma viso ideo-lgica e um elemento de operacionalidade delas derivadas queno se encontrava presente naquele movimento. Ao transcen-der a viso esttica e normativa, de produto j idealizado, eintroduzir a idia de que a TS em si mesma um processo deconstruo social e, portanto, poltico (e no apenas um produ-to) que ter de ser operacionalizado nas condies dadas peloambiente especfico onde ir ocorrer, e cuja cena final dependedessas condies e da interao passvel de ser lograda entre osatores envolvidos, a AST confere ao marco da TS caractersticasque parecem fundamentais para o sucesso da RTS.

    Uma das origens do conceito da AST a necessidade de criarum substrato cognitivo-tecnolgico a partir do qual atividadesno inseridas no circuito formal da economia podero ganharsustentabilidade e espao crescente em relao s empresas con-vencionais (Dagnino, 2002a).

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    A AST pode ser concebida por semelhana ao processo (de-nominado por alguns processo de aprendizado e por outrostropicalizao) extensivamente abordado na literatura latino-americana (e, posteriormente, mundial) sobre economia da tec-nologia desde os anos 1960, de adaptao da tecnologia prove-niente dos pases centrais a nossas condies tcnico-econmicas(preo relativo dos fatores capital e trabalho; disponibilidade dematrias-primas, peas de reposio e mo-de-obra qualificada;tamanho, capacidade aquisitiva, nvel de exigncia dos merca-dos; condies edafoclimticas etc.) (Katz e Cibotti, 1976).

    Nesse sentido, a AST pode ser compreendida como umprocesso que busca promover uma adequao do conhecimentocientfico e tecnolgico (esteja ele j incorporado em equipa-mentos, insumos e formas de organizao da produo, ou aindasob a forma intangvel e mesmo tcita) no apenas aos requisitose finalidades de carter tcnico-econmico, como at agora temsido o usual, mas ao conjunto de aspectos de natureza socioeco-nmica e ambiental que constituem a relao CTS.

    No contexto da preocupao com a TS, a AST teria por ob-jetivo adequar a TC (e, inclusive, conceber alternativas) apli-cando critrios suplementares aos tcnico-econmicos usuais aprocessos de produo e circulao de bens e servios em cir-cuitos no-formais, situados em reas rurais e urbanas (como asRESs) visando a otimizar suas implicaes.

    Entre os critrios que conformariam o novo cdigo socio-tcnico (alternativo ao cdigo tcnico-econmico convencional)a partir do qual a TC seria desconstruda e reprojetada dandoorigem TS, pode-se destacar alm daqueles presentes nomovimento da TA: a participao democrtica no processo detrabalho, o atendimento a requisitos relativos ao meio ambiente

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    (mediante, por exemplo, o aumento da vida til das mquinase equipamentos), sade dos trabalhadores e dos consumidorese sua capacitao autogestionria.

    O conceito de AST pode ser entendido com o concurso dodiferencial proporcionado pelo construtivismo. Segundo esseenfoque, construo sociotcnica o processo pelo qual arte-fatos tecnolgicos vo tendo suas caractersticas definidas pormeio de uma negociao entre grupos sociais relevantes, compreferncias e interesses diferentes, no qual critrios de natu-reza distinta, inclusive tcnicos, vo sendo empregados at che-gar a uma situao de estabilizao e fechamento (Bijker,1995).

    Nesse sentido, a AST pode ser entendida como um proces-so inverso ao da construo, em que um artefato tecnolgicoou uma tecnologia sofreria um processo de adequao aos inte-resses polticos de grupos sociais relevantes distintos daquelesque o originaram (a nfase na expresso polticos marca a es-cassa ateno que, segundo Winner (1999), o construtivismo dao carter poltico das escolhas feitas pelos grupos relevantes).

    Assim definido, como um processo e no como um resultado(uma tecnologia desincorporada ou incorporada em algum arte-fato) ou um insumo, o conceito permite abarcar uma multiplici-dade de situaes, o que denominaremos a seguir modalida-des de AST.

    As modalidades de AST

    Buscando operacionalizar o conceito de AST, julgou-se con-veniente definir modalidades de AST. O nmero escolhido(sete) no arbitrrio e poderia ser maior (Dagnino e Novaes,2003).

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    1) Uso: o simples uso da tecnologia (mquinas, equipamen-tos, formas de organizao do processo de trabalho etc.) antesempregada (no caso de cooperativas que sucederam a empresasfalidas), ou a adoo de TC, com a condio de que se altere aforma como se reparte o excedente gerado, percebido comosuficiente.

    2) Apropriao: concebida como um processo que tem comocondio a propriedade coletiva dos meios de produo (mqui-nas, equipamentos), implica uma ampliao do conhecimento,por parte do trabalhador, dos aspectos produtivos (fases de pro-duo, cadeia produtiva etc.), gerenciais e de concepo dosprodutos e processos, sem que exista qualquer modificao nouso concreto que deles se faz.

    3) Revitalizao ou repotenciamento das mquinas e equipamen-tos: significa no s o aumento da vida til das mquinas e equi-pamentos, mas tambm ajustes, recondicionamento e revitali-zao do maquinrio. Supe ainda a fertilizao das tecnologiasantigas com componentes novos.

    4) Ajuste do processo de trabalho: implica a adaptao da orga-nizao do processo de trabalho forma de propriedade co-letiva dos meios de produo (preexistentes ou convencionais),o questionamento da diviso tcnica do trabalho e a adoo pro-gressiva do controle operrio (autogesto).

    5) Alternativas tecnolgicas: implica a percepo de que asmodalidades anteriores, inclusive a do ajuste do processo detrabalho, no so suficientes para dar conta das demandas porAST dos empreendimentos autogestionrios, sendo necessrioo emprego de tecnologias alternativas convencional. A ativi-dade decorrente desta modalidade a busca e a seleo de tec-nologias existentes.

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    6) Incorporao de conhecimento cientfico-tecnolgico existente:resulta do esgotamento do processo sistemtico de busca de tec-nologias alternativas e na percepo de que necessria a in-corporao produo de conhecimento cientfico-tecnolgicoexistente (intangvel, no embutido nos meios de produo),ou o desenvolvimento, a partir dele, de novos processos produ-tivos ou meios de produo, para satisfazer as demandas porAST. Atividades associadas a esta modalidade so processos deinovao de tipo incremental, isolados ou em conjunto com cen-tros de pesquisa e desenvolvimento (P&D) ou universidades.

    7) Incorporao de conhecimento cientfico-tecnolgico novo: re-sulta do esgotamento do processo de inovao incremental emfuno da inexistncia de conhecimento suscetvel de ser incor-porado a processos ou meios de produo para atender s de-mandas por AST. Atividades associadas a esta modalidade soprocessos de inovao de tipo radical que tendem a demandaro concurso de centros de P&D ou universidades e que impli-cam a explorao da fronteira do conhecimento.

    Consideraes finais

    Um dos elementos comuns das vrias correntes que forma-ram o movimento da TA o fato de que as expresses que cu-nharam por um lado denotam um produto, e no um processo,e por outro tm uma clara viso normativa. Ao formularem asexpresses que as identificavam, aquelas correntes as enten-deram como cenas de chegada que, por oposio, diferen-ciavam-se da cena inicial a TC no mbito de um cenrionormativo, sem que fosse explicitada a natureza da trajetriaque as separa. A tecnologia designada pela expresso funciona-va como um farol situado num cenrio futuro sem que uma

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    bssola se encontrasse disponvel para guiar seu processo dedesenvolvimento. A inteno do movimento da TA, de geraruma tecnologia com atributos previamente conhecidos e especi-ficados, no pde ser materializada. Gerar um produto adequa-do a um cenrio postulado como desejvel, mas como artefato aser construdo, pouco conectado ao contexto socioeconmico epoltico inicial e sua provvel evoluo, era uma meta que semanifestou irrealista. Uma agravante foi a ingnua expectativa,de alguns, de que o emprego de tecnologias alternativas pudessepor si s trazer a mudana do contexto em que elas operavam.

    Esse fato parece explicar, por um lado, a semelhana quepossuem os artefatos tecnolgicos que foram efetivamente pro-duzidos pelas diferentes correntes do movimento da TA, orien-tados para atacar a problemtica do meio rural dos pases demuito baixa renda per capita; por outro, seu relativamente escas-so sucesso pretrito, e sua insuficincia presente, para o enfren-tamento da desigualdade que caracteriza o ambiente crescen-temente urbano e miservel de pases como o Brasil (Dagnino,2002a).

    Diferentemente das expresses cunhadas pelo movimentoda TA, essencialmente normativas, no sentido de idealizar atecnologia desejada (construir um farol), o marco da TS dateno ao processo, ao caminho que uma configurao socio-tcnica vai desenhando ao longo de um percurso que no temcena de chegada definida (disponibilizar uma bssola).

    Ao enfatizarem a tecnologia desejada (de pequena e m-dia escala, pouco intensiva em capital, no-poluidora etc.) semprestar muita ateno aos caminhos que poderiam conduzir a ela,os pensadores da TA parecem ter provocado um certo imobilis-mo. No estava sinalizado como se deveria atuar para atingir atecnologia que propugnavam. Embora caracterizassem, norma-tizassem e, mesmo, pensassem estar produzindo a tecnologia

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    que vislumbraram, o movimento que lideraram no logrou prem prtica suas idias; isso ocorreu, em nosso entender, porqueno explicitaram como deveria ser organizado o processo que po-deria conduzir sua efetiva aplicao.

    nesse sentido que pode ser til o processo de AST, quetem de ser construdo a partir de uma tecnologia existente,com o realismo que impe o contexto adverso no plano econ-mico, poltico, cientfico etc., porque enviesado na direo daTC. Isso porque ele no tem um objetivo normativo definidode forma estrita, pois sabemos que o processo de construo so-ciotcnica nem sempre est em consonncia com os projetos edesenhos originais. Porque refutamos, por consider-la irrea-lista e ingnua, a idia de que pode haver uma oferta e umademanda de tecnologia. E, adicionalmente, porque entende-mos que ou os atores interessados no emprego da TS de fato aconstroem em conjunto, ou no haver TS.

    O marco da TS incorpora a idia, contrria do senso co-mum, de que o que existe na realidade um processo de ino-vao interativo em que o ator diretamente envolvido com essafuno inovativa contm (ou conhece) ao mesmo tempo, porassim dizer, tanto a oferta quanto a demanda da tecnolo-gia. Portanto, a inovao tecnolgica e por extenso a TS nopode ser pensada como algo que feito num lugar e utilizado emoutro, mas como um processo desenvolvido no lugar onde essatecnologia vai ser utilizada, pelos atores que vo utiliz-la.

    Por essa razo, o marco da TS impe a necessidade de umaagenda de poltica cientfica e tecnolgica muito mais com-plexa do que uma proposta de criao de bancos de informaotecnolgica semelhantes aos concebidos para disponibilizar TCnum ambiente constitudo por empresas convencionais previa-mente existentes e organizadas para otimizar e utilizar TC. Umbanco dessa natureza, pelas razes citadas e pelo fato de que o

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    ambiente e os prprios atores que iriam utilizar a informaonele contida esto por constituir-se como tais, teria um impactobem menor do que aquele associado aos bancos informatizadosde TC. Alm disso, mesmo quando esses atores tivessem a pos-sibilidade de ter um acesso qualificado informao, seriaescasso o aprendizado decorrente. Eles seriam, na melhor dashipteses, simples usurios da TS, e no agentes ativos numprocesso de construo sociotcnica que tivesse como resultadoum artefato tecnolgico que garantisse o atendimento de suasnecessidades e expectativas.

    No incio deste captulo, apontamos para o fato de que aRTS tem duas caractersticas que a diferenciam de outras ini-ciativas em curso no pas orientadas dimenso cientfico-tec-nolgica. A primeira o marco analtico-conceitual da TS quetratamos at aqui, e a segunda seu carter de rede.

    A RTS uma rede que se forma a partir da percepo deque as iniciativas orientadas dimenso cientfico-tecnolgica,tanto as de natureza privada como as de poltica pblica, tm semostrado incapazes de deter o agravamento dos problemas so-ciais e ambientais e de promover o desenvolvimento do Brasil.

    Uma rede que, mais do que uma issue network uma redeque se forma em funo dos interesses dos que delam partici-pam sobre um determinado assunto , ter de atuar como umapolicy network: uma rede assentada por atores dispostos a incor-porar ao modo de governar a relao CTS atualmente em vigorum padro de governana coerente com seus valores, com seusmarcos de referncia analtico-conceituais e com o cenrio so-cioeconmico que desejam construir.

    Uma rede que ter de integrar os atores e movimentos so-ciais que se situam numa ponta socioeconmica e cultural aos que,situados numa outra ponta, detm os recursos cognitivos, polti-

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    cos e econmicos imprescindveis para implementar aquelesmarcos de referncia, materializar a TS e tornar realidade o ce-nrio que a sociedade deseja.

    Uma rede que, diferentemente de outras que caracterizam opadro de governana que tende a se instaurar em outras reasde poltica pblica, inclui atores situados no interior de umaparelho de Estado sucateado. Atores que, em funo da difi-culdade de agir a partir dali em consonncia com seus valores,visualizam a formao da RTS como uma alternativa vivelpara, em curto prazo e numa conjuntura adversa para a elabora-o de polticas pblicas no-convencionais, promover a inclu-so social de modo no meramente compensatrio, posto quebaseado na sustentabilidade econmica de empreendimentossolidrios alternativos aos do circuito formal que uma tec-nologia no-convencional ir propiciar.

    Uma rede que ter de encontrar um difcil ponto de unio e deequilbrio entre comunidades epistmicas, policy communities,burocratas e meros stakeholders e potencializar de modo dife-rente capacidades de tipos diferentes desses atores diferentesque esto situados em ambientes tambm diferentes. Dois des-ses atores, pela dificuldade que seu tratamento envolve, mere-cem ser citados. Os burocratas devero ser considerados correiasde transmisso das aes concebidas pela RTS para dentro doaparelho de Estado de forma a conferir-lhes viabilidade. Osprofessores-pesquisadores do complexo pblico de ensino su-perior e de pesquisa tero de ser convencidos de que a TS (e aRTS) uma das poucas rotas de escape ao esvaziamento de suasinstituies e o melhor caminho para recuperar legitimidadesocial, buscar alianas com atores sociais portadores de futuro erealizar seu potencial de produzir conhecimento que, por serrelevante, alcanar a verdadeira qualidade acadmica que,com razo, buscam e merecem (Dagnino, 2003).

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    Sem ser excludente s iniciativas em curso no pas orienta-das dimenso cientfico-tecnolgica, a RTS se apresenta, emfuno dessas caractersticas e do marco da TS a partir do qualest sendo concebida, como uma alternativa como uma ini-ciativa mais eficaz para a soluo dos problemas sociais rela-cionados a essa dimenso e como um vetor para a adoo depolticas pblicas que abordem a relao CTS num sentidomais coerente com nossa realidade e com o futuro que a socie-dade deseja construir.

    Por serem as redes formas inovadoras de construir institu-cionalidade, e por estar a RTS sendo concebida a partir de umaslida base conceitual e analtica, ela rene as caractersticasque podem lev-la a preencher uma das lacunas apontadas porHerrera (1983) quando criticava o movimento da TA indicandoque, se no houver um arcabouo legal e institucional que lhed suporte, ele estaria fadado ao fracasso.

    Quando indicamos as razes que levaram reemergncia detemas relacionados TS no Brasil, mencionamos a possibilidadede que a RTS venha a funcionar como uma instncia de inte-grao de movimentos como o das RESs e o das ITCPs. Issoporque poderia vir a fortalecer a crescente conscincia que vmalcanando esses movimentos acerca da necessidade de contarcom alternativas TC capazes de proporcionar sustentabilidadeeconmica aos empreendimentos autogestionrios em relao economia formal e, em conseqncia, alavancar a expanso daeconomia solidria. De fato, independentemente do apoio querecebam de polticas de incluso social, esses empreendimentosno podem prescindir de tecnologia (hardware, orgware e software)alternativa TC para viabilizar as duas rotas de expanso que a elasse apresentam: a criao de vnculos de compra e venda debens e servios para produo e consumo com outras RESs e aprogresso na cadeia produtiva integrando atividades a jusante,

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    Sobre o marco analtico-conceitual da tecnologia social

    a montante e transversalmente rumo constituio de arranjosprodutivos locais.

    Numa perspectiva mais ambiciosa e de prazo de maturaomais longo, a RTS poderia se consolidar como um espao privi-legiado, com grande impacto social, para a promoo do desen-volvimento e aplicao de TS. Diferentemente de arranjos ins-titucionais (programa, secretaria, agncia, fundao de amparoetc.) situados no mbito governamental e concebidos segundo algica do ofertista, uma lgica linear que tem caracterizado a po-ltica de C&T, a RTS seria um mecanismo para ao direta epontual visando incluso social.

    Isso no quer dizer, claro, que no continue sendo o Es-tado, numa proporo compreensivelmente muito maior do queno caso da TC, o financiador e viabilizador em ltima instnciada TS.5 Mesmo porque o Estado por meio de distintos rgose instncias dever estar presente no apenas como interme-diador e facilitador das aes envolvendo a utilizao da TS pe-las populaes carentes, mas como demandante de solues pa-ra seu prprio uso que permitam o emprego de seu enormepoder de compra, de forma a melhorar a qualidade dos serviosque presta sociedade e aumentar a eficincia da mquina doEstado, induzindo a inovao.

    A mdio prazo, importante que a RTS se legitime como aporta de entrada de apoios a projetos de desenvolvimento eaplicao de TS derivados da interao dos atores nela interes-sados mediante sua relao com o aparelho de Estado, em espe-

    5 A esse respeito importante ressaltar que, grosso modo, o que o governo in-veste hoje em C&T praticamente em sua totalidade orientado para desen-volvimento de TC. De fato, mesmo quando se trata do apoio ao desenvol-vimento de tecnologias para emprego nos denominados setores sociais sade, educao etc. , o enfoque utilizado e as caractersticas do conheci-mento gerado no so orientados em consonncia como o marco de refe-rncia analtico-conceitual da TS.

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    Tecnologia social: uma estratgia para o desenvolvimento

    6 Muito se tem escrito ultimamente sobre o comportamento da comunidadede pesquisa e sobre a necessidade de que ela se incorpore ao esforo produ-tivo dos pases. Embora na Amrica Latina a nfase na interlocuo com aempresa privada seja em geral a mesma conferida nos pases desenvolvidos,as contribuies indicadas nas setas 5 e 6 da figura 1, no tratadas nestecaptulo, avanam num sentido coerente com seus objetivos.

    cial com os rgos j existentes em diversos ministrios criadospara proporcionar recursos financeiros ampla gama de ativida-des apontadas neste captulo. Adicionalmente, na outra pontade sua ligao com os movimentos sociais, a RTS deve legiti-mar-se como porta de sada de pacotes integrados visando in-cluso social concebidos a partir da identificao de problemaspassveis de serem solucionados com o concurso da TS. Paratudo isso, uma outra ponta a da comunidade de pesquisa nopode ser descuidada. Embora sem a importncia que tem emoutras iniciativas de poltica de C&T, em que freqentementeexerce um controle bem maior do que aquele de seus pares noexterior (Dagnino e Gomes, 2002), a comunidade de pesquisa,quando mais no seja pelo fato de que ela que detm o recur-so cognitivo indispensvel a nossa empreitada, deve ser tratadade acordo com suas especificidades e idiossincrasias6 de modo aassegurar sua adeso.

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