Palestra - Ricardo Medeiros.pdf

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i Quartas no Arquivo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro – AGCRJ (Palestra apresentada no dia 20 de junho de 2007) Vozes entre chaminés: memória, narrativa e experiência dos trabalhadores têxteis no Rio de Janeiro. Msc. Ricardo M. Pimenta * Este trabalho de pesquisa é fruto de minha dissertação de mestrado, defendida no início de 2006, no Programa de Pós-graduação em Memória Social na UNIRIO. “Vozes entre as chaminés” é o nome que escolhi para esta palestra por representar de maneira muito interessante o que pretendi desenvolver durante meu trabalho. A indústria brasileira e sua história já foram brilhantemente analisadas por diversos estudiosos, mas também mantém diferentes lacunas quando nos remetemos à questão dos trabalhadores e suas realidades; habitantes desse passado cujas experiências — em muitos casos — não nos aguardam em arquivos, documentos ou fotos. Daí a necessidade de entrevistá-los. Entendi que, se a História era a ciência dos homens no tempo 1 , me restava ainda lançar um olhar para esses personagens que ainda estão entre nós, e que tenham vivido o tempo pretérito da fábrica de tecidos. Uma memória rica, portanto, foi e ainda é construída por estes atores sociais conectados pelas mesmas ações, lutas e conquistas. Em conjunto com as entrevistas realizadas, utilizei ainda fontes escritas e iconográficas, produzidas tanto pelos trabalhadores como pelas empresas, as quais auxiliaram em muito na montagem desse mosaico. E, nesse sentido, é que entendo a oralidade desses antigos operários têxteis enquanto um “canal” vital para a construção da memória desses “habitantes” da História, canal este que reside uma indiscutível riqueza a ser explorada ainda mais no campo de estudos das ciências humanas e particularmente dos estudos sobre a Memória Social. Dessa maneira, é a História Oral uma tentativa de dar “voz” aos silenciados? Ou seria a ação de direcionar a audição para o que não se ouvia antes? Embora possam parecer inicialmente redundantes, essas perguntas se completam no sentido do que se propõe a * Doutorando e Mestre em Memória Social pela UNIRIO.

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Vozes entre chaminés

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    Quartas no Arquivo

    Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro AGCRJ

    (Palestra apresentada no dia 20 de junho de 2007)

    Vozes entre chamins: memria, narrativa e experincia dos trabalhadores

    txteis no Rio de Janeiro.

    Msc. Ricardo M. Pimenta*

    Este trabalho de pesquisa fruto de minha dissertao de mestrado, defendida no

    incio de 2006, no Programa de Ps-graduao em Memria Social na UNIRIO. Vozes entre

    as chamins o nome que escolhi para esta palestra por representar de maneira muito

    interessante o que pretendi desenvolver durante meu trabalho.

    A indstria brasileira e sua histria j foram brilhantemente analisadas por diversos

    estudiosos, mas tambm mantm diferentes lacunas quando nos remetemos questo dos

    trabalhadores e suas realidades; habitantes desse passado cujas experincias em muitos

    casos no nos aguardam em arquivos, documentos ou fotos. Da a necessidade de

    entrevist-los. Entendi que, se a Histria era a cincia dos homens no tempo1, me restava

    ainda lanar um olhar para esses personagens que ainda esto entre ns, e que tenham vivido

    o tempo pretrito da fbrica de tecidos.

    Uma memria rica, portanto, foi e ainda construda por estes atores sociais

    conectados pelas mesmas aes, lutas e conquistas. Em conjunto com as entrevistas

    realizadas, utilizei ainda fontes escritas e iconogrficas, produzidas tanto pelos trabalhadores

    como pelas empresas, as quais auxiliaram em muito na montagem desse mosaico.

    E, nesse sentido, que entendo a oralidade desses antigos operrios txteis enquanto

    um canal vital para a construo da memria desses habitantes da Histria, canal este que

    reside uma indiscutvel riqueza a ser explorada ainda mais no campo de estudos das cincias

    humanas e particularmente dos estudos sobre a Memria Social.

    Dessa maneira, a Histria Oral uma tentativa de dar voz aos silenciados? Ou seria

    a ao de direcionar a audio para o que no se ouvia antes? Embora possam parecer

    inicialmente redundantes, essas perguntas se completam no sentido do que se prope a * Doutorando e Mestre em Memria Social pela UNIRIO.

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    Histria Oral. Ou seja, de nada adianta a voz se no h quem a entenda, reconhea, traduza

    e a oua.

    Quando Philippe Joutard disse que a fora da Histria Oral residia em dar a voz2 aos

    esquecidos ou derrotados, talvez lhe faltara considerar que esses atores sociais no

    deixaram de resistir pelo tempo e espao, tampouco lhes faltaram suas vozes. A Histria pode

    ser contada pelos vencedores, mas em sua estrutura as tenses e os diversos atores

    constantemente estiveram ali presentes e atuantes ainda que de maneira subterrnea

    A questo, ento, era que no os ouvamos. O problema era que a Histria, enquanto

    uma produo do homem em seu tempo respectivo, tambm fez suas escolhas; e escolhia no

    os inserir. Ou seja, no havia quem os ouvisse.

    O esforo de se ouvir esses atores , portanto, o de escrever uma histria vista de

    baixo atravs da heteroglossia de seus personagens. Ouvir, e no apenas ler, tambm se

    tornou papel do historiador; e assim as histrias de vida do velho operrio e da velha tecel

    se mostram, para alm dos acontecimentos que acompanho e investigo nas demais fontes

    escritas ou iconogrficas, como a possibilidade do: (...) poder compartilhar o gosto que tudo

    isso deixou na memria de pessoas que realmente viveram esta experincia.3

    A pesquisa, portanto, foi realizada no universo de duas companhias txteis do Rio de

    Janeiro. So elas a Companhia Amrica Fabril e a Companhia Nova Amrica S.A. Traando

    um breve histrico, no caso da companhia txtil Amrica Fabril, seu incio tem como marco o

    ano de 1878 com a implementao de uma fbrica, na regio de Pau Grande em Mag,

    interior do estado. Em 1891 comprou e reformou a fbrica que se chamaria Cruzeiro, na

    regio do Andara Grande, freguesia do Engenho Velho; e dessa forma inseriu-se no cenrio

    urbano da capital.

    Em seguida, com as aquisies da Fbrica Bonfim, em 1903 situada no atual Bairro

    do Caju na zona porturia ; e da fbrica Mavilis em 1911 vizinha Bonfim , levando-os

    a uma aproximao muito profcua com a malha ferroviria da Leopoldina e aos portos

    existentes naquela regio, a Amrica Fabril ocuparia definitivamente o quadro das dez

    maiores indstrias txteis brasileiras na poca.4

    Progredindo de forma sustentvel nos anos que se seguiam, em 1920 tornou-se a maior

    companhia txtil do Brasil aps adquirir mais uma fbrica, a Carioca; localizada na grande

    Gvea hoje, bairro do Jardim Botnico. No decorrer dos anos a Amrica Fabril ainda

    concentrou outras fbricas como a de Deodoro, no bairro do subrbio carioca de mesmo

    nome, e a de Cachoeira Grande, vizinha Pau Grande.

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    Quanto companhia Nova Amrica, sua criao, em 1924, se deveu atividade de

    uma diretoria demissionria da antiga Amrica Fabril. A, ento, Nova Amrica logo se

    tornou uma das companhias txteis de maior expresso no Rio de Janeiro at sua falncia,

    tambm na dcada de 80, e sua completa desativao em 1991, quando permaneceu com suas

    portas fechadas e seus teares desligados durante os anos seguintes.

    O caso da Nova Amrica apresentou menos obstculos quanto busca desses antigos

    operrios, pela caracterstica de centralidade daquela companhia que desempenhou durante

    longos anos sua produo em um nico local, no bairro de Del Castilho, no Rio de Janeiro.

    A prtica do trabalho no dia-a-dia cercado de mquinas e tecidos requeria uma

    dinmica de disciplina, rapidez e produo. As fbricas txteis caractersticas dos sculos XIX

    e XX eram, dessa forma, pensadas e institudas. Os operrios, por sua vez, tinham de ser

    controlados e moldados pelo ritmo dos teares. Suas vidas pessoais e o cotidiano de suas

    famlias confundiam-se com o ritmo do apito proveniente da fbrica, muitas vezes

    proprietria de suas prprias casas e reguladora de seu tempo privado.

    No espao caracterstico das indstrias aqui tratadas, a fbrica desempenhava a

    centralidade no s do trabalho, como de poder, controle, disciplina e produo. A formao

    daquele espao social, que permeava toda fbrica e seus praticantes, de fato se aproximava

    descrio feita por Bachelet, em sua obra Lespace, como: um espao magntico, marcado

    por pontos de atrao e linhas de fora.5

    Essas linhas de fora, entretanto, no reconhecem na figura do operrio que ali atua

    sua individualidade ou sua privacidade. Afinal, mesmo que haja no espao fabril agentes que

    lutam contra um certo insulamento "absoluto" das fbricas e o controle integral dos corpos

    laborais como sindicalistas, militantes, cdigos e legislaes que na esfera pblica podem

    suplantar a autoridade patronal uma grande frao do controle do espao fabril ainda se

    movimentava por regimes poltico-sociais mais hermticos simbolizados pelos portes e

    muros das fbricas; e de forma mais exteriorizada, por suas vilas operrias, por exemplo.6

    Ou seja, o que era privado estabelecia-se, mesmo que no fisicamente, junto aos

    muros fabris. Casas e vilas operrias so construdas, abastecidas e alugadas pela prpria

    companhia e, sendo assim, tornavam-se apenas uma extenso do brao industrial que os

    empregava.

    No que se refere ao convvio social e a estes meios de auxlio e assistncias,

    administradas do centro do kosmos fabril, era notrio o papel da vigilncia onde se agregava

    tambm ao acompanhamento de doenas tratando-as quando possvel alem da educao

    primria, creches, entre outros benefcios7 custeados pela companhia. Por esta razo, em

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    diferentes instncias sociais, a vigilncia e o controle permaneciam amalgamados vida

    operria, no apenas entre os muros das fbricas e suas sees, mas igualmente presentes

    dentro das famlias e de seu cotidiano.

    A vida cotidiana prendia-se ao espao fabril, racionalizado com a inteno de controle

    e disciplina como forma de poder, modelando e marcando no s os espaos como o tempo e

    os movimentos do corpo,8 daqueles que nele se inseriam.

    Tal sistema, fruto de uma sociedade em modernizao constante desde meados do

    sculo XIX, encontrava em fbricas como das companhias Amrica Fabril e Nova Amrica,

    de padres arquitetnicos britnicos caractersticos pelo espao sbrio9 e disciplinador

    muito presente no cenrio industrial brasileiro do incio do sculo XX o espao perfeito

    para o controle e desenvolvimento de um setor o txtil considerado o (...) mais

    avanado das relaes capitalistas de produo (...) concentrao de capital, fora de trabalho

    e fora motriz por unidade de produo.10

    Para grande nmero destes antigos operrios, a ida fbrica esteve intimamente ligada

    com a necessidade de dinheiro para suas famlias e, assim, da contribuio para o oramento

    da casa. Mesmo nos anos 40; como o caso do senhor Toninho; ex-operrio da companhia

    Nova Amrica, que ali trabalhara desde 1946 at incio de 2004. Imbudo de afeto e ansiedade

    na construo de sua narrativa, o sr. Toninho lembra da poca que, ainda menor de idade,

    comeara a trabalhar na mesma companhia que seu pai integrava desde a formao em 1924:

    (...) 22 de janeiro de 1946, a pedido do meu pai, seu Avelino Jos Fernandes, pediu e tal, tem um filho que queria ingressar... bota l pra trabalhar, pra ajudar ele tambm na ajuda do oramento da casa... (...) a meu pai pediu sabe? (...) dali a minha carreira comeou. Meu pai pediu, a eu fui pra fiao... pra fiao nova, por que meu pai era chefe da fiao velha (...).11

    Da mesma forma, outros companheiros de fbrica, como o caso do senhor Agenor

    tambm um ex-operrio da Nova Amrica desde 1949, esteve presente em diversas sees e

    cargos , compartilham as mesmas questes acerca dos motivos para o ingresso nas fileiras

    operrias. Suas histrias de vida retratam um cotidiano social da famlia proletria que

    encontrava no trabalho, exercido por todos seus membros possveis, o canal de sobrevivncia.

    (...) Ento eu vim, ns viemos numa situao muito difcil n, meu pai era chofer de praa, e... teve racionamento de gasolina, teve que ir pra guerra; foi uma poca de muitas privaes; (...) Aos treze anos, quando nossa necessidade, comear a trabalhar, eu comecei a trabalhar com treze anos com autorizao do juizado de menores, comecei a trabalhar com uns 13 anos na, numa seo de... tinturaria de pano, um

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    conjunto de sees que chamava de acabamento geral que pegava o pano cru, n? (...) Um, um lugar assim de uma insalubridade muito grande, muita insalubridade, muito calor, n? E... eu com meus 13 anos encarei, enfrentei aquela solido [emoo]. Era um emprego provisrio, provisrio para que eu pudesse dar continuidade aos meus estudos que estavam interrompidos; e eu realmente fui trabalhar (...).12

    A entrada desses jovens, entretanto, estaria tangenciada no s pela necessidade

    primria de ajuda famlia. O ideal do ser cidado, de ser parte de um orgnico todo,

    enquanto uma pessoa coletiva13 j estava disseminado desde os anos 30, permeando no

    imaginrio popular o binmio trabalho/cidadania. O valor do trabalho pairava como parte

    indissocivel constituio do homem enquanto cidado; e neste escopo, no s homens

    como mulheres e crianas tambm detinham em um imaginrio coletivo a questo do

    trabalho, e de sua capacidade produtiva, como passagem para a cidadania.

    Relacionado ao crescente exerccio de valorizao do trabalho pelo estado, tambm

    figurava a incipiente execuo das leis referentes ao trabalho infantil. Desde meados dos anos

    20 que o trabalho infantil como operrio nas fbricas era apenas permitido para maiores de 14

    anos14. Entretanto, a idade no se apresentava como empecilho, uma vez que a prpria

    administrao da fbrica a alterava para registro:

    Antigamente a gente... Como que se diz? ... No, no dava o, a idade certa por que tinha que fazer isso porque no existia ainda, , carteira. (...) Ento agente aumentava l o... o pessoal l, l do escritrio aumentava a idade.15

    A valorizao do trabalho, portanto, contribua na desvalorizao do indivduo em

    detrimento do coletivo e da produo. O baixo custo dos operrios no-especializados e

    este era o caso do trabalho infantil, em maioria se impunha a uma outra espcie de custo: a

    integridade fsica.

    Os acidentes tratavam de marcar ainda mais a infncia consentida pelo apito da

    fbrica. Nas palavras de antigos trabalhadores, como Dona Esmeralda fiandeira e tecel da

    unidade Mavilis da Amrica Fabril, desde meados dos anos 20, hoje com 95 anos de idade ,

    est no toque da pele:

    Existia um caixote que agente botava algodo; o resto do algodo ali, pra guardar pra depois ir recolher... E eu quando empurrei com a mo, a mo escapuliu e entrou dentro do tambor... Que roda, pra rodar as espulas pra encher. Ento, aqui a marca. [Dona Esmeralda mostra em sua mo cicatrizes que denunciavam um antigo ferimento. Um pouco mais suaves pelo tempo, porm extensas, as cicatrizes

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    mostravam assim que o acidente fora j h muitos anos]. (...) levei 3 meses pra curar isso aqui.16

    Os acidentes de trabalho, comuns no espao de trabalho fabril dos sculos XIX e XX,

    apontavam como um dos indicadores da m qualificao ainda presente no operariado, e das

    ms condies de trabalho, onde mutilaes ou doenas em diversos casos com crianas

    compunham o quadro das primeiras dcadas do trabalho fabril. Assim como Dona

    Esmeralda, o senhor Herrero tambm tornara-se vtima da inexperincia e do maquinrio de

    funcionamento intermitente.

    O trabalho, vindo igualmente como um precoce signo de independncia e maturidade,

    no lhe apresentou s bons momentos. O acidente que lhe mutilara a mo direita em uma

    prensa, causando a perda de 3 dedos marcara bem a poca de sua entrada na fbrica.

    Uma mquina que tinha uma poro de lmina assim que trabalhava assim [gesticula com os braos], sabe? Umas mquinas grandes, umas mquinas enormes (...) No sei como que fazia, s sei que o algodo era jogado ali, e, e, em bruto; aquelas facas trituravam, tanto que cortou vrios braos, e um monte de operrio ai ficaram sem brao, sem mo, porque... descuidava na hora de, descuidavam conversando, brincando, contando caso e tal... As vezes, descuidava e P! (...) no tinha indenizao, no tinha nada (...).17

    Entre o trabalho duro e os acidentes; entre o controle e a disciplina; os trabalhadores

    tambm criavam suas estratgias para resistir. Nesse sentido, os banheiros em ambas

    empresas estiveram retratados como pontos de socializao dos homens e mulheres ali

    presentes, onde mostravam-se capazes de subverter o espao de trabalho, ainda que por

    breves momentos:

    Olha, o nico lugar que eles gastavam o tempo mesmo era no banheiro. [riso] Eles iam fumar um cigarro, Ah! Eu vou fumar um cigarro aqueles cigarros deles, s vezes levavam quarenta minutos... Por que l que, l que eles levavam o tempo deles, por que na sala no podia. Por que, como que voc vai ficar parado dentro de um setor de trabalho, sendo que existe um encarregado, um contra-mestre, gerente; sempre circulando por ali?.18

    Essa prtica, conhecida por ambas as companhias, estava presente em todas as

    fbricas, e nesse sentido, alguns recursos eram implementados para coibir a longa

    permanncia e as conversas nos banheiros. As portas, segundo as entrevistas, possuam

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    pequenas janelas que possibilitavam o controle por parte dos supervisores, evitando a longa

    permanncia nos banheiros.

    Portanto, se era atravs da marcao do relgio que a fbrica funcionava, era nos

    banheiros que o operariado continuava a subverter a disciplina do tempo de trabalho. Tais

    prticas, inclusive, no se estendiam apenas aos homens. As mulheres, lembra a ex-tecel

    Silvia, tambm usavam da mesma estratgia:

    (...) iam pros banheiros, ai meu deus! iam pros banheiros... a, a, ali pegava fogo, n? A que contavam aquela misria [risos] que eles faziam, n? (...) as mulheres que arrumavam uns namorados l, combinavam, saam de tarde (...) Quando ia ver no dia seguinte a outra fulana chegava l no banheiro: Ih! Ontem fui com fulano, fui pra aqui, fui pra ali (...) Ali que era o ponto, n? Se quisesse, contar as besteiradas todas ia pra l! Umas iam fumar, n? (...) coisas do arco da velha [risos]!.19

    Nesse sentido, o espao marcado e pensado pela disciplina fabril, tambm era

    marcado e interpretado pelos seus personagens no cotidiano. Essas marcaes se mostram

    atravs da prpria identidade dos entrevistados que, enquanto um grupo social, tem no lugar

    de atuaes e difuses de atividades e prticas, sejam elas culturais, polticas ou sociais, suas

    inscries no mundo20 e suas referncias para a construo da memria.

    Ainda que o cotidiano do trabalho se apresentasse de maneira dura o operariado no

    estava totalmente subjugado pelas mquinas isso ficou bem claro no decorrer das

    entrevistas. As prticas de lazer e resistncias por eles criadas e mantidas apontavam para um

    quadro muito mais plural da realidade do trabalho fabril que marcou profundamente na

    identidade dos trabalhadores txteis aqui estudados. Ao falar sobre os meios de lazer, muito

    de suas particularidades e de seu grupo vieram tona. Depoimentos colhidos de ex-operrios

    da fbrica Carioca, por exemplo, mostravam o carnaval como o feriado que todos esperavam

    durante o ano:

    Quando era perto do carnaval, ento que eles botavam pra trabalhar no carnaval... a, a, a que o pessoal ficava [risos] enfezado mesmo. [risos] (...) paravam as mquinas e toma lhe bloco pra l e pra c, dentro da fbrica (...). 21

    Ao perguntar sobre quais eram as atitudes dos mestres e contra-mestres, sua resposta

    representava o quanto a condio de coletividade estava presente nas aes dos operrios e

    em suas estratgias:

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    (...) Eles no faziam, eles no podiam fazer nada por que o povo tava por conta de ter que trabalhar no carnaval, (...) [risos] A, o... o pessoal fazia [risos] o bloco pra l e para c [risos] (...) Enquanto o gerente no tava, o bloco saia e os contra-mestres ficavam por conta, Vou chamar o gerente, vou chamar o gerente! ningum punia a gente, o pessoal ai ia l chamar o ingls Thomas Holly, sei l! No sei o nome dele, ele era ingls, quando ele vinha com aquela roupa branca n? Quando ele vinha, n? (...) Todo mundo voltava pros tiares [sic] outra vez, sabe? Mas era assim... dava deteno....22

    Lembramos, entretanto, que no foi apenas o carnaval que esteve arraigado nas

    camadas proletrias; e em especial o futebol tambm esteve marcado fortemente na atuao

    dos operrios da Amrica Fabril. Os jogos de futebol fizeram forte parte do entretenimento de

    Herrero e de outros operrios ao longo dos anos mobilizando um grande nmero dos

    moradores locais, no apenas ligados fbrica.

    A gente fazia um festival aqui no campo, pra jogar... E, era, era a nossa diverso! Era, o futebol!, estudar...estudava, e, e... o baile, quando tinha um bailezinho l... (...) clube carioca que era o clube do baile naquela poca.23

    No entanto, as prticas to vivas na memria desses atores sociais vem sendo mais e

    mais apenas restos de um tempo e espao cada vez mais fragmentado e dissociado. Hoje,

    apenas algumas casas de vilas operrias se mantm como os ltimos restos daqueles kosmos

    to caractersticas do local onde a presena da indstria imprimia na sua populao, e no

    espao que o tangenciava, as experincias que no cotidiano e no trabalho, formavam sua

    dinmica.

    Assim como a Carioca, as fbricas Mavilis e Bonfim seguiram a mesma lgica do

    desaparecimento. Estas fbricas, vizinhas, localizadas perto da zona porturia do bairro do

    Caju, foram completamente demolidas at o cho; e seus terrenos passaram a ser utilizados

    para depsito de containers. Moradores de uma das antigas vilas operrias convivem agora

    com o barulho dos guindastes e a paisagem de blocos de ao coloridos que cercam sua vila.

    No h quaisquer outros restos das fbricas de tecidos que no sejam eles mesmos, sua vila e

    a memria.

    (...) foi mudando tudo, n? Num instante, em 69 [1969], a fbrica fechou; a ficou um terreno vago a; tantos anos! Era, ficou tudo jogado... [O entrevistador pergunta: A fbrica foi demolida logo?] No! Levou mais, mais de 15 anos! Mais de 15 anos; tudo parado a, depois que botaram tudo abaixo, a, a que botaram esses containers a.24

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    Assim como a Carioca, a Bonfim e a Mavilis, o apagamento da fbrica Cruzeiro do

    cenrio urbano comps o mesmo quadro da desindustrializao ocorrida na cidade do Rio de

    Janeiro. Entretanto, alguns fatores conferiram ao caso da fbrica Cruzeiro, caractersticas

    singulares aos demais casos.

    Ocupando uma extensa rea entre os atuais bairros do Andara, Graja e Vila Isabel, a

    fbrica Cruzeiro assim como todo seu espao perifrico, estiveram no olho do furaco de

    mudanas desses cenrios urbanos onde a fbrica constitua-se como um ponto nevrlgico

    da antiga sociedade industrial. Seu terreno fazia frente com o antigo campo de futebol do

    Amrica Futebol Clube onde hoje o shopping center Iguatemi, de Vila Isabel , e seguia

    tangenciando as ruas Maxwell e Baro de Mesquita no bairro do Andara chegando at

    o Largo Verdun, no Graja.

    Ao fechar das cortinas da atuao da fbrica Cruzeiro, muito de seu terreno no foi

    s apagado como tambm fragmentado entre estatais que trataram de instaurar uma nova

    ordem e funo naqueles locais. Atualmente, grande parte de sua rea ocupada pelo Banco

    do Brasil, pela Caixa Econmica Federal e pelo condomnio de prdios construdos

    poca pelo financiamento do BNH chamado pelos moradores do bairro de tijolinho.

    J em relao Nova Amrica, em 1995 era inaugurado o shopping Nova Amrica, e

    com ele a limpeza da memria, deixando-a sem arestas. A casca de tijolos vermelhos

    abrigaria um novo espao social e de trabalho onde o cho de fbrica d lugar a um conjunto

    de lojas, clulas destinadas satisfao individual pelo consumo e esttica, tornando o templo

    da produo em templo do consumo.

    Entendemos que no estranhamento com o presente que essas memrias se

    sustentam. Queremos dizer que a conscincia do tempo passado e a experincia de um

    presente articulador de rupturas sociais, econmicas e polticas, bem como culturais, trazem

    ao agente social aqui representado pelo trabalhador, operrio txtil os vestgios de uma

    crise, ou re-construo de seus prprios papis junto sociedade.

    Em meio s nostalgias, diferenas, esquecimentos e lembranas, portanto, que, to

    somente, o trabalho da memria desses operrios se deflagra. Ao mesmo passo, a veloz

    sociedade ps-moderna em que vivemos no deixou de conviver com elementos, cenrios e

    atores pertencentes ao velho modelo capitalista industrial, to difundido no incio e ao

    longo do sculo XX.

    Na lembrana o trabalho continuou presente e o estranhamento dos novos quadros

    contemporneos suscitou isso. Dessa forma, se o tempo de trabalho fabril para esses atores

  • x

    teve seu fim na vida cotidiana, ele permanece em suas memrias dando-lhes o referencial de

    quem eram e o que exerciam no espao social e fsico.

    A memria coletiva desses atores atuou no presente com o que estava irredutivelmente

    findo: o passado. A memria como diria Arendt age dessa maneira: uma capacidade

    do esprito de fazer presente o invisvel.25 E, nesse caso, o que era invisvel para alguns

    olhos, era justamente o velho trabalhador, a velha trabalhadora, e suas trajetrias que

    contavam mais da realidade dos trabalhadores fabris do sculo XX.

    Ao tratar das experincias desse grupo de trabalhadores trouxemos ao foco de nossas

    questes o fato de que o trabalho da memria estaria diretamente ligado idia de que o

    indivduo tambm se reconhece em referncia ao seu grupo social cuja identidade comum e os

    papis exercidos atuam como uma interseo pelos demais atores sociais.

    Entretanto, se reconhecer em referncia ao grupo social do qual faz parte cada vez

    mais difcil para estes homens e mulheres. A conscincia do trmino de seus papis sociais se

    encontra com o processo gradativo de mutilao e dissoluo de suas referncias materiais e

    simblicas com o passar dos anos. A memria por eles regida nada mais que fruto dessa

    percepo e ltima resistncia tempestade avassaladora do tempo/progresso.

    1 BLOCH, Marc. (1941 1942). Apologie pour lhistoire ou mtier dhistorien. Paris: Colin, 1949 (trad. Port. 3 ed., Europa-Amrica, Mem-Martins, 1976). Pp.32-33. 2 JOUTARD, Philippe. Desafios Histria Oral do Sculo XXI In: FERREIRA, Marieta de Moraes. Fernandes, Tnia Maria. ALBERTI, Verena. (orgs) Histria Oral: Desafios para o sculo XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ Casa de Oswaldo Cruz/ CPDOC FGV, 2000. p. 33. 3 GOMES, Angela de Castro (coord.). FLAKSMAN, Dora Rocha. STOTZ, Eduardo. Velhos Militantes: depoimentos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. p.8. 4 Cf. WEID, Elisabeth von der. BASTOS, Ana Maria Rodrigues. O Fio da Meada Estratgia de expanso de uma indstria txtil. Rio de Janeiro: Fundao Casa de Rui Barbosa, Confederao Nacional da Indstria, 1986. 5 Traduo prpria do autor, de: () Il ressemble davantage un espace magntique marqu par des points dattraction, des lignes de forces. In: BACHELET, Bernard. Lespace Vcu In: Le Espace. Paris: PUF, 1998. p. 6. 6 GIROLETTI, Domingos. Fbrica: convento e disciplina. 2 ed. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 2002. pp. 192-193. 7 PIMENTA, Ricardo Medeiros. Uma outra realidade: as condies trabalhistas e assistenciais do operariado da companhia Amrica Fabril, Rio de janeiro (1926-1931). Monografia de concluso do curso de Bacharel em Histria. Rio de Janeiro: UGF, 2003. pp. 36-49. 8 FRANCO, Silvia. GONALVEZ, Luis. Clnica laboral: Nuevos abordajes clnicos y organizacionales para los sntomas contemporneos. In: SCHVARSTEIN, Leonardo. LEOPOLD, Lus. [et al.]. Trabajo y Subjetividad: entre lo existente y lo necesario. 1 ed. Buenos Aires: Paids, 2005. p. 268. 9 HARDMAN, Foot & LEONARDI, Victor. Histria da Indstria e do Trabalho no Brasil. Col. Srie fundamentos. So Paulo: Editora tica S.A., 1991. pp. 133-134. 10 Idem. p. 136. 11 Entrevista com o Sr. Antonio Jos Fernandes (Toninho), aposentado pela da Companhia Nova Amrica; concedida ao autor em 22 de outubro de 2004. As palavras sublinhadas expressam nfase na fala do personagem. Assim como este fragmento, os demais seguiro quando necessrio este mesmo parmetro.

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    12 Entrevista com o Sr. Agenor Figueira Rodrigues, aposentado pela da Companhia Nova Amrica; concedida ao autor em 26 de outubro de 2004. O contedo escrito em colchetes trata da impresso do entrevistador no momento do depoimento da entrevistada 13 GOMES, Angela de Castro. A inveno do trabalhismo. 3 edio. Rio de Janeiro RJ: Editora FGV, 2005. pp. 229-231. 14 Lei Federal, decreto n 5.083 de 01 de dezembro de 1926. 15 Entrevista com Dona Esmeralda da Silva Sereno, aposentada. Ex-operria da Companhia Amrica Fabril, unidade Caju (Bonfim e Mavilis); concedida ao autor em 16 de fevereiro de 2005. 16 Entrevista com Dona Esmeralda da Silva Sereno, aposentada. Ex-operria da Companhia Amrica Fabril, unidade Caju (Bonfim e Mavilis); concedida ao autor em 16 de fevereiro de 2005. O contedo escrito em colchetes trata da impresso do entrevistador no momento do depoimento da entrevistada. 17 Entrevista com o Sr. Antonio Herrero Ramos, aposentado. Ex-operrio da Companhia Amrica Fabril, unidade Carioca; concedida ao autor em 30 de setembro de 2004. 18 Entrevista com o Sr. Valdeci Simes Dias; concedida em 22 de agosto de 2004. 19 Entrevista com a Dona Silvia Ministrio; concedida ao autor em 16 de fevereiro de 2005. 20 CHARLESWORTH, Simon J. A phenomenology of working class experience. United Kingdom, Cambridge: Cambridge University Press, 2000. pp. 86-87. 21 Entrevista com Dona Silvia Minisrio, aposentada. Ex-operria da Companhia Amrica Fabril, unidade Caju (Bonfim e Mavilis); concedida ao autor em 16 de fevereiro de 2005. As palavras sublinhadas expressam nfase na fala do personagem, e todo o texto contido entre colchetes de grifo pessoal, ou constitui-se na pergunta feita ao entrevistado no momento da entrevista. 22 Ibidem. 23 Entrevista com o Sr. Antonio Herrero Ramos; concedida ao autor em 30 de setembro de 2004. 24 Entrevista com o Sr. Slvia Ministrio, aposentada pela da Companhia Amrica fabril, unidade do Caju (Bonfim e Mavilis); concedida ao autor em 16 de fevereiro de 2005. As palavras sublinhadas expressam nfase na fala do personagem, e todo o texto contido entre colchetes de grifo pessoal, ou constitui-se na pergunta feita ao entrevistado no momento da entrevista. 25 ARENDT, Hannah La Voluntad. In: La Vida del Espritu. 1 ed. Col. Paids Bsica 110. Trad. Carmen Corral y Fina Biruls. Buenos Aires: Paids Editora, 2002. p. 244.