Pacto

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Pacto E, se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele? E a ideia me retorna. Dum mau imaginado, o senhor me dê o lícito! que, ou então ― será que pode também ser que tudo é mais passado revolvido remoto, no profundo, mais crónico! que, quando um tem noção de resolver a vender a alma sua, que é porque ela já estava dada vendida, sem se saber; e a pessoa sujeita está só é certificando o regular dalgum velho trato ― que já se vendeu aos poucos, faz tempo? Deus não queira; Deus que roda tudo! Diga o senhor, sobre mim diga. Até podendo ser, de alguém algum dia ouvir e entender assim! quem-sabe, a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do diá? Ou que Deus ― quando o projeto que ele começa é para muito adiante, a ruindade nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro? Que é que de verdade a gente pressente? (p. 55 -56) . O Reinaldo era Diadorim ― mas Diadorim era um sentimento meu. Diadorim e Otacília. Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucúia, mas que é rio de braveza. Ele está sempre longe. Sozinho. Ouvindo uma violinha tocar, o senhor se lembra dele. Uma musiquinha até que não podia ser mais dansada ― só o debulhadinho de purezas, de virar-virar... Deus está em tudo ― conforme a crença? Mas tudo vai vivendo demais, se remexendo. Deus estava mesmo vislumbrante era se tudo esbarrasse, por uma vez. Como é que se pode pensar toda hora nos novíssimos, a gente estando ocupado com estes negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cómpito. Eu penso é assim, na paridade. O demónio na rua... Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor. O que eu quero, é na palma da minha mão. Igual aquela pedra que eu trouxe do Jequitinhonha. Ah, pacto não houve. Pacto? Imagine o senhor que eu fosse sacerdote, e um dia tivesse de ouvir os horrores do Hermógenes em confissão. O pacto de um morrer em vez do outro ― e o de um viver em vez do outro, então?! Arrenego. E se eu quiser fazer outro pacto, com

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Pacto

E, se não existe, como é que se pode se contratar pacto com ele? E a ideia me retorna. Dum mau imaginado, o senhor me dê o lícito! que, ou então ― será que pode tambémser que tudo é mais passado revolvido remoto, no profundo, mais crónico! que, quandoum tem noção de resolver a vender a alma sua, que é porque ela já estava dada vendida,sem se saber; e a pessoa sujeita está só é certificando o regular dalgum velho trato ― quejá se vendeu aos poucos, faz tempo? Deus não queira; Deus que roda tudo! Diga o senhor, sobre mim diga. Até podendo ser, de alguém algum dia ouvir e entender assim! quem-sabe, a gente criatura ainda é tão ruim, tão, que Deus só pode às vezes manobrar com os homens é mandando por intermédio do diá? Ou que Deus ― quando o projeto que ele começa é para muito adiante, a ruindade nativa do homem só é capaz de ver o aproximo de Deus é em figura do Outro? Que é que de verdade a gente pressente? (p. 55 -56)

. O Reinaldo era Diadorim ― mas Diadorim era um sentimento meu. Diadorim eOtacília. Otacília sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucúia, masque é rio de braveza. Ele está sempre longe. Sozinho. Ouvindo uma violinha tocar, osenhor se lembra dele. Uma musiquinha até que não podia ser mais dansada ― só odebulhadinho de purezas, de virar-virar... Deus está em tudo ― conforme a crença? Mastudo vai vivendo demais, se remexendo. Deus estava mesmo vislumbrante era se tudoesbarrasse, por uma vez. Como é que se pode pensar toda hora nos novíssimos, a genteestando ocupado com estes negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que vaivir, toda a hora a gente está num cómpito. Eu penso é assim, na paridade. O demónio narua... Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é odo sentente, mas outro é o do sentidor. O que eu quero, é na palma da minha mão. Igualaquela pedra que eu trouxe do Jequitinhonha. Ah, pacto não houve. Pacto? Imagine osenhor que eu fosse sacerdote, e um dia tivesse de ouvir os horrores do Hermógenesem confissão. O pacto de um morrer em vez do outro ― e o de um viver em vez dooutro, então?! Arrenego. E se eu quiser fazer outro pacto, com Deus mesmo ― posso?― então não desmancha na rás tudo o que em antes se passou? Digo ao senhor:remorso? Como no homem que a onça comeu, cuja perna. Que culpa tem a onça, e queculpa tem o homem? As vezes não aceito nem a explicação do Compadre meuQuelemém; que acho que alguma coisa falta. Mas, medo, tenho; mediano. Medo tenho éporém por todos. E preciso de Deus existir a gente, mais; e do diabo divertir a gentecom sua dele nenhuma existência. O que há é uma certa coisa ― uma só, diversa paracada um ― que Deus está esperando que esse faça. Neste mundo tem maus e bons ―todo grau de pessoa. Mas, então, todos são maus. Mas, mais então, todos não serãobons? Ah, para o prazer e para ser feliz, é que é preciso a gente saber tudo, formar alma,na consciência; para penar, não se carece: bicho tem dor, e sofre sem saber mais porque.Digo ao senhor: tudo é pacto. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cairnão prejudica demais ― a gente levanta, a gente sobe, a gente volta! Deus resvala? Mire eveja.Tenho medo? Não. Estou dando batalha. E preciso negar o que o Que-Diga existe.Que é que diz o farfal das folhas? Estes gerais enormes, em ventos, danando em raios, efúria, o armar do trovão, as feias onças. O sertão tem medo de tudo. Mas eu hoje em diaacho que Deus é alegria e coragem ― que Ele é bondade adiante, quero dizer. O senhorescute o buritizal. E meu coração vem comigo. Agora, no que eu tive culpa e errei, osenhor vai me ouvir.

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Diadorim tinha citado alma. O que ele soubesse, não

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soubesse, não tinha ciência de coisa nenhuma, da arte em que eu tinha ido estipular oOculto, nasVeredas Mortas, no ermo da encruzilhada... Aquilo não formava meusegredo? E, mesmo, na dita madrugada de noite, não tinha sucedido, tão pois. O pactonenhum ― negócio não feito. A prova minha, era que o Demónio mesmo sabe que elenão há, só por só, que carece de existência. E eu estava livre limpo de contrato de culpa,podia carregar nômina; rezo o bendito! Trastempo, mais outras coisas sobrevinham,mas por roda normal do mundo, ninguém podia afiançar o contrário. Apús pedra porsobre pedra, não guardo lembrança. Eu era o chefe. Vez minha de dar comando e estarpor mais alto. Zé Bebelo tinha de todo desaparecido. Agora, o que se carecia, era de sepegar mais munição. Todos deviam de me obedecer completamente. Só eu não queriaabusar. Por que não queria? Ah, então, eu estava em dúvidas. Até por isso era que euestremecia, fino, no ouvir certas menções. A haver a coisa que de longe me ameaçasse,feito o vem-vem das núvens de chuva. O demo, mesmo assim, podia me marcar? Se nãofosse, como era que Diadorim viesse vir com aquelas palavras? Acho que eu não eracapaz de ser uma coisa só o tempo todo.

Reflexão n°.1

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho

Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio

Nem ama duas vezes a mesma mulher.

Deus de onde tudo deriva

E a circulação e o movimento infinito.

Ainda não estamos habituados com o mundo

Nascer é muito comprido.

Murilo Mendes

Encanto

Tem horas em que penso que a gente carecia, de repente,

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de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas, não são de verdade! Ede que é que, a miúde, a gente adverte incertas saudades? Será que, nós todos, as nossasalmas já vendemos? Bobeia, minha. E como é que havia de ser possível? Hem?!

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