A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE À LUZ DO PRINCÍPIO...

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A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONTRIBUTO DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA Adriana Coan Especialista em Direito Imobiliário pela Unisinos/RS Mestre em Direito Público pela Unisinos/RS Advogada e Assessora Jurídica da Sociedade Educação e Caridade RESUMO O presente artigo objetiva promover a reflexão teórica sobre o direito à saúde, sob uma perspectiva constitucionalista a partir da hermenêutica filosófica 1 , salientando a necessidade de romper com o paradigma liberal individualista e de rediscutir o papel destinado ao Poder Judiciário face a inércia dos Poderes Executivo e Legislativo, trazendo à lume a importância da atuação da Sociedade Civil na concretização desse direito, promovendo uma reflexão que propicie uma compreensão do mesmo na perspectiva da dignidade da pessoa humana a partir da dimensão de solidariedade apontada pelo Estado Democrático de Direito, atual paradigma estatal. ABSTRAT This text will promove a theoric refletion about Right concerning to health with a constitucionalistic view following the philosophical Hermeneutic pointing out the necessity to break the liberal individualistic paradigm and discuss again the Judicial Right against inertness (inactivity) of the Executive and Legislative Rights, giving evidence to the performance of the Civil Society, concerning to this Ríght to raise a refletion that provides a comprehension in perpective of the human person’s dignity, according to the solidary dimension appointed by the Democratic State of Right, nowadays State Paradigm. 1. Introdução A escolha desse estudo deve-se ao fato de perceber que tema tão relevante e atual normalmente vem sendo abordado a partir da dogmática jurídica 2 ainda atrelada a 1 Streck, refere que: “Os contributos da hermenêutica filosófica para o direito trazem uma nova perspectiva para a hermenêutica jurídica, assumindo grande importância as obras de Heidegger e Gadamer. Com efeito, Heidegger, desenvolvendo a hermenêutica no nível ontológico, trabalha com a idéia de que o horizonte do sentido é dado pela compreensão; é na compreensão que se esboça a matriz do método fenomenológico. A compreensão possui uma estrutura em que se antecipa o sentido. Ela se compõe de aquisição prévia, visão prévia e antecipação nascendo desta estrutura a situação hermenêutica. Já Gadamer, seguidor de Heidegger ao dizer que Ser que pode ser compreendido é linguagem, retoma a idéia de Heidegger da linguagem como casa do Ser, onde a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado.[...] as palavras são especulativas, e toda a interpretação é especulativa, uma vez que não se pode crer em um significado infinito, o que caracteriza o dogma”. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 5ª ed. Ver. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 177-178. 2 Quando se fala da dogmática jurídica aqui se está a referir à dogmática jurídica tradicional e conservadora que refém de “um senso comum teórico positivista-normativista leva a um modo reprodutivo de fazer direito, pois refém de um “saber 1

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A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: CONTRIBUTO DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA

Adriana CoanEspecialista em Direito Imobiliário pela Unisinos/RS

Mestre em Direito Público pela Unisinos/RSAdvogada e Assessora Jurídica da Sociedade Educação e Caridade

RESUMO

O presente artigo objetiva promover a reflexão teórica sobre o direito à saúde, sob uma

perspectiva constitucionalista a partir da hermenêutica filosófica1, salientando a necessidade

de romper com o paradigma liberal individualista e de rediscutir o papel destinado ao Poder

Judiciário face a inércia dos Poderes Executivo e Legislativo, trazendo à lume a importância da

atuação da Sociedade Civil na concretização desse direito, promovendo uma reflexão que propicie

uma compreensão do mesmo na perspectiva da dignidade da pessoa humana a partir da dimensão

de solidariedade apontada pelo Estado Democrático de Direito, atual paradigma estatal.

ABSTRAT

This text will promove a theoric refletion about Right concerning to health with a

constitucionalistic view following the philosophical Hermeneutic pointing out the necessity to

break the liberal individualistic paradigm and discuss again the Judicial Right against

inertness (inactivity) of the Executive and Legislative Rights, giving evidence to the

performance of the Civil Society, concerning to this Ríght to raise a refletion that provides a

comprehension in perpective of the human person’s dignity, according to the solidary

dimension appointed by the Democratic State of Right, nowadays State Paradigm.

1. Introdução

A escolha desse estudo deve-se ao fato de perceber que tema tão relevante e atual

normalmente vem sendo abordado a partir da dogmática jurídica2 ainda atrelada a

1 Streck, refere que: “Os contributos da hermenêutica filosófica para o direito trazem uma nova perspectiva para a hermenêutica jurídica, assumindo grande importância as obras de Heidegger e Gadamer. Com efeito, Heidegger, desenvolvendo a hermenêutica no nível ontológico, trabalha com a idéia de que o horizonte do sentido é dado pela compreensão; é na compreensão que se esboça a matriz do método fenomenológico. A compreensão possui uma estrutura em que se antecipa o sentido. Ela se compõe de aquisição prévia, visão prévia e antecipação nascendo desta estrutura a situação hermenêutica. Já Gadamer, seguidor de Heidegger ao dizer que Ser que pode ser compreendido é linguagem, retoma a idéia de Heidegger da linguagem como casa do Ser, onde a linguagem não é simplesmente objeto, e sim, horizonte aberto e estruturado.[...] as palavras são especulativas, e toda a interpretação é especulativa, uma vez que não se pode crer em um significado infinito, o que caracteriza o dogma”. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e (m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 5ª ed. Ver. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 177-178.2 Quando se fala da dogmática jurídica aqui se está a referir à dogmática jurídica tradicional e conservadora que refém de “um senso comum teórico positivista-normativista leva a um modo reprodutivo de fazer direito, pois refém de um “saber

1

hermenêutica clássica que torna objetificado e inautêntico o processo interpretativo,

impedindo a ontologização dos direitos fundamentais, gerando a própria ineficácia do direito

à saúde e ainda sob uma perspectiva liberal-individualista lastreada em princípios que fazem

com que o direito à saúde seja compreendido de forma limitada e restrita face ao processo de

instrumentalização3 que vem se imputando à Constituição. Sob essa ótica, justifica-se sua

inefetividade em função da escassez de recursos e amplidão de demanda, fechando assim as

possibilidades de sua efetivação. Esta forma de pensar a saúde desvirtua o seu teor

constitucionalista, ou seja, de direito do cidadão, atribuindo-lhe um caráter caritativo.

Buscando romper com este pensar objetificado, adota-se a Hermenêutica Filosófica de matriz

Heideggeriana-Gadameriana4 que nos possibilita uma compreensão mais ontológica do direito

à saúde nos inserindo num processo interpretativo onde se busca o exame das condições em

que ocorre a compreensão no modo como a compreensão tem se dado a conhecer e não mais o

“exato” ou o “correto sentido” do texto ou da norma como buscado pela hermenêutica clássica

que, por um conjunto de técnicas e métodos, possibilitava a interpretação do texto/norma.

Neste sentido, é necessário dizer que a compreensão que é um dos existenciais5 que se

utiliza, reveste-se de fundamentalidade, face ao novo paradigma estatal e os desafios para a

concretização do direito à saúde, pois, constata-se que a interpretação não é um método que

deve ser utilizado por quem interpreta, mas é um existencial do intérprete que está vinculado a uma

estrutura prévia de sentido que advém de sua própria pré-compreensão. Logo, aqui se busca

promover uma reflexão que propicie nova compreensão desse direito, na perspectiva da dignidade

da pessoa humana a partir da dimensão de solidariedade apontada pelo Estado Democrático de

Direito, no qual o direito à saúde deve, necessariamente, ser compreendido como fundamental por

ser condição primeira para que se possa ter acesso a outros bens também fundamentais.

congelado”. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise..., p.83.3 A Constituição vem sendo despida de sua força normativa e tem sido tratada como simples método de interpretação.4 Esta nova hermenêutica é fundamental por ter na linguagem condição de possibilidade para a compreensão, por ser inerente à totalidade da experiência humana (pela linguagem nos compreendemos, compreendemos o mundo e por ele somos compreendidos). Para Heidegger compreender é uma atitude que engloba o homem em contato com outros e com a história, por isso vai dizer que “compreender não é um modo de conhecer, é um modo de ser” porque a epistemologia da interpretação (que penetrava no texto) é substituída pela ontologia da compreensão (o homem já sempre compreende o Ser).5 Heidegger nomeia de existenciais os modos possíveis do Ser do homem que se manifestarão pela análise da existência, e assim põe as bases da analítica existencial, pois o homem tomado em sua medianidade é antes de tudo ser-no-mundo, existência, Dasein, ser-ai, situado sob a forma de projeto.

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Preliminarmente, a partir de uma consciência da histórica efeitual6, se ressaltará a

relevância da gênese do constitucionalismo no processo de constituição do Estado

Contemporâneo, salientando-se o processo de constitucionalização dos direitos fundamentais

pontuando-se os modelos assumidos pelo Estado considerando o próprio direito à saúde nesta

evolução. Em seguida elucida-se como o direito à saúde está sendo pensado e compreendido e

a (in) efetividade na sua concretização apontando para a necessidade de repesá-lo em função da

relevância do princípio da dignidade da pessoa humana no Estado Democrático de Direito,

destacando-se a relevância do Judiciário e de uma cidadania ativa na concretização da

Constituição e efetivação deste direito.

2. O Estado Moderno e o Constitucionalismo a partir de uma Consciência da Histórica

Efeitual

De início é importante referir que o constitucionalismo é um conceito determinante

para se entender a evolução do Estado Contemporâneo em sua relação com a sociedade

hodierna, tendo presente a democracia e os direitos fundamentais, pilares que o lastreiam.

Neste sentido se pode dizer que pensar o constitucionalismo é retornar ao seu nascedouro,

considerando a relevância das experiências Inglesa, Francesa e Americana, chegando a uma

tradição que possibilita refletir sobre a experiência político-jurídica da organização do poder

inerente à história européia desde a sua antiguidade7. Sob esse pano de fundo poderemos

perceber no hoje da história o descortinar de um contexto sócio-político-cultural e econômico

que precisa ser repensado significativa e contextualmente, a partir da realidade histórica

vivenciada por um sujeito também histórico, com buscas, necessidades e aspirações peculiares

à sua historicidade. Na perspectiva de Ohlweiler:Somente é possível fazer conhecimento compreendendo [...] Não se trata

simplesmente de definir marcos históricos, atividade típica da historiografia, mas de compreensão da história concreta, pois o homem é um ser essencialmente histórico e a sua temporalidade radical é historicidade, que brota do passado, presente e futuro, não como etapas sucessivas de uma conjunção linear, mas como totalidade8.

6 A consciência da história efeitual é um existencial muito importante no pensamento de Gadamer, pois “é em primeiro lugar consciência da situação hermenêutica [...] um pensamento histórico que inclui em seu pensar sua própria historicidade”. Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5. ed. Ver. Petrópolis: Vozes, 2004, ,p. 396-399. Ela é categoria fundamental para possibilitar a compreensão autêntica, considerando-se em antítese do pensamento dogmático, objetificante e esquecido da finitude de todo o compreender. A compreensão é um processo histórico efeitual, quer dizer, o interprete, em sua relação com a coisa mesma, está determinado pelos fatores históricos. Cf. OHLWEILER, Leonel Pires. Estado, Administração pública e democracia..., p. 283.7 Neste sentido ver: MATTEUCCI, Nicola. Organização Del poder y liberdad. Historia Del constitucionalismo moderno. Madrid: Editorial Trotta, 1998; SANCHIS, Luis Prieto. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid : Editorial Trotta S.A., 2003; STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do direito. 2. ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004.8 OHLWEILER, Leonel, Pires. Estado, Administração pública e democracia: condições de possibilidade para ultrapassar a objetificação do regime administrativo. In : Anuário do programa de Pós-Graduação da UNISINOS, 2003, p. 282.

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Neste diapasão, voltando-se para o ‘acontecer lingüístico da tradição’, Gadamer

confere um novo sentido à hermenêutica que é paralelo ao sentido que dá à compreensão9. Tal

sentido se manifesta como um acontecer e, especificamente, como um acontecer da tradição

ou transmissão. Consubstancia-se “num exame de condições em que ocorre a compreensão”10. E, a

forma de transmissão da tradição se dá pela linguagem, que é fundamental como “um

acontecimento cujo sentido cumpre penetrar e não como um objeto a ser compreendido e

interpretado11. Assim, tem como base a estrutura da compreensão que se caracteriza como um

‘pertencimento’ à tradição que se apresenta falando por si mesma, não como uma mera referência

do passado, mas aportando com suas pretensões com ‘algo a dizer’12. Assim é que, na perspectiva

hermenêutica, se parte do fato de que “compreender é estar em relação a um só tempo com a coisa

mesma que se manifesta através da tradição e com uma tradição de onde a coisa possa me falar"13.

Gadamer vai dar importância à tradição e à historicidade, reveladas na valoração da

experiência, que vai chamar de consciência da história efeitual, no sentido de que a nossa

compreensão de mundo se revela quando somos atingidos pela pergunta e interpelados pela

própria tradição14. Assim é que a proposta de Gadamer nos leva a ir buscar no movimento

constitucional uma nova compreensão para a efetivação dos direitos fundamentais, uma vez

que a atuação do Poder Público deve partir de uma consciência histórica efeitual, que confira

bases hermenêuticas para a concretização de um Estado Democrático de Direito, pois a

ausência de consciência histórica, faz com que os poderes públicos, especialmente os operadores

jurídicos não tenham capacidade de desvelar as verdadeiras possibilidades da função social da

atividade administrativa no atual paradigma estatal15.

Continua dizendo Gadamer que, para compreender uma tradição, é necessário ter

horizonte histórico16, pois do contrário estamos sujeitos a mal-entendidos. Assim é que, não

9 Stein refere que é fundamental que o operador do direito possa dar-se conta da tradição na qual está inserido, pois não é possível nos desvencilharmos das influências do passado, pois “as opções do presente, que visam concretizar projetos da possibilidade humana, dependem decisivamente da atitude do homem com relação ao seu passado”. Neste sentido necessário desvelar o passado do Direito Constitucional para que, mediante a compreensão do mesmo se possa vislumbrar o acontecer do novo, uma vez que “nosso conhecimento do passado sempre vem limitado pelas condições que no presente nos ocupam e limitam”. Cf. STEIN, Ernildo. História e ideologia, 3. ed. Porto Alegre: Movimento, 1999, p. 28-29.10 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 333.11 Idem, ibidem. 12 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I..., p. 472. 13 GADAMER, Hans-Georg. Esboços dos fundamentos de uma hermenêutica. In: FRUCHON, Pierre (Org). O problema da Consciência Histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1988, p. 67. 14 Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I..., p. 492.15 Ohlweiler, Leonel. Estado, administração pública e democracia..., p. 288.16 “Os horizontes históricos não são mundos estranhos. Trata-se, na verdade de um único grande horizonte, que é sempre móvel e que se alarga junto conosco. Este horizonte abarca todo o tempo, e nele se desenrola a tradição. SILVA FILHO, José Carlos Moreira. Hermenêutica Filosófica e Direito..., p. 86.

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podemos ver o passado a partir de nossos padrões ou preconceitos contemporâneos17,

precisamos vê-lo do horizonte de onde fala a tradição para poder vê-lo em seu próprio ser18.

Com efeito, sem horizontes ficamos atrelados a uma realidade próxima, emergente e limitada,

que obstaculiza o nosso avançar histórico.

A consciência histórica efeitual possibilita dar-nos conta das grandes questões que

constitucionalmente são determinantes na construção de nosso projeto político e que somente

poderá ser assumido, se adequadamente compreendido, abrindo novas possibilidades para o

cumprimento das promessas da modernidade. Neste pensar a tradição nos faz compreender “a coisa

em si”, ou seja, nossa experiência constitucional que, em função de suas características

contratualistas19, firma-se como uma teoria que tem a Constituição como lei fundamental. Ela propicia

a limitação do poder que em benefício de direitos, em função da evolução histórica vão se

constituindo lastreados nas lutas políticas, e vão sendo reconhecidos como direitos de primeira,

segunda e terceira geração20, revelando as dimensões do Estado de Direito desde a Revolução

Francesa21.

Não é demais referir que abordar o “constitucionalismo” não significa fazer memória

de um período histórico, como mera elucidação decorrente de idéias políticas ou sociais, mas

é compreender o mesmo como um “ato da existência”, como um “projeto-lançado”, pois o

“conhecimento histórico é, ao mesmo tempo, saber histórico e ser histórico”22. Neste sentido,

é pertinente referir que o constitucionalismo consolidado pela tradição jurídica fincou raízes

no mundo contemporâneo a partir da noção de Constituição como instituidora de limitação ao

governo nacional e aos estados individualmente, institucionalizando a separação de poderes

para propiciar um controle recíproco. Então é no constitucionalismo e na teorização jurídico-

17 A distância temporal nos confere uma consciência hermenêutica, que deve ser histórica, para que tenhamos presente os próprios preconceitos levando-nos a distinguir os verdadeiros daqueles que produzem mal entendidos. “Colocar em relevo um preconceito implica suspender sua validade, o que só é possível a partir do estímulo da tradição, do encontro com ela. É por isso que a compreensão se inicia onde algo nos interpela. Cf. SILVA FILHO, José Carlos Moreira. Hermenêutica Filosófica e Direito: o exemplo privilegiado da boa-fé objetiva no direito contratual. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003, p. 83.18 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I..., p. 400-403.19 Da vinculação entre o Direito Natural e o contrato social advêm a base do constitucionalismo norte-americano em função da conciliação de duas tradições políticas antes separadas: tradição do governo limitado e da soberania popular. Ambos justificam a superioridade do poder constituinte sobre os poderes constituídos uma vez que a Constituição limita e vincula a atuação do governo. Cf. SANCHIS, Luis Prieto. Justicia constituciona y derechos fundamenales. Madrid: Editorial Trotta S.A., 2003, p. 42.20 A positivação, ou constitucionalização dos direitos fundamentais é “produto de diversas lutas e conquistas pelo reconhecimento da sua capacidade para assegurar as diversas exigências da sociedade [...] um longo processo [..] que ainda continua, porque enquanto existir sociedade, novas reivindicações surgirão. Exigindo sua regulamentação jurídica, não apenas como forma de garantia, mas como forma de organização social. LOPES, Ana Maria D’Ávila. Os direitos fundamentais como limites ..., p. 61-62. A teoria da geração de direitos foi inicialmente desenvolvida por Norberto Bobbio em sua obra “A era dos direitos”, p. 67 ss. sendo posteriormente adotada por outros autores para exteriorizar o desencadeamento do surgimento dos direitos. OLIVEIRA JUNIOR e outros autores já agregaram mais duas gerações.21 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica..., p. 289.22 GADAMER, Hans-Georg. Esboços dos fundamentos de uma hermenêutica..., p. 57-58.

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normativista que o Estado Democrático de Direito encontra dispositivos formais para

consolidar-se23. E, por isso, o Estado Moderno se apresenta a partir da idéia de

constitucionalismo e só pode ser compreendido a partir deste viés. Assim é que o

constitucionalismo revela aspectos particulares da experiência política constitucional dos Estados-

nacionais que vai influenciar profundamente a forma de pensar “Constituição” em nosso Estado-

Nacional. Neste sentido, refere Streck:

O Constitucionalismo é, assim, uma (nova) teoria que objetiva colocar limites no político. E essa limitação assume diferentes matizes, chegando ao seu ápice no segundo pós-guerra, a partir das noções de Constituição dirigente e compromissária e de Estado Democrático de Direito24.

Por outro lado, mas no mesmo sentido, podemos dizer que, toda a experiência

pressupõe uma pergunta. E neste sentido lembramos que, em Verdade e Método, Gadamer

refere que perguntar é sempre mais difícil que responder. Nesse trilhar, voltando-nos para a

gênese constitucional, buscamos na tradição a construção de perguntas que conduzam às

(várias) possibilidades do sentir e nos confiram sentido de horizonte (orientação) para que,

entendendo a história do constitucionalismo, encontremos respostas que nos permitam

enfrentar as crises que atravessamos hoje, especialmente a que atinge o direito à saúde.

Logo, não podemos nos desapegar da noção de que a compreensão tem em si a estrutura da pergunta e

da resposta. Ocorre que o fenômeno hermenêutico contém um caráter original de conversação e, um

texto (ou experiência) a ser interpretado, há de ser vislumbrado como algo que coloca uma pergunta

ao intérprete, mostrando-se tarefa essencial compreender a pergunta colocada. E a pergunta que

irrompe nesta seara é se estamos compreendendo o constitucionalismo diante do modo como a

Constituição está sendo compreendida atualmente? E, ainda, se a forma como a Constituição está

sendo compreendida nos faz compreender a “coisa mesma”25, ou seja, o próprio sentido de

Constituição, ou ainda, o nosso “pertencimento” a uma tradição constitucionalista na qual os direitos

fundamentais revestem-se de grande relevância.

Importante função neste pensar tem ainda o diálogo, advindo da pergunta original da

conversação, pois vai ser propiciador de fusão de horizontes. O fato é que somos

constantemente interpelados pela tradição, que se nos vem com o peso de um passado

histórico crivado de sentidos e que acaba por ser levado em conta, juntamente com o 23 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica..., p. 96. 24 Idem, p. 289.25 Só compreendemos quando chegamos à “coisa mesma”, pois ela é a medida da compreensão. Neste sentido Gadamer nos diz que “toda interpretação autêntica deve se precaver contra a arbitrariedade de idéias barrocas que afloram ao espírito, bem como contra as limitações provenientes de hábitos inconscientes de pensamento [...] para ser autêntico, o olhar da investigação deve dirigir-se “à coisa mesma”. GADAMER, Hans-Georg. Esboços dos fundamentos de uma hermenêutica..., p. 60-61.

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horizonte do presente no instante da compreensão. Pois, se não levado em consideração, a

compreensão não aconteceu. Neste sentido Gadamer afirma que:

Un intérprete con experiência histórica distingue el horizonte de la tradición del horizonte-tiempo personal, pero su comprensión inclue de hecho la mediación de ambos horizontes. El diseño de ese horizonte histórico, distinto del horizonte del presente, se supera en la compreensión, de modo que ésta significica la adquisición de un nuevo horizonte histórico26.

Assim é que aspectos fulcrais do debate constitucional contemporâneo nos levam a

nos interrogar sobre o futuro do constitucionalismo. Mas só podemos projetar o futuro,

compreendendo o presente que tem no passado a sua constitutividade, pois, segundo Moreira “o

futuro do constitucionalismo não pode deixar de ser determinado pela evolução da Constituição desde

a sua origem e pela detecção das linhas de força do seu desenvolvimento no momento presente”27.

3. A Tradição Constitucional e os Direitos Fundamentais28

Seguindo o mesmo teor de idéias até aqui apresentadas, com o escopo de compreender

a relevância do constitucionalismo moderno, cabe dizer que o mesmo situa-se no período que

vai do século XVI ao século XVIII. Na sua gênese está a aspiração a uma Constituição

escrita, contendo uma série de normas juridicamente organizadas, pois antes do século XVI,

no medievo, o que existiam eram apenas regras consuetudinárias29. Desse modo, não se pode

olvidar que o constitucionalismo trabalha com legitimidade, voltado para os fins da sociedade

política e para os direitos constitucionais. A experiência do constitucionalismo, portanto, se

apresenta colocando em xeque a liberdade e o poder arbitrário, pois, enquanto vai

dissociando-se da noção de soberania até então vigente, vai buscando construir um poder

26 DUTT, Carsten. En conversación con Hans-Georg Gadamer: hermenéutica estética filosofía práctica. Madrid: Tecnos, 1998, p. 43.27 MOREIRA, Vital. O futuro da Constituição. In: GRAU, Eros Roberto; Guerra Filho, Wilis Santiago (Org.) Direito Constitucional: Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 313.28 Direitos fundamentais, “são os direitos humanos garantidos por cada Estado aos seus cidadãos mediante uma estrutura institucional de ‘poderes separados’, em que, um deles pelo menos, possa manter, repor ou reconstruir os direitos violados por algum ou alguns outros poderes [...] direitos com limitação espacial e temporal e garantia jurídica e constitucional”. Não são sinônimos de direitos humanos que possuem validade universal e intemporal, assumindo dimensão de direitos naturais, por serem princípios válidos para todos os povos em todos os tempos e sem vinculação a uma concreta e específica estrutura institucional. Cf. PIÇARRA, Nuno. A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional. Luxemburgo: Coimbra Editora Limitada, 1989, p. 192.29 No constitucionalismo moderno há uma aspiração de uma constituição escrita que estabeleça mecanismos de dominação legal-racional em oposição à tradição do medievo e ao poder absolutista do rei, próprio da primeira fase do Estado Moderno. Assim, as primeiras constituições respondem ao esquema do princípio monárquico. Mas, esse esquema constitucional , deixa de ser expressão da realidade política à medida que o constitucionalismo vai se consolidando. Se pode dizer que, no final do séc. XVIII nascem as constituições propriamente ditas, entretanto, ainda nos séculos XIX e XX, o que se tem são apenas imitações dos grandes modelos aos quais, além do francês e do americano, se agrega também o inglês. Segundo Streck a revolução copernicana do constitucionalismo só ocorreu no séc. XX, após duas guerras mundiais. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica..., p. 97-98.

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radicado na sociedade que promove a sua defesa, percebendo o Direito apto para

institucionalizar e dirimir conflitos, subordinando a força a um princípio superior30. Partindo

dessa noção, começamos a nos mover num mundo das idéias legais que vem e começa a falar

por si, pois o “constitucionalismo se tornou crucial para garantia dos direitos fundamentais

dos indivíduos, bem como para traçar os marcos da atividade estatal, não só pela limitação de

seus poderes, como também pela divisão de suas funções”31.

Não se pode olvidar que o constitucionalismo moderno encontra-se vinculado de um

lado a algumas correntes contratualistas e de outro à revolução liberal que está calcada na

organização do poder e concessão de liberdades. Nesse sentido, pode-se dizer que as grandes

inovações são de conteúdo, pois novos bens passam a ser protegidos, e o poder deve ser

exercido diferentemente para que novas liberdades (políticas, sociais e civis) sejam garantidas

e os indivíduos possam se desenvolver livremente. A questão que destacamos é a de que os

direitos fundamentais não integram um conjunto de regras constituídas de uma vez por todas,

nem definitivamente. Eles foram se exteriorizando gradativamente, em função de circunstâncias

conjunturais bem específicas, não podendo nem ser absolutizados nem relativizados. Com efeito,

devido ao seu caráter histórico, eles foram sendo sedimentados, ampliados e transformados desde

a sua formulação que se deu no transcurso do século XVIII e perdura até os dias de hoje32,

podendo ser melhor compreendidos a partir de uma consciência da história efeitual. Neste sentido

buscamos abordar o direito à saúde.

4. A Consciência da Histórica Efeitual na Compreensão do Direito à Saúde

É importante perceber que os efeitos da história pesam sobre a nossa compreensão,

ainda que não estejamos conscientes dos mesmos, pois estão na própria estrutura da

compreensão. Somos tradição e devemos ter presente que longo foi o caminho até o

reconhecimento do direito social à saúde - o que deve nos impulsionar hoje a lutar pela sua

efetivação não permitindo retrocesso histórico. Assim, a compreensão parte da situação

hermenêutica, que é a situação na qual nos encontramos, (ou seja, de compreensão deficitária,

restrita e limitada do direito à saúde) frente à tradição que queremos compreender, ou seja,

quais os pré-juízos que precisam ser suspensos para que o direito à saúde possa se concretizar,

30 MATTEUCCI, Nicola. Organização del poder..., p. 24.31 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica...., p. 290.32 Nesse sentido, refere Bobbio: “...os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez, nem de uma vez por todas”. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 10 ed. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 5.

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pois, o que nos determinam são os fatos históricos que, “quando” bem examinados, podem

impulsionar nossa compreensão e nos abrir novos horizontes33.

Para entender o surgimento dos direitos fundamentais, especialmente o direito à saúde,

e a forma como ele se exterioriza no universo de sentido do cidadão do Estado Democrático

de Direito, é preciso ter presente a construção teorético-dogmática sob a qual se assenta o

paradigma estatal atual, pois “nosso conhecimento do passado sempre vem carregado pelas

condições que no presente nos ocupam e limitam34. Stein diz que o passado que atingimos

vem envolto nos problemas, preconceitos e interesses que nos atarefam no presente”35. Logo,

a tradição constitucionalista nos constitui e a partir dessa compreensão podemos perceber

como projetar o hoje de nossa história constitucional buscando a concretização do direito à saúde.

Conforme já referido, podemos dizer que o constitucionalismo advém principalmente

das Revoluções Americana e Francesa36, com o objetivo precípuo de submeter o poder

político ao direito, limitando suas funções no intuito de garantir a liberdade dos cidadãos

contra as invasões do Estado efetivando a separação de poderes para melhor exercer este

controle. Assim, ele emerge no seio dos Estados-Nacionais e Estados Unitários como

contraponto ao absolutismo...Entretanto, a doutrina do constitucionalismo, não pode ser

apenas a doutrina do poder limitado, mas segundo Matteucci “é sobretudo a doutrina dos

deveres do governo”37. E aqui entra a questão dos direitos fundamentais, inicialmente apenas

declarados e, posteriormente, constitucionalizados. Entretanto sua constitucionalização que

objetivava conferir maior segurança, atualmente encontra-se fragilizada face a

instrumentalização imputada à própria Constituição, fato que pode ser claramente percebido

pela dificuldade de concretização do direito à saúde que, embora previsto

33 Só poderíamos compreender o Estado Contemporâneo, suas crises e a fruição do direito social fundamental à saúde, verificando como o mesmo foi sendo incorporado e, ainda, como foi sendo compreendido ao longo da história. E, mediante uma consciência histórico-efeitual, abrir possibilidades de novos horizontes para a sua compreensão face a historicidade de um Dasein que busca encontrar no Estado Democrático de Direito, espaço, condições e possibilidades que lhe confiram maior dignidade para ser-no-mundo.34 Isso, em larga escala, significa dizer que, toda idéia de Estado Moderno está positivada nos diferentes direitos fundamentais, pois uma Constituição escrita além de impedir um governo arbitrário, serve para proteger uma gama de direitos que, reconhecidos como bens jurídicos constitucionais, são impedidos de serem violados por terceiros ou pelo próprio Estado. Assim, como fruto da tradição constitucionalista, vão surgindo e se consolidando os direitos humanos que, gradativamente, tornam-se direitos fundamentais e passam a integrar as constituições dos Estados-Nações que começam a ser elaboradas e reger a atuação do Poder Público.35 STEIN, Ernildo. História e ideologia..., p. 29.36 Dessas duas tradições o constitucionalismo ou neo-consitucionalismo como atualmente vem sendo denominado, herda a noção de garantia jurisdicional e forte conteúdo normativo, como dois modos de conceber a função da Constituição. Neste sentido, a primeira noção vêm da tradição americana, onde a Constituição é superior às demais normas e, o legislativo visto com desconfiança, devendo o judiciário garantir o seu cumprimento. A segunda noção advêm da tradição francesa onde existe um ambicioso programa a ser cumprido pelo poder legislativo que representa a vontade geral. Cf. SANCHIS, Luis Prieto. Justicia constitucional..., p. 109-110.37 MATTEUCCI, Nicola. Organização Del poder..., p. 25.

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constitucionalmente, é direito de difícil fruição. Constata-se então que a ausência de políticas

públicas acentua o quadro de desigualdades sociais sonegando o direito à saúde e a uma vida

digna aos cidadãos. E aqui reside o núcleo da questão, pois se atribui à crise da ciência como

um todo a postura de continuar a procurar um fundamento nos enunciados, olvidando-se o

caráter fundador do mundo da vida, pois é neste que se manifesta a compreensão da realidade

por um Dasein38 que é histórico. Com efeito, a própria noção de dignidade da pessoa humana

é um elemento de complexidade que, o Poder Público atrelado à noção de legalidade,

segurança jurídica, supremacia do Poder Público, “reserva do possível”, entre outros, não está

preparado para lidar, pois requer uma nova interpretação da lei não mais atrelada a critérios

dedutivos ou de subsunção39. Exige um rompimento com o pensar metafísico, que não sabe manter-

se no nível da transcendência do Dasein, pois, caiu na objetificação, é hermético, por compreender a

linguagem como meio para revelar a essência das coisas. Nesse sentido refere Ohlweiler:

A compreensão dos direitos fundamentais não pode ficar restrita às interrogações tradicionais e formalistas, na medida em que se trata também de um problema filosófico e ontológico. O fato é que para que sejam criadas condições de possibilidade do Estado Democrático de Direito, a interpretação não pode ser vista apenas sob a perspectiva procedimental, mas como “inerente à nossa condição de humanidade, vinculada à finitude, sendo uma tarefa infinita e circular, que ocorre no seio da linguagem40.

Neste contexto, não é preciso muita divagação para mostrar que se torna indispensável

recuperar a força normativa da Constituição, para que possa acontecer a necessária fusão de

horizontes entre o novo (Estado Democrático Brasileiro) e o velho (paradigma liberal-

individualista), recuperando-se assim as promessas da modernidade e a possibilidade de uma

melhor qualidade de vida e dignidade pelo exercício da cidadania e maximização do direito à

saúde. Partindo dessa noção, este estudo busca ser instrumental para perceber a possibilidade da

compreensão da efetivação do direito à saúde a partir de uma hermenêutica filosófica, buscando

apontar, novas luzes para que o direito à saúde, compreendido sob o enfoque da dignidade da pessoa

humana possa vir a ser efetivamente concretizado. Assim o intuito dessa abordagem é

38 O Dasein não é identificado como homem no sentido antropológico, mas homem enquanto ente capaz de compreender as coisas do mundo. “não é sinônimo de homem, mas evoca o processo de sua constituição ontológica, podendo ser descrito como uma situação de compreender de sentido e interpretação”. Cf. OHLWEILER, Leonel Pires Administração pública e a materialização dos direitos fundamentais: contributo da fenomenologia hermenêutica. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, vol. 1, n.1, 2003, p. 155. Possui como características a presencialidade de um ente aberto para o mundo. O Dasein, como estrutura do homem é o que possibilita a compreensão, mas não como uma compreensão fechada e definitiva, pois é exatamente em virtude do caráter histórico do Dasein, ou Ser-ai que não possui um horizonte verdadeiramente imutável. OHLWEILER, Leonel Pires. Administração pública e a materialização..., p. 155.39 A subsunção nos dá a noção de universais dados pelo senso comum e faz pensar que cada situação pode ser simplesmente acoplada aos mesmos. 40 OHLWEILER, Leonel Pires. Administração pública e a materialização..., p. 160.

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determinante para que possamos entender a evolução do próprio Estado Moderno, em sua

relação com a sociedade hodierna e o surgimento e consolidação dos direitos fundamentais,

especialmente o direito à saúde que pode ser estudado a partir da teoria das gerações de direitos em

função da evolução de sua compreensão e abrangência sendo fruto de grandes lutas e conquistas da

humanidade em busca de liberdade, igualdade, solidariedade, qualidade de vida...

Neste sentido, para que o modelo assumido constitucionalmente para o Estado

Contemporâneo, possa materializar-se mais coerentemente na efetivação de seus

pressupostos, especialmente os objetivos previstos no artigo 3º da Constituição Federal de

1988, passemos a abordar a evolução do Estado Moderno tendo presente a forma como o

direito à saúde foi sendo compreendido. Pois Gadamer afirma que compreender é sempre

fusão de horizontes, possibilitado pela tradição, lugar de encontro entre o velho e o novo, pois

só podemos compreender o presente e projetar o futuro suspendendo nossos preconceitos,

qual seja, tendo conhecimento da história que os originou.

Ressalta-se que o Estado desde o seu surgimento passa por um processo histórico

assumindo diferentes modelos. E o reconhecimento da saúde como direito vem se

constituindo diferentemente em cada período histórico. Percebe-se que a discussão sobre um

conceito de saúde vem de longa data41, pois para uns ela estava relacionada com o meio

ambiente e as condições de vida dos homens, para outros com a ausência de doenças... Mas,

diga-se de passagem que a preocupação com a saúde e com o bem-estar, desde os primórdios

foi uma das grandes preocupações do ser humano que, ainda que instintivamente, sempre

lutou para desvencilhar-se das coisas que fossem prejudiciais à saúde e à convivência coletiva42.

Fala-se do surgimento do Estado a partir do século XVI, pois tudo o que existia antes

eram apenas “formas estatais pré-modernas” e o seu surgimento se dá justamente pela ruptura

com as mesmas. Do século XVI, até o século XVII, temos a primeira versão do Estado

Moderno – o Estado Absolutista, que nasce da necessidade do capitalismo ascendente na

(ultra) passagem do período medieval43. Forma estatal fulcrada na idéia de soberania, poder

centralizado nas mãos do monarca originando as monarquias absolutas alicerçadas na idéia de

41 Documentos da antiguidade possuem, entremeadas com preceitos morais e religiosos, regras que “implicam o reconhecimento da saúde como indispensável à dignidade humana”. Cf. DALLARI, Sueli Gandolfi. A saúde do brasileiro. São Paulo: Moderna, 1987, p. 15.42 Dallari sustenta que a evolução histórica do conceito de saúde pública começa a se delinear com o Renascimento correspondendo praticamente ao desenvolvimento do Estado Moderno. Ressalta, também, que a noção contemporânea de saúde pública se tornou mais nítida com o Estado Liberal burguês do final do século XVIII, podendo ser apontado como o primeiro germe do que viria a ser a saúde pública. Cf. DALLARI, Sueli. Gandolfi. Reflexões sobre a saúde pública na era do livre comércio. SCHWARTZ, Germano (org.), In: A saúde sob os cuidados do direito. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 32.43 STRECK, Lênio Luiz; MORAES, José Luiz Bolzan de. Ciência Política e teoria geral do Estado. 3. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 30.

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um poder ilimitado, pois era de “origem divina” e como tal, independente de outros poderes

superiores ou inferiores gerava um verdadeiro massacre às liberdades individuais.

A partir do século XVIII, aproximadamente em 1848 passa-se do Estado Absolutista

para o Estado Liberal que alcançou sua experimentação história na Revolução Francesa. Era a

institucionalização do triunfo da burguesia ascendente sobre as classes do antigo regime. Essa

evolução advêm da contribuição das declarações de direitos: a Lei de Habeas Corpus de 1679

e a Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1689; firmadas na Inglaterra; a Declaração de

Independência dos Estados Unidos e a declaração de direitos norte-americanos de 1776, e

ainda das Declarações de Direitos da Revolução Francesa de 178944.

Caracterizado como Estado Mínimo, pois “limitado tanto com respeito aos seus

poderes quanto às suas funções”, era apenas o “guardião das liberdades individuais” em

função da separação entre a Sociedade e o Estado. Desse contexto advêm os direitos

individuais- direitos a prestações negativas, onde a função do Estado limitava-se a impedir

sua violação. Surgia a primeira geração de direitos. Aqui a saúde seria pensada dentro dos

ditames do individualismo, onde cada pessoa, no pleno exercício de sua liberdade, escolheria

profissionais médicos para cuidar de sua saúde45. O Estado não poderia intervir na

liberdade individual, sua obrigação portanto, era de “não fazer”.

A noção de saúde foi evoluindo gradativamente dentro dos modelos de Estado, pois

este direito foi surgindo em função da procura do indivíduo por uma maior qualidade de vida,

mas também pelo interesse do sistema social e econômico do período liberal. No Estado

Liberal as atividades desenvolvidas pelo Estado na área de vigilância sanitária coincidiam

com os interesses da burguesia vitoriosa. Como o acento maior estava no processo de

industrialização e produção, reinava a idéia de saúde curativa, pois a noção de saúde

vinculava-se à ausência de doenças, de recomposição ao mercado de trabalho46.

Em meados do século XIX, da crise do Estado Liberal e, posteriormente, da

promulgação da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição de Weimar, de 191947, na

Alemanha, surge gradativamente, o Estado Social de Direito, o Estado do bem-estar-social

44 PILAU SOBRINHO, Liton Lanes. Direito à saúde: uma perspectiva constitucional. Passo Fundo: UPF, 2003,, p. 33.45 MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Do direito Social aos interesses transindividuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 187.46 O interesse pela saúde do indivíduo tinha cunho econômico, pois os donos das fábricas, ao mesmo tempo em que não poderiam se arriscar a produzir menos, não queriam diminuir seus lucros assumindo a responsabilidade pela manutenção da saúde de seus empregados. O Estado acabou assumindo este encargo pela concepção liberal vigente: era ele o encarregado de propiciar condições para que os indivíduos desenvolvessem suas atividades. 47 Essas constituições foram referência para o socialismo por assegurarem direitos sociais aos trabalhadores originando um nova ordem de trabalho e repartição de bens, constituindo os direitos econômicos e sociais. Cf. PILAU SOBRINHO, Liton Lanes. Direito à saúde..., p. 44.

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também denominado Welfare State48. O Estado passa a assumir prestações públicas,

asseguradas a todo cidadão. Surgem os direitos de segunda geração: os direitos positivos. Ao Estado é

imputado o dever de prestar direitos sociais que são direitos políticos, peculiares à cidadania. Há um

reforço no trato científico da questão sanitária pois a preocupação maior se volta para a pessoa e não

mais para interesses econômicos e de reposição ao trabalho. A saúde assume um caráter mais

preventivo pois o Estado começa a se preocupar com a salubridade pública e passa a oferecer serviços.

Os próprios trabalhadores exigem a sua participação tanto na prestação de serviços de saúde quanto na

fiscalização sanitária do ambiente de trabalho49..Há uma visão mais socializante da realidade. O

Estado torna-se prestador de serviços, guardião dos interesses da coletividade e a saúde passa a ser

tratada de forma coletiva e não mais como um produto a ser comprado no mercado e nem como

caridade, mas como um direito do cidadão50.

Como o Estado Social não foi um projeto de mudança profunda, mas de adaptação do

segundo pós-guerra, algumas situações históricas produziram o Estado Democrático de

Direito onde foi engedrada nova legitimidade no campo do direito constitucional e da ciência

política, onde o Direito assume a tarefa de transformação. Ressalta-se que em nosso país, que

é de modernidade tardia, não tivemos a etapa do Estado Social. Assim, do Estado Liberal

avançamos direto para o Estado Democrático de Direito, que lastreia-se em textos

constitucionais, que evolui em relação aos fundamentos do velho liberalismo e à noção

puramente intervencionista do Estado Social51. Consagrado no artigo 1º da Constituição

Federal de 1988, tem como sustentáculos os direitos fundamentais e a democracia, estando

fundamentado na cidadania e no princípio da dignidade da pessoa humana o que nos impossibilita

visualizá-lo desatrelado da idéia de Constituição e de concretização do direito à saúde, que está

intrinsecamente imbricado ao direito à vida, que pelo artigo 5º da Magna Carta é direito inalienável.

Com a evolução do Estado, a conceituação de saúde também vai se aprimorando,

desvinculando-se da noção de doença e tendo como núcleo central a si própria, passando a ser

vista como qualidade de vida e não apenas como ausência de doenças. Esta dilatação

conceitual teve como marco teórico-referencial a noção consagrada pela ONU, em 26 de julho

de 1946, ao reconhecer a saúde como “o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a 48 O Estado torna-se prestador de serviços e assim, gradativamente, as formas de tratar a questão saúde foram desencadeando o direito à saúde que passou a ser direito público e de interesse social que trazia obrigações aos Poderes Públicos de seu atendimento.49 DALLARI, Sueli.Gandolfi. A saúde do brasileiro. São Paulo: Moderna, 1987, p. 9.50 Entretanto, somente a partir da segunda metade do século XIX que “a higiene se torna um saber social que envolve toda a sociedade e faz da saúde pública uma prioridade política”, inclusive nesta época houve tentativas no sentido de ligar a saúde á economia, para reforçar a importância de tal investimento. DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito e democracia..., p. 11.51 Os direitos fundamentais e a democracia são os sustentáculos do Estado Democrático de Direito, que nos legou a tradição e, que é um existencial, que se consubstancia num ‘desde-já-sempre’ que nos condiciona a agir-no-mundo por fazer parte do nosso ser-no-mundo. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional ..., p. 112-113.

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ausência de doenças”52. Neste sentido a saúde adquire um teor promocional. Este pode ser visto no

próprio artigo 196 da Magna Carta53, que consagrou o direito à saúde como direito fundamental,

dispondo que o Estado deve realizar ações e prestar serviços para a promoção da saúde pois,

tornou-se DIREITO DE TODOS. Adquire então caráter de universalização, sendo vista como

direito vinculado à cidadania, pois forma de buscar promover uma maior igualdade entre as pessoas.

Logo, a saúde por ser um bem jurídico indivisível e inexistir determinação de seus titulares, integra

a terceira geração de direitos, pois se aproxima do conteúdo dos novos direitos que são os direitos

de solidariedade, compostos pelos direitos transindividuais, também denominados de direitos

difusos54.

Portanto, entender o direito à saúde como qualidade de vida é compreendê-la como

um direito à promoção da vida das pessoas, como um dos elementos da cidadania, como

direito a um conjunto de benefícios que fazem parte da vida urbana, incluídos nesta os

referentes à preservação ambiental55, enfim como garantia da dignidade da pessoa humana. A

previsão do artigo 3º da Lei 8.080/90 que regulamentou o direito à saúde reforça esta noção

ao elencar alguns dos direitos afins ao direito à saúde. Assim, podemos perceber que à luz das

diretrizes magnas a proteção e defesa da vida deve ser vista de forma dilatada em consonância

com todos os outros direitos fundamentais. Percebemos então que o conceito de direito à

saúde encontra-se inserido numa tradição que vai alargando horizontes à medida que o ser

humano passa a ter respeitada a sua dignidade, ocupando um espaço de maior crescimento em sua

cidadania. De fato, quando a Constituição Federal de 1988, consagrou o direito à saúde como direito

fundamental em seu artigo 196, ampliou sua abrangência antes restrita a parcelas da população,

reconhecendo-a como prioridade máxima, imputando ao Estado o dever de prestá-la da forma mais

completa possível. Assim, a saúde foi elevada à categoria da seguridade social (art. 194), tornando-

se também por disposição do artigo 23 da Magna Carta, matéria de segurança pública (art.197), com

competência concorrente (União, Estados e Municípios).

52 Em que pese as duras críticas tecidas a este conceito que por si só, é carregado de subjetividade uma vez que a expressão completo bem-estar físico, social e mental é de difícil quantificação o mesmo contribuiu para avançar a reflexão no sentido de que ajudou a dilatar o conceito de saúde antes restrito apenas aos aspectos curativos e preventivos. Pode-se dizer que de certa forma este conceito“recupera o trabalho de Hipócrates, Paracelso e Engels”ao reconhecer tacitamente, na respectiva conceituação “a essencialidade do equilíbrio interno do homem com o ambiente”.53 Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.54 Outrossim, também consubstancia-se como direito de quarta geração, pois relacionada aos direitos à biotecnologia e a bioengenharia. Integra ainda os direitos de quinta geração porque a qualidade de vida, que é colocada a partir de seu aspecto promocional “pressupõe que o indivíduo possa ter acesso a todos os instrumentos que satisfaça seu particular estado de bem-estar, no qual os computadores e a Internet atuam como um dos fatores de maior contribuição”. Cf. SCHWARTZ, Germano. Direito à saúde: efetivação em uma perspectiva sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 55.55 MORAIS, José Luis Bolzan de. Do Direito Social aos interesses..., p. 189.

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5. Contributo da Hermenêutica Filosófica para uma Compreensão do Direito à Saúde sob os Horizontes de Sentido da Cidadania/Democracia à Luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A par das considerações expendidas até o momento sobre a relevância da

concretização do direito a saúde face ao reconhecimento de sua fundamentalidade no Estado

Democrático de Direito pela sua consagração como direito fundamental e vinculação com o

princípio da dignidade da pessoa humana, este direito, “de acesso universal e igualitário”, que

deveria ser prestado pelo Estado mediante políticas sociais e econômicas para a redução do

risco de doença, promoção, proteção e recuperação da saúde, é continuamente violado. É

público e notório que a saúde encontra-se “enferma”, pois o Estado sequer tem garantido a

prestação de saúde curativa aos cidadãos: faltam remédios, há dificuldades na marcação de

consultas, as filas são intermináveis, há frustração no atendimento conferido (longas horas de

espera sem atendimento, se há atendimento falta a medicação preceituada...). A saúde tem se

tornado “caso de polícia”, pois medicamentos distribuídos gratuitamente pelo SUS (Sistema

único de Saúde) são vendidos, consultas são cobradas duplamente, fichas são vendidas para

vencer as longas esperas para atendimento, procedimentos médicos são sonegados por profissionais

descomprometidos e ambiciosos, obrigando as pessoas a pagarem por atendimento particular. A lista

das irregularidades é inumerável!

Frente a essa realidade a hermenêutica filosófica se mostra propícia para abordar a

questão do direito à saúde com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana, porque a

sua inefetividade não decorre de uma questão normativa pois esse direito está incerto na Carta

Magna, estando inclusive regulamentado mas, é questão de interpretar como estão sendo

compreendidos os direitos nela incertos (em que pese os prejuízos) pré-compreensões do

Poder Público neste momento histórico, face aos interesses econômicos e políticos e a

influência da tradição liberal individualista a que se encontram arraigados o Estado e o

Direito, como instrumentos de regulação social. Mas o interrogante que se coloca é como

concretizar o direito à saúde à luz da dignidade da pessoa humana tendo presente a sua

dilação conceitual no atual paradigma uma vez que, face ao seu teor promocional, tal direito

foi reconhecido como qualidade de vida, ou seja, como um direito ao cuidado de onde decorre

uma umbilical ligação entre a garantia do direito à saúde, a proteção à vida e a dignidade da

pessoa humana. Assim, ter direito à saúde é ter direito à uma vida saudável, que propicie o

exercício da democracia, da igualdade, do respeito ecológico e do desenvolvimento tecnológico

sustentável, objetivando proporcionar benefícios ao homem. A par do caminho percorrido até

aqui com Rocha, se pode chegar a uma conceituação atual do direito à saúde com lastro no

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princípio da dignidade da pessoa humana e outros princípios e valores constitucionalizados e

que consubstanciam o Estado Democrático de Direito. Posiciona-se o mesmo afirmando:

A conceituação da saúde deve ser entendida como algo presente: a concretização da sadia qualidade de vida, uma vida com dignidade. Algo a ser continuamente afirmado diante da profunda miséria por que atravessa a maioria em nossa população. Conseqüentemente a discussão e a compreensão da saúde passa pela afirmação da cidadania plena e pela aplicabilidade dos dispositivos garantidores dos direitos sociais da Constituição Federal56.

Defende-se então que a saúde é condição de “poder ser” do Dasein, que é ser-no-

mundo57. E, a partir da noção de saúde como qualidade de vida apontada pelo atual paradigma

estatal, comprometido não apenas com a cura ou prevenção, mas principalmente com a sua

promoção, podemos perceber que o “Dasein está para o mundo, assim como o mundo está para o

Dasein”, ou seja, só podemos falar de saúde a partir dessa relação do homem com o mundo, pois

desde os tempos mais remotos a idéia de saúde já estava imbricada na relação do homem com o

mundo, com a busca de um ambiente de trabalho salubre, equilibrado, harmonioso... Para

Heidegger a expressão ser-no-mundo aponta para um rompimento com todas as

representações metafísicas que tornam homem e mundo como duas entidades separadas e que

vez por outra se encontram. Quer colocar na maior proximidade homem e mundo até poder

significar ‘morar junto a, ser familiar com”58. Assim, o homem só existe enquanto ‘é’, ou seja,

quando mantém este vínculo significativo com o mundo, pois fora desta unidade nenhum dos

dois existiria59. Desse modo, a partir dessa dupla via que se pretende atribuir sentido à vida, é

necessário colocar na maior proximidade homem e mundo, construindo uma relação de 56ROCHA, Julio César de Sá da. Direito da Saúde: direito sanitário na perspectiva dos interesses difusos e coletivos. São Paulo: Editora LTr, 1999, p.43.57 STEIN, Ernildo. Diferença e Metafísica: ensaio sobre a desconstrução. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 46-47. Em Heidegger, as construção vocabulares com hífem surgem para designar os dispositivos numa união indissolúvel, mostrando o caráter paradoxal de todo o empreendimento. A utilização de tais expressões, é uma técnica de estranhamento, embora tal terminologia muitas vezes produza expressões não tão bonitas, mas justifica que as mesmas são coerção dos próprios fenômenos. Assim, ser-no-mundo significa que o Dasein não se defronta com um mundo mas sempre já se encontra nele. Cf. SAFRANSKI, Rüdiger Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. Tradução de Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial. 2000. p. 195-196. O ser-no-mundo é o ponto de partida da analítica do Dasein, pois somente o homem é ser-no-mundo pois é o único ente formador de mundo, ele não está no mundo como as outras coisas, ele tem relação com o mundo. Homem-mundo constituem uma unidade na qual o homem só pode existir enquanto “é “ este vínculo com o mundo, uma vez que o mundo faz parte do Dasein, sendo esta uma relação essencial e não acidental. STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 66.58 Logo, o homem precisa desenvolver uma “relação familiar” com as coisas do mundo para ter a sua própria dignidade preservada, pois o homem é ser-no-mundo e também ser-com-os-outros. “Construir é um modo de habitar. Habitamos não porque construímos, mas construímos, porque por essência somos habitantes [...] logo o modo como eu sou, tu és, o modo como nós homens somos sobre a terra é o construir e o morar. Ser-no-mundo é construir e habitar”. STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 160.59 Por isso afirma Vattimo, “que o mundo não é a soma das coisas, mas condição para que apareçam as coisas individuais, para que estas sejam”. Nesse passo, se pode dizer que essa totalidade de instrumentos só tem sentido quando existe alguém que deles faz uso, pois não há mundo se não existe Dasein.. Gianni Vattimo. Introdução a Heidegger. 10ª ed. Traduzido por João Gama. Lisboa: Instituto Piaget , 1996. p. 30.

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familiaridade com a saúde para que o homem possa ser considerado em sua dignidade, pois “o

homem só existe enquanto ‘é’. Logo, a noção de homem (Dasein) como ser-no-mundo tem

profunda imbricação com o mundo de modo que sua existência se justifica em função de sua

vinculação com o mundo (aquilo que lhe é significativo). A saúde é significativa para o

homem, pois amalgamada ao seu direito à vida e, diga-se de passagem, vida com qualidade,

dignidade. Assim, fora dessa unidade (saúde-dignidade) não existiria nem o homem e nem o mundo,

pois não existiria a vida. Ser-no-mundo, significa “ter relação com a totalidade das coisas cujos

significados são familiares”. Devemos ter uma compreensão hermenêutica da saúde, pois a

mesma deve fazer parte do nosso ser-no-mundo, podendo ser entendida como um existencial,

pois é processo60, tem fundamento ontológico pois, é busca contínua.

Vale referir neste ponto que a questão do “fundamento” se torna central em Heidegger

que busca um fundamento diferente daquele pretendido pela metafísica, que é

fundamentalista, e quer um fundamento firme objetificador61. Assim, para ter acesso ao

mundo das coisas, o tempo se torna referencial fundamental. O tempo é condição de

possibilidade do ser. Não há como compreendê-lo fora do horizonte da temporalidade, pois

no Dasein sempre algo se acha pendente62. A temporalidade é o fundamento ontológico da

existencialidade do Dasein. O fundamento das coisas como “fundamento sem fundo”63. Para

Heidegger o ‘verdadeiro’ fundamento é o Dasein, mas não no sentido metafísico da razão

suficiente, pois ele não é uma simples presença para além do que não se pode ir e do qual tudo

emana, ele é projeto e, como tal, não é algo que exista como base. Por isso podemos dizer que o

Dasein é ausência de fundamento, é abismo sem fundo. Dasein é sem fundo, é abissal “na medida

em que a fundamentação a que ele remete é pura possibilidade”64. 60 A saúde também é uma busca de equilíbrio entre o ser humano e seu ambiente, estando o mesmo convencido de que não existe o estado completo de bem-estar, a saúde deve ser entendida como busca constante de nos aproximarmos de tal estado. Embora se reconheça sua difícil operacionalização, qualquer enunciado do conceito de saúde que ignore a necessidade do equilíbrio interno do homem e desse com o ambiente, o deformará irremediavelmente. Cf. DEJOURS, Chistophe. Por um novo conceito de saúde. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, n. 54, v. 14, Ab./mai./jun. 1986, p, 7-11.61 Cf. STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p 57.62 MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade: Heidegger e a reconstrução ontológica do real. São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999, p. 129. Neste sentido, Heidegger atribui o ser-no-mundo como característica essencial da pessoa. Essa caracterização da pessoa revela que o ser humano para Heidegger não é uma realidade estática, que possa ser enquadrada a partir de uma determinada realidade, não é algo permanente, imutável, é um sujeito em processo de vir a ser, um contínuo devir. Heidegger afirma que a filosofia não pode pensar o ser humano, as coisas, a cultura como uma simples categoria da realidade, pois este pensar leva à coisificação, pois é uma categoria ligada às coisas, que nos leva a conclusões a partir da relação sujeito-objeto, ou seja, nos leva à objetificação, que é o grande equívoco da metafísica. Para ele o ser humano é colocado como possibilidade, “ele é um poder-ser”. Cf. STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p 55-57.63 A ontologia fundamental não quer um fundamento inconcusso, porque o Dasein é abissal, sem fundo, que se dá no modo-de-ser. Podemos dizer que Dasein é sem fundo, é abissal “na medida em que a fundamentação a que ele remete é pura possibilidade. Não é nem realidade como um objeto no qual se fundaria o conhecimento, nem realidade como sujeito no qual se fundaria o conhecimento. O conhecimento é uma estrutura prévia dada pela compreensão do ser” ..STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica..., p 59. 64 STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica ..., p 59.

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Neste sentido se pode afirmar que, atualmente, a dignidade da pessoa humana como

fundamento do Estado Democrático de Direito, não pode estar lastreada na noção Kanteana65

calcada na racionalidade e autonomia moral por ser conceituação metafísica e estática

inadequada ao mundo hodierno em constante transformação66, sendo a noção de dignidade da

pessoa humana sob a perspectiva da hermenêutica filosófica “fundamento sem fundo”, não podendo

ser categorizada por não ser fundamento objetivista nem subjetivista, mas uma fundamentação de

caráter prévio, de caráter a prior, podendo ser compreendida como um modo-de-ser do Dasein que

como ser humano é sempre um poder ser, ou seja, é ser-no-mundo que desde os primórdios busca

liberdade, igualdade, solidariedade, qualidade de vida...enfim busca dignidade. Heidegger afirma que

a filosofia não pode pensar o ser humano, as coisas, a cultura como uma simples categoria da

realidade, pois este pensar leva à coisificação, pois é uma categoria ligada às coisas, que nos leva a

conclusões a partir da relação sujeito-objeto, ou seja, nos leva à objetificação, que é o grande equívoco

da metafísica. Para ele o ser humano é colocado como possibilidade, “ele é um poder-ser”67.

Assim, o princípio da dignidade da pessoa humana por ser “fundamento sem fundo”

não pode ser conceituado de maneira fixista, uma vez que o mesmo é “categoria axiológica

aberta, considerando o pluralismo e a diversidade de valores expressos nas sociedades

democráticas contemporânea”68. Então é preciso considerar que o Dasein como projeto

lançado no Estado Democrático de Direito projeta o seu ser na compreensão de um sentido de

Constituição que se traduz na sua normatividade principiológica69, sendo a dignidade da 65 A noção Kanteana de dignidade da pessoa humana busca resgatar o respeito absoluto à dignidade humana como imperativo ético fundamental, pois a autonomia está diretamente ligada à dignidade humana, logo, para Kant o ser humano deve ser reconhecido como sujeito, tratado como um “fim em si mesmo” e nunca como um “meio”, pois, “no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade”. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se, em vez dela, qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade. Cf. JUNGES, José Roque. O respeito à dignidade humana como fundamento de todo o humanismo. In: OSOWSKI, Cecília Irene (org.) Teologia e humanismo social cristão: traçando rotas. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2000, p. 149. O fato é que atualmente não podemos fundamentar a dignidade da pessoa humana apenas na racionalidade como se a questão “racionalidade” comportasse a essência do que é ser digno. Se assim o fizermos estaremos entificando o ser, pois fechadas suas possibilidades de sentido, ou seja, somente a racionalidade consubstanciará a dignidade da pessoa humana. Para Heidegger o que fundamenta as coisas no mundo da vida é o ser, pois é ele que dá possibilidade de compreender as coisas, pois o ser é um a priori que fundamenta as coisas, é um fundamento ontológico de sentido, pois é a pré-compreensão que me permite ter acesso ao mundo das coisas.66 De outra parte, não se olvide que, pela metafísica se busca inexoravelmente certeza e precisão, um efetivo controle na apreensão do real o que gera um aprisionamento do ser que é despido de sua dinamicidade, pois, é aprisionado numa estrutura tida como fixa e permanente e que deve comportar em si o ente, gerando o esquecimento do ser que não é buscado em sua verdade, pois o ser é abertura de possibilidades. Refletir sobre o ser significa, para Heidegger sobretudo, pensar a diferença (ontológica) entre ente e ser, pois, a partir da ontologia fundamental ser e ente não pertencem mais a dois âmbitos distintos, mas à unidade do mesmo acontecimento, como um jogo ininterrupto entre aquilo que uma coisa é (ente) e aquilo que nela provoca a sua própria ultrapassagem (ser). Cf. MICHELAZZO, José Carlos. Do um como princípio ao dois como unidade: Heidegger e a reconstrução ontológica do real. São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999, p. 120.67 Cf. STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica.., p 55-57.68 SILVA, José Afonso. A dignidade humana como valor supremo da democracia. In Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 212:89-94, abr/jun- 1998. 69 A Constituição é “fundamento sem fundo” porque é resultado de sua interpretação. Consiste na estrutura prévia de sentido que desde sempre é dada pelo Dasein enquanto ser-no-mundo. Ou seja, o Dasein é projeto lançado, lança

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pessoa humana, o princípio que nos dá o limite de sentido e o sentido do limite de

Constituição, uma vez que há profunda imbricação entre o Dasein e o mundo70.

O homem em seu modo de ser-no-mundo está continuamente lutando pelo melhor em

condições de vida, de trabalho e por relações mais harmônicas. Logo, se pode perceber que a

saúde é uma busca contínua pelo “equilíbrio entre influências ambientais, modos de vida e os

vários componentes”71. Podemos perceber que, à luz da dignidade da pessoa humana, a saúde

deve ser compreendida em forma de espiral, pois “o ser é sempre o ser de um ente”. Logo, não é

possível estabelecer categoria universal para a saúde como se pudesse dizer que provendo essas

ou aquelas necessidades o Poder Público estaria desobrigado, pois, já teria cumprido seu dever

constitucional de prover as necessidades de saúde de seus cidadãos. Não podemos nos desapegar

da noção de que a ciência evolui, cria novas técnicas, facilita procedimentos, inventa e

reinventa medicamentos e tratamentos novos e mais eficazes, abrindo novos horizontes aos

quais precisamos estar atentos e receptivos. Ter horizonte é fundamental, pois para Gadamer

sem horizonte o homem está limitado por supervalorizar o que está próximo. Nesta

perspectiva Gadameriana onde ter horizonte se torna importante, precisamos olhar para a

tradição na qual foi se configurando o direito à saúde e permitir uma fusão de horizontes, ou

seja, não podemos simplesmente nos conformar com a forma limitada como a saúde

atualmente vem sendo pensada pelo Estado e fruída pelo cidadão. Neste modelo de Estado a

compreensão hermenêutica torna-se fundamental. Precisamos compreender que a atuação dos

Poderes Públicos deve ser no sentido de maximizar o direito à saúde e não restringi-lo como

se fosse qualquer atividade sem relevância que pudesse ser suprimida ou mesmo delegada72.

sua existência no Estado Democrático de Direito, projetando seu ser na compreensão do sentido de Constituição que “é a todo momento aquilo que é”, ou seja “o resultado de seu resultado” que pode ser verdadeiro ou falso dependendo da interpretação que se faz. Mas para que possamos ter “o limite de sentido de Constituição”, como constituidora do ordenamento jurídico do Estado Democrático de Direito, necessário forjar um universo de prejuízos verdadeiros, reconhecendo os prejuízos liberais individualistas que ainda teimam em se mostrar. Assim, também a dignidade da pessoa humana ‘é fundamento sem fundar’, pois faz com que o intérprete fique atrelado a ele e, mesmo, que não seja o único princípio a ser utilizado, face à sua relevância axiológica, é o principal. Então é que,“a dignidade da pessoa humana fornece, portanto, ao intérprete uma pauta valorativa essencial à aplicação da norma e à justa solução do caso concreto.70 Assim, também a dignidade da pessoa humana ‘é fundamento sem fundar’, pois faz com que o intérprete fique atrelado a ele e, mesmo, que não seja o único princípio a ser utilizado, face à sua relevância axiológica, é o principal. Então é que,“a dignidade da pessoa humana fornece, portanto, ao intérprete uma pauta valorativa essencial à aplicação da norma e à justa solução do caso concreto. 71 CAPRA, Fritjof. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 305.72 Ademais disso, Dejours nos adverte que a “saúde não é algo que vem do exterior”, não sendo assunto dos outros, pois cada indivíduo tem papel fundamental na sua saúde. Logo, só poderemos entender o todo (saúde) “tomando nas mãos” cada parte”, ou seja, tendo consciência de que a estrutura da compreensão, que é a base da hermenêutica, se exterioriza circularmente numa relação entre o todo e as partes, (ou seja, a partir da compreensão do Dasein como ser-no-mundo) pois, “ o significado antecipado em um todo se compreende por suas partes, mas é à luz do todo que as partes adquirem a sua função esclarecedora”. Cf. GADAMER, Hans-Georg. Esboços dos fundamentos de uma hermenêutica. In: O problema da Consciência Histórica. Rio de Janeiro: FGV, 1988, p. 58.

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O Dasein não está contido no mundo, mas tem relação com o mesmo. Assim, a saúde

deve permanecer um conceito aberto para permitir que o Dasein possa contínua e

constantemente ter “as coisas do mundo à sua disposição”, pois como ser-no-mundo suas

necessidades se modificam e são ampliadas constantemente em função de sua própria

evolução e finitude. Diante desses argumentos não é temeroso afirmar que o direito à saúde,

visando uma melhor qualidade de vida, deve ter como instrumento de aferição a realidade de

cada indivíduo e pressuposto de efetivação a possibilidade de que cada pessoa tenha acesso

aos meios indispensáveis ao seu particular estado de bem-estar. Enfim, direito à vida, que é

direito a ter direitos, configurando-se como condição da própria dignidade da pessoa humana.

O fato é que a dignidade humana está intimamente ligada à noção de ser-no-mundo que deve

ser tomada pelo Poder Público como imperativo fundamental que, no Estado Democrático de

Direito deve levar o Dasein, efetivamente, a não ser um ente tutelado, mas um ente

verdadeiramente privilegiado que encontre espaço para o seu desenvolvimento integral, no

exercício da cidadania e da construção da sociedade, onde a Constituição seja tomada como

referência fundante para o resgate da dignidade da pessoa humana. De fato, o Poder Público

está submetido à dimensão de sentido de Estado retratada no texto constitucional, vinculado

aos preceitos, princípios e valores normatizados para o Estado Democrático de Direito. Logo,

a dignidade da pessoa humana, como valor incorporado ao sistema constitucional, sinaliza

para uma inversão na prioridade política, social, econômica e jurídica até então existente.

Assim, o Poder Público deve tomar consciência de que a pessoa humana é o valor-fonte e

orientar todas as suas ações nesse sentido, assumindo a saúde como prioridade e a

dinamização do Sistema de Saúde de forma mais comprometida. Mediante uma consciência

histórica efeitual conferida pela matriz teórica utilizada, compreendemos que o Estado foi (é)

constituído para o homem (Dasein), devendo instrumentalizar sua atuação no sentido de

atender as necessidades de seu ente criador, qual seja o homem em sociedade, sendo a saúde

uma das mais relevantes. Dessa forma, o Estado tem legitimada sua existência apenas quando

está a serviço da própria sociedade. Logo o Sistema Único de Saúde (SUS) deve existir não

como mero sistema normativo ou como organização modelo para outros países como vem

sendo considerado. Deve ser espaço de promoção da vida, de recuperação e preservação da

saúde. Pois se “todas as coisas estão no mundo com uma finalidade específica”, o SUS tem a

finalidade de estar estruturado de modo a promover maior qualidade de vida.

Precisamos construir no Brasil uma tradição onde o atuar do Poder Público se estruture

de modo a ter por fim último o ser humano, pois, se pode afirmar, modo categórico, que a

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dignidade da pessoa humana “impõe-se como núcleo básico informador de todo o

ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e

compreensão do sistema constitucional73, pois, ‘nenhum princípio é mais valioso para

compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa

humana74”, por fornecer ao intérprete um referencial valorativo essencial à justa solução do

caso concreto, pois só é possível sua aplicação caso a caso. Necessário, então, romper com o

dedutivismo e a subsunção que desconsidera os valores fundamentais para a sociedade em

cada momento histórico, levando ao “congelamento” e desatualização do sistema jurídico.

Também a hermenêutica filosófica Heideggeriana-Gadameriana nos confere aporte para

repensar o Direito e desvelar o sentido comum teórico que permeia o imaginário do

jurista/operador do Direito, atentando para o papel fundamental da jurisdição constitucional

na atual conjuntura de tensão entre os poderes Executivo e Legislativo face a necessária

preservação do núcleo básico fundante da Constituição e concretização do direito à saúde. E

reiteramos que é importante a compreensão do conteúdo normativo da Constituição, e que a

pré-compreensão do intérprete não pode se desatrelar dos problemas sociais, pois só é

possível interpretar mediante uma prévia compreensão. Portanto, é imprescindível revisitar a

teoria da separação de poderes que alimenta o modo reprodutivo de fazer direito, negando a

sua dimensão histórica e o papel social e político do judiciário na construção de uma

sociedade mais justa e democrática. Somente com compreensão hermenêutica se supera este

dogmatismo e os direitos fundamentais poderão ser considerados na sua peculiar

fundamentalidade sob a ótica de um constitucionalismo comunitário, sendo implementados

como concretização do princípio da dignidade humana.

O Poder Judiciário deve conscientizar-se da necessidade de rompimento do paradigma

liberal-individualista expresso no sentido comum teórico que permeia e é consumido no seu

meio, contribuindo para a objetificação da Constituição e levando à inefetividade do direito à

saúde. Os paradigmas ultrapassados somente serão superados se o jurista interpretar a

Constituição como ser constitutivo da sociedade que é, tendo presente o caráter produtivo da

interpretação e percebendo a atividade jurisdicional como condição de possibilidade de

concretização da Constituição. Pois a norma não tem sentido em si, mas apenas quando

aplicada ao caso concreto, que não pode ser compreendido sem uma pré-compreensão da

Constituição, pois ela constitui o Estado- Nação e promove a dignidade da pessoa humana.

73 PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos e direito constitucional internacional, 3. ed. Atual. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 93.74 Idem, p. 94-95.

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Da noção de saúde como qualidade de vida decorre a questão de que ter saúde também

é ter relações harmoniosas, pois o Dasein também é ser-com-os-outros. Ocorre que se “há

uma íntima vinculação entre o homem e o mundo de forma que um não existe sem o outro”,

em sua relação com outros Dasein o homem também precisa desenvolver uma relação de

familiaridade, de pertencimento à comunidade humana, pois ela se apresenta como condição

de possibilidade para o seu desenvolvimento enquanto ser-no-mundo. Retomando então desse

modo o raciocínio desenvolvido até aqui sobre a fundamentalidade do direito à saúde para o

Dasein e, considerando que a dignidade da pessoa humana no sistema de direitos

constitucionais, seja um valor essencial que dá unidade de sentido à Constituição, reiteramos

que todos os entes federativos encontram-se vinculados ao dever de prestar saúde, mas cada

pessoa também está comprometida em zelar pela sua saúde e a dos outros. Nesse passo, a

noção que ora se busca consolidar é a de que a Constituição Cidadã de 1988 nos abre

horizontes para um constitucionalismo comunitário75 que, fulcrado no binômio dignidade

humana-solidariedade, tinge com novas tintas as relações sociais, apontando para uma

compreensão ontológica do direito à saúde, uma vez que os novos direitos que são agregados

à Constituição pela via de sua abertura constitucional, advêm dos valores priorizados pela

comunidade social. Nesse sentido é importante perceber a relevância que adquire a dimensão

da solidariedade. Aqui não podemos mais falar apenas num direito de igualdade, mas se busca

fomentar “o caráter solidário do homem” que propugna pelo respeito à dignidade humana:

“agora não mais o homem e o Estado, ou o homem e o outro, mas principalmente o homem

com o outro”76. Dasein é entendimento, é ser-com-os-outros, pois estamos no mundo e como

tal teremos de nos relacionar com vários tipos de Dasein. Esse pensamento é fundamental

para que possamos reafirmar a fundamentalidade do princípio da dignidade da pessoa

humana, conceito evolutivo, dinâmico e abrangente para que se possa (re) construir o Estado

Democrático de Direito, modelo no qual o ser humano não é visto apenas como indivíduo, ou

seja, como um “eu “ mas como pessoa (eu/tu) ser em relação face à abertura de possibilidades

que se descortinam na sociedade pois, como integrante da comunidade social – cidadão,

crescemos e nos desenvolvemos na relação com os outros77. Assim, quando falamos em

75 Faz-se mister pensar num constitucionalismo comunitário que ultrapasse a concepção de direitos subjetivos para dar lugar às liberdades positivas que limitam e condicionam a autonomia individual em favor do coletivo, pois não podemos continuar a pensar os mesmos apenas do ponto de vista do indivíduo enquanto faculdades ou poderes de que são titulares, “antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe a perseguir”. Cf. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 3. ed., Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 16-17. 76 ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O Constitucionalismo Contemporâneo e a Instrumentalização para a Eficácia dos Direitos Fundamentais. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, nº 16, 1996, p. 46.77 Assim, “a auto-realização pessoal, que seria o objecto e a razão da dignidade, só é possível através da solidariedade ontológica com todos os membros da nossa espécie [...] que se debruçaram sobre nós e nos transmitiram uma língua, um

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“efetivação do direito à saúde” se busca um “pensar a saúde de forma diferenciada do modo

como tem sido pensada” à luz da dignidade da pessoa humana. É preciso pensar “o ser” ou

seja, pensar a saúde como algo que traz mais vida para o Dasein pois ser-no-mundo é estar

aberto a novas possibilidades de sentido; conferir possibilidade para que o Dasein tenha acesso a

outros bens que lhe são necessários para viver. A saúde não pode continuar sendo pensada apenas

do ponto de vista econômico onde não se busca “ir as coisas mesmas”, ou seja, onde o discurso de

sua inefetividade não se refere nem ao Dasein e nem passa pelo planejamento.Tendo presente que

o Estado Democrático de Direito aponta para uma dimensão de cidadania-solidária, o que se

busca não é o sujeito com uma identidade isolada, mas como uma inserção coletiva,

pertencente a uma comunidade social, na qual possa “ser-estar digno no mundo”. Sob essa

ótica devemos começar a pensar a utilização dos serviços de saúde e ajudar a estabelecer

prioridades. A saúde não pode ser vista unicamente como direito, mas deve também ser

assumida como dever78. Como cidadãos brasileiros precisamos aprender a usar o Sistema de

forma responsável, ou seja, lembrar que outras pessoas também precisam dele.

Dessa forma se percebe uma inafastável vinculação entre a democracia e o direito à

saúde, pois sua efetividade decorre diretamente da participação de toda a comunidade política.

A própria lei 8.080/90, que regulamenta o direito à saúde, deixa claro que a mesma não deve

ser assumida apenas pelo Estado mas por cada um e por toda a sociedade. Reitera-se que

somente poderemos compreender a saúde a partir da pessoa como ser-no-mundo, pois o

direito à saúde não é um conceito fechado, mas é processo, busca contínua, é “uma relação

circular entre o todo e as partes”. Ou seja, é uma relação de cada cidadão entre si e com o

Estado. Vista sob esse prisma se percebe a saúde como dever, pois o Poder Público está

comprometido com a saúde dos cidadãos do Estado Democrático de Direito, devendo zelar pela

vida dos seus. Entretanto, o cidadão não deve esperar tudo do Estado, pois cada pessoa também

deve fazer a sua parte, zelando por sua saúde, desenvolvendo hábitos saudáveis, buscando melhores

condições de vida. Somente a partir desse entendimento de saúde podemos chegar “às coisas

mesmas”, ou seja, a uma compreensão de um pensar a saúde de forma ontológica,

possibilitando uma contínua concretização do direito à saúde, que deve ser visto a partir da

espiral hermenêutica, ou seja, a saúde é busca contínua, pois a vida é processo. A saúde é um

dever-direito, pois deve ser provida pelo Estado a seus cidadãos, mas também é um direito-

cultura, uma série de tradições e princípios. Cf. JOAQUIM, Teresa. Reflexão ética sobre a dignidade humana. Documento de trabalho 26/CNECV/99. Lisboa: Conselho Nacional de ética para as Ciências da Vida, 1999.78 Assim é visto o funcionamento do sistema de saúde no Canadá, onde o cidadão tem cinco deveres a cumprir para sua utilização: usar o sistema de foram responsável; cuidar das informações a respeito da própria saúde (guardar e levar consigo os exames); aderir ao tratamento tomando a medicação; transmitir suas queixas e reivindicações aos órgãos encarregados e manter um estilo de vida saudável. Cf. SCLIAR, Moacyr. ZERO HORA, Jornal. Edição de 21/05/2003, p. 2.

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dever, pois ao mesmo tempo que o cidadão tem direito à saúde também tem o dever de zelar

pela sua saúde e a dos outros.

Neste teor de idéias, com Gadamer chega-se então à conclusão de que a saúde se

exterioriza na possibilidade do homem (ser-aí) ser-no-mundo. Logo, a vida não é um mero

existir, sobreviver, estar no mundo, mas um “ser-no-mundo” na sua totalidade, qual seja: ser

cidadão no Estado Democrático de Direito, pois só o homem é ser-no-mundo, “só o ser

humano é formador de mundo”79. Desse modo, a saúde constitui-se como fenômeno de

preocupação primordial do homem pois não se refere ao fato de sentir-se doente ou saudável,

mas é um “estar-aí, estar-no-mundo, é um estar-com-os-outros, um sentir-se satisfeito com os

afazeres da vida e manter-se activo neles”80. Ou seja, é um construir uma sociedade onde a

democracia não seja uma falácia ou mera ideologia, apenas constituída constitucionalmente,

mas uma realidade concreta em luta contínua para uma maior qualidade de vida numa

constante proteção e promoção do cidadão do Estado Democrático de Direito.

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79 Stein, Ernildo. Pensar é pensar a diferença..., p. 32.80 GADAMER, Hans-Georg. O mistério da saúde: o cuidado da saúde e a arte da medicina. Trad. António Hall. Lisboa/Portugal:Edições 70 Ltda, 1993, p. 109.

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