Revista Amazônia Judaica - Edição 5

32

description

Revista trimestras sobre o judaismo da Amazônia e do Mundo

Transcript of Revista Amazônia Judaica - Edição 5

Page 1: Revista Amazônia Judaica - Edição 5
Page 2: Revista Amazônia Judaica - Edição 5
Page 3: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

3

EditoresDavid SalgadoElias Salgado Assessoria Jornalística Márcia Cherman Sasson

Projeto Gráfico, Arte e Diagramação Thiago Zeitune

ColaboradoresJosé NeisteinMalka ShabtaiMichael FreundRegina Igel

Portal Amazônia Judaica eArquivo Amazônia Judaicawww.amazoniajudaica.org

Blog do Amazônia Judaica: www.aj200.blogspot.com

Blog Universo Sefaradiwww.universosefaradi.blogspot.com

e-mail: [email protected]@amazoniajudaica.org

Sob o tom da reflexão, do resgate e do retorno

Um dos principais conceitos para o qual aponta o período de

Yamim Noraim - Rosh Hashaná e Yom Kipur - é o do retorno, a

Chazará B´tshuvá. Resgatar caminhos, formas e atitudes. Retomar

novos e antigos rumos há tempos esquecidos. Sobre isso é que fala

nossa matéria de capa.

Intrigou-nos o fato de ao estarmos prestes a fechar esta edição de

Rosh Hashaná da AJ e nos sentar para redigir a presente mensagem

aos nossos queridos leitores, constatar que sem que percebêssemos,

grande parte de seus artigos e matérias abordam, cada um em seu

campo, a temática do retorno e do resgate de histórias, universos

e identidades interrompidas por circunstâncias diversas e adversas.

Felizmente, todas elas com um desfecho feliz – o mesmo que agou-

ramos aos nossos e a toda a nação dos homens, nestes dias solenes

e de reflexão que se aproximam.

Este tom de temáticas vocês encontrarão, em artigos primorosos

como o de José Neistein, sobre o resgate do universo perdido da

música ashquenazí.

Retorno também, e o tema da matéria sobre os chuetas de

Maiorca e dos nossos irmãos, os judeus de Iquitos que voltaram às

origens e hoje vivem em Israel.

Amazônia Judaica deseja que ao final destes dias tão intensos,

se abram as portas que nos levem a todos, com a graça do Eterno,

pelo caminho de Um Ano de Paz, Prosperidade e Boas Ações.

Shaná Tová Umetuká e boa leitura.

David e Elias Salgado

EDITORIAL

Page 4: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

4 AMAZÔNIA JUDAICA No4 - JUL/2011

A IMAGEM DA CAPA

TASHLICH“E ATIRARÁS PARA AS PROFUNDEZAS DO MAR TODOS OS TEUS PECADOS” (MICHÁ)

Como quase tudo em nossa tradição, a cerimô-nia do Tashlich, recitada após a oração de minchá do primeiro dia de Rosh Hashaná, é bastante antiga. Ela vem cercada de inúmeras justificativas e explicações que reforçam sua prática e a razão de seu cumpri-mento. Nossos sábios através dos séculos, souberam encontrar inúmeros porquês para enriquecê-las.

Eis uma das maravilhosas facetas de nossa tradição - partindo de uma mesma origem, somos pródigos e ricos no ilustrar e fazer crescer o significa-do de nossas práticas.

A prece de Tashlich, recitada às margens de um rio, lago ou mar, onde quer que haja peixes, tem um outro significado, despertando-nos pensamentos de arrependimento. Pois isto nos lembra da insegurança da vida do peixe, e o perigo do peixe ser atraído pela isca, ou de ser apanhado na rede do pescador. Nossa vida, também, está repleta de ciladas e tentações.

Somos lembrados da clássica parábola de Rabi Akiva, que desafiou o decreto proibindo o estudo de Torá que o imperador romano Adriano tentou impor aos judeus.

Ao lhe perguntarem por que arriscava sua vida estudando e espalhando os ensinamentos da Torá, Rabi Akiva replicou com a seguinte parábola:

“Uma raposa faminta chegou até a margem de um regato. Viu os peixes nadando incessantemente. A astuta raposa disse aos peixes: ‘Vejo que estão vivendo num terror mortal de que caiam na rede do pescador. Saiam aqui para a margem seca, e escaparão da rede do pescador, e então viveremos felizes para sempre, como meus antepassados viveram com os seus.’

“Mas os peixes zombaram da esperta raposa, e res-ponderam: ‘Se na água, que representa nossa própria vida, estamos em perigo, certamente deixar a água sig-nificaria morte certa para nós!’

“A Torá é nossa própria vida, e não podemos viver sem ela, assim como os peixes não podem viver

sem a água. Podemos salvar-nos abandonando nosso modo de vida, os caminhos da Torá?”

Tais são as reflexões que Tashlich desperta no coração.

O peixe nos serve de lembrete adicional do “olho sempre vigilante” da Providência, pois os peixes não têm pálpebras; seus olhos estão sempre abertos. Assim, nada pode ser oculto de D’us. Pelo mesmo padrão, a pessoa extrai coragem e esperança da fé em D’us, pois o Guardião de Israel jamais dorme ou cochila.

Os três últimos versos do profeta Michá, que recita-mos em Tashlich, contém a explicação para este costume. Dizemos: “Quem é um D’us como Vós, perdoando a iniquidade e perdoando a transgressão aos herdeiros de Seu legado. Ele não reteve Sua ira para sempre, porque Ele se regozija na bondade. Ele mais uma vez terá mise-ricórdia de nós. Ele suprimirá nossas iniquidades; sim, Vós jogareis nossos pecados às profundezas do mar.”

Fonte: www.chabad.org.br

Tashlich, quadro do pintor israelense C.H. Nathan.

Page 5: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

5

RETORNONossos Irmãos Mandam

Lembrança - Judeus de Iquítos

RECONHECIMENTOChuetas de Maiorca

Reconhecidos como Judeus

MÚSICAUma Viagem

de Inverno Iídiche

20

EDITORIAL 3

A IMAGEM DA CAPA 4 Tashlich

CAPA 14Yamim Noraim - Tempo de Reflexão

CRÔNICA 26Quando o Castigo Vem de Bicicleta

CARTAS DOS LEITORES 28

MENSAGENS 29

ANO 3 • Nº5 • SETEMBRO / 2011

106

Page 6: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

6 AMAZÔNIA JUDAICA No4 - JUL/2011

RETORNO

NOSSOS IRMÃOS MANDAM LEMBRANÇA JUDEUS DE IQUITOSDA AMAZÔNIA A ISRAELOs judeus de Iquitos, no Peru, são “irmãos” dos judeus que vivem na Amazônia

brasileira. No início, ambos caminhavam juntos, desfrutavam inclusive da

mesma história, do mesmo rio, do mesmo estilo de vida judaico, porém, mais

adiante, em um determinado momento, os dois grupos tiveram seus destinos

separados e distintos, e se dividiram histórica e fisicamente, pelo menos até agora.

Por Malka Shabtai

Q uando, no princípio do século XIX, jovens judeus iniciaram sua viagem, sem volta, do

Marrocos para a Amazônia em busca do ouro branco, era o início do Ciclo da Borracha, parte desses jovens imi-grantes continuou pela calha do rio Amazonas e chegaram até a cidade de Iquitos no Peru. A cidade desen-volveu-se muito naquele período, foram construídos prédios com fachadas em mármore, e uma bela construção em ferro, que diz-se ter

sido encomendada por um Barão da Borracha ao arquiteto Gustav Eifel.Sim, o mesmo da Torre famosa. Os jovens judeus trabalharam muito e se adaptaram ao novo lar. Casaram-se com mulheres nativas, viveram com elas e com seus filhos na comunidade judaica que aí estabeleceram.

Após o fim do Ciclo da Borracha, os judeus foram obrigados a

procurar novo sustento e assimila-ram-se à grande maioria da popu-lação católica local. Eles construí-ram um cemitério judaico que ficou abandonado, e foram preservados apenas os seus sobrenomes judaicos e alguns poucos costumes.

Até aqui, a história se parece bastante com a saga da maioria dos judeus e seus descendentes que vivem

Eles construíram um

cemitério judaico que

ficou abandonado,

e foram preservados

apenas os seus

sobrenomes judaicos e

alguns poucos costumes.

Fachada de um comércio

de judeus, em Iquitos

Page 7: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

7

até hoje espalhados pela Amazônia brasileira (de acordo com o Professor Samuel Benchimol, estima-se em 300.000 os descendentes dos judeus, denominados: judeus caboclos).

Porém, daqui em diante, tem início uma nova história que culmi-nará com o retorno ao judaísmo de parte dos descendentes da comunida-de de Iquitos e inclusive com a imi-gração deles para Israel.

Um único personagem é o autor dessa inesperada e emo-cionante mudança, seu nome Ronaldo Levy, neto de Ramon Levy, terceira geração de imigran-tes marroquinos para a Amazônia peruana. Quando criança, uma frase dita por sua mãe Dora marcou e ficou gravada para sempre em sua

consciência, e transformou-se na força que fez mudar o seu destino e o destino dos judeus de Iquitos: “Você é judeu e nunca mais esqueça isso”!

Cinquenta anos depois, Ronaldo buscou e encontrou o caminho de volta para os descendentes dos judeus peruanos e suas famílias ao povo judeu.

No livro “Judeus da Amazônia – o Paraíso na Diáspora” (Segal, 1999), conta Ariel Segal sobre o processo que culminou com o surgimento da co-munidade judaica na Amazônia.

Os primeiros judeus no Peru foram “cristãos novos” que imigraram após a expulsão da Espanha e viviam sob o domínio da Igreja Católica. Entre eles viviam os que praticavam o judaísmo às escondidas, os marranos, até que a Inquisição estendeu o seu

braço até eles, os prendeu e os levou aos Autos de Fé, onde eram condena-dos por prática do judaísmo, os judai-zantes. Somente a partir da metade do século XIX é que novamente os judeus voltaram a surgir quando imigrantes alemãs fundam na capital Lima a primeira comunidade judaica.

Em 1861 tem início o desenvolvi-mento da cidade de Iquitos como cidade porto do Rio Amazonas. E a partir de 1880, inicia-se também na região o Ciclo da Borracha, que desenvolveu ainda mais a cidade e trouxe um grande movimen-to imigratório para o interior da Floresta Amazônica peruana, o que mudou completamente toda a região, trazendo um grande desenvolvimento comercial principalmente. Inúmeros imigrantes aportaram na cidade. A maioria era de comerciantes e donos de negócios, e se fixaram em Iquitos. Entre eles também chegaram os judeus, eram comer-ciantes ou simples regatões que for-neceram serviços e mercadorias aos coronéis de barranco e seringueiros: álcool, comida, roupas, armas, peles e etc. Eles vagavam pelas entranhas dos rios da Amazônia, vendiam suas mercadorias e compravam borracha para comercializar com os grandes aviadores das capitais.

Esses pioneiros judeus marroqui-nos que chegaram a Iquitos vieram de cidades como Tanger, Tetuan, Fez, Rabat e outras. Eles preserva-ram o estilo de vida do Marrocos. Nesse período, jovens judeus eram

Cinquenta anos depois,

Ronaldo buscou e

encontrou o caminho

de volta para os

descendentes dos

judeus peruanos e suas

famílias ao povo judeu.

Sr. Victor Edery fazendo

o Kabalat Shabat em

sua residência

Rua do centro de Iquitos, Peru

Page 8: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

8 AMAZÔNIA JUDAICA No5 - SET/2011

contratados e enviados por homens de negócios judeus, proprietários de comércios em Manaus e Belém para o interior do Estado, além da frontei-ra pela calha do Rio Amazonas, até a cidade de Iquitos e seus arredores no Peru. Esses jovens judeus pensavam em retornar ao Brasil (Belém e Manaus), à Europa (Gibraltar ou Malta) ou até mesmo ao Marrocos após um período de enriquecimento. Preocuparam-se em construir cemitérios judaicos, prin-cipalmente para aqueles que morriam de doenças tropicais típicas da região ou que morriam afogados no rio. Com o passar dos anos, foram se as-similando e casaram-se com mulheres nativas católicas que em suas veias corria sangue indígena e espanhol.

Mas o sonho não se realizou. Com a grande crise da borracha, a partir da década de 20 (século XX), no entanto, muitos desses judeus retorna-ram as suas cidades natal na Europa ou Marrocos ou desceram o rio de volta ao Brasil, para Manaus e Belém e poucos foram os que ficaram na região.

O único caminho para chegar até Iquitos é de barco pelo rio ou por avião. Esse afastamento dos grandes centros, o casamento misto e a assimilação, quase que fizeram desaparecer por completo os sinais de judaísmo e a continuida-de da comunidade judaica estava com os dias contados. Em Iquitos, onde o catolicismo é dominante, o judaísmo

transformou-se em algo particular e que não foi transmitido às gerações futuras.

Nos anos 60 do século XX come-çaram a chegar a Iquitos, graças às mudanças nas leis tributárias do Peru, judeus ricos da capital do país, Lima. O contato existente entre os judeus da capital Lima e também da Embaixada de Israel com a comunidade de Iquitos parece ter sido o fato que deu início à inesperada mudança. Nos anos 70 e 80 do século XX quando a crise econômi-ca dominava o país, muitos judeus de Lima imigraram para outros países, e alguns dos judeus de Iquitos que con-seguiram comprovar o seu judaísmo, fizeram Aliá para Israel.

Assim, Israel transformou-se no anseio e desejo dos jovens descen-dentes dos judeus de Iquitos. Eles viajaram para Lima para estudar o judaísmo novamente, e juntamen-te com os mais velhos, após retor-narem para Iquitos, fundaram em 1991 a Organização Judaica de Iquitos, com o objetivo de preser-var os costumes judaicos e preservar o cemitério da cidade.

No final dos anos 90, alguns desses descendentes, entre eles Ronaldo Levy,

começaram a se organizar, tendo como líder o Sr. Victor Edery, um judeu ancião, que começou a fazer em sua casa tefilot e a guardar alguns costumes judaicos mesmo que existisse entre eles a mistura entre judeus e católicos.

A partir de 2000, os judeus se reuniam regularmente na casa do Sr. Edery nos Shabatot e Chaguim. Após seu falecimento continua-ram se reunindo na casa de Jorge Abramovitch. Esta família já vivia na cidade há mais de 100 anos. O patriar-ca chegou a Iquitos depois de imigrar da Polônia para Palestina, mas como não se adaptou ali, resolveu tentar a

No final dos anos

90, alguns desses

descendentes, entre

eles Ronaldo Levy,

começaram a se

organizar, tendo como

líder o Sr. Victor Edery,

um judeu ancião.

Com o passar dos anos,

foram se assimilando

e casaram-se com

mulheres nativas

católicas que em suas

veias corria sangue

indígena e espanhol.

Ronaldo Levy e seu filho

RETORNO

Page 9: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

9

Gostaria de agradecer aos três estudantes do curso: “Seminário

de Pesquisa sobre o Estudo da vida dos Imigrantes”, que lecionei

no curso para Mestrado do Centro Acadêmico Rupin, cujo

TCC basiei-me para escrever esta matéria: Michael Rosenbaum,

Doron Dgani e Dalit A. Kessel.

ocasionam na separação de famílias e amigos, onde nem todo mundo que quer, pode vir viver em Israel.

Resumidamente, a história dos judeus de Iquitos é parecida e ao mesmo tempo completamente distinta daquela dos judeus marroquinos que imigraram e ficaram na Amazônia brasileira. O principal é que toda a jornada depois da decisão de retornar ao judaísmo, e que resultou na Aliá de um grande número de judeus de Iquitos, veio fechar o ciclo dos des-cendentes daqueles judeus pioneiros que chegaram até a ponta do rio bem adentro da floresta amazônica. Os que sobreviveram e venceram todos os obstáculos e escolheram assim, vivem hoje conosco em Israel.

Interessante será acompanhar também o que acontecerá com os tais judeus-caboclos espalhados pelo interior da Amazônia brasileira - se irão ficar por lá para sempre, ou alguma coisa irá acon-tecer, e alguém com muita determinação e coragem, faça a mudança que irá trans-formar o destino de parte deles e quem sabe eles retornem ao povo de Israel?!

sorte na Amazônia encontrando em Iquitos o seu lugar ideal para viver.

Eles estudaram hebraico ouvindo fitas cassetes, limparam e cuidaram do cemitério e voltaram a enterrar seus mortos ali. Eles queriam ser reco-nhecidos oficialmente como judeus, e sonhavam em fazer Aliá através da Lei do Retorno. Finalmente, eles conseguiram convencer o Rabino Chefe Ashkenazi da maior Sinagoga de Lima a acompanhar e a orientar no processo de conversão de dois grandes grupos e assim o sonho da Aliá foi possível para centenas deles que hoje vivem em Israel. Entre os Olim Chadashim estava quase toda a família Levy, descendentes de José Levy que chegou a Iquitos no século XIX.

Nos últimos anos, quase todos aqueles que passaram por uma con-versão conservadora em Iquitos, con-seguiram fazer Aliá. Cerca de 700 pessoas imigraram e vivem hoje inte-grados à sociedade israelense, a maioria na cidade de Ramle. A prefeitura de Ramle tem interesse e investe muitos esforços para recebê-los e integrá-los. Hoje em dia, os judeus de Iquitos vivem em seu novo lar, em Ramle e por todo o país. Entre eles há estudan-tes, soldados, e eles trabalham e vivem o dia a dia como qualquer sabra.

Apenas um item ainda está pendente.Em Iquitos ficaram parentes

com mais de 18 anos de idade, e bisnetos daqueles que fizeram Aliá, e que esperam e desejam também se juntar aos seus familiares. A questão da conversão e as fronteiras da Lei do Retorno estão entre eles e os impedem de viverem juntos em Eretz Israel.

E finalmente, Ronaldo Levy, cuja família vive em Israel a cerca de cinco anos, ainda trabalha em Iquitos onde mantém uma casa e vive na ponte aérea entre os dois países. Ele continua tra-balhando e buscando caminhos para completar o processo que ele mesmo iniciou, mas que não encontra solução para os problemas complicados que

Nos últimos anos,

quase todos aqueles

que passaram por

uma conversão

conservadora em

Iquitos, conseguiram

fazer Aliá. Cerca de 700

pessoas imigraram e

vivem hoje integrados

à sociedade israelense.

Ramle, Israel, onde vive atualmente, a maioria dos olim de Iquitos.

Page 10: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

10 AMAZÔNIA JUDAICA No5 - SET/2011

RECONHEC IMENTO

S omos judeus”. Assim, alguns Chuetas, de Maiorca, cidadãos descendentes de judeus con-

vertidos, perseguidos por séculos pela Inquisição, comunicam o que consti-tui uma novidade “histórica”. O Grão Rabino da Corte, Nissan Karelitz, uma autoridade ultraortodoxa de Israel, em apenas três linhas os “reconhece”. São, segundo Kerelitz, judeus “autênti-cos” que não necessitam se converter.

“Somos irmãos dos judeus e, portanto, judeus”, escreveu a seus amigos um pintor maiorquino envolvido.

Somente alguns dentre eles fre-quentam a sinagoga de Palma.

A questão dos chuetas maiorqui-nos e os séculos de antissemitismo institucional e social, a diáspora e criptojudaísmo, ocupam dezenas de milhares de páginas em mais de 200 livros, ensaios

UMA AUTORIDADE RABÍNICA RECONHECE OS CHUETAS DE MAIORCA COMO JUDEUSAndreu Manresa - Palma De Mallorca - 12/07/2011 – “EL PAÍS”

Pertencem a uma minoria étnica, católica em sua grande maioria e dispersa socialmente, após gerações de repressão institucional.

“ “Somos irmãos dos judeus e, portanto, judeus”, escreveu a seus amigos um pintor maiorquino envolvido.Somente alguns frequentam sinagoga.

Ato em homenagem aos chuetas mortos pela inquisição. Presentes Michael Freund e Rabino Nissan Ben Abraham

Page 11: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

Os rabinos que

avalizaram o

microcosmo étnico

judaico insular,

sustentam que “você

não pode se converter

no que já é”.

O cronista Miguel Segura mostrando seu Certificado de Judaísmo

Público presente ao Ato em memória dos Chuetas mortos pela Inquisição em maiorca

11

monográficos e vastas polêmicas antes espinhosas.

É matéria de best seller insular e de longa duração desde o pan-fletário La Fe triunfante do jesuíta Francisco Garau, que justificou em 1691 os assassinatos inquisitoriais em Palma, até novela de Carme Riera em El Último Azul (Dins El darrer Blau) de 1994.

O chuetas maiorquinos (xuetes), pertencem a uma minoria étnica, católica em sua maioria, e dispersa socialmente após gerações de repres-são institucional e marginalização popular. Até os anos 70 foram en-dogâmicos, como resposta a uma estratégia solidária e de identida-de. Costumavam casar entre os membros dos clãs e evitavam buscar parceiros fora da comunidade.

Shavei Israel, uma ONG in-ternacional judaica, incentivou a operação retorno “às raízes” e o re-conhecimento rabínico, como faz com outras comunidades judias dispersas pelo resto do planeta

Profissionais e artistas de Maiorca, pertencentes a este grupo, empreenderam uma tarefa de re-cuperação de sua memória familiar e coletiva, desde uma perspectiva emotiva, histórica e cultural.

No entanto, somente poucos se aproximaram até agora da religião judaica e frequentam a sinagoga de Palma. Os novos chuetas, orgulhosos de sua per-tinência a um grupo perseguido, buscam nos livros paroquiais e re-gistros de arquivos para refazer a árvore de suas famílias, às vezes, até o século 16. Os que preferem prescindir da militância religio-sa promovem debates culturais e aprendem hebraico. Três deles, os artistas Jaume Pinya, Rafa Forteza e Ferran Aguiló, homenagearam Maimônides, nos 800 anos de sua morte. Aguiló reivindicou

“a identidade de excluídos por séculos da cruel sociedade maior-quina. Não é o sobrenome que nos converte no que somos, senão, a exclusão propriamente”.

Sobrenomes chuetas e uma origem comum

Os rabinos que avalizaram o microcosmo étnico judaico insular, sustentam que “você não pode se converter no que já é”. Analisaram a imensa bi-bliografia e vastos ramos fami-liares chuetas. O resultado desse estudo é o certificado rabínico que agora se torna público. Aguilló, Bonnín, Cortès, Forteza, Fuster, Martí, Miró, Pico, Piña, Pomar,

Segura, Valls, Valentí, Valleriola e Tarongí, são alguns dos sobre-nomes das famílias perseguidas e apontadas pela Inquisição. Estas famílias constituem o núcleo forte, o tronco dos chuetas,

Page 12: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

12 AMAZÔNIA JUDAICA No5 - SET/2011

as 15 linhagens das vítimas sacrificadas pela intolerância da fé e do poder. Esta singula-ridade contemporânea se iden-tifica entre de 15.000 a 30.000 cidadãos dos 800.000 maiorqui-nos que são portadores dos 15 sobrenomes assinalados.

“Os judeus estendem a mão aos chuetas de Maiorca, lhes dizemos que são nossos irmãos e pedimos que voltem ao povo de Israel”, foram as palavras, em Palma de Maiorca, das au-toridades religiosas da Shavei Israel, entidade encabeçada por Michael Freund. Dois chuetas e personalidades públicas de Maiorca, o cozinheiro Antoni Pinya e o cronista Miguel Segura somaram-se à causa e participa-ram dos atos da Shavei Israel.

O rastro étnico dos chuetas se encontra num “bloco geneticamen-te homogêneo, após séculos de se-gregação social”, segundo estudo realizado pela cientista Cori Ramón da Universidad de lãs Islas Baleares (UIB). O estudo encontra semelhan-ças entre o DNA dos chuetas e po-pulações judaicas do norte da África e Oriente Médio. “Há uma grande semelhança”, afirma Ramos, “apesar de que não se pode afirmar que com-partilhem uma origem comum”.

Em Maiorca, o doutor Juan Boades do Hospital Son Llàtzer documentou dezenas de casos da febre mediterrânea familiar, uma singular enfermidade hereditária diagnosticada em pessoas origi-nárias do litoral do Mediterrâneo: sefaraditas, armênios, turcos, norte-africanos e árabes. No norte da Europa e nos Estados Unidos aparece entre as comu-nidades de judeus asquenazis.

Um exílio de 600 anos Durante os últimos três

meses, os rabinos da Shavei esti-veram várias vezes em Palma de Maiorca, onde ainda existe certa memória do Call (a rua) o bairro antigo de ourives e comerciantes da comunidade.

Outro rabino e chueta maior-quino, Nicolau Aguiló, que nos anos 70 emigrou para Israel e se converteu em Nissan Ben Avraham, é um caso excepcio-nal. Nissan viaja com frequên-cia como enviado à Espanha e acredita que os chuetas prota-gonizaram um “longo exílio” de mais de 600 anos. Seis séculos tardou um rabino de Maiorca para explicar de novo a Tora em sua ilha por causa da aniquila-ção medieval.

A onda de impacto interna-cional dos chuetas de Maiorca começou em maio de 2011, quando o governo anterior das Baleares celebrou o primeiro ato de desculpa oficial pela persegui-ção histórica. O então governador balear, o socialista Francesc Antich falou de “gravíssima injustiça cometida” contra “aqueles maior-quinos que foram acusados, perse-guidos, enclausurados e condena-dos por causa de suas crenças”.

Já existe o projeto de um memorial, ainda por se levantar.

Entrada da igreja Monte Sion, antiga sinagoga de

Maiorca

“Os judeus estendem a mão aos chuetas de Maiorca, lhes dizemos que são nossos irmãos e pedimos que voltem ao povo de Israel”

Plaza Mayor de Palma de Maiorca

RECONHEC IMENTO

Page 13: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

13

Numa pequena ilha da costa da Espanha, uma tragédia que teve início há mais de seis séculos parece ter chegado ao seu fim.

Pela primeira vez desde que seus ancestrais judeus foram forçados a se converter ao catolicismo nos séculos XIV e XV, os Chuetas de Palma de Maiorca foram formalmente reconhecidos como judeus por uma importante autoridade rabínica israelense, o Rabino Nissim Karelitz de Bnei Brak.

Este é um importante passo que abrirá as portas para milhares de Chuetas que queiram retornar as suas raízes e a reunir-se ao povo judeu.

Quem são estas pessoas?Ninguém sabe com certeza quando chegaram os pri-

meiros judeus à Ilha de Maiorca, pesquisadores apontam para o início do século V.

Por volta do fim do século XIII, a situação dos judeus começou a deteriorar-se extremamente. Em 1305, ir-romperam ataques contra judeus e o primeiro libelo de sangue ocorreu em 1309, quando muitos judeus foram falsamente acusados de assassinar crianças judias.

O evento marcante, entretanto, sucedeu em 1391 quando pogroms antijudaicos ocorreram em quase toda a Espanha.

No dia 2 de agosto deste mesmo ano, os motins e a violência chegaram a Maiorca, onde centenas de judeus foram massacrados e outros convertidos à força. Em 1435, os judeus remanecentes foram (ou) assassinados ou arrastados às pias de batismo, e assim a comunidade judaica de Maiorca foi destruída.

Os nativos maiorquinos nunca aceitaram os convertidos e começaram a referir-se a eles como Chuetas, palavra que refere-se a porco, em caste-lhano. Muitos continuaram praticando o judaísmo em segredo, arriscando assim suas vidas e o seu bem-estar para permanecerem fiéis aos caminhos de seus antepassados.

Consequentemente, a Inquisição tornou-se parti-cularmente ativa na área, caçando a todos os suspeitos de praticar judaísmo secretamente. Em 1691, cerca de 300 anos depois das conversões forçadas, 37 Chuetas foram assassinados pela Inquisição em Palma pelo “pecado” de “reincidir” no judaísmo.

Desde o começo, os Chuetas tiveram que viver com a hostilidade de seus vizinhos católicos, os quais nunca os aceitaram como verdadeiros cristãos e se negaram a casar-se com eles, fenômeno que durou até o início da Era Moderna.

De fato, somente quando os franceses capturaram Maiorca, no início do século XIX, a Inquisição foi abolida naquela área, porém nem isso trouxe o fim da discrimi-nação contra os Chuetas.

Escritores como a francesa George Sand, no século XIX, e o inglês Robert Graves, no século XX, escreveram sobre os Chuetas com muita simpatia, la-mentando o ódio ao qual eram sujeitos.

Ironicamente, o ódio dirigido aos Chuetas ao longo

das gerações só serviu para reforçar sua identidade judaica e sua ligação com o judaísmo.

Restrições legais contra eles finalizaram somente em 1931, quando a república espanhola foi incorpora-da, e somente nos últimos 40 a 50 anos é que começa-ram a ocorrer matrimônios mistos entre os Chuetas e os maiorquinos católicos.

Como consequência, durante gerações, os Chuetas têm vivido entre dois mundos, os católicos maiorquinos os denominam judeus e os judeus os consideram católicos.

Estima-se que 15.000 a 20.000 Chuetas ainda vivem em Maiorca e que nos últimos anos, um número cada vez maior expressa seu interesse em reclamar suas raízes judaicas.

Agora, graças ao dito haláchico do Rabino Karelitz, seu sonho tornou-se realidade.

Em sua resolução, o Rabino Karelitz escreveu: “devido ao fato deles (os Chuetas) terem guardado ao longo das gerações e terem se casado somente uns com os outros, todos os que têm relação com as gerações passadas são judeus, irmãos do povo de Israel, a nação de Deus”.

Não apenas isso, o Rabino Karelitz escreveu ainda que devem realizar-se esforços para aproximar os Chuetas à sua religião judaica e os mesmos devem ser alentados a adotar uma vida de Torá e observância das mitzvot.

A decisão tem um peso enorme, já que o Rabino Karelitz lidera uma das cortes rabínicas “charedí” mais importantes de Israel, na cidade de Bnei Brak. É consi-derado um dos mais famosos árbitros da lei judaica e é neto do famoso “Chazon Ish”, um dos maiores e conhe-cidos rabinos do século XX.

No início do mês, viajei a Maiorca para transmitir aos Chuetas a decisão do Rabino Karelitz e para encorajá-los a realizar a viagem de regresso ao mundo judaico.

Uma das noites, era domingo, em um quarto repleto de pessoas, comentei a decisão aos Chuetas, que ficaram sumamente emocionados e começaram a aplaudir e a chorar. Muitos disseram que nunca pensaram que uma decisão assim pudesse ser tomada enquanto eles vivessem.

Uma jovem Chueta, de aproximadamente 20 anos, aproximou-se de mim, com os olhos ainda chorosos, e me relatou as experiências que havia tido na escola, poucos anos antes, quando foi humilhada por sua identidade Chueta.

“Sempre soube que sou judia, e sempre o senti em meu coração” me disse. “Porém agora, graças à decisão do Rabino, é oficial, e estamos recebendo a aceitação do povo de Israel. Não posso acreditar!”

Creio que o povo judeu tem uma responsabilidade histórica e deve ajudar aos Chuetas e facilitar-lhes seu retorno. Temos que ajudar – e a nós mesmos – àqueles que queiram retornar ao judaísmo.

Durante os séculos, a Inquisição tentou com todos os seus esforços e energia afastar os Chuetas de nós. Nossa tarefa é demostrar determinação e dar-lhes as boas vindas a sua casa.

O REGRESSO DOS CHUETAS DE MAIORCA Por Michael Freund

Michael Freund é Diretor Presidente da Shavei Israel

Page 14: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

YAMIM NORAIM O período que compreende Rosh Hashaná e Yom Kipur é o mais solene do

calendário judaico. São inúmeros os conceitos, mandamentos e tradições

nele contidos, mas talvez seja a reflexão o tom maior que ele nos impõe.

YAMIM NORAIM T E M P O D E R E F L E X Ã O

Page 15: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

15

Rosh Hashaná: origem e históriaComo todas as celebrações do ca-

lendário judaico, a de Rosh Hashaná foi sendo elaborada a partir de uma festividade descrita na Torá. No livro de Vaicrá (23:23-25) encontramos: “E será no sétimo mês, no primeiro dia do mês, que farás um dia solene de descanso, uma convo-cação sagrada que comemorarás com o toque do chifre de carneiro. Não trabalharás em nenhuma de tuas ocupações ordinárias e trarás uma oferenda de fogo a teu Criador”.

Não encontramos aqui nenhuma menção ao nome “Rosh Hashaná”. Não foi senão depois do retorno dos hebreus do exílio da Babilônia que encontramos um relato interessante sobre um momento solene realizado nesta mesma data do primeiro dia do sétimo mês (Tishrei).

Neste dia do ano de 485 a E.C, os líderes Nehemias e Ezra, percebendo o afastamento do povo de suas escrituras e costumes, convocaram uma leitura pública e celebrativa da Torá. O povo começou a chorar e reconheceu que havia se afastado muito de suas tradi-ções e transformou aquele dia numa celebração de seu retorno (“Teshuvá”).

No terceiro século da Era Comum, ao concluir-se a Mishná, encontramos estabelecida uma relação entre a ideia do Rei dos Reis sendo coroado e ao mesmo tempo julgando seus “súditos”.

Com o passar do tempo, ainda no período da elaboração do Talmud, o conceito de que D’us era o Rei e que reinava sobre todos os reis e povos, passando em revista no Rosh Hashaná e decretando no Yom Kipur, começou a desenvolver-se no sentido de identificar os parâmetros para tal julgamento. Surgiram então muitos elementos expressos na imagem tal-múdica relativa aos livros que se abrem: “Três livros são abertos em Rosh Hashaná: um para os que são claramente maus, um para os que são

indubitavelmente bons e uma para os que se encontram numa situação indefinida. Os maus são imedia-tamente sentenciados e inscri-tos no Livro da Morte, os bens no Livro da Vida e os indecisos ficam em suspense entre Rosh Hashaná e Yom Kipur. Se Rosh Hashaná é o Ano Novo judaico por excelência, uma festa alegre, porém solene, que é celebrada durante dois dias, tanto em Israel como na diáspora, nos dias 1 e 2 do mês de Tishrei, é também o início de um período de introspec-ção e arrependimento que duram 10 dias, até o Yom Kipur e chamados de “Asseret Iemei Tshuvá”.

Segundo a tradição judaica é em Rosh Hashaná que se decide o destino de cada judeu no ano seguinte, sendo esta decisão selada nos céus no Yom Kipur.

A comemoração se baseia no texto do livro de Números (29;1), segundo o qual o sétimo mês é considerado o princípio do ano novo – “No primeiro dia do sétimo mês, tereis santa convo-cação; nenhuma obra servil fareis: ser--vos-á dia do sonido de trombetas”.

Costumes de Rosh HashanáO serviço na sinagoga é mais

extenso, variado e solene que em outras ocasiões, alternando com a leitura da Torá e o toque do shofar.

O shofar, instrumento feito de chifre de carneiro, é um antigo símbolo judaico que nos recorda o

O povo começou a

chorar e reconheceu que

havia se afastado muito

de suas tradições e

transformou aquele dia

numa celebração de seu

retorno (“Teshuvá”).

Page 16: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

16 AMAZÔNIA JUDAICA No5 - SET/2011

momento em que nosso patriarca Avraham estava disposto a sacrifi-car seu filho para cumprir a vontade divina, e o Senhor permitiu sacrificar um carneiro no lugar de Itzchak.

O toque do shofar, também tem a função de despertar o homem para a Chazará Bitshuvá (arrependimento).

Outro costume de Rosh Hashaná é o Tashlich, que consiste em jogar na água (rio, mar, lago ou poço) migalhas de pão e recitar preces que manifestem o propósito de despren-der-se dos erros cometidos e tratar de evitá-los no futuro.

A tradição considera que os livros da vida e da morte abrem-se em Rosh Hashaná e se fecham no Yom Kipur, representando o destino particular de cada indivíduo, tanto no aspecto físico como no espiritual, e neste sentido costuma-se fazer saudações a outras pessoas, como: “Leshaná Tová Ticatevu Vetichatemu” (“Que sejas inscrito e selado para um bom ano”).

Rosh Hashaná – dia do juízo Chaza’l estabeleceram a importân-

cia de Rosh Hashaná como Dia do Juízo, em relação ao particular e ao público todo – para o povo judeu e para todo o mundo.

Rosh Hashaná está envolto pelo símbolo do julgamento e nele é definido o destino do homem para vida ou para morte. Para o bem ou para o mal. Disto surge uma atmosfera de temor. A oração e o arrependimento (“chazará bitshuvá”), o sentimento de responsabilidade que recai sobra cada um como particular e como parte do todo. E que as ações do homem não determinam somente o seu destino, mas também influenciam e determi-nam o destino de todos.

Nossos sábios descreveram a ideia do envolvimento mútuo como uma balança, na qual são pesadas as ações de todos os homens. Se o homem praticou uma “mitzvá” e foi julgado

como justo ele posiciona o mundo todo no lado do direito. E ao contrá-rio disto se cometeu um pecado e foi julgado como pecador, ele posiciona o mundo todo no lado dos deveres, no qual há mais maus do que justos.

Conclui-se que uma única pessoa em uma única ação pode fazer pender a balança para um lado e determinar com isso o destino do mundo todo.

Yom Kipur: origem e históriaO Yom Kipur é descrito no livro

Levítico, juntamente com as instru-ções relativas às purificações (23:26-32): “Aos dez dias deste sétimo mês (Tishrei), é o dia das expiações: con-vocação de santidade será para vós e afligireis as vossas almas, e ofere-cereis oferta queimada ao Eterno.

E nenhuma obra fareis deste dia, porque é dia de expiações, para expiar por vós, diante do Eterno, vosso D’us. Porque toda alma que não se afligir neste dia será banida de seu povo”.

Não é por acaso que o Yom Kipur aparece descrito no livro relativo às purificações e sacrifícios. Segundo relato, no mesmo livro de Levítico (cap. 16), a observân-cia maior deste dia de Yom Kipur relacionava-se a purificação do altar e do povo através de sacrifícios.

Neste dia um boi e dois bodes eram sacrificados. O boi servia como expiação pelos pecados dos próprios sacerdotes, enquanto os bodes serviam para purificar o povo. Um era sacrificado para purificar o altar dos erros cometi-dos por todo o povo, o outro era enviado ao deserto, sem ser sacrifi-cado, para purificar os próprios in-divíduos. Este último era marcado com a inscrição “Para Azazel”, apa-rentemente uma força demoníaca. O Sumo Sacerdote colocava suas mãos sobre a sua cabeça e assim transmitia todas as iniquidades do povo. Estas eram então neutraliza-das ao enviar-se o animal rumo a um lugar inacessível. Através deste ritual renovava-se a vida de todos.

CAPA

A tradição considera

que os livros da vida

e da morte abrem-se

em Rosh Hashaná e

se fecham no Yom

Kipur, representando

o destino particular de

cada indivíduo.

Page 17: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

17

Aqui os historiadores fazem uma comparação com festividades ba-bilônicas. Segundo estes, na antiga Babilônia, realizava-se um ritual de purgação chamado “Kupuro”, que ocorria no décimo dia após a festi-vidade de confirmação da figura real (equivale a Rosh Hashaná, a coroação do Rei dos Reis). Este festival incluía os sacrifícios de um bezerro para pu-rificar locais sagrados, e de um ser humano – em geral um crimino-so condenado – como expiação dos pecados do povo.

A diferença do ritual judaico, onde o sacrifício humano era substi-tuído pelo de um bode, é, segundo o escritor Arthur Waskow, um indica-tivo de que para os hebreus existia o conceito de “teshuvá”, de retorno.

Yom Kipur: O chag, seuscostumes e tradições • Liberação dos juramentos:

antes da entrada do Yom kipur costuma-se realizar uma cerimô-nia especial com duas testemunhas judias, para anular todas as promes-sas e juramentos que não cumpri-mos ao longo do ano findo.

• Vestimenta: é costume vestir-se de branco. O branco tem uma grande importância na Kabalá, pois é uma cor que transmite energia positiva. Não vestimos roupas nem sapatos de couro, para não nos sentirmos su-periores neste dia, nem mesmo aos

animais. Não nos perfumamos e não nos banhamos. O jejum tem início com o pôr-do-sol e termina com o sur-gimento das estrelas no dia seguinte.

• Seudá Mafsseket (jantar de in-terrupção): é a última refeição antes do jejum.

• Kaparot: cerimônia na qual passamos nossos pecados para um animal. É costume passar uma galinha sobre a cabeça e dizer: “Zo kaparati, zo chalifati”.

• Mikve (Banho ritual): costuma-se mergulhar na mikve para ficar puro.

• Birkat Habanim (Bênção dos filhos): é costume que os pais abençoem os filhos antes de ir à sinagoga para o “Kol Nidrei”.

• Oração de “Nehilá”: é a última oração, aquela que fecha o Yom Kipur. Toca-se o shofar.

Chazará b’tshuvá: o arrependimentoUm dos maiores direitos do ser

humano é a “CHAZARÁ BTSHUVÁ” – O ARREPENDIMENTO.

Aqui em baixo, no mundo concreto, o homem que pratica um ato ilícito, se for a um tribunal será condenado. Lá em cima, D’us não tem nenhum objetivo de castigar, se no final houver o arrependimen-to. Mais que isso, D’us prefere não castigar e, portanto, um homem que se arrependeu de seu pecado não precisa ser castigado.

Uma pergunta interessan-te é como seria possível que um homem que pecou não tenha que pagar por isso? A resposta é simples: Quando uma pessoa real-mente se arrepende e entende que pecou, o sofrimento e a dor são tão grandes que não existe um castigo mais forte que o sofrimento e a dor.

Além de que este sofrimento e dor evitarão que no futuro cometa outra vez o pecado, o que nem sempre acontece depois do castigo com

Calendários de Rosh Hashaná antigos (déc. 50)

Comunidade de Manaus

Sinagoga Shel Guemilut Hassadim

Comunidade de Belém

Aqui em baixo, no mundo

concreto, o homem que

pratica um ato ilícito, se

for a um tribunal será

condenado. Lá em cima,

D’us não tem nenhum

objetivo de castigar.

Page 18: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

18 AMAZÔNIA JUDAICA No5 - SET/2011

a pessoa que não sabe exatamente porque foi castigado.

Uma outra resposta é que após o arrependimento o homem se modifica de forma tão profunda que parece ter nascido de novo, abre uma nova página e sente-se um outro homem.

Como um novo homem não há razão para que seja castigado pelos pecados de outro. (Ele antes do arrependimento).

No judaísmo um pecado grave é lembrar ao arrependido o seu pecado. Quando um homem lembra de seu pecado ele peca perante si mesmo e é fácil pecar outra vez. Quando uma pessoa sai da prisão após haver pago suas dívidas para com a sociedade, é preciso recebê-lo como um novo homem e não ocasionar que volte outra vez ao caminho do mal.

Por que a volta ao caminho do bem é chamada de CHAZARÁ B’TSHUVÁ (“VOLTA PARA A RESPOSTA”) e a saída do bom caminho é chamada de CHAZARÁ BESHEELA (“VOLTA PARA A PERGUNTA”)?

Uma opinião é que quando o homem pergunta para realmen-te encontrar a verdadeira resposta para sua existência no mundo, é provável que encontre respos-tas não corretas, mas a pergunta, ela mesma, é correta. Portanto, o homem que busca realmente pode vaguear entre respostas diversas e “volta para uma pergunta” ou outra até encontrar a “resposta” válida para ele.

Quando uma pessoa quer irritar e contrariar, ele não se faz uma pergunta verdadeira, tão somente quer destruir. Numa situação assim ele volta em si da pergunta correta e se afasta. Perguntar corretamente sig-nifica saber 50% da resposta.

No processo de CHAZARÁ B´TSHUVÁ existem três fases:

Desculpa: desculpar-se dos atos.Confissão: o homem tem que

confessar oralmente seus atos e reconhecê-los.

Abandono do pecado: no judaísmo se diz que a posição dos BAALEI T´SHUVÁ (arrependidos) é uma posição que até mesmo os completa-mente justos (tzadikim gmurim) não chegam a ela. O homem que se arre-pende e diz pecarei e me arrependerei, não tem perdão verdadeiro.

O pecado é ferir-se a si mesmo. Quando o homem fere a si mesmo e cai em posições espirituais a alma é ferida. Como um menino que entende que poderia ganhar uma bala, mas cai da cadeira ao tentar alcançá-la.

Imaginem que vocês sabem que poderiam ganhar na loto e que bastaria para isso jogar. Existe uma sensação pior que esta? O sentimento de azedume é o princípio da CHAZARÁ B’TSHUVÁ. Quando o homem percebe o quanto desceu e o quanto está distante da realização pessoal, o sofrimento e a dor são tão fortes e é este na realidade, o maior dos castigos.

Livre Arbítrio Quando falamos sobre cheshbon

hanefesh, pecados e arrependimen-to, surge uma pergunta básica que aparece várias vezes na filosofia do Judaísmo. O homem é realmen-te livre para escolher? Se o livre arbítrio é total, como podemos explicar uma situação na qual eu

firo alguém sem que ele tenha es-colhido ser ferido?

Por exemplo, se eu resolvo atravessar uma rua e alguém me atropela sem que eu tenha querido ser atropelado, não seria essa uma ação contra o meu livre arbítrio? E se não existe na verdade livre arbítrio e tudo vem de D’us, porque tenho que ser castigado por pecados que eu não tenho controle sobre eles?

A resposta básica do judaísmo é um meio termo: existe uma estrutura exterior preexistente sem livre arbítrio e no seu interior há livre arbítrio. Por exemplo: a evidência de que existe algo chamado de fogo é uma realidade sem livre arbítrio. Como usaremos o fogo, se para queimar e sacrificar, ou para cozinhar e aquecer, isto sim está na alçada do livre arbítrio.

O jejum e o tédio* Imagina um D’us que se nutre da

“sinceridade”. Que precise que suas criaturas busquem com muita devoção

CAPA

Quando o homem

percebe o quanto

desceu e o quanto está

distante da realização

pessoal, o sofrimento

e a dor são tão fortes

e é este na realidade, o

maior dos castigos.

Page 19: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

19

ser aquilo para o qual foram criadas. Imagine também um corpo que, em convênio com o universo, capta ruídos de todos os cantos e os utiliza para en-surdecer certas vontades, certas vozes que partem do centro de seu coração. Imagine agora que a técnica usada para neutralizar esta postura de corpo busca fazer mais antirruídos do que esse. Antirruídos seriam situações que não dispersam e que ao mesmo tempo não concentram, porém criam uma incongruência que desperta.

Aquele que vai à sinagoga e num dado momento não entende o que faz ali, ouvindo cantos que não entende, não compreenden-do porque está ali, a desperdiçar seu tempo, que poderia ser produtivo de outra forma, que se surpreende con-versando aparentemente sozinho, que sente seu estômago roncar, mas não sabe explicar porque não o sacia, este está diante de um dilema – ir embora ou permanecer. A grande maioria não resiste a esse instante de barreira. Outros permanecem e quebram uma barreira – vencem o tédio. Desse instante em diante passam a compreender o serviço religioso de outra forma – como um instrumento, uma técnica, em busca da sinceridade. Descobrem no tédio uma experiência da qual todos os dias e todos os instantes: a de estar consigo mesmo. Percebem em suas bocas o gosto de si mesmos e não o gosto adocicado por substâncias externas. Descobrem na can-tilena chorada sua canção interna que são seus suspiros de alívio pelo último instante vivido e seu arfar de prazer pelo último instante vivido. Assim é a nossa voz por dentro e assim a escutamos em bom tom nos Dias Intensos. Fazemos do tédio uma porta ao tempo do tempo, onde D’us nesses dias habita e de onde nos julga. Fazemos também do jejum através de seu vazio de dentro, uma porta para a humildade, onde D’us habita e nos julga.

*Rabino Nilton Bonder, em “Dias temíveis – Rosh Hashaná e Yom Kipur”

Recitam-se as seguintes berachot devendo-se comer cada fruta ou verdura

acompanhado do pão (chalá):

MAÇÃ NO MELנה טובה ומתוקה: ינו ש ינו שתתחדש על ינו ואלהי אבות יך יהוה אלה פנ יהי רצון מלYehi ratson milefanecha Ad-nai Elohenu vElohei avotenu shetitchadesh alenu shaná tová umtuká.QUE SEJA DA VONTADE DO ETERNO NOSSO D-US E D-US DE NOSSOS PAIS QUE RENOVE

PARA NÓS UM ANO BOM E DOCE.

ALHO-PORÓיהי רצון מלפניך יהוה אלהינו ואלהי אבותינו שיכרתו אויביך ושונאיך וכל מבקשי רעתנו:

Yehi ratson milefanecha Ad-nai Elohenu vElohei avotenu sheicaretú oyevecha vessoneecha vechol mevakshei raatenu.QUE SEJA DA VONTADE DO ETERNO NOSSO D-US E D-U S DE NOSSOS PAIS QUE SE EXTER-

MINEM TEUS INIMIGOS, OS QUE TE ODEIAM E OS QUE PEDEM NOSSO MAL.

ACELGAיהי רצון מלפניך יהוה אלהינו ואלהי אבותינו שיסתלקו אויביך ושונאיך וכל מבקשי רעתנו

Yehi ratson milefanecha Ad-nai Elohenu vElohei avotenu sheisstalekú oyevecha vessoneecha vechol mevakshei raatenu.QUE SEJA DA VONTADE DO ETERNO NOSSO D-US E D-U S DE NOSSOS PAIS QUE SE AFASTEM

TEUS INIMIGOS, OS QUE TE ODEIAM E OS QUE PEDEM NOSSO MAL.

TÂMARAיהי רצון מלפניך יהוה אלהינו ואלהי אבותינו שיתמו אויביך ושונאיך וכל מבקשי רעתנו

Yehi ratson milefanecha Ad-nai Elohenu vElohei avotenu sheitamu oyevecha ves-soneecha vechol mevakshei raatenu.QUE SEJA DA VONTADE DO ETERNO NOSSO D-US E D-U S DE NOSSOS PAIS QUE SE ACABEM

TEUS INIMIGOS, OS QUE TE ODEIAM E OS QUE PEDEM NOSSO MAL.

ABÓBORAיהי רצון מלפניך יהוה אלהינו ואלהי אבותינו שתקרע רוע גזר דיננו ויקראו לפניך זכיותנוYehi ratson milefanecha Ad-nai Elohenu vElohei avotenu shetikrá roa guezar dinenu veikareú lefanecha zachiotenu.QUE SEJA DA VONTADE DO ETERNO NOSSO D-US E D-US DE NOSSOS PAIS QUE RASGUES TODOS OS

MAUS DECRETOS DECIDIDOS PARA NÓS, E QUE SEJAM CHAMADOS DIANTE DE TI OS NOSSOS MÉRITOS.

PEIXE OU RORMÃ OU AINDA A RÚBIA (GERGELIM COM ERVA-DOCE)נו ירבו זכיות ינו ש ינו ואלהי אבות יך יהוה אלה נ פ יהי רצון מל

Yehi ratson milefanecha Ad-nai Elohenu vElohei avotenu sheirbú zachiotenu. QUE SEJA DA VONTADE DO ETERNO NOSSO D-US E D-US DE NOSSOS PAIS QUE SE MULTIPLI-

QUEM NOSSOS MÉRITOS.

CABEÇA DE CARNEIRO OU CABEÇA DE PEIXEנהיה לראש ולא לזנב יהי רצון מלפניך יהוה אלהינו ואלהי אבותינו ש

Yehi ratson milefanecha Ad-nai Elohenu Velohei avotenu sheihyê lerosh velô lezanav.QUE SEJA DA VONTADE DO ETERNO NOSSO D-US E D-US DE NOSSOS PAIS QUE SEJAMOS

OS PRIMEIROS E NUNCA OS ÚLTIMOS.

**Extraído do machzor Ner Rosh Hashaná de rito sefaradí, compilado pelo Rabino MoysésElmescany e pelo chazan David Salgado (Elmaleh).

SEDER DAS BERACHOT E SÍMBOLOS DA NOITE DE ROSH HASHANÁ • RITO SEFARADÍ **

סדר הברכות לערב ראש השנה

Page 20: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

20 AMAZÔNIA JUDAICA No5 - SET/2011

MÚSICA

E ncorajados por Nikolai Rimsky-Korsakov, um grupo de com-positores judeus russos, quase

todos eles ligados ao Conservatório de São Petersburgo, criaram em 1908 a Sociedade de Música Folclórica Judaica. Vários composi-tores-membros pesquisaram o rico patrimônio vocal e instrumental da música popular judaica da Europa Central e Oriental. Dessas pesqui-sas, resultaram muitas composições eruditas, a exemplo do que Bela Bartok e Villa-Lobos fariam com as

tradições populares húngaras e brasi-leiras, poucos anos mais tarde.

Em 1928, por razões políticas a que não faltaram tons antissemitas, Stalin dissolveu aquela sociedade. Em consequência dessa dissolução, a quase totalidade dos compositores e suas obras caíram no ostracismo.

Agora, o colunista político do “The Washington Post” e do “The New York Times”, e Prêmio Pulitzer de Jornalismo, Charles Krauthammer, canadense de origem e sua mulher Robyn, australia-na, resolveram, num gesto de paixão

e entusiasmo, reverter o processo. O casal criou, em Washington, em 2007, a sociedade Pró Música Hebraica, destinada a redescobrir e apresentar a música judaica em salas de concerto, em Washington, inicialmente, e depois, em Nova York. E, segundo seus planos, futuramente em outros centros com repertórios da criatividade musical judaica europeia, esta fase inicial, do barroco aos nossos dias, injustamente esquecidos ou negligenciados, para as gerações atuais, na interpretação dos melhores músicos possíveis.

UMA VIAGEM DE INVERNO IÍDICHE ELEGIA PARA UM MUNDO DESAPARECIDO

Por José Neistein*

Capa e contracapa do

DVD “A Yiddish Winterreise”

(Viagem de Inverno

Iídiche) lançado pelo casal

Krauthammer

Page 21: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

21

O colunista político do “The Washington Post” e do “The New York Times”,

e Prêmio Pulitzer de Jornalismo, Charles Krauthammer, e sua mulher,

Robyn, criaram em Washington, em 2007, a sociedade Pró Música Hebraica,

destinada a redescobrir e apresentar a música judaica em salas de concerto.

Itzhak Perlman e o Quarteto Biava inauguraram as atividades da PMH em 2007, no “Kennedy Center for the Performing Arts”, com grande êxito de público e crítica, num programa de peças da geração pioneira de São Petersburgo.

Vários concertos notáveis se seguiram, na ordem de dois por ano, sempre com obras redescobertas e intérpretes de qua-lidade, dentre eles o Apollo Ensemble, de Amsterdã. Especial destaque deve ser dado o concerto de obras de com-positores do campo de concentração

de Terezin, a maioria dos quais pereceu no Holocausto. O concerto incluiu obras de Karl Berman, que sobrevi-veu a Dachau, Auschwitz e Terezin. Encerrando sua atual temporada, a PMH apresentou em 10.2.2011 um concerto memorável, com o título “Uma Viagem de Inverno Iídiche: elegia para um mundo desaparecido”, pelo ba-rítono-baixo Mark Glanville e o pianista Alexander Knapp, ambos ingleses.

Em entrevista recente à imprensa, o casal Krauthammer (ele é também colaborador de “The Weekly

Vários concertos

notáveis se seguiram,

na ordem de dois

por ano, sempre com

obras redescobertas e

intérpretes de qualidade,

dentre eles o Apollo

Ensemble, de Amsterdã.

Page 22: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

22 AMAZÔNIA JUDAICA No5 - SET/2011

Standard” e do “The New Republic”; ela é pintora e escultora) declarou: “Através dos séculos, e ao redor do planeta, compositores judeus criaram rico repertório de música de concerto, entrelaçando música sacra e música secular, temas folclóricos e temas litúrgicos, e estabeleceram uma tradição artística sofisticada”.

A PMH representa esses com-positores e seus descendentes, bem como aqueles que foram influen-ciados por aquela tradição, prin-cipalmente Dimitri Shostakovich, assim como compositores contem-porâneos que aceitaram o desafio de expressarem sua dimensão judaica através da criatividade musical. O Quarteto para Cordas n.º 4 de Shostakovich, por exemplo, está embebido com música folclórica russo-judaica.

No concerto que encerrou a temporada atual, Mark Glanville, inspirado no ciclo de Lieder de Franz Schubert “Winterreise”, “Viagem de Inverno”, por ventura o maior de seu gênero jamais criado em toda história da música, arranjou e interpretou 24 canções, todas do repertório iídiche, com apenas uma exceção.

A exceção é um Lied de Schubert, incluído no novo contexto. No ciclo de Glanville, Schubert é reinven-tado como um cantor de casamen-tos judaicos, fugindo de Vilna, a “Jerusalém da Lituânia”, outrora um centro de primeira grandeza de cultura judaica. A cidade está em chamas. As canções celebram a riqueza da vida judaica e essa cultura, com amor e humor, ao mesmo tempo em que exploram as profun-dezas da tragédia judaica, marcada pelos pogroms e pelo Holocausto, e a perda da monumental civilização judaica europeia.

Nesse sentido, o ciclo de Glanville funciona como uma

grande metáfora daquela cultura e de seu desaparecimento.

O ciclo de Schubert, de 1827, composto pouco antes da morte prematura do genial compositor vienense, sobre poemas de Wilhelm Müller, começa com os versos: “Vim aqui como estranho/Como estranho parto”. Essas palavras, de profundo conteúdo existencial, que tão acertada e sucintamente caracterizam tanto a solidão humana no contexto social como a própria transitoriedade da vida humana na Terra. Consciente e

inexorável são palavras que servem de divisa ao ciclo de Glanville, e norteiam a seleção e o encadeamento das canções, as quais, em seu conjunto, vislumbram um painel da vida judaica nos shetetls russos, poloneses, e lituanos, nas cidadezinhas remotas que servem de microcosmo da vida judaica humilde, pobre, sofredora, entrecor-tada de alegrias e de momentos de lirismo e humor, tais como as canções registradas nas décadas de 1860 a 1930, as quais, em nível de macrocosmo, espelham a totalidade da vida humana em plano universal. Com reflexão filosófica, compaixão, espanto e perplexidade diante dos absurdos dos algozes e do esquecimento de Deus, Glanville consegue exprimir, nesse mosaico feito de canções sacras e canções seculares, a totalidade existen-cial das ilusões, sem autocomiseração e sem concessões sentimentais. Uma postura de dignidade, sem ódio nem rancor, vazada em altíssimo nível artís-tico: uma lição de sabedoria e sereni-dade. Menos que uma acusação, um lamento e uma elegia.

O ciclo de Schubert,

de 1827, composto

pouco antes da morte

prematura do genial

compositor vienense,

começa com os versos:

“Vim aqui como estranho

Como estranho parto”.

MÚSICA

Page 23: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

23

O ciclo começa com “Chossn bazingen” (canção para o noivo). Trata-se de uma canção espiritual que marca um rito de passagem: as bodas. “Lembre-se de que tomar esposa é um dos mais sagrados mandamentos da Torá”. Canção secular e religiosa ao mesmo tempo. Na velha vida judaica, o sagrado e o profano andam juntos.

Segue-se “S’brent” (está quei-mando) - o shtetl incendiado num pogrom: “Tomemos armas e apa-guemos o fogo com o nosso sangue”. A terceira, invoca o Sagrado, de modo familiar: “Bom dia, Senhor, Remove de nós a Tua ira, e Faz-nos viver conforme a Tua Lei” (autoria de Samuel Bragatch). Segue “Vilna”, nostalgia de tempos idos (Akexander Olshanetzky), “Oifn pripetshik” (na lareira), de M. Warshavsky, que fala do rabino que ensina o alfabeto aos meninos no cheder, escola elementar religiosa: “Essas letras contêm muita sabedoria”. Lembrem-se delas, no so-frimento e no exílio.

“Vos vet zain az Moschiach vet kumen” (o que será quando o Messias chegar?), composto pelo Rabino Levi de Berditschev: “aí teremos um grande e lauto banquete.... Moisés nos lerá a Torá, e David nos tocará sua harpa”.

“Der rebe hot geheissn freilach zain” (o rabino nos ordenou alegria) e “Rojinkes mit mandeln” (passas e amêndoas), de Abraham Goldfaden, “No templo, uma viúva chora, e num canto do cheder no gueto lituano, um velho bedel escreve seu testamento: “Quando vos tornar-des livres, caros judeus, falai a vossos filhos do sofrimento e da dor”.

A próxima canção evoca Jerusalém, lar de todos. Em seguida, Glanville insere um Lied de Schubert, em tradução iídiche: “Di Lipe” (Der Lindenbaum, a tília). “Sonhei muito à sombra da tília, e nela gravei palavras de amor. Agora, em terra estrangeira,

ainda ouço a árvore me dizer: aqui encontrarás paz”.

As canções se sucedem, abor-dando os vários aspectos da vida: o rabino que, em êxtase, exalta a vida e glo-rifica Deus, o mistério do tique-taque do relógio, o pequeno órfão, um acalanto; o menino que os conduzirá; nasce um anjo, e mais. E o ciclo se encerra com o Kadish, a oração dos enlutados. Essa oração não fala uma vez sequer da morte; enaltece a vida e exalta Deus: “Em nome do Sagrado, Abençoado seja Ele sobre todas as bênçãos e hinos, louvores e palavras de consolo que são pronuncia-das neste mundo. E dizei Amém”. O ciclo começa e termina com o espiritu-al: o noivo que cria a família, Deus que engendra a vida.

Felizmente para a posteridade, esse ciclo está gravado em disco compacto. Na apresentação da gravação, Glanville diz: “O ciclo “Uma Viagem de Inverno Iídiche” é o filho do meu amor pela música e pela língua iídiche. O espírito do iídiche é suave, é o espírito tenro da criança que brinca, que vive uma vida, a qual muitas vezes veio a ser dolorosa; sua

visão do mundo é clara, e não é escure-cida pelo lado negro da visão adulta. Há uma imediatez e simplicidade na língua e na música iídiche que dão às suas canções um apelo direto. Mas a profun-didade e a honestidade dos seus senti-mentos nos persegue, e nos faz querer voltar a elas sempre, sempre”.

Durante gerações, a canção iídiche foi cantada e ouvida como uma ma-nifestação popular simples, despreten-siosa, familiar. Nos últimos 50 anos, porém, graças ao trabalho de pesquisa, restauração e interpretação densa,

“Vos vet zain az

Moschiach vet kumen?”

(o que será quando

o Messias chegar?),

composto pelo Rabino

Levi de Berditschev: “aí

teremos um grande e

lauto banquete...”

Page 24: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

24 AMAZÔNIA JUDAICA No5 - SET/2011

vital e refinada, de músicos cons-cientes e conscienciosos, como Mark Glenville e Alexander Knapp e seus predecessores, a canção iídiche se nos apresenta hoje como uma inusitada expressão erudita, que conserva suas profundas raízes populares, sacras e seculares, entrelaçadas. É, sem dúvida, uma ironia histórica, cons-tatar que foi preciso que a cultura iídiche perecesse, para que a canção iídiche se consagrasse, finalmente, como uma manifestação estética superior. Aquela cultura sobrevive hoje nos livros, nos documentos, nas fotografias, na culinária, na memória, e na canção. Tal como acabamos de ouvir, ela representa uma das manifestações mais altas do legado ashkenazi.

O ciclo em pauta foi criado, ar-ranjado e interpretado por Mark Glanville, com a estreita colaboração de Alexander Knapp, responsável pela harmonização e transcrição para piano, do acompanhamento que era, muitas vezes, feito por pequenos conjuntos integrados por violoncelo, violino, clarineta e percussão. Como no ciclo de Schubert, porém, o piano aqui não é um simples acom-panhador; ele é um interlocutor. Do diálogo imaginoso e criativo entre a voz e o piano, emerge e tensão e a dra-maticidade de cada uma das canções integrantes, as quais, na sua totalida-de, formam um todo orgânico, que se eleva a alturas imprevisíveis de arte, de beleza, e de intelecto. Tudo isso só foi possível graças à perfeita conjugação de imaginação, expres-sividade e controle vocais, enrique-cidos pelo diálogo com um pianista igualmente sensível e sutil.

Mark Glanville estudou filoso-fia e letras clássicas na Universidade de Oxford, antes de ganhar a bolsa de estudos que o levou a estudar

música e voz no “Royal College of Music” e no “National Opera Studio”. Como cantor de ópera, ele se apresentou em Londres, Lisboa, Tel Aviv, Edinburgo e em várias cidades dos Estados Unidos. Como solista e recitalista, ele se apresentou com Yehudi Menuhin, Pascal Tortelier e Stanislaw Skrowaczewski, em várias capitais européias. Além do ciclo iídiche, ele gravou óperas de Donizetti e missas de Schubert. Suas memórias estão publicadas sob o título “The Goldberg Variations”.

Alexander Knapp fez seu mestrado e doutorado em música na Universidade de Cambridge, com estudos suplementares no “Royal College of Music” e na “Royal Academy of Music”. Publicou inúmeros artigos e livros eruditos sobre a música judaica, e pronun-ciou conferências sobre o assunto no Reino Unido, na Irlanda, na Rússia, Holanda, Alemanha, Romênia, Grécia, Hungria, Lituânia, Israel, China e nos Estados Unidos. Em todos esses países, apresentou-se também como compositor, pianista e regente. Ocupou altos cargos acadêmicos nas Universidades de Cambridge e Londres, e no “Royal College of Music”, entre outros.

*José M. Neistein, é PhD em Filosofia e História da Arte pela Universidade de Viena. Diretor emérito do “ Brazilian-American Cultural Institute”.

MÚSICA

...a canção iídiche se nos

apresenta hoje como

uma inusitada expressão

erudita, que conserva

suas profundas raízes

populares, sacras e

seculares, entrelaçadas.

Page 25: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

25

Os

quad

ros

que

ilust

ram

est

a m

ater

ia s

ao d

e au

tori

a do

pin

tor

Mar

c C

haga

ll.

José Menache Neistein nasceu na capital de São Paulo, onde cresceu entre seus dois irmãos, numa família judaica e trabalhadora. Naquela cidade recebeu parte de sua educação acadêmica, licenciando-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Agraciado com uma bolsa de estudos pela Universidade de Viena, Áustria, completou o Doutorado com uma tese sobre Estética. Além de ter sido docente de arte, filosofia e estética na mesma instituição onde recebeu o Ph.D., lecionou também, ora como professor-visitante, ora como palestrante, em outras inúmeras instituições de ensino superior, como a Universidade Livre de Berlim, Universidade Nacional do Paraguai, Universidade de Filadélfia, na Pensilvânia, nos Estados Unidos. Tem proferido conferências e seminários naquele país, no Brasil, em Israel, em diversos países europeus, sul americanos e na África do Norte, em francês, inglês, espanhol e, obviamente, português. No renomado Ins-tituto Smithsonian de Washington, DC, organizou um curso sobre o Brasil, que contou com a colaboração de muitos especialistas em variados campos de conheci-mento, que atraiu um público de grande proporção e imenso interesse sobre o nosso país.

Neistein exerceu a posição de diretor-executivo do BACI (Brazilian American Cultural Institute), uma extensão cultural autônoma da Embaixada do Brasil, em Washington, DC, entre 1970 e 2008. Foi um dos poucos diplomatas judeus que o Itamaraty já teve e por quase 40 anos se empenhou na divulgação da cultura brasileira no exterior. A programação regular e contínua da galeria se salientou por exposições de pintores e escultores brasileiros - desde os emergen-tes aos mais destacados -, por palestras de especialis-tas em áreas ligadas à literatura, música, história, às artes visuais, ao folclore e teatro do Brasil. Ainda como diretor-executivo do Instituto, organizou e coordenou inúmeros concertos de música erudita e popular de piano, viola, canto, câmara e pequenas orquestras, por artistas brasileiros, além de festivais de filmes e vídeos. Seu conhecimento e experiência no campo da crítica de arte e música se evidencia em inúmeras publicações em revistas internacionais, ademais de ter publicado obras de suma importância e grande fôlego, como A arte no Brasil dos primórdios ao século vinte (edição bilíngüe português/inglês, 1997) e Feitura das Artes (1981). Neles se evidenciam profundidade de análise, finura de observações e equilíbrio na avaliação das obras visadas. Também faz parte do seu rico currícu-lo uma antologia bilíngüe de poesia brasileira (por-tuguês/inglês) em colaboração com Manoel Cardoso (Poesia Moderna Brasileira, 1972).

Depois do fechamento do BACI (como de outros órgãos culturais brasileiros no exterior), Neistein continua ativo na composição de artigos críticos sobre

literatura, música e artes plásticas, distribuídos por vários órgãos da imprensa convencional e por via digital. Também dá continuidade à sua contribuição ao Handbook of Latin American Studies, uma publi-cação da Library of Congress, com resenhas e artigo introdutório sobre artes plásticas do Brasil.

Em vista de sua imensa colaboração, como diplo-mata, para a difusão da cultura brasileira no exterior, foi condecorado com a Ordem de Rio Branco pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (1998), em solenidade que teve lugar na Embaixada do Brasil em Washington, DC. No mesmo ano, foi agraciado com o Prêmio da Academia de História de São Paulo, pela obra A Arte no Brasil. Como membro de várias organizações, o professor Neistein, como também é conhecido, é procurado por seus judiciosos comentá-rios por organizações das quais foi e ainda é membro ativo, como o Conselho Consultivo de Teatro no Rio de Janeiro (Ministério da Educação), a Comissão Estadual de Cultura de São Paulo e a Associação Paulista de Críticos de Teatro.

Neistein, como exímio apreciador de artes plásticas, conserva em sua residência, metodicamente coletados, quadros de artistas hispano-americanos e brasileiros que abrangem desde os tempos coloniais até a atualidade. Na sua casa, localizada nas vizinhanças de Washington, DC, guarda coleções sofisticadas de objetos d´art, abarcando porcelana chinesa de várias dinastias, louça inglesa, es-culturas de brasileiros e estrangeiros e suntuosos vestuá-rios orientais. Sua inquietude artística o levou a comprar um piano de cauda, que instalou na sua sala e de onde ofereceu, durante anos, concertos com artistas de fama internacional, geralmente seus amigos pessoais. Seu conhecimento musical o levaria a discorrer horas sobre partituras e compositores, incluindo música judaica, sem cansaço nenhum de parte dos ouvintes ou do palestran-te. O artigo adjunto vem reforçar minhas palavras. Publi-cado antes (www.vivamusica.com.br), sua re-edição pos-sibilita, aos leitores desta revista digital, uma profunda imersão num específico setor da música judaica, como a re-emergência de partituras e canções quase abolidas pelo Holocausto. Revela episódios até então relegados ao esquecimento, como a formação de um conjunto musical na Rússia, desbaratado por Stálin. Também faz recordar os inícios e desenvolvimento de canções fol-clóricas judaicas, desde os tempos das pequenas aldeias até chegarem aos mais abalizados palcos europeus e americanos. Seus comentários, direcionados a um ciclo de audições musicais que tiveram lugar em Washington DC, vão mais além do momento presencial: recordam, recortam, refazem parte da cultura dos judeus do Leste europeu como refletida por notas musicais. Seu ensaio é um compêndio breve, porém explícito, de um dos legados judaicos ao mundo.

DOUTOR JOSÉ M. NEISTEIN • UMA APRESENTAÇÃO Por Regina Igel*

* Regina Igel é PhD em Literatura Portuguesa, Consultora e Coordenadora do Programa de Português da Escola de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Maryland, EUA

Page 26: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

26 AMAZÔNIA JUDAICA No5 - SET/2011

CRÔNICA

QUANDO O CASTIGO VEM DE BICICLETA

Por que será que eu sou tão dese-quilibrado em cima de uma bicicleta, apesar de gostar tanto de andar nelas, pedalar com a sensação do vento batendo no rosto e aquele sentimento ímpar de total liberdade?

Vou dividir com vocês uma história que se passou comigo e uma bicicleta, que talvez explique tudo ou que ao menos tenha alguma relação.

Maria e Luiza eram duas irmãs, vizinhas nossas de rua, filhas da D. Eunice, a lavadeira.

Eram meninas quase entrando na adolescência, na época talvez tivessem, no máximo, 9 e 10 anos, respectivamente.

Elas viviam me pegando para brincar, eu era o xodozinho delas, um bibelô que elas levavam para cima e para baixo, o seu “lourinho lindo”.

E como elas faziam quase todos os dias, vieram depois da escola me pegar para brincar. Porém Vidinha, orientada por papai, não permitiu daquela vez.

– Mas por que não, D. Vidinha? – perguntou Luiza, a mais velha.

Mamãe explicou que era Yom Kipur, o dia do jejum dos judeus, seu dia mais sagrado, e que papai havia me proibido de brincar.

Mesmo eu sendo tão pequeno e não tendo chegado ainda aos 13 anos, ao meu Bar-Mitzvá, e adquiri-do maioridade religiosa que me obri-gasse a jejuar e ficar em estado de ob-servância religiosa, trancado em meu

quarto, como fazia papai naquele dia, todos os anos, a ordem era para eu não sair de casa e ponto!

Ficar isolado, impor-se um estado de solidão, não era uma opção volun-tária para papai. Acontecia que éramos a única família judia de Bôca do Acre, que não possuía uma comunidade com sinagoga ou local para rezas co-letivas e muito menos a formação de um minian. Esta era a realidade de dezenas de famílias, que como nós, por motivos de sobrevivência, haviam se embrenhado pelo interior da floresta, se afastando de familiares e correligio-nários da mesma fé.

Porém, nada disso impediu que eles, assim como meu pai, lutassem, à sua maneira, para preservar tradi-ções milenares, respeitando o dia mais solene do ano judaico, para não perder o elo com sua origem.

– E, por favor, não insistam, pois David pode ouvir e se incomodar e vocês sabem muito bem como ele é rígido. Vai acabar sobrando pra mim e para o Elias. Vão procurar outra companhia, por favor. E, assim falando, se despediu e foi para o quarto estar com papai.

Ai, Vidinha, que péssima hora para me deixar sozinho e à mercê daquelas duas “santinhas”... E o triste de tudo é que o mau instinto sempre pega a gente no ponto fraco e na hora e dia mais impróprios.

As danadinhas foram logo apelando para o meu fraco. E das duas, por incrível que pareça, a mais perigosa era a menor delas, a Maria:

– Vamos “lourinho”, vamos aprovei-tar agora e sair rápido na ponta do pé.

Eu juro que tentei resistir:– Não, eu não posso, papai vai

brigar comigo.Mas a diabinha apelou:– Vem, nós vamos te levar pra

passear de bicicleta.Gente, eu sou de carne e osso!

Deixei para pensar nas consequências

por Elias Salgado *

Page 27: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

27

depois e fui arrastado pelo tsunami da tentação, logo por uma Maria, no Dia do Perdão...

Rápido e silencioso como um gato, desci atrás das duas, as escadas do nosso sobrado, e em poucos segundos alcançamos a rua. E esque-cido totalmente do possível castigo, me entreguei às delícias do “pecado” no dia do ano menos propício para cair em tentação...

Em minutos, eu já havia esquecido o risco que corria e mais ainda, perdido todo o senso de culpa. Maria disse:

– “Lourinho lindo”, primeiro nós vamos brincar lá no porão de casa, pois temos uma surpresa que você vai adorar.

Não pensem que eu me deixei levar facilmente, eu juro a vocês que tentei usar de meus melhores ar-gumentos, mas elas apelaram, e de novo a Maria falou:

– A gente só te leva pra passear de bicicleta se você aceitar brincar primeiro no porão.

Golpe baixo e muito bem aplicado. Claro que fui nocautea-do. Foi impossível resistir e afinal, bastante a contragosto, aceitei.

– Mas vocês têm que cumprir o combinado.

E me levaram para o porão da casa delas. Brincaram comigo como quiseram, até que eu disse:

– Bem, agora eu quero passear de bicicleta.

No que fui atendido, pois afinal, combinado é combinado.

Após não lembro quantas voltas, ao passar em frente de nossa casa, nos de-paramos com meu pai de pé no meio da rua, mãos na cintura, vermelho como um camarão, que era como ficava quando estava irritado.

– Passe já para cima “seu moleque”! E vocês duas, desapareçam daqui antes que eu chame o pai de vocês e diga que lhes dê uma surra de cinturão, que é o que merecem!

Já lá em cima, a cena não foi menos forte:.

– Pra seu governo, “seu moleque”, você só não vai levar uma “peia” de cinturão hoje, por que é Kipur, mas assim que a primeira estrela aparecer no céu eu acerto as contas com você. Por enquanto, você vai ficar de castigo – e, pela orelha, me levou até meu quarto.

Nunca rezei tanto na vida para que as estrelas não aparecessem no céu, logo eu que amo a noite, a lua e as estrelas...

Adormeci apavorado e fui des-pertado pela doce voz de Vidinha me chamando para jantar, e eu, morto de fome e esquecido momen-taneamente dos fatos recentes, corri para a sala de jantar.

Quando lá cheguei e vi papai, a memória se avivou, quis dar meia volta e sair correndo, mas papai me chamou e me disse para sentar.

Na verdade, papai mais latia que mordia e a fúria já o havia abandonado e, mais calmo, ele disse:

– Que papelão “seu molequezinho”! Afinal, que espécie de hibri você quer se tornar, um pecador? Pois saiba que mais do que nas minhas mãos, você está nas mãos de Deus, Ele é quem te julgará por teus pecados.

Não sabia se ficava aliviado ou com mais medo, aquilo era uma verdadeira sinuca de bico, quase cheguei a preferir ser penalizado por papai, pois me lembrei que ele havia me contado que Deus tudo vê. E, se fosse verdade, cer-tamente Ele viu que a brincadeira não foi só de passear de bicicleta, tinha a tal “surpresa” das danadinhas...

O mistério do acontecido no porão, prefiro deixar bem guardado na memória daquele menino, que o adulto de hoje um dia foi.

Por outro lado, bem que valeu a pena eu me arriscar por aquele passeio de bicicleta...

Ai, meu Deus! Certamente não terei jamais perdão.

Page 28: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

28 AMAZÔNIA JUDAICA No5 - SET/2011

Grande Elias. Parabéns pelo novo visual e a edição eletrônica

da Amazônia Judaica. E obrigado pelo carinho e cuidado com que meu texto foi veiculado.

Nelson Menda – Miami, EUA

Caro Elias Salgado, Muito obrigado pelas claras instruções.

Graças a elas, consegui ler o excelente artigo de Regina Igel. Aproveito a oportunidade para felicitá-lo e ao seu irmão pela louvável iniciativa de criar e dirigir essa importante contribuição que está sendo a Revista Amazônia Judaica.

Cordialmente,

José M.Neistein – Virginia, EUA

CARTAS DOS LEITORES

CONTATO

Querido Elias,Muito obrigada pela revista, que está

maravilhosa, muito, mas muito boa mesmo! E o texto sobre o Moacyr, muito bom, prin-cipalmente a chamada, com o jogo ‘guru’/ ‘guri’ ... genial!

Meu artigo ficou muito bem posiciona-do, obrigada!

Mandei a revista para uma boa coleção de amigos (da USP, da UNICAMP, da UFMG, e também a uma listserv que se chama LAJSA (Latin American Jewish Studies Association). Todo o mundo está encantan-do com a sua revista!

Um grande abraço, mazal tov, continue com o sucesso para sempre!

Regina Igel - Maryland University, EUA

David,Como vai? Ontem estava relendo alguns

artigos das duas edições que possuo; diga ao seu irmão, Elias, que escreve muito bem, e que me diverti com seus “causos”.

Vocês dois estão de parabéns,as revistas da Amazônia Judaica estão lindas.

Iria Ferreira Mojluf Chocron – Breves – PA

Oi Elias.A revista ficou super legal! Preciso com

urgência do impresso!Você me mandaria uns dois exemplares? Vou amar.Beijos e obrigada.

Joëlle Rouchou – Rio de Janeiro - RJ

Page 29: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

Meyr David Israel e esposa desejam às Comunidades

Judaicas em geral, um Shaná Tová abençoado e pleno de Alegrias.

. Jaime, Anne, José, Rebeca Benchimol e

Joshua Neman desejam à kehilá da Amazônia e a todo Am Israel um próspero 5772.

Shaná Tová.

Fábio Unger e Família desejam um Ano de

Felicidades, Riquezas Espirituais e muita Paz para

todos os povos.Shaná Tová – Feliz 5772

Celso Benjó e Família desejam que o Ano 5772 seja repleto de Mitzvot, Berachot

e Shalom. Shaná Tová

Ramiro Jayme Bentes e Família desejam a todos um Ano Novo repleto de realizações e muita

prosperidade.Shaná Tová Umetuká.

Feliz 5772

Que 5772 seja um ano repleto de Maassim Tovim Vechatimá Tová a todo Am

Israel. Desejam Sara Léa Foinquinos de Melo e

Família.

Elias Mendes e Família desejam às Comunidades da

Amazônia e todo Klal Am Israel,

Shenat Osher VeOsher, Shenat Shalom VeShalom.

Feliz 5772

Que o toque do Shofar aproxime os povos em harmonia e traga a tão

sonhada Paz para Am Israel.Jayme Salgado e Família

Isaac Benarrós e Família congratulam-se com as

comunidades da Amazônia e do Brasil pela passagem do

Ano 5772.Shaná Tová!

José Jayme Gabbay Belicha e Vanessa Briller Belicha desejam aos amigos e correligionários um feliz e

próspero 5772. LeShaná Tová Tekatevu Vetechatemu.

Que em 5772 os sonhos transformem-se em realizações e que a chama da nossa Torá

Ilumine nossos caminhos.Jacob Benzecry e Família

Iria Ferreira Mojluf Chocron Chocron, desde Breves no interior do Pará, deseja a todo Am Israel um

Shaná Tová Umetuká.

Page 30: Revista Amazônia Judaica - Edição 5

A família de Fortunato e Raquelita Athias, com

muita felicidade e gratidão no coração, deseja à Comunidade Judaica da Amazônia um ano

de Saúde, Paz e Amor!

Aziza e Yehuda BenguiguiShalom, Lea Esther

Moyses, Tracy e Yehuda Neto

auguram a todo Klal Israel She Tizku Leshanim Rabot

Que nossas orações durante os festejos de Rosh Hashaná,

encontrem o caminho do perdão e todos possamos ser inscritos no Livro da Vida para o ano que se inicia.

David Israel (Juarez) e Nicolas Israel.

Alice Benchimol deseja que o Ano Novo de 5772

nos renove para um ano de Realizações e Amor ao próximo.

A Família Moises Sabbá deseja à Comunidade Judaica de Manaus e de todo o Brasil, um Feliz 5772. Que o Ano Novo seja repleto de Paz e

Prosperidade.

Stella Ohana, filhos, netos e demais parentes,

congratulam-se com os festejos de Rosh Hashaná 5772

e desejam à Comunidade, Shaná Tová Veguemar

Chatimá Tová

Uma vez por ano fazemos uma reflexão interior, e essa

data é o Rosh Hashaná. Neste Ano Novo judaico que nossas orações sejam aceitas nos céus e a Paz reine sobre o mundo. Izabela, Pedro, Bernardo e

Felipe Melo.

. Laura, Andreia e Marcelo Rezende desejam a todo o Ishuv um Ano de Felicidade,

Paz e Benção.Shaná Tová Veguemar

Chatimá Tová!

Alessandro Magno de Oliveira e Silva e Família

desejam a todos um Shaná Tová e que 5772 possa se transformar no Ano do retorno dos Anussim

ao judaísmo.

Israel Blajberg e Família congratulam-se com as

comunidades judaicas pela passagem do Ano Novo 5772.

Que seja um ano de Paz para o Brasil, Am Israel e

toda a humanidade.

Ambrósio e Deborah Assayag congratulam-se e

desejam a toda a Comunidade um Shaná Tová Umetuká.

Com a chegada dos Iamim Noraim, renovam-se nossas

esperanças de um Ano de Paz. Feliz 5772,

Nathan Tayah e Família

Page 31: Revista Amazônia Judaica - Edição 5
Page 32: Revista Amazônia Judaica - Edição 5