MOTTA, R.P.S. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia

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Rodrigo Patto Sá Motta30fo.2c:J08Joo9ORGANIZAÇÃO

Culturas Políticas na História:Novos Estudos

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NÃo DANIFIQUE ESTA ETIQUETA

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APRESENTAÇÃO

COmRaquel Pereira, no capítulo 9, o foco retoma para a cultura co-munista, em estudo que privilegia a atuação do PCB em Belo Horizonte, nocontexto pós-Segunda Guerra. O texto analisa as estratégias de mobilizaçãodo Partido Comunista para ocupar espaços físicos na cidade, em que se ex-pressaram traços da cultura política dos comunistas. A atuação do Partidocriou espaços de entretenimento que se tornaram também cenários da lutapolítica. A estrutura ramificada do PCB, com células e comitês instaladosem diversos pontos da cidade, produziu relação diferenciada com o espaçourbano, permitindo a identificação de uma cartografia política da atuaçãodo Partido em Belo Horizonte.

No último texto da coletânea, Rosângela Assunção se inspira nas dis-cussões teóricas em torno da categoria cultura política para compreendero comportamento dos policiais doDOPS mineiro. O trabalho sinaliza paraa correlação existente entre a instância política e a dimensão cultural, emque questões como valores, crenças, atitudes, linguagem e imaginário sãoessenciais para compreender as ações políticas. Considerando o imaginá-rio como um dos elementos constituidores da cultura política, RosângelaAssunção analisa o imaginário anticomunista dos policiais do DOPS/MG entre as décadas de 1930 e 1960, que, além de ter contribuído paraformação de identidade policial própria, conferiu sentido e legitimou asações repressivas contra os "inimigos subversivos".

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CAPÍTULO 1

Desafios e possibilidades na apropriação decultura política pela historiografia

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Rodrigo Patto Sá Motta

Este texto é baseado em reflexões acumuladas nos últimos dez anos,beneficiadas por cursos ministrados na pós-graduação em História naUFMG que suscitaram questões e debates estimulantes. Um dos objetivos,ao escrevê-Ia, é precisamente oferecer aos estudantes uma porta de entradaa esse universo conceitual, por vezes espinhoso.

O interesse por cultura política começou por volta de 1995, quandobuscava estabelecer um quadro conceitual para estrutura r minha tese dedoutorado. Vinha de pesquisas sobre história política em vertente mais"clássica" e desejava renovar horizontes, sob influência das novas correnteshistoriográficas. Publiquei, em 1996, um texto contendo as primeiras refle-xões sobre o tema, lançando mão da literatura que pude encontrar. O texto(Motta, 1996)1 hoje me parece ingênuo, mas então havia poucos trabalhossobre cultura política na historiografia, sobretudo no Brasil, de modo quenão havia bases sólidas para apoio. Desconhecia que, pelos menos desde1992, um grupo de historiadores franceses estava empenhado na apro-priação do conceito. Autores como Serge Berstein e Jean-François Sirinelli

) 1 -O vinham fazendo uso da categoria para estudar a história política francesa,. - em textos que são hoje bastante conhecidos e que servem de base para a

l0''- ') maioria das reflexões dos historiadores brasileiros engajados no debate.A força de atração exercida por cultura política em anos recentes

deve-se, principalmente, à hegemonia do paradigma culturalista. Em outrosmomentos a política, a economia ou fatores sociológicos assumiram o papel

1 Contribuições significativas ao debate teórico sobre cultura política têm sido publi-cadas por historiadores e cientistas sociais brasileiros: Gomes (2005); Dutra (2001);Kuschnir e Carneiro (1999); Krischke (1997); e Rennó (1998).

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de explicação última para os processos históricos, mas hoje a cultura ocupaesse lugar. Nos dias atuais é muito influente a percepção de que a culturadetermina o desenrolar dos acontecimentos, da mesma forma como décadasatrás se pensava que a economia ou os interesses sociais ofereciam a chavepara compreender a dinâmica da história. Em se tratando do paradigrnaculturalista, o mais preciso não é falar em dinâmica, ou movimento dahistória, e sim em permanências e mudanças lentas. Como tudo tem sidoexplicado pela influência dos fatores culturais, a política não poderia serexceção, daí o caráter sedutor de cultura política, que permite uma abor-dagem culturalista dos fenômenos relacionados às disputas pelo poder.

O número de interessados por cultura política aumentou muito nosúltimos anos e transbordou os estreitos limites do universo acadêmico. Oconceito tem sido cada vez mais utilizado pela mídia e, num sinal da forçacrescente de seu apelo, tem sido mobilizado até por políticos profissionaise organizações sociais. Daí outra motivação para escrever este texto: apercepção de que cultura política corre o risco de banalização, graças aouso generalizado. Tornou-se conceito da moda. Há muitos incentivos aousá-Io, sobretudo o desejo de mostrar-se atualizado, mas nem sempre hápreocupação com rigor e clareza na sua utilização. Muitas vezes, a categoriatem servido apenas de rótulo novo para conteúdo antigo, como estratégiapara alcançar melhor inserção no mercado acadêmico ou na mídia. As-sim, a expressão é mobilizada - e quase sempre sem a preocupação dedefinir seu significado - em situações em que o mais adequado seria usartermos como idéias políticas, discursos políticos ou hábitos políticos. Emoutros casos, igualmente inapropriadamente, fala-se em cultura política deépocas, às vezes até de períodos de tempo mais precisos, como décadas(a cultura política da década de 1920 ...").

Não se trata de almejar, arrogantemente, o papel de censor dos con-ceitos ou guardião da pureza dos significados. A preocupação tem basena convicção de que para haver inteligibilidade na discussão acadêmicasão necessários clareza e algum rigor no uso de conceitos e categorias.Se cada um usar os conceitos corno bem lhe aprouver, os debates toma-rão feições babélicas, com cada interlocutor usando linguagem diferentee ninguém se entendendo. Os conceitos são quase sempre polissêrnicos,sobretudo nas ciências humanas e sociais, portanto é normal admitir aexistência de mais de um significado aceitável para a mesma expressão.Entretanto, há concepções mais consistentes e precisas, enquanto existemusos inadequados e/ou confusos.

Em que pese a sugestão de cautela no uso do conceito, não há dú-vida que cultura política envolve um campo conceitual muito fértil, com

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possibilidades instigantes de alargar nossos horizontes ele conhecimento ecompreensão. Por isso, a exposição se centrará na discussão dos aspectosproblemáticos elouso de cultura política, mas também nas potencialidadesque ele oferece. Antes, porém, serão necessárias breves referências àsorigens do conceito, para situar a discussão e esclarecer a maneira comoele será apropriado neste texto.

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A categoria cultura política foi construída no século XX, mas seusformuladores retiraram inspiração de autores que escreveram em períodosanteriores. Um deles foi Alexis de Tocqueville, no livro A Democracia naAmérica, de 1835. Nesse trabalho, hoje um clássico, o pensador francêsdesenvolveu a idéia de que a força da organização política dos norte-ame-ricanos derivava não somente das instituições, mas tinha relação com oshábitos e costumes daquele povo, o que ele chamou "hábitos do coração"(Formisano, 2001:393-426). Tal insight seria aproveitado e desenvolvidopor cientistas sociais do século XX, responsáveis por elaborar o argumen-to de que o funcionamento dos sistemas políticos dependeria de fatoresculturais. Valeria a pena, também, na busca por precursores, investigar aeventual contribuição da historiografia e filosofia alemãs do século XIX,que desenvolveram o conceito Kuluu. Como entendiam que cada povotinha sua própria Kultur e que alguns eram culturalmente superiores,seria razoável supor que esse pensamento implicasse a existência de umacultura política correlata. Mas para verificar tal hipótese seria necessárioempreender outras pesquisas, fugindo ao escopo deste trabalho.

Em seus usos iniciais, o conceito implicava certa hierarquização,a compreensão de que alguns povos possuem cultura política, são maisavançados, enquanto outros ainda não a têm, ou apenas em forma inferiore incompleta. No último caso, pairava o suposto de que nos casos de au-sência era necessário desenvolver a cultura política, inculcá-Ia nos povose sociedades ignaros. Encontramos o uso da expressão cultura política noBrasil antes de ter se tornado conceito das ciências sociais, provavelmentena acepção apresentada há pouco. Parece-me ser este o sentido do termocultura política que figurava no título da conhecida revista do EstadoNov02: constituir. uma cultura política para uma nação considerada em

2 Cultura Política circulou entre 1941 e 1945. CL Gomes (1996).

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estágio infantil, incapaz de auto-governo. Desejava-se, talvez, forjar umacultura política para um povo inculto, cultivá-Ia. Curiosamente, após ofim do Estado Novo e o fechamento da revista Cultura Política, o PartidoComunista apropriou-se do termo ao adotá-lo como subtítulo de sua maisimportante publicação teórica: Problemas - Revista Mensal de Cultura Polí-tica, que circulou entre 1947 e meados dos anos de 1950. Provavelmente,os intelectuais do PCB usaram o termo para expressar a intenção de atuarna formação e disseminação de valores políticos comunistas.

O conceito cultura política ganhou estatuto acadêmico e as primeirasreflexões sistemáticas nos anos de 1950 e 1960, em meio ao debate dasciências sociais norte-americanas. A motivação dos autores a discutir otema era compreender melhor a origem dos sistemas políticos democráti-cos, partindo da percepção da insuficiência dos paradigmas iluministasque viam o homem como ator político racional. Questionando a fragili-dade das explicações tradicionais, alguns cientistas sociais começaram aformular a hipótese de que democracias estáveis demandavam cidadãoscom valores e atitudes políticas internalizadas, ou seja, a presença de umacultura política.

Outro motivador para tais estudos era a preocupação de fortalecer ocampo "democrático" num contexto de disputa com o bloco socialista, oque levou à criação de modelos de desenvolvimento aplicáveis em escalaglobal, sob influência das teorias de modernização em voga nos EstadosUnidos no período pós-Segunda Guerra. Ponto de partida: a concepçãode que as sociedades ocidentais, sobretudo os EUA, eram democraciassólidas e estáveis, ficando implícita a superioridade de seu modelo em vistadas outras opções disponíveis. Como decorrência, tais democracias eramexemplos a serem seguidos pelos povos ainda não bafejados pela sorte ouvirtude, tratando-se de encontrar explicações para a origem das diferençase elaborar roteiros seguros para que todos chegassem lá.

Nesse campo, ficaram célebres os trabalhos de Gabriel Almond eSidney Verba, principalmente no livro The Civic Culture.3 Influenciadospelas pesquisas da antropologia, mas principalmente da psicologia," eles

3 O título completo é The Civic Culture. Political attitudes and democracy in five na-tions (1963).

4 A def nição que usam para cultura enfatiza a dimensão psicológica: "Aqui devemossalientar que empregamos o conceito de cultura de acordo em apenas um de seusmuitos significados: o de orientação psicológicafrente aos objetos sociais" (Rere we canonly stress that we employ the concept of culture in only one of its many meanings:that.of psychological orieruation. touiard social objects) (Almond e Verba, 1963:13).

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entendiam que a compreensão das ações políticas demandava enfoquecapaz de entender a influência de valores, sentimentos e tradições. Criaramuma complexa tipologia para enquadrar as diferentes formas de culturapolítica, culminando num esquema que as resumia a três tipos básicos:cultura política paroquial, cultura política da sujeição e cultura políticaparticipativa. A última, naturalmente, correspondia ao estágio superiore à meta a ser alcançada pelos povos em atraso na corrida para a demo-cracia, e quando em combinação com estruturas políticas democráticasdava origem à cultura cívica.

O esquema teórico proposto pela dupla não era tão simplório comomuitas vezes se pensa, pois eles apontavam a complexidade do fenômeno"e a presença de situações híbridas, sociedades em que vigoravam simulta-neamente dois ou mesmo os três tipos de cultura politica. Exatamente porisso, propuseram o termo sub-cultura política, para enquadrar casos emque mais de uma cultura política convivia no mesmo espaço. Não é possívelalongar-me na explicação do modelo de Almond e Verba, mas importa enfa-tizar que cultura política é pensada em termos de espaço nacional (alemão,italiano, inglês, etc.), com óbvias implicações etnocêntricas. Desde entãose iniciou um debate acirrado nas ciências sociais, ainda inconcluso, sobreo real potencial explicativo de cultura política, que tem gerado contendasaguerridas entre entusiastas e céticos (Formisano, 2001).

Como foi comum ao longo do século XX, os historiadores se apro-priaram de mais essa construção teórica das ciências sociais. Dado quecultura política teve seu primeiro desenvolvimento acadêmico nos EstadosUnidos, não é de espantar que historiadores desse país estivessem entre osprimeiros a fazer uso da categoria. Um dos pioneiros foi Bernard Bailyn,em seu livro As origens ideológicas da Revolução Americana, publicadooriginalmente em 1967, que em referência ligeira menciona a influência deuma cultura política anglo-americana sobre os colonos que se rebelarame construíram a nova nação."

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5 Tampouco achavam que se tratava de questão simples a exportação do modelo de-mocrático para as regiões periféricas ao mundo ocidental. Recomendavam aos paísesem atraso investir na modernização industrial e no desenvolvimento da educação,pois tais processos ajudariam na formação da cultura cívica. Porém, advertiam, nãohavia como garantir resultados positivos, pois a verdadeira cultura política demo-crática demandaria tempo para ter consolidados seus valores básicos (pluralismo,tolerância, moderação, confiança nas instituições entre outros).

6 Segundo Bailyn (2003:143), a convicção dos revolucionários de que estavam frentea uma conspiração para destruir a liberdade tinha raizes "laboriosamente fincadasna cultura política anglo-norte-americana".

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Entretanto, em que pese a existência de casos como o de Bailyn,durante o período de implantação de cultura política nas ciências sociaiso grosso da corporação dos historiadores demonstrou pouco interesse pelacategoria. Na fase compreendida entre os anos 1950 e 1970, a historiografiamais dinâmica estava pouco interessada em estudar os fenômenos políti-cos. Nessa época exerciam maior força de atração pesquisas privilegiandoprocessos econômicos e sociais, e as possibilidades de renovar a históriapolítica a partir do uso do novo conceito foram pouco aproveitadas.

O conceito passou a ser efetivamente apropriado pelos historiadores,sobretudo os franceses, a partir do chamado (talvez mal chamado) retornodato) política(o), nos anos 1980 e 1990. A idéia de retorno da política podeser mistificadora, pois diz respeito mais à historiografia francesa que à deoutros países. Porém, dada a grande influência dos franceses sobre a his-tória praticada no Brasil, a ênfase nas tendências historiográficas daquelepaís é justificada. O fato é que estudos dedicados a fenômenos históricosde natureza política têm se avolumado, e cultura política muitas vezes temocupado papel-chave na renovação das abordagens. No período recente,aliás, notam-se movimentos convergentes de várias disciplinas, cada vezmais interessadas pelos encontros e influências mútuas entre cultura epolítica. Além da própria história política: história das idéias, história dolivro e da leitura, história cultural, antropologia' e ciência política, paraficar apenas em alguns exemplos.

Como já foi dito, na historiografia francesa aparecem no início dosanos 1990 algumas reflexões que lançam mão de cultura política, princi-pal mente trabalhos de S. Berstein e J.F. Sirinelli. É importante mencionarque esses historiadores são externos ao movimento dos Annalles , quetradicionalmente foi pouco receptivo à história política. Berstein e Sirinellipertencem a grupo que se desenvolveu à margem da influência dominantedos Annalles sobre a historiografia francesa, trabalhando em instituiçõescomo a Fondation Nationale des Sciences Politiques (e o Instituto de EstudosPolíticos de Paris) e sob a liderança informal de René Rémoncl. Rémoncl,por sinal, organizou uma coletânea que é verdadeiro manifesto do retornoda política, Por uma História Política (Rémond, 1996), tendo entre seuscolaboradores justamente Sirinelli e Berstein. Um dos propósitos desselivro, é factível conjecturar, era marcar posição num momento em que ahistória política voltava a posição de destaque na historiografia francesa.Praticantes da história política numa fase em que ela estava desprestigiada

7 Para um balanço sobre as maneiras como a Antropologia tem pesquisado a política,inclusive a cultura política, ver Kuschnir (2007).

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e fora de moda, Rémond e seu grupo desejavam ocupar lugar proeminentena hora do "retorno". Nada mais justo.

A coletânea Por uma História Política, publicada originalmente em1988, é referência importante para compreender os caminhos trilhadospela "nova" história política, e também para situar os estudos de culturapolítica nesse processo. O propósito do livro, para além da já mencionadaintenção de marcar posição, era mapear os novos estudos que vinhamsendo feitos na área, mostrando as possibilidades disponíveis aos inte-ressados. Há textos sobre eleições, partidos, intelectuais, mídia, guerra,biografia, entre outros, em que se enfatiza o uso de fontes e abordagensinovadoras. Porém, e significativamente, entre os textos do livro não háum capítulo para cultura política. O conceito não está ausente do trabalho,mas aparece apenas em referências breves, principalmente na introduçãoe na conclusão do livro, ambas escritas por Rémond.H Ele prenuncia quecultura política, conceito novo, tendia a ocupar lugar de destaque emfuturos trabalhos, e apresenta uma definição da categoria mais próximade modelos tradicionais, associando-a à configuração nacional ("ethos deuma nação", "gênio de um povo'')."

Alguns historiadores do grupo seguiram por essa senda e desenvolve-ram o conceito, mas o fizeram a partir de diversa apropriação de culturapolítica. É certo que esses autores tiveram como ponto de partida a con-tribuição norte-americana,'? mas ao contrário dos cientistas sociais dosEUA - muito influenciados pela sociologia e a psicologia - o grupo francêstem sua maior fonte de inspiração na antropologia, de cujo conceito de

t .8 No capítulo que escreveu para a coletânea, dedicado aos partidos políticos, SergeBerstein também menciona, rapidamente, cultura política. Porém, em postura con-trastante com o posterior investimento e importância que conferiria ao conceito, aquiBerstein entende cultura política como fenômeno integrante da ideologia.9 Eis as passagens do texto, na íntegra: "Enfim, a noção de cultura política, queestá prestes a ocupar, na reflexão e explicação dos fenômenos políticos, um lugarproporcional ao vazio que ela acaba de preencher, implica continuidade na lon-guíssima duração"; e "O que se chama às vezes de cultura política, e que resume asingularidade do comportamento de um povo, não é um elemento entre outros clapaisagem política; é um poderoso revelador cio ethos de uma nação e ciogênio deum povo" (Rémond, 1996:35e 450).10 Vale a pena investigar melhor os meios de 'transmissão que permitiram essaapropriação. Uma dessas vias pode ter sido o livro da historiadora norte-americanaLynn Hunt, de 1984, notável estudo sobre a Revolução Francesa e que encontrouboa acolhida na França. Uma das categorias de análise utilizadas por Hunt foiexatamente cultura política.

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cultura se apropriaram. Eles formularam outra forma de conceber culturapolítica, tomando por base duas críticas principais ao modelo originalnorte-americano: primeiro, rejeitaram suas implicações etnocêntricas,pois ficava implícita na teorização de Almond e Verba a superioridadeda cultura política cívica (ou democrática), considerada etapa superior ereferência a ser seguida pelos povos ainda presos a formas "atrasadas" deorganização política; segundo, entendiam ser inadequada a perspectivanacional, tida como excessivamente generalista ao atribuir a todo um povoas características de uma mesma cultura politica.'!

Ao contrário, os historiadores franceses preferem enfatizar as diferen-ças existentes dentro de um mesmo espaço nacional, a partir de um olharque privilegia a "pluralidade das culturas políticas" (Ber~tein,1988:354).Assim, ao invés de procurar por uma cultura política específica de cadapovo, ou tentar enquadrar as diversas experiências nacionais na tipologiade Almond e Verba (cultura paroquial, cultura da sujeição ou culturaparticipativa), os trabalhos inspirados em Berstein e Sirinelli buscamidentificar as diferentes culturas políticas que integram e disputam ummesmo espaço nacional. Dessa forma, privilegia-se o estudo das culturaspolíticas comunista, socialista, liberal, conservadora (tradicionalista), re-publicana, entre outras, que Berstein chama de famílias políticas. Aliás,não fica clara a distinção estabelecida por esse autor entre cultura polí-tica e família política, que parecem representar o mesmo fenômeno. Nãoobstante enfatize a necessidade de tratar as culturas políticas sempre noplural, Berstein admite, em determinados contextos, a predominância dealgumas delas, como a cultura republicana na França dos anos iniciaisdo século XX.

O investimento que tais autores têm feito nessa vertente "pluralista"do conceito guarda estreitas relações com a história política francesa. Essepaís foi marcado por grandes controvérsias e momentos de polarizaçãoaguda, opondo, por exemplo, em diferentes momentos, monarquia uersusrepública, e socialismo versus liberalismo. Num quadro de disputas acir-radas, em que não há consensos políticos básicos e os grupos se engalfi-nham em torno de projetos mutuamente excludentes, fica difícil imaginar

11 Esse argumento crítico não é inteiramente justo, pois, como vimos, Almond eVerba entendiam que em muitos países prevalecia uma mescla entre as 3 culturaspoliticas. Creio que, nesse ponto, a crítica de Berstein visa a um tema secundário,deixando de atacar o ponto principal: o esquematismo da tríade proposta petadupla de cientistas sociais norte-americanos, que pretende resumir toda a gama dofenômeno das culturas políticas a apenas três formas essenciais.

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:E~ a existência de referências políticas coletivas, aceitas sem contestação portodos ou mesmo pela maioria.

Na conclusão de um de seus trabalhos mais recentes, a coletâneaCultures polítíques en France, Berstein adotou posição mais nuançada sobreo tema, partindo da constatação de que a exceção francesa já não existiriamais (Berstein,1999:396). A França estaria vendo o fim da característicaque a distinguia dos outros países centrais: o fato de ser dividida e con-flagrada por culturas políticas rivais. Nos albores do século XXI, o paíscaminharia para um quadro de virtual consenso básico em torno dosvalores liberal-democráticos, de modo que deixava de ser exceção e seaproximava do modelo de cultura política dos outros países desenvolvidos.Nesse texto, Berstein deixa entrever uma oposição menos rígidaem rela-ção à conceituação ao estilo norte-americano; ao falar num processo deaproximação entre as culturas políticas na direção de consensos nacionais,e ao chamá-Ias de sub-culturas, implicitamente está sendo admitida aexistência de uma cultura política nacional. Penso que não há razão paraopor os dois modos de aplicar o conceito, quer dizer, a versão no singular(cultura política nacional) e a versão no plural (culturas políticas disputandoe tentando ocupar o mesmo espaço). A discussão será retomada adiante,mas por ora diria que as duas maneiras são válidas e, mais ainda, emalguns casos chegam a ser complementares.

Partindo do que já foi dito até aqui, é possível, além de necessário,construir uma conceituação para cultura política. A proposição é polêmi-ca e, inevitavelmente, não vai agradar a todos os interessados, mas valea pena correr o risco na tentativa de aprofundar o debate. Uma definiçãoadequada pará cultura política, evidentemente influenciada pelos autores jámencionados, poderia ser: conjunto de valores, tradições, práticas e repre-sentações políticas partilhado por determinado grupo humano, que expressauma identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim comofornece inspiração para projetos políticos direcionados ao futuro.

Importa realçar que a categoria representações está sendo entendidano sentido de "re-apresentar uma presença (sensorial, perceptiva) ou fazerpresente alguma coisa ausente, isto é, re-apresentar como presente algo quenão é diretamente dado aos sentidos" (Falcon, 2000:46)Y Dessa maneira,com base em enfoque de sentido amplo, representações configuram umconjunto que inclui ideologia, linguagem, memória, imaginário e iconogra-fia, e mobilizam, portanto, mitos, símbolos, discursos, vocabulários e uma

12 Na maneira como a categoria representações é apropriada aqui, contemplam-setanto questões referentes à cognição quanto à imaginação.

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rica cultura visual (cartazes, emblemas, caricaturas, cinema, fotografia,bandeiras, etc.).

O trabalho com tal tipo de conceituação traz uma série de questões eimplicações, e sugere algumas reflexões que passo a abordar de maneiramais pormenorizada:

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• As variadas formas de manifestação das culturas políticas podem sermais bem observadas em dimensão comparativa. É colocando em contrasteculturas políticas diversas que melhor visualizamos suas característicase peculiaridades, que ficam mais visíveis quando comparadas com o di-ferente, o outro. Assim, por exemplo, a tendência de um grupo a resolverde maneira conciliatória e pragmática seus conflitos é mais bem compre-endida quando se observa o comportamento diverso de outros diante desituações semelhantes, em que não são possíveis soluções negociadas, e asdisputas são resolvidas à base do confronto. Porém, admitir a importânciado comparativismo não implica aceitar o olhar que hierarquiza as culturaspolíticas e tenta enquadrá-Ias em chave evolucionista.

Na acepção usada aqui, cultura política só pode existir na duração,como fenômeno estruturado e reproduzido ao longo do tempo. Se formosusar a tipologia de Fernand Braudel, para configurar uma cultura políticaseria preciso pelo menos a média duração, não obstante alguns casos pos-sam ser classificados como de longa duração (a exemplo de republicanismo, "liberalismo e socialismo). Parece inadequado usar cultura política tendocomo referência situações efêrneras, passageiras, pois se perde a força doconceito, que reside exatamente em revelar como certos comportamentospolíticos são influenciados por elementos arraigados na cultura de umgrupo. O valor explicativo do conceito reside em mostrar como as açõespolíticas podem ser determinadas por crenças, mitos, ou pela força datradição. Por isso, não há lugar para o efêrnero.

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Q Iv C pelo controle do Estado. Embora sejam adversanas, e com freqüência~ () ( . ,;possuam características antitéticas, às vezes elas se deixam influenciar por

ç (',~alores defendidos pelas concorrentes, sobretudo quando eles encontrama t p.. ~grande aceitação social. De maneira semelhante, as culturas políticas9 gl f; ..••não são infensas à ação do tempo. Embora mantendo as características2> d ('. '::básicas que lhes garantem a identidade, elas podem adaptar-se às mu-t U C Ó danças experimentadas pelas sociedades ao longo do tempo, que tornam" ,,_.~..,.....".determinados temas obsoletos e trazem à tona novos problemas. As que.•....• /~ {\-

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demonstram maior rigidez e dificuldade para se reciclar correm sériorisco de esclerosar-se e perder densidade social, como tem acontecido emalguns casos (Berstein,1999:394-395).

• Restringir os estudos de cultura política ao tema das representaçõespode empobrecer a compreensão do fenômeno, pois as ações e práticas porelas ensejadas, e que também atuam na sua constituição, são igualmenteimportantes. De fato, o vasto patrimônio que conforma as culturas políticasdepende, para sua formação, das ações de seus inspiradores originais edos aderentes posteriores. Para a construção dos grandes mitos históricosque fazem parte das culturas, com seus heróis e mártires, bem como odesenrolar dos eventos-chave a eles relacionados, foi importante a açãopolítica de determinadas personagens. Por outro lado, a reprodução notempo das culturas políticas demanda a realização de práticas reiterativas,como a repetição de rituais e cerimônias, e a participação em eventos emanifestações que servem para selar o compromisso dos aderentes, con-firmando o sentido de pertencimento a um grupo.

Mas não se deve opor práticas e representações, como se houvesseentre as duas dimensões uma. clara linha de determinação. O melhor éconsiderar a existência de relações de mútua determinação, ou uma espéciede "via de mão-dupla". As ações influenciam as representações, que nelasse inspiram e buscam forma, e também garantem sua reprodução atravésde práticas rituais. Porém, as representações, ou os diferentes modos comoos grupos figuram o mundo, são determinantes para suas escolhas e ações,pois os homens agem a partir de apreensões da realidade. Como sabemos,elas são inevitavelmente incompletas e imperfeitas; no entanto, algumasimplicam distorção maior da realidade, devido a interesse, paixão políticaou sentimentos como o medo. Influenciados por tais representações, oshomens orientam suas ações, e às vezes agem movidos por paixões quecegam.

• É importante considerar, seguindo sugestiva análise de Serge Berstein(desenvolvendo argumento original de Almond e Verba), a existência devetores sociais responsáveis pela reprodução das culturas políticas, comofamília, instituições educacionais, corporações militares, partidos e sin-dicatos. Nada mais natural, quando lidamos com categoria que pressupõeque as escolhas políticas dos indivíduos são determinadas por filiação agrupos e/ou a tradições. A essa lista vale agregar outros vetares de sociali-zação, como as Igrejas, e também adicionar a importância dos veículos dedisseminação impressos, como periódicos e livros. Nos casos de famíliase Igrejas, estamos diante de algo que envolve a ligação dos indivíduos a

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grupos sociais mais abrangentes, que interferem em sua formação paraalém da dimensão política. A adesão política, nesses casos, decorre, aomenos em parte, da identificação aos valores defendidos pelo grupo, demodo que a escolha política pode revelar, na verdade, a fidelidade aospais ou à religião. Os impressos são veículo fundamental na divulgação edisseminação dos valores das diferentes culturas políticas, e são usadospropositadamente com tal fim. Nos textos dos livros e jornais, e tambémnas suas imagens visuais, desfilam heróis (e, tão importantes quanto es-ses, os desprezíveis inimigos), mitos, símbolos e os valores morais dogrupo, e nessas publicações muitas pessoas encontraram motivação paraidentificar-se e aderir.

Quanto aos partidos, é importante esclarecer uma confusão freqüente,pois é tentador resumir as culturas políticas às formações partidárias. Asculturas políticas são construções que transcendem as instituições partidá-rias. É verdade, muitas vezes elas dão origem à organização de partidos,nelas inspirados e motivados a tentar colocar em prática os respectivosprojetos políticos. Porém, há pessoas que se identificam com determinadacultura política mas não com os ,Partidos nela inspirados, considerando-osindignos ou infiéis à tradição. E comum ver culturas políticas dando ori-gem a diversas formações partidárias, às vezes concorrentes na luta pelopapel de principal representante do grupo, e algumas mal se adaptam aoformato partidário, como o peronismo, por exemplo.

• O conceito pode ser aplicado a espaços sociais diferenciados, servindopara designar desde coletividades reunidas à volta de projetos específicosde ordenamento da sociedade (liberalismo, socialismo, etc.), até gruposnacionais ou mesmo regionais. Por isso a opção de alguns autores em pensá-Ias sempre em formato plural, dividindo o mesmo espaço social, enquantooutros enfatizam a cultura política singular de cada grupo nacional. Háa opção, também, de manter cultura política para designar a coletividadenacional e usar-se sub-cultura para os diferentes grupos em disputa nointerior do espaço nacional, tanto os ligados às grandes tradições (libera-lismo, socialismo, etc.) quanto, no caso de alguns países, aqueles identi-ficados com discursos regionais. Penso que não é fundamental discutir aadequação ou não do termo sub-cultura. Mais importante é perceber quenão há incompatibilidade entre os dois modos de conceber cultura políti-ca, no singular e no plural, o modo pluralista e a perspectiva nacional. Épossível admitir a existência de padrões culturais coletivos a um povo, umacultura política brasileira, por exemplo, ao mesmo tempo convivendo comculturas ou sub-culturas que disputam esse espaço nacional, e que podem,apesar de suas divergências, carregar algumas características semelhan-

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• Estudos de cultura política possuem forte convergência com as pesquisasdedicadas às diversas formas de manifestação das representações políti-cas" (imaginário, iconografia, mitologias, etc.), devido à comum motivaçãode compreender os impactos gerados pelos encontros entre cultura e po-lítica. No entanto, nem toda história cultural do político implica o uso dacategoria cultura política. O fato de Marc Bloch ter mostrado a importânciada crença nos poderes taumatúrgicos dos monarcas na Europa medievalnão significa, necessariamente, que se deva falar na existência de umacultura política medieval. É comum, entre os partidos políticos, o uso desímbolos e outras manifestações de linguagem visual em suas campanhas,para comunicar mensagens aos eleitores; mas isso não implica sempre afiliação a alguma cultura política. Portanto, para os que se aventuram nocampo da história cultural do político é preciso atenção para não confundir,por exemplo, imaginário político com cultura política.

• Deve-se tomar cuidado para evitar outro tipo de confusão possível quan-do se trabalha nesse terreno: cultura política não é sinônimo de políticacultural, que pode ser definida como o conjunto de ações de determinadoEstado ou agente político direcionadas à cultura. Aqui há um ponto deconvergência também, porque algumas culturas políticas servem de inspi-ração para autoridades estatais criarem suas políticas culturais, a exemplodo que ocorreu na União Soviética com o realismo socialista. Mas em quepese a existência desses "pontos de encontro", política cultural e culturapolítica são coisas distintas.

13 Obviamente, há outro sentido possível para representação política, que não estásendo considerado aqui. Trata-se de representação que significa delegação, como nomecanismo eleitoral por meio do qual os cidadãos escolhem pessoas para representá-Ias no parlamento.

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• Questão de fundamental importância são as relações polêmicas existentesentre os estudos de cultura política e a tradição marxista. Trata-se de umarelação em que há algumas áreas de convergência, mas também muitospontos de tensão e eventuais choques. O tema é complexo e demanda maisreflexões, e não fugirei ao risco de oferecer contribuição ao debate.

Os estudos que colocam ênfase no fator cultural desenvolveram-se numquadro de declínio da influência do paradigma marxista, que tradicional-mente colocava a cultura em posição secundária, dependente das estruturaseconômico-sociais. O marxismo tradicional reconhecia a existência e aimportância da cultura e da ideologia, mas, na prática, elas eram subme-tidas aos ditames da estrutura classista da sociedade, ocupando um lugarna "superestrutura". O "marxismo", na verdade, é constituído por umapluralidade de leituras e apropriações dos textos do fundador, algumas maise outras menos fiéis. Porém, independentemente de serem ou não leiturascorretas do pensamento de Marx, o fato é que as versões deterministasderam o tom dominante ao marxismo durante muito tempo. Nos anos de1960, o marxismo oficial perdeu credibilidade nos meios acadêmicos, ealguns intelectuais de filiação marxista passaram a questionar os modeloseconomicistas. Essa é uma das razões para a descoberta dos trabalhos deAntonio Crarnsci, cujas reflexões ofereceram compreensão mais sofisticadasobre o papel da cultura. Outros autores marxistas deram contribuiçãosignificativa aos estudos sobre a cultura, como Edward Thompson e Ray-mond Williams, com trabalhos renovadores e questionadores dos cânonesdo marxismo tradicional. 14

Pode ser atribuída à influência marxista a existência de uma ver-tente peculiar de apropriação do conceito cultura política, que associa ofenômeno à estrutura de classes. Daí a existência de estudos dedicadosà cultura política operária, ou à cultura política popular, por exemplo.Nesses estudos, cultura política assume lugar de proeminência, porém,em alguns casos permanece, embora nem sempre explicitado, o supostode que ela é determinada pelo fator sócio-econômico. Assim, espera-seencontrar entre o mesmo grupo social valores políticos comuns, ou seja,uma cultura política compartilhada, fruto de vivência social e interessescoletivos. O problema com esse tipo de abordagem é que ele pode levar auma generalização abusiva, ao atribuir a todo um grupo social, à classetrabalhadora por exemplo, comportamentos e valores políticos idênticos. O

HNo caso de E. Thompson, principalmente em Aformação da classe operária inglesa(1987) e Costumes em comum (1998); quanto a R. Williams, O campo e a cidade nahistória e na literatura (1989) e Marxismo e literaura (1979).

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risco é semelhante ao enfrentado pelos trabalhos sobre a cultura políticade determinado povo ou nação: a mesma tendência a um olhar genera-lizante, que tende a desconsiderar as peculiaridades internas ao grupoestudado.

Estudos que enfatizam o potencial agrega dor das representaçõespodem oferecer mais consistência, pois não supõem coincidência entreclasse e política. As culturas políticas mais sólidas, como comunismo,republicanisrno ou fascismo, para ficar em apenas alguns exemplos, cru-zam as diferentes classes sociais e atraem pessoas de origens diversas. Éverdade que algumas delas, notadamente as de esquerda, fazem apelosdirigidos a grupos específicos, como os operários ou os trabalhadores. E,na história de partidos de esquerda encontram-se, de fato, casos de forteidentificação entre grupo social e projeto político. Mas há momentos em queas organizações de esquerda fazem chamados mais amplos, dirigindo-seàs mulheres, aos jovens e mesmo aos pequenos proprietários e, às vezes,à vasta e indefinida categoria povo, de modo que as culturas políticas deesquerda atraem aderentes da mais diversa origem social. Naturalmente,é possível combinar as duas possibilidades e estudar as relações entregrupos sociais específicos P. determinadas culturas políticas, e, de novo,o melhor exemplo seriam os laços entre trabalhadores e esquerda. Mas épreciso cautela para evitar os excessos generalizantes, pois há grupos detrabalhadores mais propensos a se deixar sensibilizar por apelos da direi-ta. Por outro lado, deve ser considerada a pluralidade da esquerda, que,embora possua uma série de valores comuns (igualdade, universalismo,laicismo), é fragmentada em grupos com culturas próprias, disputandoentre si os corações e as mentes dos trabalhadores.

Outro ponto fundamental para discutir as relações entre marxismo e aspesquisas sobre cultura política é a categoria ideologia. Conceito central natradição marxista, ideologia ocupou lugar proeminente na superestruturaimaginada pelo filósofo alemão. O conceito tem duas acepções principais.No primeiro caso, ideologia significa falsa consciência e implica o mas-caramento da realidade. Trata-se do processo através do qual a classedominante constrói uma falsa representação da realidade, com que esca-moteia a sua dominação e garante a obediência dos grupos dominados. Nasegunda acepção, ideologia significa um conjunto de idéias que dá formaa determinados projetos políticos e impele à luta pela conquista do poder,e aí teríamos a ideologia fascista, a liberal, a socialista, etc.

Utilizando o conceito na segunda acepção apontada, ideologia nãoapenas é compatível com cultura política, como enriquece a nossa com-preensão do fenômeno. Pode-se dizer que muitas das culturas políticas

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consistentes possuem ideologia, entendida como um sistema de idéias queconstitui o seu cerne. Mas é importante não resumir uma coisa à outra,e perceber que a cultura política transcende e vai além da ideologia, aomobilizar sentimentos (paixões, esperanças, medos), valores (moral, hon-ra, solidariedade), representações (mitos, heróis) e ao evocar a fidelidadea tradições (família, nação, líderes). Toda a força da categoria culturapolítica reside na percepção de que parte das pessoas adere menos pelaconcordância com as idéias e mais por identificar-se com os valores e astradições representadas pelo grupo.

Já ideologia no sentido de falsa consciência é mais difícil de sercombinada com a fundamentação teórica de cultura política. Primeiro,porque pode levar à pressuposição da existência de verdade única, quea ciência seria capaz de desvendar." Se existe uma falsa consciência, éporque há uma verdadeira; se a realidade é ocultada pela ideologia, elatambém pode ser revelada." Segundo, em tal acepção ideologia enfatizaa manipulação, o logro, enquanto cultura política implica a suposição quepessoas aderem a certas representações da realidade capazes de ofere-cer compreensão do mundo, ao mesmo tempo fornecendo identidades àque se filiar. Entendida como falsa consciência, ideologia pode excluir apossibilidade - a meu juízo, a maneira mais fértil de encarar a questão- de que culturas políticas, armadas com representações fragmentáriase distorcidas, mas ainda assim filiadas ao real, concorram entre si paraa conquista de aderentes em meio aos diversos grupos sociais. Mas, valea pena ressaltar, isso não significa negar a ocorrência de manipulação elogro em outras instâncias do jogo político.

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15 É importante ressalvar que existem intérpretes do marxismo mais sofisticados,que questionam as versões simplificadoras de ideologia e propõem análises maiscomplexas das relações entre mistificação e realidade. Entre os seguidores atuaisde Marx há tanto os que negam validade ao conceito de ideologia entendida comofalseamento quanto os que mantêm a convicção sobre o caráter ilusório de certasrepresentações ideológicas, mas admitindo que em outros casos elas têm correspon-dência com o reaL Sobre esse debate conferir Eagleton (1997).

16 Esta afirmação não implica a aceitação dos pressupostos relativistas. Voltarei àdiscussão sobre representação e verdade adiante.

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As possibilidades abertas pelo enfoque nas culturas políticas sãoamplas e férteis, e apenas recentemente começaram a ser exploradas pelahistoriografia brasileira. Estudos inspirados por esse campo conceitualpermitem uma compreensão mais rica e sofisticada do comportamentopolítico, indo além da tradicional ênfase no interesse e na adesão a idéiascomo fatores motivadores. Sem a intenção de opor à escolha racional umparadigma culturalista, os estudos dedicados às culturas políticas revelamoutras dimensões explicativas para os fenômenos políticos, como a forçados sentimentos (paixões, medo), a fidelidade a tradições (família, religião)e a adesão a valores (moral, honra, patriotismo).

A partir desse enfoque é grande o elenco de pesquisas a serem realiza-das, tanto em abordagens restritas ao Brasil, quanto incorporando olharescomparativos. Há desde caminhos mais tranqüilos a serem percorridos,em que a presença de cultura política seria mais fácil de demonstrar, aoutras opções mais arriscadas, em que trilhas precisam ser abertas e osresultados são incertos. Podem ser estudadas, tomando como inspiraçãoa matriz "pluralista", as culturas comunista, conservadora, republicana eliberal, por exemplo. Nos dois últimos casos, tais pesquisas ajudariam ademonstrar as peculiaridades a distinguir republicanismo de liberalismo,que com muita freqüência passam despercebidas. No caso do Brasil háexperiências políticas singulares, que vale a pena abordar pelo prisma decultura política. A tradição trabalhista, por exemplo, configuraria uma cul-tura política? Na contramão da perspectiva que enfatiza o caráter populistado trabalhismo, estudos com enfoque na cultura política ajudam a avançaresse debate." Outro caso interessante é o do Partido dos Trabalhadores,cuja peculiar militância política inspirou o uso da expressão petismo. Teriao PT originado uma cultura política própria? Seja qual for a resposta, serianecessário perceber a influência sobre o petismo de culturas de esquerdaprecedentes, como a socialista e a comunista.

Como já foi dito, o enfoque pluralista não é incompatível com o uso decultura política no singular, aplicada a grupos nacionais. Alguns estudostentaram caracterizar a cultura política brasileira com base no suporte teó-rico-metodológico da ciência política (Carvalho, ,2000). Seriam bem-vindasmais incursões de historiadores nesse terreno. Um tema que poderia serexplorado é o da conciliação, para muitos traço marcante da cultura brasileirade maneira geral, não dizendo respeito apenas à política. Nesse sentido, as

17 Angela de Castro Gomes (2005:33-41) foi pioneira na abertura dessa trilha deinvestigação sobre o trabalhisrno. Para uma perspectiva diferente, que defende ouso da categoria populismo, ver Fortes (2007:63-83).

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análises de Roberto DaMatta são particularmente interessantes, ao defenderque a lógica relacional é marca central da cultura brasileira, calcada na re-cusa a definições rígidas e no horror aos conflitos, que são evitados em favorde ações gradativas, moderadoras, conciliadoras e integrativas (DaMatta,1997). Antes dele, Gilberto Freyre já havia feito referências ligeiras ao temada conciliação, elogiando a capacidade de contemporização dos brasileirosno episódio do 15 de novembro de 1889, a seu ver uma manifestação maisde sabedoria do que de apatia (Freyre, 1959:9), reveladora da capacidadede evitar conflitos em busca de mudanças com estabilidade. José HonórioRodrigues também abordou a questão, mas com perspectiva mais critica emenos otimista, vendo na conciliação essencialmente um estratagema daselites para excluir o povo e tentar convencê-lo de que é pacífico e ordeiro pornatureza. A existência de episódios de intensa violência política e estranhosao modelo conciliatório, como a Balaiada ou Canudos, que trouxeram àarena pública a presença de grupos populares, seria evidência dos limitesà disposição dos grupos dominantes em transigir e negociar. Embora pro-cure denunciar o logro implicado na conciliação, Rodrigues não nega suapresença marcante na história hrasileira.!"

A força da tradição conciliatória no Brasil talvez seja uma razão parao comtismo ter encontrado tantos adeptos no país. A divisa "ordem eprogresso" é síntese perfeita do espírito conciliador, que entre nós se ma-terializou em arranjos políticos de perfil modernizante-conservador. Defato, encontramos a manifestação de tendências conciliatórias em váriosmomentos e episódios de nossa história, entre eles: o próprio surgimen-to do país independente, em que o processo foi liderado pelo Príncipeportuguês, evitando rupturas bruscas; o modo como foi implantada aRepública em 1889, em que as lideranças políticas do velho e do novosistema acomodaram-se com poucos choques; o Estado Novo e a estraté-gia getulista de integração de tendências aparentemente opostas, que fezescola; os resultados da crise de 1964, que, em vez da guerra civil, gerou"guerra de saliva"; a transição pós-autoritária, em que a anistia significourealmente esquecimento e perdão; a ascensão de Lula e do PT ao poder,viabilizada por aliança reunindo forças de esquerda e direita.

O recurso à conciliação, à busca de soluções de compromisso que evitemo caminho de rupturas radicais fica mais visível quando o olhar é compa-rativo. Colocando em contraste o Brasil com países como Estados Unidos

18 No prefácio à segunda edição do livro, Rodrigues (1982) atenua um pouco seuargumento, ao dizer que os brasileiros são efetivamente menos cruentos que outrospovos.

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e Argentina, por exemplo, os resultados instigam à reflexão. No primeirocaso, chama a atenção a maneira como o embate escravidão X abolição foiresolvido nos dois países: com a guerra civil, nos EUA, de maneira lenta enegociada, no Brasil. Com a Argentina há várias possibilidades de compa-ração, mas podemos enfatizar o período de 1930 a 1970, em que os doispaíses viram-se às voltas com situação semelhante: conflitos entre esquerdae direita, fragilidade das instituições e partidos, intervenções militares eperíodos ditatoriais. Em que pesem as semelhanças, na Argentina houvepouco espaço para compromisso entre os grupos rivais: expurgos dramáticosno serviço público, matanças maciças de parte a parte e golpes sanguinários.No Brasil houve repressão e expurgos, bem o sabemos, mas os regimesautoritários temperaram perseguição com cooplação, violência extralegalcom o uso de mecanismos legais. Essa é uma das principais razões porquea transição política no Brasil foi mais suave e menos dramática para osmilitares envolvidos com a repressão, enquanto na Argentina vários chefesforam julgados e condenados. Ressalve-se que não se está dizendo que asnossas ditaduras são melhores do que as deles, menos ainda negando aexistência de violência política no Brasil, o que seria uma tolice.

Uma digressão: a conciliação à brasileira traz mais vantagens oudesvantagens? Considerando o saldo positivo, é mais fácil passar de umregime à outro, com menos violência e ódio, menores traumas a admi-nistrar; portanto, há terreno mais fácil para abrir caminho à mudança.Porém, olhando pelo outro prisma, alguns problemas tendem a não serresolvidos, e sim postergados para um futuro indefinido. No que tange aoperíodo ditatorial, o melhor é perdoar, e com isso evitar novos traumas(pense-se nos levantes dos caras-pintadas na Argentina, em resposta àspunições aos militares pelo governo Alfonsín), ou punir culpados e com issodesestruturar os grupos que tomaram parte na repressão? Qual o melhorcaminho para superar o autoritarismo e consolidar a democracia?

Evidentemente, a presença de tradição conciliadora não basta paracaracterizar uma cultura política. No caso brasileiro há outros temas aexplorar, como os laços frágeis entre povo e cidadania, discussão já clás-sica no pensamento político.'? Seria o caso de restringir a explicação àação nefasta das elites, responsáveis por fechar aos setores subalternos osespaços de participação política, ou não haveria um pouco de auto-exclusão

19 Ressalte-se: concordar com tal linha de análise não implica a aceitação de tesesracistas ou idéias sobre uma espécie de incapacidade inata dos brasileiros, nem excluia possibilidade de perceber a existência de outras formas de participação na vidacoletiva, para além da institucionalidade política tradicional (Carvalho, 2000).

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também? Outra questão a merecer reflexões: a modesta participação po-pular na política institucional tem sido pontuada por explosões de fúria emomentos de mobilização. Além dos episódios do século XIX já referidos,podem ser lembrados: a Revolta da Vacina, as inúmeras quebras de bon-des e ônibus no decorrer do século XX,20 a reação popular ao suicídio deGetúlio Vargas em 1954, a mobilização popular de 1962-64, em que seviram saques ao comércio em algumas cidades, a campanha popular pelasDiretas-já em 1984, ou os caras-pintadas em 1992. Se o argumento estivercorreto, é preciso tentar explicar por que o padrão de fraca atuação políticaé pontilhado de ocasionais picos participativos. E, sobretudo, compreenderpor que tais momentos são tão intensos como fugazes.

Para finalizar a discussão sobre as possibilidades nos estudos de cultu-ra política, é interessante mencionar que pesquisas sobre culturas regionaispodem abrir um bom filão de análise. Alguns autores têm defendido aexistência de uma cultura política carioca (Motta, 1999), por exemplo, evale a pena tentar aplicar o conceito a outras regiões, como Minas Gerais,São Paulo ou Rio Grande do Sul. É debate polêmico, não há dúvida, maspode trazer conclusões interessantes. Na pior hipótese, mesmo não se con-figurando a existência efetiva de culturas políticas regionais, será possívelcompreender melhor as representações políticas construídas pelas elitesdesses estados, e sua maior ou menor capacidade de persuadir as pessoasa identificarem-se e a agirem de acordo com tais construções.

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"'I A última parte deste texto é dedicada a discutir os riscos que o trabalhocom a categoria cultura política implica, bem como os desafios ainda aenfrentar para dar solidez ao seu aparato teórico-metodológico.

Um dos desafios é investir nas discussões sobre' como aplicar o con-ceito a períodos da história anteriores ao mundo contemporâneo. Algunsdos principais autores a teorizarern sobre o tema tiveram em mente ahistória contemporânea quando definiram cultura política, ou seja, omundo europeu (e sua área de influência) a partir do século XVIII. Ea razão é que nessa fase há transformações na dinâmica política, com aentronização do conceito de que o Estado deve corresponder aos desejos

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20 Roberto DaMatta propõe uma interpretação interessante para os "quebra-quebras",em Carnavais, malandros e heróis (1981).

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do povo, composto não mais por súditos, mas por cidadãos com direitoa participar dos negócios públicos. Abrem-se, assim, as condições paraque projetos, idéias, valores e representações políticas ganhem forma econstituam culturas políticas, a disputar a atenção de indivíduos e grupossociais na cena pública. A categoria supõe que as pessoas tomam partemovidas por fatores culturais, mas está presente também o elemento daadesão, da escolha.

Não obstante, alguns autores têm utilizado cultura política para períodoshistóricos anteriores, como a Roma antiga (Flower, 2006) por exemplo, masinvariavelmente sem explicitar o modo como estão se apropriando do con-ceito. Em alguns casos, trata-se de análises sobre representações políticas(linguagens, iconografia) que não implicam, necessariamente, a existênciade cultura política. Pode-se afirmar que são estudos de história cultural dopolítico, mas nem sempre há a presença de culturas políticas. Seja comofor, cabe aos pesquisadores de tais temas e períodos investir na discussãoteórica, para construir bases mais sólidas para o uso do conceito."

Na lista dos riscos que o trabalho com cultura política traz, destaque-sea possibilidade de exagerar uma linha de interpretação conservadora dahistória. Se a política é presa à tradição e arraigada à cultura, podemosser tentados a enxergar uma história imóvel, na qual nada muda e tudo éeterna repetição. Naturalmente, estamos na presença de uma distorção,tanto mais problemática para o historiador porque tal tipo de leitura, nolimite, abole a própria história.

Outro problema é a possibilidade de incorrermos numa espécie dereducionismo culturalista, que tem duas implicações. Primeiro: a ten-dência a absolutizar a determinação cultural dos fenômenos políticos,desprezando outros fatores como o interesse e a escolha individual. Aabordagem cultural é valiosa por mostrar que os indivíduos agem movi-dos por outras influências além do interesse e do cálculo racional, mas,se ela for encarada de maneira absoluta, pode empobrecer, ao invés deenriquecer, nosso conhecimento. Um exemplo, retirado das experiênciasdo autor na coleta de testemunhos orais. Um casal de comunistas, do tipoque aderiu dos pés à cabeça à cultura comunista, teve três filhos. Doisdeles tornaram-se também comunistas, mas apenas um manteve-se fiel atéà morte, e a identificação com os pais foi fator determinante na escolha.

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~:!•..•.. 21 Creio que a ancoragem mais segura para viabilizar a aplicação de cultura políticaa períodos recuados não será encontrada nas concepções de Berstein, mas numatentativa de adaptar a tipologia de Almond e Verba, principalmente por meio dosconceitos de cultura paroquial e cultura da sujeição.

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Porém, o terceiro não aderiu ao comunismo, embora tivesse relações comos pais tão boas quanto os irmãos ...

Segunda observação sobre o reducionismo culturalista: há estudosque enfoc.am as representações como uma espécie de fenômeno etéreo,pairando acima e fora da dinâmica social. Tal tendência está relacionadaa certo modo de encarar os laços entre representações e realidade, eivadade relativismo radical. Nessa vertente, o real só existe enquanto represen-tação, e como todas as representações são igualmente incapazes de revelara verdade todas são válidas. Por isso, estudar as representações bastapara alguns autores, sem preocupar-se em distinguir as mais próximas darealidade ou as mais fantasiosas (às vezes pura falsificação), tampouco empesquisar os impactos que produzem na realidade. Essa discussão remetea uma polêmica que não é possível aprofundar aqui, e que na verdadepersegue a teoria do conhecimento desde suas origens, sem solução visível:a questão ela realidade e da verdade, se é possível representar ou não omundo. Mas o relativismo radical deve ser evitado, pois leva à conclusãode que qualquer representação é aceitável, pois todas são parciais. Não éverdade: algumas são mais distorcidas, às vezes falsas, enquanto outrasproduzem versões mais próximas da realidade. 22

Evitando tanto o relativismo quanto o cientificismo ingênuo, a ma-neira mais fértil de encarar as relações entre realidade e representaçõesé reconhecer a interdependência das duas esferas, perceber os laços in-trincados que as atam de maneira forte. As representações estão calcadasna realidade, estão em diálogo com o mundo social, a vida concreta, e aomesmo tempo interferem no seu desenrolar. No campo político, há inúmerosexemplos para ilustrar situações em que representações imprimem rumoà realidade. Vejamos um deles: o temor ao c.omunismo, freqüentementedesproporcional à força efetiva dos revolucionários, abrindo caminho agolpes de Estado e a regimes autoritários. Em suma, as culturas políticasresultam da imbricação entre práticas e representações, e o olhar sensívela apenas uma das esferas é empobrece dor.

22 "As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas,nem muros que obstruem a visão, como pensam os cépticos: no máximo poderíamoscompará-Ias a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquerfonte implica já um elemento construtivo. Mas a construção [...) não é incompatívelcom a prova: a projeção do desejo, sem o qual não há pesquisa, não é incompatívelcom os desmentidos infligidos pelo princípio de realidade. O conhecimento (mesmoo conhecimento histórico) é possível" (Ginzburg, 2002:44-45).

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A aplicação da categoria cultura política ao Brasil merece reflexõescuidadosas, em vista dos argumentos sobre a suposta fragilidade dos laçosentre os brasileiros e a política. A seguir tal linha de pensamento, ela im-plicaria a existência de culturas políticas frágeis no país, pouco enraizadase com adesão superficial. A não ser na vertente eurocêntrica do conceito,para a qual, então, o Brasil não teria cultura política, seria politicamente"inculto", essa constatação não tira a legitimidade da aplicação da categoriaà história do nosso país. Como disse antes, esse pode ser um traço da cul-tura: política brasileira: frágil cidadania, pouco envolvimento da populaçãocom a coisa pública. De qualquer forma, é um dado a ser consideradoem futuras pesquisas, para que se possa dimensionar adequadamente asformas de manifestação de cultura política no Brasil.

Outro desafio para os historiadores interessados é a necessidade deinvestir mais na discussão sobre metodologias de pesquisa. Na historiogra-fia recente, os trabalhos sobre cultura política têm privilegiado o uso elefontes qualitativas. Mas a utilização de dados quantitativos pode trazer bonsresultados, sobretudo se combinados com boas análises qualitativas.ê" Porexemplo, fontes quantitativas podem servir para testar hipóteses correntessobre comportamentos políticos supostamente calcados na tradição. As-sim, a famosa moderação dos mineiros poderia ser verificada a partir elosresultados eleitorais para disputas majoritárias, arquivados nos tribunaiseleitorais. Poderiam ser avaliados e contrastados os resultados obtidos porcandidatos afinados com discursos (e imagens) políticos moderados ouradicais, em comparação com a situação em outros estados da federação.Também poderia ser averiguada a fidelidade de determinadas regiões acertos valores políticos, testando, através de séries eleitorais históricas, seas imagens da baixada santista ou do Recife como bastiões "vermelhos"nos anos 1940-1960, por exemplo, correspondem à realidade eleitoral.Mais uma possibilidade: usar os resultados das pesquisas de opiniãorealizadas pelo menos desde os anos de 1950 na tentativa de encontrarpadrões estáveis de comportamento e valores políticos.

Enfim, há muitos desafios, problemas e polêmicas envolvidos nas pes-quisas sobre o fenômeno da cultura política, mas as possibilidades que sedescortinam à nossa frente são bastante instigantes, fazendo com que osriscos implicados no trabalho com esse campo conceitual valham a pena.

23 Nesse terreno pode-se tirar bom proveito das pesquisas e dos métodos desenvolvidospor cientistas políticos. Um trabalho muito interessante foi realizado por Putnam(1996) para estudar a cultura política italiana.

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Page 14: MOTTA, R.P.S. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia

llESAFlOS E POSSIBILIDADES NA APROPRIAÇÃO DE CULTURA POLfTlCA PELA HISTORlOGRAFlA

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