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PARECERES PROCESSO: PGE n° 0054 / 2003 INTERESSADO: CASA CIVIL ASSUNTO: CONSULTA SOBRE A VIABILIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DO SISTEMA DE VÍDEO-CONFERÊNCIA PARA A OITIVA DE PRESOS. RESPOSTA NEGATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. CARÁTER PESSOAL DO ATO DE INTERROGATÓRIO. A ADOÇÃO DO SISTEMA IMPLICARIA EM ODIOSA SEGREGAÇÃO E EM PERIGOSA RUPTURA DO DEVER JURISDICIONAL. PARECER PA 57 / 2003 Trata-se de consulta formal a respeito da viabilidade jurídica da utilização do sistema de vídeo-conferência para a oitiva de presos. A iniciativa da indagação é do Secretário-Chefe da Casa Civil do Governo do Estado de São Paulo. A justiça paulista já disporia, segundo a exposição, de

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PARECERES PROCESSO: PGE n° 0054 / 2003 INTERESSADO: CASA CIVIL ASSUNTO: CONSULTA SOBRE A VIABILIDADE JURÍDICA DA UTILIZAÇÃO DO SISTEMA DE VÍDEO-CONFERÊNCIA PARA A OITIVA DE PRESOS. RESPOSTA NEGATIVA. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. CARÁTER PESSOAL DO ATO DE INTERROGATÓRIO. A ADOÇÃO DO SISTEMA IMPLICARIA EM ODIOSA SEGREGAÇÃO E EM PERIGOSA RUPTURA DO DEVER JURISDICIONAL.

PARECER PA N° 57 / 2003 Trata-se de consulta formal a respeito da viabilidade jurídica da utilização do sistema de vídeo-conferência para a oitiva de presos. A iniciativa da indagação é do Secretário-Chefe da Casa Civil do Governo do Estado de São Paulo. A justiça paulista já disporia, segundo a exposição, de

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moderno equipamento de vídeo-conferência, a oferecer perfeita comunicação de áudio e vídeo entre o juiz alocado no fórum e o preso mantido nas dependências do presídio. Seu uso garantiria todos os direitos constitucionais da defesa do detento. A fundamentação da consulta considera o elevado grau de periculosidade dos “criminosos que atualmente respondem por suas respectivas infrações”; que os criminosos têm de apresentar-se perante o Juízo no fórum por onde tramita o respectivo processo, para ser interrogados e posteriormente comparecer às audiências; que a escolta de presos depende de elevado número de homens e viaturas, que poderiam estar sendo utilizados para o patrulhamento convencional e, ainda, o elevado risco de resgate perante o trajeto de escolta, bem como nas dependências do fórum, fato que pode ensejar a ocorrência de fugas de presos, além de ferimentos e mortes em inocentes. Haveria, assim, grande interesse do Estado na implementação do sistema de vídeo-conferência para a oitiva de presos, que redundaria em economia de recursos humanos e financeiros e em diminuição dos riscos para a sociedade. Louva-se, por fim, a “notória

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capacidade do sistema permitir o necessário contato entre preso e o juiz”. Vale assinalar, desde logo, que o tema é eminentemente polêmico, estando longe de gerar consenso doutrinário, ou mesmo jurisprudencial. Vale reconhecer igualmente que, com pequenas ressalvas, a fundamentação da consulta tem consistência. Ninguém ignora a gravidade que assumiu, entre nós, o problema da segurança pública e do sistema penitenciário. Em particular, o anacrônico e custoso sistema de escolta de presos, com todos os seus inconvenientes atuais, com certeza precisa ser enfrentado. A ressalva que precisa ser feita, entretanto, é no sentido de que o sistema processual penal é dirigido não aos criminosos, mas aos acusados, que só serão considerados criminosos após eventual condenação, com trânsito em julgado. Assim, o fato de o acusado estar encarcerado, em decorrência de prisão cautelar, por exemplo, não o transforma em criminoso. Justamente, verificar se o acusado, trazido a Juízo, é criminoso, ou não, é o fim do processo, e não pressuposto deste.

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Tal ressalva não exclui o fato de que o acusado possa, eventualmente, estar cumprindo pena por outro crime, pelo qual tenha sido condenado. Tal circunstância pode, inclusive, ser considerada agravante, em caso de nova condenação, mas não autoriza dar-lhe tratamento processual diferenciado, que implicasse em pré-julgamento ou em supressão da ampla defesa constitucionalmente garantida. O expediente já vem instruído com inúmeras manifestações, reunindo robusto conjunto de bem fundamentados argumentos. A ilustre Procuradora Chefe da Procuradoria de Assistência Judiciária Criminal sustenta que o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, bem como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), devidamente recepcionados pela ordem jurídica brasileira, deixam “claro que é imprescindível à presença física do acusado perante a autoridade judiciária competente” (fls. 6/11). Segundo a douta manifestação, a audiência por vídeo-conferência viola tais preceitos; a presença física é importante para aferir a verdade dos fatos e, ainda, coloca-se a questão da necessária publicidade com o ato

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realizado no presídio. A vídeo-conferência ensejaria, ainda, eventual vício de reconhecimento. Tal opinião , segundo a manifestação, é compartilhada pela Associação dos Juízes para a Democracia, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Ordem dos Advogados do Brasil, Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo e outras entidades (fls. 6/11). Segue-se uma extensa série de manifestações de integrantes da douta P.A.J. que, em sua esmagadora maioria, são contrários à proposta de vídeo-conferência e levantam uma série de problemas práticos e teóricos decorrentes de sua eventual implantação. Instrui o expediente a Resolução n° 5, de 30 de setembro de 2002, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, rejeitando a proposta de realização de interrogatório por vídeo-conferência, com base nos pareceres dos ilustres Conselheiros Ana Sofia Schmidt de Oliveira e Carlos Weis (fls. 16/21). O Parecer da ilustre Conselheira e Procuradora Ana Sofia Schmidt de Oliveira destaca, entre outros argumentos, a inexistência de previsão legal para o tele-interrogatório, o

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desvirtuamento do devido processo legal e o desrespeito ao regramento decorrente dos pactos internacionais. Sustenta que a prática não poderia ser tolerada nem mesmo em relação ao réu perigoso e que nada impede que o juiz se desloque a um anexo dos presídios de segurança máxima, se for o caso, desque que fique tal anexo sob administração do Poder Judiciário. O Conselheiro e também Procurador Carlos Weis fundamenta seu Parecer basicamente nas normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Lembra, ainda, o sentido do instituto do habeas corpus, com remissão às lições de Fábio Konder Comparato. Não se limita ele, por outro lado, a criticar a proposta. Sugere a construção de “Casas de Audiência”, anexas aos presídios, para realização de atos processuais, com drástica redução dos deslocamentos de presos. (fls. 23/32). Inúmeros Procuradores subscrevem a alentada manifestação de fls. 33/41, que também recomenda a não adoção da vídeo-conferência. Seus principais fundamentos são as disposições constitucionais atinentes aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana; a falsa eficácia que se visaria alcançar com a

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novidade; a contrariedade às normas processuais penais em vigor; e a precariedade dos resultados que poderiam ser alcançados. A Procuradora Andréa Perencin de Arruda Ribeiro Rios observa, com base em sua rica experiência, que “nada se equipara, em eficiência, à entrevista pessoal entre réu e procurador, antes, durante e após as audiências de interrogatório e de instrução”. Lembra, ainda, que o sofrimento do preso, às vezes privado de alimentação e até mesmo agredido ao ser trazido ao Fórum, merece séria avaliação, mas não pode servir a mais um aviltamento do preso, que seria sua exclusão física do processo (fls. 43). Tal argumento, atinente ao sofrimento do próprio preso no deslocamento, havia sido utilizado pelo Procurador Jean Jacques Erenberg para argumentar a favor do sistema de vídeo-conferência, em corajosa manifestação que se configura francamente minoritária (fls. 44/5). Outra manifestação favorável à inovação tecnológica encontra-se a fls. 64/67, também subscrita por vários Procuradores. Outros, em contrapartida, destacam a importância do contato pessoal do preso com o juiz e a

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possibilidade de reconhecimento pessoal, concluindo que a diminuição de gastos e riscos à segurança não justificam aniquilar-se direitos constitucionais do acusado (fls. 47/51). Alentada análise foi feita pela Procuradora Ana Luiza Zimmermann Lopes Simões a respeito das audiências realizadas pelo sistema “on line” de que participou como defensora. Tratava-se de audiência realizada na Capital, com inúmeros acusados detidos no presídio de segurança máxima de Presidente Bernardes. Na sua observação pessoal, decorrente da experiência concreta, apesar de todos os esforços empreendidos pelo juiz que presidiu o ato, “com o uso de tal sistema não é possível a manutenção plena dos princípios da ampla defesa” (fls. 73). Acrescenta que, ainda na sua experiência pessoal, “a presença do preso às audiências influi na formação do convencimento do Magistrado (fls. 76). Com relação ao reconhecimento, o sistema parece falho (fls. 77). A ilustre Sub-Procuradoria Geral para a Área de Assistência Judiciária conclui pela necessidade de aperfeiçoamento do sistema, sob pena de nulidade de

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atos processuais. Segundo a manifestação, não obstante a existência de fatores econômicos e de segurança a criar um ambiente favorável ao acolhimento da proposta, faz-se necessária a rigorosa análise da legalidade do sistema, de forma a não agredir princípios constitucionais nos quais se fundam as regras do devido processo legal e ampla defesa do acusado (fls. 79/82). A seguir, por determinação do Procurador Geral do Estado, veio o expediente a esta Procuradoria Administrativa para exame e parecer (fls. 83). A ilustre Sub-Procuradoria Geral para a Área de Consultoria fez juntar ao expediente cópia do relatório apresentado pelo Magistrado que presidiu os primeiros atos processuais pelo sistema de vídeo-conferência (fls. 83 verso). O eminente Magistrado, Dr. Adilson de Araújo, não vislumbra ilegalidade na utilização da tecnologia de última geração disponível para audiências e entende que o recurso permite enfrentar os novos desafios, mitigando o sentimento de insegurança e trazendo economia de recursos públicos. Conclui que, para maior eficácia do sistema, “três aspectos merecem atendimento: a)

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disponibilidade de equipamentos com operadores treinados; b) reconhecimento da validade jurídica do ato processual; c) agilização dos trabalhos nas audiências” (fls. 84/109). Sucintamente relatadas as manifestações já existentes no expediente, passo a opinar a respeito da inovadora proposta. É um sonho de toda a coletividade a minimização dos riscos com a segurança pública, a redução das despesas inúteis e a agilização da Justiça criminal. Não resta a menor dúvida de que o sistema de escolta de presos, fazendo circular dezenas de detentos entre os presídios e os fóruns a cada dia, com todas as despesas e os riscos que isso acarreta, sem se falar nos inconvenientes, inclusive para os próprios encarcerados, merece ser objeto não apenas de crítica, mas, principalmente de propostas de solução. O essencial, entretanto, é que tais soluções sejam compatíveis com a estrutura constitucional e com a legislação processual em vigor.

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Mais do que avaliar vantagens e desvantagens de ordem meramente prática, já longamente sopesadas nas manifestações referidas, trata-se essencialmente de saber se o sistema de interrogatórios e audiências por vídeo-conferência é compatível com o sistema constitucional e de processo penal vigentes no Brasil, ou se, ao contrário, a inovação proposta não guarda compatibilidade com o sistema. São metas legítimas de política criminal a luta contra a impunidade; o aumento dos níveis e do sentimento de segurança dos cidadãos em geral e dos aplicadores da lei em particular; a agilização e desburocratização dos mecanismos da justiça em geral e da justiça criminal em especial; a simplificação dos procedimentos; tudo, enfim, que permita enfrentar com segurança jurídica o problema da morosidade da justiça, aliada da impunidade, que acaba se transformando em fator de descrédito aos olhos da população. “Slow justice is no justice”, no aforismo anglo-saxão. O grande problema que se põe, quando se procura avançar, é o de saber como desatar os nós da burocracia, como vencer os vícios e as resistências do sistema, como reduzir custos, como incorporar as inovações

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tecnológicas, como arejar as mentalidades, sem porém desnaturar a base constitucional do processo penal e sem transformar em ficção o direito de ampla defesa tal como consagrado entre nós. O problema não é novo. O grande João Mendes de Almeida Júnior, já falava do “esforço de nossos legisladores para conciliar a natural tendência para a simplificação com a necessidade de não prejudicar a segurança” (Direito Judiciário Brasileiro, 5ª edição, Freitas Bastos, 1960, fls. 296). Nunca é demais lembrar que a questão das formas processuais diz respeito, antes de mais nada, à presença da Justiça em nossa sociedade. A moderna criminologia tem apontado que um dos mais eficientes fatores de redução de violência é a consciência da comunidade da presença e acessibilidade dos mecanismos de justiça. Efetivamente, a presença do juiz, como personagem imparcial, representando o Estado, como canal para apresentação e possível solução dos conflitos existentes na comunidade, traduz com mais vigor a idéia de Estado de Direito do que toda uma biblioteca de Teoria do Estado ou de Filosofia do Direito.

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O grande João Mendes já apontava o papel do Judiciário como expressão da soberania nacional: “A atividade do PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO é uma força derivada da soberania nacional; e, neste sentido, é que o PODER JUDICIÁRIO é um poder político. (...) O PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO é, como o Poder Legislativo e Executivo, um atributo da soberania nacional; ele é constituído especialmente para assegurar a aplicação das leis que garantem a inviolabilidade dos direitos individuais” (idem, pág. 39/40). Não se pode esquecer, entretanto, que é na prática do processo que vai se concretizar a grande e pomposa arquitetura constitucional do Judiciário como Poder. Daí porque João Mendes lembra também que “Não há processo no infinito, isto é, sem princípio nem fim. O princípio do processo judicial é naturalmente o chamamento do réu a Juízo, para ver propor-se-lhe a ação e defender-se” (idem, pág. 307). Tantos anos apssados, não discrepa a lição contemporânea de mestres como Ada Pellegrini

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Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho: “A regulamentação das formas processuais, longe de representar um mal, constitui para as partes a garantia de uma efetiva participação na série de atos necessários à formação do convencimento judicial e, para o próprio juiz, instrumento útil para alcançar a verdade sobre os fatos que deve decidir. O que deve ser combatido, nessa matéria, é o excessivo formalismo, que sacrifica o objetivo maior da realização da justiça em favor de solenidades estéreis e sem nenhum sentido” (As nulidades no processo penal, 7ª edição, RT, 2001, pág. 19). Os mesmos autores destacam, igualmente, a perspectiva constitucional do processo como fator legitimante do exercício da função jurisdicional: “Da idéia individualista das garantias constitucionais-processuais na ótica exclusiva de direitos subjetivos das partes, passou-se, em épocas mais recentes, ao enfoque das garantias do “devido processo legal” como sendo qualidade do próprio processo, objetivamente

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considerado, e fator legitimante do exercício da função jurisdicional. (...) Isso representa um direito de todo o corpo social, interessa ao próprio processo, para além das expectativas das partes e é condição inafastável para uma resposta jurisdicional imparcial, legal e justa” (idem, pág. 24). O que muitos questionam, na verdade, sem formular com clareza, é se ainda é possível acreditar-se na viabilidade de um Estado de Direito tal qual foi concebido entre nós, onde a certeza do Direito é assegurada pelo papel e pela presença do Judiciário e onde a liberdade é assegurada pela garantia de que as partes possam ser ouvidas por um Juiz imparcial. Veja-se a reafirmação dessa idéia na feliz expressão de dois grandes Magistrados, cuja experiência encontra distância apenas no tempo: “Em meio aos valores voláteis da convivência humana, que torna relativa a noção de Justiça, em tempo e meio mutáveis, coloca-se o Juiz, aos olhos da sociedade. Seja como for, tem ele na visão pública o encargo legal de realizar a Justiça, de maneira que, sobretudo na pequena sociedade, a personaliza” (Sidnei Agostinho Beneti, O Juiz no Interior: A Função Social da Personalidade do

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Juiz, in Aspectos Psicológicos na Prática Jurídica, Antonio Carlos Mathias Coltro e colaboradores, Millenium, 2002, pág. 172). “A presença do juiz é, no entanto, uma das maiores garantias de boa decisão. Presença, em seu sentido completo, e não apenas o contacto displicente da autoridade com a peça em formação. Levada em suas extensas proporções, poder-se-ia dizer que a presença do juiz vai bem mais longe, conduzindo-se até aos aspectos psicológicos e sentimentais da comunhão do julgador com a vida e os episódios do caso” (Edgard de Moura Bittencourt, O Juiz, 3ª edição, Millenium, 2002, pág. 151). É nessa perspectiva, de que não se pode abrir mão de tais pressupostos constitucionais, atinentes ao papel do Judiciário como expressão da soberania e do devido processo legal como meio de realização da Justiça, que a questão precisa ser examinada. Muitas vezes, na exaustão do dia a dia, na repetição infindável dos atos, se perde um pouco a perspectiva da valia e até mesmo da importância de certas práticas. Muitos afirmam que o interrogatório se transformou em

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ato de rotina, de importância reduzida na prática atual, cujo papel não pode ser exagerado. Assim, substituir a presença física do acusado na sala de audiências por sua presença virtual, por meio da vídeo-conferência, não traria qualquer prejuízo à defesa. Sem dúvida, os benefícios de tal inovação tecnológica são incontáveis, do ponto de vista de aumento de segurança, racionalização, conforto e redução de custos. Dessa maneira, sem dúvida é forte a tentação de aderir-se à proposta, tais as vantagens que pode ela proporcionar. O grande problema é que a suposta inovação, na verdade, mexe com o que há de mais arraigado e estrutural na concepção do processo penal, tal como concebido, consagrado e, bem ou mal, praticado entre nós. Pode-se mesmo dizer que, na arquitetura do sistema de processo penal brasileiro, o interrogatório é peça central de seu arcabouço. Primeiro, porque tal corresponde à idéia básica de qualquer sistema de justiça: as partes devem ser chamadas ao processo, trazidas à presença do juiz. Mais

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ainda, do sistema de justiça criminal: num esquema simples, embora não simplista, a comunidade, o povo, espera que aquele que é acusado de um crime seja chamado à presença da autoridade para se explicar. E a autoridade, a única capaz de julgar em nome do povo, é o Juiz de Direito. Nunca é demais repetir a lição já acima transcrita do grande João Mendes: “Não há processo no infinito, isto é, sem princípio nem fim. O princípio do processo judicial é naturalmente o chamamento do réu a Juízo, para ver propor-se-lhe a ação e defender-se”. A idéia do interrogatório como peça básica, além de simbólica, do processo penal é compartilhada por toda a doutrina, que ressalta exuberantemente o necessário caráter pessoal e público do ato de interrogatório. A lição já vem de Eduardo Espínola, que, em 1941, registra no seu Código de Processo Penal Brasileiro Anotado: “402 – O interrogatório do réu, no processo penal moderno, e a sua importância. – Já exposto quando esclarece a qualificação do acusado, focalizada no princípio do art. 188 (n. 398), devemos, ora, considerar o interrogatório propriamente dito, com o interesse e o

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cuidado, que reclama esse ato, convertido num dos de maior relevância para o direito processual penal moderno” (Quinta Edição, 1959, Volume III, pág. 19, sublinhados nossos). e “De uma mera formalidade sem significação para orientação da ação penal , salvo casos raríssimos, em que os criminosos primários e menos perigosos confessavam, secamente, ser verdadeira a acusação, tendo o interrogatório, no direito processual penal brasileiro, se transformado no elemento, talvez, mais importante, que se insere no sistema probatório novo ... (idem, pág. 22). O grande jurista José Frederico Marques manifesta idêntico ponto de vista: “Aplausos merece, portanto, o Código de Processo Penal, no tocante à regulamentação que deu a esse meio de prova, que é, sem dúvida, quando dirigido com perspicácia e inteligência, um dos mais fecundos e úteis para a elucidação do fato delituoso” (Elementos de Direito Processual Penal, vol. II, 2ª edição, Millenium, 2000, pág. 391).

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E acrescenta, em Nota, o eminente processualista: “Para Vicente de Azevedo, “o interrogatório é hoje a peça mais importante do processo penal” (Revista dos Tribunais, vol. 133, p. 636). Acrescenta, porém, o grande Frederico, as condições necessárias a que não seja desvirtuado o ato de interrogatório: “O acusado inocente não tem o que temer de um interrogatório livre, perante o juiz e a portas abertas, como é o interrogatório judicial regulado pelo Código de Processo Penal.” (idem, pág. 389, grifos nossos) e “A fim de que inocentes não sejam condenados, a defesa dos réus apresenta-se rodeada de todas as garantias; e ao acusado inocente nenhum embaraço ou dificuldade cria o interrogatório judiciário realizado com as garantias da publicidade ampla” (idem, pág. 390, grifos nossos). Quem fala com desprezo da importância

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que o interrogatório tem hoje na prática dos tribunais talvez esteja precisando reler os ensinamentos do velho e ainda jovem Espínola Filho: “395 – A necessidade de o juiz ouvir o acusado – contra quem se move a ação penal, é intuitiva, não só porque é o modo normal de verificar a autoridade a realidade de ir defender-se, efetivamente, a pessoa a quem é imputada a infração penal, como ainda porque, competindo ao juiz, segundo a expressa disposição do art. 42 do Código penal, determinar a pena aplicável e fixar-se a quantidade, levada em consideração a personalidade do agente, é esse contacto que lhe proporcionará elementos para controlar, conhecendo os pensamentos, as idéias e o modo por que os expõe o réu, a impressão, dada, a-cêrca do caráter dele, pelas circunstâncias do fato e os antecedentes do seu autor.” (Eduardo Espínola Filho, Codigo de Processo Penal Brasileiro Anotado, Quinta Edição, 1959, Volume III, pág.7, sublinhados nossos) Espínola se socorre, inclusive, da doutrina italiana, para mostrar a importância e os requisitos do ato de

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interrogatório: “Ocorre, ademais, registrar, como não escapou a ALTAVILLA (Manuale di procedura penale, 1935, págs. 239-240), o seguinte: se, do ponto de vista formal, a relação processual se instaurou no momento em que a ação penal dirige a pretensão punitiva contra um indiciado, fazendo-lhe assumir a qualidade de acusado, somente no interrogatório adquire existência o contraste entre a acusação e a defesa, com que se concretiza o contraditório, visando ao qual se realizam os atos anteriores ao interrogatório (mandados, citações); constitui-se, porém, com os diversos atos, praticados pelo acusado, diretamente ou por meio do seu defensor, em oposição à acusação.” (idem, pág. 8/9, sublinhados nossos) e “Proclama Manzini (Trattato di diritto processuale penale italiano secondo il nuovo Códice, vol. 4º, 1932, pág. 159) ser dever indeclinável do juiz o prover ao interrogatório do acusado. Ouvindo-o pessoalmente, o juiz fará, ao réu, perguntas sobre o fato a ele imputado, o que constitui o interrogatório propriamente dito, e sôbre a sua pessoa, o

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que traduz a sua qualificação. Que o interrogatório é indispensável à validade à validade do processo, é óbvio.” (pág. 9, sublinhados nossos). Espínola discorre longamente sobre o aspecto público do interrogatório: “396 – Aspecto público do ato, em que o réu é ouvido pelo juiz – (...) a prática do nosso foro tem, sempre, dado caráter público a esse ato, que, pelo nosso Código de processo penal em vigor, deve ter a presença indispensável de um defensor do réu, ao qual somente é vedada qualquer influência, ou intervenção, nas perguntas ou nas respostas (art. 187), por se tratar de ato absolutamente pessoal, em que se não pode admitir a orientação do advogado.” (idem, pág. 13) Também a finalidade do inerrogatório é esmiuçada por Espínola Filho: “403 – A finalidade do Interrogatório. – (...)A finalidade do interrogatório é tríplice:a) facultar ao magistrado o conhecimento do caráter, da índole, dos sentimentos do acusado: em suma, compreender-lhe a personalidade;

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b) transmitir ao julgador a versão, que, do acontecimento, o inculpado fornece sincera ou tendenciosamente, com a menção dos elementos, de que o último dispõe, ou pretende dispor, para convencer da idoneidade da sua versão;c) verificar as reações do acusado, ao lhe ser dada, diretamente, pelo juiz, a ciência do que os autos encerram contra ele.” (idem, pág.25) Eduardo Espínola Filho, na sua obra magistral, preocupou-se com o sentido e as condições do interrogatório como pilar do contraditório: “Interrogando o réu, o magistrado, em cumprimento ao art. 188, II, do Código de processo penal, lhe dá, com lealdade e franqueza, o conhecimento de tudo quanto, no processo, até então, existe contra ele, e verifica a impressão, sobre o mesmo causada, pelo conhecimento de que a acusação tem o amparo de elementos mais ou menos capazes de convencer. E é duma importância extraordinária aferir a confiança ou o desânimo, que manifesta o interrogatório, quanto à possibilidade de aniquilar essa prova”. (idem, pág. 27) O grande processualista discorre sobre a parte do

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interrogatório que indaga das testemunhas arroladas pela acusação : “Ao magistrado cumpre, sem impaciência, ouvir quanto queira ele (o acusado) referir, pois há, sempre, a possibilidade de ser mencionada alguma circunstância relevante, em ordem a poder estabelecer a tendenciosidade dessas pessoas e, quando vierem elas a depor, é conveniente não esqueça ao juiz a reserva feita pelo acusado, e procure aferir, controlando a atitude da testemunha ou da informante, a realidade da situação.” (idem,pág. 28, sublinhados nossos) Da análise de Espínola Filho decorre o caráter humano do ato de interrogatório, relação entre pessoas, entre presentes: “É preciso, pois, que o juiz, ao interrogar o réu, não se deixe impressionar por idéias preconcebidas; submeta-o à observação constante, procure tê-lo fito nos olhos, para perceber as menores reações; não se impressione pela presteza das respostas, que podem estar preparadas de antemão, na previsão das perguntas; nem pela vacilação, que pode ser o resultado de uma incompreensão da pergunta; deve considerar que, doutra parte, a calma aparente, o modo compassado de responder, com o qual a pessoa procura persuadir de estar meditando,

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representa, na realidade, um expediente de quem tem de inventar alguma coisa, pelo que, é freqüente desgarrar-se o interrogado numa série de narrações, que se afastam consideravelmente do fato principal, e uma pergunta atôa, sobre uma circunstância puramente acidental, é o bastante para fazer perder o fio da fantasia imaginosa, muito mal se equilibrando o narrador quando se vê, assim, chamado para o caminho da verdade.” (idem, pág.37) Conclui, ainda, o grande processualista pátrio que “Em suma, pode-se, generalizando a ponderação de FLORIAN (op. e vol. cits., pág. 40), “orientar que o juiz deve ter em consideração o sujeito, que interroga, perscrutando as condições da sua individualidade e os motivos da sua confissão ou de sua negativa”. (idem, pág. 38) É certo que não é imperativo do processo penal, entre nós, o respeito ao princípio da identidade física do juiz. Como observa René Ariel Dotti, um dos mais lúcidos doutrinadores na área penal e processual-penal, “A ausência, no processo penal, do aludido e generoso princípio da identidade física do juiz permite que ele condene, com lamentável

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freqüência, seres humanos que desconhece. Sõ raríssimas as hipóteses em que o magistrado se utiliza das cautelares regras que prevêem o reinterrogatório, no interesse da apuração do fato e em obséquio à garantia da ampla defesa” (Temas de Processo Penal, Revista dos Tribunais, RT-748, fevereiro de 1998, pág. 472). Ainda assim, o princípio basilar é de que o processo penal se inicia com o comparecimento do acusado perante um juiz, para ser pessoalmente ouvido em ato público. Ainda que o magistrado venha a ser substituído, e que o sucessor não reinterrogue o réu, o acusado terá sido ouvido por um juiz imparcial, que o viu e ouviu. Está atendida, inclusive, a carga simbólica do processo, com o ritual de apresentação do indiciado perante a Justiça. Data da antiga Idade Média a origem do instituto do habeas corpus, que mereceu a mais ampla consagração doutrinária, jurisprudencial e constitucional entre nós, como sinônimo mesmo de garantia da liberdade e de supremacia do Poder Judiciário. Ora, o sentido profundo do habeas corpus é a idéia, que data do século XIII, de que a maior das garantias de liberdade é a apresentação do detido à Corte. Veja-se a bela descrição de Pontes de

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Miranda: “Habeas-corpus eram as palavras iniciais da fórmula ou mandado que o Tribunal concedia e era endereçado a quantos tiveram em seu poder, ou guarda, o corpo do detido. A ordem era do teor seguinte: “Tomai o corpo desse detido e vinde submeter ao Tribunal o homem e o caso”. Literalmente: tome, no subjuntivo (habeas), de habeo, es ui, itum, ere, ter, exibir, tomar, trazer, etc. Por onde se vê que era preciso produzir e apresentar à Corte o homem e o negócio, para que pudesse a Justiça, convenientemente instruída, estatuir sobre a questão, velando pelo indivíduo. O seu fim era evitar, ou remediar, quando impetrado, a prisão injusta, as opressões e as detenções excessivamente prolongadas. Também nesse tempo, em caso de prisão preventiva, o acusado não devia ser tratado como os indivíduos já condenados, recusando-se, destarte, a tal prisão o caráter de pena. Por isso mesmo, o paciente devia comparecer à Justiça com as mãos e os pés livres: Custodes poenam sibi, commissorum non augeant, nec eos torqueant; sed omni saevitia remonta pietateque adhibita, iudicia debit exsequantur (FLETA, I, 26).” (Comentários à Constituição de 1967, 2ª edição, 1971, Editora Revista dos Tribunais, Tomo V, pág. 284).

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Não há dúvida de que, entre a teoria e a prática, inúmeros percalços se interpõem. Toda a construção teórica, na verdade, nunca bastou para plena garantia do direito de defesa, como se verifica da aguda observação de Antonio Magalhães Gomes Filho: “Dentre as limitações de prova ditadas pela necessidade de tutela a direitos fundamentais, um grupo extenso e emblemático é representado pelas regras que dizem respeito à preservação da liberdade de expressão, da dignidade e da integridade física do acusado. Infelizmente, o processo penal ainda não deixou de ser um ritual de degradação do status social do indivíduo e a humilhação do acusado subsiste como elemento importante e pouco custoso do mecanismo de repressão” (Direito à Prova no Processo Penal, Editora Revista dos Tribunais, 1997, pág. 110). Não obstante, as imperfeições do sistema não podem servir de pretexto a um afrouxamento ainda maior das garantias, sob pena de abrirem se cicatrizes incuráveis no nosso sistema de garantias, que não são só garantias do acusado, mas de toda a sociedade.

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Ao tratar do devido processo legal, afirma José Cirilo de Vargas: “Trata-se de um dos mais importantes institutos jurídicos concebidos e desenvolvidos no Ocidente, como reflexo do modo de ser e de pensar desta parte do planeta” (Direitos e Garantias no Processo Penal, Forense, 2002, pág. 150). Remete, então, à sempre prestigiada lição de Ada Pellegrini Grinover, tal como referida por Cândido Rangel Dinamarco: “Por devido processo legal, na palavra da profa. Ada, “entende-se aquele conjunto de garantias constitucionais do processo que, a partir do art. 39 da Carta Magna de 1215, tutelam os direitos processuais dos litigantes, dando ao processo uma configuração não apenas técnica, mas também ético-política” (A instrumentalidade do processo, SP, RT, 1987, p. 180, nota 4). A respeito da oitiva do acusado, brilhante síntese foi feita por Hélio Tornaghi, destacando: a) que “o interrogatório é ato personalíssimo”; b) “a segunda característica do interrogatório é sua judicialidade: cabe ao juiz, e só a ele, interrogar o réu (arts. 186, 195 e 196) (...) Esse é meio de prova, é ato de instrução do processo, reservado ao juiz” (Hélio Tornaghi, Curso de Processo Penal, Saraiva, 8ª edição, 1991, 1º volume, pág. 359).

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Reafirma, com iniludível clareza, o grande processualista as características e os requisitos do interrogatório: “o interrogatório é a grande oportunidade que tem o juiz para, num contato direto com o acusado, formar juízo a respeito de sua personalidade, da sinceridade de suas desculpas ou de sua confissão, do estado d’alma em que se encontra, da malícia ou da negligência com que agiu, da sua frieza e perversidade ou de sua elevação e nobreza; é o ensejo para estudar-lhe as reações, para ver, numa primeira observação, se ele entende o caráter criminoso do fato e para verificar tudo mais que está ligado ao psiquismo e à formação moral. Como então admitir que o interrogatório não fosse judicial e personalíssimo?” (idem, pág. 359, grifos nossos) “O interrogatório é a oportunidade concedida ao juiz para formar opinião sobre o réu. Para isso ele necessita do contato direto, vivo. A palavra do acusado, circundado de sua atitude, de seus gestos, de seu tom de voz, de sua espontaneidade, pode dar ao juiz um elemento de convicção insubstituível por uma declaração escrita, morta, gélida, despida dos elementos de valor

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psicológico que acompanham a declaração falada. Já os práticos dos fins da Idade Média exigiam o interrogatório oral” (idem, pág. 361, grifos nossos). “É preciso que o acusado fale e responda conscientemente e com toda liberdade, sem engano e sem temor” (idem, pág. 364). Com tais premissas, de ordem doutrinária e filosófica, pode-se agora repetir a pergunta: Será que o chamado “interrogatório on-line”, feito com moderno sistema de vídeo-conferência, com o juiz na sala de audiências do fórum e o acusado no presídio, com recursos eletrônicos ou telefônicos de comunicação entre os estabelecimentos e com o advogado ou defensor público, que não pode estar nos dois lugares ao mesmo tempo, corresponde ao que o estatuto processual penal, visando assegurar a ampla defesa, definiu como ato judicial, público, direto e personalíssimo ? A polêmica começou com o primeiro interrogatório por computador, realizado em Campinas em 27 de agosto de 1996. Em artigo publicado na Revista dos Tribunais, o douto magistrado que presidiu o ato, Dr. Edson Aparecido Brandão, sustentou sua validade, à luz de

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decisão jurisprudencial nesse sentido, rebatendo as críticas então formuladas (RT/Fasc. Pen., v. 755, set. 1998, págs. 504/6). Sustenta ele que a decisão pioneira, por si só, “não apazigua alguns espíritos conservadores, que nisto, e em quase tudo, vêem ameaças a direitos fundamentais do cidadão.” Acrescenta que “é bastante estranho que, no final do século XX se imagine ainda que o uso da vídeo-conferência deixaria desguarnecido o réu em seus direitos fundamentais”. E complementa: “Recriminar-se pura e simplesmente a tecnologia jamais ajudará a justiça a cumprir bem seu papel nestes tempos futuros que virão. O debate é muito mais do que necessário, antes ele é imprescindível para que o judiciário cumpra sempre seu papel de guardião de garantias pessoais, para que o Judiciário seja sempre como o carcereiro deste Leviatã que é o Estado moderno, perigoso no seu neoliberalismo e ameaça constante ao cidadão.Não pode porém o debate basear-se somente em preconceitos, negando-se a vista ao futuro”. Na verdade, o Boletim 42, de junho de 1996, do

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IBCCrim, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, foi o primeiro grande palco desse debate. Já então a ilustre Procuradora Ana Sofia Schmidt de Oliveira manifestava com extrema clareza e elegância o ponto de vista que viria a colher aprovação do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária seis anos depois: “O interrogatório é o único ato processual em que é dada voz ao réu no processo penal. (...) Realmente, é no interrogatório que o réu tem voz e corpo. É pessoa, diria Pedro Armando Egydio de Carvalho. O interrogatório é o único ato processual em que o juiz dialoga com o réu. Ainda que durante este diálogo perguntas e respostas sejam, via de regra, unilaterais e o assunto venha previamente delimitado pelo teor da denúncia, acontece um diálogo verdadeiro, em que há troca de algo além das palavras. Os gestos, a entonação da voz, a postura do corpo, a emoção do olhar, dizem, por vezes, mais que as palavras. Mensagens subliminares são transmitidas e recebidas dos dois lados, ensejando, por vezes, rumos inesperados.” Destaca a douta Conselheira que o progresso

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tecnológico deve ser valorizado, mas que “não pode haver economia, de tempo ou dinheiro, a tão alto custo”: “O avanço da tecnologia e da informática vêm gerando revoluções altamente positivas no mundo jurídico. Mas tem prestado alguns desserviços à Justiça. Substituir o interrogatório, o encontro de pessoa a pessoa por um encontro tela a tela pode ser um progresso em termos tecnológicos mas é um retrocesso em termos humanitários.” Posição de cautela também foi manifestada pelo ilustre magistrado José Luiz Germano: “Se admitirmos que nem mesmo em primeiro grau o juiz interrogue pessoalmente o preso, este simplemente jamais será ouvido por quem decidirá a sua sorte. Todos sabemos que o interrogatório é o primeiro momento de defesa, em que o réu poderá dirigir-se pessoal e diretamente ao juiz da causa. Esta preciosa oportunidade dada pela lei à pessoa acusada não pode ser-lhe retirada, sob pena de cerceamento de defesa e conseqüente nulidade.”

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À época, ponderou o Magistrado que “o ideal talvez fosse o vídeo conferência, como assinalou o juiz, mas o Estado brasileiro não tem a menor condição de tornar isso realidade agora.” Tratava-se, então, simplesmente de interrogatório por computador. Mas será que a vídeo-conferência não traz implícitos os mesmos problemas então apontados ? Participando do mesmo profícuo debate de idéias, adotou posição restritiva também o eminente juiz Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior: “Há, porém, uma forma mais sutil pela qual se tem procurado distorcer a função do juiz criminal: a cobrança da eficiência a todo custo para instrumentalizar o combate sem trégua ao crime. A busca desta eficiência é feita, quase sempre, com a melhor das intenções. Mas a preocupação excessiva com o assunto pode comprometer a visão global do juiz, levando-o a se esquecer que faz parte de sua missão abrir-se com imparcialidade e paciência de artesão para ouvir as razões do réu.” Segundo o ilustre magistrado, “É equivocado saudar como expressão de modernidade o procedimento

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anunciado, a meu juízo inconstitucional por afrontar o complexo de garantias individuais adotado pelo Estado brasileiro”. Para acrescentar ainda que “parece-me fundamental que o juiz converse com a pessoa do réu e não com uma representação de quem está constrangido num presídio, do outro lado da linha. A prática anunciada, além de nada garantir quanto à liberdade da autodefesa que o preso exerce ao ser interrogado, impossibilita uma perfeita percepção da personalidade do réu ...” (grifos nossos).No mesmo Boletim, a defesa do interrogatório a distância (“on-line”) foi assumida pelo então juiz Luiz Flávio Gomes, sem dúvida uma das mais percucientes inteligências do panorama do direito criminal brasileiro. Partindo do pressuposto de que alguns magistrados só concedem a liberdade provisória ao preso depois do interrogatório, o que resultava em que o preso podia ficar até um mês na prisão antes de ter sua situação examinada, o inovador juiz esclarece: “Foi pensando fundamentalmente nessa desumana situação, não em comodidade, que tomamos a iniciativa de concretizar o chamado “interrogatório a distância” (on-line), que pode ser realizado, conforme as

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circunstâncias, em vinte e quatro horas. E se em algum dia, por sua causa, for possível antecipar a liberdade de uma só pessoa, já terá valido a pena a iniciativa. Porque não existe humanidade e solidariedade mais profunda que liberar o preso, quando tenha que ser liberado, antes da data que a burocracia “normal” impõe.” E mostra as vantagens, hoje decantadas, do sistema: “Evita-se o envio de ofícios, de requisições, de precatórias, é dizer, economiza-se tempo, papel, serviço, etc. Pode-se ouvir uma pessoa em qualquer ponto do país, sem necessidade do seu deslocamento. Eliminam-se riscos, seja para o preso (que pode ser atacado quando está sendo transportado), seja para a sociedade. Previne acidentes. Evita fugas. O transporte do preso envolve gastos com combustível, uso de muitos veículos, escolta, muitas vezes gasto de dinheiro para o transporte aéreo, terrestre, etc. O sistema do interrogatório a distância evitaria todos esses gastos. Representaria uma economia incalculável para o erário público e mais policiais na rua, mais policiamento ostensivo, mais segurança pública.Realizando-se o interrogatório prontamente por computadores, praticamente o preso não interrompe sua rotina no presídio, isto é, não precisa se ausentar das

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aulas, quando está estudando, não precisa se privar da assistência religiosa, não precisa cessar seu trabalho. Isso significa vantagens para a sua ressocialização, principalmente porque o trabalho permite a remição.” E conclui, em defesa da novidade: “Não ver o rosto do acusado, por último, não significa perda da sensibilidade do juiz (é dizer, sua “robotização”). Nem jamais redução das garantias fundamentais. Ao acusado deve-se dar a oportunidade, no interrogatório, de apresentar sua defesa da forma mais ampla possível. O sistema on-line faculta essa ampla defesa. Tudo que é dito é registrado. Não prejudica a qualidade da prova.” Depois, no Boletim 44, do mesmo IBCCrim, ao advogados Adriano Salles Vanni e Marlon Wander Machado voltaram a criticar o sistema: “Apesar da verdadeira revolução que esse meio de colheita de prova à distância trará, indiscutivelmente a prática mostrará que a sua implantação, apesar dos aludidos benefícios, transformar-se-á em atentatória aos direitos fundamentais do réu, tanto no que concerne ao

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seu direito a ampla defesa (Constituição da República, art. 5º, inciso LV), como ao respeito aos princípios contidos na lei penal adjetiva. O ato de interrogar transpõe simplesmente a formulação de perguntas e a obtenção de respostas, pois indiscutivelmente a maior garantia do réu reside, exatamente, na pessoa do magistrado, na sala de audiências, quando efetivamente, sentirá a proteção do Poder Judiciário para exercer o seu direito de defesa. Não pelos gestos, nem pela postura do réu, mas pela segurança que ele encontra e que está diretamente vinculada ao contato pessoal com o magistrado, o qual poderá, no dizer de Altavilla, “aquilatar a elaboração da prova realizada”.O contato pessoal do preso com o magistrado dentro da sala de audiências, assegura à ambos a busca da verdade real. Tal contato, na verdade, extrapola o simples olhar ou sentimento do magistrado quanto a pessoa do interrogando, para representar verdadeiramente a garantia, ao réu, de poder manifestar-se livremente, sem sofrer de imediato os castigos fatalmente advindos de seu comportamento, pois findo o interrogatório, estará novamente em sua realidade, agora para sofrer as conseqüências de seu ato.”

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A interessante questão ficou em compasso de espera, até que, em setembro de 2001, começou-se a utilizar em São Paulo o sistema, bem mais moderno, diga-se, da vídeo-conferência para interrogatório de réus perigosos. Por solicitação da Ordem dos Advogados do Brasil, foi proferido brilhante parecer contrário à inovação, de autoria do advogado Tales Castelo Branco. A manifestação, datada de 15 de outubro de 2002, foi publicada no Boletim 124 do IBCCrim e tem as seguintes conclusões:

“1º) O anseio de modernidade e atualização tecnológica não justifica supressões de solenidades judiciárias indispensáveis à garantia da ampla defesa, porquanto o formalismo processual corresponde a uma necessidade de ordem, de certeza e de eficiência prática.

2º) A pressão inspiradora do êxito da informática, a segurança e a economia do novo sistema, a sua utilização em outros países, a celeridade do ato judicial, a liberação de policiais militares, até então dedicados ao transporte e escolta dos presos, para o policiamento de rua, são

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vantagens falaciosas porque o interrogatório à distância viola uma soma de preceitos, regras e leis, indispensáveis à preservação de direitos fundamentais, consagrados na Constituição Federal e nas leis do Processo Penal.

3º) O interrogatório por videoconferência, afastando-se da recomendação da lei (artigo 185 do Código de Processo Penal e art. 5º, XXXVII, da Constituição Federal), é inadmissível, a não ser que a saída do réu do estabelecimento prisional acarrete algum perigo.

4º) O interrogatório não é um ato bilateral de que participam apenas o acusado e o juiz. É impossível, sem a quebra de garantias fundamentais, reunir e conciliar a presença dos principais intervenientes do importante ato: o juiz, o advogado, o acusado, o curador do réu, maior de 18 anos e menor de 21 anos, e os autos do processo, que poderão ser compulsados, durante o interrogatório, tanto pelo juiz quanto pelo advogado, pelo curador ou pelo próprio réu, para efeito de colher informações ou formalizar protestos.

5º) O artigo 792 do Código de Processo Penal determina que os atos processuais serão, em regra, públicos e se

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realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, e a Constituição Federal obriga a publicidade desses atos, ressalvada a defesa da intimidade ou o interesse social (artigo 5º, LX).

6º) O interrogatório realizado no interior do presídio, além de aviltar efetivamente o princípio da publicidade, não garante a liberdade de manifestação do preso, quando todos sabem que as cadeias são dominadas por temíveis facções criminosas, ou, algumas vezes, dirigidas por funcionários públicos indignos e violentos.” A meu ver, a posição adotada pela Ordem dos Advogados do Brasil é uma brilhante síntese das contra-indicações do chamado interrogatório por vídeo-conferência. Mais do que adotar uma posição pessoal, procurou-se aqui alinhavar os principais argumentos a favor e contra a adoção do sistema. A favor da adoção do tele-interrogatório, existem fortes e tentadores argumentos de ordem prática. Reduzem-se custos, aumenta-se a segurança, dá-se mais conforto ao

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próprio acusado encarcerado, encurtam-se as distâncias e os prazos, devolvem-se os encarregados de escolta às funções de policiamento. Contra a adoção do interrogatório por vídeo-conferência, entretanto, existem argumentos a meu ver definitivos que decorrem do papel constitucional do Poder Judiciário como expressão da soberania, dos princípios da ampla defesa e do devido processo legal, bem como de toda a tradição brasileira em matéria de processo penal em geral e de direito de defesa e do “habeas corpus” em particular. Adotar a prática implica em subversão profunda da idéia de que o processo é o chamamento do réu a juízo, para prestar contas diante da sociedade. Interrogar o acusado no presídio, por meios eletrônicos, por mais aperfeiçoados que sejam, implica em odiosa segregação, criando duas classes de acusados: os que têm direito de vir a Juízo para ser interrogados, de um lado, e de outro os que ficam desde logo segregados, submetendo-se apenas a um ritual simbólico por meio da televisão. Uma das modas mais questionáveis dos dias que correm é a banalização dos chamados “reality shows”, a exibição pela televisão de pessoas que ficam artificialmente

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segregadas de modo a interagir como se estivessem vivendo normalmente, quando na verdade já foram transformados em verdadeiros “micos de circo”, em ratos do laboratório virtual, a exibir sua intimidade para deleite das massas. A Justiça não pode se transformar numa espécie de “big brother”, tele-julgando e tele-condenando. A realidade da Justiça é a presença do Juiz, que simboliza para o réu e para a sociedade a autoridade e soberania do Poder Judiciário, bem como a realidade concreta do Estado de Direito. Justiça virtual não é Justiça, diríamos nós, na esteira do aforismo anglo-saxão. A Justiça tem que ser real, concreta, atuar entre pessoas, seres humanos, de carne e osso, com todas as suas imperfeições. Ou então, para enfrentar a dura realidade contemporânea, estaremos adotando soluções engenhosas do ponto de vista da tecnologia, mas comprometedoras do ponto de vista do devido processo legal, despindo assim a Justiça de sua majestade e de sua autoridade, de seu papel mais profundo, que é o de ser a Justiça dos homens.

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Daí porque, com maior respeito por todos os que, movidos pelos melhores objetivos, preconizam a adoção do interrogatório por vídeo-conferência, nos vemos forçados a nos alinhar do lado dos que tem sido chamados de “conservadores”. Se ser “conservador” é lutar pela conservação dos ideais de Justiça que estão insculpidos em nossa Constituição, pela supremacia do Poder Judiciário, pelo respeito amplo ao direito de defesa e ao devido processo legal, talvez seja importante observar que, mais importante do que as inovações tecnológicas, é a preservação do legado que recebemos do iluminismo, da luta contra qualquer forma de absolutismo, da preservação a um tempo da dignidade do ser humano e, em contrapartida, da autoridade dos poderes do Estado.

São essas as conclusões que, s.m.j., submetemos à elevada apreciação superior. São Paulo, 07 de março de 2003. Eduardo Augusto Muylaert Antunes

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Procurador do Estado - Nível IV OAB/SP 21.082

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PROCESSO: PGE n. 54/2003 INTERESSADO: CASA CIVIL ASSUNTO: DEVIDO PROCESSO LEGAL. Processo Penal. Realização de audiências pelo sistema de videoconferência. Análise da constitucionalidade da medida. PARECER PA n. 80/2003 1. Vem o presente processo a esta Procuradoria Administrativa para atendimento da consulta formulada pelo Senhor Secretário Chefe da Casa Civil sobre “a viabilidade jurídica da utilização do sistema de vídeo-conferência nas varas criminais do Estado de São Paulo”, tendo em vista “o grande interesse do Estado na implementação do sistema (...) para a oitiva de presos, quer em virtude da grande economia de recursos humanos e financeiros, quer pela notória capacidade do sistema permitir o necessário contato entre preso e juiz, diminuindo os riscos para a sociedade”. 2. O sistema que se deseja adotar, como exposto no ofício inaugural, permite que não mais ocorra o deslocamento de presos para comparecimento ao fórum, permitindo que os policiais e veículos que seriam deslocados para a escolta sejam utilizados no patrulhamento convencional. Ademais, além da economia de recursos, diminuiria o risco de resgate de presos. 3. Submetida a matéria à Subprocuradoria Geral do Estado, área da Assistência Judiciária, foi ouvida inicialmente a Senhora Procuradora do Estado Chefe da Procuradoria de Assistência Judiciária Criminal que, invocando o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 9º, n. 3) e a Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de São

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José da Costa Rica (art. 7º, n. 5), sustenta que o sistema de videoconferência fere o princípio da ampla defesa do acusado, porque “é imprescindível a presença física do acusado perante a autoridade judicial competente”. Argumenta que há necessidade de publicidade dos atos judiciais. Assim, se as audiências nos presídios forem realizadas com as portas abertas haveria igual perigo de resgate de presos. Afirma que o reconhecimento do acusado pela vítima e testemunhas fica prejudicado porque a imagem do vídeo distorce a imagem real, prejudicando a verificação da altura e cor da pele do acusado, por exemplo. Concluindo contrariamente ao sistema proposto, a Senhora Procuradora do Estado Chefe da PAJ Criminal instrui o processo com a manifestação de inúmeros Procuradores do Estado que atuam nas Varas Criminais, em sua maioria contrários à implantação da audiência virtual. 4. A questão foi amplamente debatida no seio da Procuradoria de Assistência Judiciária. Consta às fls. 12/15 ata da reunião realizada em 7 de outubro de 2002 com a presença de inúmeros Procuradores da área, em que representantes da Secretaria de Governo e Gestão Estratégica e da Prodesp fizeram a apresentação do sistema, oportunidade em que a maioria dos presentes sustentou a sua inconstitucionalidade pelos motivos apontados nas manifestações dos Procuradores do Estado Ana Sofia Schmidt de Oliveira e Carlos Weiss, membros do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, juntados às fls. 16/21. 5. A doutora Ana Sofia Schmidt de Oliveira, na qualidade de relatora da Comissão constituída no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária para elaborar anteprojeto referente à realização de interrogatório on line para presos perigosos, manifestou-se contrariamente à inovação pretendida, argumentando que a questão deve ser analisada à luz dos “fundamentos da legalidade e da democracia”, sob dois ângulos interligados: a viabilidade

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jurídica da medida no sistema normativo vigente e as implicações de política criminal trazidas com a matéria. Sustenta, então, que não há norma legal que “autorize a substituição da presença física pela imagem do réu”. Ademais, o respeito ao devido processo legal exige o pleno exercício do direito ao contraditório e ampla defesa. A adesão do Brasil ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos reforça a idéia da necessária presença física do réu perante o juiz, que “não pode sofrer interpretação que venha a equiparar a condução da pessoa à condução da imagem por cabos de fibra ótica”. A formalidade dos atos é garantia do respeito à ampla defesa. Em matéria de política criminal, argumenta a ilustre preopinante que a presença física do réu perante o juiz permite a captação de elementos outros de convicção pelo julgador, decorrentes do emprego da linguagem não verbal. A utilização do sistema em casos de “réu perigoso” envolve conceito subjetivo, a merecer cautela. Como solução, sustenta que o interrogatório do réu poderia se dar em anexos dos presídios de segurança máxima e, se for o caso, nos termos

do artigo 792, § 2º, do CPP[1]. 6. Essa posição foi acolhida pelo também Conselheiro e Procurador do Estado de São Paulo, doutor Carlos Weiss, que reforça a idéia de violação aos direitos humanos consagrados em tratados internacionais subscritos pelo Brasil e que, portanto, integram o sistema normativo nacional por força

do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal[2]. Sustenta o ilustre preopinante que os textos mencionados garantem a necessária “presença” do réu perante um juiz, situação que não pode ser “simulada” por meios eletrônicos. Em abono à sua tese, invoca os fundamentos do habeas corpus, que garante a condução do preso à autoridade, como medida contrária a eventuais abusos. Em sua manifestação de fls. 22/32, reiterando os argumentos já expostos, invoca ainda a norma do artigo 260 do Código de Processo Penal que, sob sua ótica, reforçaria a idéia da necessária presença física do réu perante o juiz.

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7. Vários Procuradores do Estado atuantes na Procuradoria de Assistência Judiciária Criminal expuseram razões contrárias e a favor do sistema de audiência on line, em manifestações que ecoam os argumentos tradicionalmente invocados no debate público do tema. Os Procuradores ouvidos fizeram observações que apontam as falhas concretas do sistema que seriam obstáculo ao exercício do pleno direito de defesa do réu. 8. Em apertada síntese, são os seguintes os argumentos expostos acerca do tema: a) o sistema seria inconstitucional por ferir os direitos e garantias individuais garantidos pela ordem vigente, na medida em que o processo penal deve garantir a dignidade da pessoa humana. Os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil exigem a presença do réu perante o juiz, presença essa que só pode ser física, sob pena de não ser observado o devido processo legal, necessário para garantir-se o exercício do contraditório e da ampla defesa; b) não há fundamento legal para a implantação do sistema de audiência on line, porque o interrogatório previsto nos artigos 185 e seguintes do CPP exigiria a presença física do réu perante o juízo. c) A audiência realizada pelo sistema de videoconferência fere o direito de defesa porque impede o contato direto do juiz com o réu, inviabilizando que o julgador forme sua convicção a partir da análise do comportamento do acusado; prejudica o reconhecimento do réu pela vítima e testemunhas; dificulta o contato direto e sigiloso do acusado com seu advogado durante a audiência.

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d) O sistema impede que o réu denuncie ao Juiz eventuais maus-tratos que esteja sofrendo na prisão; e) O réu tem direito de ver o rosto da pessoa que o julgará e da pessoa que o defende. 9. Os Procuradores que se mostraram a favor do sistema alinhavaram os argumentos que podem ser assim sintetizados: a) O sistema propiciaria maior conforto aos próprios réus, não mais obrigados a ficar longas horas sem alimentação quando de seu interrogatório; b) O sistema permite que a audiência, uma vez gravada, seja assistida pelo Tribunal responsável pela apreciação de eventual recurso, tendo o julgador de segunda instância, então, acesso “à inflexão da voz, à linguagem gestual e corporal, à expressão facial de réus e testemunhas”; c) A videoconferência não retiraria o sigilo da comunicação entre o réu preso e seu defensor porque o sistema hoje vigente não garante qualquer privacidade nesse contato; d) A presença física do réu na audiência pode intimidar a testemunha, situação que concretamente acontece; e) A Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984, art. 66, VII e 68, parágrafo único, determina a fiscalização dos estabelecimentos prisionais pelos Juízes e Promotores; f) O Código de Processo Penal não veda

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a realização de audiência sem a presença do réu; g) O Pacto de São José da Costa Rica não pode ter a interpretação preconizada pelos que se posicionam contra a videoconferência, na medida em que, datado de 1969, reflete, em sua redação original, uma realidade diversa da ora enfrentada; h) O devido processo legal não pode ser interpretado de forma restritiva, porque “a vítima e as testemunhas têm o direito de depor, expor o fato, ver o autor do delito ser punido como previsto na legislação penal” (manifestação coletiva de fls. 64/67). 10. Consta dos autos, ainda, a manifestação da Procuradora do Estado que participou de audiência on line na defesa de réu assistido, doutora Ana Luíza Zimmermann. A ilustre Procuradora, em sua manifestação de fls. 70/78, relata detalhes da experiência, apontando as dificuldades enfrentadas. Anota a preopinante que o sistema prejudica a defesa do réu porque há dificuldade no contato com o advogado. Ademais, observa que, longe de agilizar a Justiça, as audiências foram excessivamente morosas, em função das dificuldades oferecidas pelo sistema. Observa, no entanto, que na audiência realizada no processo que apurou o “chamado esquema PCC, dada as peculiaridades do caso (...) o sistema mostrou-se adequado”. 11. A Senhora Subprocuradora Geral do Estado da área da Assistência Judiciária manifestou-se às fls. 79/82, assinalando que o sistema descrito pela Procuradora do Estado Ana Luíza Zimmermann Lopes Simões “compromete fatores fundamentais para o processo penal, como reconhecimento do réu e constante troca de informações entre o cliente/assistido e o advogado”. Observa a

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Senhora Subprocuradora Geral do Estado que o problema não seria resolvido com a presença de um advogado junto do réu. O sistema, assim, não traria a segurança jurídica necessária para a realização de um julgamento justo. Lembra que medidas de exceção presentes no processo penal em alguns países apenas se justificam em “situações extremamente graves, onde o Estado teve de abrir mão das prerrogativas concedidas aos acusados em geral”. Assim, “apenas a exceção justifica atitudes como estas”. 12. Os autos foram instruídos, ainda, com cópia do relatório apresentado pelo Excelentíssimo Juiz de Direito da 30ª Vara Criminal que presidiu as primeiras audiências realizadas pelo sistema de videoconferência, doutor Adilson de Araújo. 13. Referido relatório aponta o sucesso da experiência, noticiando que sistema anterior, experimentado na 1ª Vara Criminal de Campinas em 1996, foi objeto de decisão do Superior Tribunal de Justiça, que considerou válidos os atos processuais praticados (RHC 6272). No Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo a questão também foi apreciada, tendo a 4ª Câmara decidido pela viabilidade jurídica do sistema (HC 297.014/4) e a 10ª Câmara pela não juridicidade da medida (HC 297.054/5). 14. Sob o aspecto técnico-jurídico, o relatório transcreve parecer do autor aprovado pelo Senhor Corregedor Geral da Justiça, Desembargador Márcio Martins Bonilha, em que se sustentou a compatibilidade dos atos processuais realizados pelo sistema de videoconferência com as normas do Código de Processo Penal. Na sistemática adotada, na visão do Magistrado, a distância física entre réu e julgador não impediu que os mesmos se avistassem e mantivessem diálogo em tempo real. Sustenta que o sistema garante “a

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presença de um advogado e de um Promotor junto ao Magistrado, presenciando o ato”. Garante também a presença de um advogado junto ao réu na Penitenciária. Assegura-se, assim, que o réu não sofre qualquer coação. Dessa forma, não é violado o artigo 185 do Código de Processo Penal “porquanto o ato se realizou entre o réu perante a Autoridade Judiciária”, dando-se oportunidade do réu e seu advogado participarem ativamente dos atos processuais praticados. Não haveria, então, ofensa ao princípio da ampla defesa. Noticia-se que a videoconferência é sistema existente em outros países, como Portugal, Itália, Inglaterra, Espanha e Argentina. A conclusão do referido relatório é, pois, favorável ao sistema. 15. Nesta Procuradoria Administrativa a matéria foi precedentemente analisada pelo culto Professor Eduardo Augusto Muylaert Antunes, que sustenta a inconstitucionalidade da adoção das audiências virtuais por violação ao princípio do devido processo legal, com base nos sólidos argumentos expostos no Parecer PA n. 57/2003. É o relatório. Opino. 16. A intensa discussão existente nos autos é reflexo do amplo debate que a matéria tem provocado na sociedade, repetindo-se os argumentos contra e a favor do sistema de audiência on line. 17. Os vários Procuradores do Estado ouvidos trouxeram aos autos a sua experiência concreta, ao lado de considerações que expressam a sua opinião sobre o sistema. Os argumentos alinhavados ecoam os argumentos que têm sido usados ao longo das discussões travadas pela sociedade a respeito do tema. O debate é acirrado. 18. A defesa do sistema conta com juristas do porte de Luiz Flávio Gomes, além de ter o apoio de setores da Magistratura e da sociedade civil, como é exemplo a matéria

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jornalística assinada pelo colunista Gilberto Dimenstein do jornal Folha de São Paulo (25 de março de 2003, Caderno Cotidiano, p. C.8). 19. A fileira dos que se posicionam contra a matéria é engrossada por entidades como Associação Juízes para a Democracia, Associação dos Advogados de São Paulo, Ordem dos Advogados do Brasil, além de contar com o endosso de juristas do porte de René Ariel Dotti e Luiz Flávio Borges D´Urso. 20. Como se vê, o tema é polêmico, comportando a análise sob duas óticas, como bem assinalado pela Procuradora do Estado e Conselheira do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Ana Sofia Schmidt de Oliveira. Legalidade e conveniência da implantação da medida são questões que se entrelaçam e que embasam a discussão travada nos autos. 21. Os aspectos relacionados à economia da medida que se pretende adotar ou a conveniência do sistema por permitir maior agilização e racionalidade administrativa são pontos relevantes da questão, mas que fogem à competência deste órgão opinativo. 22. Também se distanciam da alçada desta Procuradoria especializada discussões acerca da necessária instrumentalização da sociedade para combater eficazmente o crime organizado, cada vez mais causador de sensação de intensa insegurança coletiva, em face da limitação dos instrumentos convencionais existentes. 23. A contribuição que esta Procuradoria Administrativa pode dar ao debate prende-se aos aspectos relativos à análise da compatibilidade do sistema com o ordenamento jurídico nacional, tomando como parâmetro o texto constitucional e as normas processuais penais vigentes.

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24. O Direito, como é de conhecimento generalizado, longe está de ser uma ciência exata. Os mesmos fatos e as mesmas normas jurídicas são interpretados de forma diversa pelos diferentes operadores do Direito. 25. O ordenamento jurídico brasileiro não contém qualquer norma admitindo ou vedando a realização de audiências virtuais. Portanto, há que se buscar nas entrelinhas do arcabouço jurídico a solução para o tema, sem que se possa apontar qualquer obviedade na adoção de uma ou outra solução. 26. Dúvida não há que a Constituição brasileira assegura o respeito à dignidade da pessoa humana e a observância ao regime democrático. O processo penal deve observar o devido processo legal, assegurando-se o livre exercício do contraditório e da ampla defesa. A preservação desses postulados é dever de todos aqueles que prezam o Estado de Direito. 27. Na linha da defesa dos direitos humanos, o Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), Decreto n. 678, de 6 de outubro de 1992, e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992). Os dois tratados contêm disposições similares que foram invocadas ao longo dos debates, como embasadoras da posição de que é indispensável a presença física do réu perante o Juízo. 28. Em sua literalidade, as duas disposições assim regulam a matéria: Pacto Internacional dos direitos civis e políticos:

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“Artigo 9.3. Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência e a todos os atos do processo, se necessário for, para a execução da sentença.” Convenção Americana sobre direitos humanos: Artigo 7º. Direito à liberdade pessoal. (...) 5. Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.” 29. Como se vê da leitura dessas normas, o arcabouço internacional de defesa dos direitos humanos exige a presença do réu perante o Juízo. Não se exigiu expressamente, no entanto, a presença física do réu. 30. Também as normas do Código de

Processo Penal, artigo 185[3] e seguintes, ao mencionarem a presença do réu perante o Juízo, não exigem que essa presença seja física. Nem mesmo a invocada norma do artigo 260 do

CPP[4] implica a necessidade de presença física do réu perante o Magistrado, com a devida vênia das abalizadas opiniões contrárias.

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31. A difícil discussão que resta, no entanto, é se essa presença física, embora não expressamente exigida pelo legislador, é inerente ao sistema de garantia dos direitos individuais. 32. O longo debate travado e o peso das posições divergentes demonstram como a questão é controvertida. Não obstante, a despeito dos argumentos apresentados, não se consegue vislumbrar incompatibilidade absoluta entre o sistema pretendido de realização de audiências on line e o arcabouço constitucional de direitos e garantias individuais. 33. O devido processo legal, assegurado pelo artigo 5º, inc. LIV, da Constituição Federal pressupõe, no âmbito penal, o direito a um processo justo, incluindo, dentre outros aspectos relevantes, o direito de ser ouvido; de ser assistido por um advogado (art. 5º, LXIII); de ter presumida sua inocência (art. 5º, LVII, da CF); de ter a sua prisão comunicada imediatamente à autoridade judicial (art. 5º, LXII, da CF); de ver identificado o responsável por sua prisão ou interrogatório policial (art. 5º, LXIV), etc. 34. No sistema de audiência virtual, em tese, todos esses direitos são preservados. O réu tem oportunidade de se avistar com um Magistrado, devidamente assistido por advogado, apresentando as razões que entender pertinentes para sua defesa. 35. Argumenta-se com a conveniência de que o julgador tenha contato direto e pessoal com o acusado para, por meio de suas reações, expressas por linguagem não verbal, formar seu convencimento. A inexistência desse contato direto violaria o princípio da ampla defesa. Não obstante, como observam os estudiosos do direito processual penal, nosso sistema não consagra o princípio da identidade física do Juiz. O Juiz que interroga não é necessariamente o que decide. Não se

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discute se esse sistema é ou não o ideal. A questão é que se o Juiz que julga não tem necessariamente contato direto com o acusado, não causa qualquer violação ao sistema processual pátrio a adoção da audiência on line. O sistema pretendido, longe de criar óbices à maior interação entre julgador e acusado, propicia um incremento dessa interação. A gravação da audiência permite que o Juiz julgador veja ou reveja detalhes, prestando atenção aos aspectos da linguagem não verbal, ressaltados ao longo dos autos pelos Procuradores que atuam na defesa do réu pobre. 36. O sistema de videoconferência se mostra, assim, instrumento relevante para formação do convencimento do Juiz, integrando o conjunto probatório e contribuindo para a existência de um processo justo. 37. A questão do reconhecimento do réu pela vítima e testemunhas, que poderia restar distorcida pelo sistema de videoconferência, também não reflete óbice intransponível. A aceitação do sistema pressupõe a existência de imagem de inquestionável qualidade técnica, questão que supera parte dos óbices opostos. Ademais, não se vislumbra a incompatibilidade em tese do sistema com a realização de reconhecimentos presenciais, resguardada a segurança da vítima e da testemunha, especialmente em situações em que houver dúvida como nas reclamadas hipóteses em que é fundamental conhecer-se a altura do réu. 38. Ainda na questão do reconhecimento do réu, o sistema da videoconferência parece vantajoso sobre o sistema convencional por garantir maior segurança para a vítima e testemunhas, ao assegurar o distanciamento físico. 39. O contato entre o réu e seu defensor é preservado pelo sistema idealizado. A própria Procuradora do Estado que participou das primeiras audiências realizadas

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observou que “antes do início da audiência foi concedido prazo para conversa via telefone IP, em sala privada, a cada um dos advogados com seu cliente”. Durante a própria audiência, igualmente teve oportunidade de comunicar-se com seu assistido, como relata (fls. 70/78). 40. O contato do preso com o magistrado via on line igualmente permite que o Juiz receba denúncias de maus tratos e adote as providências que entender cabíveis para resguardar a figura do preso. 41. Também não se pode afirmar haver violação ao artigo 792 do Código de Processo Penal na medida em que a própria norma, em seu parágrafo segundo admite a realização do ato em local diverso da “sede dos juízos e tribunais”. 42. Defendendo a adoção do sistema de audiências on line, Ivan Lira de Carvalho, Juiz Federal em Natal, observa que “o interrogatório criminal on-line pode ser realizado, em perfeita compatibilidade com a ordem constitucional vigente e em harmonia com os mais caros princípios de proteção à pessoa humana, desde que assegurado som e imagem nos ambientes onde estão, respectivamente, juiz e interrogado” (A internet e o acesso à justiça, www.annet.org.br/ciber/textos/justica). 43. Luiz Flávio Gomes, em artigo publicado no Boletim IBCRIM n. 42, observa que o interrogatório a distância não significa “redução das garantias fundamentais. Ao acusado deve-se dar a oportunidade, no interrogatório, de apresentar sua defesa da forma mais ampla possível. O sistema on line faculta essa ampla defesa. Tudo que é dito é registrado. Não prejudica a qualidade da prova.” 44. Também Edison Aparecido Brandão, Juiz de Direito que presidiu audiências experimentais do sistema em 1996, em artigo publicado na Revista dos Tribunais,

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assim responde às críticas que são formuladas ao sistema: “Algumas críticas a isto não têm qualquer profundidade, quando dizem, por exemplo, que o réu se sentiria atemorizado em relatar pressões a que estaria sofrendo dentro do presídio. Ora, quando o réu é interrogado no Fórum, também policiais ou servidores do presídio o acompanham, sendo óbvio o que ele narrasse ali seria por eles assistido. Poder-se-ia obtemperar que mesmo em juízo, no Fórum fisicamente, sempre deveria o réu estar desacompanhado de qualquer tipo de carcereiro, ou mesmo de algemas, sozinho com o magistrado na sala. Inegável que o estado de espírito de um acusado poderia estar mais calmo em tal situação, mas também é inegável que questões de segurança existem, e até os mais sonhadores disto sabem, que implica exatamente o uso de algemas por exemplo ou ainda de escolta policial. Em suma, o aparelho repressivo também se faz presente, por necessidades fáticas inafastáveis, durante o ato do interrogatório em qualquer situação. A alegada falta de publicidade do ato, por vezes, erigidas a motivo de seus defeitos, tampouco é de ser considerada. Realmente com a moderna tecnologia, milhares e milhares de pessoas poderiam assistir ao ato simultaneamente, como de resto inúmeros atos são assistidos em nível mundial, simultaneamente, via Internet. O acesso a informação no processo nitidamente estará sendo democratizado, eis que de qualquer ponto do mundo qualquer pessoa poderá assistir ao ato que bem entender. É o princípio da publicidade levado a limites insuspeitos.” (RT n. 755, p. 504-506). 45. Ademais, o Poder Judiciário já foi chamado a opinar sobre as primeiras experiências realizadas na Comarca de Campinas, em 1996, para implantação de um sistema que permitia a realização de audiências à distância.

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46. Nessa oportunidade, o Superior Tribunal de Justiça, ainda que tenha apresentado ressalvas ao sistema, decidiu que não havia motivo para decretar a nulidade do processo examinado, porque inexistente qualquer prejuízo à parte, nos termos do artigo 563 do CPP (5ª Turma, RHC n. 6.272-SP, j. 3.4.97, relator Ministro Felix Fischer). 47. Sobre a mesma experiência, o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo exarou duas decisões diversas. A 10ª Câmara, no HC n. 297.054-5, entendeu não ser possível o interrogatório on line por ofensa ao princípio da ampla defesa. Reconheceram os julgadores, no entanto, que no caso concreto, não foi demonstrada a existência de prejuízo efetivo para o réu (Relator Juiz Breno Guimarães – Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 17/343-345). 48. A 4ª Câmara do TACRIM, no entanto, no julgamento do HC 297.014-4, Relator Juiz Péricles Piza, entendeu que o sistema é perfeitamente compatível com nosso ordenamento jurídico. 49. Ilustrativas as considerações tecidas no acórdão referido acerca da histórica resistência às inovações tecnológicas: “... não pode o direito e seus operadores ficarem infensos ao progresso. O progresso tecnológico, tal qual o foi o uso da estenotipia e dos microcomputadores que substituíram as antigas máquinas de escrever, e hoje o interrogatório virtual, hão de ter lugar e guarida, pena deixar o direito de ser atual e contemporâneo. Urge adotar a modernidade, garantida, sempre, a plenitude de defesa, é certo. Basta lembrar que todas as mudanças que introduziram modernidade foram, ao seu tempo, objeto de críticas acaloradas. Quando da introdução da máquina de escrever, há muito tempo atrás, foi tal

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“progresso” criticado pelos conservadores que viram em tal modernidade possibilidade de fraude. É que as decisões e sentenças proferidas pelos Magistrados de então não mais seriam por eles manuscritas, mas datilografadas, o que possibilitaria, em tese, adulteração do texto original. Poder-se-ia inserir palavras não constantes do texto original ou simplesmente modificá-las, com alteração radical de sentido. Mas, ainda assim, vingou. Mais recentemente, com a introdução da estenotipia, conceituada de forma objetiva como “taquigrafia mecânica”, progresso com referência à máquina de escrever, novamente os tradicionalistas e conservadores se opuseram a inovação. Afirmavam, em especial a nobre classe dos Advogados, que estariam a assinar em cruz, ignorando o inteiro teor do termo subscrito, o qual poderia conter equívocos em detrimentos dos interesses dos réus. Mas, igualmente, prevaleceu.” (acórdão publicado na Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 17/346-348). 50. Conclui referido julgado que a adoção de um sistema de realização de audiência on line não causa, em si, violação ao direito de defesa, passível de provocar a nulidade do processo: “Não há ofensa à plenitude de defesa. A autodefesa permanece resguardada a liberdade de expressão do interrogando, prestada diante dos olhos do Magistrado, embora com a visão projetada por câmeras de vídeo, mas, preservado o controle entre eles”. 51. Por todo o exposto, conclui-se que não há, em tese, qualquer incompatibilidade entre o sistema de realização de audiências on line e o ordenamento jurídico nacional que justifique sua condenação apriorística. A questão, no entanto, deve ser analisada com a devida cautela, buscando-se o aperfeiçoamento do sistema, não só no que se refere à qualidade técnica das imagens, como também propiciando-se maior facilidade a ser criada na comunicação entre advogados e réus, de forma a resguardar a sagrada plenitude do direito de defesa.

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É o parecer, sub censura. São Paulo, 28 de março de 2003 DORA MARIA DE OLIVEIRA RAMOS Procuradora do Estado

OAB/SP 78.260

[1] Art. 792. (...) § 2º. “As audiências, as sessões e os atos processuais, em caso de necessidade, poderão realizar-se na residência do juiz, ou em outra casa por ele especialmente designada.” [2] “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”[3] Art. 185. “O acusado, que for preso, ou comparecer, espontaneamente, ou em virtude de intimação, perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado.”[4] Art. 260. “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.”

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Processo: PGE nº 54/2003 Interessado: CASA CIVIL PARECER PA nº 57/2003 PARECER PA nº 80/2003 O interrogatório do réu procedido à distância e por via eletrônica é medida que macula ou não os princípios basilares do processo penal? Em apertada síntese, esta a questão que foi posta a exame neste processo. A matéria é de inegável polêmica, polêmica esta que atualmente avançou para além do campo estritamente jurídico para se transformar em discussão em que se envolveram todos os setores da sociedade. Atenta ao alcance e natureza da matéria em debate optou esta chefia por colher dois pareceres nesta Unidade.

As peças foram produzidas por dois dos mais destacados colegas que aqui atuam e trazem, sem sombra de dúvida, elementos de grande valia para futura fixação de diretriz pela i. chefia da Instituição. O Parecer PA nº 57/2003, subscrito pelo Dr. Eduardo Augusto Muylaert Antunes advoga a tese de que o interrogatório a distância viola o princípio do devido processo legal. Já o Parecer PA nº 80/2003, subscrito pela Dra. Dora Maria de Oliveira Ramos, sustenta que a

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inovadora medida não macula o “due process of law”. Entendo que nada mais poderia ser acrescentado ao debate, em um ou outro sentido, que já não estivesse escrito, com mais brilho e maior profundidade, pelos i. colegas que me antecederam no exame da tormentosa matéria. Sendo assim, cabe a esta chefia pedir a devida vênia para endossar integralmente os termos do Parecer PA nº 57/2003, oportunidade em que, ao me afastar da conclusão do Parecer PA nº 80/2003 registro minha pessoal homenagem à ilustre subscritora da peça da qual divirjo. Encaminhe-se o processo à consideração da Subprocuradora Geral do Estado – Consultoria. PA, em 11 de abril de 2003.

MARIA TERESA GHIRARDI MASCARENHAS NEVES Procuradora do Estado - Chefe da Procuradoria Administrativa

OAB n° 79.413

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Ref.: Proc. PGE no. 0054/2003 Interessado: Casa Civil Assunto: Implementação do sistema de vídeo-conferência para oitiva de presos.

1. Por determinação do Senhor Procurador Geral, vêm de ser exarados os pareceres PA no. 57/2003 (fls. 111/141), subscrito pelo Dr. Eduardo Augusto Muylaert Antunes, e 80/2003 (fls. 142/161), da lavra da Dra. Dora Maria de Oliveira Ramos. Tendo por objeto o assunto referido em epígrafe, as aludidas peças opinativas alcançaram, após extensa e rica fundamentação, conclusões contrapostas quanto à constitucionalidade e legalidade do chamado interrogatório “à distância”. Passo pois a me pronunciar sobre a matéria à luz dos estudos encetados pela Procuradoria Administrativa, registrando desde logo que o dissenso havido tanto na sobredita Unidade como noutros âmbitos da PGE espelha a complexidade e, sobretudo, a novidade do instrumento que se pretende implementar em nossa Justiça Criminal. 2. Do ângulo estritamente constitucional, estão em jogo as garantias referidas no item “33” do parecer PA 80/2003 (fls. 154/155): direito ao devido processo legal, ao contraditório e ampla defesa, à presunção de inocência, à assistência de advogado etc. A abordagem desta perspectiva exige, por seu turno, que se distingam dois níveis de análise: um primeiro, que se pode livremente denominar como teórico, apriorístico ou conceitual; e um segundo, que diz respeito ao caso concreto, à empiria. Sem prejuízo – insisto – dos abalizados pronunciamentos em sentido inverso,

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não vejo como se possa, a priori, descortinar a violação de alguma das garantias recém-elencadas. Com efeito, o interrogatório à distância não impede que o réu seja devidamente interrogado pela autoridade judiciária competente, de modo público, com a presença – mas sem intervenção alguma, como de rigor (CPP, art. 187) – de um ou mais advogados. No plano puramente conceitual, a vídeo-conferência não impede, assim, a formação do juízo eminentemente subjetivo aludido a fls. 130 (personalidade do acusado, sua sinceridade, estado de alma, malícia, frieza, perversidade, formação moral etc.). Pode-se mesmo sustentar que a gravação do interrogatório, resultado inevitável da vídeo-conferência, permite, a qualquer órgão jurisdicional, parte ou terceiro, análise muito mais detida e, na medida possível, objetiva da chamada linguagem corporal ou gestual do acusado. Ora, sabendo-se (i) que não vige no processo penal o princípio da identidade física do juiz e tendo-se em mente, mais, (ii) o juízo de revisão pelos tribunais, não é difícil sustentar, neste patamar teórico, que o interrogatório à distância pode representar maior garantia ao acusado, restringindo o subjetivismo – sempre mais infenso à impugnação – da autoridade judiciária responsável pela colheita das provas. Em suma, a contestação a priori da vídeo-conferência para o fim em exame ressente-se, no meu modo de ver, de marcado vezo especulativo. É o que se depreende, por exemplo, do excerto transcrito a fls. 136/137, onde ilustres advogados pretendem assegurar a seus leitores que a futura implantação do instrumento em exame implicará, “indiscutivelmente”, certos prejuízos ao réu. É evidente, por outro lado, que alguma das garantias constitucionais acima apontadas pode ser violada em certa causa penal em que se tenha empregado o interrogatório à distância. E o cerceamento de defesa pode, em tal caso, decorrer da utilização da vídeo-conferência ou, ao contrário, não ter relação

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alguma com esse instrumento. A rigor, não há ordenamento jurídico imune à violação da garantia da ampla defesa e contraditório, que ordinariamente assume a forma de error in procedendo. Não é outra, de resto, a constatação do parecer PA 57/2003 ao reconhecer que toda “a construção teórica, na verdade, nunca bastou para plena garantia do direito de defesa” (fls. 129). Tirante, pois, a hipótese invulgar de que determinado diploma legal restrinja, por si mesmo, o direito de defesa, convém reconhecer que a agressão de tal garantia há de ser identificada caso a caso, no plano empírico. Noutras palavras, cabe ao réu, quando, concretamente, vir cerceada sua defesa, proceder à impugnação cabível, não se devendo perder de vista o conhecido brocardo pas de nullité sans grief, operante tanto no processo civil como no penal (CPC, arts. 244 e 249; CPP, art. 563).

Isso posto, não vejo o cerceamento de defesa como resultado necessário do interrogatório à distância, razão pela qual tampouco este último se me afigura inconstitucional. 3. Do ponto de vista infraconstitucional, cuida-se de focalizar a compatibilidade entre o aludido instrumento e diversos dispositivos do CPP, assim como de tratados incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro. Sucede, com efeito, que o CPP, ao disciplinar o interrogatório do acusado, alude a seu comparecimento “perante a autoridade judiciária” (art. 185) ou então à condução coercitiva do réu à “presença” do juiz (art. 260). A condução do réu à “presença” do magistrado é também prevista pelos artigos 7º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Decreto no. 678/92) e 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (Decreto no. 592/92),

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transcritos a fls. 153. Cuida-se de normas vindas a lume nas décadas de 1940 e 1960, de sorte que não tinham em vista – seja para adotar, seja para arredar – opção tecnológica disponível apenas no último decênio. Anuncia-se com isso tormentoso debate, de desfecho imprevisível, em torno do alcance dos vocábulos “presença” e “perante” (se exigem partilha do mesmo espaço físico, se admitem comunicação virtual etc.), o que recomenda, a meu ver, a introdução de legislação federal disciplinando o assunto. Isto não implica e nem sequer sugere, obviamente, a ilegalidade presente do instrumento em foco (basta recordar outro exemplo de absorção de tecnologia na vida forense – o fax – , adotado em larga escala antes de que sobreviesse diploma legal prevendo-o expressamente – Lei Federal no. 9.800/99). O ponto fulcral, como bem assinalado a fls. 154, consiste em saber se a presença física do réu é inerente ao direito de defesa e contraditório. Com isto, todavia, retornamos ao tópico enfocado no item precedente, porquanto se trata de controle a ser exercido em cada caso concreto, não comportando, a meu juízo, abordagem a priori, necessariamente especulativa, acerca do prejuízo efetivamente experimentado pelo acusado. Finalmente, o aresto do STJ juntado a fls. 192/200 reporta-se elucidativamente aos artigos 502 e 792 do CPP, sublinhado que o primeiro faculta ao juiz a realização de novo interrogatório quando não houver presidido tal ato, ao passo que o segundo prevê a hipótese de que, “em caso de necessidade” (§ 2º), sejam os atos processuais realizados em local especialmente designado pela autoridade judiciária. Da conjugação desses dispositivos, inclinou-se a Corte Superior pela admissibilidade da vídeo-conferência “quando evidente o perigo à ordem pública e à segurança das pessoas encarregadas da administração da Justiça Penal, com a saída do réu

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da unidade prisional...” (fls. 198). Ora , parece ser precisamente esse o escopo visado pela Administração, dada inclusive a seletividade referida a fls. 103. Em suma, penso ser conveniente que o interrogatório à distância cinja-se, a princípio, à hipótese por último citada (ameaça à ordem pública e à incolumidade física), propondo-se ao mesmo tempo legislação federal que preveja seu emprego correntio. 4. Com essas ponderações, acolho o parecer PA no. 80/2003. Encaminhe-se à apreciação do Senhor Procurador Geral do Estado, com proposta de sua aprovação. Subg. Cons., em 27 de abril de 2003. Ana Maria Oliveira de Toledo RinaldiSubprocuradora Geral do EstadoÁrea da Consultoria

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PROCESSO: PGE N. 54/2003 INTERESSADO: CASA CIVIL DO GABINETE DO GOVERNARDOR

ASSUNTO: PROCESSO PENAL. CONSTITUCIONALIDADE. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. Exame da viabilidade jurídica da realização do interrogatório de presos mediante sistema de videoconferência.

Pelas razões resumidamente alinhavadas na consulta inicial, subscrita pelo Secretário-Chefe da Casa Civil, vem sendo desenvolvido um importante trabalho de cooperação entre algumas Secretarias de Estado (Casa Civil, Administração Penitenciária e Segurança Pública) e o Tribunal de Justiça de São Paulo, no sentido de se viabilizar a adoção de interrogatório de presos, em determinadas circunstâncias, pelo sistema de videoconferência. Superados inúmeros entraves técnicos e alcançado um nível adequado de confiabilidade, passou-se a algumas experiências concretas, conforme relatado nos autos.

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Reacendeu-se, então, polêmica que já se houvera iniciado anos antes, em face de experiências do gênero patrocinadas por magistrados isolados, acerca da constitucionalidade, da legalidade em sentido estrito e da conveniência de tal prática, com a diferença de que, presentemente, se cuida de uma iniciativa com feições institucionais mais amplas, envolvendo a cúpula dos Poderes Executivo e Judiciário do Estado. Daí a oportunidade da oitiva desta Procuradoria Geral do Estado sobre o tema, na qualidade de órgão incumbido das funções de consultoria e assessoria jurídica do Poder Executivo (art. 99, II, da CE). Na quadra particularmente conturbada que atravessa a sociedade brasileira, às voltas com os efeitos deletérios da criminalidade organizada e profissionalizada, em que a obtenção do justo equilíbrio entre os valores da liberdade/segurança individual, de um lado, e da segurança coletiva/ordem pública, de outro, se revela complexa e penosa, sendo buscada, ademais, em ambiente constantemente agitado pelas emoções decorrentes de fatos concretos, sobressaem de pronto as dificuldades da honrosa empreitada. Nesse contexto, há que se ressaltar a qualidade dos dois pareceres proferidos no âmbito da Procuradoria Administrativa sobre a consulta em pauta, cada qual chegando a uma conclusão diametralmente oposta, os quais apreciam de forma lúcida, equilibrada e extremamente técnica os argumentos em debate, dignificando a advocacia pública paulista e as tradições daquela unidade especializada. Está a se exigir, entretanto, uma tomada de posição do comando da instituição

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acerca da vexata quaestio, razão pela qual peço vênia para subscrever a concisa e precisa manifestação da Senhora Subprocuradora Geral da Área de Consultoria, aprovando o parecer PA-3 n° 80/2003, no sentido de inexistir “qualquer incompatibilidade entre o sistema de realização de audiências on line e o ordenamento jurídico nacional que justifique sua condenação apriorística”. Isso não significa, contudo, como bem salientado pela Senhora Subprocuradora Geral da Área de Consultoria, que , em casos concretos, não possa vir a ser identificada alguma nulidade decorrente da má ou deficiente utilização do assim denominado interrogatório on line. De outra parte, importa salientar que o posicionamento ora assentado se destina a orientar a atuação do Poder Executivo em relação ao assunto, sendo vinculante, no âmbito interno da Procuradoria Geral do Estado, no que toca à atividade consultiva. Os Procuradores que atuam na Área da Assistência Judiciária, todavia, estão desobrigados de acatar a diretriz, podendo, de acordo com sua convicção pessoal, suscitar a nulidade de interrogatórios realizados com o uso da videoconferência, quer porque vislumbrem nesse tipo de procedimento inconstitucionalidade ou ilegalidade em tese, quer porque identifiquem em concreto alguma anomalia no emprego da técnica. Deixo, nesse aspecto, de acolher a sugestão de fl. 31, que pretendia uma normatização vinculante para os Procuradores da Assistência Judiciária, ainda que orientada em sentido oposto àquele por mim referendado. No que toca à atuação dos Procures na instrução criminal, devo observar que não me parece aceitável a recusa, ainda que motivada, da participação em atos processuais on line, já que se trata, no mínimo, de matéria controversa, cabendo ao defensor público alegar as nulidades que entender ocorrentes, sem abandonar o

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réu à sua própria sorte. Aliás, nos termos das normas de regência, em situações da espécie, não restaria ao magistrado instrutor senão o acionamento do mecanismo de defensoria dativa consagrado no convênio PGE/OAB, que existe para suprir as deficiências nos quadros da Procuradoria e não para permitir ao Procurador autêntica deserção no desempenho de suas atribuições funcionais.