OsEscolhidos:Layout 1 - presenca.pt · Preparava-se para virar costas quando o seu coração...

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kusheqárós-shu cháguda utheknákusheós tsur kókátha tsuránkárathas tyeyehue umyártahe sheshelessháh mánya shá mumuyachiyáqeyeke-shu yáresh keruyáreshira chiyaqeyensha-shu qányayeknátiyeinsha-hue tungóqerónshashánguós-shu osráhrata lyeyecha huágatakuyushimuntheónsha-shu lyeyeshichurutniryinsha-shu chuyiruth niryike-shulyeyehash ksirushhua keruknáksyekshákeamha ksósheáthaseruyuchádayetnirónsha-shu shileruyuchádayetnirónsha-kshu tyeyehueksuyiruyitha-shu charata thumyajuyireithata tyeyereaqayakáyas-kye tyeyere chágudaknarenál tyeyehue dájaqeakshiruis-che shayaguyas-che

kureóke-shu káreónsha-shutyeyeshile tuya kshiranshaknátsáyansha miruthe susheóke-shusásheónsha-shu kshán shileknápóyánsha káradahuahuáyechádeqeransha-hue jirishántyeyenán nunyána nangáqerán-sha-hueuthe chyeqetheleqeransha-hue uthelyeyehuea qányátla kise

Carne, une osso com ossoA tua terra emurchecidaAntiga MãeQueimada e sem lágrimas Tu aguardasO Senhor do Céu que veio proclamarAtroando o seu ventre tempestuosoOnde esconde a Sua semente urgenteAté Ele Te penetrar com as Suas flechasApagar o ar ardenteEspalhar e repartir as Tuas poeirasEncher os Teus ventres com jades a mover-se em espiralAté a Tua carne incharNo meio do rebentar das águasBuscando a libertação

Impele com força o Filho VerdeDez mil vezes renascidoComprime-O no arEnfeitado de jóias pela manhãPara receber o doce alimentoNos Teus seiosPara que Ele possa voltar a dançarE mais uma vez soprar os Seus aromasPor debaixo dos céus.

Parte de o «Canto à Terra» de O Livro dos Feiticeiros, mostrado no quya original

VISITAS

Ventos gélidos fustigam um mar com gumes que parecem de pedra soltando lascas que se dispersamcomo aves.

Ali, as árvores ficam douradas e a seguir morremComo sucede com tudo o que nasce do sol.

— ORIGEM DESCONHECIDA

Todo aquele dia o vento agitara as persianas e enchera o céu deneve, mas no coração quente do Forte, Carnelian estava sentado comalguma da sua gente à volta de uma fogueira, escutando a sua conver -sa. Contavam histórias, histórias que, aqueles que ainda conseguiamlembrar-se, falavam das suas vidas antes de os colectores de criançasos virem buscar. As palavras iluminavam-lhe a mente com a luz deverões distantes. Reclinou-se na cadeira, sonhando, os olhos semicer-rados devido ao encadeamento saltitante das chamas. A história res-soava no meio do cochicho das mulheres que teciam, o ruído distantedas cozinhas, alguém a cantar uma canção com a boca fechada. Pordetrás de tudo isto ouvia-se o vento forte que o fazia tremer, depoisafundar-se mais no conforto da cadeira.

Ouviu-se uma voz de criança, abafada, algures lá fora. O encanta-mento desfez-se. Rostos afogueados viraram-se da fogueira. Olharampara o salão, por entre as colunas. A porta grande abriu-se e entrou umarapariga. Uma rajada de ar salpicado de neve agitou algumas das tape-çarias. Carnelian levantou-se com os outros e embrulhou-se no cobertor.

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A rapariga correu para eles, toda ela olhos, sem fôlego. — Um bar -co. — Os lábios dela formaram a palavra com cuidado exagerado.Certificou-se de que via a incredulidade em cada rosto. Sorriu, encan -tada por ser o centro de todos os olhares.

Carnelian franziu o sobrolho. — Um navio?A rapariga olhou para ele e acenou energicamente. — Um navio,

Carnie, juro, um navio. Está ali. No mar. Eu vi-o.Carnelian deu o seu cobertor a alguém, foi buscar a sua capa em

grandes passadas, colocou-a, voltou para junto da rapariga e estendeu --lhe a mão. — Vem, mostra-me.

A rapariga agarrou-a, enterrando o queixo no peito, corando. Osseu dedos eram demasiado pequenos e escuros na mão branca como oleite de Carnelian. Juntos, conduziram um cortejo que saiu do salão.O frio atingiu-os. Carnelian mandou os idosos voltarem para o calor.— Não há necessidade de virem. Mandarei avisar se for verdade.

Depois deixou que a rapariga o arrastasse pelo pátio lamacento.Alguns mais jovens seguiram-nos. Vinham todos muito juntos porcausa do vento mas este infiltrava-se entre eles, enfunando-lhes os cobertores, eriçando as penas da capa de Carnelian.

Tiveram de atravessar dois pátios para chegarem aos salões quedavam para o mar. Pavilhões, de colunas esguias, no Verão arrefe cidoscom azulejos e água. Agora estavam abandonados ao frio, mas depoisapanhariam as brisas e encher-se-iam de sol e gargalhadas.

Tinham as pontas das orelhas a arder quando chegaram à porta paraa torre. Havia mais além uma escadaria pela qual o vento descia auivar. Abriram caminho por entre ele, subindo os degraus traiçoeiroscobertos de gelo. As fendas deixavam passar os golpes de lança da tem-pestade. Chegaram ao cimo, juntaram-se e avançaram aos ziguezaguespor um bramido enfurecido.

Um turbilhão de cinzentos e pretos. Atingiram-nos rajadas de neve,cobrindo-lhes os olhos. Os rostos começaram a doer-lhes. Carnelianseguiu o puxão da mão da rapariga, inclinando-se para o vento. Chega -ram ao parapeito e colaram-se a ele com os dedos dormentes. A rapa-riga agarrou-se a Carnelian para se amparar. Ambos semicerraram osolhos. O mar fazia rolar na direcção deles a sua superfície vítrea todariscada de branco. Sentiram o bramido a cada onda que rebentava napraia. Carnelian teve de limpar os olhos. A rapariga fazia-lhe caretas,gritando algo. A mão dela tremia ao apontar. Carnelian protegeu orosto com os braços em cruz e olhou fixamente. A decepção foi esma -gadora. Não havia nada a não ser o amontoar de terror do mar.

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Preparava-se para virar costas quando o seu coração começou a batermais depressa. Viu-o, um bocado de madeira, um navio a voar na direc -ção deles com as velas esticadas e abertas como asas digitadas, umnavio que voava para eles na ira da tempestade.

Deixando que os outros regressassem ao Salão Grande, ao seu pró-prio ritmo, desceu a correr os degraus, quase se elevando no vento.Escorregou algumas vezes e caiu uma, raspando o cotovelo na pedra.Depois levantou-se de novo e continuou a correr. Chapinhou no re-gresso pelo caminho que tinham seguido. Chegou à porta do salão,parou por um momento, respirando como um dragão, indeciso, ouviua tagarelice e deu meia volta. Viriam demasiadas perguntas daqueladirecção. Os outros que espalhassem a notícia.

Usou outra porta mais pequena, contornou algumas das despensas,passou por um corredor cheio de portas. Sentiu o cheiro do guisadocondimentado. Através de nuvens de vapor, avistou pessoas a trabalharnas cozinhas. Ninguém o viu. Alcançou a álea coberta que serpen teavapara norte em direcção ao Portão do Forte. Uma claridade vaga lá embaixo mostrou onde a álea desembocava no Pátio Rectangular. Seguiupelo outro lado, correndo pelo chão sulcado. Chegou a uns degraus esubiu-os dois a dois. Os guardas da tyadra estavam ali, embrulhadosem cobertores, a jogar aos dados à volta de uma braseira. Ergueramos rostos, cada um marcado de forma idêntica com a tatuagem da suaCasa: o camaleão, de olhos bugalhudos no centro da testa, o dorso descendo-lhes pelo nariz, a cauda enrolada no queixo dos seus rostos.Uma pata alargava-se sobre cada sobrancelha, cada face. Satisfeitos poro verem, sorriram, fazendo os camaleões dançar nos seus rostos. Come -çaram a arranjar espaço para ele, pensando que viera fazer-lhes com-panhia na vigia.

— Não foi a vocês que vim ver. Naith, há novidades para o Mestre.Por favor, anuncia-me.

O homem esboçou um sorriso de esguelha. — O Mestre disse…— Eu sei, Naith. Assumirei a responsabilidade.Naith encolheu os ombros. Dirigiu-se ao fundo do corredor onde

duas portas de marfim-do-mar captaram a sua sombra. De pé diantedelas, o homem parecia do tamanho de uma criança. Cobriu os olhoscom a curva do braço e bateu três vezes no marfim-do-mar com apalma da mão. A sombra dele alongou-se mudou quando a porta seentreabriu. Um murmúrio de vozes. A porta fechou-se. Naith voltoucom ar carrancudo. — Espero que saiba o que está a fazer.

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Carnelian apertou o braço do homem, esboçou um aceno, depoispassou por ele. As ombreiras das portas tinham o olho protector pin-tado: um aviso geral de que ninguém deveria entrar a não ser por convite expresso do Mestre. A tinta ficara sumida muitas vezes e outras tantas tivera de voltar a ser aplicada. Aguardando diante daporta, Carnelian passou o dedo à volta do lábio de um rosto que sorriano marfim-do-mar. Ainda há um ano não conseguia chegar tão alto.Sentiu a superfície afastar-se quando a porta se abriu. Pelo intervalo,pôde ver a lareira no centro do salão e ao longe, do outro lado, namédia luz, encontrava-se a figura do Mestre do Forte, o Senhor Gover -nante Suth, seu pai.

O belo rosto do pai erguia-se acima de Carnelian como a Lua.— Porque perturbais as minhas meditações?

— Vi um navio dirigir-se para aqui — respondeu Carnelian namesma língua, o quya da corte.

Os olhos do pai estreitaram-se. — Um sonho?— Não, Pai, vim aqui directamente da Torre de Leste. Avistei o

navio do seu cimo.Suth reparou na água que perlava as penas da capa do filho. — Um

navio, dizes? — Não ousou sorrir para não ferir os sentimentos dorapaz.

— Parecia negro e era do tamanho e da forma do meu dedo e tinhamuitas velas desfraldadas para aproveitar o vento.

O pai carregou o sobrolho. — Um navio negro comprido, com asvelas içadas, com esta tempestade?

— Pelo meu sangue, Senhor.— Um baran — murmurou o pai.Carnelian desconhecia a palavra e não lhe agradou a expressão

pálida que se estampou no rosto do pai ao proferi-la.O pai virou-se. As opalas entretecidas na sua túnica piscaram como

os olhos de aves. Voltou-se com ar grave. — A ser verdade o que os vos-sos olhos viram, então temos de fazer preparativos para receber as nossasvisitas com a devida honra. Por favor, ide para o vosso quarto eaprontai -vos. Não saireis de lá até eu vos chamar e mesmo assim só paravirdes directamente para aqui. Não haverá desvios daquele caminho.

A mão do pai agarrou-lhe o ombro, mas eram mais os olhos cinzen -tos que mantinham Carnelian imóvel. — Fui suficientemente claro?

— Fostes, meu Senhor — assentiu Carnelian, intrigado com osmodos do pai.

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— Então ide e fazei o que vos mandaram.Carnelian encaminhou-se para as portas de marfim-do-mar. Ia a

meio de contornar a lareira quando o pai voltou a falar.— É Naith quem controla o exterior, não é?— É sim, meu Senhor.— Por favor, mandai-o entrar.

Carnelian percorreu a álea com grandes passadas, atormentando-oa lembrança da expressão no rosto do pai. Afastou-a fazendo convergiros seus pensamentos para as visitas. Que tipo de pessoas teriam cora-gem suficiente ou, corrigiu-se, seriam tão imprudentes ao ponto deandarem no mar no Inverno?

Chegou à arcada que ladeava o Pátio Rectangular. Conseguia ver,através da sua colunata de madeira, o ar densamente carregado deneve. Esta vinha amontoar-se no rectângulo do pátio, apagando quais-quer pormenores familiares. No muro em frente, a luz cor de laranjapenetrava através das portas e persianas fechadas. Olhou de soslaiopara os beirais. O céu tinha um ar zangado. Aproximava-se a noite.

Foi até ao fundo da arcada e procurou a argola que abria outra portapara o Salão Grande. Introduziu-se no calor com o seu cheiro a espe-ciarias e corpos e madeira a arder. Entre os pilares, as pessoas aglome -ravam-se fazendo conjecturas.

— Carnie — exclamaram as muitas vozes das pessoas que a ele afluí -ram —, quais são as novidades? Pode realmente ser verdade? Um navio?

— Vi-o com os meus próprios olhos. — Clamaram à sua volta.Carnelian ergueu as mãos e elas silenciaram-se. — Olhem, não tenhotempo para falar. O Mestre irá enviar-vos as suas ordens dentro embreve. Temos de nos preparar para as visitas. — Puxou a extremidadeda capa. — Até eu tenho de me ir aprontar.

Houve muitos rostos sorridentes.— Bem, vou andando. Por favor, procurem Tain e peçam-lhe que

venha ao meu quarto.Carnelian voltou para o frio e continuou a descer a álea até um

túnel. Ao fundo, um arco dava acesso ao Pátio da Esgrima, mas, antesde lá chegar, virou à esquerda para umas escadas. Conduziram-no aoaglomerado ruidoso da caserna. Dormira lá desde os cinco anos e hámuito que deixara de notar o cheiro almiscarado dos homens, apesarde o fazer sentir-se seguro.

Quando chegou ao seu quarto, levantou o fecho das persianas, escan - carou-as, abriu a vidraça de pergaminho e espreitou lá para fora.

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O brami do do mar revolto e do vento. Flocos de neve pelo ar. O cabelofustigou-lhe o rosto. Viu a linha da costa a desaparecer na ponta ocidental da ilha. A estrada descrevia uma curva a partir do Portão doForte até ao cais. O seu comprido rectângulo era uma tranquilidadeno meio do mar agitado. Olhou para a extremidade rochosa do Forte.O penhasco erguia-se até à alvenaria lisa dos aposentos do pai no seupromontório meridional. A neve batida pelo vento desfocava a vista.No exterior, para lá da protecção do penhasco, o mar erguia-se numamontanha que caía, espumando, sobre a baía. Não havia sinal donavio.

Fechou a janela e as persianas. Foi um alívio impedir a entrada datempestade. Desapertou a capa, pendurou-a, aproximou-se da lareira,curvou-se, afastou a camada de cinza e começou a empilhar galhossecos sobre as brasas.

Quando o seu meio-irmão Tain chegou, as chamas eram sombrastrémulas a subir e a descer pelas paredes.

Carnelian sobressaltou-se. — Pelo sangue dos Deuses! Julguei quenunca mais viesses.

— Não me apercebi de que tinhas tanta pressa, Carnie, é só…— Esquece os sós. Vá lá, Tain, preciso de me vestir.Tain retirou as camadas ensopadas até o corpo de Carnelian se

revelar de um branco uniforme, magro, a tremer. Tain tocou na peledele. — Devias ter-te despido, Carnie, estás frio como um cadáver.— Empurrou Carnelian mais para o pé da lareira. — Sabes o que sepassa? — inquiriu ao afastar-se para um canto do quarto.

— Queres dizer que não sabes do navio? — perguntou Carnelianatrás dele.

O irmão regressou com um frasco de pedra, uma taça e uma mão --cheia de bonecas. Esboçou um esgar. — É claro que sei. Referia-meaos tyadra.

— Aos tyadra?Tain deitava um líquido fumegante do frasco para a taça. Ergueu

o olhar. O seu rosto era ainda demasiado jovem para ter uma tatua-gem da Casa. — Eles estão a armar-se e acabei de ver o Mestre passarapressado. Não só Grane o acompanhava, mas também Keal e váriosoutros comandantes.

Carnelian sentiu-se desconfortável. O pai deles raramente abando-nava o salão. No passado, tivera por hábito ir ao Pátio da Esgrima parasupervisionar o treino dos tyadra. Quando vinha a Primavera, leva va -os

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todos a caçar fora do Forte. Nessas ocasiões, os tyadra iam armados, masdas outras vezes só os que guardavam o pai estavam munidos e mes moisso era apenas parte do cerimonial. Que ameaça poderia existir na suailha remota?

Carnelian tinha um palpite. — Espera um pouco. — Foi atéà porta e abriu-a. Estavam, sem dúvida, guardas lá fora no corredor.— O que fazem aqui?

— O Mestre mandou-nos proteger-te, Carnie — respondeu umdeles.

— Do quê, Krib?O homem encolheu os ombros. — Das visitas?— O que se passa com os tyadra?— Acho que nos estamos a preparar para um combate, Carnie.

— Krib olhou para os outros guardas procurando corroboração.Vendo os seus rostos carrancudos, Carnelian franziu o cenho.

— E vocês estão aqui para cuidarem de mim, é isso?Eles olharam para os pés.Carnelian voltou para a sua lareira. Parou diante de Tain e não viu a

interrogação no rosto dele. A taça encontrava-se no chão entre ambos.Carnelian estava a recordar a expressão do pai. Manifes ta mente, o Mes -tre julgava que o navio ia trazer perigo para o Forte.

Quando Tain se baixou sobre a taça e mergulhou a boneca, Carne lianbaixou automaticamente a cabeça. Tain esticou-se para lhe lavar a testa.A sujidade saiu pondo a descoberto a luminosidade branca da sua pele.

Carnelian teve apenas ligeira consciência do frio e, de imediato, doardor e do cheiro a cânfora. Manteve-se imóvel como uma pedra enquanto Tain lhe retirava a tinta do corpo. Resmungou quandoa boneca lhe fez arder o cotovelo esfolado.

— A culpa é toda tua, Carnie — repreendeu-o Tain. — Não seiporque achaste que precisavas de ser pintado hoje. Não há sol sufi -ciente para fazer uma sombra, quanto mais macular-te a pele.

Quando Tain acabou a limpeza, insistiu em pentear o cabelo pretoemaranhado de Carnelian. Este suportou cada puxão em silêncio. O ir -mão trouxe as suas melhores túnicas e vestiu-lhas uma após a outra.Tinham sido cortadas de modo a que cada camada por baixo fosse par-cialmente revelada.

— Queres usar as tuas jóias, Carnie?Carnelian olhou para baixo e viu que o irmão lhe apresentava um

cofre aberto. Remexeu no seu conteúdo com um dedo e retirou umalfinete de jade-maçã e marfim. Deu-o a Tain. — Estou apresentável?

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Tain ouvira os guardas discutirem a beleza de Carnelian. Erguendo --se ali, mais parecia ser feito de neve. — O alfinete condiz com a cordos teus olhos e realça a brancura da tua pele.

Pensando que se tratava de uma provocação, Carnelian deu-lhe umsoco. Tain esquivou-se, soltando uma risada.

— E agora?— Agora vou sentar-me e aguardar — respondeu Carnelian, fin-

gindo boa disposição.— Queres dizer, vamos sentar-nos e aguardar. — Tain não tentou

sequer ocultar a sua tristeza. Esperara sair dali e ir descobrir o que sepas sava, mas não queria abandonar Carnelian. Animou-se. — Podere -mos ver o navio chegar daqui.

Carnelian pôs-se em pé de um salto. — Tens razão.Correu para as persianas. Tain agarrou a mão de Carnelian no

momento em que se estendia para o fecho. — É melhor ser eu a fazê --lo, Carnie. Podes sujar as tuas túnicas.

Carnelian franziu o sobrolho. Quando a janela de pergaminho seescancarou, entrou uma rajada de neve. Tudo no quarto se agitou.Esprei taram ambos o lusco-fusco. A neve trazida pelo vento dimi -nuíra. — Consegues ver alguma coisa?

Tain abanou a cabeça, depois levou a mão atrás para puxar a túnicado irmão. — Olha! — exclamou, apontando com a outra mão.

Carnelian debruçou-se sobre ele e viu a forma enorme avançandopara o cais. Baloiçava lenta e pesadamente. Brilhavam luzes aqui e alino seu convés. As velas tinham sido amarradas, deixando despidos ostroncos dos mastros.

— Ele vai desfazer-se — exclamou Tain. E conseguiram, efecti -vamente, ouvir uma terrível chiadeira mesmo com o barulho do vento.O navio raspou no cais mas não se afundou. Carnelian observava, mordendo a mão. Não teve a certeza de querer que se salvasse.Brilharam chamas quando os archotes se deslocaram no convés para sereunirem do lado de terra do navio. A sua linha a pulsar definia a curvado casco. Subitamente, os archotes deslocaram-se a brilhar do naviopara o cais. A maior parte apagou-se quando embateram, mas outrosganharam uma luz crepitante. Pouco depois, começaram a saltar figu-ras pela borda, arrastando cordas. Algumas aterraram na pedra, outrasfalharam e caíram ao mar. Carnelian assistiu com horror quando o naviose deslocou. As cordas retesaram-se. Alguns dos homens foram atira-dos do cais desaparecendo no estreito canal de mar entre o casco e ocais. Quando o navio voltou a embater, mais homens saltaram sem que-

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rer. Os que ainda se encontravam no cais faziam força nos calcanhares,puxando as cordas, esforçando-se por o imobilizar.

Carnelian deixou Tain à janela e correu para ir espreitar o cor redor.Os guardas ainda lá estavam. — Ainda não chegou nenhuma mensa-gem para mim, nenhuma notícia?

— Nenhuma, Carnie. — Abanaram as cabeças, parecendo preo-cupados.

Carnelian tentou enviar um em busca de notícias, mas ele re cusoucom um «O Mestre tem de ser obedecido». Sempre que um dosseus dizia aquilo, sabia que seria necessário usar de todo o poderpara conti nuar a insistir. Desistiu. Para quê arranjar problemas aohomem?

Voltou a correr para junto de Tain. Dúzias de cordas prendiam onavio ao cais. Estava a ser puxado. Foram arremessadas e presas maiscordas. Os homens deslizaram por elas como gotas de óleo por um fio.Verificava-se uma movimentação constante no convés. Depois parou.Subitamente. Tinham aparecido duas ou três figuras enormes queavançavam para a proa. Tudo o mais estava imóvel, excepto a subidae descida do navio. Até o vento amainara.

— Mestres — observou Tain, olhando com inquietação paraCarnelian.

— Não podem ser — contrapôs Carnelian, apesar de ter estado apensar a mesma coisa.

— Mas repara, Carnie, todos os que os rodeiam — Tain apon -tou — estão a efectuar a prostração. E repara neles, vê como são enormes. Só os Mestres são daquele tamanho.

Apesar do crepúsculo, àquela distância, as formas evidenciavam mes-mo assim uma majestosidade que sugeria serem efectivamente Mestres.

— O que os terá trazido até cá? — murmurou Carnelian, mas assuas palavras foram levadas pelo vento.

Carnelian e Tain tinham visto as figuras abandonar o navio e des-locar-se ao longo do cais agigantando-se no meio dos homens maispequenos que levavam os archotes. O cortejo subiu a estrada até aoPortão do Forte e desapareceu de vista. Depois, nada. Os irmãos fica-ram sentados à espera junto à lareira, cada um embrenhado nos seuspróprios pensamentos.

O som da porta a abrir-se fê-los sobressaltar-se. Apareceram doisguardas carregando entre eles uma arca branca. Carnelian apontoupara o sítio onde a deviam pousar.

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Entrara outro homem atrás deles. Tinha os olhos cosidos. — O Mes - tre mandou-me dizer ao Senhor seu filho que deveria vir vestido comose estivesse em Osrakum. — O cego falou em quya carregado. Tainlevantou a cabeça. As palavras não passavam de sons para ele. Apenasalguns de entre a criadagem compreendiam a língua misteriosa dosMestres.

— Ele disse isso... tens a certeza de que ele disse isso? — inqui-riu Carnelian, mudando a fala quya para língua vulgar.

— Tenho a certeza, Mestre.Carnelian reflectiu, agora absolutamente certo de que as visitas

eram Mestres. Aproximou-se da arca. Com o habitual constrangimen -to, reparou que o velho sem olhos seguira o seu movimento. A criaturaavançou para ele, estendeu a mão e abriu-a, revelando dois pacotes.— Estes ordenou-me o Mestre que depositasse pessoalmente nas mãosdo filho dele. Devo dizer que, assim que estiver convenientemente vestido, o filho dele deverá comparecer perante o Mestre no seu salão.

Carnelian pegou nos embrulhos de pele curtida macia e abriu um.Lá dentro estava um pedaço de jade magnificamente trabalhado e perfurado por três orifícios para os dedos.

Ficou boquiaberto. — Um Anel dos Grandes.Virou o anel até a sua gravação captar a luz. Pertencera a sua mãe.

Abriu o outro pacote e constatou que continha um segundo anel.Usados em conjunto, constituíam um sinal da sua hierarquia do san-gue. O sangue da sua mãe era tão puro, que ela tivera o direito deusar um terceiro. Enfiou-os nos dedos. A sua mão ainda não crescerapara se lhes adaptar.

Dobrou os dedos para se certificar de que os anéis não caíam e levantou-os. Fizeram a sua mão parecer cortada.

Tain estava ajoelhado diante da arca, passando as mãos pelo marfimmacio. Era todo trabalhado com uma contorção de camaleões cujosolhos eram rebites de cobre que mantinham a arca unida.

Por um momento, os irmãos olharam um para o outro, transbor-dando de excitação.

— Vá lá, Tain, temos de nos apressar — incitou-o Carnelian.Levantaram a tampa, a seguir ficaram boquiabertos. Vestes maravi -

lhosas jaziam adormecidas dentro da arca, quais borboletas em crisá-lidas de pergaminho encerado. Ao retirarem-nas, o quarto encheu-sedo aroma a lírios. Maravilharam-se com elas. Tain despiu Carnelian edepois enfiou-lhe as vestes, uma por uma. As primeiras eram gazestão finas que flutuaram no ar. As outras para o fundo da arca eram

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mais pesadas e tecidas à mistura com pedras preciosas. As vestesencai xavam umas por cima das outras como as peças de um puzzle.A veste final era de samito cinzento: seda rígida brocada com contasde coral. Pendia tão pesada quanto correntes e estava-lhe um boca -dinho comprida de mais.

Tain encontrou no fundo da arca uma caixa contendo um pequenocírculo de prata granulada preta entrelaçada com turquesas e jades.Carnelian teve de o colocar pessoalmente na cabeça pois Tain não chegava lá.

Tain recuou, de olhos arregalados. — Estás transformado numMestre, Carnie.

— Sempre fui um Mestre, Tain — ripostou Carnelian. Sentiu-se vaga - mente ridículo, vergado pelo peso, vestido com espavento. — Achoque tenho de ir.

— Mas precisas de te ver — exclamou o irmão. Correu a buscarum espelho de cobre. Ao esforçar-se por o encostar à parede, este projectou reflexos nas vigas.

Franzindo o sobrolho, Carnelian deixou que a cabeça lhe pendessesob o peso do pequeno círculo. Quando a voltou a erguer recuou.— Pelos Dois... — Um ser estranho espreitava no cobre. Carnelianteve de se deslocar de um lado para o outro a fim de se convencer deque era o seu próprio reflexo deslavado.

Pensou nos homens altos a caminharem ao longo do cais. Mestres.Os Escolhidos, corrigiu-se, usando o substantivo quya com que se inti -tulavam. O seu estômago agitou-se. Em todo o mundo, existiam apenas três espécies de homens: os Escolhidos, a semicasta marumagae os restantes, os bárbaros. Apercebeu-se de que Tain estava a olharpara ele e pôde ver que o seu próprio mal-estar se estendia àquele rostode marumaga. Recordando-se de quem era e da obrigação que tinhapara com o rapaz, Carnelian reuniu alguma confiança e incutiu-a àsua voz. — Está na hora de eu ir, Tain. Por favor, traz-me a minhamáscara.

O irmão partiu em busca dela. Quando regressou, estendeu a más-cara a Carnelian com ambas as mãos, em reverência. Carnelian pegouno rosto oco e ergueu-o de modo a ficar a olhar para ele. A luz daschamas inundou o ouro e conferiu uma vida oculta às aberturas paraos olhos. As correias pendiam como tranças grossas. Era de uma belezafria, inumana. Carnelian colocou-a sobre o rosto. Enregelou-lhe as facese a testa. Segurou-a ali enquanto Tain dava a volta por detrás dele ese esticava para apertar as correias. Respirou lenta e profundamente

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através das narinas da máscara tal como o pai lhe ensinara e com bateua sensação de estar aprisionado. Nunca gostara de a usar. Por diversasvezes o pai insistira para que ele o fizesse, a fim de se ir acostumando,apesar de a Lei do Uso da Máscara requerer apenas que um SenhorGovernante ocultasse o seu rosto da sua criadagem.

As aberturas da máscara protegeram os olhos de Carnelian dainten si dade do fogo e descobriu que conseguia ver os cantos escurosdo quar to. Distraiu-se com aquilo até Tain ter acabado de apertar ascorreias.

— Irei agora. — A sua voz soou muito perto de si, uniforme,morta. — Também podes ir reunir-te ao resto da criadagem, Tain.

O rosto do irmão estava semivirado, olhando para ele obliquamentecom uma expressão estranha que Carnelian nunca vira antes. Tain fezuma vénia. — Faça-se a vossa vontade... Mestre.

O olhar de Tain estava também ali nos rostos dos guardas. Carne -lian detestou esta nova reverência e a forma como lhe chamavam cons-tantemente «Mestre». Fazia-o sentir-se como se eles estivessem a pô-lono lugar do pai. Este não foi o seu único mal-estar enquanto atraves-saram a caserna. Reparou que a sua escolta sentia também algo. Ten -tou localizar a sua origem. O silêncio. Era o silêncio. A caserna nuncaestava silenciosa. Era forçado. Apercebeu-se de que o ar estava desa-gradavelmente frio e húmido e sentiu um arrepio. Quando passaramao longo da arcada foi tudo o que conseguiu fazer para não fugir pelaporta para o calor familiar do Salão Grande.

Reparou que os seus homens ficaram tensos e depois endireitou-setambém quando viu os desconhecidos. Estavam dispostos em grupospelos degraus, homens cujos rostos ostentavam as marcas das outrasCasas. Olhou com atenção. Até àquele momento, cada rosto adultoque vira, para além do do pai, tinha o seu camaleão. Os rostos dosdesconhecidos eram diferentes. Alguns eram bissectados desde a raizdo cabelo até ao queixo por um bordão com um círculo de cornos.Outros estavam marcados com a cruz das asas da libelinha. Um ter-ceiro grupo tinha o disco e o crescente da estrela da tarde tatuadoscomo sorrisos maníacos. Não eram apenas as tatuagens que faziamque os rostos se afigurassem estranhos. Os bissectados eram redondose amarelos. Os da libelinha eram ovais, com olhos amen doados queespreitavam por entre as asas das suas tatuagens. Os que apresenta-vam sorrisos pintados eram mais morenos do que quaisquer pessoasque Carnelian vira antes. Todos os desconhecidos estavam cobertos

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com capas de viagem manchadas de lama. Enquanto alguns tinhamlanças bifurcadas, outros seguravam nas mãos foices embainhadas ouespadas em cruz com quatro lâminas. Tudo isto Carne lian viu no ins-tante que antecedeu a queda ruidosa dos desco nhe cidos diante deleem prostração.

Ficou estático e a escolta parou à sua volta. Os únicos homens aindade pé tinham os camaleões nos rostos. Dois destes eram seus irmãos:Grane, o severo comandante dos tyadra, e o atraente Keal. Carnelianreparou na incerteza nos rostos dos guardas quando olharam para ele.Viu-os fitar Grane, ansiosos, esperando uma ordem. O comandanteignorou-os. Esboçou antes um aceno imperceptível a Carnelian.Este viu a sua própria mão elevar-se à sua frente. Esboçou o gesto,Ajoelhar. Aos dois e três, eles baixaram-se. O orgulhoso Grane, o maisvelho dos seus irmãos, foi o último a obedecer. Comprimiu as mãosmorenas e estendeu-as, tal como os outros haviam feito, como se seoferecesse para ser amarrado como um escravo. Carnelian ficou gelado,detestando a humilhação deles. A sua mão estava ali diante dele, ogesto ainda preso nela. Fazia lembrar a mão do pai, pois só ele usavasemelhante gesto de comando. Carnelian fez um esforço para subir asescadas. As portas de marfim-do-mar abriram-se diante dele e passouentre elas, entrando no salão do pai.

Viraram-se para ele quatro máscaras. Carnelian vacilou sob o olhardelas, amedrontado pela beleza plácida, sobrenatural, daqueles rostosde ouro. Encontravam-se ali quatro gigantes ao lado da lareira cir cular.Conhecia um: o pai, com a sua túnica coberta de jóias. Os outros três,apesar de muito parecidos com ele, estavam envoltos em grandescapas negras com capuz sujas de água do mar. Em toda a sua vida,Carnelian não vira nenhum outro Mestre a não ser o seu pai. Aperce -beu-se de que, apesar de tudo o que lhe tinha contado, até àquele momento convencera-se de que ele era um ser sem igual.

Por detrás de Carnelian a portas fecharam-se e os gigantes deposi-taram as suas máscaras nas palmas das suas mãos, revelando rostosbrancos, compridos, de ossos delicados, com olhos das cores do Inver -no. Carnelian recordou que a Lei ordenava que ele devia retirar a máscaraquando outros de posição superior à sua o fizessem. Agarrou -a en-quanto se aproximava. A pele deles era como luz a atravessar gelo.Foi-lhe necessária força para conservar os olhos erguidos e fitá -los.Encontrou -a. Não iria fazer recair a vergonha sobre o pai ou sobresi próprio.

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— Grandes Senhores, vede o meu filho, Suth Carnelian — declarouo pai, olhando para ele. As emoções estavam a mudar nos seus olhos.

— Por conseguinte, Senhor Suth, este é o filho que tendes andadoa esconder de nós em todos estes muitos e longos anos. — A voz parecia vir de uma garganta de bronze. O seu dono era ainda maiordo que o pai. Era também mais velho, muito mais velho, apesar deem nada parecido com qualquer velho que Carnelian alguma vez tivesse visto. Não tinha a pele enrugada, pelo contrário, reduzia-se aalabastro. O azul intenso dos seus olhos sondava o rosto de Carnelian.A voz soou de novo. — Ele possui a beleza dos olhos de jade, estevosso filho.

Suth franziu o sobrolho. — Lisonjeai-lo, Senhor Aurum. — Osolhos deles fixaram-se. Apesar de os lábios não se mexerem, nem tão --pouco as suas mãos, Carnelian estava convencido de que comuni -cavam um com o outro. Viu que os outros dois Mestres também osobservavam.

As chamas crepitaram, silvaram. As faúlhas invadiram o ar.— Talvez sim — respondeu por fim o velho Mestre, abandonando

a disputa. Sorriu, mas apenas com os lábios. Suth voltou-se para ofilho. Carnelian pôde ver que ele estava a controlar a raiva.

— Meu filho, deixai que vos apresente as nossas visitas de sanguepuro. — O pai abriu um punho e ergueu a mão para indicar o velhoMestre. — Aurum, o Senhor Governante daquela Casa e vosso tio.O velho Mestre acenou lentamente mas os seus olhos nunca abando-naram o rosto de Carnelian.

Carnelian retribuiu o olhar. Voltou a si com o som da voz do pai.— ... Senhor Governante da Casa Vennel. — O Mestre que fez umavénia era mais esbelto do que os outros, mais jovem, de olhos maisclaros. A mão saiu de uma manga e fundiu-se no gesto, Encantado.

Suth virou-se para o último Mestre, que ostentava o sorriso serenode um ídolo. — Este é o vosso segundo primo, Jaspar da Casa Imago,que um dia, se os Dois o quiserem, será o seu Senhor Governante.

— Como dizeis, primo, se Eles o quiserem — respondeu o Mestresorridente e inclinou a cabeça com elegância.

Carnelian tentou retribuir o sorriso.— Agora que foram feitas as apresentações, meus Senhores, gosta -

ria que nos retirássemos — disse Vennel. Tinha uma voz de mulhere o seu quya era cantado. — Há a confessar um certo cansaço.

— Todos os recursos de que dispomos aqui estão à vossa dispo -sição, meus Senhores — referiu Suth. — Os aposentos foram prepa-

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rados. Espero que os meus Senhores perdoem o pouco conforto quepodemos proporcionar. Se tivéssemos sido avisados da vossa vinda...

— Viemos com pressa, meu Senhor — interveio Aurum. — Nãoera nem o momento nem a oportunidade para anunciar a nossa chegada.

Jaspar voltou a sorrir. — Um pouco de conforto será excelente emcomparação com o nosso recente alojamento.

— Reunir-nos-emos então amanhã num conclave formal? — in-quiriu Vennel com a sua voz de mulher.

Os outros levantaram as mãos em assentimento.— Até amanhã, então.Quando Vennel e Jaspar começaram a avançar para a porta, Aurum

deixou-se ficar para trás. Vennel regressou. — Não nos acompanhais,meu Senhor?

— Não de imediato. Ficarei aqui a entregar-me às reminiscênciascom o Senhor Suth. As insignificâncias nostálgicas podem ressuscitaro passado.

Jaspar arqueou um sobrolho depois voltou a baixá-lo. A expressãode Vennel permaneceu estática por um momento.

Vendo o abatimento no rosto do pai, Carnelian acercou-se dele.— Estais fatigado, meu Senhor.

O pai esboçou um sorriso fraco. — Talvez encontre retempero narecordação do passado com o Senhor Aurum. Agora ide, meu Senhor,e zelai para que os nossos hóspedes sejam bem cuidados.

Carnelian fez uma vénia. Aurum olhava-o com olhos brilhantes.Carnelian corou. Quando conduzia Jaspar e Vennel até às portas demarfim-do-mar, apareceram escravos cegos. Carnelian fitou as suaspálpebras franzidas, depois, imitando os outros, ergueu a máscara diante do rosto e um cego fixou-a. Quando as portas se abriram, olhoupara trás. O seu novo tio, o Senhor Aurum, passara um braço com-prido sobre os ombros do pai e conduzia-o até às sombras.

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