Perfil Do Pregador

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  • O PERFIL DO PREGADOR JOHN STOT Estudo de algumas palavras do Novo Testamento por John R. W. Stott Rector of All Souls Langham Place, Londres Segunda Edio - Maio de 1997 Ttulo original: "The Preacher's Portrait" 1961 Wm. B. Eerdmans Publishing Co. Coordenao Editorial Judith Ramos Lus Francisco de Viveiros Traduo Glauber Meyer Pinto Ribeiro Reviso Cida Paio Beth Fernandes Capa Ed Ren Kivitz Editorao Eletrnica Imprensa da F Impresso Grfica Editora Camargo Soares Todos os direitos reservados por: Editora Sepal Caixa Postal 7540 01064-970 - So Paulo - SP Fone: (011) 523.2544 Fax: (011) 523.2201 E-mail: [email protected]

  • Como ser a igreja do sculo XXI? Como responder s necessidades de um sociedade mais informada, economicamente menos pobre e espiritualmente mais ctica e vazia? O que os pregadores, obreiros, missionrios e pregadores do evagenlho devero fazer para comunicar a Palava de Deus de forma eficaz no novo sculo?

    O Perfil do Pregador um texto indispensvel para voc que pensa sobre estas questes e busca direo de Deus para o futuro.

    Sentimo-nos honrados em poder trazer ao pblico brasileiro um clssico da literatura evanglica sobre liderana espirutual. Em o Perfil do Pregador, John Stott utiliza mais do que sua sabedoria, experincia e praticidade; el coloca corao e alma ao descrever o perfil do homem de Deus capaz de levar muitos ao sublime conhecimento de Jesus Cristo.

    Boa leitura! Osvaldo Paio Jr.

    Editor

  • SUMRIO

    Apresentao da edio em Portugus

    Apresentao da edio em Ingls

    Prefcio

    I. Despenseiro - A mensagem e autoridade do pregador II. Arauto - A proclamao e aplo do pregador III. Testemunha - A experincia e humildade do pregador IV. Pai - O amor e carinho do pregador V. Servo - O poder e motivao do pregador

  • O Perfil do Pregador

    APRESENTAO DA EDIO EM PORTUGUS

    O presente livro o primeiro da "Srie SETE - Reflexo e Teologia Pastoral", que a Editora Sepal e a Sociedade dos Estudantes de Teologia Evanglica colocam no meio evanglico, a fim de contribuir com a reflexo na rea teolgico-pastoral.

    No que diz respeito edificao do povo de Deus, estamos conscientes da importncia da Pregao da Palavra, bem como da pessoa do pregador. Este livro focaliza o pregador, no sendo portanto, mais um sobre tcnicas de preparar sermes ou de uma melhor apresentao ds mesmos. Trata porm, do fator vital e essencial pregao: o pregador.

    O Rev. John R. W. Stott j se tornou to conhecido em nosso meio que praticamente no se faz necessrio apresent-lo. Entre suas vrias obras j em portugus, algumas so bem conhecidas como: "A Mensagem de Efsios" e "Contracultura Crist", as quais nos indicam o nvel de contribuio que tm a receber os leitores de mais esta obra do Dr. Stott.

    para ns uma honra bastante grande dar incio a esta Srie com "O Perfil do Pregador", sabedores que somos de quo beneficiados sero os pregadores da Palavra aqui no Brasil.

    Pr. Wilson Costa dos Santos

    Diretor Nacional da SETE

  • OS CONGRESSOS PAYTON (Payton Lectures)

    Este livro contm as palestras proferidas no nono Congresso Payton pelo Reverendo John R. W. Stott, entre 10 e 14 de abril de 1961, no Fuller Theological Seminary, em Passadena, Califrnia, adaptadas para a forma escrita e ampliadas pelo autor.

    Estes congressos foram institudos em memria do Dr. John E. Payton e sua esposa, sogros de Charles E. Fuller, fundador deste seminrio. Em seu testamento, deixou recursos para uma srie de congressos anuais com palestras por um estudioso competente. Estas palestras devem enquadrar-se em pelo menos uma destas trs reas: unicidade ou confirmao da f crist histrica, refutao de idias anti-crists ou sub-crists, ou formulao de doutrinas bblicas.

  • PREFCIO

    Meu objetivo neste livro no dar "tcnicas" de pregao, aquilo que o falecido Dr. W. E. Sangster, do Westminster College Hall, chamava "O Artesanato do Sermo", como mont-lo e ilustr-lo; nem abordar os "problemas da comunicao". No h dvida que precisamos aprender os mtodos de pregao, e que a comunicao um assunto de importncia vital em nossos dias, quando o abismo entre a igreja e o mundo secular j to grande que restam poucas pontes pelas quais estes dois mundos possam entrar em contato.

    Desejo declarar que meu objetivo refere-se a coisas mais bsicas ainda. Proponho que ns precisamos estudar novamente algumas das palavras que o Novo Testamento usa para descrever o pregador e a tarefa que lhe cabe. Creio que ns precisamos adquirir na igreja hoje uma viso mais clara do ideal divino revelado para o pregador, o que ele e como ele deve trabalhar. Estarei, assim, estudando sua mensagem e sua autoridade, o carter da proclamao que ele chamado a fazer, a necessidade vital de sua experincia pessoal do Evangelho, a natureza da sua motivao, a fonte da sua autoridade, e as qualidades morais que devem caracteriz-lo, especialmente sua humildade, mansido e amor. Este , na minha opinio, o retrato do pregador, um retrato desenhado pela mo de Deus na tela do Novo Testamento.

    com hesitao que escrevo sobre este assunto. No quero passar por especialista; estou longe disto. Estou s comeando a aprender os rudimentos da pregao. Mas como Deus em sua graa me chamou para ministrar a

  • Palavra, tenho um profundo desejo de moldar meu ministrio segundo o padro perfeito que Ele nos deu nesta Palavra.

    J. R. W. S.

  • CAPTULO I

    Despenseiro A mensagem e autoridade do pregador

    A primeira questo importante que preocupa o pregador : "Que irei dizer, e onde obterei minha mensagem?". Algumas respostas erradas foram propostas para esta questo fundamental da origem e contedo da mensagem do pregador, e necessrio comear com estas, negativamente. No um profeta

    Em primeiro lugar, o pregador cristo no um profeta. Ou seja, ele no recebe sua mensagem de Deus como revelao original e direta. E verdade que algumas pessoas usam a palavra "profeta" de maneira imprecisa hoje em dia. No raro ouvir um homem que prega com intensidade ser descrito como algum que tem "fogo proftico"; e do pregador que sabe discernir os sinais dos tempos, que v a mo de Deus nos fatos do dia e procura interpretar o significado das tendncias sociais e polticas, diz-se s vezes que profeta ou tem intuio de profeta. Mas eu estou sugerindo que este tipo de uso do ttulo "profeta" imprprio.

    Mas o que um profeta? Para o Antigo Testamento, era o instrumento pelo qual Deus falava diretamente. Quando Deus escolheu Aro para dizer as palavras de

  • Moiss a Fara, esta situao foi explicada da seguinte maneira: "V que te constitu como Deus sobre Fara, e Aro, teu irmo, ser teu profeta" (Ex 7.1-2). "Tu lhe falars e lhe pors na boca as palavras; eu serei com a tua boca e com a dele, e vos ensinarei o que deveis fazer. Ele falar por ti ao povo; ele te ser por boca, e tu lhe sers por Deus" (Ex 4.10-17). Isto mostra claramente que o profeta era a "boca" de Deus, atravs da qual Deus falava diretamente aos homens as suas palavras. Assim tambm, Deus fala de um profeta semelhante a Moiss, que iria surgir, "em cuja boca porei as minhas palavras, e ele lhes falar tudo o que eu lhes ordenar. (...) [Ele falar] em meu nome" (Dt 18.18-19). O profeta no falava suas prprias palavras, nem falava em seu prprio nome, mas falava as palavras de Deus, em nome de Deus. Esta convico de que Deus falou com eles e revelou-lhes seus segredos (Am 3.7-8) explica as conhecidas frmulas de introduo do discurso proftico ("veio a mim a palavra do Senhor..."; "assim diz o Senhor:..."; "ouvi a palavra do Senhor..."; "a boca do Senhor o disse..."; etc.).

    A caracterstica essencial do profeta no era prever o futuro nem interpretar a atividade presente de Deus, mas falar as palavras de Deus. Como Pedro explicou, "nunca jamais qualquer profecia [ou seja, profecia verdadeira, em oposio s mentiras dos falsos profetas que ele descreva a seguir] foi dada por vontade humana, entretanto homens falaram da parte de Deus movidos pelo Esprito Santo" (2 Pe 1.21).

    Portanto, o pregador cristo no um profeta. Ele no recebe qualquer revelao original; sua tarefa expor a revelao que j foi definitivamente dada. E muito embora pregue no poder do Esprito Santo, ele no "inspirado" pelo Esprito no sentido em que os profetas o

  • foram. Certo, "se algum fala", deve falar "de acordo com os orculos de Deus", ou "como se pronunciasse palavras de Deus"(1 Pe 4.11). Mas isto no porque ele tenha recebido algum orculo divino especial, mas porque um despenseiro (1 Pe 4.10), como veremos depois, a quem foram confiadas as Escrituras Sagradas, que so os "orculos de Deus" (Rm 3.2). A ltima vez na Bblia em que aparece a expresso "veio a Palavra de Deus", com relao a Joo Batista (Lc 3.2). Ele foi um verdadeiro profeta. Tambm havia profetas na poca do Novo Testamento, como Agabo (At 21.10), e a profecia mencionada como dom espiritual (Rm 12.6; 1 Co 12.10,29; Ef 4.11), mas este dom no mais concedido a pessoas na igreja. Agora que a Palavra de Deus escrita est disposio de todos ns, a Palavra de Deus no discurso proftico no mais necessria. A Palavra de Deus no vem mais aos homens hoje. Ela j veio para todos os homens; agora os homens que precisam ir at ela. No um apstolo

    Em segundo lugar, o pregador cristo no apstolo. Claro, a Igreja "apostlica", por ter sido fundada sobre a doutrina dos apstolos e por ter sido enviada ao mundo para pregar o evangelho. Mas os missionrios plantadores de igrejas no deveriam propriamente ser chamados "apstolos". incorreto falar de "Hudson Taylor, apstolo da China", ou "Judson, apstolo de Burma" como se estivesse falando de "Paulo, apstolo dos gentios". Os estudos mais recentes confirmam o carter nico dos apstolos. Karl Heinrich Rengstorf, em seu artigo sobre apostolado no famoso Vocabulrio Teolgico de Gerhard Kittel (Karl Heinrich Rengstorf, Theologisches Wortebuch

  • zum Neuen Testament (1932/3), verbete "Apostleship", traduzido por J. R. Coates (Londres: A. & C. Black, 1952).) , defende que os apstolos de Jesus equivaliam aos Shaliachim (pronncia "chaliarrm") judacos, mensageiros especiais que eram enviados aos judeus da disperso de tal maneira que, diziam eles, " como se o enviado fosse a prpria pessoa que o envia". Segundo Rengstorf, "(...) enquanto os outros verbos transmitem simplesmente a idia de envio, apostellein possui os aspectos de um propsito, misso (ou comisso), autoridade e responsabilidade especiais". Apstolos - diz ele - " sempre a descrio de algum enviado como embaixador, e um embaixador investido de autoridade. A palavra grega apstolos simplesmente a forma pela qual se transmite o contedo e a idia que temos no shaliach do judaismo rabnico" (shaliachim - forma plural; shaliach -forma singular) .

    Norval Geldenhuys, em seu valioso livro "Autoridade Suprema", leva o artigo de Rengstorf concluso lgica. O apstolo do Novo Testamento "algum escolhido e enviado por comisso especial como representante plenamente autorizado de quem o enviou" (4. Norval Geldenhuys, Supreme Authority (Grand Rapids: Eerdmans, 1953), pp. 53-54.) - Quando Jesus nomeou "apstolo" seus doze discpulos escolhidos, indicou que eles seriam "seus delegados, que ele enviaria comissionados a ensinar e agir em Seu Nome e autoridade". Ele lhes concedeu uma autoridade especial (Ex.: Lc 9.1-2,10) que eles mais tarde afirmaram e exerceram. Paulo se considerava apstolo tambm, tanto quanto os doze, por indicao direta de Jesus ressurreto. "A nica base para o apostolado era a comisso pessoal", qual devemos acrescentar um encontro com Jesus aps a ressurreio. Geldenhuys

  • conclui: "Nunca mais haver ou poder haver pessoas que possuam todas estas qualificaes para serem shaliachim de Jesus". Mesmo Rengstorf, que diz que "no sabemos quantos apstolos havia no princpio, mas deveriam ser bem numerosos", acrescenta que o apostolado "limitou-se primeira gerao, no se tornando um cargo eclesistico". E que "todo apstolo discpulo, mas nem todo discpulo apstolo". Geldenhuys cita o artigo de Alfred Plummer sobre "Apstolo" no Dicionrio da Igreja Apostlica", de Hastings: " impossvel qualquer tipo de transmisso de um cargo to excepcional".

    Estas evidncias sugerem que h um paralelismo estreito entre os profetas do Antigo Testamento e os apstolos do Novo, e Rengstorf chama ateno para isto: "A ligao existente entre a conscincia do apostolado com a do ministrio proftico(...) enfatiza de forma absoluta o fato dele pregar estritamente o que revelado, guardando-se de qualquer tipo de alterao que pudesse ser provocada por sua natureza humana". "Como os profetas, Paulo servo de sua mensagem.". "O paralelo entre apstolos e profetas justificado porque ambos so transmissores da revelao".

    Assim, da mesma forma que a palavra "profeta" deve ser reservada para aquelas pessoas no Antigo e Novo Testamentos a quem a palavra de Deus veio diretamente, quer sua mensagem tenha chegado at ns ou no, a caracterizao de algum como "apstolo" deve ser reservada para os Doze e Paulo, que foram especialmente comissionados e investidos com autoridade por Jesus como seus shaliachim. Estes homens eram nicos. No deixaram sucessores. No um falso profeta ou falso apstolo

  • Em terceiro lugar, o pregador cristo no (nem deve ser) um falso profeta ou um falso apstolo.(A expresso "falso apstolo" ocorre apenas em 2 Co 11.13, mas C Ap 2.2. "Paulo indica com esta expresso algum

    que se apresenta como apstolo de Cristo, sem a sua autorizao' - Rengstorf, op. cit., p.67).) Ambos aparecem na Bblia, e a diferena entre o verdadeiro e o esprio claramente definida em Jeremias 23. O verdadeiro profeta algum que "esteve no conselho do Senhor, e viu e ouviu a sua palavra" (vv. 18,22). J os falsos profetas "falam as vises do seu corao, no o que vem da boca do Senhor" (v.16). Eles "proclamam s o engano do seu prprio corao" (v.26). Proclamam mentiras em nome de Deus (v.25). O contraste aparece vivamente no v.28: "o profeta que tem sonho conte-o como apenas sonho; mas aquele em quem est a minha palavra, fale a minha palavra com verdade. Que tem a palha com o trigo? diz o Senhor". A opo entre ouvir "cada um a sua prpria palavra" ou "ouvir as palavras do Deus vivo" (v.36).

    Embora no existam mais hoje, estritamente falando, profetas ou apstolos, temo que haja falsos profetas e falsos apstolos. Gente que fala as suas prprias palavras e no a Palavra de Deus. Sua mensagem vem de suas prprias mentes. Gente que gosta de ventilar suas opinies sobre religio, tica, teologia e poltica. Eles podem at seguir a tradio de introduzir seus sermes com um texto bblico, mas o texto tem pouca ou nenhuma relao com a mensagem que se segue, e no h nenhuma tentativa de interpretar o texto dentro de seu contexto prprio. Alm disto, com muita freqncia estes prega-dores, como os falsos profetas do Antigo Testamento, usam palavras macias, "dizendo: Paz, paz; quando no h paz" (Jr 6.14, 8.11, cf. 23.17). E nem tocam nos pontos menos

  • "agradveis" do evangelho, para no ofender o gosto dos ouvintes (Jr 5.30-31). No um tagarela

    Em quarto lugar, o pregador cristo no um "tagarela". Esta foi a palavra usada pelos filsofos atenienses no Arepago para descrever Paulo. "Que quer dizer este tagarela?" - perguntavam entre si com escrnio (At 17.18). A palavra grega spermologos, um "catador de sementes". Era usada no sentido literal para descrever pssaros comedores de sementes, e especialmente por Aristfanes e Aristteles (creio eu) para a gralha. Metaforicamente, esta palavra passou a ser aplicada a mendigos e moleques de rua (Liddel & Scott, A Greek-English Lexicon, ed. revisa da (Oxfotd: Clarendon Press, 1935-40).), "pessoa que vive de recolher sobras, apanhador de lixo" (W. F. Arndt e F. W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and other early Christian Literature (Cambridge: Cambridge University Press, 1957).). Da, passou a indicar o tagarela ou fofoqueiro, "pessoa que recolhe fragmentos de informao aqui e acol" (F. W. Gingrich & F. W. Danker, Lxico do Novo Testamento Grego/ Portugus (So Paulo: Edies Vida Nova, 1984).) . O "tagarela" repassa idias como mercadoria de segunda mo, colhendo fragmentos e detalhes onde os encontra. Seus sermes so uma verdadeira colcha de retalhos.

    bom dizer que no h nada de errado em citar, no sermo, as palavras ou escritos de outra pessoa. O pregador sbio coleciona mesmo citaes memorveis e exclarecedoras que, usadas com juzo e honestidade, citando a fonte, so capazes de dar luz, importncia e fora

  • ao assunto em questo. Se o leitor me permite praticar imediatamente o que estou ensinando, e fazer uma citao (embora no possa dar a fonte, pois no sei quem foi o primeiro a fazer este jogo de palavras): "Copiar de uma pessoa chama-se plgio, copiar de mil chama-se pesquisa"!

    Mas citao cuidadosa no necessariamente "tagarelice". A caracterstica essencial do tagarela que ele no capaz de pensar por si. Sua opinio neste momento certamente a da ltima pessoa que ele ouviu. Ele depende das idias dos outros, sem peneir-las nem pes-las, e nem apropriar-se delas para si. Como os falsos profetas fustigados por Jeremias, ele usa apenas a "lngua", e no a mente ou o corao, e culpado de "furtar" a mensagem de outras pessoas (Jr 23.30,31). Um despenseiro

    O que , ento, o pregador? Ele um despenseiro. "Importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistrios de Deus" (1 Co 4.1, 2). O despenseiro o empregado de confiana que zela pela correta utilizao dos bens de outra pessoa. Assim, o pregador um despenseiro dos mistrios de Deus, ou seja, da auto-revelao que Deus confiou aos homens e preservada nas Escrituras. Portanto, mensagem do pregador cristo no vem diretamente da boca de Deus - como se ele fosse profeta ou apstolo - nem de sua prpria cabea - como os falsos profetas - nem das bocas e mentes de outras pessoas, sem reflexo - como o tagarela - mas da Palavra de Deus, uma vez revelada e para sempre registrada, da qual ele tem a honra de ser despenseiro.

    O conceito de despenseiro ou mordomo domstico era mais familiar no mundo antigo do que no moderno.

  • Hoje em dia, a palavra "mordomia" provoca nos cristos associaes com campanhas para levantar dinheiro para a igreja. E "mordomo" para ns um personagem restrito s grandes manses e aos contos policiais. Mas nos tempos bblicos, todo homem bem-sucedido tinha um mordomo que controlava seus negcios domsticos, suas terras, suas plantaes, seu dinheiro e seus escravos. Encontramos este personagem diversas vezes no Antigo Testamento (Cf Gn 15.2. Pode ter sido este mesmo Elizer que recebeu a tarefa de conseguir uma esposa para Isaque (Gn 24).). No h uma palavra hebraica especfica para design-lo, mas a funo que ele exercia pode ser reconhecida atravs de vrias palavras; especialmente entre a nobreza e as cortes reais de Jud, Egito e Babilnia. Jos tinha um mordomo no Egito. O "despenseiro de sua casa" cuidava dos hspedes de Jos, providenciando gua para lavar seus ps e forragem para os animais, e supervisionando o preparo das refeies. Aparentemente, ele tambm era o intermedirio junto s pessoas que compravam alimentos de Jos. Ele tinha escravos a seu servio (Gn 43.16-25; 44.1-13). Os reis de Jud tambm tinham mordomos encarregados da casa real (Davi tinha oficiais descritos em 1 Cr 28.1 como "os administradores de toda fazenda e possesses do rei e de seus filhos". Um dos "homens principais" de Salomo era "Aisar, o mordomo" (1 Rs 4.6).). No reinado de Ezequias, o mordomo era Sebn (Is 22.15). Ele parece ter sido homem ambicioso, que enriqueceu-se e adquiriu "carros de glria" ("carruagens gloriosas"), talvez custas do dinheiro de seu patro. Mas Deus diz a Sebna que ele ser deposto e substitudo por Eliaquim, filho de Hilquias: "Vesti- lo-ei da sua tnica, cing-lo-ei com a tua faixa, e lhe entregarei nas mos o teu poder, e ele ser como pai para os moradores de Jerusalm e para a casa de Jud. Porei

  • sobre o seu ombro a chave da casa de Davi" (Is 22.21,22). Fica evidente nesta passagem que o despenseiro era homem de autoridade na casa em que servia, que exercia superviso maternal sobre as pessoas da casa, e que o smbolo de seu cargo era uma chave (sem dvida, a da despensa).

    Na crte babilnica do rei Nanucodonozor, o chefe dos eunucos colocou Daniel e seus trs companheiros sob o cuidado do "Melzar". Esta palavra provavelmente o nome de um cargo, no de uma pessoa. A Edio Revista e Atualizada da Bblia em portugus traduz aqui "cozinheiro-chefe", e a Bblia de Jerusalm, "despenseiro". Este homem tinha o dever de treinar os servidores da crte, dando-lhes tambm as raes dirias de comida. E ele tinha autoridade para decidir se servia as "finas iguarias do rei" ou os legumes pedidos por Daniel (Dn 1.8-16).

    H exemplos paralelos no Novo Testamento. Herodes Antipas tinha um mordomo (ou "procurador"), cuja esposa era discpula de Jesus, "prestando-lhe assistncia com os seus bens" (Lc 8.3). E no cenrio de diversas parbolas de nosso Senhor aparece um mordomo em posio de responsabilidade. Na parbola dos trabalhadores na vinha, o mordomo ("administrador") recebe a ordem de pagar o salrio dos trabalhadores (Mt 20.8). E o mordomo ("administrador") infiel foi acusado de "defraudar os bens" de seu rico patro. Evidentemente, ele era algum investido de grande responsabilidade, administrando as provises e pagando as contas, pois foi capaz de falsificar a contabilidade e reduzir as dvidas dos clientes de seu patro, impunemente, ao que parece (Lc 16.1-9).

    A esta altura, estamos em condies de reconstruir o ambiente de uma casa de famlia rica nos tempos bblicos. Faremos isto analisando as palavras relacionadas com o

  • verbo oiko, habitar. H cinco palavras importantes. Primeiramente, oika ou ikos, a casa propriamente dita (Estritamente, oika era a casa como um todo, e ikos, um quarto, uma moradia dentro da casa, mas ambas as palavras eram usadas para descrever uma casa ou edifcio em, que pessoas moravam.). Em Segundo lugar, oikiioi, os habitantes da casa. O nico uso secular desta palavra no Novo Testamento 1 Timteo 5.8, onde o apstolo diz que "se algum no tem cuidado dos seus, e especialmente dos de sua prpria casa (oikiion)" ele " pior do que o descrente" (A palavra oikiaks aparece apenas em Mt 10.25, 36. E tanto ikos quanto oika tambm eram usadas para as pessoas residentes na casa, no apenas para o edifcio em si (ex.: ikos em At 7.10, 10.2, e oika em Jo 4.53 e Fp 4.22).). Em terceiro lugar, oikodesptes, o dono da casa, o lder da famlia (ex.: Mc. 14.14) (Em Mt 10.25, o dono da casa claramente distinto do restante da famlia, os "domsticos".). Ele governa ou controla a famlia, e o verbo correspondente (oikodespoto) aparece em 1 Tm 5.14. Em quarto lugar, h o oiktes, o servial da casa. Doulos (pronuncia-se dlos) era o termo normal para um escravo, mas oiktes descrevia particularmente o servo que trabalhava na casa. Em latim o equivalente domesticus, termo que originalmente incluia todos os que viviam sob o mesmo teto, no mesmo domus, mas posteriormente passou a ter o sentido de servo, ou, como ns dizemos, "domstico" (Oiktes aparece quatro vezes no NT (Lc 16.13, At 10. 7; Rm 14.14 e Pe 2.18). Cf. oiketia em Mt 24.45, como substantivo coletivo para os servos ou empregados").

    Por fim, temos oikonmos, o despenseiro ou mordomo, cujo cargo chama-se oikonoma: mordomia (Os substantivos oikonmos, mordomo, e oikonoma,

  • mordomia, aparecem, junto com o verbo oikonomin, agir como mordomo, na parbola do mordomo infiel - Lc 16.1-9. Posteriormente este verbo grego assumiu um significado bem geral, de "cuidar das coisas" - Moulton & Milligan, The Vocabulary of the Greek Testament, p. 443 - Grand Rapids: Eerdmans -, fazer qualquer transao comercial, administrar ou dirigir qualquer negcio.). Estas palavras vm de ikos, casa, e nmo, administrar ou dirigir, e delas, claro, vm diversas palavras nossas, como economia, economista e economizar. A definio de oikonmos no livro de Grimrn & Thayer, merece citao: "o dirigente de uma casa, ou dos negcios de uma casa; especialmente um mordomo, despenseiro ou administrador(...) a quem o dono da casa ou o proprietrio confiou a direo de seus negcios, seus gastos e receitas, e o dever de cuidar de cada um de seus servos, e at dos filhos menores de idade" (A Greek English Lexicon of the New Testament, 2a. edio revista (Edinburgo" T. & T. Clarck, 1982), pp. 440-441.). Fosse ele homem livre ou escravo, ocupava uma posio de responsabilidade entre o dono da casa e os negcios da casa (O mordomo infiel de Lc 16.1-9 era aparentemente homem livre. Os mordomos de Mt 24.45 e Lc 12. 42-43 so claramente identificados como escravos.). Esta palavra usada at mesmo para Erasto (Rm 16.23), que era aparentemente "tesoureiro" da cidade de Corinto. Em Glatas 4.2, diz-se que a criana est sob epitrpi e oikonmoi; os primeiros, seus guardies legais e professores, enquanto que os segundos tomam conta de suas propriedades at que ele atinja a maturidade.

    Juntas, estas cinco palavras descrevem o ambiente social de uma famlia rica. A oika (casa) era habitada pelos oikioi, compostos dos familiares mais os escravos. O lder da casa era o oikodesptes (dono de casa), que tinha s

  • suas ordens alguns oiktal (escravos domsticos) e um oikonmos (despenseiro ou mordomo) para supervision-los, cuidar da alimentao de todas estas pessoas, administrar os negcios e finanas da casa e as terras.

    No d se surpreender que os antigos cristos tenham visto nesta estrutura social um retrato da Igreja Crist. O nome especial que eles aplicavam a Deus era "Pai", e como um pai normalmente era o dono de casa, era natural pensar na igreja como "casa" ou "famlia" de Deus. Mas isto no se aplica em todos os detalhes, e o Novo Testamento no usa esta figura de modo consistente. Embora Deus seja sempre o pai, a igreja ora a casa em que ele habita (O tabernculo era ikos de Deus (Mc 2.26). O templo tambm (Mc 11.17). Mas a igreja agora o seu templo (1 Co 3.16, 19; Ef 2,21-22), cf Hb10.21.), ora a sua famlia, a "famlia da f" (ikos em 1 Tm 3.15, 1 Pe 4.17 (cf. Hb 3.2-6), e oikios em Gl 6.10, Ef 2.19.), ora os servos domsticos, responsveis pelo trabalho que lhe devem (Rm 14.4).

    Todos os cristos so tambm despenseiros de Deus, que administraram seus "bens", no para proveito pessoal, mas em benefcio da famlia toda. A parbola dos talentos e a das minas ilustram a responsabilidade crist de aperfeioar-se no uso dos dons e oportunidades que Cristo concedeu (Mt 25. 14-30, Lc 19. 19-28). O despenseiro no deve esconder e nem desperdiar os bens que seu mestre lhe confiou. Ele deve administrar sua distribuio aos membros da famlia. Ns, cristos, somos todos "despenseiros da multiforme [literalmente, variada, multicoloridal graa de Deus" (1 Pe 1.10), e "cada um" deve usar seus dons para "servir uns aos outros". Ele d em seguida dois exemplos: falar e servir, e especialmente o primeiro exemplo que nos interessa aqui.

  • O ministrio cristo uma santa mordomia. Paulo descreve o presbtero/bispo como "despenseiro de Deus" (Tt 1.7). Paulo considerava a si prprio e a Apolo como "despenseiros dos mistrios de Deus" (1 Co 4.1) e, embora Paulo tenha sido encarregado da dispensao de um "mistrio" especial revelado pessoalmente a ele (Ef 3.1-3, 7-9), esta designao no apenas para os apstolos, pois aplica-se a Apolo tambm, e Apolo no era apstolo como Paulo. "Despenseiro" um ttulo que descreve todo aquele que tem o privilgio de pregar a Palavra de Deus, especialmente no ministrio pastoral. Como veremos no captulo 5, os corntios estavam valorizando exagerada-mente seus, lderes. Paulo repreende-os por este super- personalismo. " assim que os homens devem nos tratar - diz ele - "somos apenas empregados subalternos de Cristo, administradores de bens alheios". esta posio subordinada que ns ocupamos. Os "bens" que o pregador cristo administra so chamados "mistrios de Deus". Mystrion no Novo Testamento no um enigma, alguma coisa obscura, mas sim uma verdade revelada, que s pode ser conhecida porque Deus a exps, que estava oculta mas agora foi revelada, e na qual pessoas so iniciadas por Deus . Assim, os "mistrios de Deus" so os "segredos pblicos" de Deus, a soma total de sua autorevelao contida nas Escrituras (Cf. o uso que Cristo faz da palavra, em relao ao Reino de Deus (Mt 13.2).). Destes "mistrios" revelados, o pregador cristo despenseiro, encarregado de torn-los ainda mais conhecidos pela famlia.

    Desta excelente metfora do despenseiro, o pregador cristo pode aprender quatro lies importantes, que so diferentes aspectos da "fidelidade" que se exige dele.

  • O incentivo do pregador e sua mensagem

    O primeiro destes fatos est relacionado fonte de incentivo do pregador. O trabalho de pregar duro. O pregador freqentemente tentado a perder o nimo. Ele precisa de incentivos fortes para sua alma vacilante, e no h dvida que poder encontr-los aqui. Paulo encontrou. Ele foi um despenseiro dos mistrios de Deus, a quem foram confiados os "segredos de Deus" (1 Co 4.1, Bblia Viva). O evangelho era uma santa responsabilidade a ele confiada, e ele freqentemente escreve sobre isto em suas epstolas (Ex.: 1 Ts 2.4 e as referncias, nas epstolas a Timteo, ao seu "depsito".). Esta responsabilidade pesava sobre ele. " a responsabilidade de despenseiro que me est confiada", disse ele, usando novamente a palavra oikonoma (1 Co 9.7). E tambm: "sobre mim pesa esta obrigao, porque ai de mim se no pregar o evangelho", e "sou devedor" a todas as pessoas (1 Co 9.16, Rm 1.14). "O que se requer dos despenseiros", ele escreveu, " que cada um deles seja encontrado fiel", digno de confiana. O dono da casa depende dele. Os membros da famlia esperam dele as suas provises. O despenseiro no pode falhar.

    Em segundo lugar, a metfora do despenseiro indica o contedo da mensagem do pregador. Realmente, se h uma coisa que podemos aprender com esta metfora, que o pregador no providencia de si mesmo a mensagem: ele a recebe. Como o despenseiro no alimenta a famlia de seu senhor do seu prprio bolso, o pregador tambm no precisa providenciar a mensagem por sua habilidade prpria. Muitas metforas do Novo Testamento indicam esta mesma verdade, que a tarefa do pregador proclamar uma mensagem que no dele mesmo. O pregador um semeador, e "a semente a Palavra de Deus" (Lc 8.11). Ele

  • um arauto, que recebe ordens quanto a que boas novas deve proclamar. Ele est participando da construo de um edifcio, do qual tanto os fundamentos quanto o material necessrio j foram providenciados (ex.: 1 Co 3.10-15) (Segundo o v. 11, o fundamento j foi colocado tambm). Assim, ele mordomo dos bens que lhes so confiados pelo dono da casa.

    Este o segundo tipo de fidelidade que se requer do despenseiro, a saber: fidelidade aos bens que ele administra. Ele precisa proteg-los e distribu-los de forma diligente aos membros da famlia. O apstolo, escrevendo para Timteo, d grande nfase sua responsabilidade de "guardar o depsito". A preciosidade do evangelho foi confiada ao seu cuidado. Um "bom depsito". Seu dever ficar de guarda, como a sentinela de uma cidade, ou o carcereiro na masmorra (1 Tm 1.11, 6.20, 2 Tm 1.12, 14) (Em 1 Tm 1.14, as especulaes humanas so contrastadas com o "servio", ou mordomia, de Deus.). 0 bom mordomo no "adultera a Palavra de Deus" (1 Co 4.2), nem "mercadeja" com ela (1 Co 2.17). Nossa tarefa a "mani-festao da verdade" (2 Co 4.2; cf. At 4.29, 31; Fp 1.14; 2 Tm 4.2; Hb 13.7). Dentro de seus limites, esta uma boa definio de pregao. A pregao uma "manifestao", fanersis da verdade registrada nas Escrituras. Por isto, todo sermo deveria ser, de algum modo, expositivo. O pregador pode usar ilustraes da rea poltica, tica e social para tornar mais fortes e atraentes os princpios bblicos que ele est desenvolvendo, mas o plpito no lugar para o comentrio poltico, exortao tica ou debate de temas sociais por si. Nosso dever pregar a "Palavra de Deus" (Cl 1.25); nada mais do que isto.

    Alm disto, somos chamados a pregar a Palavra de Deus em toda a sua abrangncia. Esta era a ambio do

  • apstolo Paulo. Ele reconhecia que sua misso de despenseiro consistia em fazer a Palavra de Deus plenamente conhecida, isto , preg-la de forma integral e completa. Ele pde, realmente, dizer na presena dos ancios da igreja de Efeso: "jamais deixei de vos anunciar todo o desgnio de Deus" (At 20.27). Poucos pregadores podem fazer uma afirmao destas! Costumamos escolher a dedo passagens da Escritura, ficando com nossas doutrinas favoritas e deixando de lado aquelas, de que no gostamos, ou que so difceis para ns. E nos tornamos culpados de sonegar algumas das provises que o divino Pai, em sua riqueza e sabedoria, destinou sua famlia. Alguns no apenas tiram, mas tambm acrescentam coisas Escritura, enquanto outros ousam contradizer o que est escrito na Palavra de Deus.

    Vou usar uma ilustrao bem domstica: aqui na Inglaterra, o desjejum predileto da maioria da populao ovos com bacon. Vamos supor que um certo pai de famlia britnico confiou uma proviso de ovos e de bacon a seu mordomo, para ser distribuda quela famlia como caf da manh em quatro dias consecutivos. Na segunda feira, o mordomo jogou fora a poro de ovos e bacon, e serviu peixe frito. Isto uma contradio, e deixou seu patro irado. Na tera feira, serviu os ovos sem o bacon. Isto subtrao, e o patro ficou irado novamente. Na quarta feira, ele serviu bacon, ovos e salsichas. Isto adio, e mais uma vez deixou seu patro irado. Mas finalmente, na quinta feira, ele serviu os ovos com bacon - nada mais, nada menos - e seu patro ficou ento satisfeito.

    A famlia de Deus precisa urgentemente de despenseiros fiis que distribuam sistematicamente toda a Palavra de Deus; no apenas o Novo Testamento, mas o Antigo tambm; no apenas as passagens mais conhecidas,

  • as menos conhecidas tambm; no apenas os textos que apoiam as doutrinas favoritas do pregador, os que no as apoiam tambm. Precisamos hoje de mais homens do calibre de um Charles Simeon, de Cambridge, que escreveu em seu prefcio s Horae Homileticae: "Este autor no tem simpatia pelos telogos sistematizantes. Ele esforou-se por aprender suas idias religiosas das Escrituras somente, e a elas deseja ater-se com escrupulosa fidelidade; nunca torcendo poro alguma da Palavra de Deus para favorecer uma opinio particular, mas dando a cada poro o sentido que lhe parece ter designado seu grande Autor" (Londres: Richard Watts (1819), pp. 4-5.). Assim, ele ficava "livre de todos os embaraos dos sistemas humanos", podia "pronunciar cada poro da bendita Palavra de Deus, ore rotundo, nada suavizando, e nada temendo", sem se importar em saber que sistema teolgico em particular estava aparentando favorecer (Simeon, Letter to Thomason, 1822.). Somente a exposio fiel assim, de toda a Palavra de Deus, poder livrar-nos e s nossas congregaes daquelas "inocentes" manias e pequenas vontades (as deles e as nossas), e do fanatismo e desvios mais srios. S assim, tambm, poderemos ensin-los a discernir entre o que foi claramente revelado e o que no foi; pois somos dogmticos (sem medo) com respeito ao que pertence primeira categoria, mas nos contentamos em pertencer agnsticos com respeito ao que pertence segunda (vide Dt 29.29).

    Alm disto, a Igreja precisa de leigos esclarecidos, que no so "como meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento de doutrina" (Ef 4.14), mas esto crescendo no conhecimento de Deus e de Sua Palavra, sendo assim capazes de resistir ao assdio das seitas modernas. Nada mais pode fazer com que isto seja

  • possvel, alm da pregao slida, sistemtica e didtica de toda a Palavra de Deus.

    Um ensino assim s possvel com planejamento cuidadoso a mdio e longo prazo. Sentiremos a necessidade de examinar a rea coberta por nossos sermes, para ver se no estamos evitando alguns aspectos da verdade ou enfatizando demais alguns outros. Uma forma de evitar estes dois extremos trabalhar sistematicamente livros da Bblia, ou pelo menos captulos inteiros, sem preguia de expor cada detalhe. Outra, planejar regularmente ou ocasionalmente sries de sermes, abordando de maneira abrangente e equilibrada determinados aspectos da verdade revelada. E no subestimemos os nossos ouvintes, como se eles no pudessem suportar tais coisas! Lembre-se das sbias palavras de Richard Baxter ao povo de Kidderminster: "Se vs apenas desejsseis obter o conhecimento de Deus e das coisas celestiais tanto quanto desejais saber exercer vossa profisso, j tereis vos lanado a este empreendimento, sem vos importardes com o custo ou as dificuldades, at que o tivsseis obtido. Mas vs dedicais de bom grado sete anos a aprender a profisso, e nem um dia, em cada sete, quereis entregar ao aprendizado diligente das coisas concernentes vossa salvao".

    Quando eu digo que o alvo do pregador expor toda a Palavra de Deus, no quero dizer que ele precise fazer isto de forma pesada ou sem imaginao. O mesmo Paulo que disse nunca ter deixado de "anunciar todo o desgnio de Deus", disse tambm, e no mesmo dia; "jamais [deixei] de vos anunciar coisa alguma proveitosa" (At 20.20,27). Certo, "toda Escritura proveitosa" (2 Tm 3.16, Edio Revista e Corrigida); mas toda Escritura no igualmente proveitosa para um determinado grupo de pessoas numa

  • dada situao concreta. O mordomo sbio fornece uma dieta variada famlia que serve. Ele procura conhecer as suas necessidades, e usa o bom senso para decidir o que eles vo comer. O mordomo no decide o que entra na geladeira; este direito de seu patro. Mas o que sai da geladeira, quando e em que quantidade, responsabilidade sua. Este mais um aspecto da fidelidade do mordomo, que no tanto fidelidade a seu patro ou aos bens que lhe so confiados, mas fidelidade famlia que ele serve. Como disse Jesus: "quem , pois, o mordomo fiel e prudente, a quem o senhor confiar os seus conservos para dar-lhes o sustento a seu tempo?" (Lc 12.42). A sabedoria e fidelidade do despenseiro medida pela sua habilidade em fornecer uma dieta equilibrada e apropriada a seus conservos. Ele precisa alimentar a famlia com o que est na despensa, mas para convenc-los a comer as refeies que elabora, ele faz de tudo para que a comida seja gostosa. Ele usa sua imaginao para fazer pratos apetitosos. Ele at chega a estimul-los a comer, como a me faz com seus filhos! Assim, o bom mordomo entende das necessidades e gostos dos membros da famlia to bem quanto do contedo do armrio da cozinha.

    Tudo isto muito importante. No basta o pregador conhecer a Palavra de Deus; ele precisa conhecer as pessoas a quem est proclamando-a. Claro, ele no pode falsificar a Palavra de Deus para torn-la mais atraente. Ele no pode diluir o remdio forte da Escritura para que fique mais agradvel ao paladar. Mas pode esforar-se por apresent-la s pessoas de forma tal que desperte o interesse. Por exemplo, falando de maneira simples, certamente isto que Paulo tinha em mente quando aconselhou Timteo a ser um obreiro "que no tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade" (2

  • Tm 2.15). O verbo grego orthotomounta, significa literalmente "fazer um corte reto". Era empregado para descrever a construo de estradas e aparece, por exemplo, na Septuaginta, em Provrbios 3.6: "ele endireitar as tuas veredas". Nossa exposio da Escritura deve ser to simples e direta, to fcil de entender, que seja semelhente a uma estrada em linha reta. fcil segui-la. como a rodovia dos redimidos, de que Isaas fala: ningum erra o caminho, "nem mesmo o louco" (Is 35.8). Cortar a Palavra de Deus em linha reta no fcil. preciso muito estudo, como veremos logo, no apenas estudo da Palavra de Deus, mas tambm da natureza do ser humano e do mundo em que ele vive. O pregador-expositor um construtor de pontes, buscando vencer a distncia entre a Palavra de Deus e a mente humana. Ele precisa dar o melhor de si para interpretar a Escritura com tanta preciso e simplicidade, e aplic-la com tanta arte, que a verdade possa atravessar a ponte. A autoridade do pregador e sua disciplina

    Em terceiro lugar, a metfora do despenseiro nos mostra a natureza da autoridade do pregador. O pregador tem, com certeza, a sua autoridade. Isto no nos deve assustar ou envergonhar. Autoridade e humildade no so incompatveis. James Stewart escreveu: " um srio erro supor que a humildade impede a convico. G. K. Chesterton tem algumas sbias palavras sobre aquilo que ele chamou de "humildade deslocada": "Nosso mal hoje ter humildade no lugar errado. A modstia deixou de atuar sobre o rgo da ambio. A modstia reside agora no rgo da convico; onde nunca deveria estar. O homem deveria duvidar de si mesmo e ter certeza da verdade; isto

  • foi completamente invertido. Estamos a caminho de gerar uma raa de homens que, de tanta modstia intelectual, no conseguem acreditar na "tabuada de multiplicao". Humildes e modestos ns devemos sempre ser; mas titubeantes e apologticos acerca do evangelho, nunca!" (Stewart, James. Heralds of God (Londres: Hodder & Stoughton, 1946), p.210. Chesterton, G. K. Orthodoxy (Nova York, Image Books, 1959), pp. 30s.).

    Mas onde reside a autoridade do pregador? A sua autoridade no como a do profeta. O pregador cristo no pode realmente dizer: "Assim diz o Senhor", como faziam os profetas ao introduzir uma mensagem recebida diretamente de Deus. Certamente, ele no ousar dizer: "Em verdade, em verdade, vos digo", como fazia o Filho de Deus, ao falar com autoridade divina absoluta, e como talvez faam alguns dos falsos profetas, que tm a presuno de falar em seu prprio nome. Nem devamos nos tornar "tagarelas" modernos, dizendo: "De acordo com os mais importantes eruditos da atualidade...", citando alguma autoridade humana (embora a citao seja uma prtica vlida, na ocasio certa). No, nossa frmula - se usarmos alguma - deve ser aquela conhecida expresso, to usada e to correta, do Dr. Billy Graham: "A Bblia diz".

    Esta autoridade verdadeira. Sim, autoridade indireta. No direta como a dos profetas, ou dos aptolos, que davam ordens para serem obedecidas (como, por exemplo, Paulo, em 2 Ts 3). Mas autoridade vinda de Deus. E verdade tambm que o pregador que proclama a Palavra com autoridade est debaixo da autoridade desta Palavra e deve submeter-se a ela. Embora distinto de sua congregao, est no mesmo nvel dela. Embora tenha o direito de falar-lhes na primeira pessoa do singular: "eu -- vocs", ele freqentemente prefirir usar a primeira pessoa

  • do plural: "ns", porque tem conscincia de que a Palavra que prega aplica-se a ele mesmo tanto quanto a qualquer outro. Ainda assim, ele pode falar com autoridade vinda de Deus.

    Na verdade, estou persuadido de que quanto mais o pregador, ele mesmo, "treme" diante da Palavra de Deus (Ed 9.4, 10.3, Is 66.2, 5), sentindo a autoridade da Palavra sobre sua conscincia e sua vida, mais ele ser capaz de preg-la com autoridade aos outros. A metfora do despenseiro no transmite toda a verdade acerca do pregador e sua autoridade. No devemos pensar no pregador como um mordomo arrogante, ou um escriba judaico, dando interpretaes intelectuais e ridas de passagens difceis. A verdadeira pregao nunca estagnada, montona ou puro academicismo, mas sempre viva e penetrante, com autoridade de Deus. Mas a Escritura s se torna viva para a congregao se antes tiver tornado-se viva para o pregador. Somente quando Deus houver falado pessoalmente com ele atravs da Palavra que ele prega, os outros podero ouvir a voz de Deus nos seus lbios.

    Eis aqui, portanto, a autoridade do pregador: Ela depende da proximidade entre ele e o texto que est expondo, isto : o quo bem ele o compreendeu e a intensidade com que o texto falou sua prpria vida. O ideal no sermo que a Palavra de Deus fale, ou melhor, Deus fale atravs de sua Palavra. Quanto menos o pregador se interpuser entre a Palavra de Deus e seus ouvintes, melhor. O que realmente alimenta a famlia a comida que o dono da casa compra, no o mordomo que a distribui. O pregador cristo fica mais satisfeito quando sua pessoa eclipsada pela luz que brilha da Escritura, e quando sua voz superada pela voz de Deus.

  • Em quarto lugar, a metfora do despenseiro pode nos ensinar algo a respeito da necessidade da disciplina pessoal do pregador. O despenseiro fiel procura ficar a par de todo o contedo da despensa. A despensa da Sagrada Escritura to vasta, que nem estudando a vida inteira conseguiremos conhecer toda a riqueza variedade que ela contm.

    A pregao expositiva uma disciplina das mais rduas. Talvez por isto seja to rara. S ir realiz-la quem estiver preparado para seguir o exemplo dos apstolos, dizendo: "No razovel que ns abandonemos a Palavra de Deus para servir s mesas. (...) Ns nos consagraremos orao e ao ministrio da Palavra" (At 6.2,4). E impossvel pregar sistematicamente a Palavra sem estudar sistematicamente a Palavra. No basta passar os olhos em alguns versculos em nossa leitura bblica diria, ou estudar uma passagem s quando tivermos que preg-la. No. Precisamos estar saturados das Escrituras. Precisamos no apenas estudar, como por microscpio, os mnimos detalhes de alguns versculos nas lnguas originais, mas tambm tomar nosso telescpio e abranger as grandes vastides da Palavra de Deus, assimilando seu tema principal, da soberania divina na redeno da humanidade. " uma bno" - escreveu C. H. Spurgeon "escavar e penetrar as profundezas da Bblia at que, finalmente, chega-se a falar com o linguajar bblico, e nosso esprito recebe o sabor caracterstico das Palavras do Senhor, e a Escritura chega a circular no sangue, e a prpria essncia da Bblia flui de nossa pessoa" (Citado por Richard Ellsworth Day, The Shadow of the Broad Brim (Filadelfa: The Judson Press, 1934), p.131.).

    Alm desta disciplina diria, persistente, de estudo bblico, precisamos nos dedicar de maneira especial ao

  • versculo ou passagem bblica escolhida para ser exposta do plpito. Precisamos ser firmes para evitar os atalhos. Precisamos gastar tempo estudando nosso texto detalhadamente, meditando sobre ele, preocupando-nos com ele como um cachorro se preocupa com seu osso, at que o sentido seja claro para ns. Este processo ser s vezes acompanhado de suor e lgrimas. Precisamos tambm usar todos os recursos de nossa biblioteca neste trabalho lxico, concordncia, tradues modernas e comentrios. Acima de tudo, porm, devemos orar sobre o texto, porque o Esprito Santo, o verdadeiro autor deste Livro, seu melhor intrprete tambm. "Pondera o que acabo de dizer" - Paulo escreveu a Timteo - "porque o Senhor te dar compreenso em todas as coisas" (2 Tm 2.7). Realmente, precisamos pensar; mas a compreenso vem de Deus. Mesmo quando tiver entendido plenamente o texto, o trabalho do pregador ainda est pela metade, porque a elucidao do seu sentido precisa levar sua aplicao a alguma situao realista da vida do homem moderno.

    S esta disciplina de estudo, geral e especfico, manter a mente do pregador cheia dos pensamentos de Deus. Ele certamente ir guardar em seus arquivos ou cadernos de anotaes os tesouros que Deus vai lhe concedendo. Assim, o pregador nunca precisar ter medo de um dia ficar sem assunto, ou de no ter sobre que pregar. Na verdade, no h chance disto acontecer. Ao invs disto, seu problema ser como escolher, dentre tanta riqueza de material, a sua mensagem.

    Assim, o bom despenseiro esfora-se em manter sua despensa bem provida. Ele nunca ir cansar a famlia que serve com cardpio montono, nem enjo-los com pratos inspidos, nem provocar indigesto com comida que no

  • apropriada estao. Ele ser como o pai de famlia descrito por Jesus, que "tira do seu depsito coisas novas e coisas velhas" (Mt 13. 52).

    Assim despenseiro dos "mistrios de Deus"; fiel no estudo e pregao da Palavra, e fiel em deixar que os homens sintam nela e atravs dela a autoridade de Deus; fiel ao pai de famlia, que o nomeou para o cargo; fiel famlia, que depende dele para seu sustento; e fiel aos bens que foram confiados ao seu cuidado. Que Deus nos faa despenseiros fiis!

  • CAPTULO II

    arauto A proclamao e aplo do pregador

    Se a nica metfora neotestamentria para a

    pregao fosse a do despenseiro, poderamos ficar com a impresso de que o trabalho do pregador uma rotina prosaica e sem graa. Mas o Novo Testamento rico em outras metforas, e a mais importante destas a do arauto, que recebe a solene (e emocionante) responsabilidade de proclamar as boas novas de Deus. Estas duas ilustraes no so imcompatveis. Paulo pensava em si mesmo e em seus auxiliares das duas formas. Se no princpio de 1 Corntios 4 Paulo disse que somos "despenseiros dos mistrios de Deus", no primeiro captulo desta mesma epstola ele resume a atividade do pregador na expresso "pregamos" (Keryssomen, procla-mamos) "a Cristo crucificado", e declara que atravs desta proclamao de arauto (Krygma), que "aprove a Deus salvar os que crem" (1 Co 1.21, 23). De maneira semelhante, nas Epstolas Pastorais, em que ele exorta Timteo a "guardar o bom depsito", como despenseiro, e "confi-lo" (ed. Revista e Corrigida) a homens fiis e idneos para instruir a outros" (2 Tm 2.2), Paulo escreve duas vezes que foi "designado pregador" (Kryx, arauto) do evangelho (1 Tm 2.7, 2 Tm 1.11).

    Porm, embora os cargos de despenseiro e arauto no sejam de maneira alguma incompatveis entre si, so

  • diferentes, e talvez seja bom comear aqui citando as quatro principais diferenas entre eles.

    Em primeiro lugar, enquanto a tarefa do despenseiro alimentar a famlia de Deus, o arauto tem boas motcias que devem ser proclamadas ao mundo todo. Um certo autor diz que este tipo de pregao no Novo Testamento no um discurso terico e formal, "dirigido a um grupo fixo de cristos convictos dentro do prdio da igreja", mas "uma proclamao de arauto, de mensageiro oficial, aberta, luz do dia, ao som da trombeta, atual e atualizada, endereada a todos porque vinda do rei em pessoa" (Chr. Senft, no verbete "Pregar", do Vocabulrio Bblico de J. J. Von Allmen - 2 edio, So Paulo: ASTE, 1972. Original

    francs de 1956 -. N. do T.: citao traduzida segundo a verso inglesa utilizada por Stott.). H vrios verbos gregos que descrevem esta atividade pblica, especialmente (an-, ap-, di-, kat-) ngellein, "declarar ou anunciar" (ex: Lc 9.60, 1 Jo 1.1-5), eugelzesthai (no exatamente a mesma idia que temos no verbo portugus "evangelizar", que transitivo e pede um objeto direto; mas simplesmente "pregar boas novas"), e keryssein, "proclamar como arauto". "A idia fundamental destas palavras" - diz o Dr. Alan Richardson - " dar notcias a pessoas que no ouviram antes" (No verbete "Preaching", em A Theological Word Book of the Bible, ed. Alan Richardson (Londres: S. C. M. Press, 1950).).

    Em segundo lugar, esta proclamao de arauto dirigida aos que esto de fora diferente da funo do despenseiro cristo por ser mais a proclamao de um fato que exposio de palavras, o anncio da interveno sobrenatural de Deus, de maneira suprema na morte e ressurreio de seu Filho, para a salvao da humanidade. Segundo James Stewart, "a pregao no existe para a

  • propagao de idias, opinies e ideais, mas para proclamao dos poderosos atos de Deus" (James S. Stewart, Heralds of God (Londres: Hodder & Stoughton, 1946), p.5.). No quero dar a idia que estas coisas excluem-se mutuamente. O pregador cristo to despenseiro quanto arauto. Na verdade, a boa notcia que ele deve proclamar faz parte da Palavra de que ele despenseiro; pois a Palavra de Deus essencialmente o registro e interpretao do grande feito redentivo de Deus em Cristo e atravs de Cristo. As Escrituras testificam acerca de Cristo, o nico Salvador dos pecadores. Assim, um bom despenseiro da Palavra ser sempre tambm um zeloso arauto das boas novas da salvao em Cristo. Somos despenseiros das coisas que Deus disse e arautos das coisas que Deus fez. Como despenseiros, somos responsveis por uma revelao plenamente realizada. Mas uma redeno plenamente realizada a boa notcia que proclamamos como arautos. "O conceito de arauto" disse o Dr. Robert Mounce - "(...) a maneira caracterstica, em todo o Novo Testamento, de explicar a proclamao contnua do evento de Cristo" (Mounce, The Essential Nature of New Testament Preaching (Grand Rapids: Eerdmans, 1960), p. 52.).

    Em terceiro lugar, na metfora do despenseiro a nfase parece recair quase exclusivamente sobre a atividade do despenseiro e o requisito que ele deve ser fiel no cuidado e na distribuio dos bens de seu senhor. Mas na metfora do arauto, espera-se algo dos ouvintes tambm. O arauto no prega simplesmente a boa notcia, sem se importar se os ouvintes escutam ou no. A proclamao introduz um apelo. O arauto espera uma resposta. Tendo anunciado a reconciliao que Deus operou atravs de Cristo, o embaixador cristo roga aos

  • homens que se reconciliem com Deus. Em quarto lugar, embora tanto o despenseiro quanto

    o arauto sejam intermedirios (o despenseiro entre o dono de casa e sua famlia, o arauto entre o soberano e seu povo), o arauto parece, no Novo Testamento, possuir uma autoridade mais direta, representando mais de perto seu patro. O despenseiro continua com seu trabalho mesmo quando o dono da casa se afasta por longos perodos; mas quando o arauto transmite sua proclamao, a voz do rei est sendo ouvida. O lxico de Grimm-Thayer define kryx como "um arauto, um mensageiro revestido de autoridade pblica que transmitia as mensagens oficiais dos reis, magistrados, prncipes, comandantes militares, ou alguma ordem ou convocao pblica (...)" (A Greek-English Lexicon of the Testament, 2? edio revista (Edimburgo: T. & T. Clark, 1892), p.346.). Assim, o pregador cristo "embaixador de Cristo", como veremos posteriormente com mais detalhes, "como se Deus exortasse por nosso intermdio" (2 Co 5.20). Um exemplo marcante desta mesma verdade encontra-se no segundo captulo da epstola aos Efsios, em que o apstolo descreve a reconciliao que Deus efetuou, tanto entre judeus e gentios, quanto entre os dois grupos e ele mesmo. Paulo resume o que Cristo fez atravs da cruz com as palavras "fazendo a paz". E acrescenta: "E, vindo, evangelizou [pregou] paz a vs outros que estveis longe, e paz tambm aos que estavam perto" (Ef 2.15, 17). Esta pregao de paz por Cristo (cf. At 10.36), segundo o contexto, aconteceu depois da sua morte. Dificilmente isto poderia se referir ao seu ensino durante os quarenta dias entre a ressurreio e a ascenso, pois naquele perodo ele parece ter se mostrado apenas aos seus discpulos. Portanto, a referncia deve ser ao trabalho dos pregadores

  • cristos. O mesmo Cristo que fez a paz atravs de sua morte na cruz, agora est pregando a paz atravs de seus arautos. E neste sentido que alguns autores modernos tm descrito a pregao crist como "existencial": uma atividade de proclamao de boas novas na qual e pela qual Deus em Cristo confronta diretamente homens e mulheres consigo mesmo.

    Agora, tendo sugerido as diferenas que h entre os conceitos do despenseiro e do arauto, estamos em condies de examinar mais de perto a condio e o trabalho do arauto. Em muito deste captulo transparecer minha dvida para com o Prof. Robert Mounce, catedrtico do Departamento de Cristianismo no Bethel College. Seu livro The Essential Nature of New Testament Preaching ("A natureza essencial da pregao no Novo Testamento") foi publicado em 1960. Como o Dr. A. M. Hunter diz no princpio de seu prefcio a este livro, "seu assunto o krygma - o Evangelho da pregao, que os primeiros arautos de Cristo proclamaram ao grande mundo pago de sua poca, este Evangelho que, aps dezenove sculos, continua sendo a Palavra transcendente para os nossos problemas humanos". um livro original, sugestivo e estimulante.

    "No mundo de Homero", escreve o Dr. Muonce, o arauto era um homem digno, que ocupava um cargo importante na corte real", enquanto "na era ps-homrica (...) o arauto servia mais ao Estado que ao rei". Seu trabalho era fazer proclamaes oficiais pblicas. Ele precisava ter voz forte, e s vezes usava uma trombeta. Alm disto, "era essencial que o arauto fosse um homem de bastante auto-controle. A proclamao precisava ser transmitida exatamente como fra recebida. Como mensageiro direto de seu senhor, ele no pode ousar

  • acrescentar-lhe sua prpria intepretao". Estes homens aparecem com uma certa freqncia

    no Antigo Testamento. Fara fez com que arautos abrissem o caminho para a carruagem de Jos, dizendo: "Inclinai-vos! " (Gn 41.43). Honra semelhante foi concedida a Mardoqueu, conduzido "a cavalo pela praa da cidade" (Et 6.9-11). O decreto de Nabucodonozor, para que todos se prostrassem e adorassem a imagem de ouro que ele mandara levantar, foi proclamado publicamente por um arauto no vale de Dura (Dn 3.1-5). Em Jud, como nos pases estrangeiros, os decretos reais tambm eram promulgados por arautos, como aconteceu quando o rei Ezequias enviou mensageiros por todo Israel e Jud, convocando o povo a vir a Jerusalm e observar a Pscoa (2 Cr 30.1-10).

    Joo Batista era um arauto tambm. Alguns dos profetas menores haviam feito proclamaes pblicas como arautos de Jeov, mas em Joo Batista este ministrio era claro, inconfundvel. O evangelista Marcos identifica-o como o "mensageiro de Deus", enviado frente para preparar o caminho para Deus (Mq 3.1, Mc 1.2). Ele foi o precursor do Messias, chamando o povo ao arrependimento como preparao para a chegada dAquele que haveria de vir. E, se Joo Batista anunciou a proximidade da vinda do Reino de Deus, Jesus percorria a terra proclamando que com Sua vinda, o Reino havia, de certa forma, chegado tambm. "Percorria Jesus toda a Galilia, ensinado nas sinagogas, pregando (Keryssn, proclamando) o evangelho do reino (...)" (Mt 4.23). Alm disto, ele tambm entregou esta tarefa a seus discpulos. Durante o tempo de sua vida ele os enviou, dizendo: "Pregai que est prximo o reino dos cus" (Mt 10.7), aps a ressurreio, entregou-lhes sua comisso universal, para que "em seu nome se pregasse

  • (kerychthnai) arrependimento para remisso de pecados, a todas as naes" (Lc 24.47). O krygma apostlico

    Isto nos leva a Atos dos Apstolos, e a toda a questo do contedo do krygma apostlico. E bem conhecido que C. H. Dodd, em seu livro The Apostolic Preaching and its Developments ("A pregao apostlica e sua evoluo") fez uma rgida distino entre krygma e didaqu. O primeiro, ele define como "a proclamao pblica do cristianismo ao mundo no-cristo", e a segunda, como "instruo de carter tico" aos j convertidos.' Embora esta diferenciao tenha conquistado ampla aceitao, ela certamente tem sido exagerada. O Dr. Mounce est certo em dizer que os verbos Keryssein (proclamar) e didasquein (ensinar) so s vezes usados como sinnimos nos Evangelhos; um evangelista diz que Jesus estava ensinando nas sinagogas, e outro, que Jesus estava pregando nas sinagogas (Ex.: Mt 4.23 - ensinando // Mc 1.39 e Lc 4.44 - pregando). Tambm em Atos estas palavras coincidem um pouco em sentido. Por isto, o Dr. Mounce menciona um krygma didtico", e diz: "ensinar expor em detalhes aquilo que proclamado"" . Novamente, krygma o fundamento didaqu a superestrutura; nenhum edifcio completo sem ter os dois".

    J que aceitamos, ento, que havia bastante didaqu no krygma apostlico primitivo, o que estes primeiros arautos cristos ensinavam? Qual era o contedo de sua proclamao? Dodd resume dizendo que era "uma proclamao da morte e ressurreio de Jesus Cristo, com uma perspectiva escatolgica, da qual estes fatos recebem sua importncia para a salvao". O Dr. Mounce critica isto

  • tambm, com razo. Afirmando que o krygma apostlico no era "algum tipo estereotipado de sermo com meia dzia de argumentos", mas sim "uma declarao sistemtica da teologia da igreja primitiva", ele prope que "em sua forma mais simples", este krygma consistia-se de trs partes, que ele resume assim:

    (1) "Uma proclamao da morte, ressurreio e exaltao de Jesus, vistas como o cumprimento da profecia, e envolvendo a responsabilidade humana;

    (2) "Em conseqncia disto, a considerao de Jesus como Senhor e tambm Cristo;

    (3) "Uma convocao ao arrependimento e a receber perdo de pecados".

    Ou, reunindo estes trs tens, ele define o krygma da igreja primitiva como "uma proclamao da morte, ressurreio e exaltao de Jesus, levando considerao de sua Pessoa como Senhor e tambm Cristo, confrontando o ser humano com a necessidade de arrependimento, contendo a promessa de perdo de pecados". Assim, o krygma em sua plenitude reunia "uma proclamao histrica, uma considerao teolgica e uma convocao tica". Aps fazer esta reconstruo do krygma a partir dos cinco discursos de Pedro no princpio do livro de Atos, o Dr. Mounce mostra como ela confirmada por aquilo que ele chama "um krygma pr-paulino", que pode ser deduzido dos "elementos quase credais que se acham inseridos nas epstolas paulinas", que so elementos "prpaulinos" no sentido que pertencem quele " ` perodo obscuro' entre a fundao da Igreja e o registro dos textos paulinos" (No captulo 6, intitulado Clues to a PrePauline Kerygma ("Pistas para um krygma prpaulino"), pp. 88-

  • 109, ele examina especialmente 1 Co 15.3ss.; Rm 10.9; Rm 1.3; Rm 4.24, 25; Rm 8.34; 1 Co 11. 23ss e Fm 2.6-11.).

    Para o prposito mais prtico a que se destina este captulo, eu creio que podemos simplificar ainda mais o excelente resumo do krygma apostlico do Dr. Mounce. Fundamentalmente, ele consistia apenas de duas partes, que podemos, provavelmente, chamar de "proclamao" e "apelo". A primeira formada dos tens (1) e (2) do sumrio do Dr. Mounce. Refere-se obra de Jesus Cristo e conseqente avaliao que fazemos de sua Pessoa. uma proclamao de Jesus como Salvador e Senhor. Isto, claro, tambm o contedo mnimo irredutvel do evangelho. Pregar o evangelho pregar Cristo, pois Cristo o evangelho (ex.: At 8.5; Fp 1.15). Mas como haveremos de preg-lo? Como Senhor (2 Co 4.5), o Senhor do cu, exaltado mo direita do Pai, a quem os homens devem obedincia. Preg-lo tambm como o Salvador crucificado, "que foi entregue por causa de nossas transgresses, e ressuscitou por causa da nossa justificao" (Rm 4.25). Estas so duas partes essenciais da proclamao acerca de Jesus Cristo; referem-se sua Pessoa divina e sua obra salvadora:

    keryssomen Christn estauromnon (1 Co 1.23 - "Pregamos Cristo crucificado")

    keryssomen Christn kyron (2 Co 4.5 - "Pregamos Cristo [como] Senhor")

    Freqentemente se diz que a nfase nos sermes mais antigos de Atos e, portanto, do krygma da Igreja Primitiva, estava na ressurreio de Jesus, mais do que em sua morte, e que Lucas d uma definio concisa de sua mensagem quando diz que Paulo "pregava a Jesus e a

  • ressurreio" (At 17.18). Isto verdade, mas tambm pode ser enganoso. Eles no pregavam a ressurreio isoladamente, mas em relao morte, que veio antes, e a ascenso, que veio depois. Assim, a ressurreio era "o mais importante dos trs grandes eventos que compunham o fundamento histrico do krygma". Mesmo assim, no pode haver dvida de que, embora a obra salvfica de Cristo seja uma unidade, principalmente por sua morte que os homens podem ser salvos. Lemos em 1 Co 15.3ss (que o Dr. Mounce afirma ser "sem dvida a mais valiosa poro do cristianismo pr-paulino no Novo Testamento", e mesmo "o mais antigo documento que existe da Igreja crist" que "Cristo morreu pelos nossos pecados", no que ele "ressuscitou pelos nossos pecados". Sim, o apstolo prossegue neste antigo esboo do evangelho, dizendo que ele "ressuscitou", e "apareceu" a vrias testemunhas escolhidas, mas a sua ressurreio em si que realizou a nossa salvao, embora tenha evidenciado publicamente esta salvao, realizada pela morte de Cristo, e com a qual o Pai est satisfeito. por isto que Paulo pode escrever depois, no mesmo captulo: "se Cristo no ressuscitou, v a nossa pregao e v a nossa f (...) e ainda permaneceis nos vossos pecados" (1 Co 15.14,17). Se Jesus realmente no se levantou dos mortos, as pessoas permanecem nos seus pecados, sem salvao, no porque a ressurreio as teria salvo, mas porque sem a ressurreio, fica provado que a morte de Jesus no teve valor para a salvao.

    E por isto que "pregamos Cristo crucificado" o mago do evangelho. Tambm pregamos Cristo que nasceu e viveu neste mundo (pois ele nunca poderia ter sido nosso Salvador se no tivesse se tornado carne, vivendo uma vida sem pecado). Tambm pregamos Cristo que subiu aos cus e foi exaltado (pois na sua ressurreio seu valor foi

  • publicamente reconhecido, e em sua exaltao ele se tornou hoje nosso mediador). Mas a nfase no krygma do Novo Testamento na morte vicria do Salvador, pelos pecados do mundo. Bem podemos repetir a afirmao de Paulo: "decidi nada saber entre vs, seno a Jesus Cristo, e este crucificado" (1 Co 2.2).

    Assim, a primeira parte de nosso krygma sim-plificado a proclamao acerca de Jesus como Salvador e Senhor. A segunda parte o apelo para que homens e mulheres venham a ele em arrependimento e f. A definio de evangelismo preparada originalmente em 1918 pelo Comit de Investigao do Arcebispo Acerca da Obra evangelstica da Igreja (Archbishop's Committee of Enquiry on the Evangelistic Work of the Church), e adotada em seguida (com pequenas alteraes) pelo Departamento de Evangelismo do Conclio Mundial de Igrejas, no diz que "evangelizar apresentar Cristo Jesus", mas sim "evan-gelizar apresentar Cristo Jesus de tal maneira (...) que as pessoas venham a confiar em Deus atravs dele, a aceit-lo como seu Salvador e servi-lo como seu Rei (...)" (Towards the Conversion of England ("Para a con verso da Inglaterra"), Press and Publications Board of the Church Assembly (1945), p. 1.). Em outras palavras, o verdadeiro evangelismo visa uma resposta. Espera resultados. E pregao que exige um veredito. O arauto no faz prelees. Prelees so discursos objetivos, imparciais, acadmicos. So dirigidas ao intelecto. Buscam apenas transmitir uma certa informao e, talvez, estimular o ouvinte a pesquisar mais por conta prpria. Mas o arauto de Deus vem com uma urgente proclamao de paz atravs do sangue da cruz, e com uma convocao a todos os homens, para que se arrependam, entreguem suas armas, e aceitem humildemente o perdo oferecido.

  • Embaixadores de Cristo

    Em nenhum lugar esta distino entre proclamao e apelo mais elaborada que em 2 Corntios 5.18-21. verdade que as palavras "arauto" e "proclamar" no aparecem nestes versos, mas a idia est bem presente. Neste texto Paulo diz que "somos embaixadores em nome de Cristo", e realmente no h diferena entre as funes de "embaixador" e de "arauto". "Com toda a sinceridade eu lhe dou parabns" - escreveu Charles Simeon a John Venn por ocasio da sua ordenao em 1872 - "no pela oportunidade de receber 40 ou 50 libras por ano, nem, pelo ttulo de Reverendo, mas pela sua ascenso ao cargo mais valioso, mais honrado e mais glorioso do mundo: o cargo de embaixador do Senhor Jesus Cristo" (William Carus, Memoirs of the Life of the Rev. Charles Simeon (Londres: Hatchard, 1847), p.28.). Antes de estudar detalhadamente o texto de 2 Corntios 5, precisamos examinar a palavra traduzida como "somos embaixadores" (presbuomen).

    Esta palavra vem do radical presbus, que quer dizer homem velho, ancio. Presbia, portanto, significava inicialmente idade madura, ou o fato de algum ser um ancio. Mas passou a ser aplicada dignidade e prestgio que pertencem idade madura, ou experincia. Assim, de acordo com o lxico de Grimm-Thayer, era usada para "as coisas que deviam ser confiadas aos ancios, especialmente o ofcio de embaixador". Moulton e Milligan dizem que esta palavra pertencia "ao dia a dia do relacionamento entre as cidades gregas, e destas para com os seus reis" (The Vocabulary of the Greek Testament (Grand Rapids: Eerdmans), p.534.). O homem que ocupava este cargo chamava-se presbus ou presbutes, que equivalia palavra latina legatus (Cf. a relao existente

  • entre nossas palavras "embaixada" e "delegao".), e a atividade que ele exercia era descrita pela palavra presbuein. Esta, segundo Moulton e Milligan, "era o termo normalmente utilizado no mundo ocidental helnico para descrever o legado imperial", ou seja, seu representante pessoal, que era freqentemente o governador da provncia.

    Estas palavras ocorrem diversas vezes no primeiro livro dos Macabeus (Presbutes em 1 Mc 13.21, 14.21, 22, e presbus em 1 Mc 9.70, 11.9, e 13.14.), e tambm nos livros cannicos da Septuaginta - por exemplo, quando os prncipes de Babilnia enviam embaixadores a Ezequias (2 Cr. 32.31). Mas no Novo Testamento, o substantivo presbia, delegao, embaixada, aparece apenas duas vezes, e o verbo presbuein, agir como embaixador, duas vezes tambm. As duas ocorrncias de presbia so em parbolas de Jesus registradas por S. Lucas. Na parbola dos talentos, quando o "homem nobre partiu para uma terra distante, com o fim de tomar posse de um reino, e voltar", "seus concidados (...) enviaram aps ele uma embaixada, dizendo: 'no queremos que este reine sobre ns"(Lc 19.12-14). Na parbola do rei marchando para a batalha, Jesus imagina que, quando ele descobre que o outro rei tem um exrcito duas vezes maior que o seu, "envia-lhe uma embaixada, pedindo condies de paz" (Lc 14.31, 32). Ambas as ocorrncias do verbo presbuein so da pena de S. Paulo. No final de sua Epstola aos Efsios, ele se descreve como "embaixador em cadeias", pelo evangelho (Ef 6.20)(Cf v.15: "o evangelho da paz".). Ele era um embaixador do evangelho, proclamando as suas boas novas, anunciando sua oferta de paz, e por causa disto que Paulo encontrava-se prisioneiro naquela ocasio. O outro uso do verbo presbuein vem de 2

  • Corntios 5.18-21, uma passagem que precisamos, agora, estudar detalhadamente.

    Ora, tudo [isto] provm de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo, e nos deu o ministrio da reconciliao, a saber, que Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo, no imputando aos homens as suas transgresses, e nos confiou a palavra da reconciliao. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermdio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. Aquele que no conheceu pecado, ele o fez pecado por ns; para que nele fssemos feitos justia de Deus.

    Esta passagem trata a salvaao em termos de reconciliao que, nas palavras de Vincent Taylor, " a melhor palavra do Novo Testamento para descrever o propsito da propiciao". Certamente a palavra mais familiar e mais prxima de ns, enquanto as idias sacrificiais, judiciais e comerciais envolvidas na idia de propiciao, justificao e redeno podem soar estranhas e inadequadas a nossos ouvidos modernos. O apstolo conduz seu tratamento deste grande tema em dois estgios: Primeiramente, ele faz a sua proclamao de como a reconciliao foi levada a cabo por Deus atravs de Cristo. A seguir, chamando a si mesmo de embaixador, ele faz o seu apelo para que as pessoas se reconciliem com Deus. A proclamao

    Veremos primeiramente a proclamao. Ele comea dizendo que "tudo [isto] provm de Deus" (v.15). Deus o autor da reconciliao. Na obra da expiao, a iniciativa foi tomada pelo Pai; no pelo homem. Na lcida expresso do

  • Arcebispo William Temple, "tudo vem de Deus; a nica contribuio pessoal que eu fao na minha redeno o pecado do qual preciso ser redimido". Tambm no de Cristo a iniciativa. A reconciliao "por meio de Cristo" (v.18) e "em Cristo" (v.9), mas "de [ek] Deus" (v.18). Jesus Cristo o meio pelo qual a reconciliao veio, no a sua origem. Qualquer tentativa de explicar a expiao sugerindo que a iniciativa para a obra da salvao foi do Filho revelia do Pai, ou que o Pai "sofreu a interveno de um outro partido, na reconciliao" (P. T. Forsyth, The Work of Christ (Londres: Hodder &Stoughton, 1910), p.89.), deve ser resolutamente rejeitada, como anti-bblica. No podemos tolerar a idia que houve alguma relutncia por parte do Pai. Ao contrrio, "Deus (...) nos reconciliou consigo mesmo" (v.18). Para deixar isto definitivamente fora de dvida, sete verbos principais nestes versos (indicativos e particpios) tm Deus como sujeito. Foi Deus quem reconciliou, quem deu, quem estava em Cristo reconciliando, quem no nos imputou nossos pecados, quem nos confiou a mensagem da reconciliao, quem exorta, quem fez com que Cristo fosse feito pecado por ns. O desejo, a idia, o plano, os meios de reconciliao, "tudo [isto] provm de Deus".

    Mas, se o autor da reconciliao Deus, o agente Cristo. Foi "por meio de Cristo" e "em Cristo" que Deus realizou a reconciliao. E isto ele fez de maneira objetiva e decisiva. Isto fica claro pelo uso do particpio aoristo katalacsntos no verso 18. Este verbo deve receber todo o seu peso em nossa interpretao. Aqui no est algo que Deus est fazendo, mas algo que Deus j fez. Citando P. T. Forsyth outra vez, "Deus estava realmente reconciliando, terminando a obra. No foi uma experincia, algum evento preliminar. (...) A reconciliao foi completada na morte de

  • Cristo. Paulo no pregou uma reconciliao gradual. Ele pregava aquilo que os antigos doutores de teologia costumavam chamar de a obra consumada. (...) Ele pregava algo que foi feito de uma vez por todas - uma obra que no apenas um convite, mas a base da reconciliao de toda alma com Deus.

    Semelhantemente, James Denney escreveu: "A obra da reconciliao, no sentido neotestamentrio, uma obra completa, uma obra que precisamos ter como completa como pressuposto para a pregao do evangelho" (James Denney, The Death of Christ (Londres: Tyndale Press, 1950; original, 1902), p.85.).

    Esta realizao objetiva de Deus atravs da cruz de Cristo indicada por algo mais do que o particpio aoristo katalacsntos. Ela esclarecida pelo contraste entre os verbos de reconciliao nos versos 18 e 19, de um lado, e no verso 20, do outro. Precisamos encontrar alguma explicao para as palavras "Deus (...) nos reconciliou consigo mesmo" (v.18), e "Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo" (v.19), que faa justia tambm ao "rogamos que vos reconcilieis com Deus" do verso 20. Se interpretarmos os primeiros dois casos como referindo-se influncia reconciliadora de Deus sobre os seres humanos hoje, o apelo do verso 20 perde todo o seu sentido, e conseguimos fazer com que toda a passagem se torne irrelevante. E claro que h uma diferena aqui, que precisa ser preservada. H dois estgios que no devem ser confundidos. Precisamos saber distingir entre a iniciativa divina na morte de Cristo e o apelo divino que busca a resposta do ser humano hoje. A primeira foi um fato consumado (expresso pelo particpio aoristo katalacsntos); o segundo um apelo (expresso pelo imperativo aoristo katallgete, v.20).

  • Que fato consumado foi este? O que Deus fez em - e atravs de - Cristo, que agiu sobre os nossos pecados (sobre os quais permanece a ira de Deus) e removeu a barreira que nos separava dele, e nos reconciliou consigo mesmo? Em primeiro lugar, negativamente, ele recusou-se a nos imputar os nossos pecados (v.19). Esta expresso vem do Salmo 32.2 (citado em Rm 4.8), onde descreve a felicidade do homem a quem Deus no atribui iniqidade. Estas palavras tm a implicao de que teria sido natural e justo que Deus nos imputasse os nossos pecados. Sim, "o pecado no levado em conta quando no h lei" (Rm 5.13), mas quando existe uma lei de Deus, os pecados (aqui corretamente chamados de "transgresses"), so e precisam ser imputados. Ou seja, so considerados res-ponsabilidade do pecador, e contam contra ele. Mas exatamanete isto que Deus recusou-se a fazer, pura e simplesmente pela graa. Ele declinou-se a cobr-los de ns. Ao invs disto (e esta a segunda coisa que Deus fez, o lado positivo), "aquele que no conheceu pecado, Deus o fez pecado por ns, para que nele fssemos feitos justia de Deus" (v.21). Estas maravilhosas palavras formam, reconhecidamente, uma das mais ousadas declaraes sobre a morte de Cristo no Novo Testamento. fcil as-soci-las a Glatas 3.13, onde est escrito que Cristo fez-se maldio em nosso lugar. O que Paulo quis dizer com isto?

    O versculo (21) comea com uma declarao da "apecaminosidade" de Jesus. Ele no citado nominal-mente, mas apenas uma Pessoa pode corresponder descrio: "aquele que no conheceu pecado". Ele no "conheceu" o pecado, no sentido hebraico do verbo. Ele no teve experincia alguma do pecado. Este Cristo completamente sem pecado que foi feito pecado por ns. Que sentido isto pode ter, exceto que ele foi feito pecado

  • pelos nossos pecados? Paulo no est sugerindo que Cristo tinha um profundo sentimento de simpatia pelos nossos pecados; na verdade, trata-se da verdadeira e terrvel identificao de Cristo com os nossos pecados uma identificao que s ele, por ser completamente destitudo de pecado, poderia efetuar (Esta ligao, no pensamento e no ensino apostlico, entre a apecaminosidade de Jesus e sua morte por nossos pecados, aparece tambm em Hb 7.26, 27; 1 Pe 1.18, 19; 2.22, 24; 3,18, e 1 Jo 3.5.). Ele, que foi "feito carne" no ventre de Maria, sua me, foi "feito pecado" na cruz do Calvrio. Deus, para no nos imputar os nossos pecados, imputou-os a Cristo, e seu Filho, que no conheceu pecado, foi feito pecado por nossa causa. Quando dizemos estas coisas, no podemos nos esquecer do que o verso 19 ensina: "Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo". De que maneira Deus estava em Cristo quando por ele Cristo foi feito pecado por nossa causa, eu no sei dizer. Estamos lidando com o supremo paradoxo da expiao. Mas Paulo ensinou as duas verdades, e ns as aceitamos, mesmo sem poder reconcili-las ou formul-las de forma precisa e elegante. Deus fez que Cristo se tornasse pecado com os nossos pecados, para que pudssemos nos tornar justos com a justia de Cristo. Esta misteriosa permuta s possvel queles que esto "nele" (a ltima palavra do captulo, no texto original), aqueles que esto pessoalmente unidos a Cristo pela f. Deus estava em Cristo realizando nossa reconciliao (v.19); e ns precisamos estar em Cristo para receb-la (v.21).

    Fica evidente, ento, que a reconciliao no consiste apenas em vencer a obstinada resistncia do ser humano, mas tambm em carregar o seu pecado e sua condenao. Quem "muda" tambm Deus, no o homem

  • (O Dr. Leon Morris, no captulo IV de seu livro The Apostolic Preaching of the Cross - Grand Rapids: Eerdmans, 1955 -, afirma que a principal idia envolvida na palavra alsso, reconciliao, e suas derivadas, a de mudana. Ele d tambm alguns exemplos em escritos rabnicos, uma referncia em Josefo, e trs em 2 Macabeus, onde se diz que Deus reconciliou-se com o homem.). verdade que o Novo Testamento nunca diz exatamente que Deus foi ou est sendo reconciliado com o homem. Deus nunca figura como objeto do verbo "reconciliar", e quando ele o sujeito, a voz sempre a ativa, nunca a passiva. Mesmo assim, J. H. Bernard escreve, acerca da idia de Deus sendo reconciliado conosco: " muito improvvel que S. Paulo sentisse alguma dificuldade com esta expresso" (An Expositor's Greek Testament, ed. W. R. Nicoll (Grand Rapids, Eerdmans), ad loc.). O fato que o apstolo Paulo apresenta a reconciliao como um feito divino, atravs da morte de Cristo e independente de qualquer contribuio humana, que podemos apenas "receber" (Rm 5.11) como dom gratuito. Citando novamente James Denney, " em virtude de algo que j foi consumado na cruz que Cristo pode nos fazer este apelo, e obter a resposta em que ns recebemos a reconciliao".

    esta reconciliao que somos chamados a proclamar, como arautos. O autor da reconciliao Deus, o agente da reconciliao Cristo, mas os homens so os seus embaixadores. Esta a seqncia lgica do pensamento. A reconciliao vem de Deus para ns atravs de Cristo, para que a recebamos e a faamos conhecida por outras pessoas. Deus no fica satisfeito por ter planejado, realizado e concedido a ns esta reconciliao; ele providencia tambm que ela seja divulgada. A reconciliao deve ser proclamada por aqueles que a receberam. Assim,

  • Deus nos d dois presentes: a reconciliao em si, e o "ministrio" (v.18) e "a palavra" (v.19) da reconciliao. Se no recebemos ainda a reconciliao, no podemos proclam-la; aps receb-la, temos esta obrigao. Ou, dizendo a mesma verdade com outras palavras, quando estamos "em Cristo", e nos tornamos justia de Deus (v.21), descobrimos ento que somos "de Cristo", e nos tornamos seus embaixadores (v.20). Alm disto, no devemos deixar de notar em ambos as expresses" (v.18), a presena do artigo definido. Fomos chamados para o ministrio da reconciliao. A mensagem que devemos proclamar a palavra da reconciliao. Somos comissionados como arautos da nica reconciliao que interessa a Paulo, aquela que foi realizada pelo Pai atravs do Filho, na cruz.

    Desta maneira, o apstolo Paulo declara aquilo que estamos chamando de proclamao, o anncio do que Deus fez para a nossa reconciliao consigo. Ele recusou-se a imputar sobre ns os nossos pecados. Ele tornou Cristo pecado por ns. Este o "evangelho" que proclamamos. E a proclamao de um fato, um feito glorioso e completamente terminado, de um presente que pode ser agora livremente recebido. Porm, apesar do enorme valor desta boa notcia no estamos autorizados a permanecer indiferentes reao de nossos ouvintes a ela. Assim, Paulo vai da proclamao ao apelo. "Somos embaixadores em nome de Cristo" - ele escreve - "como se Deus exortasse por nosso intermdio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus" (v.20). O apelo

    O apelo do embaixador representado aqui de duas

  • maneiras diferentes: em primeiro lugar, ns "somos embaixadores em nome de Cristo (...) Em nome de Cristo, ns rogamos que vos reconcilieis com Deus". Mas tambm Deus que exorta por nosso intermdio. Estudaremos estas duas expresses, uma de cada vez.

    Primeiramente, "somos embaixadores em nome de Cristo (...) Em nome de Cristo, pois, vos rogamos que vos reconcilieis (...)". A repetio de hyper Christ ("no lugar de", ou "em nome de Cristo"), realmente maravilhosa. Este o nosso alto privilgio. Foi por ns (hyper hemn, v.21), que Deus tornou Cristo pecado; hoje, por causa de Cristo (hyper Christ, v.20) que Deus nos torna embaixadores. Seu interesse por ns foi to grande que o levou at a cruz; at que ponto vai o nosso interesse por Cristo? Se o amssemos tanto quanto ele nos amou, seramos embaixadores realmente zelosos! Este "em nome de Cristo" pode transformar nosso ministrio. No h incentivo mais poderoso para o evangelismo do que "hyper t onmatos aut" "por causa do seu nome", "por amor do seu nome" (Rm 1.5) (O mesmo incentivo aplicado ao sofrimento, ao invs de ao servio: At 5.41; Fp 1.29.).

    Portanto, por causa de Cristo, para o engrandecimento do seu reino, para a glria do seu nome, que ns somos embaixadores e rogamos aos homens que se reconciliem com Deus. No podemos suportar o pensamento que ele tenha sofrido em vo. Deus fez, atravs da morte de Cristo, tudo o que necessrio para a reconciliao do ser humano? Ento, enfrentaremos todas as dificuldades para insistir com os homens, persistentemente, ansiosamente, sobre a necessidade de serem reconciliados com Deus. Este apelo urgente no muito popular em alguns ambientes eclesisticos de hoje, mas eu no tenho dvida alguma que era exatamente isto

  • que Paulo tinha em mente, e espero poder provar. S. Paulo usa dois verbos diferentes para descrever o

    apelo do embaixador: "Deus exortando", que parakalntos, e "ns vos rogamos", que demetha. Parakalin um termo com uma gama ampla de signify-cados, especialmente "admoestar, exortar", "pedir, implo-rar, interceder", e tambm confortar, encorajar e fortalecer. Mas domai menos ambguo. Sim, freqentemente seu sentido um tanto fraco (como, por exemplo, em At 8.34, 21.39, 26.3), mas no h dvida que o sentido sempre "pedir, implorar, suplicar, rogar". No Evangelho segundo S. Lucas, usado para quando "um homem coberto de lepra, ao ver Jesus, prostrando-se com o rosto em terra, suplicou -lhe" que o purificasse (Lc 5.12); quando o endemoniado gadareno prostrou-se diante de Jesus e exclamou: "Rogo-te que no me atormentes", e mais tarde "rogou "que Jesus permitisse que ele o acompanhasse (Lc 8.28, 38); e quando o pai daquele menino com aparncia de epiltico "rogou" aos discpulos de Jesus que expulsassem dele aquele esprito imundo, e depois estava clamando a Jesus: "suplico-te que vejas meu filho" (Lc 9.38, 40). Este o mesmo verbo que S. Paulo utilizou em algumas das passagens mais emocionais de suas epstolas (ex.: Gl 4.12; 2 Co 10.2 [v. 1 parakalin]). E a palavra traduzida por orao. Sim, muitas vezes trata-se de uma petio comum (ex.: Mt 9.38 = Lc 10.2; Lc 21.36, 22.32;At 4.31, 8.22, 24;1 Ts 3.10), mas s vezes, desis significa uma splica intensa, como quando Jesus angustiava-se no jardim de Getsmane (Hb 5.7), ou quando o apstolo expressa que "a boa vontade" do seu corao, e sua "splica [desis] a Deus" em favor de Israel " para que sejam salvos" (Rm 10.1, cf. 9.1-3). A luz do uso desta palavra no Novo Testamento, podemos ver no apelo do embaixador uma

  • exortao de extrema urgncia aos homens, para que faam as pazes com Deus. Nada menos forte seria apropriado a algum que trabalha "em nome de Cristo", e Cristo crucificado.

    A outra descrio que o aptolo faz do apelo ainda mais impressionante. No apenas "ns somos embai-xadores em nome de Cristo", e "ns rogamos" que as pessoas se reconciliem com Deus; Deus tambm fazendo sua exortao atravs de ns. O mesmo Deus que tornou possvel a reconciliao e que nos deu o ministrio e a palavra da reconciliao, mantm ainda a iniciativa no estgio final deste processo. A realizao foi dele; o apelo dele tambm. Precisamos ter em mente a magnaminidade divina. Ele, que trabalhou "por ns" (v.21), agora trabalha "atravs de ns", "por nosso intermdio" (v.20). Realmente, ele, que atuou "por meio de Cristo"(v.18) para realizar a reconciliao, agora atua "por meio de ns" (v.20) para implorar aos pecadores que a aceitem. Enquanto Cristo foi seu agente no primeiro caso, ns somos seus agentes no segundo. E esta a honra indizvel que ele confere a seus embaixadores. E como se ele usasse a proclamao das boas novas, tanto a proclamao quanto o apelo, para falar pessoalmente aos homens, para manifestar-se pessoalmente a eles e traz-los salvao.

    Precisamos ter cuidado com o modo como expres-samos esta impressionante verdade. Alguns escritores modernos sentem tanto desejo de chamar ateno para aquilo que chamado de "o carter existencial da pregao", que eu creio estarem arriscando-se a ir longe demais. No ltimo captulo do livro do Dr. Mounce, intitulado "A Natureza Essencial da Pregao", ele afirma: "a proclamao da cruz , ela mesma, a continuao ou a extenso no tempo do prprio prio ato redentivo". um

  • prolongamento e mediao da atividade redentora de Deus'. "Quando ele [o pregador] proclama pela f o grande feito divino, percebe que este fato est acontecendo de novo". "As barreiras do tempo so de algum modo ultrapassadas, e o supremo fato do passado est acontecendo de novo". Semelhantemente, no prefcio do livro ele escreve: "No lugar onde o tempo e a eternidade se cruzam, ele [o pregador] tem o alto privilgio de prolongar no tempo aquele poderoso feito de Deus que, num determinado sentido, faz parte da histria do Imprio Romano". Confesso que algumas destas afirmaes me soam arriscadas e incautas. Em que sentido o arauto, com sua proclamao, pode "prolongar", ou produzir uma "continuidade" ou "extenso" do ato redentivo de Deus na cruz? O Dr. Mounce parece indicar que de alguma forma, a cruz est "acontecendo de novo". Pelo menos, ele usa esta expresso duas vezes. Mas eu confio que ele no est querendo dizer que h, ou poderia haver, qualquer forma de repetio da morte vicria do Salvador. Cristo morreu hpax, uma vez s, definitivamente, como os escritores do Novo Testamento vez aps vez afirmam. Sua obra foi terminada, seu sacrifcio foi completo, sua misso foi cumprida na cruz, e "tendo oferecido, para sempre, um nico sacrifcio pelos pecados" (Hb 10.12), ele assentou-se destra do Pai.

    O que o Dr. Mounce e outros autores esto realmente dizendo - e com isto eu concordo alegremente - que atravs da pregao Deus transforma a histria passada em realidade presente. A cruz foi, e ser para sempre, um evento histrico nico no passado. E permanecer no passado, nos livros, a no ser que Deus mesmo a torne real e relevante para as pessoas de hoje. pela pregao, em que ele faz o seu apelo aos homens

  • atravs de homens, que Deus realiza este milagre. Ele abre os olhos deles para que percebam o verdadeiro significado da cruz, seu valor eterno e sua validade para hoje. "Pregao" escreve o Dr. Mounce - " aquele elo atemporal e eterno entre o grande ato redentivo de Deus e a sua apreenso pelo ser humano. o meio pelo qual Deus comtemporaniza sua autorevelao histrica, e oferece ao homem a oportunidade de responder com f". mais do que isto, ainda. Deus no apenas confronta as pessoas atravs da proclamao do pregador; ele realmente as salva atravs da pregao tambm. Isto S. Paulo diz de maneira categrica: "Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo no o conheceu por sua prpria sabedoria, aprouve a Deus salvar aos que crem, pela loucura do krygma "(1 Co 1.21).