Portais para o Espaço do Divino -...

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES Portais para o Espaço do Divino Geometria e Narrativa no Retábulo Escultórico do Renascimento Volume I Texto Francisco Xavier de Almeida Costa Henriques Doutoramento em Belas-Artes Especialidade de Ciências da Arte Tese orientada pelo Prof. Doutor Fernando António Baptista Pereira, especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor 2015

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UNIVERSIDADE DE LISBOAFACULDADE DE BELAS-ARTES

Portais para o Espao do Divino

Geometria e Narrativa no Retbulo Escultrico do Renascimento

Volume ITexto

Francisco Xavier de Almeida Costa Henriques

Doutoramento em Belas-ArtesEspecialidade de Cincias da Arte

Tese orientada pelo Prof. Doutor Fernando Antnio Baptista Pereira, especialmente elaborada para a obteno do grau de Doutor

2015

UNIVERSIDADE DE LISBOAFACULDADE DE BELAS-ARTES

Portais para o Espao do DivinoGeometria e Narrativa no Retbulo Escultrico do Renascimento

Volume ITexto

Francisco Xavier de Almeida Costa Henriques

Doutoramento em Belas-ArtesEspecialidade de Cincias da Arte

Tese orientada pelo Prof. Doutor Fernando Antnio Baptista Pereira, especialmente elaborada para a obteno do grau de Doutor

Presidente: Doutor Antnio Jos Santos Matos, Professor Associado com Agregao e Vice-Presidente do Concelho Cientfico da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa

Vogais: - Doutor Rafael de Faria Domingues Moreira, Professor Associado da Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; - Doutor Pedro Eugnio Dias Ferreira de Almeida Flor, Professor Auxiliar do Departamento de Cincias Sociais e de Gesto da Universidade Aberta; - Doutor Paulo Jorge Garcia Pereira, Professor Auxiliar da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa; - Doutor Fernando Grilo, Professor Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; - Doutor Fernando Antnio Baptista Pereira, Professor Associado da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, orientador; - Doutor Eduardo Manuel Alves Duarte, Professor Auxiliar da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

Estudo financiado pela Fundao para a Cincia e Tecnologia(SFRH/BD/75358/2010 )

2016

- O conhecer-te, Sofia, causa em mim amor e desejo.

- Discordantes me parecem, Filon, estes efeitos

que em ti produzem o conhecer-me; mas talvez

a paixo que te leva a falar assim.

Iehudah Abrabanel (dito Leo Hebreu)

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Resumo

Prosseguindo uma linha de investigao iniciada, entre outros, por Jay Hambidge, Matila

Ghyka, Charles Bouleau, ou Lus Casimiro, no presente estudo efetuou-se a anlise geo-

mtrica das obras retabulares, e de tipologia retabular, em pedra, pertencentes ao perodo

do Renascimento em Portugal.

Na ausncia de um tal estudo efetuado s obras retabulares escultricas em Portugal,

abrangendo um arco cronolgico que se estende da dcada de 1520 ao final do sculo,

perante um inicial conjunto de 216 obras inventariadas, e de afastadas todas as que no

reuniam essenciais condies de estudo, efetuou-se a referida anlise a um conjunto final

de 103 retbulos, 29 portais, 27 arcos triunfais e 17 tmulos.

Esteve em anlise um conjunto de obras de arte at aqui nunca estudadas sob esta

perspetiva, em alguns casos apenas muito resumidamente documentadas, e na sua grande

maioria, s parcialmente descritas.

Analisaram-se e caracterizaram-se todos os espcimes, permitindo a respetiva ordena-

o por tipologias e subtipologias, introduzindo novos dados contribuindo para o estudo,

inventariao e preservao deste legado patrimonial.

Efetuada a anlise plstica e iconogrfica de todas as obras, procedeu-se, depois,

identificao de existentes metodologias geomtricas empregues como auxiliares prvias

de composio; posteriormente organizando e a apresentando todo o conjunto no Volume

III que compe este estudo, devidamente identificadas e geograficamente ordenadas,

acompanhadas pelas fotografias respetivas, e anlises correspondentes.

Identificados diferentes nveis de excelncia artstica escultrica e compositiva, e

devidamente aliceradas em eruditos conceitos de geometria de matriz euclidiana efe-

tuou-se uma mais profunda e integral anlise de cerca de 20 obras de arte de excelncia

maior. Por fim, baseada nesta metodologia, esta anlise permitiu uma mais completa lei-

tura iconolgica destas obras.

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Abstract

Building on a line of research developed, among others, by Jay Hambidge, Matila Ghyka,

Charles Bouleau and Luis Casimiro, we carried out a geometric analysis of stone-carved

retable works and related structures, within the Portuguese Renaissance period.

In the absence of any studies on Portuguese stone-carved retables spanning a chrono-

logical arch from the decade starting 1520 to the end of that century, we initially identified

a body of 216 inventoried works within this scope. Having disqualified all works that did

not meet the essential research criteria, we applied the aforementioned analysis to a sub-

ject group of 103 retables, 29 portals, 27 triumphal arches and 17 tombs.

The artworks under analysis had never previously been studied from this perspective,

are in some cases only scarcely documented, and the overwhelming majority are only

partially described in existing literature.

We analysed and characterised all specimens, allowing us to categorize them across

typologies and sub-typologies, enabling us to establish new data for the study, inven-

torying and preservation of this patrimonial heritage.

After carrying out the plastic and iconographic analysis of all the works, we proceeded

to the identification of the existing geometric methodologies used to support composition

work. In Volume III of this study, we organised and presented the whole body of work,

duly identifying and geographically ordering each piece, in conjunction with its respecti-

ve photographs and corresponding analysis.

Having identified different levels of artistic excellence from stone-carving and com-

positional perspectives duly based on sophisticated Euclidian geometric concepts we

carried out a deeper and more integral analysis of 20 artworks of major significance.

Finally, based on this methodology, this analysis enables a more thorough iconological

interpretation of these works.

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Palavras-chave

Retbulo ptreo

Competncias geomtricas

Modelos compositivos

Programas iconogrficos e iconolgicos

Renascimento em Portugal

Keywords

Stone carved retable

Geometric competencies

Compositional models

Iconographic and iconological programs

Portuguese Renaissance

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Agradecimentos

A realizao de uma Tese de Doutoramento implica um trabalho rduo, metdico e con-

tinuado, empenho e esforo individual que implica a coordenao de uma avultada tarefa

de estudo e investigao pessoal, mas no sem contar com um muito importante conjunto

de apoios que importa agora lembrar.

As primeiras palavras de maior agradecimento so dirigidas, inevitavelmente, ao

Professor Fernando Antnio Baptista Pereira, o meu orientador, verdadeiro motor de ar-

ranque na consecuo deste projeto e sem o qual este estudo no teria tomado os seus

atuais contornos. com particular gratido e apreo que refiro a enorme disponibilidade

e solicitude do seu acompanhamento sempre prximo, as constantes palavras de estmulo,

de incentivo e valorizao do trabalho que fui desenvolvendo, com a sua sabedoria cient-

fica e pedaggica escoradas numa vasta experincia constantemente dissipando as minhas

dvidas em sucessivas palavras de aconselhamento. Agradeo toda a ateno, o rigor e a

exigncia que a este ponto me conduziram.

Agradeo Fundao para a Cincia e Tecnologia o apoio prestado atravs da atri-

buio de uma bolsa de investigao sem a qual s muito dificilmente se poderia ter

realizado esta tese.

O meu agradecimento Exma. Sra. Diretora da Direo Regional da Cultura do

Centro Dra. Celeste Amaro, pelas vrias autorizaes concedidas para visita da S Velha,

bem como para cedncia e utilizao neste estudo dos desenhos estereofotogramtricos

da Porta Especiosa, da de Santa Clara, e do Portal da Majestade. Ainda neste sentido,

igualmente agradecemos a amabilidade e toda a ateno da Dra. Ftima Carvalho e do

Arq. Jos Augusto Dias que nos forneceu os desenhos com todas as caractersticas soli-

citadas. Na delegao de Castelo Branco, agradecemos Dra. Vera Neves, a autorizao

e facilitao da visita S da Guarda.

Igualmente agradeo ao Diretor do MNAA, Prof. Doutor Antnio Filipe Pimentel e ao

Diretor-Adjunto Dr. Jos Alberto Seabra, pela autorizao de visita e tomadas fotogrfi-

cas das obras retabulares daquele museu. O meu mais sincero agradecimento Dra. Maria

Joo Vilhena de Carvalho pelo acompanhamento da nossa visita, bem como pela cedncia

de uma srie de matrias de grande interesse para este estudo.

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Agradecemos Dra. Ana Alcoforado, Diretora do MNMC, pela autorizao de visita

e tomadas fotogrficas s obras daquele museu; e o agradecimento muito particular ao Dr.

Pedro Ferro por todo o apoio, auxlio e disponibilidade nas nossas visitas, assim como a

toda a sua equipa que to prontamente se disponibilizou na montagem de andaimes m-

veis que permitiram as corretas tomadas frontais a meia altura de retbulos de to grande

dimenso como o retbulo do Tesoureiro.

Agradeo igualmente Dra. Dulce Helena Pires Borges, Diretora do Museu da Guarda,

por toda a sua gentileza e o seu auxlio, bem como por toda a documentao cedida, e a

indicao de uma srie de obra na regio que poderiam ser interessantes a este estudo.

Agradeo ao Dr. Laurindo Monteiro, Diretor do Museu de Pinhel, pela autorizao de

visita e tomadas fotogrficas ao retbulo naquele museu.

Agradecemos ao Dr. Antnio Alegria e ao Dr. Joaquim Oliveira Caetano, pelas auto-

rizaes de visita s obras do Museu de vora, bem como a disponibilizao de equipa-

mentos necessrios correta captao fotogrfica das mesmas.

O meu agradecimento, tambm, Dra. Conceio Cardoso, e Dra. Ana Lusa Gouveia,

da Universidade de Coimbra, pelas autorizaes de visita e estudo s obras da igreja do

palcio Nacional de So Marcos, em So Silvestre; e tambm ao cuidador, o Sr. Vtor S

e a sua esposa que sempre me acompanharam to amavelmente nas diferentes visitas.

Agradeo Eng. Alexandra Carrilho e Dra. Laura Romo, da Fundao Robinson-

Convento de So Francisco, em Portalegre, pela autorizao de visita e pela cedncia de

mltiplos materiais de estudo, bem como a indicao de uma srie de nomes e entidades

envolvidas no restauro e conservao das obras que ali se encontram.

O meu profundo agradecimento ao Departamento dos Bens Culturais da Igreja da

Diocese de Coimbra, nas pessoas do Exmo. Sr. Diretor, o Sr. Pe. Jos Coutinho e do

Monsenhor Manuel Leal Pedrosa, pelo auxlio prestado nos contactos feitos a todos os

procos que, muito corretamente, e para preservao das obras das suas igrejas, nos soli-

citaram autorizaes e creditaes superiores.

O meu agradecimento Dra. Paula No, do Departamento de Informao, Biblioteca e

Arquivo do SIPA Servio de Informao para o Patrimnio, do Instituto de Habilitao

e Reabilitao Urbana, cujos servios de to grande prstimo foram para este trabalho.

O meu agradecimento ao Exmo. Sr. Reitor da Universidade de vora, pela autorizao

de visita quelas instalaes, nas quais se encontram uma das obras aqui em estudo.

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Agradeo Juza Irm Emlia Martins, do Mosteiro de Celas, em Coimbra, por

toda a sua ajuda, auxlio, solicitude e disponibilidade no acompanhamento da visita

quelas instalaes.

O meu agradecimento Exma. Senhora duquesa de Cadaval, Dona Diana lvares

Pereira de Melo pela autorizao de visita igreja dos Loios, em vora, e ao Sr. Custdio

Carrageta que durante a mesma me acompanhou.

Ao Dr. Miguel Lencastre, pela amvel permisso de visita e tomadas fotogrficas

capela particular da casa dos Coimbras, em Braga.

Agradeo D. Isabel Maria Belard da Fonseca Lopes da Costa, pela autorizao

Casa dos Cerveiras, em Aguim.

O meu agradecimento aos Exmos. Senhores Comandantes da Brigada de Trnsito da

GNR de Portalegre, Coronel Edgard Loureno, e Tenente-Coronel Paulo Jos Chitas Soares,

pela autorizao de visita quelas instalaes, bem como pela disponibilizao de equipa-

mentos que melhor permitiram as corretas tomadas fotogrficas das obras ali presentes.

Um muito especial agradecimento Ana Sousa por todo o atento trabalho de pagi-

nao, pelo seu enorme rigor e profissionalismo com que sempre contornou todas as

questes, por toda a pacincia com que foi capaz de lidar com os meus avanos, recuos e

alteraes, constantemente propondo-me interessantes solues, e fazendo-me chamadas

de ateno para incorrees de texto. Muito agradecido.

Um grande agradecimento ao meu colaborador, o Joo Pedro, por me ter auxiliado na

composio de algumas imagens recorrendo a aplicaes de imagem de sntese, e para as

quais j no me restava tempo de as executar.

Uma palavra de enorme e muito terno agradecimento aos meus primos Maria de Ftima

e Jorge, por me terem acolhido em sua casa, na Boleta, local em que me estabeleci por

dois perodos, ponto de partida e de chagada para dias preenchidos por visitas aos mlti-

plos lugares na orla mondeguina. Muito agradecido pela forma to amvel e gentil com

que me acolheram, pelos seres agradveis em que tanto conversmos, pelo entusiasmo

com que tanto me encorajaram, por tudo quanto ouviram sobre os meus estudos, as mi-

nhas pesquisas, e as minhas visitas.

Um enorme agradecimento minha prima Isabel Henriques, que me deu a conhecer o

retbulo do Pao de Maiorca, cedendo-me alguns dados publicados que me permitiram

algum aprofundamento na investigao daquela obra.

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Dirijo o meu especial agradecimento a todos aqueles que cederam o seu tempo para

me apoiar e auxiliar, ouvindo, lendo, e criticando os desenvolvimentos deste trabalho,

com especial ateno para todos os meus irmos Ana, Teresa, Pedro e Marta, e ao meu

sobrinho Miguel, em todas as palavras de incentivo e timos conselhos, e tambm para

todos meus amigos. Um agradecimento especial tambm para os meus companheiros de

percurso, os colegas Cristina Cruzeiro, Antnio Barrocas e muito particularmente para o

Rui Oliveira Lopes, por toda uma srie de preciosos conselhos e indicaes, assim como

pela cedncia de bibliografia que me foi extremamente til.

Um agradecimento igualmente especial para todos os colegas do Seminrio de Leitura,

mas muito particularmente Ana Paz e ao Antnio Henriques, mas que de maneira ne-

nhuma ficaria completo sem o mais profundo agradecimento ao Professor Jorge do por

um to interessante e importante seminrio para o profundo conhecimento da reflexo de

si e da elaborao do ato da escrita.

Aos meus companheiros de grupanlise, a Cludia Conceio, a Idlia Gonalves, o

Carlos Tom Sousa, e o Carlos Rocha, pelos vrios anos em que nos acompanhmos, e

que em conjunto com a Dra. Teresa Silva Pinto, me permitiram melhor reflexo e mais

profundo acesso ao conhecimento de mim.

Uma palavra de imensa gratido para os meus pais que sempre me incentivaram e

tanto me apoiaram na persecuo dos meus objetivos, de quem aprendi o gosto e o in-

teresse pelo conhecimento.

Quero agradecer a preciosa colaborao da Mafalda em todo este processo, a pessoa

que desempenhou um importantssimo papel na gesto e na organizao do nosso ncleo

familiar em momentos particularmente difceis, sobretudo no perodo final. Sempre terna

e amvel, sempre solcita e prestvel, sempre tranquila e encorajadora; no seu inestimvel

suporte nas tarefas dirias, redobrando os esforos e preenchendo o lugar da minha ausn-

cia na ateno que muitas vezes fui impedido de dar aos nossos filhos. Muito agradecido

pelos conselhos sensatos e pelas palavras e gestos de incentivo. Aos nossos trs filhos, o

Gaspar, a Laura e a Violeta, o meu enorme agradecimento por todo o seu carinho, incen-

tivo e pela sua enorme pacincia.

Exprimo a minha enorme gratido a todos os meus amigos e companheiros da SGI,

de quem constantemente recebo encorajamento, palavras de conforto e esperana,

organizao de pessoas, para as pessoas e pelas pessoas, empenhadas na constru-

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o de um mundo de paz e harmonia, baseada na felicidade individual de cada um.

Por fim, agradeo a todas as pessoas que me auxiliaram durante todos os perodos de

visita: os procos que me concederam as autorizaes, que me acompanharam, ou que

agilizaram os processos e agendaram com as diferentes pessoas das Fbricas das igrejas

para que me recebessem e me prestassem todo o auxlio necessrio, pessoas amabilssi-

mas que alteraram os seus quotidianos, tantas vezes complicados, para poderem estar a

horas nos locais combinados; a todas estas pessoas os meus mais sinceros e profundos

agradecimentos:

Em Aveiro, na S, ao Cnego Dr. Fausto; em Abil, ao Pe. Antnio Manuel de Almeida;

em Admia de Cima, ao Pe. Luciano Silva Nogueira; em gueda e Trofa do Vouga, ao

Pe. Jorge; em Arrifana, ao Pe. Marco Antnio e ao Sr. Eduardo; em Arronches, ao Pe.

Fernando de Jesus Farinha; em Bedudo (Estarreja), Pe. Jos Fernando; Boto e Souselas,

Pe. Fernando Rodrigues de Carvalho; Buarcos, Pe. Carlos; em Cabeo de Vide, Pe. Paulo

Henriques Dias; Cadima (Lemede e Guimara), Pe. Antnio Neto Samelo; Cantanhede,

Pe. Lus Francisco; Castanheira do Ribatejo, Presidente da Junta de Dr. Lus Almeida;

Castelo Viegas, Pe. Antnio Joaquim de Almeida; em Condeixa-a-Nova, ao Pe. Idalino

Simes que to amavelmente me acompanhou a diversas localidades e que me deu to

interessantes indicaes sobre diferentes lugares aonde poderia encontrar obras que in-

teressassem a este estudo; em Coimbra, na S Velha, ao Pe. Joo Evangelista, pela sua

amvel visita e por toda a agradvel e interessante conversa em torno da S e do Conclio

de Trento; na Ega, ao Pe. Amlcar Santos Neves, pela sua enorme simpatia e cortesia,

pelo interesse pela minha matria de estudo e pela preservao do valiosssimo patrim-

nio artstico e cultural; pelo seu livro de tanto interesse sobre o legado histrico, artsti-

co, cultural, social e religioso da Ega e da regio; em Coimbra, na S Nova, para visita

igreja de So Salvador, ao Cnego Dr. Sertrio; em Eiras, ao Pe. Lus Ribeiro; em

Elvas, ao Pe. Jos Maria Francisco; no Ervedal da Beira, ao Pe. Jos Carvalho que tudo

correu para procurarmos uma obra que acabmos por no encontrar; em Espariz, ao Pe.

Joo Fernando; em vora, ao Cnego Dr. Eduardo Pereira da Silva, da S; em vora,

ao Cnego Dr. Manuel Ferreira, da igreja de So Francisco; na Faia, ao Padre Antnio

Freire e Sra. Maria Rosrio Oliveira; em Gis, ao Pe. Carlos Cardoso; em Lemede,

ao Sr. Marcolino de Jesus; em Leiria, ao Dr. Pedro da Ordem Terceira; em Maceira,

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ao Pe. Marcelo Moraes; em Montemor-o-Velho, ao Dr. Manuel Carrao, Provedor da

Santa Casa da Misericrdia daquela vila; em bidos, ao Dr. Srgio Gorjo e ao Pe. Paulo

Gerardo; na Pampilhosa da Serra, ao Pe. Paulo Silvestre; em Penacova, ao Pe. Rudolfo;

em Penela, Pombalinho e Espinhal, ao Pe. Antnio Coelho de Carvalho; em Pombal, ao

Padre Diamantino da Cruz Vieira; em Pinheiro da Bemposta, ao Pe. Manuel Pereira; na

Rolia, ao Padre Srgio Mendes; em Rio Maior, ao Sr. Antnio Cardoso da Santa Casa

da Misericrdia daquela cidade; em Soure, ao Pe. Jos da Cunha Simes; em Tentgal,

D. Maria de Lurdes Santiago, da Santa Casa da Misericrdia daquela vila; em Tentgal,

ao Pe. lcio Roberto, e ao Jos Mouro; em Travanca, ao Pe. Santiago; em Vale de Azares,

ao Padre Antnio Carlos Freire, mas sobretudo ao Sr. Francisco Faria que to amavel-

mente me recebeu; em Verride e Montemor-o-Velho, ao Pe. Jos Lus; em Vila Nova de

Anos, ao Pe. Manuel Oliveira Simes; em Vila Nova da Barquinha, ao Pe. Jos Madeira;

em Viseu, ao Cnego da S, o Dr. Jos Vieira.

Ningum vive isoladamente. De forma mais ou menos visvel, as nossas vidas e exis-

tncias so constantemente auxiliadas por outros, seja pelos pais, mentores, ou a socie-

dade em geral. Estar consciente destas ligaes, sentir apreo por elas, e esforar-se por

retribui-lo sociedade com esprito de gratido, a mais correcta forma de viver do ser

humano.

Daisaku Ikeda

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Lista de Abreviaturas

CCB Centro Cultural de BelmCHAM Centro de Histria dAqum e dAlm-MarCHSC Centro de Histria da Sociedade e da CulturaCNCDP Comisso Nacional para as Comemoraes DGEMN Direo Geral dos Edifcios e Monumentos Nacionaisdos Descobrimentos PortuguesesDRCC Direo Regional de Cultura do CentroFBAUL Faculdade de Belas Artes da Universidade de LisboaFCSH Faculdade de Cincias Sociais e HumanasFCT Fundao para a Cincia e a TecnologiaFCTUC Faculdade de Cincias e Tecnologia da Universidade de CoimbraFLUC Faculdade de Letras de Universidade de CoimbraFLUL Faculdade de Letras de Universidade de LisboaIEM Instituto de Estudos MedievaisIPPAR Instituto Portugus do Patrimnio Arquitetnico e ArqueolgicoME Museu de voraMG Museu da GuardaMNAA Museu Nacional de Arte Antiga, LisboaMNMC Museu Nacional Machado de Castro, CoimbraMP Museu de PinhelSIPA Sistema de Informao para o Patrimnio ArquitetnicoSNBA Sociedade Nacional de Belas Artes

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NDICE Pginas

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Introduo .................................................................................................................

PARTE I .....................................................................................................................

1.1 Metodologia Terica e Prtica .......................................................................

O Mtodo Geomtrico .......................................................................................

A Cincia da Arte ...............................................................................................

Exposio do Mtodo ........................................................................................

Aplicao do Mtodo .........................................................................................

Retngulos especficos e os respetivos mtodos construtivos ............................

O Quadrado ........................................................................................................

Os Retngulos 2, 3, 4, 5 .........................................................................

Os Retngulos de Ouro () e (raiz quadrada de ) .....................................

O Retngulo 5 ..................................................................................................

Os Retngulos com Correspondncia em Acordes Musicais ..............................

A Estrutura Interna dos Retngulos ....................................................................

Casos Gerais dos Retngulos .............................................................................

A Armadura do Retngulo .................................................................................

O Rebatimento dos Lados Menores ...................................................................

A Seco urea dos Lados do Retngulo ..........................................................

Retngulos Dinmicos .......................................................................................

Os traados internos decorrentes das consonncias musicais ............................

Leitura iconogrfica e iconolgica .....................................................................

1.2. Das Origens do Retbulo formalizao do Retbulo Ptreo

em Portugal ...........................................................................................................

Da Origem do Retbulo .....................................................................................

Processo evolutivo .............................................................................................

Tipologias do retbulo ibrico no sculo XVI ...................................................

O estudo do retbulo em Portugal ......................................................................

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A obra retabular em pedra, em territrio nacional .............................................

O sculo XVI e o retbulo ptreo renascimental ................................................

Tipologias do retbulo ptreo em Portugal ........................................................

Da ornamentao dos Retbulos ........................................................................

Portais, Arcos Triunfais e Tmulos as estruturas ............................................

Da ornamentao dos Portais, Arcos Triunfais e Tmulos ................................

PARTE II ...................................................................................................................

2.1. Elenco das Obras Estudadas ........................................................................

2.2. Organizao das Obras Estudadas por Tipologias ....................................

2.3. Modelos Geomtricos Detetados nas Obras Analisadas ............................

2.4. Seleo de Obras de Acordo com Marcos Especficos

(Retngulos de Ouro (), , 2, etc.) ...........................................................

(Quadros) ...............................................................................................................

PARTE III ..................................................................................................................

Paradigmas de Competncias Geomtricas, de Modelos Compositivos

e de Programas Iconogrficos e Iconolgicos .....................................................

3.1. Do Empirismo Prtica Compositiva .........................................................

3.2. Da Prtica ao Saber .......................................................................................

3.3. Cincia na Arte ...............................................................................................

3.3.1. O Portal da Igreja de Atalaia ....................................................................

3.3.2. O Tmulo de D. Diogo Pinheiro ..............................................................

3.3.3. O Retbulo da Varziela (da invocao de Nossa Senhora

da Misericrdia) .................................................................................................

3.3.4. O Tmulo de D. Lus da Silveira ..............................................................

3.3.5. Os Tmulos do Panteo dos Lemos em Trofa do Vouga ..........................

3.3.6. O Tmulo de D. Isabel de Sousa e de D. Joo de Noronha,

em bidos ..........................................................................................................

3.3.7. Porta Especiosa ........................................................................................

3.3.8. Portal Principal da Igreja de Santa Maria Madalena, em Olivena ..........

3.3.9. Cenotfio de D. Afonso de Portugal ........................................................

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3.3.10. O Tmulo de D. Jorge de Melo e Portal da Igreja do Mosteiro

de So Bernardo em Portalegre ..........................................................................

3.3.11. Retbulo da Piedade, Igreja do Convento dos Anjos

em Montemor-o-Velho ......................................................................................

3.3.12. O Retbulo de So Marcos na Igreja de So Salvador de Coimbra ......

3.3.13. O Retbulo de So Silvestre ..................................................................

3.3.14. O Retbulo da Capela do Tesoureiro ......................................................

3.3.15. Os Tmulos e o Retbulo do Santssimo Sacramento

da Capela dos Meneses, na Paroquial de Cantanhede .......................................

3.3.16. O Tmulo de Joo da Silva, na Igreja do Mosteiro de So Marcos .......

3.3.17. O Retbulo da Assuno da Virgem, na capela-mor da S da Guarda ...

3.3.18. O Retbulo do Santssimo Sacramento da S Velha de Coimbra ..........

3.3.19. Trs Pale do Tipo Pictoral Elaboradas em Consonncias Musicais .......

3.3.20. Reconstruo Hipottica de um Retbulo Narrativo

a partir dos seus Fragmentos ..............................................................................

3.4. Da Geometria ao Estilo: questes de atribuio de autoria colocadas

pelo presente estudo ..............................................................................................

Concluso ...................................................................................................................

ndice das Imagens ...................................................................................................

Bibliografia ................................................................................................................

21

A par dos estudos geomtricos de Almada Negreiros, Lima de Freitas, Eduardo Tavares,

Carlos Calvet ou, mais recentemente, de Lus Casimiro, Vtor dos Reis, Antnio Oriol

Trindade ou Simo Palmeirim, mas sobretudo pela absoluta inexistncia de qualquer es-

tudo geomtrico aplicado escultura em Portugal, por ocasio do nosso curso de mestrado

pensmos ser pertinente um estudo geomtrico visando o retbulo da igreja do Mosteiro

de Nossa Senhora da Pena, hoje Palcio Nacional da Pena, em Sintra, supondo-se que

uma tal investigao e anlise pudesse constituir um alicerce para o aprofundamento do

conhecimento da obra de Nicolau Chanterene, bem como para consolidar uma srie de

afirmaes quanto s caractersticas de percia e erudio deste escultor, imaginrio ao

servio da coroa portuguesa ao longo da primeira metade do sculo XVI.

Subjacente a esse trabalho esteve o pressuposto de que se existisse uma coerncia

plstica na adequao formal a uma estrutura geomtrica ordenadora, poderia trazer no-

vos contributos para um maior conhecimento da obra em anlise, concorrendo para o

enriquecimento da leitura da sua complexa organizao compositiva e, assim, trazer cla-

rificaes quanto estrutura narrativa daquele retbulo obra ptrea de notabilssima

qualidade escultrica e compositiva, sem qualquer paralelo em territrio peninsular. No

seu conjunto, esta anlise traria novos dados que avultariam o conhecimento da obra e o

carter deste artista.

, pois, neste seguimento, e com o mesmo propsito, que pretendemos alargar os

mesmos mtodos de anlise e interpretao ento empregues, agora estendendo-os ao

mais vasto corpo escultrico retabular do perodo renascimental em territrio nacional.

Pensamos ser de inequvoca importncia esta anlise, convictos que a mesma constitua

um alicerce para o aprofundamento do conhecimento sobre a escultura e a arte portugue-

sas deste perodo, bem como das caractersticas eruditas dos artistas que lhes deram con-

secuo, situando-os no contexto artstico e cultural da poca, no s no mbito nacional

como internacional.

Depois de efetuado o estudo supracitado, algumas questes se nos colocaram, proble-

mticas para as quais se tornava premente a procura de respostas.

A primeira prende-se com o facto de embora sabendo da existncia de distintos sis-

Introduo

22

temas de diviso geomtrica aplicados pelos artistas gemetras de antanho originando

traados geomtricos variados empregues como auxiliares prvios da composio te-

nhamos identificado um nico, sistematicamente empregue por Nicolau Chanterene1. Se

a anlise da obra retabular deste artista nos conduziu ao esclarecimento de um mtodo

geomtrico a constantemente empregue, ele no trouxe luz sobre a existncia e a aplica-

o de outros mtodos geomtricos conhecidos ou empregues por outros artistas coevos,

adquiridos por diferentes vias de aprendizagem, mas que, seguramente, teriam sido em-

pregues no vasto e riqussimo acervo existente em territrio nacional.

Por outro lado, mesmo sendo da autoria de Nicolau Chanterene todos os primeiros

retbulos escultricos deste perodo em Portugal todos portadores j de uma verda-

deira linguagem renascimental2 sem que seja suficientemente conhecida a sua origem

ou locais de aprendizagem, no possvel conhecer, tambm, a genealogia do seu

esquema geomtrico de organizao.

Consideramos, por isso, que a anlise das obras retabulares deste perodo e a identifi-

cao dos esquemas geomtricos a presentes, a sua proximidade ou distanciamento, nos

traria novos esclarecimentos quanto sua origem, utilizao, difuso, influncias ou con-

taminaes, traando um quadro que, futuramente, numa investigao mais abrangente,

possa relacion-los com outras obras do mesmo perodo no contexto internacional.

Assim, o estudo alargado s composies retabulares deste perodo, permitiu-nos co-

nhecer quais os tipos de traados empregues, quais os mais difundidos ou que colheram

maior aceitao entre os escultores a trabalhar em territrio nacional, ou mesmo que

tipo de continuidade oficinal alcanaram. Neste seguimento, este estudo esclarecer-nos-

ainda sobre a amplitude do conhecimento erudito da geometria entre escultores e imagi-

nrios, cincia e prtica que se reconhecem efetivos entre os pintores e arquitetos que,

poca, no reino laboravam3.

Por fim, o esclarecimento sobre a existncia, ou no, de traados reguladores anlogos,

1 HENRIQUES, Francisco, 2006.2 Os quatro retbulos do claustro do mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, e logo depois, o retbulo da Lamentao, na igreja do mosteiro de So Marcos, em Tentgal todos os cinco executados ao longo dos primeiros anos do decnio de 1520. Cf. GONALVES, Antnio Nogueira, 1979; DIAS, Pedro, 1996, 1999, e 2003; e GRILO, Fernando, 2000.3 CASIMIRO, Lus Alberto, 2004; PEREIRA, Paulo, 2011.

23

e/ou a profuso dos mesmos, fornecer-nos- um acrescido conjunto de respostas relativa-

mente sua aplicao nos diferentes contextos de utilizao:

Se num dado conjunto de obras forem identificados idnticos traados, poder-nos-

- dar indicao de uma metodologia geomtrica concebida por um mesmo artista, ou

apreendida e executada em contexto oficinal (ou mesmo, em percurso individual poste-

rior), deste modo podendo fornecer dados complementares para a clarificao de atribui-

es de autorias que no se encontrem documentalmente corroboradas.

Se, perante um dado acervo de obras documentalmente atribudo a um mesmo ar-

tista, traados diferentes forem encontrados, poder conduzir-nos constatao de cam-

biantes criativos de uma mesma personalidade, por isso, de um artista mais versado e/ou

especulativo na prtica geomtrica aplicada ao ato criativo.

Tal como pudemos identificar, tambm, nos estudos dos vrios autores, dado o vasto

acervo de obras e de artistas existentes, tomamos como garantida a identificao de dife-

rentes traados geomtricos, pois eles resultam, igualmente, da transmisso de diferentes

conhecimentos, oriundos de diferentes prticas, de diferentes tradies e aprendizagens,

ou mesmo, em casos muito especficos, de novas volies e preocupaes artsticas e

intelectuais.

, pois, com este objetivo que nos propusemos efetuar esta anlise, principalmente

mas no exclusivamente, em torno do ento grande centro cultural coimbro, indutor que

foi de um vasto nmero de obras de notvel carter artstico.

Aps timos resultados obtidos por via da aplicao do mtodo matemtico e geo-

mtrico, e da leitura iconogrfica e iconolgica complementares4, torna-se manifesta a

vantagem da sua utilizao, concluindo-se que utilizado com a mesma preciso e pro-

bidade cientfica, o mesmo constituir um mtodo igualmente rigoroso, eficaz, vlido

e credvel para um mais profundo conhecimento e interpretao do conjunto das obras

retabulares escultricas do Renascimento em Portugal.

Desta forma, este estudo dar-nos- a possibilidade da identificao dos traados a pre-

sentes, a identificao e incluso em diferentes categorias de traados empregues (ou dando-

-nos a conhecer outras, novas) e, sobretudo, permitir-nos destrinar os mecanismos de sig-

4 Cf. BOULEAU, Charles, 1996; CASIMIRO, Lus Alberto, 2004, e ainda HENRIQUES, Francisco, 2006.

24

nificao das obras em anlise, conduzindo ao enriquecimento da sua leitura e interpretao.

A mesma concordncia que verificmos existir entre a estrutura compositiva do portal

axial da igreja de Santa Maria de Belm e a Armadura [traado geomtrico] que encon-

trmos subjacente organizao compositiva de todas as obras retabulares idealizadas

de raiz por Chanterene, comprova o delineamento e conceo do portal, e no, apenas,

a execuo da estaturia e do ornamento nele presentes, fornecendo provas concretas de

que o gizamento de portais e outras obras de idntica envergadura fossem integralmente

entregues execuo de mestres escultores5. Assim, com o objetivo de encontrar suficien-

tes comprovaes que demonstrem o emprego das metodologias geomtricas aplicadas

conceo destes retbulos, bem como observao do processo evolutivo que a eles con-

duziu, torna-se imperativo o estudo exaustivo e alargado a outras estruturas escultricas

e arquitetnicas que com eles partilham caractersticas particulares de carter retabular,

como seja o caso de portais, arcos triunfais ou tmulos. Por todos estes motivos, a sua

incluso e anlise far-se- sempre que nelas identifiquemos o necessrio conjunto de ca-

ractersticas formais que justifiquem e possibilitem o seu estudo.

Observando o conjunto das obras escultricas que neste grupo inclumos, de imediato

nos deparamos com a extensa e incontornvel obra desse vulto maior da escultura renas-

cimental em Portugal Joo de Ruo bem como a de alguns que tm sido apontados

como seus colaboradores, ou trabalhado no seu aro de influncia, como seja o caso de

Tom Velho, Antnio Gomes, Antnio Fernandes, Pro Lus ou Joo Lus estes ltimos

documentados na execuo do portal do colgio de Santo Toms ou ainda de outros

artistas estrangeiros que entre ns se radicaram, como seja o caso de Diogo Jacques ou

Francisco Lorete.

Na prossecuo destes objetivos comemos por procurar as obras de maior relevo

plstico, compositivo e narrativo, ampla e generalizadamente reconhecidas pela mais des-

tacada bibliografia e que maior destaque receberam nos estudos desenvolvidos por insig-

nes autores que arte e escultura portuguesas se dedicaram. Foi, sobretudo, em torno da

cidade de Coimbra e da orla mondeguina que encontrmos referenciado o maior nmero

de obras, bem representativo de um surto mecentico seguramente relacionado com a en-

5 Ver tambm FLOR, Pedro, 2004.

25

to presena da universidade naquela cidade a partir de 1536 mas, sobretudo, de figuras

eclesisticas de maior influncia e poder de dinamizao, como seja o caso de D. Jorge

de Almeida no apenas na S Velha mas em toda a sua rbita de influncia como bispo

de Coimbra ou de frei Brs de Barros, com as reformas crzias e a eminente ideao

da Rua da Sofia e a edificao dos mltiplos colgios ( qual o insigne bispo conde no

pode ter sido alheio) num gesto de douta projeo sem precedentes impulso de que a

cidade e toda a regio vieram a beneficiar. De facto, como teremos oportunidade de refe-

rir, numa vasta regio em torno do grande centro cultural coimbro que se situam um

grande nmero de obras de grande qualidade plstica e com elevado nvel de erudio.

Ter sido a partir da produo escultrica a efetuada que tero emanado o gosto por este

tipo de obras retabulares, ao qual estaria associado um elevado estatuto social e cultural,

obras essas imbudas de uma srie de importantes mtodos de diviso geomtrica utili-

zados na gnese das composies, e j portadoras dos principais sintagmas do lxico ao

antigo que veremos reproduzidos, grosso modo, um pouco por todo o territrio nacional

nos decnios sequentes.6

Assim, porque encontrando-se na regio de Coimbra um grande nmero de obras edifi-

cadas, a nossa primeira viagem de anlise destinou-se tomada de fotografias, medio e

observao direta de um conjunto destas estruturas, dentre as quais mencionamos, apenas

a ttulo de exemplo, o retbulo da Misericrdia, na capela da Varziela; ou os vrios retbu-

los do Sacramento existentes, entre outras, na paroquial de Cantanhede; na igreja de Santa

Maria da Alcova, em Montemor-o-Velho; ou na S Velha, em Coimbra; ou estruturas re-

tabulares de outras tipologias, tais como o retbulo da Lamentao da igreja dos Anjos, em

Montemor-o-Velho; e ainda alguns dos retbulos da coleo do Museu Nacional Machado

de Castro ( data ainda fechado para reestruturao). Outras obras de merecido destaque

tnhamos em vista mas, porque se encontravam mais afastadas desta rea, em momento

mais oportuno, numa outra viagem, receberiam a nossa cuidada ateno.

6 A importncia dada aos conceitos vitruvianos generalizados pela nova tratadstica assim o justificam, com ampla fortuna e divulgao em territrio nacional, com a presena em bibliotecas nacionais da traduo e ilustrao de Cesariano, ou das Medidas del Romano de Sagredo (com vrias edies nacionais), ou mesmo atravs de novas propostas trazidas prtica por artistas em contacto com a produo terica e artstica em territrio transalpino (com ecos de acentuada preponderncia em Alberti). Cf. DIAS, Pedro, 1982 b), pp. 98 e ss; e 1988, pp. 157-160.

26

Durante as visitas aos locais onde se encontravam os supracitados retbulos, e por in-

dicao de vrias pessoas desde os profissionais da rea, ou daqueles que pertencem s

Fbricas das igrejas, ou mesmo s pessoas da terra que amavelmente se disponibilizaram

a abrir-nos as portas dos diferentes locais divisvamos um mais vasto conjunto de obras

para alm daquele por ns inicialmente proposto (estas, na sua maioria, as obras de mais

reconhecido mrito e excelncia artstica, sobretudo orbitando em torno da obra escult-

rica de Joo de Ruo e, por isso, mais divulgadas e conhecidas). Mesmo que tivssemos

programado a visita e anlise de obras no estritamente retabulares mas cumprindo idn-

tica tipologia como fosse o caso, entre outras, dos tmulos e arcos triunfais existentes

na igreja de So Marcos, o panteo dos Silva, em So Silvestre, Tentgal no decorrer

desta incurso, paulatinamente apercebemo-nos da existncia de um acrescido nmero

de outros retbulos (na maioria das vezes mais simples, certo) mas, sobretudo, arcos

triunfais e portais, menos documentados ou apenas sumariamente referidos.

Se a nossa pesquisa se focava, inicialmente, em obras retabulares que tm vindo a

receber maior destaque bibliogrfico e maior fortuna crtica, por confrontao direta tive-

mos a possibilidade de observar outras obras que colheram menor ateno, embora nelas

estivssemos a poder identificar, mesmo que por anlise sumria e imediata, importncia

valorativa essencial enquanto detentoras de esquemas compositivos que podiam fornecer

excelentes contributos para a nossa pesquisa. Gradualmente, amos verificando a impor-

tncia e o interesse especulativo que a identificao dos traados geomtricos daquelas

obras comportaria para o pleno entendimento dos sistemas geomtricos de composio

que nos propusemos analisar, assim como para a averiguao dos ecos e repercusses

que o conhecimento das metodologias de composio, aliceradas nesses processos de

diviso geomtrica, podero ter suscitado nas oficinas, nos artistas e lavrantes coetneos

que, mais tarde, ainda no mesmo perodo, difundiriam estas prticas pelo nosso territrio.

No podemos deixar de assinalar, portanto, a enorme importncia de que se reveste a

vivncia, a observao e a anlise presencial das obras, e mesmo do conhecimento dos

espaos, dos lugares e dos monumentos nos quais se encontram as mesmas, possibilitan-

do, muitas vezes [quase sempre], a identificao de outros espcimes de inequvoca im-

portncia, ou mesmo de outras obras, ou de outros elementos e, sobretudo, de um imenso

conjunto de nfimos pormenores, que nos fornecem dados que constituem valiosos con-

tributos e adendas para a compreenso da obra em questo.

27

Estes novo conjunto de dados, mas tambm a constatao de to mais prximas afini-

dades tipolgicas, formais e compositivas, a identificao de sintagmas clssicos, mesmo

que de carter decorativo, e uma aparente e quase sempre presente aproximao s pres-

cries tratadsticas, conduziu-nos a uma reformulao na nossa procura e a uma mais

profunda e sistemtica pesquisa bibliogrfica que nos pudesse dar mais indicaes das

obras que nos interessavam para prossecuo dos nossos objetivos.

Assim, para que no descurssemos obras essenciais que pudessem trazer clarificaes

nossa anlise, prosseguimos na reformulao do nosso plano de trabalho e, como tal, na

reelaborao de uma metodologia que, sequencialmente, consistiu:

1 Na pesquisa bibliogrfica e no levantamento exaustivo de todas as obras deste

perodo que pelas suas caractersticas tipolgicas devessem ser englobadas neste acervo,

com a preocupao da procura das obras de tipologia retabular que melhores dados nos

pudessem fornecer relativamente aos esquemas geomtricos de composio, empregues

no arco cronolgico em questo, em territrio nacional;

2 A idealizao, preparao e produo de novas viagens, fazendo a pesquisa e le-

vantamento dos contactos das entidades tutelares dos monumentos, dos edifcios e das

obras referidas, e o pedido de autorizao de visita s mesmas;

3 A reprogramao, agendamento e calendarizao das visitas, no sentido da prepa-

rao objetiva e otimizada das viagens para que do ponto de vista cronolgico e geogrfi-

co as tornassem mais curtas (nas distncias percorridas) e mais rpidas (e, por isso, menos

onerosas), tornando-as concisas e profcuas;

4 E, por fim, as viagens e as visitas para as anlises propostas.

Foi, ento, aps este mais aprofundado e exaustivo recenseamento documental, re-

sultando num levantamento muito mais vasto, que nos propusemos efetuar duas viagens

exploratrias de maior extenso geogrfica e temporal, cuja organizao exigiu uma me-

ticulosa preparao, por motivos bvios relativos ao delineamento do percurso em fun-

o da proximidade das localizaes e ao obrigatrio agendamento prvio de todas as

visitas, necessariamente calculando as distncias percorridas, os tempos dos percursos,

os tempos das visitas, das referidas anlises, das tomadas fotogrficas e medies das

obras, incluindo e prevendo eventuais contratempos que sempre acontecem. No seu es-

trito cumprimento, em dias de maior atividade que comeavam, necessariamente, muito

28

cedo e terminavam tarde, chegmos a percorrer oito diferentes localizaes em visita,

muitas vezes distando vrias dezenas de quilmetros entre si, em muitos desses dias per-

correndo centenas de quilmetros. Assim, numa rea que se alargou muito alm daquela

inicial, a nossa pesquisa estendeu-se da Beira Litoral Beira Baixa e Beira Alta, com o

grande ncleo central em torno de Coimbra; mas tambm ao Minho, a Braga e Caminha;

Estremadura; ao Ribatejo; ao Alentejo, com importantssimo centro em vora e numa

linha que se prolongou a Olivena; e, por fim, ao Algarve.

Segundo a pesquisa efetuada em torno da bibliografia, consideramos ter visitado, fo-

tografado, medido e analisado o mais vasto nmero de obras de tipologia retabular da

Renascena, qual muitas faltaro, certamente, mas cujo estudo integral s ser possvel

num mais alargado perodo de tempo e com a constituio de uma equipa formada por

vrios elementos. No processo agora efetuado importa conceder particular realce anli-

se geomtrica de cada obra, na decifrao do traado geomtrico empregue como auxiliar

prvio de cada organizao compositiva, num procedimento que implicou, no mnimo,

a execuo de cerca de dez diferentes traados e respetivos desenvolvimentos para cada

uma das obras em anlise.

Procurmos e examinmos obras do sculo XVI que apresentassem uma linguagem

ao antigo, e j plenamente imbudos daquela nova sintaxe. Do mesmo modo, todas as

que evidenciavam ainda a anterior linguagem gtica ou j a sequente maneira no foram

por ns englobadas. Ressalvam-se, no entanto, algumas obras dos perodos de transio,

mesmo que pertencentes ao sculo seguinte e este, apenas, o caso que pela exce-

lncia das suas caractersticas formais de continuidade com o anterior perodo, optmos

por incluir. Por fim, ressalva-se ainda o caso especfico dos arcos triunfais, certamente

no estando muitos deles aqui abrangidos (dado o vasto nmero que existir por todo o

territrio), cingindo-nos apenas queles que encontrmos associados e vinculados arqui-

tetnica e estilisticamente a obras retabulares em anlise.

Importa referir que nos empenhmos em encontrar e analisar in loco o maior nmero

possvel de obras inventariadas na bibliografia atinente, algumas delas, por vezes, e

poca, insuficientemente documentadas [ou mesmo, algo imponderadamente, por falta de

possibilidade de entrada nos locais], como teremos a possibilidade de referir. Por outro

lado, salientamos tambm, que em alguns casos, algumas das obras inventariadas, nomea-

damente no Inventrio Artstico de Portugal, no foram por ns encontradas ou, perante

29

a nossa solicitao, a sua visita nos foi sonegada sem que tenhamos tido a possibilidade

de verificar a sua existncia. Por fim, ressalvamos que com o decorrer desta investigao

identificmos, ainda, um conjunto de obras que no foi possvel incluir neste estudo dado

o seu estado de degradao, ou por no reunirem as condies de uma anlise integral

por se encontrarem desmanteladas, incompletas, ou parcialmente deslocadas dos seus

locais de enquadramento original. Embora tenhamos encontrado alguns destes retbulos

nestas condies, e porque so apenas sumariamente referidos e quase desconhecidos,

decidimos conceder-lhes algum espao neste estudo tal como seja o caso do retbulo

de Arrifana, obra que seria de bastante qualidade escultrica e compositiva, e que com

algum pesar vimos muito danificada. Outras, bem conhecidas e com longa fortuna crtica

que a historiografia lhes tem concedido, sabendo-as incompletas ou desmanteladas [ainda

que, por vezes, s parcialmente], no as inclumos neste estudo como seja o caso do

magnfico retbulo da Misericrdia de Coimbra, ou o de Lorvo, hoje, ambos no Museu

Nacional Machado de Castro; ou o retbulo de Pedrgo Grande, do qual subsistem ape-

nas alguns elementos separados as imagens ainda na igreja, e partes variadas dos seus

elementos tectnicos guardados num armazm.

Ao longo desta pesquisa efetumos um conjunto de mais de duas mil tomadas foto-

grficas a um conjunto de 216 obras de tipologia retabular, as quais, depois de afastadas

as 40 que no cumpriam os requisitos enunciados, ascende a um total de 176 obras, das

quais, 6 no nos foi possvel fazer a completa anlise a que nos propusemos. Assim, entre

as 165 restantes, efetumos uma integral anlise plstica, iconogrfica e geomtrica a 97

retbulos, 26 portais, 26 arcos triunfais e 16 tmulos (embora no caso de Trofa do Vouga

cada uma das duas estruturas tumulares conjugue um par de sepulturas), e que oportuna-

mente enunciaremos.

Aps o levantamento efetuado, tornou-se imprescindvel uma aturada separao e ca-

talogao das provas, tendo em vista a organizao cuidada e metdica que nos propor-

cionou mais rpido acesso e um estudo proficiente.

Embora o interesse objetivo destas fotografias seja as tomadas de vista frontais e

sem distores perspticas para posterior traado das divises geomtricas que nos

permitiram divisar a existncia de traados geomtricos reguladores, focmo-nos,

tambm, nos diferentes elementos decorativos que, em nosso entender, muito mais

do que simples ornamentos, compreendem uma profunda e intricada linguagem sim-

30

blica, consoante caracterizem as superfcies das estruturas retabulares, dos arcos

triunfais, dos portais ou dos tmulos tal como logo pudemos verificar e que, poste-

riormente, analisaremos comparativamente.

Do mesmo modo, estas fotografias do-nos a possibilidade da anlise comparativa

desses mesmos motivos, os quais, mais do que fazerem parte de um reportrio comum e

amplamente utilizado, pertenciam a acervos particulares de imagens e ilustraes habi-

tualmente coligidos individualmente pelos artistas. Por outro lado ainda, a identificao

comparativa de pormenores especficos neste caso, de tcnicas escultricas de lavor da

pedra dar-nos-iam indicao, talvez, de uma certa maneira ou de determinada mo

na conceo da obra.

Aps a catalogao das imagens captadas prosseguimos com a referida anlise geo-

mtrico-matemtica no cerne do nosso estudo, comeando a mesma pela identificao do

marco em que se insere a obra; seguidamente, com a determinao do respetivo mdulo;

depois, com a comparao dos marcos encontrados, e a sua identificao [ou no] no con-

junto aqueles mais empregues neste perodo; e, por fim, a elaborao de tabelas aonde,

separados j por tipologias e pelos respetivos mdulos e medidas, ser possvel obtermos,

tambm, uma diferenciao por subtipologias. Finalmente, e s ento, prosseguimos

eleio das obras que aprofundadamente estudmos, e aplicao de toda a restante me-

todologia que seguidamente enunciaremos detalhadamente.

Enunciaremos, tambm, aquelas que, pelos motivos supracitados, no incluiremos

neste estudo, assim como as que nos propusemos visitar mas que no foram encontradas,

fazendo sempre referncia especfica a cada um desses casos. As obras retabulares de

Nicolau Chanterene anteriormente por ns analisadas os trs retbulos do claustro do

Silncio, em Santa Cruz; o retbulo da Lamentao, na igreja de So Marcos; o retbulo

de So Pedro, na S Velha; e o retbulo da Pena7 no as inclumos neste estudo.

No terceiro volume deste estudo inclumos uma ficha referente a cada uma das obras

enumeradas, na qual constaro uma fotografia da mesma, o nome respetivo, a regio, a

localidade, o edifcio (igreja ou museu) em que se encontram, a indicao da tipologia

correspondente, e a anlise plstica e iconogrfica respetiva. Relativamente anlise geo-

7 HENRIQUES, Francisco, 2006.

31

mtrica, referimos as medidas da obra, o Marco e o Mdulo correspondentes, a designa-

o que este toma, e qual a metodologia de anlise que lhe encontrmos.

Importa referir que embora tenhamos organizado estas obras num terceiro volume di-

ferenciado, apresentado em CD, o mesmo no deve ser visto como um conjunto de ima-

gens ilustrativas do texto analtico deste volume. Pelo contrrio, neste volume expomos

a anlise integral de todas as obras relacionadas, a mesma que nos possibilitou uma con-

sistente comparao entre todas, e da qual emergiram aquelas de maior interesse e valor

que compem o nosso corpus analtico. No Volume II Apndice Iconogrfico, tambm

apresentado em CD, inclumos todas as imagens necessrias explanao desta tese, na

sua grande maioria sendo explicativas e demonstrativas da anlise efetuada a cada uma

das obras analisadas no texto deste volume.

Depois de divisados os traados geomtricos de todas as obras, depois de compara-

dos e analisados conjuntamente, procederemos leituras iconolgica dos casos de maior

excelncia, cuja semntica, como noutros casos pudemos averiguar, se v alicerada,

veiculada e empoderada por este suporte geomtrico generalizadamente empregue na sua

gnese compositiva.

Todas as fotografias foram captadas pelo autor deste estudo, bem como todos os de-

senhos e traados sobre aquelas efetuados excetuando-se apenas os casos pontuais de

algumas imagens de referncia, sempre devidamente identificados. Do mesmo modo, a

preparao das fotografias, as correces de cor e de luminncia, bem como todos os de-

senhos a efetuados, foram tambm executados pelo autor, neste caso com recurso a uma

aplicao digital de desenho e tratamento de imagem o Photoshop.

Adotmos, como de lei, o atual acordo ortogrfico, embora em alguns casos deva-

mos fazer uma exceo, posto que a corrente grafia adotada poder induzir a uma leitura

errnea do que pretendemos dizer. Assim, excetuamos os termos recepo, espectador,

sector, aco, ou correcto, uma vez que para o alargado universo de mais de 200 milhes

de leitores de expresso oficial portuguesa, esta nova grafia resulta igualmente dbia.

PARTE IMetodologia Terica e Prtica

Das Origens do Retbulo formalizao do Retbulo Ptreo em Portugal

1.1

1.2

35

Na prossecuo dos nossos objetivos tivemos como pressuposto constante a procura e

identificao de todos os mtodos que pudessem ter propiciado a adequada estrutura-

o compositiva das obras que analisvamos, bem como os processos que conduziram

elaborao de uma imagtica que resultava eficaz do ponto de vista da narrativa, da

expresso artstica e da linguagem visual, procurando destrinar os subjacentes e in-

tricados mecanismos de significao a presentes. Como tivemos j oportunidade de

referir, este processo iniciou-se por ocasio da nossa investigao efetuada em torno

da obra retabular chanterenesca, primeiro e importante momento durante o qual logo

fizemos uso da mesma metodologia agora empregue, no seguimento daquela iniciada

por Charles Bouleau, e mais tarde aplicada [e notavelmente incrementada] no contexto

artstico nacional por Lus Casimiro. Nessa anlise, igualmente inclumos a exposio

dos mtodos seguidos, texto que aqui igualmente expomos, sumariamente alterado mas

necessariamente incrementado, com um conjunto de adendas que para o presente estu-

do importa clarificar.

Durante a nossa pesquisa, entre estudos de vrios autores nacionais e estrangeiros

que contriburam para o aprofundamento do conhecimento sobre esquemas geomtri-

cos de composio, averigumos que ao longo de toda a histria da arte, mas sobretudo

em alguns momentos especficos e em casos eruditos muito particulares, nomeadamen-

te neste perodo que nos ocupa, o Renascimento, foram aplicados sistemas geomtricos

singulares capazes de conter em si esquemas de ordenao de toda a estrutura compo-

sitiva. Neste sentido, so absolutamente essenciais os vrios estudos de Matila Ghyka8,

nos quais o autor averigua e aprofunda o conhecimento das propores geomtricas

na natureza e na arte, estendendo-se desde o perodo helenstico contemporaneidade,

passando pelos diferentes perodos artsticos intermdios, e cujos desenvolvimentos

8 GHYKA, Matila, 1977 a) e b), as edies por ns consultadas. As suas obras, contudo, foram publicadas e desenvolvidas logo desde 1927, quando da publicao de Esthtique des Proportions dans la Nature et dans les Arts; em 1931 Le Nombre dOr. Rites et Rythmes pythagoriciens dans le Development de la Civilisation Occidentale; The Geometry of Art and Life, em 1946; ou A Practical Handbook of Geometry and Design, e Philosophie et Mystique du Nombre, ambos de 1952.

1.1 Metodologia Terica e Prtica

36

continuam a colher generalizada aceitao no meio cientifico. Analisando os diferentes

sistemas proporcionais e as suas propriedades matemtico-geomtricas com parti-

cular incidncia sobre a divina proporo e o Nmero de Ouro o autor esclarece

uma mirade de relaes intrnsecas s formas planas e aos volumes tridimensionais,

revelando, seguidamente, uma srie de estratgias, paralelismos e analogias empregues

por artistas que ao longo dos sculos os aplicaram nas suas criaes artsticas, os quais

disseca, claramente expe e demonstra.

De modo idntico, contemporneo deste ltimo e por ele mltiplas vezes citado, Jay

Hambidge publica a conhecida srie de estudos em torno do que denominou elementos

da simetria dinmica9, nos quais se dedica a um amplo conjunto de metodologias geom-

tricas por si identificadas e empregues na arte ao longo dos sculos, mormente aplicadas

s naturais relaes geomtricas intrnsecas s formas planas. Sempre escorado nos fun-

damentos da geometria euclidiana, o conceituado autor explicita e distingue, ento, dois

tipos essenciais de simetria, esttica e dinmica, a primeira resultando num processo de

desenvolvimento formal caracterizado por algum estatismo relativo ao modo de arranjo

dos diferentes elementos de uma dada composio; a segunda correspondendo a um pro-

cesso de ordenao e crescimento simultaneamente interno e externo prpria forma,

proporcionando novos arranjos formais estabelecidos em infinita continuidade propor-

cional, aquela mesma verificada na natureza e na arte, desde sempre almejada e empre-

gue por artistas desde a antiguidade, e em determinados perodos histricos procurada e

empregue com maior empenho e proficincia. Nos seus estudos, Hambidge explana os

mtodos geomtricos construtivos dos vrios retngulos dinmicos (os Retngulos de

Ouro (), o Retngulo da Raiz do Nmero de Ouro (), o de Raiz de Dois (2) e de

Raiz de Trs (3), etc.), clarificando igualmente as principias entidades geomtricas que

no seu interior se desenvolvem.

Ecos dos notveis trabalhos destes dois investigadores continuam a fazer-se sentir con-

temporaneamente, por vezes aprofundados e amplificados estendendo-se a outras obras e

artistas que a estes anteriores no foi possvel abarcar, embora nos seus estudos encontrem

9 HAMBIDGE, Jay, 1967 (publicao por ns consultada, embora com diferentes edies de datas anteriores).

37

as sempre transversais metodologias que lhes concede adequada corroborao, e abrindo

o espectro que a novos autores permite a possibilidade de novas investigaes. Neste

aspeto, na nossa pesquisa tornaram-se igualmente importantes as consultas das obras de

Martin Kemp10, Miranda Lundy11, Robert Lowlor12, Prya Hemenway13, Andrew Sutton14,

ou Fernando Corbaln15, muitas vezes clarificando a linguagem e os mtodos empregues,

outras vezes ampliando o alcance dos modelos e os respetivos processos construtivos.

Entre todos, encontrmos particular interesse no trabalho de Nigel Pennick16, mais histori-

camente abrangente e sem o acentuado carter esotrico de Lowlor, no to sumariamente

restrito aos esquemas geomtricos de Lundy ou de Sutton, nem to tendencialmente ma-

temtico como Corbaln. A sua explanao verdadeiramente abrangente, comeando

por referenciar textos s sumariamente conhecidos, como os ancestrais Manasar Silpa

Shastra em snscrito, nos quais se encontram as primeiras evidncias dos traados da

Vsica Piscis e da sua aplicabilidade ao delineamento das construes edificadas para re-

lacionamento do homem com o divino; da migrao desta metodologia para ocidente e da

sua utilizao, entre outros, por Vitrvio; ou os esquemas de agrimensura egpcios, redun-

dando nos equitativos traados de diviso dos retngulos pelas suas diagonais17. Amplo,

o seu trabalho refere igualmente os sistemas medievais ad triangulum e ad quadratum,

empregues, em parte, at ao perodo gtico, ou os diferentes e mais evoludos sistemas

geomtricos empregues pelos artistas renascimentais. Aqueles mtodos anteriores, Paulo

Pereira aborda-os no contexto nacional e refere-os no mbito da arquitectura tradicional

moderna, pr-renascentista, na qual os mestres pedreiros os empregavam recorren-

do a traados baseados no quadrado e nas suas faculdades de transformao [podendo]

gerar propores harmnicas, e para os quais no tm de dominar a aritmtica, e muito

10 KEMP, Martin, 1990.11 LUNDY, Miranda, 2006.12 LOWLOR, Robert, 2013.13 HEMENWAY, Prya, 2005.14 SUTTON, Andrew, 2009.15 CORBALN, Fernando, 2010.16 PENNICK, Nigel, 2001.17 Ao qual Miranda Lundy chama Sandreckoner (LUNDY, Miranda, 2006, pp. 16-17) nome dado a um manuscrito de Arquimedes no qual o matemtico grego se prope a calcular o nmero de gros de areia que caberia no universo embora o termo nunca tenha sido referido por nenhum dos outros autores consultados.

38

menos a matemtica, bastando-lhes simples instrumentos como o compasso e a rgua ou

esquadro ou, em maiores medidas, uma corda devidamente marcada 18.

Para o nosso estudo, contudo, assumiu particular relevncia a j referida obra seminal

de Lus Casimiro, porquanto represente um importante e incontornvel manancial didti-

co, claramente expondo e sintetizando o amplo conjunto de mtodos que vrios daqueles

autores aprofundaram ao longo de vrias dcadas.

Na sua tese, A Anunciao do Senhor na Pintura Quinhentista Portuguesa (1500-

1550), no seguimento da metodologia desenvolvida e aplicada por Charles Bouleau ao

longo de vrias dcadas19, Casimiro atesta a existncia de um vasto conjunto de traados

geomtricos aplicados a um largo acervo de quarenta e quatro pinturas da Anunciao que

investiga. O seu objetivo foi, no entanto, mais vasto do que apenas a anlise das pinturas

quinhentistas portuguesas pela metodologia encontrada em Bouleau, tendo mesmo es-

tendido o seu estudo ao maior nmero possvel de mtodos construtivos dos retngulos

conhecidos pelos artistas do Renascimento, [de modo a] compreender as leis que regem a

sua criao e determinam a respectiva estrutura interna20. Fundamentado na importante

obra de Charles Bouleau obra igualmente (e necessariamente) por ns consultada por

quanto tenha constitudo uma pea fundamental em todo este processo21, nela encon-

trou o necessrio escoramento terico e metodolgico baseado numa investigao apli-

cada a um amplo conjunto de obras, da antiguidade sua contemporaneidade. Contudo,

Casimiro projeta mais longe a sua pesquisa, como dissemos, investigando, dissecando, e

expondo uma srie de modelos que lhe permitissem conduzir e a outros investigadores

depois dele integral compreenso desses mesmos processos e metodologias geomtri-

cas para anlise das obras de arte.

Concordando com os timos resultados obtidos por via da aplicao desta metodolo-

gia, tanto na ampla obra do conceituado investigador francs, como na anlise de Lus

Casimiro efetuada s pinturas portuguesas da primeira metade de Quinhentos sobre o

tema da Anunciao [e ao amplo conjunto de metodologias geomtricas a que se dedi-

18 PEREIRA, Paulo, 2011, pp. 982-985.19 BOULEAU, Charles, 1996.20 CASIMIRO, Lus Alberto, 2004, p. 889.21 CASIMIRO, Lus Alberto, 2004, p. 855.

39

ca], ou por ns prprios verificado na obra retabular de Nicolau Chanterene; e perfilhando

da opinio de que se torna evidente a vantagem da sua utilizao se utilizado com o

indispensvel rigor e imparcialidade, com objetiva probidade cientfica e intelectual, o

mesmo constituir um mtodo igualmente rigoroso, eficaz, vlido e credvel para o

aprofundamento do conhecimento e uma profcua interpretao do vasto leque de obras

de tipologia retabular englobadas sob o acro cronolgico que agora nos ocupa.

Com base neste pressuposto e empregando a mesma metodologia, procurmos iden-

tificar quais os modelos geomtricos utilizados na escultura retabular e de tipologia reta-

bular, e quais os mais seguidos pelos escultores coevos a laborar em territrio nacional,

procurando averiguar e esclarecer se estas obras se encontrariam igualmente imbudas

dos mesmos preceitos de ordenao e estruturao compositiva, os mesmos que os mais

diversos investigadores ligados s cincias exatas comprovaram existentes na gnese

obras artsticas que estudaram.

Antes de explanarmos a nossa anlise, e para um pleno entendimento do estudo geo-

mtrico que estes investigadores desenvolveram, e que nesta anlise empregmos

torna-se indispensvel a sua exposio22, referindo alguns dos seus aspetos essenciais, as

suas caractersticas, e as diferenas que se operaram no nosso procedimento.

O Mtodo Geomtrico

Assim designado por Lus Casimiro, este um processo de anlise (), baseado na

aplicao de regras matemtico-geomtricas de acordo com critrios estabelecidos e per-

correndo etapas bem definidas, com o objetivo de propor uma leitura, cientificamente

fundamentada, daquele que ter sido, eventualmente, o esquema geomtrico de compo-

sio utilizado (), ou seja, a estrutura geomtrica que esteve na gnese da obra (),

como traado regulador, auxiliando o artista a organizar a sua composio 23.

Na essncia deste mtodo est a particular ateno que os artistas do Renascimento

empregavam na escolha das dimenses do retngulo que delimita a obra de arte, porquan-

22 qual Casimiro dedica nada menos que 258 pginas.23 CASIMIRO, Lus Alberto, pp. 853 e ss.

40

to essas medidas comportem enormes implicaes no trabalho sequente de estruturao

das respetivas organizaes compositivas, como seguidamente iremos verificar. Tal como

todos aqueles investigadores asseveram, no interior de cada retngulo, decorrente das

dimenses dos lados e da sua relao proporcional e, sobretudo, do seu processo constru-

tivo, emerge um importante e singular conjunto de linhas, geomtrica e naturalmente or-

denadas, o mesmo que proporciona ao artista um conjunto de guias que o podem auxiliar

na disposio dos diferentes elementos da sua composio.

Este traado regulador, que no possvel ser captado de imediato nem visvel

numa usual observao, pode ser encontrado na gnese das obras de alguns artistas do

Renascimento, servindo como auxiliar de estruturao e suporte a toda a composio, na

disposio e no estabelecimento das relaes entre os seus vrios elementos.

Sem que possa imediatamente ser encontrada qualquer indicao apriorstica da even-

tual estrutura interna empregue pelo artista, este mtodo desenvolvido experimental-

mente segundo um sistema de tentativa e erro, prosseguindo na eliminao e/ou aceitao

das diversas hipteses de estudo tendo em conta as especificidades compositivas de cada

obra, at ser encontrado e proposto, sempre devidamente justificado, o esquema geo-

mtrico operante.

Embora conhecido mas no suficientemente divulgado e posto em prtica, este sis-

tema relativamente inovador no foi ainda devidamente sistematizado e alargado a um

nmero suficiente de obras e artistas para que possam ser conhecidas preferncias ou

mtodos eleitos por alguns desses criadores. No entanto, no nosso estudo prosseguimos

as nossas pesquisas sempre baseadas e fundamentadas no mtodo de anlise proposto

por C. Bouleau e seguido por L. Casimiro, dado a termos encontrado suficiente rigor,

aplicabilidade e proficincia, e se em Chanterene pudemos verificar a existncia de uma

trama geomtrica transversalmente empregue em todas as suas obras, no presente estudo

foi-nos igualmente possvel verificar mtodos geomtricos preferencialmente empregues

e utilizados por alguns dos artistas deste perodo, alguns deles, como veremos, com par-

ticular proficincia e amplo conhecimento na prtica da geometria.

Quanto ao desconhecimento de qualquer documentao relativa a este mtodo e qual-

quer esboo da sua aplicao, C. Bouleau e L. Casimiro referem a importncia conferida

ao sigilo de que se revestia a prtica dos artistas nestas matrias para alm do espao da

sua oficina, segredos ou cincia da arte que s no contexto oficinal era conhecido,

41

transmitido apenas aos iniciados, muitas vezes s aos mais experimentados oficiais e co-

laboradores, e nunca ao vulgo 24.

Toda a aplicao do Mtodo Geomtrico passa por um estudo rigoroso que toma con-

tornos de preciso bastante apurados, quer efetuados segundo os mtodos tradicionais

por meio de rgua, esquadro e compasso ou, hoje, segundo os meios computacionais,

os quais transversalmente empregmos no presente estudo. O rigor de anlise por estes

meios conseguido no pode, nem deve, desejavelmente, questionar as menores diferenas

evidenciadas na obra artstica, visto estarmos em presena de obras de pedraria algu-

mas delas com caractersticas particularmente brandas, como seja o caso do calcrio de

An em inmeros casos erigidas em espao aberto, constantemente sofrendo a eroso

causada pelo clima e sujeitas a considerveis diferenas de presso e temperatura que

tero estado na origem de contraes e dilataes mais visveis ao nvel das juntas

e causando pequenas alteraes. Por outro lado, no pode ser equiparada a exatido

e o detalhe da anlise matemtica e geomtrica, sobretudo se vista com a magnitude

e a mincia que os meios computacionais hoje nos permite ao nvel do tratamento da

imagem digital, excessivamente rigorosos se comparados com o talhe da pedra conse-

guido por esforo manual da percusso do martelo sobre o escopro e o cinzel, por mais

exmia que possa ter sido. Por este motivo, devemos sempre ter em conta uma necessria

margem de erro, ou de inexatido, qual devemos acrescentar que o artista pode no se-

guir, rigorosamente, todo o percurso do traado original da trama reguladora25, podendo

desviar-se da sua orientao segundo a sua sensibilidade pessoal, ou mesmo procedendo

a algumas alteraes por via das necessidades compositivas ou das exigncias dos enco-

mendadores. Noutros casos, sempre evidentes, pode igualmente revelar a dificuldade de

traduzir, na passagem pedra, a sua ideia original.

Importa referir que nesta anlise efetuada a obras escultricas s quais inerente a

volumetria e a constante diferenciao de um vasto nmero de planos em profundidade

embora diferenciadamente, e nuns casos verificando-se mais acentuado do que nou-

tros partimos do pressuposto que as deveramos analisar segundo a original ideao

24 BOULEAU, Charles, 1996, pp. 9 e 42; CASIMIRO, Lus Alberto, pp. 861 e 871.25 CASIMIRO, Lus Alberto, p. 862.

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bidimensional na superfcie do papel, tal como se do seu debuxo se tratasse, por isso,

tomado pelo seu plano posterior, pois ter sido assim que foi iniciado o seu processo de

materializao.

Embora todas as obras tenham sido minuciosamente analisadas in loco e nos seus mais

nfimos detalhes, a nossa anlise decorreu, necessariamente, sobre fotografias de alta re-

soluo, na maioria dos casos, como igualmente referimos, captadas por ns durante visi-

tas efetuadas aos locais. Casos excecionais so a Porta Especiosa e o Portal da Majestade,

uma vez que as suas maiores dimenses, e a impossibilidade do necessrio afastamento

para a captura de uma fotografia frontal e sem distoro persptica, nos levou a recor-

rer a desenhos fotoestereogramtricos fornecidos pelo gabinete de desenho da Direo

Regional de Cultura do Centro, extremamente rigorosos e detalhados, com uma resoluo

e uma escala muito elevada, e cuja utilizao nos foi gentilmente concedida pela Ex. Sr.

Diretora Dra. Celeste Amado.

A Cincia da Arte

Inextricavelmente associado ao Humanismo, o Renascimento foi um momento particu-

lar da histria e da cultura originando to profundas e profcuas alteraes que geraram

um importante salto epistemolgico e o surgimento de um novo homem. Um profundo

interesse por culturas e civilizaes ancestrais levou alguns intelectuais ao estudo das ln-

guas antigas, o Grego, o Latim e o Hebraico, e desta forma a conhecer e a reabilitar uma

srie de conhecimentos esquecidos da Antiguidade. O contacto com as teorias filosficas

de Pitgoras, Protgoras, Plato ou Aristteles, entre outros, bem diferentes do conheci-

mento teolgico vigente na poca, conduziu o homem a uma mais profunda tomada de

conscincia e ao enaltecimento das virtudes, inebriando-o ainda mais profundamente com

a excelncia da cincia e do conhecimento.

Absorvendo os descobertos ensinamentos de Vitrvio, a reabilitao de uma srie de

noes no mbito da Matemtica, da Geometria e da tica, tornou-se fundamental para

o artista do Renascimento que, pretendendo evidenciar os seus dotes intelectuais e o seu

conhecimento esclarecido, lutou por se notabilizar e elevar o estatuto da sua prtica ao

nvel das sete artes liberais, equiparando-se aos retricos, aos poetas, aos msicos, aos

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matemticos, ou aos astrnomos26. Tambm com este intuito, mas pretendendo patentear

a excelncia do seu mister, o artista moderno acercou-se deste vasto e erudito conjunto de

saberes que lhe permitiam afirmar o carter do seu conhecimento cientfico, distanciando-

-o do mero labor manual do artfice e do arteso. Conhecedor, passa a aplicar uma srie de

frmulas de cariz matemtico-geomtrico com o intuito de conferir s suas composies

as caractersticas de harmonia, proporo, simetria e euritmia enunciados por Vitrvio

nos De Architectura Libri Decem27.

Imbudos dos conceitos pitagricos relacionando as propriedades dos nmeros e as har-

monias universais e pretendendo participar dessa ordem cosmolgica, a proporo passou

a tomar um papel decisivo nas obras dos mais importantes artistas deste perodo. Este con-

ceito vitruviano, traduzido da palavra grega analogia, pressupe aspetos prticos, quantita-

tivos e aritmticos que, juntamente com outros qualitativos e estticos, encerram os vocbu-

los symetria, commensus ou commensuratio28. Pode ser dito que a diferena entre proportio

e symetria se resume distino entre a norma e a aplicao da mesma. Para Vitrvio,

simetria supe o princpio esttico da relao mtua entre os membros e a consonncia

entre as partes e o todo; enquanto proporo o procedimento tcnico segundo o qual se

pe em prtica o sistema de simetria. Enquanto esta no determina a beleza de um corpo,

garantindo apenas a sua realizao tcnica por estabelecimento de um mdulo, a simetria

dever relacionar de uma maneira bela e apropriada todos os membros do conjunto29.

Definindo uma relao aritmtica entre duas grandezas, a Divina Proporo tomou

para estes artistas uma enorme importncia, uma vez que aplicada a um segmento de

reta, por exemplo, ela determina a sua diviso de uma forma nica em que a relao

entre as partes e o todo permanece idntica30. Ou seja, a relao de proporcionalidade

entre a parte menor e a parte maior igual relao de proporcionalidade entre a parte

maior e a totalidade, tendo ficado conhecida por Euclides como a diviso de um segmen-

26 Cf. WITTKOWER, Rudolph, 1987, p. 93.27 Cf. VITRVIO, Marco, Ed. 2006, Livro I, Cap. I e II.28 MARIAS, Fernando; e BUSTAMANTE, Agustn, 1986, p. 81.29 Cf. PANOFSKY, Erwin, 1989, nota 19, p. 72. Ver tambm MARIAS, Fernando; e BUSTAMANTE, Agustn, 1986, p. 81.30 HANI, Jean, 1998, pp. 36-37.

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to em extrema e mdia razo31. Induzidos pelos clssicos, os artistas do Renascimento

reconhecem esta harmonia matemtico-geomtrica em inmeras manifestaes da

natureza, verificam a sua aplicao em algumas das mais imponentes construes da

Antiguidade, e reconhecendo-lhe caractersticas de perfeio identificam-na com o belo.

Esta proporo e mtodo de diviso (de um segmento de reta ou de uma rea) foi lar-

gamente utilizada sob variadssimas formas pelos artistas deste perodo e de pocas

seguintes, nomeadamente, na definio da seco urea de segmentos, no clculo pro-

porcional de segmentos adjacentes, na construo do retngulo de ouro (onde se verifica

uma relao proporcional entre os dois lados), de pentgonos regulares (onde os pontos

resultantes da interseo das diagonais determinam, sempre, a Seco urea das linhas

que se cruzam) ou de pentagramas (resultantes do anterior traado e originando novos

pentgonos regulares), entre outros.

O conceito de simetria, embora na Antiguidade Clssica se revestisse de um signifi-

cado mais lato porquanto se mantivesse inextrincavelmente ligada euritmia, definia-se

ento como a relao harmoniosa entre as partes e o todo32. Contudo, ela refere-se igual-

mente ao arranjo ordenado das unidades em torno de um centro, tendo sido vastamente

utilizada na diviso simples de figuras geomtricas regulares, nomeadamente os retn-

gulo e tringulos equilteros, permitindo a diviso destas reas em outras mais pequenas

mltiplas da primeira.

Por outro lado, existe outro tipo de simetria, correspondendo a uma ordenao em

que a dinmica das formas conduz transio de uma para a outra. Este tipo de simetria

a que Jay Hambidge chamou dinmica e que no alcanada de uma forma natural ou

espontnea, foi conhecida pelos egpcios e, mais tarde, pelos gregos que desenvolveram

o seu conhecimento, chegando mesmo a encontr-la no processo de crescimento de orga-

nismos, entre os quais o corpo humano33.

A euritmia, sempre orientada e em complemento da simetria, segundo a traduo de

Vitrvio que nos fornece Panofsky, dever proporcionar uma aparncia agradvel e um

31 Enunciando-se comummente a parte menor est para a maior, assim como esta est para a totalidade. Cf. EUCLIDES, 1994, Livro VI, Definio 3.32 Cf. VITRVIO, Marco, Ed. 2006, Livro I, Cap. II. Ver tambm PANOFSKY, Erwin, 1989, n. 19, p. 72.33 Cf. HAMBIDGE, Jay, 1967; GHYKA, Matila, 1977 a) e b).

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aspecto apropriado. Ou seja, a euritmia estabelece a aparncia conveniente dos vrios

elementos de uma composio, na ordenao e regularidade, ou justa proporo, entre as

vrias partes do todo34.

A mesma harmonia que Pitgoras encontrava nos nmeros, observou-a igualmente

na escala musical cumprindo exatamente as mesmas regras e propores que podiam ser

expressas tambm de forma numrica, sendo-lhe atribuda a descoberta dos intervalos

fixos da escala musical35.

Acreditando, assim, que toda a realidade era composta por nmeros, pretenderam os

artistas do Renascimento transpor tambm para o campo geomtrico esse conjunto de

regras. J referidas por Plato e Vitrvio36, elas viriam a receber a ateno de Alberti no

seu tratado Re dificatria, de 1486, onde estabelece uma relao entre as consonn-

cias musicais e as dimenses das superfcies que podem ser construdas obedecendo s

mesmas propores37. Alberti chama harmonia ao acorde de notas agradveis ao ouvido,

sendo que neste conjunto algumas so graves e outras agudas, e transpe para o campo

das artes visuais uma idntica relao na construo de superfcies obedecendo s mes-

mas leis de ordem e harmonia, considerando que, desta forma, elas possuiriam idntica

capacidade de agradar aos olhos e ao esprito.

Acreditando que a consistncia geomtrica era absolutamente imprescindvel har-

monia proporcional do desenho espacial, racional e expositivo, sempre com a preocu-

pao em dimensionar as suas obras estabelecendo estruturas internas de forma orde-

nada, harmoniosa e equilibrada, o estudo sistemtico e continuado conduziu o artista

do Renascimento a descobertas que avultaram os conhecimentos nos domnios da

Matemtica, da Geometria e da tica. Estes, conjugando-se com uma incessante procura

de formas de figurao cada vez mais fiis realidade, potenciaram a circunstncia que

os levou a alcanar a to almejada retratao mensurada do espao.

Embora j desde o Treccento se assistisse tentativa de aquisio de formas de orga-

nizao racional do espao e de processos de representao cada vez mais prximos do

34 VITRVIO, Marco, Ed. 2006, Livro I, Cap. II. Ver tambm PANOFSKY, Erwin, 1989, n. 19, p. 72.35 WITTKOWER, Rudolph, 2002, pp. 154-159. 36 PLATO, 2003, p. 73 (35b a 36b); VITRVIO, Marco, Ed. 2006, Livro I, Cap. I.37 ALBERTI, Leon Battista, Ed. 2011, Livro IX, Cap. V.

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real, apenas no dealbar do sculo XV Filippo Brunelleschi realizar as primeiras pintu-

ras representadas em perspetiva. Sem que exista qualquer corroborao terica da forma

como o alcanou, e apenas confirmada a sua execuo atravs de uma carta de 1413 des-

crevendo sucintamente o processo e o seu contedo, o facto que logo durante o primeiro

quartel deste sculo assistiremos execuo, por outros autores, de obras admirveis

onde notavelmente empregue um semelhante sistema de representao espacial38. A

este respeito, e no mbito da escultura, torna-se inevitvel referir o caso de Ghiberti, e os

seus relevos das Portas do Paraso do batistrio de Florena, em 1435, j com admirveis

escoros perseguindo um coerente e mensurvel sistema de projeo.

Contudo, a primeira teorizao e sistematizao de um processo de projeo perspe-

tivo s aconteceu mais tarde, pela mo de Alberti. No seu tratado De Pictura, escrito em

latim, em 1435, e um ano mais tarde numa traduo para o italiano vernculo, o Della

Pictura, para alm da enumerao de alguns conceitos bsicos da geometria euclidiana,

numa descrio em linguagem comum e de mais fcil entendimento, ou enumerando os

conceitos essenciais da cincia perspetiva tal como foi desenvolvida pelo filosofo islmi-

co Alhazen, descreve um mtodo cientfico, matemtico e geomtrico, visando a retrata-

o do espao do real numa superfcie bidimensional39.

Baseando-se nos primeiros princpios dedutivos e na ordenao das matrias escritas,

escorado por profundos hbitos da deduo intelectual, Alberti o responsvel pela pri-

meira formulao e divulgao de um sistema ordenado de representao mensurada do

espao. No fulcro esttico do seu sistema reside o conceito de proporcionalidade, onde

o mdulo nos fornecido pela mais conhecida das formas, a figura humana, mantendo

a mxima de Protgoras o homem a medida de todas as coisas, constituindo a escala

para a base da sua construo perspetiva de uma imagem.

Embora no seja objetivo do presente estudo fazer uma anlise da evoluo e das

metodologias perspetivas dado nas representaes narrativas por ns analisadas apenas

tenhamos encontrado [logo evidentes] sumrios e incoerentes sistemas de representao

perspetiva torna-se importante referir, de forma breve, alguns aspetos e desempenhos

38 KEMP, Martin, 1990; e REIS, Vtor dos, 2002.39 KEMP, Martin, 1990, pp. 21-23; e TRINDADE, Antnio de Oriol, 2008, pp. 118-152.

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dos mais importantes gemetras do