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poemas soltos

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Na Sensao De Estar Polindo As Minhas Unhas

sei que morrerei no dia do aniversrio da minha morteainda h coisas certas na vidao dia do aniversrio da minha morte apresenta tamanha discrioque nem dou por eleportanto no mudarei de roupatalvez passe o dia deitadano displicente descansode no atender telefonesnem me levantarei para ir ver o correioe se algum se lembrar de me acenderas inconsequentes velinhasdeixarei que derretam e estraguem o bolono dia do aniversrio da minha mortenem me penteio--Roslina Marshall

Um Fado: Palavras Minhas

Palavras que disseste e j no dizes,palavras como um sol que me queimava,olhos loucos de um vento que sopravaem olhos que eram meus, e mais felizes.Palavras que disseste e que diziamsegredos que eram lentas madrugadas,promessas imperfeitas, murmuradasenquanto os nossos beijos permitiam.Palavras que dizias, sem sentido,sem as quereres, mas s porque eram elasque traziam a calma das estrelas noite que assomava ao meu ouvido...Palavras que no dizes, nem so tuas,que morreram, que em ti j no existem que so minhas, s minhas, pois persistemna memria que arrasto pelas ruas.--Pedro Tamen, in Tbua das Matrias

Ar mani.

O n da gravatareduzia-lhe o fluxo.Primeiro de ar.Depois de ideias.Seguindo-se os valores.E perdeu o valor das ideiase a ideia dos valores.

uma forca lentao n austeropendurado no fato.

Morreu, rico de vcuo

Fim.--Filipe Costa

blues da morte de amorj ningum morre de amor, eu uma vezandei l perto, estive mesmo quase,era um tempo de humores bem sacudidos,depresses sincopadas, bem graves, minha querida,mas afinal no morri, como se v, ah, no,passava o tempo a ouvir deus e msica de jazz,emagreci bastante, mas safei-me justa, oh yes,ah, sim, pela noite dentro, minha querida.a gente sopra e no atina, h um apertono corao, uma tenso no clarinete eto desgraado o que senti, mas realmente,mas realmente eu nunca tive jeito, ah, no,eu nunca tive queda para kamikaze, tudo uma questo de swing, de swing, minha querida,saber sair a tempo, saber sair, claro, mas saber,e eu no me arrependi, minha querida, ah, no, ah, sim.h ritmos na rua que vm de casa em casa,ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venhano lusco-fusco da cano parar minha casa,o que eu nunca pedi, ah, no, manda calar a gente,minha querida, toda a gente do bairro,e ento murmurarei, a ver fugir a escalado clarinete: morrer ou no morrer, darling, ah, sim.--Vasco Graa Moura

Se Eu Pudesse Trincar a Terra Toda

Se eu pudesse trincar a terra todaE sentir-lhe um paladar,Seria mais feliz um momento ...Mas eu nem sempre quero ser feliz. preciso ser de vez em quando infelizPara se poder ser natural...Nem tudo dias de sol,E a chuva, quando falta muito, pede-se.Por isso tomo a infelicidade com a felicidadeNaturalmente, como quem no estranhaQue haja montanhas e planciesE que haja rochedos e erva ...O que preciso ser-se natural e calmoNa felicidade ou na infelicidade,Sentir como quem olha,Pensar como quem anda,E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,E que o poente belo e bela a noite que fica...Assim e assim seja ...--Alberto Caeiro.

os poetas so bons

os poetas so bonsdepois de mortos. cantam-nos,como se lhes exumassem os corposda sepulturae lambessem as cicatrizesque cada poema lhes infligiuem vida. os ossos estalamsob o jugoda leviandade, a mesmacom que a calvcie os atingiuem plena idade da fortunae agora se demoraentre a fome dos bichose das ladainhas e das velinhasa uma rima qualquer. como seas alminhas penassem agorapela ausnciade at carpideiras nas cerimniasfnebres.-- Helder Magalhes

Quanto Morre um Homem

Quando eu um dia decisivamente voltar a facedaquelas coisas que s de perfil contempleiquem procurar nelas as linhas do teu rosto?Quem dar o teu nome a todas as ruasque encontrar no corao e na cidade?Quem te por como fruto nas rvores ou como paisagemno brilho de olhos lavados nas quatro estaes?Quando toda a alegria for clandestinaalgum te dobrar em cada esquina?--Ruy Belo, in "Aquele Grande Rio Eufrates"

A Morte Chega Cedo

A morte chega cedo,Pois breve toda vidaO instante o arremedoDe uma coisa perdida.O amor foi comeado,O ideal no acabou,E quem tenha alcanadoNo sabe o que alcanou.E tudo isto a morteRisca por no estar certoNo caderno da sorteQue Deus deixou aberto.--Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

soneto do amor e da morte

quando eu morrer murmura esta canoque escrevo para ti. quando eu morrerfica junto de mim, no queiras veras aves pardas do anoitecera revoar na minha solido.quando eu morrer segura a minha mo,pe os olhos nos meus se puder ser,se inda neles a luz esmorecer,e diz do nosso amor como se notivesse de acabar, sempre a doer,sempre a doer de tanta perfeioque ao deixar de bater-me o coraofique por ns o teu inda a bater,quando eu morrer segura a minha mo.--Vasco Graa Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

Levanto vista

Levanto vistao que foi a terra magnficae as estaes mais bbedasE estou to leveporque no tenho nenhum segredoe to ocultoporque daqui a nadaj posso dizer tudo.

Daqui a uma pouca cinciasaberei pensar que daqui a um pouco depoisestarei mortoe s de pensarj nem respiroj quaseem nada tocoJ vejo no fundo das mosdaquilo que fica escritoQue escrevi coisa nenhuma do mundoat ao esquecimento e movendo-me com as unhasmovo-me nos nomes inmerospara dizer que mal nascilogo me deram por morto.

E no fui tido nem havidona razo do episdio de um rostoter passado por um espelho e ter desaparecido.Portanto no me venha ningum falar de nadasei bastante do que sabem todosVejo a gua a mover-se contra si mesmato martima e acho at que bonitocada qual morre do que alcana e no alcanae ningum compreendea gua que toca os dedos que escreveram at s pontase passa a gua fcilsem retornoporque nada tem retorno e tudo dificlimono s o mximo, mas tambm o mnimo.--Herberto Helder

Elegia 1

Minha primeira lgrima caiu dentro dos teus olhos.Tive medo de a enxugar: para no saberes que havia cado.No dia seguinte, estavas imvel, na tua forma definitiva,modelada pela noite, pelas estrelas, pelas, minhas mos.Exalava-se de ti o mesmo frio do orvalho; a mesmaclaridade da lua.Vi aquele dia levantar-se inutilmente para as tuasplpebras, e a voz dos pssaros e das guas correr-sem que a recolhessem teus ouvidos inertes.Onde ficou teu outro corpo? Na parede? Nos imveis?no teto?Inclinei-me sobre o teu rosto, absoluta, como um espelho,E tristemente te procurava.Mas tambm isso foi intil, como tudo mais.--Cecilia Meireles.

Os meus primeiros passos em volta

Amo devagar o poeta que temum co que tinha um marinheiro.Pergunto-me se o poeta tercinco dedos de cada lado, como eu.Pergunto-me se o co algum dia se fez ao mar, depois da morte do marinheiro.Pergunto-me se envelhecer sair de casa com os olhos contentes de po e acare chegar atrasado, anos depois, ao fim. O luto, Herberto.(No o luto do co o meu.)O luto em Lisboa ou no Porto, o luto em Israel ou na Palestina,o luto igual, deve ser igual, na tua rua e na minha.Ouve, Herberto: era Dia Mundial da Poesia. Eu tinha ido ao cabeleireiro.Vesti-me de preto e calcei aqueles sapatos de taco alto. Eu ia de cabelo esticado.Eu ia maquilhada e feliz. Ia de preto mas ia-me esquecendo da morte.(Aos 33 anos, eu ia imortal.)Quando o telefone tocou, como nos filmes, disseram-me que era urgente.Estava a vinte minutos de subir ao palco com o meu poema, mas era urgente.Estava a vinte minutos do fim da minha juventude, porque era urgente.O luto, Herberto.To urgente que s pode ser mentira, ou fico, ou poesia.Todos to vivos naquele dia. E ningum h-de morrer se levamos sapatos de taco.No possvel tanta inabilidade para a corrida.No possvel tanta falta deMe.

Se eu quisesse, Herberto,enlouquecia.

Por isso hoje venho apenas perguntar-te se o teu co se fez ao mar.Diz-me que ele se fez ao mar.--Filipa Leal

Nota:.: Algumas passagens deste poema fazem referncias aos livros Os Passos em Volta (Ces, Marinheiros; Estilo) e Ofcio Cantante Poesia Completa (Aos amigos, de Lugar; Fonte, de A Colher na Boca)De Herberto Helder

Funeral Blues

Stop all the clocks, cut off the telephone,Prevent the dog from barking with a juicy bone,Silence the pianos and with muffled drumBring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overheadScribbling on the sky the message 'He is Dead'.Put crepe bows round the white necks of the public doves,Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,My working week and my Sunday rest,My noon, my midnight, my talk, my song;I thought that love would last forever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one,Pack up the moon and dismantle the sun,Pour away the ocean and sweep up the wood;For nothing now can ever come to any good.--W. H. Auden

Funeral Blues (traduo)

Parem j os relgios, corte-se o telefone,d-se um bom osso ao co para que ele no rosne,emudeam pianos, com rufos abafadostransportem o caixo, venham enlutados.

Descrevam avies em crculos no cua garatuja de um lamento: Ele Morreu.no alvo colo das pombas ponham crepes de vivas,polcias-sinaleiros tinjam de preto as luvas.

Era-me Norte e Sul, Leste e Oeste, o empregodos dias da semana, Domingo de sossego,meio-dia, meia-noite, era-me voz, cano;julguei o amor pra sempre: mas no tinha razo.

No quero agora estrelas: vo todos l para fora;enevoe-se a lua e v-se o sol agora;esvaziem-se os mares e varra-se a floresta.Nada mais vale a pena agora do que resta.--(traduo de Vasco Graa Moura)