Mal Estar Docente

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Mal-estar docente Doenças associadas à atividade docente elevam os índices de faltas e prejudicam o ensino, além de afetarem a qualidade de vida dos professores; incidência de casos de hipertensão aumenta no final do ano letivo Paulo de Camargo Tweet ? Na sala de aula, o professor tenta vencer o barulho dos alunos e a indisciplina enquanto explica o conteúdo de sua matéria. Em seu corpo, cordas vocais estressadas pela vibração em alta frequência por horas. Ouvidos submetidos constantemente a sons acima do limite adequado para o trabalho. Tendões sobrecarregados e músculos cansados por estar em pé horas a fio, todos os dias, ao longo dos anos. Acrescente a esse quadro a administração constante de conflitos. Por fim, o retorno muitas vezes é parco, os salários são baixos e, mais, a sociedade observa atenta seu trabalho, reiterando que dele depende o futuro do país. Ainda que muitas profissões exijam do corpo humano um sobre-

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Mal-estar docente

Doenas associadas atividade docente elevam os ndices de faltas e prejudicam o ensino, alm de afetarem a qualidade de vida dos professores; incidncia de casos de hipertenso aumenta no final do ano letivo

Paulo de CamargoTweet?

Na sala de aula, o professor tenta vencer o barulho dos alunos e a indisciplina enquanto explica o contedo de sua matria. Em seu corpo, cordas vocais estressadas pela vibrao em alta frequncia por horas. Ouvidos submetidos constantemente a sons acima do limite adequado para o trabalho. Tendes sobrecarregados e msculos cansados por estar em p horas a fio, todos os dias, ao longo dos anos. Acrescente a esse quadro a administrao constante de conflitos. Por fim, o retorno muitas vezes parco, os salrios so baixos e, mais, a sociedade observa atenta seu trabalho, reiterando que dele depende o futuro do pas.

Ainda que muitas profisses exijam do corpo humano um sobre-esforo, a vida profissional dos docentes vem chamando a ateno dos pesquisadores. As doenas funcionais dos professores explicam, pelo menos em parte, o elevado absentesmo de algumas redes.

Recentemente, por exemplo, a imprensa noticiou que cada professor da rede estadual de So Paulo falta, em mdia, 21 aulas por ano utilizando licenas de sade. So quase mil aulas que deixam de ser dadas por dia. Na rede municipal de So Paulo, o problema no diferente: clculos de 2013 apontam para 1,8 milho de faltas, metade por problemas mdicos.

As estatsticas ainda so imprecisas, at porque dependem de anlises cruzadas entre sade e educao. Tambm difcil isolar as doenas preexistentes e as originadas por questes pessoais daquelas advindas das dificuldades no contexto de trabalho, e deve-se considerar que muitas vezes as licenas mdicas so usadas como libis para a ausncia por outros motivos. Mas os estudos, realizados principalmente nos ltimos 10 anos, no deixam dvidas. "A sade do professor deve ser entendida como um problema da educao e da sade, e o quadro muito grave", atesta a psicloga Flvia Gonalves da Silva, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Estudiosa do tema, ela realiza oficinas com os professores de Diamantina para identificar os fatores que agravam seus problemas de sade e aumentar sua conscincia corporal.

Nesse contexto, o tema vem sendo inserido no quadro das reivindicaes das entidades sindicais. No ano passado, o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de So Paulo (Apeoesp) publicou o livro A sade dos professores, compilando diversos estudos sobre a questo e apresentando os resultados de um levantamento feito com 936 docentes presentes a um evento da categoria. Dentre os entrevistados, 27% tinham se afastado do trabalho por motivos de sade nos 12 meses anteriores ao estudo.

Para Cleuza Repulho, presidente da Unio Nacional dos Dirigentes Municipais de Educao (Undime) e secretria municipal de So Bernardo do Campo (SP), preciso ter muito cuidado tambm para no tratar o professor como vtima. "H muitas profisses que exigem bastante das pessoas, e todo docente sabe o que enfrentar, quando escolhe a profisso. No podemos perder de vista que so as crianas que mais perdem quando o professor falta s aulas", pondera,preocupada com o elevado absentesmo verificado em todas as redes. Para ela, os que ficam realmente doentes so justamente aqueles que mais fazem questo de dar aulas e demonstram compromisso com a sala de aula.

Polticas pblicasEstados e municpios comeam a se preocupar com o tema e a implantar as primeiras aes de medicina preventiva voltada aos professores. O Estado de So Paulo, por exemplo, lanou h quase dois anos o projeto Educao com sade. Cada diretoria de ensino passou a ser assessorada por uma equipe - que inclui mdico, enfermeiro, nutricionista, psiclogo, fisioterapeuta, fonoaudilogo e assistente social - que faz visitas peridicas s escolas. Segundo a Secretaria de Educao, o foco ser a preveno, e os funcionrios que forem diagnosticados com problemas de sade sero encaminhados para tratamento mdico. Com o programa, espera-se reduzir a incidncia de problemas como estresse ocupacional, doenas osteomusculares, obesidade, sedentarismo, hipertenso, diabetes, transtornos mentais e tabagismo.

Outra iniciativa recente da pasta a criao de um servio prprio de percias, paralela realizada pelo Departamento de Percias Mdicas do Estado, que atende a toda a administrao pblica. Com 33 unidades especializadas, o objetivo dar mais agilidade readaptao dos professores ao trabalho. O servio conta com diferentes profissionais que sero responsveis por conceder licenas de sade, atuar na readaptao e atestar casos de aposentadoria por invalidez, atendendo aos funcionrios que solicitarem afastamento por mais de 15 dias.

"A conscincia de que os professores precisam ser apoiados comea a aumentar", avalia o secretrio da Educao de Florianpolis (SC), Rodolfo da Luz. Na cidade, as aes incluem oficinas, a distribuio de protetores solares e bons para os professores de educao fsica e de garrafas de gua para os propensos a ter problemas de voz. No Guaruj, litoral de So Paulo, foi criada uma das iniciativas mais completas, a Casa do Professor, que tem origem no sofrimento experimentado pela atual prefeita, Maria Antonieta de Brito, quando atuou como professora da rede.

Mas as aes ainda se encontram no plano das excees. As prticas preventivas, segundo os especialistas, precisam comear ainda nos cursos de pedagogia e licenciatura. "A formao pouco habilita o professor, oferecendo recursos e estratgias para lidar com as adversidades do trabalho", diz Flvia. Para ela, preciso especial ateno ao comeo da carreira. "Como, pelos sistemas mais comuns de escolha de escolas, os professores iniciantes pegam as turmas mais difceis, os docentes que mais adoecem so aqueles no incio da profisso", analisa.

As condies de trabalho dos professores brasileiros tambm agravam o problema, o que explica a quantidade de estudos sobre o assunto no pas: foram mais de 50 publicaes cientficas sobre o tema apenas entre 2000 e 2007. "Nos pases onde a carreira docente mais valorizada, pouco se discute sobre o adoecimento do professor, porque ele no um problema significativo, mais pontual", explica Flvia.

Diferentes problemasDe acordo com vrios trabalhos acadmicos, os problemas mais comuns que acometem o professor podem ser divididos entre os ligados voz e audio, ao aparelho respiratrio (como alergias), ao sistema musculoesqueltico e aos problemas psquicos e comportamentais.

A professora de portugus Sandra, que prefere no se identificar pelo sobrenome, sentiu o agravamento de um problema de audio devido ao ambiente excessivamente ruidoso da escola pblica municipal onde atua, em So Paulo. "Tem dias que volto para casa com o ouvidodoendo", relata. No toa: um estudo feito em Braslia pelo pesquisador Alexandre de Oliveira Eniz mediu o volume do som nas escolas e constatou que os picos chegam a 114 decibis, quando o recomendado fica em torno de 68 decibis. Segundo Sandra, entre seus colegas predominam as queixas ligadas voz e a reaes alrgicas causadas pela exposio ao p de giz. "Sempre tem algum de licena. Quem est no dia a dia da sala de aula est habituado s doenas de professor", conta.

Dores musculares e problemas sseos, causados pelo tempo excessivo em p e tenso, tambm so queixas constantes dos docentes. Contudo, nesse campo, entram em jogo outros fatores que agravam o quadro geral, e so vlidos tambm para o conjunto da populao, como o fumo, a obesidade e a falta de exerccios.

Hipertenso arterialTodo final de ano o mdico Carlos Alberto Machado, da Sociedade Brasileira de Cardiologia, j sabe que chegaro ao seu consultrio inmeros casos de professores hipertensos. O estresse acumulado, a correria para corrigir as avaliaes e a tenso causada pelas reprovaes a alunos so os agravantes do quadro cardaco dos docentes. "Nessa poca, com o fechamento das notas, aumentam a presso do trabalho e os problemas", explica.

A elevao da incidncia do problema - que atinge a populao em geral - levou o mdico a criar, no incio da dcada de 1980, a Liga de Hipertenso, reunindo mdicos preocupados com a doena silenciosa e relacionada a 30% dos bitos. No pas, so mais de 300 mil mortes por infarto, acidentes vasculares cerebrais e outros.

Entre os fatores de risco relacionados esto hbitos frequentes entre docentes, como m alimentao, ingesto de sal em excesso e sedentarismo. Pesa tambm na alta incidncia de casos o descuido com a doena. "No adianta vir ao consultrio apenas quando h crises. O comportamento dirio, com o controle de estresse e o consumo adequado de alimentos, muito importante e devem ser observados pelo professor", ressalta o mdico.

Doenas psicolgicasEmbora os problemas ligados voz e ao corpo sejam bem conhecidos dos docentes, o que mais vem chamando a ateno dos pesquisadores o quadro psicolgico do professor. Segundo um levantamento da Apeoesp do ano passado, quase 40% dos professores afastados por problemas de sade apontaram como causa quadros depressivos. "As doenas que mais vm aumentando so as psquicas, especialmente depresso e estresse", diz a pesquisadora Flvia. No entanto, ela ressalta que os ndices de transtornos psquicos tm crescido na populao em geral, e no s entre esses trabalhadores. Alm disso, diz, h uma tendncia do que chama "patologizao da vida", que iguala indevidamente sentimentos universais de tristeza e melancolia a quadros de depresso. Quando se trata dos alunos, por exemplo, o processo correlato promove uma exploso de diagnsticos de hiperatividade e dficit de ateno.

Contudo, a pesquisadora reconhece a existncia de um outro tipo de mal-estar psicolgico, que vem se tornando o objeto de estudo mais frequente no campo da sade do professor: a sndrome de burnout. O termo surgiu na Europa na dcada de 1970 e permitia uma abordagem dos sentimentos, afetos e da sade dos trabalhadores no estudo de fatores como a desmotivao, o desgaste emocional e a sensao de exausto. Esse tipo especfico de estresse ocupacional - que impacta o exerccio da profisso - acaba por se estender para todas as dimenses da vida. O conceito caiu como uma luva na categoria dos professores, e logo surgiu a ideia de um "mal-estar docente".

Burnout"Entre os profissionais mais sensveis sndrome, o professor a categoria mais estudada. Movida pelas crenas nas possibilidades de transformao pela educao, h um descompasso entre as expectativas profissionais e a impossibilidade de alcan-las. Da mesma forma, as perspectivas sociais, familiares e dos dirigentes do sistema educacional para que os professores tenham um desempenho que seja capaz de superar as adversidades, sem lhes dar condies para isso,

contribuem para levar ao burnout", avalia a pesquisadora Aparecida Nri de Souza, da Universidade Estadual de Campinas, uma das autoras do estudo Condies de trabalho e suas repercusses na sade dos professores da educao bsica no Brasil.

O maior trabalho j feito sobre o tema a pesquisa de Wanderley Codo, professor da Universidade de Braslia. Ele ouviu mais de 50 mil docentes, de 1.400 escolas, no final da dcada de 1990. O trabalho sugeria que quase metade dos entrevistados apresentava algum sintoma da sndrome. o que sentiu a professora Claudia, que d aulas em uma escola na periferia paulista e prefere no se identificar pelo sobrenome. Os conflitos dirios com alunos e familiares levaram-na a um quadro de esgotamento que teve culminou numa discusso com pais. Desde ento, ela desenvolveu quadros de pnico, no conseguia mais entrar em sala de aula e passou a tomar diferentes antidepressivos.

"Para cumprir seu trabalho, h um dispndio de energia maior do que o necessrio. Alm disso, de se considerar a discrepncia entre o trabalho idealizado pelo professor - o que e como ele gostaria de realizar -, o trabalho prescrito pelas polticas pblicas, secretarias de educao e diretores das escolas e o que ele consegue efetivamente fazer, o trabalho realizado", explica a pesquisadora Flvia.

Para ela, no se trata de um problema circunscrito a regies ou etapas da escolaridade. Ela mesma desenvolve seus estudos em Diamantina (MG), cidade com menos de 50 mil habitantes. "O processo de adoecimento e sofrimento est diretamente ligado s polticas de formao docente e sua valorizao como profissional, o que, salvo algumas excees, a mesma condio para todo o pas."

Para reverter o quadroComo em todos os problemas ligados sade, melhor do que remediar prevenir. Para o mdico Machado, os professores, como a populao em geral, precisam se conscientizar dos riscos da vida contempornea. Ele conta que, particularmente nas escolas, comum que o fast-food seja um item cotidiano na alimentao do professor. Entre uma aula e outra, na corrida entre diferentes escolas, os lanches, salgadinhos e refrigerantes acabam se tornando rotineiros. Um agravante a proibio, existente em muitas redes, de que os docentes se sirvam da merenda dada s crianas, que via de regra mais saudvel. "Comendo em p na cantina e se alimentando de frituras e refrigerantes, o professor no apenas faz mal a si como d um pssimo exemplo para seus alunos", diz.

Outra situao comum a falta de atividades fsicas, agravada pela jornada exaustiva. Para o mdico, os professores precisam encarar o exerccio dirio como uma precondio para a qualidade de vida. Se no possvel ir a uma academia, pode ser combinada uma sada entre os prprios professores da escola, em grupos, com orientao do docente de educao fsica. Alm disso, fundamental controlar a alimentao. "As doenas cardacas entre as mulheres, que so a maioria dos docentes, vm crescendo muito em todo o mundo", lembra Machado.

Alm disso, melhores condies fsicas tm conhecido impacto tambm no aspecto psquico, sendo um natural redutor de estresse. Nesse campo, do bons resultados iniciativas de atividades tipicamente relaxantes, como a ioga e outras prticas alternativas que podem ser viabilizadas pela interao entre os professores e os gestores da escola.

Mas nem tudo se resolve com mudanas de hbitos alimentares e com exerccios. Para Flvia, fundamental que as redes de ensino criem espao para os professores discutirem seus problemas ligados ao trabalho. Isso pode acontecer no mbito da escola ou das redes e, alm de aumentar a sensao de conforto e solidariedade entre os docentes, produz efeitos prticos para o encaminhamento de melhoras no ambiente de trabalho. "Pude perceber isso no trabalho que desenvolvi em uma escola com professores da rede municipal de Diamantina. O fato de os professores poderem conversar sobre seus problemas, suas angstias e de no se sentirem sozinhos em suas dificuldades foi um aspecto muito positivo segundo eles mesmos", diz. importante tambm encontrar solues para alguns problemas cotidianos, como lidar com a indisciplina do aluno. Instituies constitudas de modo a permitir a reduo do acmulo de funes so outro exemplo importante de ao. "A gesto escolar tem um papel fundamental nesse processo, pois ela que organiza as relaes de trabalho e ensino. Por isso a gesto pedaggica tambm deve se preocupar com a sade do docente", diz.

Conhea, nas prximas pginas, alguns dos principais programas voltados para a sade do professor. Para uma melhora efetiva na qualidade de vida do docente, no entanto, preciso avanar nas polticas pblicas para a educao como um todo, que afetam tambm a carreira do professor, como o aumento dos salrios, as perspectivas de desenvolvimento na carreira e a melhora das condies de trabalho. Aes preventivas so sempre necessrias e bem-vindas, mas, sem isso, continuaro a ser atenuantes em um quadro grave que afeta o profissional da educao.

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