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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
TECNOLOGIAS DE GÊNERO NA CUSTOMIZAÇÃO DE PERSONAGENS EM JOGOS
DIGITAIS
Letícia Rodrigues1
Luiz Ernesto Merkle2
Resumo: Neste artigo refletimos sobre a construção dos corpos de personagens de jogos digitais por meio de
ferramentas e recursos de customização visual. Tais ferramentas e recursos são oferecidas por vários jogos digitais
contemporâneos e permitem que sejam selecionadas características como por exemplo aparência física, sexo, vestuário,
raça ou etnia, dentre outras, geralmente, configuradas pelas/os jogadoras/es à inicialização do jogo. Entendemos que
algumas vezes, apesar da aparente liberdade de escolha, muitas das opções apresentadas ainda são bastante excludentes,
pois, enfatizam a heteronormatividade, a hipersexualização de corpos compreendidos como "femininos" e os binarismos
de gênero. Para explorar essas questões, fazemos uso do conceito de Tecnologia de Gênero, de Teresa De Lauretis, e
apontamos que tais alternativas, tanto em tempo de projeto como de jogo, reforçam imaginários heteronormativos e
estereótipos de masculinidades e feminilidades. Por outro lado, também é possível – através dessa discussão –
reconhecer a existência de disputas internas às comunidades envolvidas. Além disso, nos interessa mostrar como
algumas ferramentas de configuração de personagens também podem ser exploradas para o empoderamento e a inclusão
de pessoas marginalizadas no meio gamer, ao viabilizarem o enfrentamento e a subversão de normativas de gênero, ou
simplesmente por não reforçarem estereótipos de feminilidades e masculinidades a partir da heterossexualidade
compulsória.
Palavras-chave: Jogos digitais. Tecnologias de Gênero. Visualidades. Personagens.
A investigação deste artigo tem sua origem no vídeo do canal PBS Game/Show no site
Youtube intitulado “Por que 'Jogos de Menina' importam?”3 disponibilizado em outubro de 2015.
Procuramos pensar os jogos enquanto tecnologias de gênero (DE LAURETIS, 1994), a partir da
análise dos jogos considerados “de menina” e das ferramentas de customização de avatares
provenientes dos jogos dress-up.
As tecnologias de gênero são um conceito de Teresa de Lauretis (1994) e referem-se às
“técnicas e estratégias discursivas por meio das quais o gênero é construído” (DE LAURETIS,
1987, p.38). Sua compreensão de gênero distancia-se da equivalência de “gênero” e “diferença
sexual”, a autora chama atenção para os aspectos problemáticos dessa equivalência, dada a ideia da
universalização da “mulher” como a diferença do “homem” (também universalizado), além de
desconsiderar “a diferença entre e nas mulheres”. De Lauretis nos apresenta o gênero como sendo
constituído por diversas “tecnologias sociais” estas podendo ser compreendidas como “discursos,
epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana” (DE
1 Bolsista de doutorado pela CAPES no Programa de Pós-graduação em Tecnologia e Sociedade da
Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, Brasil. 2 Professor no Programa de Pós-graduação em Tecnologia e Sociedade da Universidade Tecnológica Federal do
Paraná, Curitiba, Brasil. 3 Tradução livre de: “Why Do 'Girl Games' Matter?”
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LAURETIS, 1994, p. 208). Para ela o gênero está constantemente sendo produzido sobre os corpos
por meio de uma “uma complexa tecnologia política” (DE LAURETIS, 1994, p. 208), a autora
argumenta assim contra a suposta “natureza” do gênero como algo dado, ou presente inerentemente
nos corpos humanos. De Lauretis, a partir do conceito de tecnologia sexual de Michel Foucault,
pensa o gênero como “um conjunto de efeitos produzidos” em diversas instâncias: nos corpos, nos
comportamentos e nas relações sociais (FOUCAULT apud DE LAURETIS, 1994, p. 208).
Consideramos os jogos digitais como tecnologias de gênero passíveis de auxiliar na
construção de representações visuais e discursivas de corpos e sujeitos tornados “possíveis” através
de complexas relações de gênero, que por sua vez, com frequência, reiteram discursos e práticas
machistas e heteronormativos. Neste artigo analisamos as relações de gênero nos jogos através das
ferramentas de customização e construção de personagens. As noções de masculino/feminino nestes
recursos têm como ponto de partida o sexo biológico, atrelando aos corpos modelados
características anatômicas bastante particulares. Aspectos como seios ou músculos servem como
marcadores de feminilidades ou masculinidades e dependem da escolha do “sexo”, restringindo,
muitas vezes a caracterização e construção dos corpos de personagens a noções “hegemônicas” de
corpos compreendidos como masculinos ou femininos. Dessa forma, essas ferramentas com
frequência operam através do sistema sexo-gênero, ignorando o caráter construído do sexo
“biológico” e associando características anatômicas específicas aos corpos sexuados.
Correlato, ao explorar a categoria subalternizada “jogos de meninas”, procuramos além de
problematizar seus estereótipos localizar sua importância na cultura dos jogos, na qual a categoria é
frequentemente diminuída e delegada ao esquecimento como “algo menor”, resultando na
perpetuação da cultura de classificação de práticas, temáticas e produções compreendidas como
“femininas” ou “para mulheres”, como algo inferior ou fútil e esvaziado de conteúdo produtivo.
Justine Cassell e Henry Jenkins (1998) consideram os jogos de computador/digitais como
um exemplo primoroso da construção social de gênero através das representações de feminilidades
e masculinidades apresentadas em seus conteúdos. A representação de mulheres nos jogos desde a
década de 1980 e ainda com frequência nos jogos contemporâneos deixa a desejar em relação a
protagonismos e papéis que não estejam sujeitados a conceitos de permissividade, passividade,
hipersexualização e vitimização (“a donzela em perigo”). Cassell e Jenkins apontam ainda questões
problemáticas como a propagação de imagens misóginas através de temáticas de violência contra a
mulher presentes nas narrativas, funcionamentos e dinâmicas dos jogos. De maneira relacional, as
representações de masculinidade nos jogos e a perpetuação de temas compreendidos como
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“masculinos” aparecem igualmente problemáticas, nas quais personagens masculinos são
dominantes e suas narrativas envolvem temáticas de guerra, violência e competitividade.
A heteronormatividade diz respeito a naturalização da heterossexualidade como forma de
sexualidade “saudável” “normal” ou “natural”, cuja legitimação depende de diversas estratégias de
reforço como aponta Guacira Lopes Louro (LOURO, 1999, p.49). Podemos identificar nos jogos
digitais, e nos discursos e práticas a eles associadas, exemplos desses processos de reiteração das
normas de identidades sexuais, descritos por Louro, nos quais determinados sujeitos são
“naturalizados” e outros marginalizados por meio de estratégias discriminatórias e excludentes.
Um exemplo disso encontra-se no discurso mercadológico de que jogos são interesse de
“homens”, definindo esta categoria “homem” como cisgênero4, branco, heterossexual e jovem, e
associando-o a uma série de estereótipos de gênero do que é social e culturalmente aceito como
práticas masculinas. Por meio desse discurso, a hipersexualização de personagens femininas, ainda
uma questão constante nos jogos contemporâneos, surge justificada pelo suposto público-alvo
masculino que se interessaria pelas figuras desnudas e sensuais das personagens dos jogos.
Argumentamos que essa posição de sujeito e modo de “olhar” serve também para inibir a
identificação de jogadores com personagens femininas, assim como busca evitar qualquer
imaginário de homoerotização do jogador pelos personagens masculinos ao direcionar o olhar de
cunho sexual para as figuras femininas. Nesse sentido, muitos jogos enquanto valorizam alguns
tipos de pessoas, invisibilizam outras.
Em função destes cenários, jogos digitais são atualmente (e não sem resistência) espaços de
diálogo de muitas vozes e movimentos sociais que buscam reivindicar representação e direitos para
as pessoas que jogam, desenvolvem ou participam de suas culturas associadas por meio de
discursos e de diferentes práticas sociais. Pessoas de identidades e expressões de gênero que não são
consideradas hegemônicas, como mulheres cis e trans5, de diferentes nacionalidades, raças/etnias e
gerações são excluídas e frequentemente perseguidas por segmentos da comunidade ao participar de
atividades relacionadas aos jogos. As clivagens e segregações nos jogos são inúmeras e a falta de
4 Cisgênero: “É quando o seu gênero está de acordo com o determinado no seu nascimento, que, conforme os
padrões sociais normativos, é associado ao fator biológico, ou seja, ao sexo”. (Dicionário de Gêneros, 2016).
5 Transgênero: “É quando o seu gênero não está de acordo com o determinado no seu nascimento, quebrando a
normatividade e desassociando gênero de sexo. Uma pessoa trans não necessariamente irá realizar uma cirurgia e
modificar seus órgãos sexuais, pois gênero está ligado a como a pessoa se sente, e não ao seu corpo” (Dicionário de
Gêneros, 2016)
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representação e o uso de estereótipos, muitas vezes ofensivos ou pejorativos, de gênero, raça/etnia e
sexualidade é ainda bastante difundido. Estas perspectivas excludentes manifestam-se, dessa
maneira, em práticas machistas, racistas, capacitistas, transfóbicas, homofóbicas e elitistas na
comunidade de jogos. Essas segregações materializam-se de diferentes maneiras desde as
representações “aceitáveis” que aparecem nos jogos, até perseguições online de jogadoras/es,
desenvolvedoras/es com o intuito de silenciamento dessas vozes dissidentes.
Devido a dimensão ampla destas questões, exploramos aqui apenas brevemente a
representação de feminilidades e masculinidades em personagens por meio da apropriação de
ferramentas de customização e os deslocamentos que esses recursos podem possibilitar em termos
de visibilização e representatividade de sujeitos “outros” na comunidade de jogos digitais.
Buscamos também promover uma postura crítica e questionadora em relação aos usos de
estereótipos de gênero presentes nestas ferramentas, ao pensar estratégias diversificadas de
construção de personagens que não estejam sujeitas as classificações binárias do sistema sexo-
gênero e possibilitem a manifestação de corpos que extrapolam registros heteronormativos de
representação.
Jogos de “Menina” e suas contribuições para os jogos digitais
Em sua breve incursão pela história dos jogos digitais, no vídeo “Por que 'Jogos de Menina'
importam?”, o apresentador do canal PBS Game/Show (Youtube), Jamin Warren (2015), procura
localizar a origem dos chamados “jogos de menina” ou “jogos cor-de-rosa” (pink games) no
contexto dos jogos digitais e problematizar sua desvalorização na cultura gamer6. Warren indica o
princípio da segmentação dos jogos digitais em “para meninas e para meninos” na classificação
mercadológica dos jogos como brinquedos, na década de 1980, a partir da qual estes estariam
sujeitos às mesmas regras de gênero pelas quais outros brinquedos são diferenciados. Essa
segmentação funcionaria para agravar e reiterar estereótipos de gênero e expectativas acerca de
masculinidades e feminilidades específicas. Aliada a estratégias de marketing e propaganda que
tinham por alvo os meninos, a concepção de jogos como “coisas de menino” se tornaria logo, como
aponta Warren (2015) uma “profecia auto-concretizada”, tal tendência pode ser identificada até hoje
no mercado de jogos.
6 Gamer: termo relativo a “game” (jogo).
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A ideia de jogos como objeto de interesse masculino seria motivo para o surgimento de uma
categoria exclusiva de jogos direcionados para meninas que resultariam nos chamados de “jogos de
menina” ou “jogos cor-de-rosa”. Tais jogos permanecem assim classificados e abrangem temáticas
compreendidas culturalmente como “femininas” como moda, consumo, cuidados com a beleza,
maternidade, cuidado e “fofura”. Tais supostos jogos “de meninas” não são, entretanto, unicamente
restritos a estes estereótipos, como Warren comenta, e outros gêneros de jogos podem ser
considerados também advento dos “jogos de menina”, como os jogos com ênfase na narrativa
aberta e não-linear.
A partir de jogos como Barbie Fashion Designer, 1996, a subcategoria de jogos
dress-up (literalmente “de vestir”) seria popularizada. Jogos dress-up são costumeiramente
plataformas virtuais com modelos de corpos de personagem e opções de trajes e acessórios para
escolher e vestir a modelo selecionada (figura 1). O “objetivo” de jogos desse gênero é vestir e
personalizar a personagem “montada” pela jogadora ou jogador e o jogo “termina” quando o
processo de personalização é dado por pronto pela mesma/o. Warren (2015) chama atenção para o
fato de que a customização de personagens em jogos considerados “femininos” tem eco em outros
segmentos de jogos contemporâneos, em suas palavras: “customização de avatares em jogos que
não são considerados “de menina”, são Barbie Fashion Designer com outro nome” (WARREN,
2015). Mariam Naziripour (2014) em sua análise dos jogos dress-up chama atenção para o fato de
que os sistemas de personalização de avatares7 e personagens presentes em uma diversidade de
7 Adrienne Shaw (2014) diferencia avatares como sendo figuras que “representam” a pessoa em um ambiente
virtual, já personagens seriam figuras que a jogadora ou jogador deveria “incorporar” ao jogar o jogo.
Figura 1: Comparação entre Tela de Barbie Fashion Designer (1996) e tela de customização de personagem do jogo
The Sims 4 (2014).
Fonte: Elaborado pela autora.
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jogos contemporâneos, incluindo títulos cujo público-alvo é compreendido como masculino, são em
sua essência jogos de dress-up, apesar de serem trabalhados de maneiras bastante diferentes, como a
autora elabora em sua crítica. Jogos dress-up, ao serem compreendidos como “para meninas”,
passam a reiterar uma série de expectativas e normas associadas a noções de feminilidade,
perpassadas por clivagens de raça/etnia, sexualidade e geração. Naziripour aponta, por exemplo,
que títulos de dress-up como Barbie, Dollz, Stardoll e jogos disponibilizados em páginas online são
“consistentes em sua representação de mulheres” ao apresentar um padrão para suas personagens,
referidas como “bonecas” (dolls). Em suas palavras:
A partir de jogos como Barbie Fashion Designer, 1996, a subcategoria de jogos dress-up
(literalmente “de vestir”) seria popularizada. Jogos dress-up são costumeiramente plataformas
virtuais com modelos de corpos de personagem e opções de trajes e acessórios para escolher e vestir
a modelo selecionada (figura 1). O “objetivo” de jogos desse gênero é vestir e personalizar a
personagem “montada” pela jogadora ou jogador e o jogo “termina” quando o processo de
personalização é dado por pronto pela mesma/o. Warren (2015) chama atenção para o fato de que a
customização de personagens em jogos considerados “femininos” tem eco em outros segmentos de
jogos contemporâneos, em suas palavras: “customização de avatares em jogos que não são
considerados “de menina”, são Barbie Fashion Designer com outro nome” (WARREN, 2015).
Mariam Naziripour (2014) em sua análise dos jogos dress-up chama atenção para o fato de
que os sistemas de personalização de avatares7 e personagens presentes em uma diversidade de
jogos contemporâneos, incluindo títulos cujo público-alvo é compreendido como masculino, são em
sua essência jogos de dress-up, apesar de serem trabalhados de maneiras bastante diferentes, como a
autora elabora em sua crítica. Jogos dress-up, ao serem compreendidos como “para meninas”,
passam a reiterar uma série de expectativas e normas associadas a noções de feminilidade,
perpassadas por clivagens de raça/etnia, sexualidade e geração. Naziripour aponta, por exemplo,
que títulos de dress-up como Barbie, Dollz, Stardoll e jogos disponibilizados em páginas online são
“consistentes em sua representação de mulheres” ao apresentar um padrão para suas personagens,
referidas como “bonecas” (dolls). Em suas palavras:
A boneca padrão é dolorosamente magra e sempre branca. Bonecas de cor são quase
sempre ajudantes para a estrela loura do show. Corpos que não se enquadrem na magreza
da ampulheta idealizada não são concebidos em bonecas. O padrão ariano delgado da
7 Adrienne Shaw (2014) diferencia avatares como sendo figuras que “representam” a pessoa em um ambiente
virtual, já personagens seriam figuras que a jogadora ou jogador deveria “incorporar” ao jogar o jogo.
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beleza feminina domina a representação das mulheres em todos os lugares, um ideal
impossível reforçado através das ferramentas para/de brincar, como videogames e bonecas.
Essa estreiteza de visão da beleza fere a todas/os, em particular as crianças que crescem
brincando com brinquedos que ensinam que a sua aparência é indesejável e secundária à
verdadeira beleza. Bonecas limitam a brincadeira, criatividade e representação8
(NAZIRIPOUR, 2014)
Naziripour contrapõe as ferramentas de customização visual dos tradicionais jogos de dress-
up com customizadores de avatar diferenciados como o de jogos como Mass Effect e The Sims. Faz
uma analogia entre estes customizadores e as estratégias de personalização de personagens em
“novos” jogos dress-up popularizados por sítios virtuais tais como o site Rinmaru Games9 e o site
Doll Divine10. Ambos os espaços virtuais apresentam uma abrangente diversidade de jogos de
dress-up e são projetos realizados por mulheres que buscam uma transformação na maneira
tradicional como os jogos dress-up vêm sendo trabalhados desde seu advento. Algumas dessas
transformações, diz Naziripour, tornam-se evidentes no respeito das desenvolvedoras pelo público-
alvo ao esforçar-se por atender suas expectativas e fazer uso de práticas democráticas que permitem
acesso ao processo criativo de suas ferramentas. Os jogos nesses espaços apresentam também uma
variedade de tipos de corpos disponibilizados para customização e ferramentas que não estão
restritas apenas a escolha de roupas, mas de aspectos de personalização mais elaborados,
possibilitando às jogadoras e jogadores um leque maior de opções ao construir os corpos de suas
personagens. Naziripour comenta a falta de diversidade dos jogos digitais contemporâneos da
seguinte forma:
Ferramentas de customização de avatares amplas em jogos como The Sims e Mass Effect
tem seu foco em personalizar características faciais e atributos físicos, deixando a roupa
como algo secundário. Ola [Divine Dolls] e Rinmaru fazem jogos onde você pode
finalmente personalizar tudo. Esta inovação afeta mais do que a categoria dress-up de
jogos. É importante para os jogos como um todo. Videogames lhe permitem fazer
8 Tradução livre de: “The default doll is painfully thin and always white. Dolls of color are almost always
sidekicks to the blonde star of the show. Bodies other than a slim, idealized hourglass are not made into dolls. The
slender aryan standard of feminine beauty dominates the representation of women everywhere, an impossible ideal
reinforced through the tools of play, from videogames to dolls. This narrow-minded vision of beauty hurts everyone,
particularly the children who grow up playing with toys that teach their appearance as undesirable and secondary to
true beauty. Dolls limit play, creativity and representation.”
9 Rinmaru Games - Avatar Creators and Anime Games. Disponível em <www.rinmarugames.com/>. Acesso em
18 de junho de 2016.
10 Doll Divine ~ Dress Up Games <3. Disponível em <www.dolldivine.com/>. Acesso em 18 de junho de 2016.
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praticamente qualquer coisa: matar dragões, roubar um carro, voar no espaço, voltar no
tempo. Videogames criam esses mundos de realismo misterioso onde você pode fazer o
que quiser, a menos que você queira ser uma mulher11 (NAZIRIPOUR, 2014).
Além das mulheres, qualquer outra identidade divergente da “norma” do “gamer”
considerado “padrão” (o homem cisgênero, heterossexual, branco – com frequência europeu ou
norte-americano), é explorada raramente, ou com muitas ressalvas nos jogos contemporâneos que
são frequentemente restritos nas representações de personagens em termos de raça/etnia,
identidades de gênero e orientações sexuais. Tais restrições operam na perpetuação e reificação de
determinados estereótipos. A utilização de ferramentas de customização nos jogos permitiu uma
ruptura na representação de personagens nos jogos digitais ao deixar nas mãos da jogadora ou do
jogador uma parte da construção do corpo da personagem. Jogos como Mass Effect e Dragon Age,
da desenvolvedora Bioware, e Skyrim da desenvolvedora Bethesda são exemplos bem-sucedidos e
populares de jogos que permitem acesso a relações diferenciadas com seu universo ao possibilitar a
escolha das características da personagem protagonista de seus jogos.
Aspectos como sexo biológico, cor de pele, e características faciais, cor dos olhos, aplicação
de maquiagem, permitem que a personagem jogável seja concebida de acordo com a preferência da
jogadora ou jogador. Como comentamos previamente, tais ferramentas de personalização que são
hoje amplamente populares em diversos jogos contemporâneos apareceram primeiro, como nos
aponta Warren (2015) em “jogos de menina” dress-up. Assim sendo, em vez de descartarmos tais
jogos apenas como fúteis e sem conteúdo por possuírem estereótipos problemáticos, também é
necessário pensar em suas contribuições e transformações culturais na história dos jogos digitais, na
medida que estes passam por constantes mudanças e embates por ambientes mais inclusivos,
embora também reforcem normas sociais, como qualquer tecnologia.
Relações de gênero nas ferramentas de customização de personagens
11 Tradução livre de: “Expansive avatar makers in games like The Sims and Mass Effect focus on fine tuning
facial features and physical attributes, leaving clothing as something secondary. Ola and Rinmaru make games where
you can finally customize it all. This innovation affects more than the dress-up genre. It’s important for games as a
whole. Videogames allow you to do just about anything: kill dragons, steal a car, fly around in space, go back in time.
Videogames render these worlds with uncanny realism, worlds where you can do whatever you want, unless you want to
be a woman.”
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Apesar de tensionarem parcialmente o tradicional protagonismo do homem branco nos jogos
digitais, as ferramentas de customização de personagens operam como tecnologias de gênero a
partir da maneira como são elaboradas e das opções de personalização que apresentam às jogadoras
e jogadores. Sistemas de personalização em jogos como Mass Effect, Skyrim e os primeiros títulos
da série The Sims12, por exemplo, não apresentam opções não-binárias de identidade de gênero e
associam comumente atributos específicos ao sexo biológico das personagens. Nos primeiros jogos
da série The Sims, ao selecionar o avatar feminino é possível utilizar saias, vestidos e maquiagem,
que não são disponibilizados ao selecionar o avatar masculino. Na série Mass Effect, ao escolher a
avatar feminina, é possível aplicar maquiagem enquanto no avatar masculino isso não ocorre. Ao
trocar a vestimenta da protagonista de Mass Effect para um evento social em determinada parte do
jogo, ela traja um vestido enquanto o avatar masculino traja jaqueta, camiseta e calças (Figura 02).
Outro exemplo de como ferramentas de personalização de avatar ampliam, mas de modo
limitado, as escolhas de configuração de gênero nos corpos das personagens encontram-se nos jogos
de MMORPG13. Estes jogos são exemplos interessantes pois frequentemente trabalham em sua
grande maioria com raças fictícias ou fantásticas. Contudo, operam a partir de noções rígidas de
corpos compreendidos como masculinos e femininos a partir de uma matriz binária fundamentada
no sexo biológico. Esses jogos apresentam dimorfismos de corpo de acordo com o sexo biológico
selecionado para as personagens que frequentemente constroem personagens masculinos como
12 A seleção destes jogos deve-se a sua popularidade e reconhecimento na cultura dos jogos digitais.
13 Massive Multiplayer Online Role Playing Games, ou, “Jogo Massivo Multijogador/a Online de Interpretação”,
tratam-se de jogos nos quais comumente se concebe um avatar, uma personagem própria, customizável com base nas
diretrizes pré-concebidas do jogo.
Figura 2: Figura 02. Protagonista de Mass Effect, avatar Masculino e avatar Feminino em trajes alternativos.
Fonte: Mass Effect Wikia. Disponível em: http://masseffect.wikia.com/wiki/Armor_Customization_(Mass_Effect_3)#Casual_Outfits>.
Acesso em jun/2017.
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robustos, musculosos ou hipermusculosos e personagens femininas como magras, voluptuosas e de
cinturas diminutas.
Outra clássica diferença de gênero que aparece em MMORPGs é a questão dos trajes. Esta
categoria de jogos esteve e continua em grande parte sujeita a crítica devido a hipersexualização de
suas personagens femininas com relação às escolhas de armadura e vestimentas disponibilizadas nas
ferramentas de customização. Armaduras masculinas funcionam, como de costume, cobrindo o
corpo do personagem para proteção. Já as armaduras femininas possuem aberturas e fendas, ou são
moldadas como biquínis. Outra questão que surge com frequência nas ferramentas desses jogos é a
personalização de partes do corpo. Personagens masculinos por vezes podem ter sua massa corpórea
aumentada e é possível optar por músculos mais ou menos definidos, mas não é de costume que este
tipo de alteração ocorra nos avatares femininos. Muitas vezes a personagem feminina modelo
“base” da ferramenta de personalização possui também seios avantajados que não podem ser
modificados, assim como uma silhueta magra que não é possível ser alterada. Outra questão
presente nessas ferramentas deve-se à seleção de raça/etnia que por vezes não é contemplada na
escolha de cores de pele. Alguns jogos apresentam opções de cores fantasiosas como azul ou verde,
mas não permitem que a/o personagem seja negra/o.
Outros aspectos de personalização como tipos de cabelos, pelos faciais, bigodes e barbas são
também marcados por clivagens de gênero e não podem ser adicionados às personagens,
dependendo da escolha do avatar feminino ou masculino. Nestas ferramentas de personalização, a
construção de corpos a partir da matriz heteronormativa acaba por compulsoriamente restringir as
opções das jogadoras e jogadores, ao mesmo tempo em que reforça graficamente discursos a
respeito dos corpos social e culturalmente aceitos de acordo com definições biologizantes de
masculinidades e feminilidades. Não é possível extrapolar os padrões binários de gênero nessas
ferramentas, pois elas excluem possibilidades de construção de corpos não fundamentadas em
ideais de gênero subordinados ao sexo biológico como parâmetro para atributos físicos e para
opções de vestimentas, acessórios, etc. (E.x. Corpos “masculinos” tem barba, corpos “femininos”
não. Corpos “femininos” podem utilizar saias e maquiagem, corpos “masculinos” não).
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Felicia Guerreiro14 autora do blog Felicia’s Gaming Diary ao comentar sobre a concepção
de personagens não-binários para jogos aponta que utilizar-se de escalas no lugar das opções
masculino e feminino auxilia na construção de corpos não-binários. A autora cita a ferramenta do
jogo Dark Souls como um exemplo da aplicação dessa estratégia. Guerreiro contesta também a
necessidade de separar itens de acordo com gênero, assim como atributos físicos. Em suas palavras:
Se você fez um vestido florido pras personagens de modelo feminino, deixe ele disponível
pras personagens de modelo masculino também! Se você fez uma barba épica pra
personagem de modelo masculino, disponibilize ela pra personagem de modelo feminino.
[…] Dark Souls, quando foi lançado, tinha um medidor hormonal, que media a quantidade
de testosterona e estrógeno no corpo da personagem. E isso mudava a sua aparência e
alocação de gordura e textura da pele (GUERREIRO, 2015).
Mesmo quando empresas e desenvolvedoras se propõem a criar um ambiente diferenciado
pela personalização de protagonistas e personagens jogáveis, vale realçar que estas divulgam seus
jogos com um personagem específico, frequentemente o “homem branco”. Elas continuam a
reafirmar o imaginário acerca do suposto consumidor específico e “ideal”. Esse é um dos motivos
pelo qual Adrienne Shaw (2014) realiza uma crítica aprofundada dessa estratégia que ela considera
“pluralismo”, pois não necessariamente provoca tensionamentos nas normatizações já que deixa nas
mãos de consumidoras/es a responsabilidade de criar personagens “diversos”. A ferramenta de
customização continua a exercer nesse sentido a função de “outro” em relação ao que é
subentendido como normativo. A título de exemplo, apesar de apresentar a opção de uma
protagonista feminina personalizável, o jogo Mass Effect ilustra em sua capa e demais produtos o
protagonista como um homem cisgênero branco. Apenas o terceiro jogo da série disponibilizou uma
capa com a personagem feminina, ainda assim em sua versão também branca.
Assim, as estratégias de divulgação falham em exercer uma mudança mais radical na cultura
dos jogos em favor da diversidade e inclusão de pessoas marginalizadas nesse meio, pois ainda que
provoquem deslocamentos significativos por meio da implementação de ferramentas, estas mantém
discursos heteronormativos compulsórios tanto na divulgação quanto, em muitos casos, nas opções
disponibilizadas através destas ferramentas de configuração.
14 Felicia Guerreiro promove conteúdos tais como “estudos, resenhas, críticas e opiniões” sobre cultura
nerd/geek “na perspectiva de pessoas trans”. Disponível em:
<https://feliciagamingdiary.wordpress.com/2015/05/20/bem-vindes/>. Acesso em jun/2017.
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Considerações finais
Por meio dessa investigação apontamos uma contribuição dos “jogos de meninas” para a
concepção de ferramentas de personalização de personagens, assim como sua importância histórica
para os jogos digitais. Buscamos entender como as ferramentas de personalização dos jogos digitais
continuam a funcionar como tecnologias de gênero na construção dos corpos de personagens no
caso dos jogos que incorporam esses recursos.
Referência
CASSEL, Justine e JENKINS, Henry. From Barbie to Mortal Kombat: Gender and Computer
Games. The MIT Press - Cambridge, Massachusetts - London, England, 1998.
Dicionário de Gêneros. 2016. Disponível em: <http://dicionariodegeneros.com.br/>. Acesso em 2016.
GUERREIRO, Felicia. Criação De Personagens: Uma Proposta Não-Binária. Felicia’s Gaming
Diary. 2015.
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Technologies of Gender in the construction of Digital Games character bodies
Abstract: In this article we reflect on the construction of characters bodies of digital games through
tools and visual customization features. Such tools and features are offered by various
contemporary digital games and allow features such as physical appearance, gender, dress, race or
ethnicity, among others, to be selected by the players at the beginning of the game. We understand
that sometimes, despite the apparent freedom of choice, many of the options are still quite
excluding, because they emphasize heteronormativity, the hypersexualization of bodies understood
as "feminine" and gender binarisms. To explore these issues, we explore Teresa De Lauretis’
Technology of Gender concept, and point out that such alternatives, both at design time and game,
reinforce heteronormative social imaginaries and stereotypes of masculinities and femininities. On
the other hand, it is also possible - through this discussion - to recognize the existence of internal
disputes within the communities involved. In addition, we are interested in showing how some
character configuration tools can also be explored for the empowerment and for the inclusion of
marginalized identities in the gamer milieu, by enabling confrontation and subversion of gender
norms, or simply by not reinforcing stereotypes of femininities and masculinities from compulsory
heterosexuality.
Keywords: Digital games. Technologies of Gender. Visualities. Characters.