PORQUE TEMOS O DEVER DE DAR IGUAL CONSIDERAÇÃO AOS ANIMAIS NÃO-HUMANOS E AS IMPLICAÇÕES...

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PORQUE TEMOS O DEVER DE DAR IGUAL CONSIDERAÇÃO AOS ANIMAIS NÃO-HUMANOS E AS IMPLICAÇÕES PRÁTICAS DESSE DEVER CRIADO EM 30 AGOSTO 2013. 30 AGOSTO 2013 0 Luciano Carlos Cunha[1] Resumo: Será moralmente defensável o especismo? O presente artigo defende que devemos ser imparciais, o que implica dar igual consideração aos interesses relevantemente similares (o que inclui interesses de animais não-humanos), não importando o portador do interesse. Isso implica, por sua vez, não apenas em abolir o uso dos animais como recursos (em oposição a meramente regulamentar para diminuir o sofrimento), mas, rejeitar o especismo e atender a um interesse de um animal não-humano toda vez que reconhecermos tal interesse como digno de ser atendido quando possuído por um humano. Palavras-chave: Especismo, Igual Consideração, Abolicionismo, Imparcialidade. Abstract: Is speciesism morally defensible? This article argues that we should be impartial, which means giving equal consideration to relevantly similar interests (including interests of nonhuman animals), no matter the carrier of interest. This implies, in turn, not only to abolish the use of animals as

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Será moralmente defensável o especismo? O presente artigo defende que devemos ser imparciais, o que implica dar igual consideração aos interesses relevantemente similares (o que inclui interesses de animais não-humanos), não importando o portador do interesse. Isso implica, por sua vez, não apenas em abolir o uso dos animais como recursos (em oposição a meramente regulamentar para diminuir o sofrimento), mas, rejeitar o especismo e atender a um interesse de um animal não-humano toda vez que reconhecermos tal interesse como digno de ser atendido quando possuído por um humano..

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  • PORQUE TEMOS O DEVER DE DAR IGUAL CONSIDERAO AOS ANIMAIS NO-HUMANOS E AS IMPLICAES PRTICAS DESSE DEVERCRIADO EM 30 AGOSTO 2013. 30 AGOSTO 2013

    0Luciano Carlos Cunha[1]

    Resumo:

    Ser moralmente defensvel o especismo? O presente artigo defende que devemos ser imparciais, o que implica dar igual considerao aos interesses relevantemente similares (o que inclui interesses de animais no-humanos), no importando o portador do interesse. Isso implica, por sua vez, no apenas em abolir o uso dos animais como recursos (em oposio a meramente regulamentar para diminuir o sofrimento), mas, rejeitar o especismo e atender a um interesse de um animal no-humano toda vez que reconhecermos tal interesse como digno de ser atendido quando possudo por um humano.

    Palavras-chave: Especismo, Igual Considerao, Abolicionismo, Imparcialidade.

    Abstract:

    Is speciesism morally defensible? This article argues that we should be impartial, which means giving equal consideration to relevantly similar interests (including interests of nonhuman animals), no matter the carrier of interest. This implies, in turn, not only to abolish the use of animals as

  • resources (as opposed to merely regulate to lessen the suffering), but to reject speciesism and to promote an interest of a non-human animal every time we recognize such interest worthy of consideration when possessed by a human.

    Keywords: Speciesism, Equal Consideration, Abolitionism, Impartiality

    1 - A situao dos animais no-humanos.

    Animais no-humanos so sujeitados rotineiramente a todo tipo de sofrimento e morte. Somente no uso para alimentao, trilhes deles so mortos mundialmente a cada ano, sendo que boa parte vive uma vida de intenso sofrimento nas granjas industriais, o que inclui a produo de ovos e laticnios[2]. O maior nmero de animais que humanos matam, contudo, se encontra na atividade da pesca[3]. O uso no se limita alimentao. Quase todo setor da vida humana marcado por us-los: pesquisa, testes laboratoriais, caa, vesturio, entretenimento e na fabricao de quase todo tipo de produto.

    Como tal uso seria considerado moralmente hediondo se infligido a humanos, tal prtica s pode estar baseada na seguinte crena: humanos tm umstatusmoral superior ao de outros animais e que, ostatusmoral desses animais to baixo que autoriza infligir quase que todo tipo de dano a eles, mesmo que por motivos triviais. Mais do que isso, humanos reconhecem que os animais no-humanos possuem determinados interesses, como no sofrer e desfrutar da vida (interesses considerados prioritrios sobre qualquer outro quando possudos por humanos) e, contudo, no respeitam tais interesses, simplesmente porque a vtima um animal no-humano. A esse tipo de preconceito (tratar com considerao desigual interesses que so relevantemente similares, com base na espcie da vtima) d-se o nome deespecismo, em analogia ao racismo (sendo o mesmo tipo

  • de discriminao, s que com base na raa da vtima).

    2 - Como raciocinar sobre questes morais

    amplamente difundida a crena de que, no que diz respeito a valores morais, qualquer escolha que se faa igualmente arbitrria. Esse tipo de reivindicao est presente na idia de que a tica relativa sociedade em questo (relativismo moral), ou relativa a cada agente (subjetivismo moral). Tais posies negam razo (o que implica critrios objetivos) um papel nas questes ticas.

    Uma caracterstica crucial darazo ageneralidade. Como o filsofo Thomas Nagel observou: "Se eu tiver razes para concluir ou admitir ou querer fazer algo, estas no podero ser apenas para mim', mas deveriam funcionar como justificao para qualquer um que estivesse fazendo o mesmo, em meu lugar[4]". "A generalidade das razes" continua o autor "significa que elas se aplicam no somente a circunstncias idnticas, mas tambm a circunstncias de relevante similaridade - e o que conta como relevante similaridade ou diferena pode ser explicado por razes da mesma generalidade[5]".

    Defenderei que duas caractersticas essenciais da razo (coernciaerelevncia) desempenham um papel fundamental em tornar possvel o raciocnio sobre tica. A possibilidade de um raciocnio tico coloca o nus da prova sobre os ombros das concepes relativistas/subjetivistas, em provar que no h verdade objetiva sobre tica, e de que tudo o que podemos chegar por meio do raciocnio em tica mera iluso.

    Contudo, qualquer tentativa de desacreditar uma determinada concluso em tica, para fazer sentido, ter de vir do prprio raciocnio tico, assim como qualquer tentativa de mostrar que um determinado raciocnio matemtico est

  • errado, para fazer sentido, tem de partir do prprio raciocnio matemtico. Simples descries psicolgicas a respeito de como chegamos a ter as crenas que temos, sejam elas crenas factuais, lgicas, matemticas ou morais, no tem o poder de mostrar que tais crenas so injustificadas ou justificadas. Dizer "voc s acredita que o resultado de tal conta 239 porque seu irmo tambm acha o mesmo" no prova que o resultado est errado. Tal prova s seria possvel atravs de demonstrao matemtica. Do mesmo modo, dizer "voc s acredita na igualdade porque vive numa sociedade democrtica, e acreditaria no contrrio se tivesse nascido numa sociedade de castas" no prova que minha crena de que a devemos buscar a igualdade est errada, nem prova que impossvel de haver uma resposta objetiva para a questo "devo buscar a igualdade ou no?", mesmo que fosse verdade o que tal afirmao descreve (que eu no acreditaria na igualdade se nascesse num sistema de castas). Responder "que valores eu teria se...?" no responder "que valores algum deve ter?". A resposta para as perguntas "existem verdades objetivas em tica?" e "devo escolher a igualdade ou no?" s podem vir do prprio raciocnio tico. Supondo que fosse verdade que, se eu tivesse nascido em um local onde vigorasse um sistema de castas, eu acreditasse que a existncia de castas est correta; isso em nada provaria quanto justificao ou no das castas, pois seria uma mera descrio psicolgica a meu respeito. Depois de tudo considerado sobre os fatos reais e alternativos possveis sobre mim, eu ainda teria de me perguntar: "devo buscar a igualdade ou no?"; e a resposta dessa pergunta no pode vir do domnio descritivo (sobre minha cultura, minha psicologia e nem mesmo sobre as tendncias naturais humanas em geral). Isso porque, eu ainda teria de perguntar "devo seguir o que minha cultura diz?", "devo seguir minhas inclinaes?", "devemos seguir nossas tendncias naturais?". Fazer essas perguntas essencialmente buscar por uma resposta

  • normativa, que s pode vir do domnio do raciocnio tico.

    O domnio normativo no pode logicamente ser transcendido pelo domnio descritivo. Pensar o contrrio confundir a verdade sobre uma questo com nossas crenas (o que pensamos que a verdade) sobre a resposta dessa questo. So nossas crenas sobre o que a verdade que mudam de acordo com a cultura, tempo e local, mas no a verdade. Se o relativista ou subjetivista objetar "e, se no houver uma verdade objetiva em tica?", precisa pretender, para que a objeo faa sentido, que a resposta paraestapergunta que acabou de fazer, no seja relativa nem subjetiva (ou seja, que h uma verdade sobre a respostadessapergunta). E a resposta no pode vir da mera descrio psicolgica sobre como chegamos a ter as crenas que possumos; tem de vir do prprio raciocnio normativo.

    Do mesmo modo, dizer "toda verdade uma mera construo humana" auto-refutante, porque quem diz tal coisa espera que isso seja verdadeiro (e verdadeiro em termos objetivos, independentemente de nossas crenas sobre isso!), e no meramente uma construo humana ( o tipo de frase que, se verdadeira, falsa). Se, por outro lado, tal afirmao pretender ser, ela mesma, uma mera construo, sem pretender ser objetivamente verdadeira, ento no precisamos dar ouvidos a ela, e nem oferecer nenhum argumento para rejeit-la, j que ela no oferece nenhum argumento para aceit-la. Essa segunda sada possui uma complicao adicional para o subjetivista, pois ele teria de admitir que, se algum tomasse como objetivamente verdadeira a tese que ele defende, ento que isso estaria objetivamente errado, o que tambm auto-refutante (ele est a dizer " objetivamente verdadeiro que nenhuma tese pode ser objetivamente verdadeira, incluindo esta"), j que tal tese defende a impossibilidade de qualquer verdade objetiva. Se o subjetivista, por sua vez, disser que tambm no est errado quem considerar sua tese como exprimindo

  • uma verdade objetiva, ento cria outra afirmao objetiva, e assim infinitamente. Tais tentativas subjetivistas apenas mostram que toda vez que tentamos subjetivar algo, automaticamente nos apoiamos sobre uma perspectiva objetiva para que a afirmao faa sentido, o que sempre auto-refutante se a tentativa for de subjetivao total.

    Contudo, uma coisa a tentativa de subjetivaototal. Outra coisa dizer que no h verdade objetiva emdeterminada reado pensamento. No necessariamente isso ser auto-refutante (o que no quer dizer que est necessariamente correto). Quando dizemos que o gosto pela cor prediletano passvel de avaliao racional, porque, ao que parece, no existem formas de argumentar de modo a demonstrar que prefervel, por exemplo, o vermelho ao verde. Por outro lado, se afirmado que a tica passvel de avaliao racional, quer-se dizer que existem formas de argumentar, por exemplo, que uma determinada deciso moral errada (ou um dever, ou opcional) em termos objetivos; no apenas para mim ou para minha comunidade, mas que deveria ser considerada errada por qualquer um que pudesse pensar com clareza sobre o tema, ainda que eu, minha sociedade, ou todo mundo, pensassem o contrrio. A defesa da objetividade da tica no a busca de um padro moral que todosde fatoacreditamser correto (posiodescritiva), mas que todosdeveriamacreditar (posionormativa). por esse motivo que possvel todos acreditarem em uma determinada concluso moral e estarem todos, errados. A verdade em um domnio, se existir, no pode ser estatstica e nem depender de conveno, do contrrio jamais poderamos estar todos enganados a respeito de algo. Assim, a objetividade da tica no provada por se mostrar que existem alguns padres que todas as sociedadesaceitam(como, por exemplo,algumaproibio sobre matar), pois a busca sobre que padresdeveria-seaceitar. Nem o fato de haver discordncia entre as

  • sociedades e os indivduos prova que a objetividade da tica falsa, e que ento todos os juzos so igualmente arbitrrios, pois tambm se trata de uma mera descrio sobre crenas divergentes (o que no prova que so todas igualmente plausveis). Onde devemos fundamentar essa objetividade ento?

    Suponha duas posies normativas completamente opostas: uma que afirma que temos de levar as preferncias dos outros em considerao igual que damos as nossas preferncias (posio imparcial); e outra que afirma que s temos de levar as nossas prprias preferncias em conta (egosmo). Argumentarei que: (1) devemos aceitar aexigncia de tratar casos relevantemente similares de maneira similare que; (2) tal aceitao requer que adotemos uma perspectiva imparcial (impessoal) e rejeitemos o egosmo ou qualquer outra viso normativa que implique arbitrariedade.

    A generalidade das razes pode ser traduzida naexigncia de tratar casos relevantemente similares de maneira similar. Tal exigncia composta, na verdade, por duas:coernciaerelevncia. Acoernciaaqui entendida como estar-se comprometido a, uma vez tomada uma deciso em um caso com base em uma razo, tomar a mesma deciso diante de outros casos que se enquadram no escopo da razo oferecida no primeiro caso. Supondo que algum afirme que a razo pela qual correto matar animais no-humanos que estes no conseguem entender as idias de direitos e deveres. Esse algum est logicamente implicado a dizer que, ento, correto matar humanos que no entendem o que so direitos e deveres (os bebs, as crianas pequenas, e uma parte dos adultos tambm). Assim, um primeiro passo para detectar erros morais verificar se uma posio coerente ou no. No significa, contudo, que uma vez tendo coerncia, a deciso est automaticamente justificada. possvel errar coerentemente, pois possvel que tenhamos escolhido um critrio que no sejarelevantee aplic-lo de

  • maneira coerente. Supondo que a pessoa do exemplo anterior mantenha que correto matar todos aqueles que no sabem o que significam direitos e deveres (incluindo as crianas pequenas, etc.). Os dois casos so tratados de maneira coerente com o critrio escolhido, mas isso no mostra que o critrio escolhido est correto. Ns podemos ainda perguntar: "no que a vtima saber o significado de direitos e deveres tem a ver com o erro em mat-la?". Poderamos responder, por exemplo, que o motivo mais bvio que torna o ato de assassinar um mal que isso impede a vtima de desfrutar experincias. Quando algum jovem morre, faz sentido lamentar lembrando o tanto que tal pessoa tinha a desfrutar ainda, e no, que ela sabia o que eram direitos e deveres. O que acabei de fazer foi sugerir que aperda do desfrute um critrio relevante para se descobrirquais seres um erro matar, enquanto que saber o que so direitos e deveres no (talvez seja apenas para saber quais seresdevem ser responsabilizadoscaso matem). Mas, se for verdade que o critrio do desfrute relevante e explica o erro em matar crianas humanas (e, penso que ), ento estamos logicamente implicados a aceitar que, ento, errado matar outros animais no-humanos sencientes (a saber, seres capazes de ter experincias), j que tambm so capazes de desfrute. O que fiz foi apelar ao critrio da relevncia, argumentando que a idia de que s errado matar os seres que sabem o que so direitos e deveres reside numa confuso entre o critrio relevante para se descobrirquais seres temos dever de considerarcom o critrio relevante para se descobrirquais seres tm o dever de consider-los.

    possvel que algum defenda que o critrio que elegi para explicar o erro em assassinar (perda do desfrute) insuficiente, pois no leva em conta os casos onde o indivduo possui uma preferncia por continuar vivo apesar de no ter quase nenhum desfrute pela frente. Essa uma crtica plausvel. Mas, veja o que ela implica: no mostra que

  • a perda do desfrute um critrio irrelevante; mostra apenas, se fizer sentido, que a perda do desfrute um critriosuficiente, mas nonecessrio, para existir erro em assassinar. possvel que discordemos tanto sobre se dois casos so ou no relevantemente similares, quanto sobre se o critrio escolhido para julgar os casos relevante ou no (como tambm se um critrio relevante necessrio, suficiente ou ambos). Isso tudo possvel, e a que continua o raciocnio tico. Poderamos continuar, por exemplo, reconhecendo que talvez o erro em assassinar se configure a partir de vrias razes suficientes, e no apenas de uma, sendo a perda do desfrute uma razo possvel e a preferncia por continuar vivo outra. Diante de novos contra-exemplos poderamos rejeitar ou aprimorar nossa definio do erro em matar e assim prosseguiria o raciocnio tico. Agora, estamos j no nvel de apelo razo, e isso no tem mais nada de relativo ou subjetivo.

    O que no inteligvel rejeitar as exigncias de coerncia e relevncia. Se algum afirmar, por exemplo, que minha anlise anterior estava errada, e que h uma diferena moralmente significativa entre animais no-humanos e crianas humanas, e pretender, com isso, demonstrar que ocritrio mesmoda coerncia no plausvel, comete uma confuso. O mximo que algum pode conseguir com isso mostrar que minha anlise estava errada; que fuiincoerente(que os casos que pensei que eram relevantemente similares na verdade no so). Para se conseguir fazer isso, preciso assumir que casos relevantemente similares devem ser tratados de maneira similar (assumir a validade da coerncia e relevncia). No inteligvel dizer "esses casos so similares em todas as caractersticas que so relevantes para saber como devemos trat-los, mas, apesar disso, no devemos trat-los de maneira similar". Da mesma maneira, se algum afirmar que o critrio do desfrute futuro um mau critrio, e pretender com isso

  • afirmar quea exigncia mesmade relevncia no tem importncia, comete o mesmo erro. O mximo que poderia ser mostrado com tal crtica que possvel que eu tenha escolhido um critrio no muito relevante, no que a relevncia no importa. Para isso, tem-se de assumir a exigncia de relevncia. auto-refutante dizer "a relevncia no relevante".

    Assim, relevncia e coerncia derivam diretamente da razo (haja vista estarem presentes implicitamente at mesmo nos argumentos que pretendem rejeit-la). So critriosformais(no sentido de no explicitarem diretamente o que conta como razo relevante e como caso similar) que se fazem presentes em qualquer raciocnio tico (e em outros usos da razo tambm), seja l qualcontedoestiver a preench-los. Assim, no importa a viso normativa que algum defensa: precisa-se assumir essa exigncia formal para que sua posio seja minimamente plausvel.

    3 - Por que o teste formal da tica implica que temos de chegar a princpios abstratos vlidos para todos.

    A exigncia de que uma razo deve valer para todo e qualquer agente tambm deriva da exigncia de tratar casos relevantemente similares de maneira similar. Quando se reivindica que, se tenho uma razo para agir num caso, qualquer outro agente racional deveria reconhecer o mesmo motivo como gerando uma razo para agir, est-se apoiado na idia de que o caso de um agente e o caso dos outros so relevantemente similares. Se algum afirma, pelo contrrio, que no caso de um determinado agente, a razo no se aplica, tambm tem de se apoiar na mesma regra, ou seja, tm de apresentar o que h nesse caso que justifica o tratamento diferente. Essa diferena que justifica o tratamento diferente tambm tem de sergeral, ou seja, tem de pretender possuir validade para todo e qualquer agente que se enquadre na definio, no apenas este do caso

  • particular, alm de pretender ter validade universal no sentido de ser uma razo vlida (relevante) para qualquer ser que possa pens-la com clareza.

    Suponhamos que afirmo, diante de um acidente envolvendo vrios feridos, que devemos dar prioridade aos que esto na pior situao. Quero com isso dizer que tal coisa deveria ser um dever no apenas para minha sociedade ou para mim, mas para qualquer ser dotado de razo - ou seja, capaz de reconhecer tal reivindicao como relevante por conseguir pensar com clareza sobre ela. Supondo que algum aponte uma exceo, e afirme que um dos acidentados quenoest na pior situao deveria, contudo, receber prioridade no atendimento, pois se trata de um mdico e tm mais chances de salvar os outros, (afirma-se que tal caso relevantemente diferente). Tal razo geral, em dois sentidos. O primeiro que no se aplica somente a esse caso, mas a qualquer indivduo que tenha mais chances de salvar os outros dando prioridade ao alvio dos seus prprios ferimentos. O segundo sentido que pretende validade universal: que a regra "dar prioridade quele que tem mais condies de salvar os outros" seja reconhecida como uma razo relevante para qualquer ser dotado de razo que possa pensar sobre a questo, independentemente de cultura ou predisposio psicolgica. Ou seja, reivindica que no faz diferena se o prprio mdico que tem de tomar a deciso ou se qualquer outra pessoa. Razo implica generalidade, e vale para outros casos relevantemente similares (seja na ponta de quem decide, seja na ponta de quem recebe a deciso), a menos que possamos apontar uma diferena relevante, que tambm tm de se apoiar em pressupostos relevantemente gerais, e assim por diante. Um argumento, por ser fruto da razo, busca sempre validade universal (que deveria fazer sentido, servir como justificativa, para qualquer um que pudesse entend-lo). Como vimos, tal pretenso aparece at mesmo nos argumentos que visam rejeitar a idia de validade

  • universal, como por exemplo na defesa de que "toda verdade uma mera construo" o que auto-refutante.

    Um bom teste para descobrirmos se uma deciso ou no justificvel perguntar se a manteramos independentemente da posio que os indivduos envolvidos na situao ocupassem na relao entre quem decide e quem atingido pela deciso; ou se a mantemos apenas porque sabemos que ns (ou aqueles que visamos favorecer tendenciosamente com a deciso) no seremos atingidos por ela. Se for esse ltimo caso, somos culpados de violar a exigncia de tratar casos relevantemente similares e a deciso no justificvel.

    Diante dos argumentos analisados acima, temos boas razes para pensar que o egosmo indefensvel, como tambm toda uma famlia de vises normativas que dele deriva: especismo, racismo, machismo e homofobia, por exemplo. Todos esses preconceitos tratam interesses relevantemente similares de maneira diferente, elegendo como diferena que pretende justificar o tratamento diferente algumas caractersticas (a espcie, a cor da pele, o gnero, opo sexual, se sou eu que estou decidindo ou no, etc.) que so totalmente irrelevantes para o que est em jogo: a existncia de determinadas preferncias, necessidades, interesses. Podemos perceber que tambm falsa a idia de que, em se tratando de valores bsicos, todos so igualmente arbitrrios. Isso porque alguns valores derivam diretamente da imparcialidade, ou seja, da idia de que, naquilo que relevante para o que se est julgando, todos aqueles que apresentam a caracterstica relevante esto em p de igualdade no que diz respeito a serem considerados moralmente. Enquanto isso, outros valores derivam exatamente do oposto: arbitrariedade, sem se importar com o que relevante.

  • 4 - Avaliando conflitos de preferncias

    Da discusso anterior, podemos observar que a razo fundamental para atender minhas preferncias se d por serem preferncias (um dano tem lugar se elas no so atendidas), e no por seremminhas. Note que isso d, ao mesmo tempo, uma razo to forte quanto para atender as preferncias dos outros. O raciocnio ticonocomea quando levamos em conta apenas um ou alguns dos indivduos que sero atingidos por nossas decises, e no todos.

    Contudo, as preferncias podem conflitar. Nesse ponto, alguns podem pensar que a que o raciocnio tico termina, pois as preferncias conflitaram e supem que no h como avali-las. No h como tomar uma deciso e, dessa deciso, no se danarningum(seja por ao, seja por omisso). No h tambm como satisfazer todas as preferncias conflitantes. Contudo, pelo contrrio, a que o raciocnio ticocomea.

    Seja na moralidade do dia-a-dia, seja em vrias teorias filosficas normativas[6], existem alguns critrios geralmente reconhecidos como vlidos (e, segundo penso, provavelmente a leitora/leitor tambm os reconhecer se pensar seriamente sobre eles) que visam guiar a deciso quando preferncias conflitam. Exemplos poderiam ser: (1) Interesses bsicos (interesses que precisam ser garantidos antes de se pensar em qualquer outro interesse - por exemplo, no sofrer, no morrer) tm prioridade sobre interesses no-bsicos (comer uma comida especfica, por exemplo). Saber se a deciso aumentar ou diminuir: (2) A situao geral daquele(s) que se encontra(m) na pior situao; (3) a quantidade de indivduos numa situao ruim; (4) a igualdade (entendida aqui como igualdade de bem-estar) entre os indivduos atingidos. (5) A deciso a que produz mais benefcios e menos malefcios agregados do que todas as outras possveis alternativas? (6) Algum est sendo utilizado como um mero recurso para outro (ou seja, est se desconsiderando

  • completamente o seu valor enquanto indivduo)? (7) Distinguir preferncias que esto de acordo com o teste formal da tica e preferncias que so elas mesmas frutos de uma viso que viola a mesma exigncia.

    Esses critrios podem tambm conflitar entre si ou se mostrarem inadequados ou incompletos, o que no motivo para pensar que o raciocnio tico impossvel e que tudo muito relativo', mas sim, que tal assunto requer mais anlise e mais raciocnio tico. Poderia ser defendido, por exemplo, que as idias de responsabilidade e merecimento tambm devem entrar na equao. O que pretendi sugerir, ao citar esses critrios, que falso que no temos idiaalgumade como avaliar preferncias quando conflitam.

    importante enfatizar tambm que a imparcialidade requerconsideraoigual, no necessariamentetratamentoigual[7]. Se algum pretende colocar a imparcialidade sob dvida com o exemplo de que, ento, teramos que dar uma parte igual, e no, maior, quele que tem menos, numa distribuio, no compreende o que chamei de imparcialidade. Embora, ao dar mais a quem tem menos, tenhamostratamentodiferente, o resultado final mais igualitrio - ou seja, temos vrios indivduos com nveis mais prximos de bem-estar. E s podemos reivindicar que aquele que tem menos receba mais apelando tambm regra de tratar casos relevantemente similares de maneira similar. No caso da prioridade a quem tem menos, o que estamos a dizer que temos uma razo para pensar que tal caso deve ser tratado de maneira diferente do caso em que todos esto j em igualdade de distribuio. Ou seja, que tal caso relevantemente diferente a ponto de exigir tratamento diferente. Por sua vez, temos uma nova regra, que "dar prioridade ao que tem menos". Essa regra, por sua vez, geral. Temos de admitir que vlida sempre que houver algum numa situao pior do que a dos outros, no importandoquem esse algum, e que vale no apenas

  • quando sou eu que decido, mas qualquer indivduo dotado de compreenso. O egosta, pelo contrrio, defenderia a prioridade somente quando ele prprio ou algum de sua preferncia estivesse na pior situao. O mesmo faria o especista, que defenderia prioridade apenas para os da sua espcie, como o racista defende para os da sua raa. Uma evidncia de que o raciocnio tico comeou quando deixamos de nos basear em critrios irrelevantes. Isso, muitas vezes, ir requerer que defendamos que algum na situao pior, que no ns mesmos ou aqueles que preferimos, deve receber prioridade.

    5 - Por que a imparcialidade exige que seja abolido o uso de animais

    Vimos anteriormente que a exigncia de tratar casos relevantemente similares de maneira similar implica noprincpio da igual considerao[8]. Tal princpio diz que, diante de um interesse X, a moralidade de se fomentar ou no tal interesse deve-se unicamente s caractersticas do interesse em questo, no de quem o possui. A razo para se fomentar o interesse em evitar o sofrimento se d pelo sofrimento ser uma experincia ruim, e no por ser o sofrimento de determinado indivduo. Assim, se existem boas razes para se fomentar X quando quem o possui A, temos iguais razes para foment-lo quando quem o possui B, C ou D. Se reconhecemos que a razo que funda a obrigao de se fomentar o interesse em viver, de humanos, a possibilidade de desfrutar da vida, ento, racionalmente, estamos comprometidos a reconhecer que isso igualmente vlido quando tal interesse aparecer em qualquer outro ser capaz de desfrutar da vida (a saber, os seres sencientes, seres capazes de sensaes). Quando tratamos interesses relevantemente similares com considerao diferente, somos culpados de violar o princpio da igualdade.

    Voltemos agora, ao caso dos conflitos de interesses e a regra

  • de que interesses bsicos devem ter prioridade. O fundamento de tal regra que, se a razo pela qual devemos fomentar interesses a de que um dano tem lugar caso o mesmo no seja fomentado, e se verdade que, quanto mais bsico o interesse, maior o dano se este no for fomentado, ento, quanto mais bsico o interesse, maior deve ser sua prioridade. Isso explica porque prticas como, por exemplo, o assassinato por diverso e o estupro esto entre as mais hediondas: o interesse desrespeitado (o da vtima, na integridade fsica e no desfrute da vida) muito mais bsico (e o dano que sofre por no ter o interesse satisfeito, muito maior) do que o interesse do violador. Se tratar interesses similares com considerao diferente j uma violao da imparcialidade, dar prioridade ao interesse banal, sacrificando o interesse vital, uma violao extrema da mesma.

    Muitos humanos j aplicam coerentemente tal regra em alguns casos em que as vtimas so animais no-humanos. Prticas como a farra-do-boi, rodeios e touradas, por exemplo, so mais facilmente repudiadas porque nelas est explcita a violao de um interesse bsico para satisfazer um no-bsico. Reconhecemos que, quanto mais prximo da diverso est o motivo pelo qual algum inflige dano em outro indivduo, mais injustificvel a prtica. Tais prticas so um exemplo paradigmtico de injustia.

    Uma implicao que no muito percebida da mesma regra : se usar animais para entretenimento errado porque envolve causar um dano grave a algum para fomentar a diverso, ento temos de abolir, por exemplo, o uso de animais para alimentao (seus corpos, seus ovos, leite, etc.), porque tambm infligem danos graves (extremos de sofrimento e trilhes de mortes) para fomentar a diverso. Os defensores do consumo de animais alegam que, com relao comida, diferente, pois, comer no um interesse banal. A falha nessa resposta que, embora seja verdade que

  • comeralguma coisaseja um interesse bsico, comerestacomidaespecfica um interesse banal. Quando existe alternativa alimentar que cause menor dano (como a comida vegana), escolher comer outra comida saciar um interesse banal. Assim, comer comida de origem animal to injusto quanto botar fogo em algum por pura diverso ou estuprar; e mais injusto ainda por ser praticado todos os dias, o que causa um nmero maior de vtimas. Ambas as prticas visam saciar um interesse banal a custa de danos enormes, fruto da violao de um interesse bsico. Por isso, o uso de animais para a alimentao tambm um exemplo paradigmtico do mximo possvel em discriminao arbitrria que algum poderia cometer, e, por isso, moralmente hediondo. Pior ainda por estar baseado numa diferena moralmente irrelevante no que diz respeito existncia do interesse bsico: a espcie da vtima.

    A tortura e morte de bilhes de animais para satisfazer a diverso humana no se limitam ao entretenimento e ao uso alimentar. Quase todos os outros usos de animais (nos testes de produtos e vesturio, por exemplo) s podem ser descritos como atendendo a interesses triviais dos humanos. Assim, mesmo que fssemos rejeitar o especismo somente nos casos extremos (interesses banais x vitais), ainda assim teramos o dever de nos tornarmos veganos e reivindicarmos a abolio do uso de animais em todas essas reas[9].

    O nico uso que faz algum sentido alegar que visa atender a um interesse no-banal o uso em pesquisa mdica. altamente discutvel se a maior parte desse uso visa realmente a entender tais interesses no-banais e se so uma forma eficaz de se buscar tais interesses[10]. Mas, como o objetivo aqui discutir a questo moral, vou supor que todo esse uso visa atender a interesses humanos no-banais e que realmente tem chances de fazer diferena na cura de doenas. Tal uso justificvel? Lembremos que a exigncia de tratar casos relevantemente similares de maneira similar

  • implica na imparcialidade, que pode ser traduzida no princpio da igual considerao: para uma deciso ser justificvel, temos de manter a mesma deciso,independentementeda posio que os indivduos atingidos por ela ocupam na situao (temos de acessar a relevnciado interesseem questo, noquemo possui). Os que defendem o uso de animais na pesquisa no aprovariam serem usados fora como cobaias para salvar a vida de animais no-humanos. Ou seja, sua posio no imparcial: defende-se o uso apenas porque as vtimas so animais no-humanos. Sua posio especista. Fossem os papis invertidos, os humanos considerariam uma calamidade tal uso. Isso mostra que sua prtica eticamente indefensvel, e que os humanos s pensam que no porque esto na ponta tirnica da situao. Haveria alguma maneira de se defender que os seres humanos possui umstatusmoral maior, que os intitula a assassinar indivduos de outras espcies quando o que est em jogo a realizao de interesses vitais, mesmo sabendo que os interesses nos indivduos das diferentes espcies em questo so relevantemente similares? Investigaremos esse ponto no item 7.

    6 - A Questo da Prioridade: "Por que no vo cuidar de criancinhas?"

    Supondo a seguinte objeo: "Reconheo o especismo injustificvel, mas, existem tantos outros problemas importantes, como as milhares de crianas morrendo de fome; no deveramos resolver esses problemas primeiro?".

    O primeiro problema com essa objeo que ningum ajuda crianas humanas comendo comida de origem animal. Assim, parar de explorar animais no impede que algum ajude crianas humanas. Mesmo que fosse verdade que os problemas humanos so mais importantes, ainda haveria o dever de nos tornarmos veganos. O segundo, que, tal objeo ela mesma, especista. Assume que os problemas humanos so

  • mais importantes, simplesmente por serem problemas de humanos. Se tal posio pretende ser justificvel, precisa oferecer uma razo (geral, imparcial) para se pensar que otipode problema que aflige os humanos mais importante (ou seja, apontar uma razo que mostre que, caso no fossem os humanos as vtimas, e sim, os animais no humanos, a prioridade teria de ser invertida). precisamente isso que penso ser impossvel de se fazer. Alis, penso que se d o contrrio: qualquer considerao imparcial nos mostrar que os problemas que passam os animais no-humanos deveriam receber prioridade, no porque so os animais no-humanos suas vtimas, mas porque a situao deles pior. Tal posio imparcial porque, casofossemos humanos, e no os animais no humanos, na mesma situao, ento os humanos deveriam receber prioridade.

    Penso que, se raciocinarmos a partir de um ponto de vista imparcial, chegaremos concluso de que a prioridade deve estar onde: (1) Existirem indivduos que se encontrem, em comparao a todos os outros, na pior situao; (2) Existir o maior nmero de indivduos na pior situao; (3) Houver o maior dano agregado, somando-se o dano causado a todos os indivduos afetados naquele caso; (4) Houver maior desigualdade, comparando-se o nvel de bem-estar dos que esto na pior situao com o nvel de bem-estar dos que esto na melhor.

    A situao na qual se encontram hoje os animais no-humanos preenche todos esses requisitos. Apenas a ttulo de ilustrao, se tomssemos apenas o critrio do nmero de mortes, e comparssemos a quantidade de humanos mortos (por toda e qualquer causa) com a quantidade de animais no-humanos assassinados (somente atravs do uso feito por humanos), teramos o seguinte resultado, convertendo os resultados em um grfico que simbolizasse 24 horas: as mortes humanas seriam 00:00:00"12 (doze milsimos de segundo), enquanto que os assassinatos de animais no-humanos seriam

  • 23:59:59"88[11]. Perceba que a considerao acima no nega que existaalgumhumano numa situao pior do quealgumanimal no humano (num caso como esse, a prioridade seria o atendimento ao humano). Ao invs, diz que, os quatro requisitos, tomados em conjunto, mostram que a situao dos animais no-humanostomados em conjunto, pior, o que requer prioridade. Faz sentido, nesse caso, apelar situao em geral, porque quando escolhemos uma causa para lutar, no estamos trabalhando com casos individuais apenas. No caso dos animais no-humanos, esto lutando contra o especismo em geral.

    E, se algum respondesse que a prioridade deveria estar em resolver os problemas humanos (mesmo reconhecendo que no preenchem os quatro requisitos de prioridade listados acima) porque a vida humana mais valiosa? O item a seguir lida com essa questo:

    7 - Por que matar animais no-humanos to errado quanto matar animais humanos: analisando algumas objees igualdade animal.

    Muitas pessoas se opem s granjas industriais, mas no vem problema caso existir um abate indolor depois de uma vida prazerosa. Assim, vemos vrias campanhas que visam minimizar o sofrimento, mas no questionam o uso em si nem o matar em si (as chamadas campanhasbem-estaristasoureformistas). Isso acontece porque os reformistas reconhecem que os animais no-humanos tm interesse em no sofrer, mas no reconhecem o seu interesse em viver. Geralmente, a pergunta a seguir nunca colocada por um reformista: "o que torna errado matar (mesmo sem sofrimento) humanos e, ao mesmo tempo, torna correto matar outros animais?". Como pretendo mostrar, nenhum dos argumentos endereados a seguir[12]consegue mostrar que s h erro em matar humanos, nem que o erro em matar

  • humanos maior.

    A - " errado matar humanos porque eles so humanos"

    Um problema com esse argumento que a premissa da qual parte arbitrria. Se a espcie biolgica eleita como critrio para se determinar quais seres um erro matar, preciso explicar: (1) Por que a espcie biolgica da vtima relevante para se determinar o erro em matar e; (2) Por que a espcieHomo sapiens, e no qualquer outra, a nica espcie cujos membros um erro matar.

    Tal argumento circular: assume que os humanos valem mais quando isso que deveria provar. Se algum dissesse: "os nicos seres os quais um erro matar so amebas, justamente porque amebas so amebas", precisaramos de uma razo a mais para acreditar nisso. Se for errado matar amebas, deve ser por alguma outra razo adicional que no o mero fato delas serem o que so. Qualquer coisa ela mesma. Isso to verdadeiro quanto irrelevante para a moralidade de matar, sejam amebas, sejam seres humanos.

    necessrio que se explique por que a espcie biolgica deveria ser relevante com relao ao erro em matar. Por que a espcie biolgica e no a raa, gnero, orientao sexual, nmero de vogais no nome, data de aniversrio, ou formato da sombrancelha? Na falta de razes que expliquem por que tais critrios deveriam ser relevantes, temos boas razes para pensar que so totalmente arbitrrios, e nada tm a ver com a moralidade sobre o ato de assassinar, pois no influenciam na razo que torna a deciso sobre assassinar uma questo tica: o fato de a vtima sofrer umaperda.

    Existem motivos muito mais bvios para se apontar o erro em matar algum do que apontar o mero pertencimento a determinada espcie biolgica. Quando algum humano muito jovem morre, normalmente dizemos "Que pena! Ele tinha

  • tanto ainda para desfrutar!". Tal lamento no irracional, como seria se dissssemos, diante da mesma constatao: "Que pena! Ele possua a letra H no nome!". O tempo que algum tem ainda para desfrutar pela frente uma razo plausvel para explicar o erro em matar, diferentemente do pertencimento a uma espcie, raa, gnero, etnia. A dificuldade aqui, para os especistas, que essa mesma razo d um motivo contra matar animais no humanos, pois ter possibilidade de desfrute no futuro no exclusivo de nossa espcie.

    Para percebermos a irracionalidade e desonestidade presentes no especismo, considere o seguinte exemplo fictcio: um amigo de infncia nos revela que , na verdade, um extra-terrestre (de outra espcie biolgica). O especista responder: " correto mat-lo! Ele de outra espcie!".

    B - "Humanos so mais inteligentes"

    J que o argumento anterior circular, a nica maneira de se tentar defender tal posio buscar alguma caracterstica possuda exclusivamente por humanos, uma que explique o erro em matar. Uma das tentativas mais comuns desse tipo consiste em afirmar que humanos so mais inteligentes. Costuma-se apontar que humanos so capazes de muitas tarefas. As mais mencionadas so: agir eticamente, firmar contratos, ter senso de justia, possuir linguagem, fazer matemtica avanada, compor sinfonias, construir naves espaciais, etc. Chamarei essa caracterstica de "posse da razo plena":

    Um problema com esse argumento que simplesmente no verdade que todos os humanos tm a posse da razo plena. Por exemplo, bebs, crianas muito pequenas, comatosos, idosos senis e portadores de determinadas doenas cerebrais no a possuem. Isso se aplica a qualquer um de ns que a temos agora, pois poderemos perd-la, por acidente ou

  • doena. Se formos contar o nvel de raciocnio,at mesmo pelos padres humanos, qualquer co adulto normal muito mais racional e autnomo do que os humanos citados anteriormente[13]. Se o erro em matar se d pelo nvel de raciocnio da vtima, ento no seria errado matar aqueles humanos. Os proponentes de tal critrio teriam de admitir que seria muito pior matar qualquer co, galinha, porco ou peixe adulto normal. Ou tais proponentes mantm a exigncia do nvel de raciocnio onde est (e excluem tanto animais no-humanos quanto os humanos mencionados acima) ou abaixam a exigncia para incluir todos os humanos (o que, automaticamente, inclui todos os outros animais sencientes).

    Algum poderia objetar que a resposta acima se esquece de que bebs e crianas muito pequenas um diapodero desenvolvera posse plena da razo, e que idosos senis um diaj tiverama mesma. So, portanto, agentes moraisem potencial, ainda que noreais.

    Um problema com esse argumento que alguns seres humanos sequer so portadores da razo plenaem potencialporque somente um milagre os poderia fazer terem tal capacidade. Por exemplo, aqueles com doenas mentais degenerativas permanentes. Mas, supondo, para efeito de argumentao, que fssemos considerar a possibilidade de um milagre, mutao gentica ou avano da cincia, por exemplo. Temos que ser imparciais, portanto, teramos de considerar que animais no humanos tambm poderiam, por um milagre, mutao gentica ou avano da cincia, adquirir a posse da razo plena. Quanto ao critrio da potencialidade, poderamos questionar ainda qual sua relevncia. Afinal de contas, no pensamos que, por exemplo, um cidado que um mdico em potencial deva ter os mesmos direitos do mdico real (alis, mais plausvel pensar o contrrio).

    Algum poderia ainda alegar que erro com nossa anlise at aqui que consideramos os indivduos enquanto tais, e no

  • enquanto membros de um grupo. Assim, nessa perspectiva, o que importa que os membros normais de um determinado grupo conseguem fazer (humanos adultos tm posse plena da razo), no importa se alguns membros no conseguem (os humanos incapazes de razo); deveriam ser tratados como os membros normais. Tal perspectiva tambm defende que, mesmo que um animal no-humano apresentasse a posse plena da razo, teramos direito de assassin-lo, haja vista os membros normais de sua espcie no apresentarem.

    Um primeiro problema com esse argumento que veramos facilmente que deveria ser rejeitado, por ser arbitrrio ao extremo, se aplicado em outras questes. Argumento similar foi utilizado para impedir que as mulheres tivessem acesso s universidades, no sculo XVIII, inclusive para tentar impedir aquelas mulheres que eram aprovadas, com a alegao que a maioria das outras no obtiveram sucesso[14]. Outro exemplo: com o mesmo critrio, teramos dizer que os locais pblicos no deveriam estar adaptados s necessidades dos cadeirantes, j que eles pertencem a uma espcie tal que a maioria dos membros consegue andar com as prprias pernas. A grande lio a ser aprendida aqui justamente sobre tratar indivduos enquanto indivduos, e no enquanto membros de grupo.

    Outro problema que o grupo sobre o qual est fundado o argumento escolhido arbitrariamente. Por que dividir os grupos com base na espcie biolgica, e no com base na raa, gnero, banda favorita, tamanho do p, formato da orelha, etc? Todos esses critrios soam irrelevantes, pois no dizem respeito ao assunto que est sendo julgado (o erro em matar), j que no dizem nada sobre o malefcio que algum sofre ao ser morto. Os nicos grupos relevantes de serem divididos aqui, seriam: "os que so danados ao serem mortos" e "os que no so". Note que, se os grupos fossem divididos dessa maneira, no haveria arbitrariedade, pois seria tratar exatamente os indivduos enquanto indivduos (pois o critrio

  • escolhido para dividir os grupos seria relevante para o assunto em questo).

    Para que seja percebida a desonestidade envolvida no critrio do grupo, considere o exemplo a seguir: os proponentes de tal argumento afirmam que correto assassinar uma galinha no porque ela uma galinha, mas porque ela no pertence a um grupo cujos membros normais apresentam a posse plena da razo. Supondo que, de repente, uma galinha sofra uma mutao gentica e obtenha uma racionalidade igual de um humano adulto. Os proponentes do argumento do grupo, que sugerem o critrio da posse da razo, respondero: "sim, ela apresenta o critrio, mas mesmo assim vamos assassin-la, porque s uma galinha mesmo, e as outras galinhas no tm posse da razo".

    Aqui vale mais uma vez lembrar da acusao de especismo: no exclumos da considerao moral membros de nossa espcie, ainda que eles no apresentem o critrio que propomos (o nvel de raciocnio) para excluir animais no humanos; e exclumos animais no-humanos, ainda que muitos deles apresentem um nvel de raciocnio muito maior do que os humanos citados acima. Isso indica que o critrio to desonesto que no estamos dispostos a admiti-lo.

    Assim, nos encontramos diante da seguinte situao: (a) ou mantemos que o critrio da posse da razo plena como fundando o erro em matar um critrio adequado; o que implica que temos de dizer que correto matar no somente animais no humanos, mas tambm os humanos que no possuem a posse plena da razo ou; (b) abandonamos o critrio e buscamos o erro em matar em outro lugar. Que deciso devemos tomar?

    Para responder tal questo, importante notar que mesmo que as premissas que colocamos em dvida fossem

  • verdadeiras (se todos os humanos fossem portadores da razo plena, reais e potenciais e se devssemos tratar indivduos enquanto membros de grupo), ainda assim haveria um grave problema com os argumentos abordados:

    Ser portador da razo plena (real ou em potencial) no a coisa mais bvia a levar em conta ao se tentar explicar de modo plausvel o erro em matar algum, mas sim,entre outras coisas, o desfrute que esse algum poderia ter da vida no futuro. Normalmente, pensamos que errado (e muito errado) assassinar uma criana, mesmo que ela no tenha desenvolvido a posse da razo plena nem tenha expectativa alguma de desenvolver. O motivo que torna tal crena plausvel que, se a criana morta, impedimos que ela tenha desfrute no futuro (ela sofre umaperda, mesmo que no tenha conscincia da perda). E isso se aplica to bem a animais humanos sencientes quanto a no humanos sencientes.

    Outro problema do critrio da posse da razo confundir algo que possvel de ser "umarazo contra matar" com "anicarazo contra matar". Normalmente, ruim eliminar do mundo um ser que tem a posse plena da razo, porque envolve eliminar, entre outras coisas, algum capaz de realizar o que a tica prescreve, e, portanto, realizar o bem. Contudo, no verdade que a nica meta da tica proteger a vida dosagentes morais(aqueles seres capazes de agir eticamente). S existem questes morais porque existem os pacientes da deciso (a saber, aqueles que podem ser beneficiados ou danados pela mesma, incluindo o prprio agente, quando afetado pela sua deciso). O principal erro de todos os argumentos anteriores confundir uma caracterstica que relevante para se determinar quem pode ser responsabilizado caso no leve o outro em considerao, e aplic-la para se determinar quem deve ser levado em considerao; nesse ltimo caso, a capacidade para a razo plena no relevante, mas sim, a possibilidade de sofrer um

  • benefcio/malefcio[15].

    No dia-a-dia, j reconhecemos que a capacidade de desfrute a caracterstica moralmente relevante no que diz respeito a considerar os interesses de algum: no caso dos humanos destitudos da posse da razo plena, ao contrrio de mat-los, damos maior ateno ainda aos seus interesses, pois esto numa situao de maior dependncia dos nossos cuidados. Isso no deveria causar espanto, pois, os agentes morais, seres capazes de virtude, so exatamente aqueles que devem ajudar os incapazes, e no, aproveitar-se deles para seus interesses egostas[16]. Animais no-humanos esto, por no terem a posse da razo to desenvolvida, numa situao de vulnerabilidade maior. Portanto, a concluso tica vlida deveria ser que merecem ateno primordial, assim como os humanos na mesma situao, por terem menos condies de se defenderem sozinhos.

    Uma objeo poderia ser a seguinte:mesmo reconhecendo que a perda do desfrute j suficiente para haver erro em matar, no verdade que algum possuir posse plena da razo faz com que sua vida possua valor maior? Isso implicaria que a vida dos agentes morais (independentemente de espcie) possui valor maior do que a dos pacientes morais (independentemente de espcie).

    Mesmo se fosse verdade que ter a posse plena da razo faz com que o valor da vida desse algum seja maior, isso no implica que aqueles cuja vida possui valor maior tm direito de matar outros para salvar sua prpria vida, nem que seus problemas necessariamente so mais danosos. Alm do mais, ter posse plena da razo no motivo para se dizer que tal caracterstica aumenta o valor da vida de quem a possui. A posse plena da razo fruto da loteria natural, portanto, no resulta de mrito. Tal capacidade resultado de pertencer espcie humana e chegar idade adulta sem nenhuma doena ou acidente que afete a constituio mental. Todas

  • essas condies dependem, largamente, da sorte. Como vimos, devemos rejeitar a desigualdade (entendida como desigualdade de bem-estar). Isso porque no existe nenhum bom argumento para se acreditar que um indivduo mais especial do que os outros. A desigualdade , ento, um mal, independentemente de sua fonte: se causada por decises nossas ou se j existe naturalmente. Assim, dentre as metas da tica (ou seja, aquilo que devemos fazer) est corrigir as desigualdades naturais, e no, perpetu-las. Ter a posse plena da razo j d vantagens demais ao seu possuidor, em termos de cuidar de si (o que seria verdadeiro, mesmo se a posse da razo dependesse de mrito e no fosse resultado da loteria natural). O dever de dar prioridade maior aos interesses de algum diretamente proporcional vulnerabilidade desse algum. Como vimos, dentre as metas da tica est a diminuio da desigualdade entre indivduos, e isso inclui desigualdade de poder, seja artificial ou natural.

    C -"se errado matar animais, ento errado matar plantas - o que absurdo -, ento correto matar ambos"

    Essa objeo pode querer dizer duas coisas: (1) Que o critrio de considerao moral deve ser a sencincia e que plantas tambm so sencientes, ou; (2) Que tal critrio deve ser a vida biolgica. H problemas especficos nos dois tipos de objeo, e um problema geral que permeia os dois.

    O problema especfico da primeira que no existe a menor evidncia cientfica que suporte a tese de que plantas so sencientes. O problema especfico da segunda que no nada bvio que o erro em matar se d por tirar a vida de algum.Estar vivoedesfrutar da vidaso duas coisas bem distintas. Quando avaliamos o erro em matar, estar vivo (sem desfrute de nada), por si s, no geralmente uma razo alegada contra o assassinato. Estaramos errados em normalmente pensar assim?

  • O filsofo Oscar Horta[17]oferece o seguinte exemplo, com vistas a defender que a sencincia, e no, a vida biolgica por si, que relevante quanto ao erro em matar: supondo que voc esteja na posio de escolher entre (1) Morrer agora ou; (2) Ficar biologicamente vivo por mais vinte anos, na completa inconscincia (semnenhumasensao, nem mesmo sonhos), sem chance alguma de recuperar a conscincia, e depois morrer. A pergunta : faz diferenapara voc, continuar sendo um corpo vivo ou morrer? Parece que toda diferena que podemos alegar nesse caso apelar a preferncias de amigos, parentes, etc (que so seres sencientes), ou a preferncias que voc possui agora (enquanto senciente) quanto ao futuro do seu corpo. Paravoc, no futuro, inconsciente, no faz diferena. Assim, a capacidade para sencincia que relevante moralmente no que diz respeito no somente ao erro em matar, mas a qualquer outra questo moral. Isso porque as duas formas bsicas de se prejudicar algum so por inflio de sensao ruim (o que explica o erro em fazer sofrer, por exemplo) e por privao de desfrute (o que explica o erro em matar, por exemplo).

    Vejamos agora o erro comum nas duas formas do argumento. Supondo, para efeito de argumentao, que plantas fossem sencientes (assumido na objeo 1), ou que, o erro em matar se configurasse a partir do erro em tirar a vida biolgica (assumido na objeo 2). No segue da que correto matar animais. Se seguisse, tambm seria correto matar humanos, j que tambm so sencientes (objeo 1) e tambm esto biologicamente vivos (objeo 2). O absurdo envolvido nessas objees que se comea apontando uma caracterstica para se fundar oerroem matar; em seguida aponta-se que a classe de seres que umerromatar maior do que imaginamos e; finalmente, tira-se uma concluso afirmando que corretomatar seres que se enquadram em tal definio.

    Para ilustrar tal absurdo, vejamos um exemplo envolvendo

  • humanos. Supondo que estivssemos no sculo XIX, lutando para abolir a escravido dos afro-descendentes. Supondo que, devido ao machismo no questionado em nossa sociedade, no estivssemos dando ateno alguma opresso sobre as mulheres. Algum, adversrio da abolio da escravatura, aponta essa incoerncia: "se negros querem ser livres, mulheres tambm querem". Supondo que esse algum logo em seguida conclua: "logo, no devemos libertar nem os negros nem as mulheres". Ora, o absurdo dessa concluso est em que ela contrria s premissas. Primeiramente aponta-se que a classe de seres com um interesse a ser considerado maior do que imaginamos, para logo em seguida afirmar que, ento, no devemos considerar nenhum desses interesses. Apontar que a classe de seres a serem considerados maior do que imaginamos jamais pode construir um bom argumento para diminuir mais ainda essa mesma classe.

    8 - O passo seguinte implicado na rejeio do especismo

    Diante dos argumentos apresentados anteriormente, temos boas razes para pensar que no h como se defender a idia de que a vida humana possui maior valor do que a vida de animais no humanos. necessrio lembrar, contudo, que o especismo acontece no somente onde h assassinato ou uso dos animais como recursos; acontece toda vez que tomamos uma deciso num caso envolvendo animais no-humanos que jamais tomaramos se no lugar deles estivessem humanos com caractersticas similares no que moralmente relevante para o que est em jogo. Vale lembrar que as concluses aqui dizem respeito a considerarcada umdos indivduos, e no, as espcies como um todo. Como vimos, a espcie um critrio moralmente irrelevante. Se um animal pertence a uma espcie rara e outro a uma espcie abundante, nada disso serve para justificar que a vida do primeiro vale mais do que a do segundo. por esse motivo (e por outros), que reconhecer o dever de dar igual considerao aos animais no humanos nada tem a ver com o pensamento ecologista, que

  • v valor nas espcies e no nos indivduos.

    No que diz respeito a questes envolvendo humanos, reconhecemos, alm do dever de no us-los, pelo menos em determinados casos, o dever de prestar ajuda, mesmo quando o dano inicialmente causado no surge de prticas humanas. Geralmente reconhecemos que, quando no h grande risco para o agente, temos o dever de ajudar quem foi atingido por um desastre natural. O reconhecimento de tal dever no se limita a catstrofes naturais, mas tambm a casos onde o dano causado por doenas, por exemplo. Vejamos no que isso implica em relao aos outros animais:

    A vida selvagem, em geral, marcada por intenso nmero de mortes e sofrimento. Se o nmero de animais mortos na pesquisa some frente ao nmero de animais mortos na alimentao, o nmero de animais usados por humanosem geral(somando-se todas as prticas exploratrias) some frente ao nmero de animais mortos e sofrendo intensamente no mundo silvestre, devido a causas naturais[18]. Predao, morte por inanio, parasitismo, congelamento, entre outros danos, so a norma na vida selvagem[19]. A vida dos animais silvestres contm em geral, muito mais sofrimento do que prazer[20]. Isso se deve, em grande parte, alta taxa de mortalidade anterior maturidade sexual. Para cada indivduo que no morre de inanio e no predado, existe um nmero muito extenso que foi. Segundo Yew-Kwang Ng, num perodo de aproximada constncia populacional, em mdia, de todos os filhotes nascidos de uma me em toda a sua vida, apenas uma fmea consegue sobreviver at a maturidade sexual[21]. A partir do tamanho da ninhada de uma espcie, conclui Ng, podemos ter uma idia do nmero de indivduos que morrem de inanio ou so predados[22]. O tamanho da ninhada no determinado por consideraes sobre o bem-estar dos indivduos da espcie, mas pela chance de sobrevivncia dos genes[23]. J que escapar da morte por inanio ou predao algo difcil, algumas espcies

  • conseguem manter-se porque produzem um nmero muito alto de filhotes. Mas, como aponta Ng, se os que no sobrevivem at maturidade sexual sofrem de bem-estar negativo, como parece ser, ento "esse resultado da seleo natural est longe da maximizao do bem-estar das espcies, mas no to longe da maximizao das misrias[24]".

    Ng d o seguinte exemplo: supondo que a seleo natural resulte em cada adulto de uma espcie deixando dez descendentes, sendo que apenas trs conseguem sobreviver a ponto de atingirem a maturidade sexual e criarem a prxima gerao. Os outros sete morrem antes, cada qual com um bem-estar negativo. O nmero de animais com bem-estar negativo triplica a cada gerao, e triplica tambm o nmero de sofrimento total agregado. Supondo que cada indivduo com bem-estar positivo esteja com felicidade +2 e os com bem-estar negativo com sofrimento de -1 (que uma estimativa de sofrimento bastante modesta). Ento, levando-se em conta os 10 descendentes de um adulto, o seu nvel hednico agregado ser de (3x2) + (-1x7) = -1. "Esse bem-estar negativo agregado explode exponencialmente medida que a populao aumenta a cada gerao, (por exemplo, -10, -30, -90, -270, -810... at -34, -867, -844, -910 depois de 20 geraes apenas)[25]". O chamado "equilbrio natural" no favorece aos indivduos vivendo em tais ecossistemas, mas, sim, aos seus genes. A vida na natureza est mais prxima do inferno do que da viso paradisaca que a maioria de ns acredita.

    E, se for objetado que isso tudo natural, e que, portanto, no devemos minimizar tais danos? preciso notar que, quando humanos produzem os mesmos estados de coisas (sofrimento e morte), imediatamente reconhecemos tais produtos como de valor moral negativo (da o erro em assassinar e em causar sofrimento). Nessa objeo, ento, est envolvida a idia de que, para um mesmo estado de coisas, seu valor moral depende exclusivamente do tipo de

  • processo que o causou. Contudo, no parece ser essa a razo que oferecemos para explicar o que h de errado em causar sofrimento e assassinar. No dizemos que causar tais coisas so erradas porque "so fruto de ao humana" (se fosse assim, teramos de dizer que todas as outras aes humanas o so), mas sim, porque tais coisas causam danos s vtimas ( assim que determinamos quais aes/omisses humanas so um mal e quais no so). E tal dano est igualmente presente quando o processo inicial que as causa natural (sendo a escolha em dar continuidade conseqncia ruim desse processo uma deciso de agentes humanos). Assim, o valor moral de uma conseqncia deve ser avaliado em torno da prpria conseqncia (sua influncia sobre os seres sencientes), e no, de acordo com o processo inicial que o desencadeou.

    Se a vida na natureza est muito prxima de um inferno, em termos do nmero de mortes e sofrimento envolvido; se o fato de um determinado estado de coisas ser natural no lhe agregar valor moral; se pensamos ser correto socorrer humanos quando so afetados por danos naturais (independentemente do impacto que tal socorro ter no equilbrio natural); ento temos, aparentemente, de considerar esses danos naturais que os animais no-humanos sofrem como to urgentes de serem aliviados quanto os danos causados ativamente por ns, pelo menos to urgentes quanto se as vtimas fossem humanas (para entender esse ponto, basta se imaginar por um segundo sendo devorado vivo por parasitas ou morrendo lentamente de inanio). Afinal de contas, para aquele que sofre o dano, o fato de este ser produto de uma ao ou omisso de quem decide, indiferente. Discuto a questo dos danos com mais profundidade em outros lugares[26]. Menciono-a aqui para entendermos que: medida que reconhecemos que o especismo injustificvel, situaes que at ento no sabamos que eram questes ticas se colocam diante de ns,

  • e exigem um posicionamento imparcial.

    Notas

    [1]Mestre em tica e Filosofia Poltica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), colaborador do site Olhar Animal (www.olharanimal.net), colunista do site Agncia de Notcias de Direitos Animais (www.anda.jor.br) e autor do blog Desafiando o Especismo (www.lucianoccunha.blogspot.com)

    [2]Ver, por exemplo, os dados da FAO, disponveis em FAO - Food and Agriculture Organization of the United Nations, "Global Capture Production 1950-2008",Fisheries and Aquaculture Department, Global Statistical Collections, 2010,http://www.fao.org/fishery/statistics/global-capture-production/query/en; "Global Capture Production 1950-2008",Fisheries and Aquaculture Department, Global Statistical Collections, 2010,http://www.fao.org/fishery/statistics/global-capture-production/query/.

    [3]Estatsticas disponveis em MOOD, ALISON e BROOKE, Phil, "Estimating the Number of Fish Caught in Global Fishing Each Year", 2010,Fishcount.org.uk,http://www.fishcount.org.uk/published/std/fishcountstudy.pdf.

    [4] NAGEL, Thomas.A ltima Palavra. Trad. Carlos Felipe Moiss. So Paulo: UNESP, 2001, p. 13.

    [5]Ibid.

    [6]Cf. HORTA, Oscar. tica Animal: El cuestionamiento del Antropocentrismo: Distintos Enfoques Normativos. In:Revista de Biotica y Derecho. N. 16. Barcelona: Abril/2009, pp. 36-39.

    [7]SINGER, Peter.tica Prtica. 3 ed. Trad. Jefferson L.

  • Camargo. So Paulo. Martins Fontes, 2002, p. 32.

    [8]Ibid,pp. 30-34.

    [9]Cf. FRANCIONE, Gary L.Introduction to Animal Rights: Your Child or the Dog?Philadelphia: Temple University Press, 2000, p. 30.

    [10]Ibid., pp. 31-50.

    [11]Para um estudo mais detalhado dessas comparaes, ver HORTA, Oscar. Questions of Priority and Interspecies Comparisons of Happiness. In:tica mas All de la Espcie:La Consideracin Moral de los Animales no Humanos. 2010.http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2010/05/questions_priority_interspecies.pdf. A analogia com 24 horas aparece em uma palestra sobre o artigo, disponvel emhttp://vimeo.com/25316618.

    [12]Tais argumentos so analisados em SINGER, Peter, "The Significance of Animal Suffering", em Baird, Robert M. e Rosenbaum, Stuart E. (eds.),Animal Experimentation: The Moral Issues(Amherst: Prometheus Books, 1991), pp. 57-66.

    [13]Cf. BENTHAM, Jeremy.An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Kitchener: Batoche Books, 2000, cap 4.

    [14]Cf. SINGER, Peter, "The Significance of Animal Suffering", em Baird e Rosenbaum (eds.),op. cit., 57-66, p. 61.

    [15]Uma explicao mais detalhada sobre os conceitos de agente e paciente moral pode ser encontrada em FELIPE, Snia T.. Redefinindo a comunidade moral. In: Maria de Lourdes Alves Borges; Jos Nicolau Hec (Orgs.).Kant: liberdade e natureza. Florianpolis: Edufsc, 2005, p. 263-278.

  • [16]Cf. SAPONTZIS, Steve F.,Morals, Reason and Animals. Philadelphia: Temple University Press, 1987, pp. 148-149.

    [17]Cf. HORTA, Oscar. Por qu la Capacidad de Sufrir y Disfrutar es lo Importante. In:tica Ms All de la Espcie:La Consideracin Moral de los Animales no Humanos, 2009.http://masalladelaespecie.wordpress.com/2009/11/20/la-capacidad-de-sufrir-y-disfrutar/

    [18]DAWRST, Alan, "How Many Animals are There?", In:Essays on Reducing Suffering, 2009,http://www.utilitarian-essays.com/number-of-wild-animals.html.

    [19]DAWKINS, Richard,River Out of Eden: A Darwinian View of Life, New York: Harper Collins Publishers, 1996; DAWRST, Alan, "The Predominance of Wild-Animal Suffering over Happiness: An Open Problem",Essays on Reducing Suffering, 2009,http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf;);">GOULD, Stephen J.,Hen's Teeth and Horse's Toes: Further Reflections in Natural History, New York: W. W. Norton, 1994, pp. 32-44; HORTA, Oscar, "Disvalue in Nature and Intervention",Pensata Animal, 2010,http://www.pensataanimal.net/painel/138-devemos-intervir-na-predacao/350-oscar-horta; MILL John S.,Nature, The Utility of Religion and Theism, London: Rationalist Press, 1904, pp. 7-33.

    [20] NG, Yew-Kwang, Towards Welfare Biology: Evolutionary Economics of Animal Consciousness and Suffering. In:Biology and Philosophy, 10 (3), 1995, pp. 255-285.

    [21]Ibid., p. 270.

    [22]Ibid.

    [23]Ibid., p. 271.

  • [24]Ibid.

    [25]Ibid., p. 273.

    [26]Cf. CUNHA. Luciano C., O Princpio da Beneficncia e os Animais No Humanos: Uma Discusso Sobre o Problema da Predao e Outros Danos Naturais. In:Agora: Papeles de Filosofia, Vol. 30, N. 2, 2001. ISSN 0211-6642. Cf. CUNHA, Luciano C., Sobre Danos Naturais. In:tica mas All de la Espcie:La Consideracin Moral de los Animales no Humanos, 2011.http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf

    Luciano Carlos Cunha| [email protected]

    Doutorando em Filosofia (tica) no Centro de Filosofia e Cincias Humanas da UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina, mestre em tica e Filosofia Poltica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), licenciado em Educao Artstica com habilitao em msica pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), colaborador da revista eletrnica Pensata Animal, colunista do siteANDAe autor do blogEspecismo No!

    Pgina no siteacademia.edu: https://ufsc.academia.edu/

  • LucianoCunha

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