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Não podem restar dúvidas quanto ao revigoramento das discussões teóricas em Relações Internacionais, sobretudo nas últimas déca- das 1 . A bem da justiça, não se afirma que a academia houvesse rele- gado o campo teórico das Relações Internacionais a uma posição de reduzida relevância, contudo, é razoável supor que as diversas tradi- ções teóricas careciam de um debate real. A eterna caracterização das relações internacionais como um diálo- go meliano perpétuo, isto é, um conflito entre poder e moralidade, entre força e justiça, não condiz à respeitável e diversificada produ- ção teórica 2 . As tradições realista e liberalista beneficiaram-se imen- samente desse state of affairs, souberam tirar proveito para se fortale- cerem na qualidade de perspectivas predominantes (a realista mais 249 * Artigo recebido em julho e aprovado para publicação em setembro de 2005. ** Mestre em Relações Internacionais pela University of Kent at Canterbury (Reino Unido), professor e coordenador do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, n o 2, julho/dezembro 2005, pp. 249-282. Teoria Crítica em Relações Internacionais* Marco Antonio de Meneses Silva**

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Não podem restar dúvidas quanto ao revigoramento das discussõesteóricas em Relações Internacionais, sobretudo nas últimas déca-das1. A bem da justiça, não se afirma que a academia houvesse rele-gado o campo teórico das Relações Internacionais a uma posição dereduzida relevância, contudo, é razoável supor que as diversas tradi-ções teóricas careciam de um debate real.

A eterna caracterização das relações internacionais como um diálo-go meliano perpétuo, isto é, um conflito entre poder e moralidade,entre força e justiça, não condiz à respeitável e diversificada produ-ção teórica2. As tradições realista e liberalista beneficiaram-se imen-samente desse state of affairs, souberam tirar proveito para se fortale-cerem na qualidade de perspectivas predominantes (a realista mais

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* Artigo recebido em julho e aprovado para publicação em setembro de 2005.** Mestre em Relações Internacionais pela University of Kent at Canterbury (Reino Unido), professor ecoordenador do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

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do que a liberalista), mesmo que disfarçando seu domínio, sugerindoque houvesse um debate com a corrente rival. Quero dizer que, em-bora seja aceito que majoritariamente os acadêmicos se identificas-sem com um ou outro protagonista do chamado primeiro debate, talquadro não pode ser retratado às expensas das demais abordagensque surgiram ao longo do século XX, ainda mais nas décadas finais.Do contrário, trata-se de um desserviço ao estudo da evolução teóricadas Relações Internacionais.

Grosso modo, a chegada de novas correntes teóricas submete-se auma lógica. Trata-se de inovações que atingem outros campos de es-tudo ditos das ciências sociais antes de alcançarem os domínios dasRelações Internacionais. Essa observação se baseia na histórica ten-dência de os acadêmicos manterem a disciplina hermeticamente fe-chada e rejeitarem questionamentos acerca dos postulados epistemo-lógicos e ontológicos fundamentais das Relações Internacionais.Identificamos nitidamente essa tendência no caso do pós-modernis-mo e do pós-estruturalismo, assim como na teoria crítica, abordagemora em voga.

Não pretendo aqui me aprofundar na apresentação do advento decorrentes novas antes do início dos anos 1980. Esse momento sinali-za o início de um processo de redescoberta das questões metateóri-cas. Lembramos que, por metateoria, fazemos alusão aos aspectosontológicos e epistemológicos na produção de conhecimento. Essealerta se deu, em grande parte, pela chegada da teoria crítica às Rela-ções Internacionais. Nisso, não há como menosprezar a influência deRobert Cox.

Neste artigo, opto por iniciar examinando os pressupostos históricosda teoria crítica, notadamente o pensamento político e social da cha-mada Escola de Frankfurt, particularmente o trabalho de Max Hork-heimer (1990). Desejo explicitar a estreita relação entre os frankfur-tianos em sua busca pela emancipação, e a noção de limite sobre as

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possibilidades de realização dos ideais modernistas, e a conseqüentedistinção entre duas modalidades de teoria: a tradicional e a crítica.

Em seguida, apresento a teoria crítica em Relações Internacionaisper se examinando a contribuição de Robert Cox (1995b). Em um ar-tigo que se tornou um marco para a teoria das Relações Internaciona-is3, Cox em um só tempo inaugura uma nova época nesse estudo, so-bretudo com a incorporação da reflexão sobre a influência do poder edos interesses na produção intelectual, além de apresentar sua pers-pectiva teórica particular, fortemente inspirada no pensamento polí-tico de Antonio Gramsci – o materialismo histórico. A questão datransformação das realidades social e sobretudo política se apresentacomo uma preocupação central da teoria crítica coxiana, bem comode seus seguidores.

A terceira seção deste trabalho se ocupa da apresentação da teoriacrítica internacional. Essa vertente teórica contemporânea é precipu-amente associada à retomada da discussão sobre a busca da emanci-pação. O nome central é o de Jürgen Habermas. Embora tenha acaba-do de chegar aos temas e à agenda internacional, em que a figura cen-tral tem sido a de Andrew Linklater, esse debate é cada vez mais in-fluente na produção de muitos acadêmicos.

A Teoria Crítica da Escola

de Frankfurt

A teoria crítica nas ciências sociais tem uma extensa tradição intelec-tual, representando, no princípio, uma variação do pensamento mar-xista do início dos anos 1920, particularmente vinculada à Escola deFrankfurt. O termo teoria crítica foi usado pela primeira vez em 1937em um artigo de Max Horkheimer. Entre outros nomes ligados a essacorrente estão os de Theodore Adorno, Herbert Marcuse e WalterBenjamin. Em comum, entre outras coisas, todos eles possuíam umamesma origem comum no pensamento marxista.

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Seguramente, podemos afirmar que a preocupação central da teoriacrítica é a emancipação. Esses teóricos despertaram para o fato deque as expectativas geradas em torno da expansão da experiência so-cialista russa, sobretudo para o ocidente, não se concretizavam. Ostemores do mundo ocidental eram de que a revolução ocorrida emoutubro de 1917 se alastrasse para outros cantos, o que acabou nãoocorrendo. Pelo contrário, no ocidente não havia sinais de que os par-tidos comunistas e socialistas estivessem próximos de chegar ao po-der, pelas vias democráticas ou não.

Concentrando a atenção no trabalho de Max Horkheimer (1990), po-de-se dizer que, afora ser talvez a figura mais influente da Escola deFrankfurt, terá grande influência sobre as proposições epistemológi-cas de Cox.

Para os propósitos deste trabalho, examinaremos uma das idéiasprincipais de sua obra: a dialética do esclarecimento. Horkheimerchamava atenção para o papel da racionalidade restritiva no desen-volvimento da civilização ocidental, no desencantamento do mundo.Findada a era das explicações metafísicas, a racionalidade tomavaseu lugar como critério único e absoluto para a validação do conheci-mento humano. Acreditava-se no caráter emancipatório desse novomodo de conhecer. A racionalidade instrumental da ciência modernadistanciou-se da busca pela emancipação, passando a prezar a subju-gação da natureza pelo homem: conhecer para prever, prever paracontrolar. Essa contradição precisava ser esclarecida. A busca pelasregularidades do mundo real pouco serviu aos propósitos libertáriosque a racionalidade moderna advogava. Pelo contrário, o domínio daciência serviu, por meio do desenvolvimento da técnica, para o domí-nio do meio ambiente. Qual seria a implicação para o mundo social?

Horkheimer, apropriadamente, identificou um equívoco fundamen-tal aqui. As chamadas ciências sociais não poderiam seguir os mes-mos pressupostos epistemológicos das ciências naturais, as que sem-

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pre serviram de modelo para as demais, por uma razão muito sim-ples: o mundo social distingue-se do mundo natural em diversos as-pectos. Cientistas sociais não poderiam ser como seus colegas natu-rais, no sentido de se considerarem desinteressados e independentesda sua matéria de estudo porque fazem parte da sociedade que estu-dam. Repetir os mesmos postulados epistemológicos das ciênciasnaturais impunha pesados custos sobre as ciências sociais.

A conclusão decorrente disso é a constatação da influência que inte-resses impõem sobre a produção de conhecimento. Afinal, a aplica-ção indiscriminada de metodologias das ciências naturais, com suasposições epistemológicas subjacentes, tendia à reprodução da ordemexistente. Isso é problemático, porque, ao invés de avançar a emanci-pação, no mundo moderno, constava-se a subjugação da natureza e adominação do homem pelo próprio homem. É nesse contexto queHorkheimer propõe uma ruptura epistemológica.

É aí que surge a diferenciação entre a teoria tradicional e a teoria “crí-tica”: a primeira enxerga o mundo como um conjunto de fatos queaguardam ser descobertos pelo uso da ciência – positivismo. Hork-heimer defendia que teóricos tradicionais estavam equivocados aopropor que o “fato” a ser descoberto pudesse ser percebido indepen-dentemente da estrutura social em que a percepção ocorria. Mas a si-tuação era mais grave, já que a teoria tradicional estimulava o aumen-to da manipulação de vidas humanas. Ela via o mundo social comouma área para controle e dominação, como a natureza, e, portanto,indiferente às possibilidades da emancipação humana.

Horkheimer propunha a adoção da teoria crítica. Esta não enxerga fa-tos da mesma forma que a teoria tradicional. Para teóricos críticos,fatos são produtos de estruturas sociais e históricas específicas. Apercepção de que teorias estão fixadas nessas estruturas permite queos teóricos críticos reflitam sobre os interesses atendidos por uma te-oria particular. O objetivo explícito da teoria crítica é promover a

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emancipação humana, o que significa que a teoria é abertamente nor-mativa, assumindo uma função até no debate político. Nisso, divergeradicalmente da teoria tradicional ou positivista, na qual a teoria deveservir à neutralidade e se preocupar somente com a descoberta de fa-tos preexistentes e de regularidades em um mundo independente eexterno.

Em uma contribuição significativa ao pensamento das ciências soci-ais, Horkheimer defendia que haveria uma ligação entre conheci-mento e poder. Para ele, dessa relação decorria o fato de que as maisimportantes forças para a transformação eram forças sociais, e não aexplicação de uma “lógica independente” a ser revelada. Enquanto oconhecimento estivesse associado ao Estado4, tenderia a reificar asrelações de poder existentes, sendo que qualquer alteração se subme-teria aos interesses estatais. Desta forma, os cientistas comporiamuma força social cujo dever principal não poderia deixar de ser atransformação da realidade social de forma a expandir a emancipa-ção humana.

A principal crítica que essa linha de raciocínio recebeu veio dos raci-onalistas, e se fundamenta sobre a acusação de que o conhecimentocientífico há que ser imparcial, neutro, não-normativo e puro. Paraeles, Horkheimer estava politizando, ideologizando a produção deciência. Defensores do racionalismo como Popper (1958) e Lakatos(1978) argumentariam que a ciência se desenvolve seguindo critériosracionais.

Percebemos, portanto, que divergências ontológicas se encontram nabase da discussão. Respostas distintas às indagações do tipo “o que ecomo é a realidade social?”, “as realidades natural e social divergemfundamentalmente, a ponto de significarem modos igualmente dis-tintos de conhecê-las?” e “o conhecimento é puro, imparcial e neu-tro?” trazem implicações essenciais à maneira como se percebe o co-nhecimento. Tais dúvidas não se resolvem de uma forma intrínseca à

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racionalidade. Elas pressupõem um certo grau de subjetividade ex-plicitado pelos postulados metateóricos do teórico/analista.

Desafios Epistemológicos

da Teoria Crítica em

Relações Internacionais

O pensamento frankfurtiano imprimiu um impacto profundo sobre aprodução científica nas ciências sociais já nas primeiras décadas doséculo XX. Contudo, as discussões epistemológicas que vieram àtona há muito se mantiveram além das fronteiras das Relações Inter-nacionais. Desde sua gênese5, as controvérsias que nutriam o desen-volvimento desse campo de estudo eram assaz estreitas, se vistas apartir das questões a serem levantadas pela teoria crítica. O primeirodebate (realismo político versus idealismo) foi protagonizado porcorrentes que talvez tivessem muito mais semelhanças do que dife-renças no que se refere aos fundamentos epistemológicos. O chama-do segundo debate (tradicionalistas versus comportamentalistas/ci-entificistas), embora também conhecido como um debate metodoló-gico, só fez sentido por apartar metodologias que também traziam si-militudes epistemológicas. Por fim, o terceiro debate é ele própriomotivo de debate: para uns, divide neo-realistas e neoliberais; paraoutros, neo-realistas e globalistas; para outros ainda, epistemologiaspositivistas e pós-positivistas. Portanto, não seria exagero afirmarque um verdadeiro debate metateórico se inicia com a teoria crítica.

Preliminarmente, convém examinar o ponto de partida de RobertCox (1995a). Não há teoria propriamente dita dissociada de um con-texto histórico concreto. A teoria é a maneira como a mente funcionapara compreender a realidade confrontada. É a autoconsciência damente, a consciência de como a experiência dos fatos é percebida eorganizada para ser compreendida. Além disso, a teoria também pre-cede a construção da realidade no sentido de que ela orienta a mente

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daqueles que, por meio de suas ações, reproduzem ou transformam arealidade.

Para apresentar os desafios da teoria crítica, explorei seus quatro ali-cerces básicos, a saber: a relação entre o sujeito cognitivo e o seu ob-jeto de estudo; a influência de interesses e valores sobre a teoria; amutabilidade da realidade social; e os modos de teoria que surgem.Em seguida, examinarei com maior detalhamento esses alicerces.

A relação tradicional do cientista político com seu objeto de estudo éde distanciamento para possibilitar a “descoberta” de leis universais.Esse é um postulado da ciência moderna, aplicável aos demais cam-pos de estudo. Imagina-se uma postura análoga à do cientista naturalque analisa seu objeto de estudo por meio de um microscópio. Nadaexemplifica melhor o distanciamento. O cientista não acredita quefaz parte de seu objeto, muito menos que pode nele interferir de algu-ma maneira. Sua função se resume a encontrar regularidades que le-vem à possibilidade de previsão.

Contudo, essa postura é inadequada para as chamadas ciências sociais,por um motivo basilar: o cientista é ele próprio parte de seu objeto deestudo. Lembremos que essa característica já fora identificada pelaEscola de Frankfurt. Em vez de reproduzir também suas conseqüên-cias epistemológicas, nesse particular, chamo atenção para a impor-tância que Cox (idem) atribui às ontologias.

A ontologia precede a investigação. Antes de iniciar a tarefa de tentartornar o mundo que nos cerca mais inteligível, as ontologias já estãopresentes, já se fazem evidentes na maneira como enxergamos o queestá em nossa volta. Para definir um problema, e esse é o ponto departida da investigação científica, da pesquisa, urge conhecer e reco-nhecer as entidades envolvidas, bem como as relações entre elas. Te-orias são construídas sobre tais premissas. Os termos que usamospara identificar as entidades e as relações têm significados ontológi-cos. Estes significados não são resultado de descobertas ou revela-

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ções, ou seja, pressupõem a ação do pesquisador. A ontologia centraldo campo de estudo das Relações Internacionais tem sido o Estado.Contudo, não se pode assegurar que o mesmo conceito signifiquecoisas idênticas para teóricos distintos. Chama atenção, nesse senti-do, a maneira divergente com que Platão e Hobbes conceituam a co-munidade política (Cox, 2000).

A teoria segue a realidade, mas também a precede e a modela. Existeum mundo histórico real em que as coisas acontecem. A teoria é feitapela reflexão sobre o que nele aconteceu. Contudo, a separação entreteoria e eventos históricos reflete uma certa maneira de pensar, por-que a teoria alimenta também a história, em virtude da forma comoaqueles que fazem a história (indivíduos e coletividades) pensam so-bre o que fazem, e dão significados às suas ações.

Dessa forma, os limites da ação individual e/ou coletiva são produtosda teoria (e ditados pelos eventos históricos). Existe, portanto, umateoria dos livros (acadêmica) e uma teoria da vida (sentido comum).A experiência histórica produz a ontologia das pessoas e incorpo-ra-se ao mundo que estas constroem. É assim, portanto, que o enten-dimento que temos do Estado, desprovido de existência física, apesarde produzir conseqüências reais e físicas, explica-se. As ontologias,por sua vez, são estruturas implícitas (subjacentes) de pensamento eprática.

Elas se tornam problemáticas quando novos problemas que não po-dem explicar ou resolver certezas ontológicas dão lugar ao ceticis-mo. Não se procura a construção de um conhecimento universal e ab-soluto, mas a criação de uma nova perspectiva adequada ao momentoatual, isto é, novas ontologias.

Por conseguinte, estabelecemos que, de certa maneira, há um aspec-to de eleição subjetiva na maneira como assimilamos o meio em queestamos inseridos. Isso é expresso pelo domínio das ontologias. Porontologia, entendemos desde a discussão dos conceitos, isto é, o con-

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ceito que usamos para designar uma determinada idéia, passando pe-los diversos entendimentos que um conceito pode expressar, até che-garmos à questão mais abrangente que entenderá que nossa(s) onto-logia(s) é (são) também a representação de nossa visão de mundo.Cox (1995a) afortunadamente aponta a importância que a historici-dade exerce sobre essa(s).

Outra característica definidora do campo de estudo das RelaçõesInternacionais, para Devetak (1995), tem sido a omissão de conside-rações acerca da relação entre conhecimento e valores. Esta relaçãosomente atraiu atenção por advertir contra os perigos que se apresen-tam quando valores influenciam a pesquisa. O estado do conheci-mento, a justificação de reivindicações da verdade – truth claims –, ametodologia aplicada, o escopo e o alcance da pesquisa eram ques-tões fundamentais que as Relações Internacionais ignoravam, em seupróprio detrimento (idem).

A teoria é obrigatoriamente condicionada pela influência social, cul-tural e ideológica, e cabe à teoria crítica a tarefa de revelar os efeitosdesse condicionamento. Busca, também, trazer à consciência pers-pectivas latentes, interesses ou valores que dão origem a, ou orientamqualquer teoria. O conhecimento que a teoria crítica persegue não éneutro; é política e eticamente carregado por um interesse na trans-formação social e política. Hoffman (apud Devetak, 1995) entendeque não é meramente uma expressão das realidades concretas da si-tuação histórica, mas também uma força transformadora dessas con-dições (Devetak, 1995:151).

É claro que a teoria crítica incorporará nitidamente a dimensão da in-fluência dos interesses na produção teórica. Contudo, o mesmo tal-vez não proceda na discussão da ação dos valores. A bem da verdade,teóricos críticos têm sido freqüentemente acusados por teóricos nor-mativos de se absterem das discussões normativas substantivas. Aacusação fundamenta-se no fato de a teoria crítica defender uma “or-

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dem alternativa”, presumivelmente “melhor”; concomitantemente,não indica com clareza o que constitui uma ordem “boa”, em se tra-tando da dimensão ética. Em que medida a ordem que se busca supe-ra a ordem atual? Para a teoria normativa, somente o aprofundamen-to das discussões sobre a ética e a moral nas relações internacionaispoderia oferecer algum tipo de resposta a tais indagações. Nisso, osteóricos normativos aparentam ter razões ao assinalar o curioso si-lêncio da teoria crítica a esse respeito.

O enfoque da teoria crítica, além de ser seu interesse manifesto, é atransformação da ordem internacional, no que se refere à realidadepolítica, econômica e social. Mais do que isso, para a teoria críticaqualquer perspectiva que parta da premissa de que existam aspectosde tal realidade que sejam permanentes ou imutáveis é falaciosa.Para sustentar essa censura, Cox (1995a) aponta para um equívocobasilar da tradição realista: a suposição de que o Estado é sempre umEstado. Dito de outra maneira, realistas tendem a não problematizaro objeto básico do estudo tradicional das Relações Internacionais.Ao contrário, sugerem que as cidades-Estados helênicas da Antigüi-dade Clássica (Tucídides, 2002) têm muito em comum com as cida-des-Estados da península itálica na Idade Média (Maquiavel, 1982),que, por sua vez, não apresentam maiores disparidades se compara-das aos Estados-nação do início da era moderna (Tratados de Paz deWestfália, 1648), os quais não teriam sofrido mudanças fundamen-tais até os dias de hoje. Será mesmo que não haveria dessemelhançasentre essas formas de comunidades políticas distanciadas por milha-res de anos? Ontologicamente, o conceito de Estado não significa amesma coisa para os contextos citados.

O pensamento realista procura regularidades no sistema internacio-nal, que lhe permitam prever como as entidades políticas se compor-tarão. Para isso, interpreta realidades distintas, buscando apontar ca-racterísticas que sugerem continuidades. Mas será mesmo que acomposição e interação das idéias, a organização material e as insti-

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tuições que constituíam as comunidades políticas permitem que fale-mos de um “Estado” que atravessa os tempos e não respeita as parti-cularidades de cada contexto histórico? É aceitável propor que forçassociais e as ordens mundiais geram somente um tipo de comunidadepolítica?

Há um compromisso normativo intrínseco com a manutenção da or-dem, e com aqueles que se beneficiam dela. Por exemplo, o mecanis-mo que regula e distribui poder entre entidades que se motivam pelomesmo objetivo (conquistar ou aumentar seu poder) é o equilíbrio oubalança do poder. O realismo político é uma perspectiva teórica, por-tanto, que poderá ser identificada com os interesses do Estado hege-mônico.

Para a teoria crítica, por conseguinte, a ordem internacional está emconstante transformação. Essa mutação faz com que, por meio daagência humana, se possa guiar alterações em direção à emancipa-ção. A teoria cumpre, portanto, um papel de guia para a ação estraté-gica, isto é, para a ação transformadora. Muito mais do que um relesinstrumento para analisar seu objeto de estudo, a teoria passa a teruma função nessa ação. Da mesma forma que cientistas não se de-vem deixar iludir por um véu de pretensa neutralidade – já que elespróprios compõem seu objeto de estudo, carregam e cultivam valo-res, interesses particulares –, a ciência também não é neutra. Pode ha-ver uma teoria interessada na manutenção da atual ordem das coisas,como pode haver teorias interessadas em sua transformação. ParaCox (1995a; 1995b), essa opção será o divisor de águas das teorias,nos termos abaixo.

Em sua forma de distinguir as teorias, Cox (1995a; 1995b) propõeuma heterogeneidade em três níveis. Entende que teorias devem seranalisadas com base em três dimensões que permitem a comparaçãoe a conseqüente classificação dos modos de teoria: a perspectiva, aproblemática e o propósito.

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A perspectiva seria a localização espaço-temporal. Em sintonia coma crença de que o contexto social do sujeito influi em suas definiçõesontológicas, na maneira que elege para interpretar a realidade social,a perspectiva reflete precisamente a extensão dessa função. Porexemplo, o realismo político é intensamente associado a teóricos es-tadunidenses (Morgenthau, Deutsch etc.) e britânicos (Carr etc.)6. Alocalização espaço-temporal aponta para uma coincidência: trata-sede teóricos de nacionalidade de um Estado-nação hegemônico emdecadência (Grã-Bretanha, ao menos no momento em que Carr es-creve) e de um Estado-hegemônico em ascensão (Estados Unidos,principalmente no pós-Segunda Guerra Mundial). O fato de que o re-alismo político principia seu domínio no período auge de domínioestadunidense não pode ser relegado ao acaso. A corrente de pensa-mento realista parece ter uma ligação clara com uma forma de inter-pretar as relações internacionais que reflete e atende aos interessesdo Estado hegemônico. De forma semelhante, a aplicação do mesmoraciocínio sobre os teóricos dependentistas revela uma característicasemelhante: estamos diante, nesse caso, de uma série de pensadoresoriundos de Estados periféricos ou semiperiféricos7.

“O mundo é visto de uma posição definida em termos de nação ouclasse social; de dominação ou subordinação; de ascensão ou declí-nio de poder; de um sentido de imobilidade ou de crise atual; de expe-riências passadas e de esperanças e expectativas para o futuro. Umateoria jamais é a expressão pura e simples de sua perspectiva. Por ou-tro lado, quanto maior a sua sofisticação, mais ela reflete sobre si etranscende sua perspectiva. Por conseguinte, não existe teoria por sisó, divorciada de sua posição no tempo e no espaço. Quando uma te-oria se apresenta como tal, faz-se necessário examiná-la como umaideologia, e tentar revelar sua perspectiva” (Cox, 1995a: 87)8.

A crítica coxiana não leva a supor que a busca por um conhecimentoneutro ou imparcial deva inspirar o teórico. Ao contrário, afirma quetodo conhecimento refletirá particularidades de quem o produz, e das

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quais o teórico não pode se julgar imune. A perspectiva deve sercompreendida como o contexto histórico a partir do qual a produçãoteórica ocorre. Isso significa examinar de onde emerge o teórico; é oseu ponto de partida fundamental. Sua teoria poderá transcender esseponto de gênese e adquirir uma percepção histórica, ou poderá se li-mitar a ele.

Cada teoria também abrange uma problemática, ou mais. A proble-mática refere-se às premissas da vida social que cada teoria desejaabranger. Cada teoria também elege dentre os múltiplos aspectos darealidade que compõem seu objeto de estudo, quais serão foco de suapreocupação. Sendo assim, não é tarefa árdua identificar a problemá-tica do realismo político: a questão da segurança internacional. A te-oria da dependência também apresenta uma problemática claramen-te distinguível. Trata-se de uma abordagem que busca compreendero motivo que impedia países não-desenvolvidos de evoluírem em di-reção ao desenvolvimento.

Uma teoria sempre serve a alguém e a algum propósito. É imprescin-dível conhecer o contexto em que é gerada e usada; igualmente impe-rativo é conhecer se o objetivo do teórico e de quem se utiliza da teo-ria é manter a ordem social existente ou mudá-la. Esses dois propósi-tos levam a duas espécies de teoria. A teoria de resolução de proble-mas – problem-solving theory – aceita o mundo como um dado, eaponta para a correção de disfunções ou problemas específicos queemergem dentro da ordem existente. O objetivo geral da resolução deproblemas é fazer com que as relações e instituições prevalecentes dedominação social e política funcionem bem por meio do enfoque dasorigens específicas dos problemas. Como o padrão geral das relaçõese instituições não é passível de crítica, problemas específicos sãoanalisados em relação às áreas especializadas de atividades em quesurgem. Portanto, a resolução de problemas representa uma modali-dade de teoria que tende a colaborar com a manutenção das relações einstituições sociais e políticas, ou seja, expressa um intento conser-

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vador da ordem social e política. Ela se interessa pelas reformas es-pecíficas que têm por fim a manutenção das estruturas existentes.

A outra espécie de teoria, a teoria crítica, dedica-se à forma como aordem existente surgiu e às suas possibilidades de transformação. Aocontrário da teoria de resolução de problemas, a teoria crítica não vêas instituições e relações sociais e políticas como um dado, mas asquestiona, procurando entender como surgiram e se podem estar emum processo de transformação. Ela é direcionada justamente para oquadro de ação, ou problemática, que a resolução de problemas acei-ta como seus parâmetros. Um dos objetivos centrais à teoria crítica éesclarecer a diversidade de alternativas possíveis. Há um elementode utopia presente, já que se tenta representar um quadro coerentepara uma ordem alternativa, embora a utopia sofra as limitações im-postas pela compreensão dos processos históricos. A teoria críticadeve recusar alternativas improváveis, além de rejeitar a ordem pre-valecente. Desta forma, serve de guia para a ação estratégica por le-var à ordem alternativa, enquanto a resolução de problemas serve deguia para a ação tática que, intencionalmente ou não, mantém a or-dem existente. Dito de outra maneira, a teoria crítica interessa-se pelaexploração do potencial de mudança estrutural e pela construção deestratégias para a transformação.

O Pensamento

Neogramsciano nas

Relações Internacionais

Uma das vertentes da teoria crítica mais influentes em RelaçõesInternacionais tem sido o pensamento de Antonio Gramsci, sobretu-do na economia política internacional. Lembramos que esse cientistapolítico italiano não chegou a produzir um tratado teórico integrado:ao contrário, sua obra capital, Cadernos do Cárcere (2000), é umacoletânea de artigos escritos enquanto esteve encarcerado pelo regi-me de Mussolini nas décadas iniciais do século XX.

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Nesta seção, examinarei algumas das idéias centrais do pensamentogramsciano para, em seguida, observar a sua transposição para as re-lações internacionais. Observa-se, novamente, o fruto do esforço deRobert Cox (1995b), embora outros autores também nos sirvam dereferência (Gill, 1993; 1998; Jardim, 2002).

Gramsci é considerado por muitos o maior teórico neomarxista. Suapreocupação fundamental resume-se em compreender as deficiênci-as nas previsões que Marx havia feito acerca da expansão das expe-riências revolucionárias socialistas, particularmente nas sociedadescapitalistas mais avançadas. Nisso há um paralelo com a primeira ge-ração da Escola de Frankfurt. Enquanto os frankfurtianos identifica-ram a influência da cultura, a burocracia, a natureza do autoritarismo,a questão da razão e da racionalidade e discussões epistemológicaspara explicar o fracasso no alastramento do socialismo, Gramsci bus-cou elucidar a influência da hegemonia nesse fenômeno. Todos tra-balharam uma temática claramente situada na superestrutura.

Há que se ter em mente que o conceito de hegemonia de Gramsci(2000) guarda pouca semelhança com o termo usado habitualmentenas Relações Internacionais e com o conceito derivado do realismo.Para realistas, trata-se do Estado dominante no sistema internacio-nal, ou do Estado mais forte em uma região específica. Gramsci(idem) buscou alargar esse entendimento em decorrência de seu con-ceito mais amplo de poder.

O desenvolvimento do conceito gramsciano de hegemonia apresen-ta-se como uma discussão produtiva. A noção de hegemonia comouma ordem política relativamente incontestada, e habitualmente acei-ta de maneira passiva, isto é, uma combinação da coerção e do con-sentimento, abre múltiplas possibilidades de reinterpretação da rea-lidade internacional9. A hegemonia, exercida por forças sociais quedetêm o controle do Estado, tem por finalidade a produção do con-sentimento nas demais. Gramsci (idem) entendeu que os valores mo-

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rais, políticos e culturais do grupo dominante são dissipados pormeio das instituições da sociedade civil, obtendo o status de signifi-cados intersubjetivos compartilhados, daí a noção de consentimento.As ideologias dominantes proliferam-se de tal maneira que passam àqualidade de senso comum.

O sentido do termo “sociedade civil” aqui empregado diz respeito àrede de instituições e práticas da sociedade que gozam de relativa au-tonomia do Estado, por meio das quais grupos e indivíduos se organi-zam, representam-se e expressam-se.

Dessa forma, as possibilidades de mudança surgem da noção de blo-co histórico, ou seja, as relações entre a base material (in-fra-estrutura) e as práticas político-ideológicas que sustentam umacerta ordem. A transformação somente emergirá se a hegemonia forcontestada. O lócus para tal seria a sociedade civil, uma vez que inici-ativas contra-hegemônicas devem desafiar a hegemonia a fim de quesurja um bloco histórico alternativo.

Outra implicação dessas premissas impõe que, se a perpetuação dadominação da classe governante ocorre por meio da hegemonia, atransformação só poderá advir se a hegemonia for contestada. Issocompreende uma luta contra a ordem prevalecente no cerne da socie-dade civil, compreende uma contra-hegemonia, em busca de um blo-co histórico alternativo10. A fim de transcender determinada ordem,há que se ter em mente que na contra-hegemonia, a legitimidade polí-tica e a mudança histórica representam estruturas historicamente li-mitadas.

Nesse ponto, convém afirmar que uma transposição da teoria políticade Gramsci acerca da política doméstica italiana nas décadas de 1920e 1930 para a esfera internacional ou para a política mundial não é ta-refa das mais fáceis, nem pode ser feita de maneira direta. Em que pe-sem essas dificuldades, os autores dessa corrente têm obtido um êxi-to surpreendente, constatado a seguir.

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Podemos creditar também a Robert Cox o mérito de ter introduzidoGramsci no estudo da política mundial, em uma abordagem quecompreende o desenvolvimento de uma estrutura alternativa para aanálise dessa. Percebemos uma significativa influência do gramscia-nismo no desenvolvimento do seu entendimento teórico sobre as or-dens mundiais, que se apropriam das fontes de estabilidade de umdado sistema, bem como da dinâmica dos processos de transforma-ção. Para tal, Cox (1995b) defende que a hegemonia é um conceitotão central para explicar a manutenção da estabilidade e continuida-de no domínio internacional quanto para o nível doméstico. Sucessi-vos Estados dominantes têm criado e moldado ordens mundiais daforma mais conveniente aos seus interesses, graças às suas capacida-des de coerção, bem como ao consentimento generalizado provoca-do, mesmo entre aqueles que não (ou pouco) se beneficiam.

Cox (idem) procura entender as ordens mundiais como estruturashistóricas compostas por três categorias de forças: capacidades ma-teriais, idéias e instituições. As capacidades materiais dizem respeitoà esfera econômica da estrutura social. Como tal, incluem o potencialtecnológico e organizacional; portanto, denotam não somente comoqualquer sociedade se reproduz em sua base material, mas também amaneira como essa reprodução é planejada, antecipada.

A esfera ideológica subdivide-se em duas partes. Por um lado, en-contramos o conceito de significados intersubjetivos, que afetam aconservação de hábitos e subsidiam expectativas quanto ao compor-tamento social. Cox (idem) afirma que Estados são exemplos notóri-os na política mundial, uma vez que representam formas generaliza-das de comunidade política. Por outro lado, encontramos as imagenscoletivas da ordem social. Em sua essência, constituem juízos diver-sos sobre os significados de justiça e dos bens públicos, sobre a legiti-midade das relações de poder presentemente cultivadas. O choque deposições adversárias representa a possibilidade da mudança, o po-tencial para a produção de uma ordem alternativa. Enquanto signifi-

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cados intersubjetivos tendem a ser largamente generalizados emdado contexto histórico, as imagens coletivas são significativamentemais numerosas e divergentes.

As instituições são fundamentais. Segundo Cox (idem), desempe-nham função vital na estabilização e perpetuação de uma ordem par-ticular. Originalmente, tendem a reforçar as relações de poder esta-belecidas, cultivando imagens coletivas compatíveis. Contudo, nodecorrer do tempo, imagens coletivas rivais ou até instituições con-correntes podem ser criadas e lançadas. As instituições refletem, porconseguinte, uma combinação específica de idéias e poder material,entretanto, podem também transcender a ordem original e influenci-ar o desenvolvimento de novas idéias e capacidades materiais.

Essa posição se clarifica quando se aplicam as estruturas históricas atrês níveis: formas de Estado, forças sociais e ordens mundiais. Exa-minemos as implicações conseqüentes. A interação dos três níveisproíbe qualquer hierarquia determinada a priori das relações. Alémdo mais, cada nível é o resultado da luta entre estruturas rivais.

O nível inicial abrange os complexos Estado/sociedade. Chama-seatenção para as formas e estruturas de Estado que sociedades especí-ficas desenvolvem. A historicidade da forma de qualquer Estado éuma derivação da configuração particular das capacidades materiais,idéias e instituições, que é específica de um complexo Estado/socie-dade.

A organização da produção, em especial das forças sociais partici-pantes, constitui o segundo nível. À medida que evolui a produção,observamos transformações expressas na gênese, no fortalecimentoou no declínio de forças sociais específicas. Com a forma ainda do-minante de um capitalismo hiperliberal, em uma escala global, asforças sociais associadas à economia real em contraposição aos mer-cados financeiros (como sindicatos) têm sido enfraquecidas, em fa-vor do fortalecimento de investidores privados, por exemplo.

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Por fim, o terceiro nível é representado pelas ordens mundiais. Estasseriam a constituição precisa de forças que, em seqüência, determi-nam a maneira como os Estados interagem. Cada contexto históricoproduzirá uma configuração específica das forças sociais, dos Esta-dos, e da inter-relação entre eles que repercutirá como uma ordemmundial particular. A título de exemplo, tem havido bastante discus-são acerca de uma nova ordem mundial inaugurada pela resposta deGeorge W. Bush aos ataques de 11 de setembro de 2001, em referên-cia clara ao princípio da ação preventiva (Política Externa, 2002). Oimpacto gerado pela propagação desse conceito desencadeou a pers-pectiva de uma mudança fundamental nos padrões atualmente acei-táveis de conduta entre Estados.

Entre os três níveis, no entanto, não encontramos uma relação unili-near. Forças sociais transnacionais têm influenciado Estados pormeio da estrutura mundial, conforme evidenciado pelos reflexos docapitalismo expansivo do século XIX sobre o desenvolvimento deestruturas de Estado no centro e na periferia. A conformação conjun-tural das ordens mundiais é capaz de exercer influência sobre as for-mas que assumem os Estados. Em resposta à sensação de ameaça àexistência de um Estado soviético, marcado por uma ordem mundialhostil, surgiu o stalinismo. Já o complexo industrial-militar dos paí-ses centrais justificou sua ingerência sobre os demais, apoiado sobreum quadro conflituoso da ordem mundial de então. Este quadro seconfigurou nos países periféricos com a existência de um militaris-mo repressivo, sustentado pelo apoio externo do imperialismo, assimcomo por uma peculiar conjunção de forças sociais internas nessespaíses. Formas de Estado também afetam o desenvolvimento de for-ças sociais pelos tipos de dominação que exercem, por exemplo,avançando os interesses de uma classe, às expensas dos interesses deoutra.

Consideradas em separado, forças sociais, formas de Estado e ordensmundiais podem preliminarmente ser representadas como configu-

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rações específicas de capacidades materiais, idéias e instituições.Consideradas conjuntamente e, portanto, em direção a uma repre-sentação mais completa do processo histórico, cada uma conterá asdemais, assim como será objeto da transformação destas.

Não restam dúvidas de que o pensamento gramsciano em RelaçõesInternacionais encontrou terreno fértil para se reproduzir. Nota-seque a inspiração marxista dessa abordagem facilita a penetração detais idéias especialmente nos domínios da economia política interna-cional. Não se deve cometer o equívoco, contudo, de crer na restriçãodo alcance de Gramsci nas Relações Internacionais a questões clara-mente econômicas11.

Teoria Crítica Internacional

A teoria crítica internacional representa uma derivação do pensa-mento coxiano. Seu expoente cardeal, Andrew Linklater, tem suatrajetória acadêmica marcada por uma sintonia inicial com as idéiasde Cox e uma marcante evolução rumo a uma temática alternativa.

Para Devetak (1995), a tarefa da teoria crítica internacional, conso-ante Linklater (1996), seria fornecer uma teoria social da políticamundial. Trata-se do alargamento do escopo tradicional das Rela-ções Internacionais, não mais limitado por obsessões “estatocêntri-cas”. Em comunhão com as preocupações atinentes à transformaçãoda realidade social e política, essa corrente deve muito às tentativasde reconstrução do materialismo histórico, em particular ao trabalhode Jürgen Habermas.

Encontramos, novamente, paralelos com o intuito gramsciano de bus-car compreender melhor o papel que idéias, valores, ideologias, isto é,a superestrutura, desempenham na construção e manutenção das es-truturas sociais e políticas. A crítica intrínseca remete-nos a uma so-brevalorização da dimensão material e das forças de produção. Marx

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tendeu a imaginar a relação entre infra-estrutura e superestrutura demaneira automática, ao passo que Habermas (1993) procura entendera relevância das estruturas normativas, chegando a sugerir que a últi-ma se sobrepõe à primeira. Devetak (1995) decifra a questão comouma mudança paradigmática, do paradigma da produção e consciên-cia em direção ao paradigma da linguagem. Subjaz à transformação oesforço de diferenciar entre formas de racionalidade e o de compreen-der a racionalidade comunicativa (ou agir comunicativo), tendo emvista as formas da razão moral-prática na vida social.

Habermas (1993) propõe que o conhecimento guarda relação com aidéia de interesses. O interesse técnico procura entender e controlar omeio ambiente; o interesse prático guarda relação com entender ou-tros sujeitos; e o interesse emancipatório busca a mudança. Sua teo-ria da ação comunicativa é uma tentativa de combinar interesses prá-ticos e emancipatórios.

Para Habermas, a razão não existe dentro do indivíduo isolado. Elarequer o diálogo. Ele reforça a noção do sujeito como entidade racio-nal, mas condiciona o surgimento da racionalidade a um quadro, umacomunidade. Há normas constitutivas para o entendimento comuni-cativo que devem ser acatadas pelos sujeitos para surgir uma situaçãode “discurso ideal”.

Essa situação requer uma certa dose de tolerância no diálogo. Todosos participantes devem ter oportunidades iguais de participar. Devemexercer o direito de afirmar, defender ou questionar qualquer posiçãonormativa. Essa interação não deve ser impedida por papéis ativos oudiferenças de status. Além disso, os participantes devem se inspirarno desejo de atingir um consenso sobre a verdade das afirmações e avalidade das normas. Habermas não afirma prover uma prescriçãopara dilemas éticos. O agir comunicativo é mais um procedimento,em que a validação ocorre por meio de um processo de diálogo.

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A Linklater (1998) devemos o reconhecimento de ter introduzido eavançado as idéias de Habermas nas Relações Internacionais12. Seusesforços estão em sintonia com a defesa da noção de que a emancipa-ção no domínio internacional deva ser apreciada na forma da expan-são das barreiras morais entre comunidades políticas. A emancipa-ção constitui a perda de significado moral e ético das fronteiras dosEstados. O foco passa a ser as múltiplas formas de inclusão e exclu-são promovidas pela política mundial, dentre as quais se destaca oEstado enquanto comunidade moral. Linklater (idem) defende o uni-versalismo moral sem exclusão.

Esta pode ser compreendida de duas formas. Uma se refere àquilo deque se tenta evadir-se (participação, recursos) intencionalmente (dis-criminação visível) ou por meio das estruturas de poder ocultas,como os discursos que negam, escondem ou marginalizam a diferen-ça. Outro sentido entende exclusão como simplesmente o oposto dainclusão.

Segundo Linklater, um relato compreensivo sobre a política mundialrequer a análise e múltiplas formas de exclusão. O autor defende quea exclusão decorre de nós designarmos relevância moral a certas bar-reiras entre pessoas (tais como fronteiras nacionais, de gênero, deraça, de classe etc.).

A tarefa que temos adiante é (1) normativo-filosófica – refletir sobreos critérios que determinam a legitimidade dos modos de inclusão eexclusão –; (2) histórico-sociológica – examinar as origens, a repro-dução e potencial transformação das barreiras morais –; e (3) política– almejar atingir um equilíbrio justo entre o universal e o particular.

O argumento de Linklater (idem) é amplo e complexo, e não poderáser adequadamente resumido aqui. Está centrado no conceito de co-munidade, revendo a separação entre as posições comunitarista ecosmopolitista13 e a natureza das barreiras moralmente relevantes deinclusão e exclusão da comunidade.

Teoria Crítica em Relações Internacionais

271

Sua idéia de comunidade política adota a forma de uma comunidadedialógica: todos estão convidados a participar e qualquer posiçãomoral está propensa ao questionamento. Já que todos têm voz, e asregras dizem respeito somente ao procedimento e não ao conteúdodo diálogo, essa seria a forma mais adequada de determinar os me-lhores arranjos para a ordem social e de evitar a exclusão enquanto secelebra a diferença. O diálogo, dessa forma, expressa um valor por sisó, e seu objetivo é estabelecer o consenso. Está claro que estamos di-ante de uma noção habermasiana de diálogo ou de ética do discurso.

Linklater (1998) acredita que o problema não é universalismo em si,mas as versões em que se supõe que a razão individual possa desco-brir um ponto de vista arquimediano que transcende as distorções elimitações do tempo e do espaço. É possível uma moralidade reflexi-va que reconhece (1) que a construção da identidade requer que seevite a representação negativa dos outros e (2) que o direito à autode-terminação comunitária há de ser exercido de maneiras que aceite oprincípio moral cosmopolita segundo o qual é legítimo que estrangei-ros também reivindiquem bem-estar. A universalidade passa a ter aforma de responsabilidade de engajamento com outros indivíduos(independente de suas características raciais ou nacionais) em umdiálogo aberto sobre assuntos que comprometem seu bem-estar. Aquestão para Linklater (idem), portanto, não é que a exclusão deixas-se de existir, mas que, por meio do diálogo, a comunidade decidiriasobre como e quem excluir ou incluir, por dar uma voz a todos. A ex-clusão não seria “injusta”, mas legitimada. Adiante, comunidades di-alógicas assim concebidas seriam, por definição, sempre abertas edispostas à expansão para incluir mais estrangeiros, e de fato seriasua responsabilidade incluí-los, sempre que envolvesse o bem-estardesses. Isso implicaria que as fronteiras não seriam fixas porque nãomais teriam relevância moral, visto que a priori não haveria razãopara excluir ninguém.

O aspecto complicado do esforço admirável de Linklater (idem) é atentativa de reconciliar “a celebração da diferença” com um projeto

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universalista. Ele escreve abertamente a partir de uma perspectiva li-beral-democrática kantiana-hegeliana, o que gera sérios problemasem sua argumentação. Acreditamos que essas dificuldades tornamsuas idéias no final das contas incapazes de realizar sua tarefa. Semnos referirmos a todas as críticas a Linklater (seu viés União Euro-péia e a ausência de indicações quanto à institucionalização dos ar-ranjos políticos pós-westfaliano), alguns problemas são relevantes ànossa argumentação.

Primeiro, a dimensão do poder – a noção de comunidade dialógicalevanta questões do tipo: e se não houver consenso dentro da comuni-dade? Quem terá a autoridade de arbitrar a decisão a ser tomada?Quem definirá as regras do jogo? Parece que a comunidade dialógicade Linklater (idem) está aberta apenas àqueles que aceitam as regrasdo jogo. Que todos irão aceitá-las é uma questão à parte. Sua visãoprocedimental sobre a ética obscurece as relações de poder existen-tes entre os participantes. Como seria uma esfera pública aberta, li-vre, não-manipulada? Como seria o acesso? Seria possível?

Em segundo lugar, a visão habermasiana de Linklater (idem) parte dopressuposto de que as metas e valores das pessoas não seriam funda-mentalmente incompatíveis, em outras palavras, que somos todos es-sencialmente “iguais”, na verdade. Essa é uma visão particularmenteliberal. Considera, também, o indivíduo pré-social, abstraído de to-dos os “outros” aspectos, como a cultura. No entanto, a cultura nãopode ser usada como vestimenta, a ser descartada a qualquer momen-to. Nossos discursos (raciocínio, linguagem) são eles próprios cultu-ralmente situados e constituídos – assim como os de Linklater(idem).

Análise

Fica evidente que não se deve menosprezar a força do impacto queteóricos críticos causaram nas Relações Internacionais, estenden-do-se à economia política internacional. Essa repercussão, como vi-

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mos, fundamenta-se sobre uma visão inovadora das discussões epis-temológicas no âmbito das Relações Internacionais. Contudo, houvequem recebeu a teoria crítica e sua vertente neogramsciana com me-nos entusiasmo. Se não, vejamos os argumentos.

Um dos traços que mereceu censura diz respeito ao pessimismo queteóricos críticos, em geral, têm demonstrado no que diz respeito aosagentes da transformação social pretendida, particularmente quandose trata de organizações não-governamentais (ONGs) e intergover-namentais (OIGs).

De maneira semelhante, há críticas imbuídas de excesso de otimis-mo, ou de utopia, quanto à mudança estrutural tão preconizada.

Observamos um curioso paradoxo no que se refere ao Estado. Hádesde aqueles que consideram os teóricos críticos por demais obce-cados pelos Estados, o que constitui o já citado “estadocentrismo”,até aqueles que diagnosticam a ausência de uma atenção apropriadaao Estado.

O tema da globalização trouxe à tona as contribuições singulares dosneogramscianos para a economia política internacional. Nesse caso,trata-se da crítica quanto à despersonalização dos fenômenos. Taisautores preferem enxergá-la como um processo conduzido por al-guns Estados.

Em suas discussões, autores contemporâneos descendentes das tra-dições marxistas, principalmente aqueles que têm devotado atençãoàs problemáticas da identidade, aliados aos antropólogos, quei-xam-se da subestimação das forças culturais, em favor de um reduci-onismo fundado sobre a produção, sobre o materialismo.

O neogramscianismo14 pressupõe que haja uma “verdadeira cons-ciência”, ou interesses objetivamente identificáveis. Este postuladose encontra presente até mesmo na divisão epistemológica da teoria

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crítica, ao assegurar que não é possível conhecer a realidade a não serpor um conjunto específico de valores. Segundo Griffiths (2004), aeleição da emancipação enquanto valor supremo acaba exigindouma verdadeira conscientização – sem que indivíduos estejam cons-cientes da opressão, não poderão ser emancipados. Não seria tarefasingela, tampouco aberta às interpretações subjetivas, ao relativis-mo, revelar as forças sociais e materiais que evitam que indivíduosalcancem seus interesses reais. Ainda consoante Griffiths (idem),essa posição assevera uma identificação da teoria crítica com o posi-tivismo epistemológico, posição esta que diverge do refletivismo co-mumente identificado por outros autores na teoria crítica.

Conclusão

Como reflexões finais, convém ressaltar o êxito obtido pela teoriacrítica, em suas diversas abordagens aqui apresentadas.

Preliminarmente, cabe rememorar os impactos profundos sobre asdiscussões teóricas em Relações Internacionais que podem ser iden-tificados como tendo origem nas indagações apresentadas por Ro-bert Cox (1995a; 1995b; 2000). Esse ponto não deve ser menospre-zado. Se hoje há um vibrante debate metateórico, para o regozijo dealguns e tristeza de outros, isso se deve em grande parte aos teóricoscríticos e às perspectivas teóricas que se aproveitaram das questõespropostas. Entendemos que a teoria crítica representa uma guinadaimportante, em uma nova direção, diante da encruzilhada em que seencontrava o campo de estudos no início dos anos 1980.

Outra implicação observada remonta à diversificação do escopo teó-rico das Relações Internacionais, que expandiu significativamenteseus horizontes, conduzindo tal escopo rumo a novas conceituaçõesdos fenômenos da política mundial. Expuseram-se as limitaçõesepistemológicas das tradições de pensamento convencionais das Re-lações Internacionais. Diversas abordagens mais recentes podem,

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por conseguinte, ter suas origens identificadas na teoria crítica, comoa teoria normativa, o pós-modernismo, algumas correntes do femi-nismo, o construtivismo, e daí por diante.

Há outros pontos importantes a serem ressaltados nessa análise sobreas realizações da teoria crítica. Linklater (1996) aponta-nos quatroprincipais. Uma se atém aos desafios impostos ao positivismo episte-mológico (racionalismo), uma vez que para a teoria crítica o conheci-mento não surge do engajamento neutro do sujeito com uma realida-de objetiva; ao contrário, reflete propósitos e interesses sociais pree-xistentes.

A segunda grande realização seria a contestação da posição segundoa qual as estruturas sociais atuais são imutáveis, já que essa noçãosustenta as iniqüidades estruturais de poder e riqueza que são porprincípio alteráveis. A preocupação recorrente com a emancipaçãonas diversas correntes vistas aqui se sustenta sobre uma concepçãoque deve apreciar a possibilidade de transformação da ordem social,a despeito daquela posição epistemológica que defende uma posiçãomuito mais contemplativa.

É inegável, por outro lado, a influência do marxismo sobre a teoriacrítica. Esta representa uma tentativa de superação de debilidadesinerentes àquela ao rejeitar que a luta de classes é a forma fundamen-tal de exclusão social, e que a produção é o determinante fundamen-tal da sociedade e da história.

As vertentes mais recentes, particularmente o que chamamos de teo-ria crítica internacional, julgam arranjos sociais pela sua capacidadede abraçar diálogos abertos com todos e visualizar novas formas decomunidade política que rejeitam a exclusão injustificada. Essa é aquarta grande realização da teoria crítica segundo Linklater (1998).

Por fim, cabe afirmar que, consoante o nosso entendimento, não esta-mos diante de abordagens que poderão ser nitidamente classificadas

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dentro da epistemologia pós-positivista. Aqui há um largo e (panta-noso) terreno para debate. Pelo que entendemos, a teoria crítica podeser acusada consistentemente de carregar características híbridas15.Se, por um lado, é responsável pela incorporação do refletivismo, daincerteza sobre o alcance da racionalidade, por outro, a teoria críticanão leva essa intenção adiante. Afinal, se teorias servem a alguém e aalgum propósito, como sustentar a defesa pela emancipação? Se háuma posição normativa da teoria crítica rejeitando a ordem socialatual, como pode afirmar que a ordem almejada seria “melhor”? Atarefa caberá ao pós-modernismo em Relações Internacionais, ver-tente essa que produzirá uma censura consistente sobre os limites au-to-impostos da teoria crítica.

Notas

1. Essa proposição é particularmente verdadeira nas academias européias,principalmente na britânica, e encontra-se respaldada em Burchill e Linklater(1996) e Smith e Booth (1996). Na academia brasileira das Relações Internacio-nais, há que se registrar o louvável esforço de Rocha (2002).

2. Trata-se de um episódio relatado por Tucídides (2002) em que a dominado-ra Atenas pretendia tomar a pequena ilha de Melos, suscitando uma discussãoentre ambas as cidades acerca do poder versus a moralidade nas relações entrecomunidades políticas.

3. Seguramente um dos artigos mais citados em textos desde sua publicaçãoem 1981. O artigo é mais conhecido por ser encontrado em Keohane (1986).

4. Para um exímio relato da proximidade (quase promíscua) entre as discipli-nas científicas e o Estado, sua gênese e sua institucionalização, ver Wallerstein(1996), sobretudo o capítulo primeiro.

5. Como tantas outras questões, também é motivo de debate nesse campo deestudo. Para os britânicos, deu-se com a criação da cadeira Woodrow Wilson naUniversidade de Gales em Aberystwyth, no curso de Direito Internacional, em1919.

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6. Raymond Aron curiosamente fica às margens dessa caracterização. Isso,contudo, não invalida a proposição. Não se trata de estabelecer uma lei univer-sal. Podemos expandir a proposição para incluir Estados-nação centrais, masnão hegemônicos, sem prejuízo para a validade da proposição (Griffiths, 2004).

7. Aqui, a tentativa de encontrar falhas torna-se mais custosa. No sentido estri-to do dependentismo, não parece haver significativa contribuição de autores quenão fossem de países não-centrais: Teotônio dos Santos, Celso Furtado, RaulPrebisch, Caio Prado Jr., Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faletto, AndréGunder Frank, Said Amin, Giovanni Arrighi – todos tiveram seus nomes associ-ados a essa corrente (Silva, 2002).

8. Tradução minha.

9. Maquiavel já o sugeriu com a analogia ao centauro (metade homem, meta-de fera).

10. Para Craig Murphy (1990:25-46), isso não tem acontecido. Pelo contrá-rio, haveria um bloco histórico conservando a dominância em escala global,possivelmente composta por uma classe dirigente “atlântica” ou “trilateral”, porclasses subordinadas no interior de Estados industrializados e por classes diri-gentes nos países em desenvolvimento. Em outro trabalho, Murphy (1994) ex-plora as repercussões da escolha de uma análise gramsciana sobre o tema da or-ganização e governabilidade internacionais, apontando a influência de idéias evalores consolidados nas organizações institucionais e internacionais, visandoo bom funcionamento da economia política global.

11. Serve como exemplo a aplicação do neogramscianismo na temática da se-gurança internacional (Lamazière, 1998).

12. O próprio Habermas (1993) tem dedicado atenção crescente ao universodas relações internacionais, fazendo-o, porém, a partir de uma perspectiva quetende a empobrecer e restringir por demais o alcance de suas idéias. A porta deentrada de Habermas nos domínios da política internacional tem sido a noção daconstrução de consensos por meio da firmação de tratados e convenções entreEstados.

13. Trata-se da divisão doutrinária dentro da chamada teoria normativa emRelações Internacionais. Ver Hoffman (1994) e Frost (1994).

14. O dilema remete inclusive à noção de “consciência de classe” marxiana.Como verificar se essa consciência se encontra presente?

15. Há quem afirme que tal hibridismo é compartilhado pelo construtivismosocial. Para um exame aprofundado da matéria e suas implicações para as Rela-ções Internacionais, ver novamente Rocha (2002).

Marco Antonio de Meneses Silva

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Resumo

Teoria Crítica em RelaçõesInternacionais

Este artigo tem por objetivo apresentar a tradição da teoria crítica em Rela-ções Internacionais. Entende-se que haja uma lacuna nos debates teóricoscom a reduzida atenção dedicada a essa tradição no Brasil. O revigora-mento dos debates teóricos contribui para o enfraquecimento das tradi-ções teóricas convencionais. O papel da teoria crítica nessa tendência éprimordial. A teoria crítica da Escola de Frankfurt é examinada como pre-cursora filosófica e metateórica da teoria crítica em Relações Internacio-nais. Em seguida, as bases epistemológicas dos desafios da teoria críticaàs teorias convencionais são apresentadas, com ênfase especial dedicadaao trabalho de Robert W. Cox. O pensamento neogramsciano é inspecio-nado à luz da busca pela transformação social nas relações internacionais.A vertente da teoria crítica internacional é vista como fonte de inspiraçãopara muitos autores que trabalham com a emancipação. Examina-se a pro-dução de Andrew Linklater por representar a busca por transformação dascomunidades políticas por meio da expansão de suas fronteiras morais.Em seguida, busca-se uma avaliação crítica dos impactos trazidos pela te-oria crítica ao campo de estudos das Relações Internacionais. Conclui-seque a teoria crítica tem méritos na guinada das discussões teóricas em dire-ção a questionamentos ontológicos e epistemológicos, debate esse quetem caracterizado esse campo de estudo nas últimas décadas, por meio daexposição das limitações conseqüentes do domínio das teorias convencio-

Teoria Crítica em Relações Internacionais

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nais. Não obstante, a associação da teoria crítica ao pós-positivismo epis-temológico constitui atitude premeditada.

Palavras-chave: Teoria das Relações Internacionais – Teoria Crítica –Escola de Frankfurt – Gramsci

Abstract

Critical Theory in InternationalRelations

This article aims to present Critical Theory in International Relations. It isunderstood that there has been a lacuna in theoretical debates with littleattention paid to this tradition in Brazil. The current revival in theoreticaldiscussions contributes to the weakening of conventional theories. The roleof Critical Theory in this trend is fundamental. Frankfurt School CriticalTheory is examined as a philosophical and metatheoretical forerunner to itsInternational Relations’ counterpart. There follows the epistemologicalbases for the challenges Critical Theory poses to conventional approaches,with particular regard to the work of Robert W. Cox. Neo-Gramscianthought is thus in the light of concerns for social transformation inInternational Relations. The Critical International Theory perspective issubsequently scrutinized as a source for emancipatory concerns of IRscholars. The work of Andrew Linklater is presented due to the search forthe transformation of political communities by way of the expansion ofmoral boundaries. A critical assessment of the impacts of Critical Theory tothe field of International Relations is thus presented. This article concludesthat Critical Theory is largely accountable for the turn towards theontological and epistemological issues that have distinguished this field ofstudy within the last few decades, by exposing the consequentialshortcomings of the predominant conventional theoretical approaches.However, Critical Theory is deliberately associated to post-positivistepistemologies.

Key words: International Relations Theory – Critical Theory – FrankfurtSchool – Gramsci

Marco Antonio de Meneses Silva

282 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Introdução

Em 6 de abril de 1994, o avião que trazia os presidentes JuvenalHabyarimana e Cyprien Ntaryamira, de Ruanda e Burundi respecti-vamente, foi misteriosamente derrubado. As autoridades voltavamde um encontro em Dar es Salaam (Tanzânia) sobre a formação dogoverno de transição em Ruanda. Os eventos imediatamente poste-riores ao desastre foram prontamente classificados pela imprensa in-ternacional, pelas Nações Unidas e pelas próprias partes em conflitocomo um retorno à guerra civil iniciada em 1o de outubro de 1990. O

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*Artigo recebido e aceito para publicação em outubro de 2005.**Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universida-de Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio) e professora do IRI/PUC-Rio.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 411-463.

Além do Ocidente,além do Estado emuito além da Moral:Por uma PolíticaEticamenteResponsável emRelação à Diferença –O Caso Ruandês*Ana Cristina Araújo Alves**

episódio também é relatado dessa forma pelas principais narrativasacadêmicas contemporâneas sobre Ruanda1. Em retrospecto, sa-be-se que simultaneamente à guerra civil, ou como estopim da mes-ma, um genocídio foi colocado em marcha, resultando em centenasde milhares de mortes.

O genocídio ruandês de 1994, além de ofender profundamente aconsciência da humanidade pelo caráter, dimensão e velocidade dasatrocidades cometidas, também engendrou uma crise humanitáriaregional de escala sem precedentes. Suas conseqüências não se limi-taram ao quase um milhão de vítimas diretas. Juntamente com a lutaentre a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) e as Forças Armadas Ruan-desas (FAR), a violência genocida forçou a fuga de cerca de 250 milruandeses para a Tanzânia e de quase 2 milhões de ruandeses paracampos de refugiados no Zaire e na zona francesa protegida pelaOperação Turquesa (Jones, 1995:244; 2001:136-137)2.

O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise da decisão daOrganização das Nações Unidas (ONU) tomada em 21 de abril de1994 sobre o estabelecimento da Unamir3 como resposta à violênciaem Ruanda naquele momento. A ênfase recai sobre a avaliação daresponsabilidade ética da organização, à luz da rearticulação radicaldos conceitos de ética, responsabilidade e subjetividade proposta porEmmanuel Levinas (1999). Buscaremos as implicações dessa deci-são em termos das conseqüências que ela permitiu – a saber, o geno-cídio ruandês, o prolongamento da violência possibilitado pela Ope-ração Turquesa e a reorganização do movimento genocida nos cam-pos de refugiados. Nesse sentido, a decisão da ONU de retirar a maio-ria de suas tropas do território ruandês, deixando apenas 270 peace-keepers com um mandato limitado à busca de um cessar-fogo entre ogoverno interino ruandês e a Frente Patriótica Ruandesa, mesmo queembasada e justificada pelos critérios de peacekeeping, não constituiuuma atitude responsável, tampouco ética.

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Além disso, trataremos de um outro aspecto, mais profundo, quesubjaz as condições permissivas dessas trágicas conseqüências: a do-minação do princípio do Estado-territorial-soberano na imaginaçãopolítica contemporânea. Nosso argumento é de que as rijas fronteirasentre dentro/fora, Estado/campo de refugiados, doméstico/internaci-onal derivadas deste princípio impuseram também uma comparti-mentalização na seara da formulação de políticas para lidar com acrise humanitária que se seguiu ao genocídio. Essa forma fragmenta-da de lidar com um problema complexo e multifacetado, por sua vez,resultou em políticas que distorceram as prioridades, minaram a efe-tividade dos programas de assistências e alienaram o novo governoinstalado (Khan, 2000:174). Destarte, o fracasso em Ruanda diz res-peito não apenas à premência da necessidade da reaproximação entreética e relações internacionais, no sentido da formulação de políticaseticamente responsáveis em relação ao Outro. Esse triste evento tam-bém demanda que se repensem as próprias fundações da teorizaçãoem relações internacionais, em termos de suas implicações para aprática política.

Este artigo se desenvolve em torno de dois grandes temas. O primeirodiz respeito à compreensão da ONU sobre a situação ruandesa após ainvasão da FPR. Isso pode ser avaliado por meio do status e compe-tência atribuídos à Unamir, como descritos no mandato pelo qual amissão foi instituída, bem como nas demais resoluções da ONU e re-latórios do secretário-geral sobre o assunto. A forma como a ONUidentificou e classificou a situação ruandesa foi determinante para aescolha das políticas sobre esse conflito. A partir daí, podemos fazeruma consideração sobre as conseqüências da adoção de um tipo desuposição em detrimento de outros, inclusive em termos da possibili-dade de responsabilidade ética em relação à alteridade.

O segundo tema refere-se às intervenções humanitárias iniciadasapós o genocídio ruandês. Na forma como foram implementadas, es-tas intervenções: (a) negligenciaram as vítimas do genocídio, (b) não

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distinguiram entre génocidaires e refugiados e (c) com isso permiti-ram a reorganização política e militar dos perpetradores do genocí-dio. Nosso argumento é de que essas conseqüências são reflexos doprincípio do Estado-territorial-soberano sobre o qual essas interven-ções foram concebidas. Ao associar território e identidade, esse prin-cípio converteu automaticamente todos os indivíduos identificadoscomo “tutsis” em “vencedores” da guerra civil ruandesa e todosaqueles identificados como hútus refugiados em países vizinhos em“perdedores”, “perseguidos” e necessitados de socorro. O princípioda territorialidade impediu que a ajuda humanitária pudesse ser tam-bém dirigida aos tutsis sobreviventes do genocídio, por estarem sobos auspícios do novo – e falido – governo ruandês.

Para cumprir os objetivos traçados, discutiremos em primeiro lugar oarcabouço teórico que nos permite lançar esse novo olhar sobre oconflito e o genocídio ruandês. Em seguida, procederemos à análiseda postura internacional em relação a Ruanda nos meses prévios aogenocídio. Buscaremos inferir como a visão que a comunidade inter-nacional tinha de Ruanda, somada aos critérios de peacekeeping, re-sultaram na decisão de 21 de abril, bem como no estabelecimento dascausas permissivas para o genocídio. Finalmente, apresentaremosnossas conclusões sobre o caso.

Pós-modernismo,

Pós-estruturalismo,

Responsabilidade,

Subjetividade e Ética

Os objetivos acima delineados requerem o manuseio de dois arca-bouços teóricos que, à primeira vista, podem parecer incompatíveis:a abordagem pós-moderna/pós-estruturalista em relações internaci-onais (RI) e a rearticulação radical entre ética, subjetividade e res-ponsabilidade proposta por Emmanuel Levinas (1999). Por um lado,o pensamento pós-moderno/pós-estruturalista diz respeito ao questi-

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onamento de qualquer fundação segura e universal como critério

para julgar argumentos de verdade. Por outro, a proposta de Levinas

é marcadamente normativa, trazendo em si, ou constituindo-se ela

mesma, um tipo ideal de relação Eu/Outro. Cabe, portanto, a essa se-

ção apresentar ambos os arcabouços, evidenciando sua utilidade na

busca dos objetivos aqui propostos, além de demonstrar sua compa-

tibilidade e complementaridade.

Dentro da vasta e diversificada literatura pós-moderna/pós-estrutu-

ralista, destacam-se duas de suas contribuições correlatas mais rele-

vantes na seara deste artigo: o questionamento das fronteiras disci-

plinares e o conseqüente desafio ao princípio do Estado-territorial-

soberano como definidor das relações internacionais4. Segundo Rob

Walker (1993), o cerceamento da imaginação política contemporâ-

nea deriva do estabelecimento do princípio do Estado soberano

como marco e limite espaço-temporal da comunidade política. O

Estado-territorial-soberano, criado como uma resolução espa-

ço-temporal historicamente específica, foi convertido em uma cate-

goria ontológica que informa os lugares possíveis da política e, por

conseguinte, da ética. Nesse sentido, Walker (idem) afirma que as te-

orias modernas de RI podem (e devem) ser lidas como expressões de

uma compreensão historicamente específica do caráter e da localiza-

ção da vida política.

Espacialmente, o princípio do Estado soberano fixa uma clara de-

marcação: a comunidade política só é possível dentro do Estado. As

relações entre os Estados são consideradas necessariamente “apolíti-

cas” e, portanto, “aéticas”. A resolução espacial permite um corolá-

rio temporal. Dentro dos Estados, a comunidade política progride

historicamente. Entre eles, a ausência de comunidade implica a im-

possibilidade de história como uma teleologia progressiva, e assim

há possibilidade de mera recorrência e repetição.

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Essa compreensão permitiu que emergisse uma falsa dicotomia entreteoria política e teoria internacional como reinos autônomos do co-nhecimento. Consoante Steve Smith (1995:9-10), o principal objeti-vo da disciplina de RI desde sua emergência tem sido o de estabele-cer-se como uma área separada de conhecimento, por meio da cria-ção de uma teoria própria de política internacional. Isso significa tra-tar a arena internacional como se fosse um domínio distinto das teori-as política e social, sem falar dos debates filosóficos e/ou morais. Oproblema desse tipo de raciocínio é que ele cria uma oposição entreteoria política e teoria internacional, cuja conseqüência é a “apoliti-zação” das RI. Assim, as RI passam a evitar questões de ordem políti-ca, tais como comunidade política, obrigação, liberdade, autonomia,entre outras. Como discursos sobre limites e perigos, sobre supostasfronteiras da possibilidade política no espaço e no tempo do Estadomoderno, as teorias de RI expressam e afirmam os horizontes neces-sários da imaginação política moderna (Walker, 1993:6).

Segundo Walker (idem), as profundas transformações espaço-tem-porais contemporâneas têm demandado formas alternativas de práti-cas políticas. Contudo, o autor afirma que alternativas convincentessão difíceis de ser encontradas devido ao profundo arraigamento doprincípio do Estado soberano no pensamento e na prática moderna.Ou seja, nossas compreensões das transformações contemporâneas edas práticas políticas alternativas permanecem presas dentro dos ho-rizontes discursivos que expressam as configurações espaço-tem-porais de outra era. Nesse sentido, a contenda não é sobre a presençaou ausência do Estado, mas sobre até que ponto o princípio do Estadosoberano oferece uma explicação plausível das práticas políticascontemporâneas. Ou seja, o que está em disputa não é o Estado, mas ocomplexo Estado-nação-autonomia como uma entidade reificadafundamental para a vida internacional. Destarte, o caminho apontadopelos autores pós-modernos para superar essa limitação é restituir ocaráter “político” às RI, considerá-las como um aspecto integral dateoria e prática política.

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Isso é possível devido à concepção alargada que a abordagempós-moderna/pós-estruturalista tem de prática. De acordo comAshley (1989:279-280), qualquer e toda prática é uma prática arbi-trária de poder e é, portanto, uma prática política. Posto que as rela-ções humanas em todos os níveis envolvem uma pessoa tentandocontrolar a conduta da outra, toda prática social se dá no contexto deuma relação de poder. Assim, o poder não está aqui ou ali, mas emtodo lugar, de maneira que a política também está em todo lugar.Dessa forma, é possível rechaçar a compreensão de que o Estado-ter-ritorial-soberano, convertido em uma categoria ontológica, informaos lugares possíveis da política e, por conseguinte, da ética. Nossacompreensão de política vai além do Estado e se estende a todas asáreas sociais.

Nesse sentido, o pós-estruturalismo é, por definição, uma perspecti-va enfaticamente política. No entanto, recusa-se a privilegiar qual-quer linha política. Seu discurso reconhece que todos os fundamen-tos são igualmente arbitrários, igualmente efeitos de tentativas de de-cidir o indecidível e igualmente sujeitos à incessante disputa política(idem:278-279). Dessa forma, o pós-estruturalismo não pretendeoferecer uma posição ou perspectiva alternativa porque não existefundação alternativa sobre a qual ele possa se estabelecer(idem:278). É por não privilegiar qualquer linha política que opós-estruturalismo oferece emancipação e liberação (Campbell eGeorge, 1990:280-281)5.

Assim, o pós-estruturalismo deve assumir sua feição política de for-ma persistente e aberta em sua teoria. Deve compreender que a práti-ca teórica é tão inescapavelmente política quanto qualquer outra prá-tica. Mesmo que não abertamente politizada, a prática teórica cons-trói significado, atribui poder e fixa limites a modos socialmente re-conhecidos de objetividade, subjetividade e conduta. É ainda umaprática arbitrária de poder pela qual a proliferação do significado édisciplinada e a estrutura narrativa é imposta à história (Ashley,

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1989:282). Portanto, a reivindicação pós-estruturalista por integri-dade teórica depende de sua prontidão em colocar em questão seupróprio ponto de vista subjetivo, sua competência para fazer teoria enão ideologia.

Destarte, se por um lado a restituição do caráter ético às relações in-ternacionais requer que nos orientemos por alguma concepção de éti-ca, por outro lado deve ficar claro que esse critério é apenas um entremuitos, derivado de um ponto de vista subjetivo, da necessária e ines-capável perspectiva da autora deste artigo em um tempo e espaço po-lítica e historicamente específicos. Assim, a leitura que será feita dopapel da ONU no genocídio ruandês será balizada por mais um mar-co: a inter-relação radical entre responsabilidade, subjetividade e éti-ca, inserida em uma condição de “alteridade infra-estrutural” (Levi-nas apud Campbell, 1994:460). Essa escolha tem duas implicaçõesno que se refere ao nosso juízo de valor sobre as questões analisadas.

Em primeiro lugar, entendemos que o Eu só existe mediante sua rela-ção de responsabilidade ética com o Outro. Nesse sentido, todas asrelações e formas de subjetividade devem ser pautadas e incessante-mente questionadas pela responsabilidade ética. Levinas (1999) en-tende que a origem do sujeito é sua própria sujeição ao Outro, umasujeição que precede consciência, identidade e liberdade. Não com-pete ao sujeito decidir colocar-se nessa posição. Seu ser é posto emquestão pela existência prévia do Outro. Sujeitos são constituídospor sua relação com o Outro, uma relação de interdependência radi-cal. Assim, na forma radical de Levinas repensar a ética e a responsa-bilidade, há uma responsabilidade inescapável que é anterior à pró-pria consciência do Eu e à sua capacidade de comunicação(idem:103).

Nesse contexto, a ética não é mais independente da subjetividade,como se fosse um conjunto de regras e regulamentos adotados porum agente pré-dado, autônomo; ela se torna indispensável ao próprio

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ser do sujeito. Dispensando a subjetividade idealizadora da ontolo-gia, que reduz tudo a si, a subjetividade ética é descentrada e se tornaum efeito da responsabilidade pelo Outro. A ética é então compreen-dida em termos da responsabilidade primária que firma nosso ser so-bre a afirmação de nosso direito de ser em relação ao Outro (Levinasapud Campbell, 1994:460). O homem não pode ser autonomamentelivre até que assuma sua responsabilidade por outro homem. Parado-xalmente, é qua alienus – estrangeiro e outro – que o homem não éalienado. Nesse sentido, não é possível que o Eu opte por não fazerparte de uma relação com o Outro, dizendo “não me diz respeito”. Aresponsabilidade pelo Outro é uma “não-escolha” singular.

Em segundo lugar, deve ficar claro que nossa proposta de apreciaçãoda diferença e da alteridade não implica uma aceitação imediata eacrítica da diferença simplesmente enquanto diferença. Esta devepassar pelo crivo da consideração de suas práticas em relação ao Ou-tro vis-à-vis a responsabilidade ética. Assim como é mister combatero fundamentalismo universalista que nega a alteridade e se dedica aconverter tudo mais em mesmice, opomo-nos abertamente à absolu-tização da diferença, isto é, à idéia de que todas as diferenças são boase dignas de preservação simplesmente por serem diferenças. O res-peito pela diferença nada tem a ver com indiferença, comnão-posicionamento, com não-questionamento (Bauman, 2003:74,96). O respeito pela diferença não deve ser despolitizado, muito pelocontrário. O conflito e a contestação são aspectos inerentes à ativida-de política. O que não deve fazer parte dela são as formas violentas deconflito e contestação. É necessário que a diferença seja abertamentepolitizada, para que não incorramos no risco do totalitarismo. Assu-mir um ethos crítico significa não se deixar levar pela balela de que orespeito se dá na ausência de relações de poder, inescapáveis a todasas práticas sociais.

Em face das questões levantadas até então, a pergunta a ser formula-da é: como um sujeito pode realizar suas práticas de au-

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to-representação sem impor ao Outro uma condição de inferiorida-de? É a qualidade de inferioridade do Outro inerente à hierarquiza-ção logocêntrica6 entre Eu e Outro que permite rotulá-lo, reduzi-loao “outro-como-objeto”, a um status de coisa, constituindo uma rela-ção Eu-Isso em detrimento de uma relação Eu-Tu7 (Levinas, 1999.Ver também Warner, 1996). Desumanizar o outro é o que sustentadiscursos e práticas de exclusão e aniquilação. E, estritamente relaci-onada à qualidade da relação Eu/Outro, coloca-se a questão da res-ponsabilidade ética: que tipos de relação entre identidade (Eu) e dife-rença (Outro) cumprem a promessa radical da responsabilidade éti-ca?

O desafio é, portanto, escolher estratégias políticas que contestem re-lações Eu-Isso em termos da responsabilidade pré-original que essasrelações diminuem. Segundo Campbell (1994), o modo como a rela-ção pré-original de Levinas pode ser transposta para um contexto deuma-a-muitos sem perder seu caráter de interdependência radical éviabilizado pela intervenção da responsabilidade heterônoma nos ar-gumentos sobre liberdade autônoma. Para Campbell, essa possibili-dade pode ser pensada por meio de Derrida (apud Campbell,1994:468): “A desconstrução é, em si, uma resposta positiva a umaalteridade que necessariamente a chama, coloca em questão ou moti-va. A desconstrução é portanto uma vocação – uma resposta a umchamado”.

Sobre as Modalidades de

Violência e a

Responsabilidade que Elas

Requerem

A resolução de conflitos, em primeiro lugar, depende da classifica-ção do problema, do que se trata aquilo com o que estamos querendolidar. Diferentes tipos de violência demandam diferentes respostas emedidas por parte de diferentes agentes responsáveis. Essa seara evi-

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dencia um dos pontos discutidos acima: a relação entre prática políti-ca e teoria – ou melhor, o caráter inerentemente prático da teoria.Consoante Steve Smith (1996), nossa racionalização do internacio-nal é em si constitutiva da prática internacional. A teoria internacio-nal é a base de edificação da prática internacional, não obstante ogrande hiato entre as questões levantadas pela teoria e a absorçãogradual dessas questões no debate político. Uma vez estabelecidascomo senso comum, as teorias tornam-se incrivelmente poderosas,posto que delineiam não apenas o que pode ser conhecido, mas tam-bém o que pode ser falado e sugerido. Em outras palavras, a teorianão se limita a definir as possibilidades explicativas. Seu impacto naprática é muito mais profundo, pois ao delimitar nossos horizonteséticos e práticos as teorias nos informam sobre as possibilidades deação humana (idem:13). Assim, ao divorciar ética de política, a teoriapromove uma compreensão das práticas internacionais pautada emuma “razão” isenta de preocupações morais e éticas (Smith,1995:2-3).

Nesse sentido, expor o caráter contestável dos pressupostos ontoló-gicos embutidos nas representações sobre o conflito e o genocídioruandês é muito mais do que um mero exercício teórico: é uma refle-xão e incursão sobre a prática. Esta seção versa sobre as implicaçõespráticas da caracterização ou nomenclatura conferida à violência emRuanda – isto é, as práticas discursivas de “guerra civil” e/ou “geno-cídio”. Essa classificação diz respeito não somente à ontologia da vi-olência, mas principalmente ao direcionamento de sua solução. Por-tanto, essa discussão visa a evidenciar como a compreensão sobre oconflito ruandês nos termos do princípio do Estado-territorial-sobe-rano delineia não apenas o que pode ser conhecido, mas também oque pode ser falado e sugerido. Destarte, o fio condutor desta seção éo argumento de que toda interpretação traz em si imperativos políti-cos, ou seja, as representações de um dado evento sugerem e delimi-tam as ações possíveis em resposta a ele.

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Conflitos – armados ou não – são parcialmente baseados em funda-ções intelectuais ou mapas mentais da história. Segundo CatharineNewbury (1998), que escreve sobre a região dos Grandes Lagos, es-sas fundações ou mapas geram visões distintas e concorrentes dopassado, adotadas pelas partes para legitimar suas demandas. É o quea autora chama de “política da história” (idem:7). Similarmente, JeanVansina (1998) afirma que as versões “históricas” dos conflitos exer-cem um impacto imediato na situação presente, posto que as partesenvolvidas citam essas versões para sustentar suas posições. Elasusam porções da historiografia escrita por autores respeitados paraderivar novas interpretações de fatos supostamentebem-estabelecidos, reforçando mitos políticos ubíquos e justifican-do assim suas ações (idem:37, 39). Não obstante as intenções de seusautores, as narrativas históricas podem ser alimentadoras dos confli-tos, sendo portanto constitutivas da realidade.

No que concerne à sociedade ruandesa, é ampla a literatura sobrecomo as histórias e mitos sobre a cultura e o povo ruandês moldaramas relações que constituíram as identidades tutsis e hútus, refugiados,rebeldes e governo, liberais e conservadores em Ruanda (ver New-bury, 1998; Newbury, 1997; Vansina, 1998; Malkki, 1995). No en-tanto, a forma como a cultura constitui as identidades dos atores éfreqüentemente negligenciada quando se trata da temática da inter-venção, especialmente da intervenção humanitária. Via de regra, ointerventor é apresentado como uma presença acabada, uma identi-dade estável e que, por estes predicados, é habilitado a prescrever eimplementar medidas destinadas a reordenar um conjunto complexode relações sociais e políticas. Supõe-se que o interventor possa serneutro, apolítico e possuir um conhecimento objetivo da situação.

Contudo, também os interventores têm uma perspectiva, contingenteno tempo e no espaço, que diz respeito ao que existe, ao seu status emrelação ao que existe, e às formas de ação que esse status requer e per-mite. É esse ponto de vista subjetivo que define como, quando e por

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que atores que se intitulam “externos” podem e/ou devem intervir noque eles compreendem ser essencialmente “um problema domésti-co”. Nesse sentido, o discurso cantado em prosa e verso sobre osprincípios de neutralidade, imparcialidade e consenso não nos devedeixar a impressão de que interventores descansam sobre um pontoarquimediano a partir do qual é possível aferir “a” verdade. É precisoentão pensar a relação entre ruandeses e atores externos como sendo,entre outras, uma relação de poder entre atores que existem indepen-dentemente, mas que têm suas identidades reproduzidas no curso desua interação.

Portanto, é necessário considerar as histórias sobre Ruanda comoparte do conhecimento socialmente compartilhado entre ruandeses einterventores e, nesse sentido, como algo que exerce uma influênciasobre as práticas desses atores – em relação ao outro e a eles mesmos.Assim, os mapas mentais sobre Ruanda que informaram as práticasde ruandeses e atores externos foram determinantes para o desfechodo conflito e do genocídio ruandês. As suposições ontológicas a res-peito do povo e da política em Ruanda fundamentaram a compreen-são intersubjetiva sobre o caráter do conflito, que por sua vez influen-ciou a compreensão da ONU sobre sua identidade e seu papel em re-lação aos ruandeses. Esse conjunto de concepções, juntamente comos critérios da ONU sobre intervenção e peacekeeping, excluiu auto-maticamente representações alternativas do evento e limitou o lequede ações cabíveis.

Definir a violência ruandesa como um caso de guerra civil, limpezaétnica ou genocídio diz respeito não somente às medidas apropriadaspara sua solução, mas envolve também a questão da responsabilida-de e da urgência para a ação. Uma das versões correntes sobre o temaafirma que os Estados Unidos e as Nações Unidas teriam deliberada-mente se recusado a admitir que um genocídio estivesse em marcha,a fim de evitar responsabilidades e custos – humanos e materiais(Des Forges, 1999; Des Forges e Kuperman, 2000; Uvin,

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2001:88-90). Sem negar essa possibilidade, acreditamos que a reso-lução 912 do Conselho de Segurança da ONU, de 21 de abril de 1994,vai muito além de um caso em que se teria optado por definir a situa-ção ruandesa da forma mais conveniente. A questão diz respeito tam-bém, e principalmente, à estrutura poder-saber dominante (Foucault,2004) e ao regime de verdade que ela constitui. A questão passa a serentão até que ponto os tomadores de decisão e oficiais da ONU real-mente acreditavam na lisura e legitimidade do que estavam fazendo.Devemos considerar o quanto as suposições ontológicas atribuídas aRuanda estão arraigadas no pensamento das partes envolvidas (ex-ternas e domésticas) de forma a inibir outras representações.

A forma como a história do genocídio de 1994 foi reproduzida influ-enciou grandemente as respostas dadas ao evento pelos atores envol-vidos (domésticos e externos). A concepção divulgada pelo governointerino ruandês, propalada por grande parte da mídia internacional eaceita pelas Nações Unidas era de que a violência em Ruanda erauma guerra civil decorrente de “ódios étnicos primordiais”8. “Pormais trágico que fosse, havia muito pouco que a comunidade interna-cional pudesse fazer quando grupos étnicos estavam determinados amatar um ao outro” (Barnett, 2002:105). Em face desse cenário, eorientadas pelos “princípios” de neutralidade, imparcialidade e con-senso, as autoridades internacionais optaram por reduzir a Unamirem vez de reforçá-la, e centenas de milhares de vidas foram perdidas.

Durante os três anos que precederam o genocídio, Ruanda foi vistacomo um caso de guerra civil de baixíssima intensidade, mitigada eremediada por esforços significativos (Jones, 2001:2-3). Poucos diasapós a invasão da FPR em 1o de outubro de 1990, o governo belga en-viou a Ruanda uma missão de paz composta pelo primeiro-ministro,o ministro das Relações Exteriores e o ministro da Defesa. O trio en-controu-se com o presidente Habyarimana em Nairobi, em 14 de ou-tubro. A comitiva belga fez visitas ao Quênia, Uganda, Tanzânia eOrganização da Unidade Africana (OUA), dando início a um proces-

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so regional para lidar com a crise ruandesa. Em junho de 1992, o go-verno ruandês concordou em iniciar negociações políticas abrangen-tes rumo a um acordo de paz. Os acordos de Arusha foram assinadospelo governo ruandês e pela FPR em 4 de agosto de 19939. Nas pala-vras de Jones (idem:2):

“A extraordinária ironia é que essa matança escalou a partir de umaguerra civil tão baixa em intensidade que ela escapou ao radar do mo-nitoramento internacional de conflitos. [...] Aliás, o número de mor-tes na guerra era tão baixo que o Stockholm International Peace Re-search Institute categorizava a luta como ‘disputa’”10.

No papel, a Declaração de Arusha resolvia as mais importantes ques-tões subjacentes ao conflito, tais como o direito dos refugiados de re-tornar a Ruanda e a integração das Forças Armadas. Parte da Decla-ração era um programa de implementação que previa o desdobramento da Unamir11, o estabelecimento do governo de transição e elei-ções multipartidárias a se realizarem no máximo até 1995 (Jones,1995:242-243). Em suma, Ruanda foi apresentada à ONU como umaoperação “fácil”: havia um cessar-fogo estável, um tratado de pazapoiado pelas partes, acordos que prometiam reconciliação nacional,democracia e a promessa de fazer dos ódios étnicos um legado dopassado (Barnett, 2002:69; Jones, 2001:109).

A Unamir foi instituída em resposta à demanda das partes contratan-tes da Declaração de Arusha por uma Força Neutra Internacional(FNI) que tivesse um papel ativo na implementação e monitoramentodos acordos. Os proponentes de Arusha esperavam que a FNI garan-tisse a segurança geral no país, provesse segurança para os civis, de-tectasse fluxos de armas e neutralizasse grupos armados (Barnett,2002:62). Por sua vez, a Unamir refletia um mandato extremamenterestrito, dentro do capítulo VI da Carta da ONU, com o uso de armasautorizado apenas para a autodefesa, mas que ainda assim fazia senti-do adiante da expectativa de que “seria uma operação fácil”. A reso-

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lução 872 adotada pelo Conselho de Segurança da ONU em 5 de ou-tubro de 1993 estabelecia a Unamir conforme o seguinte mandato(United Nations, 1993, 3o parágrafo):

“(a)contribuir para a segurança da cidade de Kigali inter alia dentro da zonalivre de armas estabelecida pelas partes em torno da cidade;

(b) monitorar a observação do acordo de cessar-fogo, que demanda o esta-belecimento de zonas de aquartelamento e reunião e a demarcação danova zona desmilitarizada e outros procedimentos de desmilitarização;

(c) monitorar a situação de segurança durante o período final do mandatodo governo de transição, rumo às eleições;

(d) assistir na limpeza de minas, primariamente mediante programas de ca-pacitação;

(e) investigar, por demanda das partes ou por iniciativa própria, casos desuposta não-observação das provisões do Acordo de Paz de Arusha re-lativos à integração das Forças Armadas, verificar quaisquer desses ca-sos com as partes responsáveis e relatá-los como apropriado ao secretá-rio-geral;

(f) monitorar o processo de repatriação dos refugiados ruandeses e o reas-sentamento de pessoas deslocadas para verificar se o processo está sen-do implementado de maneira segura e ordenada;

(g) assistir na coordenação de atividades de ajuda humanitária juntamentecom operações de socorro;

(h) investigar e relatar incidentes concernentes a atividades de gendarme-rie e polícia”.

Contrariamente às expectativas internacionais, houve uma contínuadeterioração da situação política e de segurança em Ruanda desde aassinatura dos acordos de Arusha. Em retrospecto, vários autores sa-lientam a polarização da política ruandesa, a demonização da FPR eo repúdio a Arusha como sendo as dinâmicas que pavimentaram ocaminho para o genocídio ruandês (Jones, 2001:103, 111-113; Bar-nett , 2002:74-77; Mamdani, 2001:215-218; Hintjens,1999:259-267; Lemarchand, 1999:20-21). Em 30 de março de 1994,o contexto doméstico ruandês era descrito por Boutros Bou-tros-Ghali da seguinte forma:

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“Apesar do fato de o governo ruandês e a Frente Patriótica Ruandesa (FPR)haverem concordado em Kinihira em 10 de dezembro de 1993 em estabele-cer o governo de transição e a Assembléia Nacional de Transição antes de 31de dezembro, isso não ocorreu como resultado da incapacidade das partesem questão de concordar sobre modalidades relevantes, incluindo as listasdos membros do governo de transição e da Assembléia Nacional de Transi-ção. [...] O prolongado atraso em estabelecer as instituições de transição temnão apenas impedido a Unamir de realizar suas tarefas de acordo com aagenda de implementação aprovada pelo Conselho de Segurança, comotambém contribuído para a deterioração da situação de segurança no país ecolocado uma ameaça ao processo de paz” (United Nations, 1994a, pará-grafos 6-9).

Segundo o secretário-geral, o estabelecimento das instituições detransição agendado para 22 de fevereiro de 1994 não foi realizado“como resultado de um estouro repentino de violência em Kigali eem outras regiões do país, começando em 21 de fevereiro” (idem, pa-rágrafo 13, ênfase no original)12. O relatório continua da seguinteforma:

“Apesar das crescentes tensões e insegurança engendradas pelo impasse po-lítico descrito acima, o cessar-fogo, em termos gerais, pareceu vigorar du-rante o período sob revisão. [...] Devido em parte ao continuado impasse po-lítico, o período sob revisão tem visto uma deterioração rápida e dramáticana situação de segurança em Kigali. Em janeiro e fevereiro, foram vistascrescentes demonstrações de violência, bloqueios rodoviários, assassinatosde líderes políticos, assaltos e assassinatos de civis [...]. Enquanto a maiorparte dos incidentes pode ser atribuída a roubos e à violência armada, quetêm crescido como um resultado da pronta disponibilidade de armas, crimesde motivação étnica e política, incluindo assassinatos políticos, tambémtêm aumentado” (idem, parágrafos 23-36).

As passagens acima retratam a violência como um caso de desordemcivil, sendo sua causa atribuída ao impasse político decorrente doatraso em estabelecer as instituições de transição. A solução prescri-ta pelo secretário-geral, e corroborada pelo Conselho de Segurançana resolução 909 de 5 de abril de 1994, era o retorno às metas de im-

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plementação de Arusha, como garantia da permanência da Unamirem território ruandês.

“Como eu [Boutros Boutros-Ghali] tenho declarado, o apoio contínuo daUnamir depende da plena e rápida implementação do acordo de paz deArusha pelas partes. A presença das Nações Unidas pode ser justificadaapenas se as partes mostrarem a vontade política necessária para se subme-terem a seus compromissos e implementarem o acordo” (idem, parágrafo47).

“[O Conselho de Segurança] decide estender o mandato da Unamir até 29de julho de 1994 [...] [e] relembra no entanto que o contínuo apoio para aUnamir, incluindo a provisão de 45 monitores adicionais da polícia civil,como descrito no parágrafo 38 do relatório do secretário-geral, dependeráda plena e pronta implementação do Acordo de Paz de Arusha pelas partes”(United Nations, 1994b, parágrafos 2 e 5).

Em 5 de abril, o Conselho de Segurança contemplava uma Ruandaque passava por problemas, mas ainda parecia estar comprometidacom o processo de paz, respeitadora do cessar-fogo e fazendo algumprogresso em direção à implementação de um governo de transição.Em 7 de abril, o retrato de Ruanda havia sido invertido. Sabemos emretrospecto que concomitantemente à guerra civil ocorria uma carni-ficina dantesca que mais tarde veio a ser oficialmente chamada de“genocídio”13.

O genocídio estava longe de ser a única leitura possível dos eventosiniciados em meados de abril de 1994; aliás, era a menos cogitada de-las. Vários autores insistem que a questão crítica no que concerne aRuanda foi o fracasso da comunidade internacional em distinguir en-tre a guerra civil e o genocídio e que, nesse sentido, o ponto crucial ése teria sido possível prever o planejamento do genocídio (Khan,2000:196-197; Hintjens, 1999; Des Forges e Kuperman, 2000; DesForges, 1999). Contudo, mesmo que ambíguos, alguns sinais não po-deriam ter sido ignorados, tais como os faxes e telefonemas do gene-ral Romeo Dallaire (principalmente o controverso fax de 11 de janei-ro), a descoberta de depósitos de armas; os relatórios dos informan-

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tes, as transmissões de rádio e os avisos belgas, culminando na retira-da das tropas belgas em 12 de abril. Segundo Barnett (2002), mesmoque o fax de 11 de janeiro deixasse inúmeras dúvidas quanto à proba-bilidade e a natureza da violência que se seguiria, os dois telefone-mas diários de Dallaire ao Departamento de Operações de Peacekee-ping (DPKO) proviam uma descrição meticulosa e detalhada da vio-lência. Esses comunicados caracterizavam a violência como limpezaétnica “em sua forma mais sinistra” (idem:109, 160).

A Bélgica foi o único membro do grupo de contato que decidiu que asnovas informações contidas no fax de 11 de janeiro e a crescente in-segurança requeriam uma presença militar mais forte (idem:89). Em11 de fevereiro, o ministro do Exterior belga avisou ao secretá-rio-geral da ONU que a situação em Ruanda passava por um impassee poderia resultar em nova violência (Jones, 2001:114). A Bélgica,que já vinha pedindo um contingente maior havia alguns meses, rea-giu à morte de Habyarimana e às primeiras mortes civis pedindo re-forços. Em 8 de abril, um dia depois de saber que havia perdido dezsoldados, o gabinete belga decidiu que retiraria seu contingente se omandato da Unamir não fosse aumentado e reforçado por tropas nãobelgas. Não sendo atendida, a Bélgica notificou formalmente o se-cretário-geral sobre a retirada de suas tropas em 12 de abril (Barnett,2002:104).

Os sinais eram poucos e chegaram tarde, no começo de 1994, masainda assim não deixavam de ser perturbadores. É consenso entre al-guns analistas que esses sinais, por si sós, e sem o privilégio da clari-vidência, não eram indícios contundentes de genocídio (ver Kuper-man, 2000:102-103; Uvin, 2001:89; Jones, 2001:114-115; e Barnett,2002:80-82). Contudo, apesar de não se sustentarem como um avisoclaro de um evento futuro, eles certamente sublinharam um crescenterisco ao acordo de paz bem como à Unamir. A possibilidade de rea-ção contra Arusha, mesmo em uma escala menor do que a ocorrida,já era razão suficiente para preparar planos de contingência e reforçar

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a missão (Jones, 2001:114-115). Afinal, não havia cessar-fogo; oprocesso de paz estava em frangalhos; dez peacekeepers haviam sidobrutalmente assassinados e todo um contingente se encontrava emperigo imediato; e políticos e civis estavam sendo mortos em Kigali eredondezas (Barnett, 2002:99)14.

A Unamir havia sido estabelecida para supervisionar os acordos deArusha e monitorar o cessar-fogo. Posto que não havia cessar-fogo, omandato da Unamir estava tecnicamente terminado. Cabia ao Con-selho de Segurança considerar qual seria a nova raison d’être da mis-são, e a resposta a essa questão dependia de como Ruanda seria defi-nida. A forma como os burocratas da ONU interpretaram e descreve-ram a violência em Ruanda trouxe em si não apenas suposições quecondicionaram a avaliação daquela realidade, indicando “o que”aquilo era, como também as medidas específicas que derivavam des-se entendimento. O diagnóstico da situação ruandesa, por sua vez,dependeu das concepções prévias da ONU sobre a história, o povo eo conflito ruandês, e a prescrição para esse caso foi influenciada ain-da pelo entendimento da ONU de seu próprio papel.

Era fato que a FPR e o governo haviam retomado a guerra. Mas a ten-dência em categorizar automática e exclusivamente toda a violênciacomo guerra civil derivava da uma compreensão anterior sobre a na-tureza do conflito ruandês e sobre a contribuição da ONU para sua re-solução (idem:102-103). Entendia-se que a violência estava relacio-nada ao impasse no processo de transição, o que poderia causar umretorno à guerra civil. Os relatórios do secretário-geral descreviamuma situação em Ruanda em que a dimensão étnica do conflito apa-recia subordinada ao processo político, e por isso uma solução políti-ca (no sentido de não militar) para o conflito ruandês era supervalori-zada. Assim, Ruanda era vista como sendo ao mesmo tempo uma“guerra civil”, um “conflito étnico” e um “Estado fracassado” (Hil-len, 2000:179), o que parecia evocar naturalmente as idéias de “pea-cekeeping” e “consenso” (Barnett, 2002:102-103). A partir dessa

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compreensão, o secretário-geral ofereceu, em 20 de abril de 1994,três alternativas quanto ao futuro da missão:

“A primeira alternativa é baseada na conclusão, descrita acima, de que nãoexiste nenhuma perspectiva realista de que as duas forças opostas concor-dem com um cessar-fogo efetivo no futuro imediato. Sem um cessar-fogo, ocombate entre elas continuará, assim como a anomia e os massacres de ci-vis. Essa situação só poderia ser mudada por um reforço imediato e em mas-sa da Unamir e uma mudança em seu mandato de forma a equipá-la e autori-zá-la a coagir as forças opostas a um cessar-fogo, e a tentar restaurar a lei e aordem, colocando um fim às matanças. [...] [N]a segunda alternativa [...] umpequeno grupo liderado pelo comandante da Força, com a equipe necessá-ria, permaneceria em Kigali para agir como intermediário entre as duas par-tes na tentativa de trazê-las a um acordo sobre um cessar-fogo, sendo esseesforço mantido por um período superior a duas semanas, como o Conselhode Segurança preferir. [...] Essa equipe requereria o apoio de uma compa-nhia de infantaria para prover segurança, bem como um número de observa-dores militares para monitorar a situação, além de uma equipe civil, sendo ototal estimado em 270 [pessoas]. O restante do pessoal da Unamir seria reti-rado, mas a Unamir, como uma missão, continuaria a existir. O representan-te especial, com uma pequena equipe, continuaria seus esforços como inter-mediário nas negociações políticas, com o objetivo de trazer os dois lados devolta ao processo de paz de Arusha. [...] A terceira alternativa, à qual eu nãosou favorável, seria a retirada completa da Unamir (United Nations, 1994c,parágrafos 13-19).

“O inferno discursivo da guerra civil consumia o oxigênio para todasas outras possibilidades” (Barnett, 2002:103). Uma vez que a equipeda ONU havia categorizado o conflito em Ruanda como uma guerracivil, o leque de respostas foi restrito às alternativas baseadas no con-senso. O argumento de que os acontecimentos em Ruanda eram umaguerra civil reforçava a crença de que a única função da ONU sob es-sas circunstâncias era tentar negociar um cessar-fogo. Assim, em 21de abril de 1994, o Conselho de Segurança decidiu que:

“Profundamente preocupado com a contínua luta, roubos, criminalidade e aqueda da lei e da ordem, particularmente em Kigali, [...] [o Conselho de Se-gurança das Nações Unidas] demanda o cessar imediato das hostilidadesentre as forças do governo de Ruanda e a Frente Patriótica Ruandesa e o fim

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da violência sem sentido e da carnificina que açambarcam Ruanda; [...] [e]decide à luz da situação atual em Ruanda ajustar o mandato da Unamir daseguinte forma: para (a) agir como um intermediário entre as partes na ten-tativa de assegurar um acordo de cessar-fogo; (b) assistir na continuação dasoperações de assistência humanitária, na medida do possível; e (c) monito-rar e relatar os desenvolvimentos em Ruanda, incluindo a segurança dos ci-vis que buscam refúgio na Unamir” (United Nations, 1994d:2-3).

Esta decisão é motivo de controvérsia no que diz respeito à avaliaçãoda responsabilidade da ONU em relação ao genocídio ruandês. Porum lado, existem autores como Alan Kuperman (2000), que afirmamque os Estados Unidos e a ONU não poderiam ter sabido que um ge-nocídio estava em marcha pelo menos até 20 de abril de 1994. Alémdisso, mesmo que a hipótese de genocídio fosse confirmada nessadata, o envio imediato de reforços militares seria inviável. Segundo oautor, uma “intervenção máxima” (uma divisão de 13.500 soldados e27 mil toneladas de equipamentos, veículos, armamentos, provisões)teria levado pelo menos quarenta dias para ser desdobrada em Ruan-da, e teria salvado cerca de 125 mil tutsis. Já uma “intervenção míni-ma” (uma brigada aérea composta por 2.500 soldados e 4.500 tonela-das de equipamentos, veículos, armamentos e provisões) teria levadoquatorze dias para chegar a Ruanda e teria salvado aproximadamente75 mil tutsis (idem:105-106). Ou seja, uma intervenção militar (má-xima ou mínima) não teria evitado o genocídio.

Por outro lado, autores como Des Forges (em Des Forges e Kuper-man, 2000) sustentam que a administração Clinton tomou conheci-mento do genocídio em 8 (e não 20) de abril, por meio de um relatóriodo Departamento de Estado, cujas informações haviam sido obtidaspelo pessoal da embaixada americana em Ruanda, bem como defranceses e belgas. Além disso, Des Forges (idem:141) afirma que,durante as cruciais primeiras semanas, a ONU, sob pressão nor-te-americana, teria ordenado que os mais de 2 mil peacekeepers emRuanda não fizessem nada para deter a matança. Segundo a autora,

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os peacekeepers da ONU e a força de evacuação poderiam ter detidoas matanças se tivessem agido prontamente.

De acordo com Barnett (2002), a avaliação da responsabilidade daONU em relação ao genocídio só pode ser feita a partir da reconstru-ção do universo moral que influenciou e legitimou a decisão da Orga-nização naquele momento particular. Para o autor, a centralidade edistinção desse universo moral são freqüentemente ignoradas, poruma simples razão: os autores de muitas das mais populares versõessobre o genocídio permitem que o genocídio governe sua leitura dopassado. Isto é, muitas pesquisas transferem seus próprios parâme-tros morais, sensibilidades, compromissos e categorias para um mo-mento histórico radicalmente diferente, resultando em uma leituraradicalmente a-histórica do passado (idem:5).

A reconstrução desse universo moral requer o reconhecimento daconsangüinidade entre o normativo e o empírico: a responsabilidademoral depende da responsabilidade causal. É injusto responsabilizaralguém moralmente por um resultado sobre o qual não se teve con-trole (idem:17). Assim, Barnett insiste que a avaliação da responsabi-lidade da ONU depende da compreensão que se tem do envolvimen-to dela em Ruanda e dos parâmetros morais empregados, ou seja, daconsideração (1) da forma como a ONU interpretou a situação ruan-desa, (2) do contexto de responsabilidades múltiplas e concorrentes e(3) do critério para julgar entre elas.

Dessa forma, Barnett afirma que a decisão do Conselho de Seguran-ça pode ser razoavelmente defendida na medida em que a violênciaem Ruanda foi compreendida como uma guerra civil e como “o últi-mo e mais sangrento episódio de um ciclo secular de violência étni-ca” (idem:130). Segundo o autor, a ONU falhou em detectar que a vi-olência em Ruanda era mais do que uma guerra civil por dois moti-vos: (1) carência de conhecimento específico sobre a cultura e a polí-tica ruandesa e (2) a influência da cultura burocrática da ONU sobre a

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percepção de mundo de seus agentes. Barnett (idem:58-59) afirmaque os formuladores de política da ONU não possuíam uma compre-ensão antropológica ou um conhecimento histórico sobre Ruanda(Jones, 2001:116). Aqueles enviados ao campo foram selecionadospor sua disponibilidade, não por seu conhecimento sobre o conflito.Além disso, o autor argumenta que a escassez de tempo produziuuma abordagem altamente instrumental da informação:

“Que o conflito ruandês era enraizado em políticas étnicas era importantesaber. Os detalhes concernentes à sua natureza socialmente construída eramirrelevantes. Era claramente relevante que as partes haviam assinado um tra-tado de paz para pôr fim a seu conflito. A ‘cultura da violência’ que os ana-listas têm agora exumado raramente fazia parte da conversação porque nãopodia ser traduzida imediatamente em conhecimento usável. Saber algo so-bre o terreno político, particularmente como a liberalização e democratiza-ção haviam produzido uma competição entre os novos partidos políticos,era importante. Mas não havia lugar para uma compreensão detalhada dosatores políticos e das frouxas alianças nos resumos de duas páginas queeram dados aos oficiais de alto escalão. A presença de partidos radicais queabominavam a idéia de dividir o poder era relevante, mas não alarmante. To-dos os compromissos políticos geram oponentes, inclusive extremistas. Sa-ber exatamente quem eram os extremistas em Ruanda era relevante, mas oque importava era que o governo e a FPR pareciam estar comprometidoscom o acordo” (Barnett, 2002:59).

Temos de convir que, mesmo que os oficiais do Departamento deOperações de Peacekeeping (DPKO) não fossem antropólogos e/ouhistoriadores, a questão a ser colocada não é “o que eles não sabiam”,mas o que eles poderiam ter sabido. Essa falha decorre não de suasformações acadêmicas, mas da falta de sensibilidade dentro das Na-ções Unidas em relação à cultura política e à história ruandesa e prin-cipalmente às falhas de comunicação na transferência de responsabi-lidade da OUA para a ONU. Por mais que a equipe central do DPKOnão dispusesse de conhecimento regional específico, este certamenteexistia. Ao assumirem a direção da pacificação ruandesa, as NaçõesUnidas deliberadamente afastaram dois atores de maior envolvimen-to, conhecimento e análise política sobre Ruanda e Arusha, a saber,

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OUA e Tanzânia15. Não aproveitar essas fontes de conhecimentocontribuiu para piorar a situação em solo ruandês. Certamente, todosesses problemas, somados ao interesse limitado no conflito ruandêspor parte das grandes potências e à ausência de planos de contingên-cia, reforçaram-se mutuamente.

Além disso, a ONU teria falhado em detectar o aspecto étnico da vio-lência em Ruanda devido à sua cultura organizacional. Barnett(2002) argumenta que a forma como as organizações categorizam omundo tem um impacto profundo sobre como os formuladores depolíticas vêem esse mundo. As categorias burocráticas fazem muitomais do que simplesmente separar informações relevantes; elas pro-duzem uma perspectiva específica sobre Ruanda e definem parâme-tros claros para a ação e julgamento entre responsabilidades concor-rentes (idem:59-60). Assim, a cultura organizacional da ONU teriasido um fator relevante ao prover significado para a violência em Ru-anda, para o papel da organização em face dessa violência, e ao servircomo parâmetro de julgamento entre as responsabilidades concor-rentes que constituíam o contexto da tomada de decisão. Contraria-mente aos filósofos morais que, segundo o autor, estão preocupadoscom deveres abstratos e normas ideais de aplicação universal, é aexistência de muitas morais que ajuda a definir as ações da ONU eque, portanto, demanda nossa atenção (idem:xii). É nesse sentidoque a não-intervenção pode ser considerada como uma atitude éticapara Barnett.

Existe uma tendência instintiva em acreditar que o combate ao geno-cídio e aos crimes contra a humanidade são mais importantes do quetodas as outras obrigações morais. Barnett argumenta que, antes deaceitarmos isso que ele chama de fundamentalismo moral, precisa-mos reconhecer que a ONU, como todas as instituições, assume emum único momento um enorme número de responsabilidades e obri-gações (idem:6). Cumprir um conjunto de responsabilidades pode le-var a negligenciar outras, e é dessa forma que o autor vê que a inação

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pode ter uma base ética. Face às muitíssimas obrigações simultâneasvis-à-vis uma capacidade de resposta restrita, a ONU apela a uma sé-rie de regras e critérios para discernir sobre a viabilidade das opera-ções e assim optar entre elas. Os critérios que determinam quando opeacekeeping é a ferramenta certa para o trabalho e pode ser, portan-to, autorizado são os seguintes:

“[...] se existe uma situação que pode colocar em perigo ou ameaçar a paz e asegurança internacionais;se há organizações ou mecanismos regionais ou sub-regionais com capaci-dade para ajudar a resolver a situação;se existe um cessar-fogo e se as partes estão comprometidas a iniciar umprocesso de paz com o fim de chegar a um acordo político;se existe um objetivo político claro e que pode ser expresso no mandato;se é possível formular um mandato preciso para uma operação das NaçõesUnidas; ese é possível garantir razoavelmente a segurança do pessoal das NaçõesUnidas e, sobretudo, se é possível obter das principais partes ou facções ga-rantias razoáveis no que diz respeito ao pessoal das Nações Unidas” (UnitedNations, 1994e:2).

Além disso, os peacekeepers em campo deveriam seguir os princípi-os de neutralidade, imparcialidade e consenso (Barnett, 2002:10).Barnett ainda salienta que a ONU tinha responsabilidades não ape-nas em relação aos ruandeses, mas também em relação ao seu pessoalem campo e à integridade da instituição, que poderia ser gravementeabalada por outro fracasso como o da Somália. Segundo o autor, apartir das supracitadas regras de peacekeeping, o Conselho de Segu-rança concluiu que Ruanda era certamente um pesadelo humanitário,mas não uma ameaça genuína à paz e segurança internacionais(idem:102). Assim, a cultura da ONU poderia fazer da não-interven-ção algo não somente pragmático, mas também legítimo e apropria-do – mesmo em face de crimes contra a humanidade. Ainda que con-frontado pelas chocantes escala e velocidade das matanças, a conclu-são do Conselho foi de que havia pouca coisa que a ONU poderia oudeveria fazer além de tentar negociar um cessar-fogo entre os comba-

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tentes. Todas as demais alternativas eram inadequadas, tanto pela au-sência de tropas disponíveis quanto pela inadequação do peacekee-ping para aquelas circunstâncias.

Barnett argumenta que a moralidade da não-intervenção deriva dasregras que balizaram e legitimaram a decisão da ONU. O autor consi-dera os critérios para autorização de operações de peacekeepingcomo princípios morais para a ação e afirma que “o voto foi influen-ciado por razões e regras que estavam conectadas a um propósitomais alto e assim serviram para dar à decisão uma fundação ética”(idem:127-128). A partir dessas colocações, pode-se aferir que Bar-nett entende ética como um conjunto de regras e códigos morais ex-terno a um sujeito autônomo e por ele aplicado na mediação de suasrelações como fonte de legitimidade para a ação. Essa lógica em queo Eu precede a ética reflete a metafísica da subjetividade, ou seja, anoção do “Homem” como fundamento essencial, soberano e univer-sal para o conhecimento.

No entanto, o ethos crítico ubíquo neste artigo – expresso na rearticu-lação radical entre ética, subjetividade e responsabilidade propostapor Levinas (apud Campbell, 1994) –, que parte da própria afirmaçãoda vida, impele-nos a rechaçar a argumentação de Barnett. Esse ethosinsta uma figuração diferente da política, para a qual a principal preo-cupação passa a ser a luta por – ou em nome da – alteridade. É por issoque a metafísica da subjetividade deve ser rejeitada: porque a violên-cia associada à soberania do Eu – e principalmente o desrespeito aoOutro que ela requer – faz essa construção insuficientemente huma-na. Rejeitamos então a concepção do sujeito autônomo e soberanoque fundamenta a proposição de Barnett e abraçamos a compreensãode que o sujeito só se torna sujeito em uma situação necessariamenterelacional. Essa atitude envolve um duplo reconhecimento: (1) da in-terdependência radical entre Eu e Outro e (2) de nossa responsabili-dade inescapável pelo Outro.

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Destarte, afastamo-nos dos argumentos de liberdade autônoma – emque a ontologia de um ser preocupado consigo mesmo pode levar aototalitarismo e à supressão da alteridade – a favor da responsabilida-de heterônoma, uma responsabilidade inescapável que é anterior àprópria consciência do Eu (Levinas, 1999:103). “Uma responsabili-dade anterior à deliberação, para a qual eu fui exposto, dedicado, an-tes de ser dedicado a mim mesmo” (idem:105), conseqüência da “al-teridade infra-estrutural”. Sendo a subjetividade compreendidacomo uma derivação da relação de alteridade, ela não tem nenhumagarantia anterior à responsabilidade inerente à relação com o Outro.“Toda relação com o Outro é uma relação com um ser para com quemeu tenho obrigações” (idem:101). De algo independente da subjetivi-dade, isto é, de um conjunto de regras adotadas por um agente autô-nomo, a ética é transformada em algo inerente e integral à subjetivi-dade. Nesse sentido, não há circunstância em que se possa dizer “nãome diz respeito”. Assim, o argumento de que “Ruanda era certamen-te um pesadelo humanitário, mas não uma ameaça genuína à paz e se-gurança internacionais” (idem:102) não exime a ONU de responsa-bilidade, mesmo em face de obrigações concorrentes. A responsabi-lidade pré-original pode ser questionada, ofuscada, suprimida, masnão apagada.

De fato, a responsabilidade pelo Outro é perturbada na relaçãoum-a-muitos, porque a “terceira parte é simultaneamente outro emrelação ao outro, e me faz um entre outros” (Levinas apud Campbell,1994:464). A inevitável entrada da terceira parte coloca um dilema:como comparar Outros – únicos e incomparáveis? Quem está maispróximo de mim? Quem é o outro? Essas questões podem ser abor-dadas se considerarmos que a responsabilidade ética não se contentasó e simplesmente em evitar, conter, combater ou negar as formas(muitas vezes violentas) de supressão da alteridade. A responsabili-dade ética requer uma estratégia utópica. A “indecidibilidade”16 éum pré-requisito para a responsabilidade. O indecidível, que é o pró-

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prio contexto da decisão, não a impede e tampouco evita sua urgên-cia. Se não houvesse decisões a serem tomadas, se todas as escolhasfossem erradicadas pela pré-ordenação de um único caminho, a res-ponsabilidade – a habilidade de responder a diferentes critérios e pre-ocupações – seria ausente (Campbell, 1994:471).

Como declara Derrida (apud Campbell, 1994:473, ênfase no origi-nal), “a condição de possibilidade dessa coisa chamada responsabili-dade é uma certa experiência e experimento da possibilidade do im-possível: o teste da aporia do qual se pode inventar a única invençãopossível, a invenção impossível”17. Trata-se do confronto com a apo-ria, um espaço político indecidível e sem fundamento, em que ne-nhum caminho é “claro e dado”, em que “nenhum conhecimento se-guro já preparou o caminho”, em que “nenhuma decisão já foi toma-da”. Se não houvesse aporia, não haveria política, pois na ausência daaporia toda decisão seria pré-ordenada, seria a implementação de umprograma. A responsabilidade parece consistir em acenar para doisimperativos contraditórios – estar pré-obrigado a todo e cada Outro,em meio a uma multidão de Outros. Deve-se, portanto, tentar inven-tar novos gestos, discursos, práticas político-institucionais que ins-crevam a aliança desses dois imperativos, dessas duas promessas. Épor isso que não podemos falar de um código moral universal para to-dos os tempos e lugares: não é fácil imaginar em que tais invençõesconsistiriam, mas não poderia ser de outra forma, pois “não há res-ponsabilidade que não seja a experiência e o experimento do impos-sível” (Derrida apud Campbell, 1994:476). Lançada como um em-preendimento apolítico ou não político, marcado pelo compromissoda organização com os princípios de neutralidade, imparcialidade econsenso, a ONU opera identificando as causas dos problemas e sa-nando-as. Ao pré-determinarem o curso da decisão e, conseqüente-mente, acabarem com a aporia inerente à política, os critérios de au-torização de operações de peacekeeping despolitizaram o voto de 21de abril de 1994.

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Logo após este voto, os sinais de genocídio tornaram-se inconfundí-

veis e inegáveis, subvertendo o álibi para inação e rapidamente trans-

formando o que antes poderia ter sido prudência e autocontrole em

complacência e indiferença. À medida que o genocídio se alastrava

pelo país, a comunidade internacional falhava em distinguir entre a

responsabilidade moral de parar um crime deliberado e ficar neutra

em uma guerra civil (Khan, 2000:7). Mesmo que o termo “genocí-

dio” aparecesse com cada vez mais freqüência – e causasse cada vez

mais mal-estar – ao se falar dos eventos em Ruanda, a guerra civil

permanecia no centro e à frente de muitas discussões. Na visão do

Conselho de Segurança, a guerra civil havia sido responsável por cri-

ar as condições para o genocídio, e um cessar-fogo era requerido an-

tes que a Unamir II pudesse ser desdobrada (Barnett, 2002:142). Em

seu relatório do dia 13 de maio de 1994, o secretário-geral declarava:

“Será relembrado que a retomada do conflito civil que se seguiu aos eventostrágicos de 6 de abril de 1994, e a decorrente violência e massacres, criaramuma situação que colocou em questão a habilidade da Missão de Assistên-cia das Nações Unidas para Ruanda (Unamir) de cumprir seu mandato sob aresolução 872 (1993) do Conselho de Segurança de 5 de outubro de 1993.[...] A situação em Ruanda permanece altamente instável e insegura, comviolência generalizada. O combate entre as forças do governo ruandês e aFrente Patriótica Ruandesa (FPR) continua, apesar de tanto as forças do go-verno quanto a FPR haverem separadamente expressado sua prontidão ementrar em um cessar-fogo. [...] Milícias armadas e outros elementos desobe-dientes continuam a operar, não obstante com menos freqüência do que nocomeço do conflito, matando e aterrorizando civis inocentes. [...] Obvia-mente, um acordo de cessar-fogo é o primeiro passo para o estabelecimentode um ambiente estável e seguro no país, permitindo assim a prestação deajuda humanitária organizada, coordenada e segura e a reativação do pro-cesso de paz de Arusha. Nas condições prevalecentes, contudo, é essencialque as Nações Unidas considerem quais medidas podem ser tomadas mes-mo antes que um cessar-fogo seja alcançado” (United Nations, 1994f, pará-grafos 2-4, ênfase nossa).

E ainda:

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“A solução para a crise em Ruanda deve, em meu julgamento, ser encontra-da por meio da implementação do acordo de Arusha, que ambos os lados di-zem aceitar. Para que isso seja alcançado, é claramente necessário que umcessar-fogo seja acordado e colocado em efeito na data mais próxima possí-vel. [...] Enquanto isso, existe uma requisição urgente para que as NaçõesUnidas aumentem seus esforços em tratar da desesperadora crise humanitá-ria criada pelo conflito” (idem, parágrafos 27-28).

Esse mesmo relatório faz uma detalhada descrição da situação dosrefugiados e deslocados, mas nenhuma estimativa dos números demortos é citada. O aspecto étnico das matanças também é completa-mente obliterado. Apenas em 17 de maio de 1994 estes aspectos sãomencionados em uma resolução do Conselho de Segurança: “Relem-brando nesse contexto que a matança de membros de um grupo étni-co com a intenção de destruir tal grupo, no todo ou em parte, constituicrime punível sob a lei internacional, [o Conselho de Segurança]urge fortemente todas as partes a cessarem qualquer incitamento, es-pecialmente por meio da mídia de massa, à violência ou ao ódio étni-co” (United Nations, 1994g:2). E somente em 31 de maio de 1994Boutros Boutros-Ghali admite que, “com base na violência queemergiu, há poucas dúvidas de que [essa violência] constitui genocí-dio, uma vez que têm havido matanças em larga escala de comunida-des e famílias pertencentes a um grupo étnico particular” (UnitedNations, 1994h, parágrafo 36). No mesmo documento, o secretá-rio-geral afirma que “é axiomático que qualquer esperança de resol-ver as tensões históricas em Ruanda devam descansar nas perspecti-vas de compromisso político” (idem, parágrafo 27, ênfase nossa).

A insistência em priorizar o cessar-fogo e o fim da guerra civil comosolução para a catástrofe humanitária em Ruanda deriva do arraiga-mento do paradigma do Estado-territorial-soberano na imaginaçãopolítica contemporânea. A fixação no Estado soberano convertidoem categoria ontológica e estabelecido como marco e limite espa-ço-temporal da comunidade política funciona como uma viseira quepermite que se vejam apenas temas correlatos ao Estado territorial –

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daí o poder sugestivo da guerra civil –, desfocando representações al-ternativas. A determinação de que a violência provinha tão-somente(ou majoritariamente) da frente de batalha entre a FAR e a FPR, prin-cipalmente na capital Kigali, desviou a atenção dos tomadores de de-cisão acerca da violência muito maior que acontecia no interior dopaís, longe dos exércitos da FPR.

Enquadrar os eventos em Ruanda como guerra civil – supondo queesta pudesse ser uma categoria estanque e não problemática – signifi-cava que os acordos de Arusha haviam soçobrado devido à falha deambas as partes em cumprir seus compromissos. Sob tais circunstân-cias, a ONU teria a obrigação de tentar negociar um cessar-fogo, maso ônus da responsabilidade seria das partes. Por outro lado, categori-zar as matanças em Ruanda como limpeza étnica significava que ha-via uma campanha armada deliberada contra a população civil. Nes-se contexto, a ONU teria um dever moral de intervir muito maior(Barnett, 2002:120). Barnett afirma que, se Boutros-Ghali tivessequerido uma intervenção, poderia ter retratado as mortes como resul-tado de uma limpeza étnica e se referido especificamente à popula-ção identificada como tutsi como o principal alvo dos assassinatos.Ao contrário, o secretário-geral e sua equipe retrataram a violênciacomo “caótica”, projetando uma imagem de que a matança era recí-proca e multilateral. Aliás, os relatórios do secretário-geral freqüen-temente se referem a “civis”, no sentido mais amplo e genérico (ibi-dem).

Por um lado, classificar Ruanda como uma “guerra civil” teve a con-seqüência de diminuir a “carga” de obrigação moral dos tomadoresde decisão internacionais. Uma vez que a idéia de guerra civil evoca anoção de que a solução e os resultados dependem quase que absolu-tamente da vontade das partes, o papel e a responsabilidade dos ato-res internacionais é diminuído a um status de coadjuvante. Por outrolado, um foco excessivo no genocídio – utilizado por muitos autoresque discorrem sobre o tema – enfraquece, em vez de fortalecer, o ar-

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gumento para a ação internacional. Esse enfoque requer a prova dealgo que é extremamente difícil de se antever, e aceita implicitamen-te a noção de que apenas em um caso extremo a ação internacionaldeve ser contemplada (Uvin, 2001:91).

Pela Humanização das

Intervenções Humanitárias

“Quando as pessoas que recebem assistência humanitária naqueles camposvierem nos matar, o que a comunidade internacional vai fazer – mandarmais assistência humanitária?” (Joseph Karemera, ministro da Saúde deRuanda, em 1996 apud Gourevitch, 2000:343).

Em 13 de maio de 1994, diante da “violência generalizada” (UnitedNations, 1994f, parágrafo 3) em Ruanda e da “desesperadora crisehumanitária criada pelo conflito” (idem, parágrafo 28), BoutrosBoutros-Ghali requereu ao Conselho de Segurança uma extensão domandato da Unamir. O objetivo expresso era habilitar a Unamir a“apoiar e prover condições seguras para pessoas deslocadas e outrosgrupos em Ruanda que têm sido afetados pelas hostilidades ou pas-sam por necessidades, e ajudar na prestação de assistência feita pororganizações humanitárias” (idem, parágrafo 11). A missão, quepassou a ser referida como Unamir II, teria seus esforços coordena-dos àqueles das organizações humanitárias operando em Ruandae/ou engajadas na ajuda a refugiados ruandeses em países vizinhos,“em cooperação com as autoridades locais sempre que possível”.

Em 17 de maio de 1994, o Conselho de Segurança aprovou a exten-são do mandato da Unamir “para propósitos humanitários”, comosugerida pelo secretário-geral no capítulo VII da Carta das NaçõesUnidas. Não obstante o caráter de urgência da missão, até 20 de ju-nho o desdobramento da Unamir II não havia sido ainda viabilizadodevido à carência de fundos, tropas e equipamentos necessários paratanto. Diante de tal paralisia, o Conselho de Segurança endossou asugestão do secretário-geral (United Nations, 1994i) e aprovou a ex-

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pedição francesa para Ruanda segundo a resolução 929 de 22 de ju-nho de 199418.

Quando a Operação Turquesa foi estabelecida, a maioria dos tutsis jáhavia sido morta, o genocídio já havia sido praticamente completa-do; ainda assim, a operação salvou 10 mil vidas. Não obstante suamotivação “humanitária” e seu caráter “imparcial” serem altamentequestionáveis19, Jones (1995) afirma que a expedição francesa teveuma importante função humanitária ao prover segurança e apoio lo-gístico às operações de socorro humanitário. No entanto, esse mes-mo autor (2001:125) afirma que o aspecto mais importante da Opera-ção Turquesa foi seu impacto dentro da zona turquesa – a zona de se-gurança humanitária – e dos campos de Goma sobre o curso doseventos subseqüentes. Embora não exista dúvida de que a prestaçãode assistência humanitária salvou vidas e diminuiu o sofrimento decentenas de milhares de ruandeses, algumas considerações devemser feitas.

A versão mais popular divulgada pela mídia era aquela que confun-dia os dois eventos – o genocídio e a fuga de refugiados –, tratando-oscomo um momento único: todos aqueles vindos de Ruanda eram ro-tulados como refugiados (Barnett, 2002:149). Se tantas pessoas ha-viam fugido em tão horríveis circunstâncias, deviam estar fugindo dealgo ainda mais horrível. Consoante Jones (2001:123-124), evidên-cias sugerem que o movimento dos refugiados para o Zaire foi ape-nas em parte uma fuga espontânea da violência em Ruanda. Maisfundamentalmente, os génocidaires teriam coagido populações in-ternamente deslocadas a fugirem com eles para o Zaire. Ao ceder Ru-anda à FPR e conduzir vastas multidões para o exílio, os líderes doPoder Hútu puderam conservar o controle sobre seus súditos, estabe-lecer um Estado de “refugiados” em campos mantidos pela ONU econtinuar dizendo que seus piores temores tinham sido justificados(Gourevitch, 2000:185; Mamdani, 2001:214, 254-455; Barnett,2002:149). Durante a travessia, os refugiados teriam sido usados

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como um escudo humano entre os génocidaires e a FPR. Ao declararuma zona livre e ameaçar responder militarmente a qualquer incur-são a essa zona, a Operação Turquesa criou um porto seguro para oslíderes do genocídio e para algumas unidades da FAR. Isso possibili-tou que parte dos mentores e organizadores do genocídio saísse in-tacta de Ruanda, estabelecendo-se no Zaire. Nas palavras de Goure-vitch (2000:189), “o feito marcante da Opération Turquoise foi per-mitir que a matança de Tutsis continuasse por um mês extra, e garan-tir ao comando genocida uma travessia segura, com grande parte desuas armas, para o Zaire”.

“Tropas do Zaire haviam alegado estar desarmando os ruandeses à medidaque eles atravessavam a fronteira, e grandes pilhas de facões e revólveresacumulavam-se de fato ao lado dos barracões de imigração. Mas, sentadoem seu carro, em meio à torrente humana que trafegava por Goma, um ofici-al militar norte-americano telefonou para Washington e elencou um espan-toso arsenal de artilharia, carros blindados e armas leves que a ex-FAR car-regava consigo. Sob a égide desse exército amplamente intacto, e da intera-hamwe, os acampamentos rapidamente se organizaram como réplicas per-feitas do Estado do Poder Hutu – a mesma disposição comunitária, os mes-mos líderes, a mesma hierarquia rígida, a mesma propaganda, a mesma vio-lência” (idem:195).

Nenhuma medida foi tomada para evitar que os líderes extremistas serearmassem e retivessem o controle sobre a massa de refugiados noscampos. A FAR, as milícias e o governo interino ruandês puderam sereagrupar e reafirmar o controle político sobre a população. Ironica-mente, os campos, particularmente os do Zaire e da Tanzânia, passa-ram a ser controlados pelos mesmos prefeitos, burgomestres e líderespolíticos que haviam encabeçado o genocídio em Ruanda. Os meca-nismos para tanto incluíam o controle político sobre o processo desocorro nos campos, a continuação da campanha de retórica e intimi-dação para evitar que a população retornasse a Ruanda e a forjadurade alianças com atores locais, que poderiam assisti-los política e mi-litarmente. O controle da população refugiada servia a três propósi-tos: (1) os refugiados eram uma forma de base política para o regime

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deposto; (2) os refugiados atraíam grandes fluxos de ajuda financei-ra, possibilitando a cobrança de taxas; e (3) a prestação de ajuda noleste do Zaire, que deveria operar com o consentimento das autorida-des deste país, criava uma nova aliança de interesses entre o antigoregime e seus anfitriões, tanto em nível local quanto nacional (Jones,2001:144-145).

A habilidade do regime deposto de controlar o processo de socorrono leste do Zaire, e por meio disso estabelecer o controle político e acobrança de taxas, deu-se em parte em função dos esforços das agên-cias de ajuda humanitária. Ao intervir de uma maneira formalmenteneutra, as organizações não-governamentais (ONGs) e agências daONU contribuíram para reciclar a violência em Ruanda, ao hospedare alimentar alguns dos perpetradores do genocídio e permitir que elesse reagrupassem em um espaço internacionalmente protegido (Jo-nes, 1995:245). As agências humanitárias declaravam que não com-petia a elas se engajar em análises políticas, mas sim prover socorrohumanitário aos necessitados. Ninguém questionava o controle ad-ministrativo e político do antigo regime sobre os campos. Essa ques-tão só foi encarada quando se tornou aparente que uma grande pro-porção da ajuda humanitária tão generosamente distribuída aos cam-pos de refugiados estava sendo convertida para fins bem menos no-bres: treinamento militar, compra de equipamentos militares e pre-paração para outra rodada de violência por meio do envio de guerri-lhas armadas a Ruanda (Jones, 2001:145; Khan, 2000:204).

Um segundo aspecto a ser considerado refere-se ao tratamento gene-roso dado aos refugiados pelas agências internacionais e comunida-de doadora, em contraste com a excessiva parcimônia mostrada às ví-timas do genocídio. O posicionamento da comunidade internacionalem relação aos necessitados nos campos de refugiados vis-à-visaqueles em território ruandês parecia incongruente. De acordo comShaharyar M. Khan (2000:2), representante especial do secretá-rio-geral da ONU em Ruanda e responsável pela Unamir II, a ajuda

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humanitária aos campos de refugiados no Zaire e na Tanzânia che-gou a 2 milhões de dólares por dia. “A dispensa dessa ajuda não foiinserida em nenhum arcabouço político porque ninguém pareciapensar no fato de que a maioria dos refugiados não estava em perigoreal” (idem:35), mas havia fugido sob o comando de seus líderes. Poroutro lado, parecia não haver nenhuma provisão ou orçamento dis-poníveis para reviver um país totalmente devastado, reconstruir suainfra-estrutura e/ou assistir as vítimas do genocídio que permaneci-am em Ruanda.

Khan explica que os fundos para as operações de peacekeeping ad-vêm da contribuição proporcional obrigatória dos Esta-dos-membros, e são disponibilizados apenas para sustentar os pea-cekeepers e seu apoio logístico. Toda a ajuda destinada ao desenvol-vimento, humanitarismo ou emergência provém das “contribuiçõesvoluntárias” da comunidade doadora, devendo ser distribuída a todasas agências especializadas da ONU. Assim, o sistema da ONU man-tém um olhar cuidadoso para assegurar que os fundos de peacekee-ping não sejam voltados para domínios que deveriam ser mantidospor contribuições voluntárias. O resultado final dessa rígida compar-timentalização foi que, enquanto uma vultosa quantia pôde ser gastapara manter os peacekeepers, nenhuma parte desse fundo pôde serdirigida para reparos de pós-conflito e funções emergenciais(idem:90).

Em outubro de 1994, já existia um governo em Ruanda, mas ele nãopossuía escritórios, transportes, telefones e verbas para pagar salári-os essenciais. A comunidade internacional esperava que o governomostrasse resultados em muitas áreas, incluindo o encorajamento aoretorno voluntário dos refugiados. No entanto, essa e outras tarefasnão podiam ser viabilizadas, pois os servidores civis não podiam serpagos, não havia colheitas e os serviços básicos não estavam funcio-nando devido à falta de recursos financeiros e materiais. SegundoKhan (idem:93-94), era frustrante ver milhões de dólares sendo gas-

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tos em alimentos, cobertores e remédios e nenhum centavo poder serdisponibilizado para reparar energia elétrica, água, telecomunica-ções ou serviços que colocariam o país novamente em funcionamen-to. Além da intimidação nos campos por parte dos génocidaires e domedo da vingança por parte do novo governo ruandês, havia uma ter-ceira razão para que os refugiados não desejassem voltar a Ruanda:eles gozavam de um padrão de vida nos campos que não poderiamesperar encontrar em sua terra. Nos campos, eles tinham refeições,leite para as crianças, roupas, medicamentos, água potável, escolasetc. Os campos no Zaire e na Tanzânia tinham cinemas, clubes notur-nos, igrejas e muitos outros recursos que uma família rural normalnão encontraria em casa (idem:146).

Se a comunidade internacional avançou na investigação do genocí-dio e punição dos culpados, estabelecendo um Tribunal Internacio-nal, ela falhou grandemente ao incorporar as implicações do genocí-dio no desenho e na implementação dos programas de assistência emRuanda. Ela tratou a crise como “apenas mais uma” guerra civil, sen-do sua única responsabilidade intervir a fim de amenizar o sofrimen-to da população. Tal abordagem distorceu as prioridades, minou aefetividade dos programas de assistências e alienou o novo governoinstalado (idem:174). Como conseqüência, houve a reorganizaçãopolítica, militar e financeira dos perpetradores do genocídio, reno-vando assim as fontes de conflito, e também negligência em relação àpopulação flagelada pela violência dentro das fronteiras ruandesas.

Em relação a tudo aquilo que estava circunscrito ao território ruan-dês, imperou o discurso da guerra civil e da soberania. Como resulta-do, nenhuma ajuda por parte da ONU pôde ser dada ao novo governoruandês e à sua população para a reconstrução do país. Por outrolado, atenção e recursos foram abundantemente dispensados aoscampos de refugiados, um domínio (territorial e discursivo) reguladopela economia discursiva do genocídio, associado ao sofrimento hu-manitário e fora do alcance da soberania estatal. Ou seja, a noção de

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nação-território-identidade fez com que o sofrimento humanitáriofosse pensado como uma característica exclusiva dos campos de re-fugiados. Dessa forma, a ONU e a comunidade doadora internacio-nal sentiram-se moralmente obrigadas para com os “refugiados”,que se supunha carecessem do conforto e segurança providos por um“Estado”. Por outro lado, esses mesmos atores se sentiram desobri-gados – ou apenas ligeiramente obrigados – para com aqueles cir-cunscritos à fronteira territorial do Estado ruandês.

Destarte, a ubiqüidade discursiva da guerra civil não somente permi-tiu que o genocídio continuasse por mais tempo, como teve conse-qüências práticas no pós-genocídio. O pensamento em termos deEstados territoriais soberanos compartimentou o senso de responsa-bilidade pelo sofrimento humano em dois reinos, concebidos comoesferas separadas e independentes: “dentro de Ruanda” versus “forade Ruanda” ou “refugiados ruandeses” versus “civis ruandeses”.Nosso argumento é de que essas conseqüências são fruto do princí-pio do Estado-territorial-soberano, expresso também na dicotomiaguerra civil/genocídio.

Isso se traduz na prática por meio da noção de humanitarianism(Campbell, 1998), a saber, intervenções humanitárias concebidascomo um bem inquestionável e caracterizadas pela caridade impar-cial para com uma humanidade comum. Ou seja, pelo entendimentode que os celebrados valores de imparcialidade e neutralidade fazemdas intervenções humanitárias algo “apolítico” ou não-político, umdomínio de compaixão, distinto de questões de interesse nacional ouautodefesa. Assim, esse tipo de humanitarismo fica reduzido à apli-cação das regras de imparcialidade, neutralidade e universalidade,que expressam o princípio do Estado-territorial-soberano20. Essesimperativos estão expressos na célebre Agenda para Paz de 1992,proposta por Boutros Boutros-Ghali, e foram acolhidos e reproduzi-dos na resolução 929 do Conselho de Segurança que autorizou aOperação Turquesa:

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“Nessas situações de crise interna, as Nações Unidas necessitarão respeitar asoberania do Estado; o contrário não estaria em conformidade com a compre-ensão dos Estados-membros em aceitar os princípios da Carta. A Organiza-ção deve permanecer ciente do equilíbrio cuidadosamente negociado dosprincípios-guias anexados à resolução 46/182 da Assembléia Geral de 19 dedezembro de 1991. Aquelas orientações enfatizavam, inter alia, que a assis-tência humanitária deve ser provida de acordo com os princípios de humani-dade, neutralidade e imparcialidade; que a soberania, integridade territorial eunidade nacional dos Estados devem ser plenamente respeitadas de acordocom a Carta das Nações Unidas; e que, nesse contexto, a assistência humani-tária deve ser provida com o consentimento do país afetado e, em princípio,com base no apelo desse país” (United Nations, 1992, parágrafo 30).

“Enfatizando o caráter estritamente humanitário dessa operação que deveser conduzida de uma forma imparcial e neutra, e não deve constituir umainterposição de forças entre as partes, [...] [o Conselho de Segurança] Aco-lhe também a oferta pelos Estados Membros (S/1994/734) de cooperar como secretário-geral a fim de alcançar os objetivos das Nações Unidas em Ruan-da por meio do estabelecimento de uma operação temporária sob comandoe controle nacionais destinada a contribuir, de uma forma imparcial, à segu-rança e à proteção de pessoas deslocadas, refugiados e civis sob risco emRuanda, na compreensão de que os custos de implementação da oferta serãoarcados pelos Estados-membros concernidos” (United Nations, 1994j, 2o

parágrafo).

Esses dois exemplos deixam clara a tensão entre o dever moral paracom a humanidade e a manutenção, afirmação e reprodução do siste-ma de Estados soberanos. Nesse sentido, a neutralidade e a imparcia-lidade refletem o imperativo de “não causar dano” ou de não interfe-rir, não em relação à situação em campo, mas principalmente quantoao próprio princípio da soberania. Enquanto a nobreza moral do hu-manitarismo lhe permite ultrapassar as fronteiras da soberania esta-tal, esta passagem deve ser mais do que consentida. Ela deve sobre-maneira afirmar a primazia do princípio da “soberania, integridadeterritorial e unidade nacional dos Estados”.

Não é possível falar do Estado soberano como um ser ontológico –como uma identidade política – sem tratar da prática política que o

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constitui enquanto tal, e isso requer antes de tudo tratar da prática po-lítica de estabilização do significado de “Estado soberano”. Essa es-tabilização se dá na história por meio das práticas dos teóricos e daspráticas de intervenção política, um instrumento que faz emergir aprópria questão da soberania. Assim, a relação entre a soberania e seusuposto oposto conceitual – a intervenção – não é de oposição, nega-ção ou exclusão, mas de co-constituição e afirmação, em constanteprocesso de dissolvimento uma na outra (Walker, 1993:25).

Na prática da intervenção humanitária, intervenção e soberania dei-xam de funcionar como termos opostos e se transformam em doissignificantes que podem ser mutuamente substituídos: “soberania éintervenção e intervenção é soberania” (Weber, 1995:127). A inter-venção humanitária, por ser soberania, não pode negar a si mesma.Para evitar que isso aconteça, os princípios de neutralidade, imparci-alidade e consenso são invocados. Esses valores permitem ao huma-nitarismo ser lançado como um empreendimento apolítico e, assim,como um domínio de compaixão, sem contudo “causar dano” ou in-terferir nas dinâmicas locais. No entanto, isso incorpora um conjuntoparticular de suposições sobre uma ontologia social. O humanitaris-mo, que tem sua base na primazia da preocupação com os povos opri-midos e devastados, constrói pessoas e povos como vítimas, incapa-zes de agir sem intervenção. Ele manifesta uma postura que assumeque “nós” somos capazes de nos distanciar dos outros, diagnosticarum conjunto complexo de relações sociais e políticas, conceberações e práticas desenhadas para cumprir certos objetivos e imple-mentá-las como planejado. Acima de tudo, a noção de “não causardano” falha em articular um objetivo político afirmativo (Campbell,1998:500; Walker, 1993:8).

Códigos e princípios são, assim, supostamente associados a resulta-dos predefinidos, se não preditos. A “razão moral” é favorecida sobreo “conflito político aberto”. A preferência da modernidade por “deri-var normas epistemologicamente em vez de decidi-las politicamen-

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te” significa que estamos inclinados a acreditar que a construção dearcabouços normativos pode resolver questões políticas (Campbell,1998:500-501). Contudo, privilegiar prescrições epistemológicas emetodológicas que simplesmente tomam as opções ontológicas mo-dernas historicamente específicas como dadas tem o efeito de apagara crítica (Walker, 1993:8) e fechar a política ao acabar com a “indeci-dibilidade”.

Conclusão

A fixação no discurso da guerra civil, juntamente com os critérios deautorização de operações de peacekeeping, funcionou de forma a ex-cluir representações alternativas dos eventos iniciados em 1994 e,por conseguinte, limitou o leque de ações cabíveis. Essas conseqüên-cias não se restringiram às condições permissivas para os assassina-tos em massa, mas se estenderam negativamente às políticas formu-ladas pela comunidade internacional para lidar com a crise humani-tária decorrente do genocídio. Em primeiro lugar, os princípios deneutralidade, imparcialidade e consenso que embasaram os discur-sos e as práticas da guerra civil continuaram a guiar o pensamentopolítico mesmo diante da conclusão de que um genocídio haviaacontecido. O caso de Ruanda mostra-nos que, ainda que uma catás-trofe como aquela clame por uma intervenção humanitária, existeuma grande tensão entre a responsabilidade pelo ser humanovis-à-vis a necessidade de manutenção do sistema de Estados sobera-nos.

Não podendo negar a si mesmo, o princípio do Estado-territorial-so-berano – cuja prática estabilizadora é a própria intervenção21 – solu-ciona temporariamente essa tensão por meio da compartimentaliza-ção territorial entre dois discursos: da soberania versus intervenção;guerra civil versus genocídio. Por um lado, circunscrito pelo territó-rio ruandês, existe o lugar da guerra civil, da soberania, do consenso edo cessar-fogo. Por outro, em qualquer lugar fora das fronteiras ruan-

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desas, existe o lugar do genocídio, da intervenção humanitária, dasoperações de socorro. Dessa forma, é possível manter o princípio da“soberania, integridade territorial e unidade nacional dos Estados”(United Nations, 1992, parágrafo 30) e ao mesmo tempo cumprir umdever moral para com uma humanidade comum. Contudo, essa solu-ção falha em incorporar as implicações do genocídio no desenho e naimplementação dos programas de assistência em Ruanda.

Por um lado, o discurso da guerra civil e da soberania requer do Esta-do responsabilidade irrestrita por seu território e por seus nacionais,mesmo diante da carência de infra-estrutura e recursos financeiros.Por outro lado, o tema “intervenção humanitária” evoca a noção de“vítimas”, de pessoas e/ou grupos incapazes de agir por si sós, neces-sitados de assistência. Assim, a compartimentalização discursi-vo-territorial – que alinha de um lado da fronteira (física) guerra civile soberania, e do outro lado genocídio e intervenção – permitiu queos perpetradores do genocídio se reorganizassem política e militar-mente nos campos de refugiados e ao mesmo tempo negligenciou aspopulações necessitadas dentro das fronteiras ruandesas. Essa irôni-ca contradição é conseqüência da aplicação irreflexiva de princípiospredeterminados em detrimento da decisão tomada em seu própriocontexto de indecidibilidade, e foi responsável por um resultado de-sumano.

Essas foram as conclusões a que chegamos na feitura desse artigo, eacreditamos que trazem duas grandes contribuições.

Em primeiro lugar, chamam a atenção para a premência de se lançarum novo olhar sobre o Terceiro Mundo. O legado do colonialismonessas sociedades não deve ser obliterado, mas é mister que pense-mos nesses povos como agentes, como “Eus” e Outros, e não comomeros objetos das políticas ocidentais.

Em segundo lugar, o caso ruandês é relevante porque a imprevisibili-dade do genocídio dá ensejo à seguinte questão: até quando esperar?

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Que tipo de violência pode ser tolerado, e até que ponto? Essas per-guntas nos remetem àquela colocada por Daniel Warner (1996):quando a responsabilidade é ativada?

Responde-se a essa questão com outra: a responsabilidade precisaser ativada? De acordo com Emmanuel Levinas (1999), não. A res-ponsabilidade “é anterior à própria consciência do eu e à sua capaci-dade de comunicação” (idem:103), é inescapável.

Assim, ainda que Ruanda não fosse “uma ameaça genuína à paz e se-gurança internacionais” (Barnett, 2002:102) e mesmo diante de obri-gações concorrentes, a conclusão de que “não lhe dizia respeito” nãoisentou a ONU de responsabilidade. Mas como comparar Outrosúnicos e incomparáveis e julgar entre eles sem contudo acabar com auniversalidade da responsabilidade ética? Essa questão, aparente-mente sem resposta, significa que a responsabilidade ética requeruma estratégia utópica: o indecidível, a aporia, a necessidade de ace-nar para dois imperativos contraditórios com o objetivo de inventarnovos gestos, discursos e práticas.

Notas

1. Sobre a imprensa internacional, ver Hintjens (1999:248). Sobre as NaçõesUnidas, ver United Nations (1994c), Jones (2001:15-16) e Uvin (2001:75). So-bre as partes em conflito, ver Hintjens (1999:248) e Kuperman (2000:102-103).Sobre as narrativas acadêmicas, ver Jones (2001), Barnett (2002), Kuperman(2000), Uvin (2001), Khan (2000), Gourevitch (2000) e Mamdani (2001). Umaexceção é Hintjens (1999), que comenta os impactos da invasão da FrentePatriótica Ruandesa (FPR) em 1990, mas praticamente ignora a retomada daguerra civil em 1994 como conseqüência do início do genocídio. Em uma brevee implícita menção à guerra civil, a autora diz que “a FAR [Forças ArmadasRuandesas] e as milícias estavam tão ocupadas em matar civis desarmados queem junho a FPR foi capaz de tomar o país” (idem:269, tradução nossa).

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2. A Frente Patriótica Ruandesa foi formada em 1987 por um grupo da segun-da geração de refugiados ruandeses que haviam buscado exílio em Uganda em1959. Grande parte deste grupo havia nascido em Uganda e nunca havia estadoem Ruanda. Inicialmente, a FPR foi concebida em parte para organizar um re-torno militar dos refugiados ruandeses em Uganda (Jones, 2001:23).

3. Do inglês, United Nations Assistance Mission for Rwanda (Missão deAssistência das Nações Unidas para Ruanda).

4. Muito mais do que a rejeição ao positivismo, o caráter antifundacionalistaaproxima grandemente pós-modernos e pós-estruturalistas, tanto que se tornadifícil fixar os limites entre uma e outra perspectiva. David Campbell e Jim Ge-orge (1990:270, nota 2) afirmam que as duas perspectivas compartilham um re-conhecimento da “natureza constitutiva da linguagem” e uma antipatia por sis-temas “fechados” de conhecimento “nos quais análise e identidade são reduzí-veis a oposições binárias”. Ambas as abordagens colocam em questão a lingua-gem, os conceitos, os métodos e a história – leia-se os discursos dominantes –que constituem e governam uma “tradição” ou pensamento. É possível perceberque não há um consenso sobre o que pós-estruturalismo e pós-modernismo são– e tampouco parece haver interesse em se chegar a uma definição precisa. Ri-chard Devetak (1996:179) afirma que não é possível encontrar uma definição depós-modernismo sobre a qual haja um consenso geral; e, de forma similar, ChrisBrown (1994:223) diz que o pós-estruturalismo é peculiarmente resistente afrases como “o pós-estruturalismo é...”. A busca por definições precisas, fecha-das, de ambos os termos não só é vã como vai de encontro ao cerne da argumen-tação de ambas as perspectivas. Sendo assim, também eu me eximo da tarefa deoferecer uma definição acabada de pós-modernismo e pós-estruturalismo. Con-sideraremos os principais traços e contribuições dessas abordagens, sem nospreocuparmos em definir os limites entre uma e outra, e muito menos em rotularautores como se pudessem ser encaixados em categorias hermeticamente fecha-das.

5. Dentro desse arcabouço, entende-se a emancipação não por meio do des-mascaramento do poder, da opressão e da ideologia, mas pela demonstração deexemplos concretos – via pesquisa histórica detalhada – de como o poder é em-pregado em todos os rincões da sociedade.

6. O funcionamento do procedimento logocêntrico pode ser mais claramentevisto em oposições práticas familiares, tais como dentro/fora, literal/figurativo,centro/periferia, continuidade/mudança, objetivo/subjetivo. Em face dessas ede outras oposições, o sujeito participante no regime da modernidade é inclina-do pelo procedimento logocêntrico a impor uma hierarquia ao identificar suavoz de interpretação e prática com um ponto de vista subjetivo, um centro inter-pretativo soberano. A partir desse posicionamento, um dos lados de tais oposi-

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ções pode ser concebido como uma realidade maior, pertencente ao domínio dologos, ou como presença pura e indivisível sem necessidade de explicação. Ooutro termo de cada par é então definido somente em relação ao primeiro termo,com uma denotação de inferioridade ou derivação. Ao privilegiar um dos ter-mos, o procedimento logocêntrico dá efeito a uma hierarquia na qual o outro ter-mo se torna uma negação, uma manifestação, um efeito, uma disfunção(Ashley, 1989:261).

7. Do inglês, “I-Thou” e “I-It”. O primeiro caso constitui uma relação com ooutro-como-sujeito, enquanto o segundo caso designa uma relação com o ou-tro-como-objeto.

8. O governo interino foi estabelecido em 9 de abril de 1994, mas deixou Ki-gali em 12 de abril, devido à violência na cidade. Ver Barnett (2002:146).

9. Esses processos são descritos em detalhes por Jones (2001:53-66). As ne-gociações de Arusha também são detalhadas em Jones (idem:69-84).

10. Os textos não disponíveis em língua portuguesa foram traduzidos livre-mente pela autora deste artigo.

11. O termo “desdobramento de tropas” refere-se ao equivalente do inglês de-ployment, cujos significados são: “1. O movimento de forças entre áreas de ope-rações; 2. A passagem de forças para a posição de batalha; 3. A realocação deforças e material para determinadas áreas de operações; 4. Desdobramento in-clui todas as atividades da sede ou instalação de origem até o destino [...]; 5. Asatividades necessárias para preparar e mover uma força, seus equipamentos esuprimentos para a área de operações em resposta a uma crise ou desastre na-tural” (FM 101-5-1, 1997:1-51 apud Conjuntura Internacional [portal daPUC-Minas, disponível em <http://www.pucminas.br/conjuntura/index1.php?tipoãform=glossario&menu=1195&cabecalho=29&lateral=6>, acessadoem 12/3/2005]).

12. Esse trecho refere-se ao episódio do assassinato de Mr. Félicien Gatabazi(secretário-geral do Partido Social Democrata) e Mr. Martin Buchyana (presi-dente da Coalizão para Defesa da República).

13. Estima-se que 250 mil tutsis tenham sido brutalmente assassinados até 21de abril de 1994 – em apenas quatorze dias desde o início do genocídio (Kuper-man, 2000:96-98). Em termos comparativos, esse número equivaleria a aproxi-madamente 2 milhões de pessoas na França, 4 milhões em Bangladesh, 5 mi-lhões no Brasil e 9 milhões nos Estados Unidos (United Nations, 1994h, 5o pará-grafo). No período compreendido entre a segunda semana de abril e a terceirasemana de maio, estima-se que 5% a 10% da população ruandesa (que antes do

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genocídio era de 7 milhões de pessoas) tenha sido brutalmente exterminada(Hintjens, 1999:241).

14. Segundo o relatório especial do secretário-geral apresentado ao Conselhode Segurança em 20 de abril de 1994 (United Nations, 1994c, 2o parágrafo), esse“trágico incidente [a queda do avião no aeroporto de Kigali, que matou, entreoutros, os presidentes Juvenal Habyarimana, de Ruanda, e Cyprien Ntayamira,do Burundi] deu início a uma torrente de matanças generalizadas principalmen-te em Kigali, mas também em outras partes do país. A violência parece ter di-mensões políticas e étnicas. Nenhuma estimativa confiável das mortes foi dis-ponibilizada até agora, mas poderiam ser de dezenas de milhares”.

15. Sobre os papéis desempenhados pela OUA e pela Tanzânia, ver Jones(2001:74-79).

16. Do inglês, undecidibility.

17. Texto tirado da obra de Derrida, The Other Heading: Reflections on To-day’s Europe, de 1992.

18. A chamada “Operação Turquesa” (do francês Opération Turquoise) eracomposta por 2.500 homens e recebeu um mandato de dois meses de acordocom o capítulo VII da Carta das Nações Unidas. No dia seguinte à sua aprovaçãopelo Conselho, as primeiras tropas francesas da Operação Turquesa desloca-ram-se de Goma para o noroeste de Ruanda (Gourevitch, 2000:183; Jones,2001:123; e Barnett, 2002:149). Para Jones (2001), está claro que a França pre-tendia intervir em Ruanda com ou sem a autorização do Conselho de Segurança.Os planos de intervenção francesa foram trazidos para a apreciação do Conse-lho em 20 de junho, e no dia seguinte a França já começou a mover suas tropasde suas bases africanas na República da África Central e no Chade em direção aGoma, antes da autorização do Conselho em 22 de junho (idem:123-124).

19. Ver Jones (1995:231; 2001:123), Gourevitch (2000:183-185), Barnett(2002:148), Mamdani (2001:214), Uvin (2001:87) e Hintjens (1999:273). Vertambém François-Xavier Verschave (Complicité de Genocide? La Politique dela France au Rwanda, de 1994) e Jean-Claude Willame (Diplonatie Internatio-nale et Génocide au Rwanda, de 1994) (apud Uvin, 2001:87).

20. Doravante, o emprego do termo “humanitarismo” neste artigo se refere ànoção de humanitarianism como definida acima.

21. Isso acontece porque a intervenção é a prática política per se que estabilizao significado da soberania. Ou seja, intervenção e soberania são as próprias con-dições de existência uma da outra. Assim, a fronteira entre esses termos é apaga-

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da e eles deixam de se excluir mutuamente e passam a ser significantes que tra-zem à existência o mesmo sentido.

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Resumo

Além do Ocidente, além do Estadoe muito além da Moral: Por umaPolítica Eticamente Responsávelem Relação à Diferença – O CasoRuandês

A partir de uma abordagem pós-moderna/pós-estruturalista em relações in-ternacionais, o presente artigo tem por objetivo fazer uma análise da deci-são tomada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 21 de abril de1994 sobre o estabelecimento da Unamir como resposta à violência em Ru-anda naquele momento. A ênfase recai sobre a avaliação da responsabilida-de ética da organização, à luz da rearticulação radical dos conceitos de éti-ca, responsabilidade e subjetividade proposta por Emmanuel Levinas. Bus-cam-se as implicações dessa decisão em termos das conseqüências que elapermitiu – a saber, o genocídio ruandês, o prolongamento da violência pos-sibilitado pela Operação Turquesa e a reorganização do movimento genoci-da nos campos de refugiados. Além disso, debruça-se sobre um tema maisprofundo, que subjaz as condições permissivas dessas trágicas conseqüên-cias: a dominação do princípio do Estado-territorial-soberano na imagina-ção política contemporânea. As rijas fronteiras entre dentro/fora, Esta-do/campo de refugiados, doméstico/internacional derivadas desse princí-pio impuseram também uma compartimentalização na seara da formulaçãode políticas para lidar com a crise humanitária que se seguiu ao genocídio.Essa forma fragmentada de lidar com um problema complexo e multifaceta-do, por sua vez, resultou em políticas que distorceram as prioridades, mina-ram a efetividade dos programas de assistência e alienaram o novo governoinstalado.

Palavras-chave: Ruanda – Genocídio – Responsabilidade – Ética

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Abstract

Beyond the West, beyond theState, and much beyond theMoral: For an EthicallyResponsible Policy Towards theDifference – The Rwandan Case

Drawing on a post-modern/post-structuralist approach in InternationalRelations, this article aims to make an analysis of the UN´s decision taken inApril 21, 1994 about the establishment of Unamir as a response to theviolence in Rwanda. We emphasize the assessment of the ethicalresponsibility of the organization, in terms of the radical re-articulation ofthe concepts of ethics, responsibility, and subjectivity, as proposed byEmmanuel Levinas. We look for the implications of that decision in termsof the consequences it permitted – that is, the Rwandan genocide, theincreasing of the violence over time allowed by Turquoise Operation, andthe reorganization of the genociders in the refugees´ camps. Besides, weintend to look upon a deeper theme, which underlies the permissiveconditions of those tragic consequences: the sovereign-territorial-stateprinciple domination in the contemporary political imagination. The hardboundar ies be tween ins ide /ou t s ide , s t a t e / re fugee camp,domestic/international derived from that principle imposed also acompartmentalization in the arena of formulation of policies to deal withthe humanitarian crisis that followed the genocide. This fragmented way todeal with such a complex and multifaceted problem, for its turn, resulted inpolitics that distorted the priorities and undermined the effectiveness of theassistance programs, as well as alienated the newly installed government.

Key words: Rwanda – Genocide – Responsibility – Ethics

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O fim do mundo bipolar, que concentrou as principais atenções nosdebates sobre a estrutura das relações internacionais da segunda me-tade do século XX, traz como um de seus desdobramentos intelectu-ais e políticos mais importantes o ressurgimento do imperialismocomo foco de reflexão sobre a ordem mundial em formação.

Para diversos analistas, tanto conservadores como críticos em rela-ção ao capitalismo, a atual supremacia desse sistema e a emergênciados Estados Unidos como única superpotência global, apesar de in-questionáveis, trazem como elemento de indagação seu significadohistórico, seja como fase inaugural de um período de paz e prosperi-dade, seja como estágio final de um modelo civilizatório que teve noOcidente seu grande impulsor.

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* Artigo recebido em agosto e aceito para publicação em setembro de 2005.** Professor do Departamento de Economia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e do programade Pós-Graduação em Relações Internacionais da Unesp/Unicamp/PUC-SP.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 331-368.

Os Estados Unidos eas RelaçõesInternacionaisContemporâneas*Luis Fernando Ayerbe**

Evidentemente, não é a primeira vez na história do capitalismo queessas questões se fazem presentes. O mesmo dilema acompanhou osdebates sobre a longevidade do sistema e as possibilidades estru-turais da hegemonia ocidental na transição do século XIX para o XX.Diante do impasse na II Internacional, decorrente de profundas con-trovérsias sobre os impactos das mudanças sistêmicas na estratégiada revolução socialista, as teses de Lênin sobre imperialismo funda-mentam o programa político que orientou a vitória bolchevique naRússia. Para Lênin, o imperialismo representa a negação, via expan-são externa, das contradições internas do modo de produção capita-lista nos países centrais. A partilha do mundo entre as grandes potên-cias e a expansão do capitalismo financeiro gera uma nova divisão in-ternacional do trabalho, deslocando os sintomas agudos da gravida-de da crise do centro para a periferia do sistema. É aqui que se locali-zam os elos fracos da cadeia imperialista, junto com as condições ob-jetivas da revolução.

Analistas da evolução mais recente do capitalismo, como MichaelHardt e Antonio Negri (2001), dão por encerrada a fase imperialistacaracterizada por Lênin. Para eles, a expansão territorial impulsiona-da pelos Estados-nação deu lugar ao Império, abarcador da totalida-de. Já não há lado de fora, instalou-se o reino do mercado mundial,tornando obsoletas as separações de países com base nas noções tra-dicionais de hierarquia dos mundos. Na nova ordem mundial, perdeusentido a diferenciação entre espaços internos e externos.

Do ponto de vista das abordagens legitimadoras da nova realidade, oImpério representa o fim da história; nesse sentido, os autores reco-nhecem as bases concretas que alimentam perspectivas como a deFukuyama, para quem desapareceram definitivamente as alternati-vas ao capitalismo, eliminando as bases de conflito originárias deforças externas ao sistema. Para Hardt e Negri (idem), que se situamentre os críticos da ordem, o Império representa um avanço em rela-

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ção ao imperialismo, da mesma forma que o capitalismo expressaum processo evolutivo sobre os modos de produção que o antecede-ram.

Diferentemente dos autores de Império, que questionam a relevânciadas perspectivas orientadas pela lógica do Estado-nação, Arrighi eSilver (2001) centralizam sua análise do capitalismo atual no papelexercido pela sua potência hegemônica, que consideram em estadode crise sistêmica. Analisando os períodos de transição hegemônicaholandês–britânico e britânico–norte-americano, apontam para aexistência de padrões comparáveis de crise e reorganização marca-dos por “três processos distintos mas estreitamente relacionados: aintensificação da concorrência interestatal e interempresarial; esca-lada dos conflitos sociais; e o surgimento intersticial de novas confi-gurações de poder” (idem:39).

Independentemente das especificidades de cada situação histórica,as três crises hegemônicas apresentam como elemento comum as ex-pansões financeiras, que permitem ao líder dominante um acesso pri-vilegiado aos recursos financeiros mundiais, contribuindo para adiartemporariamente o fim da sua liderança.

O atual contexto de expansão financeira, que tem como centro osEstados Unidos, representa para os autores um sinal de crise hege-mônica que, no entanto, apresenta algumas peculiaridades em rela-ção às fases anteriores:

1) A potência em declínio não tem concorrentes no campo militar,mas tornou-se dependente, na administração do seu poder, de recur-sos financeiros de outros centros de acumulação de capital, marcada-mente Europa ocidental e Japão.

2) Diferentemente do processo de globalização das últimas décadasdo século XIX, em que os Estados-nação eram protagonistas funda-

Os Estados Unidos e as Relações

Internacionais Contemporâneas

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mentais da internacionalização do capital, há uma diminuição do seupoder em detrimento do setor privado transnacional.

3) Em comparação ao aumento dos conflitos sociais que acompa-nhou os períodos de transição holandesa e britânica, especialmenteos vinculados à luta antiescravista e ao movimento operário, os auto-res identificam uma perda conjuntural de poder dos movimentos so-ciais. No entanto, os efeitos estruturais desagregadores da atual con-figuração global criam novas fontes de conflito para as quais nãoexiste capacidade adequada de resposta.

4) Nas transições hegemônicas anteriores, a emergência de uma novapotência precipitou o desmoronamento do antigo poder: Inglaterraem relação à Holanda, Estados Unidos em relação à Inglaterra.Embora os autores coloquem em evidência a crescente expansãoeconômica do Leste da Ásia, isto não configura uma ameaça ao po-derio militar estadunidense. Esta situação impõe uma marca peculiarà atual mudança no sistema mundial, cujo desfecho poderá ser maisou menos problemático dependendo da atitude dos Estados Unidos:

“[...] essa nação tem uma capacidade ainda maior do que teve a Grã-Bretanha, cem anos atrás, para converter sua hegemonia decrescente emuma dominação exploradora. Se o sistema vier a entrar em colapso, será so-bretudo pela resistência norte-americana à adaptação e à conciliação. E, in-versamente, a adaptação e a conciliação norte-americanas ao crescente po-der econômico da região do Leste da Ásia é condição essencial para umatransição não catastrófica para uma nova ordem mundial” (idem:298).

As respostas do governo dos Estados Unidos aos atentados de 11 desetembro de 2001 representaram um teste importante para os argu-mentos da crise de hegemonia. Sem rejeitar completamente as tesesde Arrighi e Silver (idem), Ana Esther Ceceña (2002:181) sustentaque “a hegemonia estadunidense está em decadência ao mesmo tem-po em que se encontra mais forte e consolidada do que nunca antes nahistória”.

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Em apoio a essa afirmação, aparentemente contraditória, Ceceñadestaca os fatores que sustentam e comprometem a manutenção daposição hegemônica. Paralelamente à supremacia militar apontadapor Arrighi e Silver (2001), adquirem relevância as dimensões eco-nômica e cultural.

No plano econômico, verifica-se a

“Superioridade tecnológica em quase todos os campos estratégicos da con-corrência [...]; superioridade no controle de fontes naturais de recursos es-tratégicos; rede produtiva de maior amplitude e densidade do mundo; mane-jo do mercado de trabalho mais diverso do ponto de vista cultural, geográfi-co e de níveis e tipos de conhecimento; capacidade de controle dos mecanis-mos de organização econômica mundial tais como políticas gerais (BM,OMC e outros), dívida (FMI, FED e outros), protocolos de regulamentaçãoetc.” (Ceceña, 2002:168-169).

No âmbito cultural, reconhece a

“Capacidade para generalizar, ainda que com contradições, um paradigmacultural correspondente ao american way of life – e ao que este significa tra-duzido a outras situações e culturas – que coincide com a homogeneizaçãode mercados, a estandardização da produção e a uniformização das visõessobre o mundo” (idem:169).

No interior do governo dos Estados Unidos, consolidam-se as posi-ções favoráveis ao aprofundamento da hegemonia, conduzindo a umintervencionismo que incorpora no seu discurso as três dimensõesapontadas por Ceceña (idem): as invasões do Afeganistão e do Ira-que, anunciadas como resposta militar às novas ameaças terroristas,em países situados em uma área geográfica estratégica em termos deacesso a reservas petrolíferas, governados por regimes políticos em-blemáticos da oposição ao “modo de vida ocidental”.

Em relação aos fatores limitantes da hegemonia, a autora coincidecom Arrighi e Silver (2001) na caracterização dos impasses sociaisgerados pelo sistema, não deixando aos setores populares outra alter-nativa fora da sua negação. “Um sistema sem opções, sem saídas,

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sem soluções para as imensas maiorias negadas que não têm maneirade se sustentar e criam, como dizia Marx, as condições da sua auto-destruição” (Ceceña, 2002:182).

Choque de Civilizações:

Uma Ideologia Nacional

O reconhecimento de que a hegemonia dos Estados Unidos se tornouuma realidade incontestada da Nova Ordem Mundial abre espaçopara um processo de debates no interior do establishment vinculado àpolítica externa do país sobre a caracterização da nova etapa e a for-mulação de uma estratégia internacional adequada. A substituiçãodo paradigma da Guerra Fria requer uma redefinição dos interessesnacionais, desafios e ameaças a enfrentar.

A partir de uma perspectiva conservadora, Samuel Huntington cha-ma a atenção para as conseqüências negativas do unilateralismo dapolítica externa norte-americana do pós-Guerra Fria. Diferentemen-te de Arrighi e Silver (2001), que situam na história do capitalismo asreferências do que consideram uma crise da atual potência hegemô-nica, Huntington preocupa-se com os fatores que podem corroer acontinuidade da civilização ocidental e, conseqüentemente, dosEstados Unidos como nação.

Em artigo publicado em 1993 na revista Foreign Affairs, Huntington(1993) propõe uma nova abordagem sobre a dinâmica das relaçõesinternacionais, desencadeando um amplo debate. Na sua caracteriza-ção da Nova Ordem Mundial, quatro aspectos são destacados: 1) aderrota do socialismo, promotor de um sistema econômico que ques-tionava a propriedade privada dos meios de produção; 2) a dissemi-nação global da lógica do mercado; 3) o controle das instituiçõeseconômicas multilaterais (FMI, Banco Mundial, OMC) pelos paísesdo capitalismo avançado; 4) a conquista da superioridade militar porparte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

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O autor considera que as principais fontes de conflito na ordem emconfiguração não serão políticas, ideológicas ou econômicas, elas vi-rão das linhas que separam as diversas culturas e civilizações: oci-dental, confuciana, japonesa, islâmica, hindu, eslava ortodoxa, lati-no-americana e africana.

Da perspectiva de Huntington (1997), a noção de que a derrota do ini-migo soviético elimina o último obstáculo ao avanço triunfal da de-mocracia liberal, do capitalismo de mercado e dos valores da civili-zação ocidental é questionável. Colocando-se na contramão das pos-turas ufanistas, explicita sua oposição às teses do fim da história, des-tacando os genocídios que emergem após a queda do muro de Ber-lim, de freqüência mais comum do que em qualquer período da Guer-ra Fria: “O paradigma de um só mundo harmônico está claramentedivorciado demais da realidade para ser um guia útil no mundopós-Guerra Fria” (idem:33).

Em uma ordem mundial em que as principais fontes de conflito sãode origem cultural, a afirmação de identidades adquire especial rele-vância, implicando em desdobramentos específicos na definição dointeresse nacional. Referindo-se aos Estados Unidos, Huntingtondestaca a necessidade de se estabelecer um consenso sobre as basesconstitutivas da cultura do país, antes de definir quais são seus inte-resses. No entanto, como o próprio autor reconhece, “nós só sabemosquem somos quando sabemos quem não somos e, muitas vezes,quando sabemos contra quem estamos” (idem:20).

Com o fim da Guerra Fria, desaparece o “outro” que encarnava a ne-gação do modo de vida americano e justificava a necessidade de umapostura nacional coesa e militante. As transformações demográficas,com novas ondas migratórias de população de origem predominante-mente hispânica, influenciam mudanças raciais, religiosas e étnicasque podem colocar obstáculos à tradicional capacidade do país de as-

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similar outras culturas. Nessa perspectiva, a afirmação da identidaderequer uma nova demarcação das fronteiras em relação aos outros.

Essa tarefa tem dimensões internacionais e domésticas. O mundo dascivilizações é um campo de muitas incertezas, em que a ação dos ato-res responde a diversos tipos de racionalidades, muito mais comple-xas do que a lógica bipolar da Guerra Fria. Conhecer-se e conhecer osoutros exige cautela. Na política externa, Huntington recomendauma postura não intervencionista. Os Estados Unidos devem reco-nhecer os espaços civilizacionais e os seus respectivos Esta-dos-núcleos, evitando o envolvimento nos conflitos internos das ou-tras civilizações.

Analisando a inserção internacional do país após o fim da GuerraFria, Huntington (2000) identifica três etapas: 1ª) um breve momentounipolar, tipificado na ação unilateral na Guerra do Golfo; 2ª) um sis-tema unimultipolar em andamento, que prepara a transição para aterceira etapa; 3ª) etapa multipolar. No contexto atual, o autor perce-be uma contradição entre o sistema unimultipolar e a política externaadotada a partir do governo Clinton, que mantém características típi-cas da unipolaridade, com uma postura imperialista que provoca a in-satisfação dos aliados tradicionais e estimula a solidariedade entre osadversários. Essa política se expressa em ações bastante evidentescomo

“[...] pressionar outros países a adotar valores e práticas norte-americanasno que diz respeito aos direitos humanos e à democracia; evitar que outrospaíses adquiram capacidade militar que possa constituir um desafio à supe-rioridade de seu arsenal de armas convencionais; impor o cumprimento desuas próprias leis fora de seu território a outras sociedades; atribuir classifi-cações aos países de acordo com seu grau de aceitação aos padrões nor-te-americanos no que concerne a direitos humanos, drogas, terrorismo, pro-liferação de armas nucleares e de mísseis ou, mais recentemente, liberdadede religião; aplicar sanções aos países que não atendam tais padrões; pro-mover os interesses empresariais norte-americanos sob a bandeira do livrecomércio e da abertura de mercados; influenciar as políticas do Banco Mun-

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dial e do Fundo Monetário Internacional segundo esses mesmos interessescorporativos; intervir em conflitos locais de pouco interesse direto para opaís; impor a outros países a adoção de políticas econômicas e sociais quebeneficiarão os interesses econômicos norte-americanos; promover a ven-da de armas para o exterior ao mesmo tempo procurando evitar vendas denatureza semelhante por parte de outros países” (idem:15).

Referindo-se ao contexto posterior ao 11 de Setembro e ao debate so-bre as posições que deverão ser assumidas na defesa dos interessesnacionais do país, Huntington (2004) sistematiza três abordagens di-ferentes: 1) cosmopolita, que envolveria a renovação das concepçõesfavoráveis à abertura ao mundo antes do ataque terrorista; 2) impe-rial, vinculada aos setores neoconservadores presentes no governoBush, que defendem a estruturação do mundo à imagem e semelhan-ça do american way of life; e 3) nacional, próxima da sua própriaperspectiva, que busca preservar e enaltecer os valores, princípios equalidades que estariam presentes nas origens da construção da na-ção. Dessa perspectiva, o “cosmopolitismo e o imperialismo procu-ram reduzir ou eliminar as diferenças sociais, políticas e culturais en-tre a América e as outras sociedades. Uma abordagem nacional reco-nheceria e aceitaria aquilo que distingue a América de outras socie-dades” (idem:364).

A grande repercussão das teses de Huntington nos debates sobre anova configuração das relações internacionais após o fim da bipolari-dade não esteve isenta de controvérsias, com críticas que destacamdesde a ausência de rigor conceitual na caracterização das civiliza-ções existentes até a adoção de um culturalismo com nítidas conota-ções ideológicas, que enaltece as virtudes da “civilização ocidental”em detrimento do “resto” e influencia posturas isolacionistas na polí-tica externa, animadas por argumentos discriminatórios em relaçãoàs outras civilizações (Ayerbe, 2003).

Sem desconsiderar a validade desses questionamentos, se avaliada àluz da sua intencionalidade explícita de defesa dos interesses nacio-

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nais dos Estados Unidos, a análise de Huntington apresenta uma ra-cionalidade estratégica de longo alcance que nos parece relevante.

Para o autor, a derrota da União Soviética colocou o Ocidente emuma situação de inquestionável supremacia global. Na ausência deuma superpotência inimiga do sistema, os apoios incondicionais e anoção de “guardião do mundo livre” perdem significado. Os assun-tos mundiais ganham outra dimensão. Perdas e danos na concorrên-cia por mercados, ou situações de desequilíbrio político geradoras deconflitos regionais, deixam de ser vistos com lentes ideológicas.Nesse contexto, assumir perspectivas missionárias pode levar a últi-ma superpotência a um processo de isolamento. A administração dahegemonia exige um cuidadoso trabalho de geração de novas alian-ças e tratamento negociado das divergências, buscando amenizar ou,no melhor dos casos, eliminar o caráter antagônico das contradições,o que torna contraproducentes as posturas arrogantes e intervencio-nistas. Na raiz do seu culturalismo, está a crescente preocupação comnovas fontes de conflito que, embora não coloquem em questão o sis-tema, podem afetar a governabilidade. Para Huntington, após as vitó-rias da Guerra Fria, não há nada decisivo a ser conquistado.

Nesse sentido, há uma diferença substancial em relação à análise deArrighi e Silver (2001), que situa na história do capitalismo as refe-rências atuais do que consideram uma crise da hegemonia nor-te-americana. A principal preocupação de Huntington não é com asameaças externas. Embora chame a atenção para o crescente poderioda China, não vê possibilidades de riscos que ponham em questão aexistência do sistema. O principal dilema é a continuidade dos funda-mentos culturais que colocaram a civilização ocidental, e os EstadosUnidos, na liderança do mundo. Uma vez atingido o ápice dessa tra-jetória, como evitar os sinais de declínio presentes em alguns valorese comportamentos que tendem a minar a identidade nacional?

No âmbito internacional, a crescente ampliação do abismo entre a ri-queza e a pobreza, uma das tendências da atual realidade mundial so-

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bre a qual existe bastante consenso, sinaliza que a prosperidadeanunciada pela vitória do capitalismo liberal é estruturalmente restri-ta. Deste ponto de vista, qual o sentido de estimular expectativas so-bre a inevitável disseminação global do american way of life?

Diferentemente de Hardt e Negri (2001), Huntington não deixa dúvi-das sobre o caráter imperialista da ação integrada envolvendo o Esta-do, o setor privado e os organismos multilaterais. A imposição demodelos econômicos que, em nome da liberdade de mercado, pro-movem basicamente a maximização dos lucros das empresas nor-te-americanas no exterior, pode ter conseqüências danosas nos paí-ses e regiões com menor capacidade de adaptação à competição glo-bal, acentuando as disparidades entre ricos e pobres e contribuindopara inflamar sentimentos fundamentalistas.

É com base nesses pressupostos que critica explicitamente a aborda-gem do “fim da história”, típica da tradição imperial do Ocidente,que prescreve ao resto do mundo modos universais de convívio hu-mano. Se bem considera essa perspectiva válida em outros contextos,ajudando a promover sua expansão, deixou de ser aconselhável. Noplano internacional, pelas conseqüências antes mencionadas, inter-namente, porque estimula um clima intelectual propício à acomoda-ção no desfrute da vitória e à perda de vigilância em relação aos ini-migos.

Para Chalmers Johnson (2004), um crítico da política externa de Ge-orge W. Bush, a atuação internacional dos Estados Unidos aparentaadotar a tese do Choque de Civilizações, embora em um sentidooposto do isolacionismo prescrito por Huntington, recriando um“missionarismo” fundamentalista cristão. Apesar de avaliar negati-vamente os custos econômicos da dominação militar do mundo, quedesvia recursos da economia privada e contradiz o espírito de livreiniciativa, Johnson (idem:310) não assume uma posição definitivasobre o futuro: “deve-se reconhecer que qualquer estudo sobre o nos-

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so império é um trabalho em andamento. Mesmo que possamos co-nhecer seus resultados eventuais, não está totalmente claro o quevem depois”.

Unilateralismo/Multilatera-

lismo: A “Doutrina Bush”

Na era das armas nucleares, não é possível imaginar a emergência denovas superpotências como resultado da derrocada militar das anti-gas. Como mostra a experiência da ex-União Soviética, a implosãopode resultar da incapacidade do sistema de responder às pressõesoriginárias de um cenário internacional cuja dinâmica se torna in-compatível com a manutenção da ordem vigente.

A Rússia apresenta-se como o elo fraco das crises que inauguraram efecharam o curto século XX delimitado por Hobsbawm. A revoluçãovitoriosa de 1917 gerou um modelo de desenvolvimento que trans-formou o país em protagonista central das relações internacionais,cabendo-lhe papel de destaque na vitória dos aliados na SegundaGuerra e compartilhando com os Estados Unidos o status de super-potência nas décadas da Guerra Fria. No entanto, sucumbiu peranteos desafios da radicalização de antagonismos promovida pelo gover-no Reagan. Os crescentes esforços econômicos exigidos pela manu-tenção do equilíbrio de poder minaram a capacidade de sustentaçãodo sistema, em um contexto em que os rápidos avanços no campotecnológico aprofundam as disparidades entre os países que lideramo processo de inovação, marcadamente as potências capitalistas, eaqueles como a antiga URSS, cujo crescimento permanece forte-mente dependente da disponibilidade de mão-de-obra e de recursosnaturais.

No caso dos Estados Unidos, é possível caracterizá-lo, na perspecti-va de Arrighi e Silver (2001), como o atual elo fraco da cadeia impe-

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rialista? Como bem mostra Ceceña (2002), a hegemonia do país nãose dá apenas no campo militar, mas também no econômico e cultural.

Do meu ponto de vista, o unilateralismo da política externa de Geor-ge W. Bush não é uma resposta improvisada aos atentados de 11 desetembro, é uma marca característica da sua gestão. Desde a posse,redefine a posição do país frente a importantes tratados internacio-nais, sinalizando várias diferenças em relação à administração ante-rior, como as decisões contrárias à ratificação do protocolo de Kyoto,à criação do Tribunal Penal Internacional (TPI) e à proposta de revi-são do Tratado Anti-mísseis Balísticos (TAB).

Os atentados contribuem para consolidar no interior do establish-ment as posições favoráveis à entronização dos Estados Unidoscomo principais responsáveis pela vigilância e punição dos inimigosda ordem, já não como guardiões do “mundo livre”, mas como prote-tores das fronteiras que separam a “civilização” da “barbárie”, dotan-do a guerra declarada ao terrorismo de contornos bem amplos. A ca-racterização dos grupos patrocinadores do terrorismo é suficiente-mente ambígua, como que para justificar a inclusão ou exclusão deorganizações ou movimentos de acordo com os interesses conjuntu-rais do país. Conforme explicitou Colin Powell (2001), secretário deEstado no primeiro mandato de Bush: “Qualquer organização queesteja interessada em operações terroristas para subverter os gover-nos legítimos, democraticamente eleitos, ou governos que represen-tam a vontade de seu povo, é uma ameaça”.

A despeito do apoio internacional recebido pelos Estados Unidos noataque ao Afeganistão, a rápida vitória militar contribuiu para forta-lecer o unilateralismo. O resultado foi a formulação de uma novaconcepção na orientação das relações internacionais do país, quepassou a ser conhecida como “Doutrina Bush”, cujo alvo imediatofoi o regime iraquiano de Saddam Hussein.

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Conforme explicita o documento “A Estratégia de Segurança Nacio-nal dos EUA” (NSC, 2002), dado a conhecer pela Casa Branca emsetembro de 2002, a contenção e a dissuasão, que nortearam a políti-ca externa nas décadas da Guerra Fria, perdem centralidade para apreempção e a prevenção, justificando ataques contra Estados e orga-nizações suspeitos de planejarem atos de hostilidade contra o país eos seus aliados.

“Na Guerra Fria, especialmente no contexto da crise dos mísseis cubanos,nós geralmente enfrentamos um status quo, um adversário com aversão aorisco. A contenção era uma defesa eficaz. Mas a contenção baseada somentena ameaça da retaliação tem menos probabilidade de funcionar contra líde-res de Estados fora-da-lei com maior disposição para assumirem riscos, jo-gando com as vidas de seus povos e a riqueza de suas nações. Para prevenirou impedir tais atos hostis por parte dos nossos adversários, os Estados Uni-dos, se necessário, atuarão preventivamente” (idem:15).

A nova postura está animada pela exaltação das virtudes do capitalis-mo e da democracia liberal, pilares de um modo de vida que se pre-tende universal: “Os grandes conflitos do século XX, travados entre aliberdade e o totalitarismo, terminaram com a vitória decisiva dasforças da liberdade – e com um único modelo sustentável para o êxitode uma nação: liberdade, democracia e livre iniciativa” (idem:1).

A opção pelo unilateralismo, apresentado como custo inevitável docombate às novas formas de terrorismo, recebe críticas de funcioná-rios da administração anterior, que se posicionam em favor de umaconcepção multilateral das relações internacionais. De acordo comJoseph Nye Jr. (2004), secretário adjunto da Defesa no governo Clin-ton, o unilateralismo estaria solapando as bases do poder brando (soft

power) do país, pautado pela atração exercida por seus valores, insti-tuições e ideologia, levando a uma exacerbação pouco inteligente dopoder duro (hard power), associado à capacidade de induzir a deter-minados comportamentos.

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Na era informacional, a distribuição global do poder entre as naçõesnão pode ser reduzida ao plano militar. Nye Jr. identifica três dimen-sões. No topo, o militar, que é nitidamente unipolar; no meio, umaeconomia em que vários pólos disputam o jogo e os Estados Unidosvêem limitada sua hegemonia diante de atores do porte da União Eu-ropéia; e na base, relações de caráter transnacional: “o poder estádisperso de forma caótica e não tem sentido utilizar termos tradicio-nais como ‘unipolaridade’, ‘hegemonia’, ou ‘império americano’”(idem:137). Se o governo dos Estados Unidos concentrar sua estraté-gia em um jogo unilateral basicamente direcionado à dimensão mili-tar, descuidará das duas dimensões em que o poder tende a diluir-seem uma gama ampla de atores. De uma perspectiva de amplitude glo-bal, essa postura pode redundar em perda crescente de influência.Para Nye Jr. (idem:146-147),

“A administração de Bush identificou corretamente a natureza dos novosdesafios que enfrenta a nação e reorientou conseqüentemente a estratégiaamericana. Mas tanto a administração, como o Congresso e a população, di-vidiram-se entre diversas abordagens sobre a posta em prática da nova estra-tégia. O resultado tem sido uma mistura de êxitos e falhas. Estamos tendomais sucesso no domínio do poder duro, em que investimos mais, treinamosmais, e temos uma idéia clara do que estamos fazendo. Temos acertado me-nos nas áreas do poder brando, em que a nossa diplomacia pública tem sidopreocupantemente inadequada e a nossa negligência com os aliados e insti-tuições têm criado um sentimento de ilegitimidade que desgasta nosso po-der de atração”.

A lógica do governo Bush foi bem sintetizada por Paul Wolfowitz(apud Gardels, 2002), secretário adjunto da Defesa no primeiro man-dato, para quem os Estados Unidos estariam exercendo um papel deliderança no resguardo de interesses que envolvem a comunidade in-ternacional, combatendo os países hostis que fomentam o terroris-mo.

“Para nós, poder militar é muito mais um meio de defesa. A grande força dosEUA não é seu poderio militar, mas seu poder econômico. E mais potente

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ainda é nossa força política – aquilo que significamos. No mundo todo, mes-mo em países cujos regimes nos odeiam, o povo admira o nosso sistema [...].Claro que há diferença de interesses entre países, mas por causa do modocomo definimos nossos interesses existe uma compatibilidade natural de in-teresses entre os EUA e os outros países” (idem:A25).

De acordo com Wolfowitz, não há unilateralismo, mas exercício le-gítimo do poder por parte de um Estado que utiliza sua força emnome do interesse geral. Para ele, o poderio militar norte-americanoé “uma espécie de cerca protetora em torno da liberdade. Permite-nosfixar certas fronteiras; não admite que exércitos numerosos atraves-sem fronteiras” (ibidem).

O (Novo) Imperialismo

Norte-americano

Ivo Daaler e James Lindsay (2003), ex-funcionários do Conselho deSegurança Nacional no governo Clinton e pesquisadores da Broo-kings Institution1, atribuem à política externa de George W. Bush umcaráter revolucionário, não tanto por causa das metas, que não dife-rem no essencial das administrações anteriores, mas pelos meiosadotados. Para os autores, duas crenças orientam a atuação internaci-onal dos Estados Unidos:

“A primeira é que, em um mundo perigoso, a melhor – senão a única – ma-neira de proteger a segurança da América passa pela rejeição dos constran-gimentos impostos por amigos, aliados e instituições internacionais. Maxi-mizar a liberdade de ação da América é essencial pela posição única ocupa-da pelos Estados Unidos, que os transformou no alvo mais provável de todopaís ou grupo hostil ao Ocidente. Os americanos não poderiam contar comoutros para protegê-los; inevitavelmente, os países ignoram as ameaças quenão os envolvem [...]. A segunda crença é que essa América desprovida deamarras deve usar sua força para mudar o status quo no mundo” (idem:13).

A partir do reconhecimento da incontestável superioridade militar, acontribuição “revolucionária” de Bush seria sua vontade e decisão deutilizá-la, enfrentando a resistência dos aliados e forçando definições

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em relação às prioridades da agenda internacional. No entanto, aaposta do presidente trouxe um resultado inesperado, com a rápidapercepção dos limites que cercam o exercício do poder, enfrentandograndes dificuldades para conquistar e manter apoios para a segundaGuerra do Golfo.

A partir da invasão ao Iraque, tornam-se mais explícitas as controvér-sias entre os que vêem na intervenção uma exacerbação contraprodu-cente do poderio militar, os que vislumbram mais um sintoma de cri-se de hegemonia e os que defendem o papel dos Estados Unidoscomo nação indispensável, única disposta a adotar medidas extremasde acordo com a natureza dos desafios.

Entre os primeiros, a principal linha de questionamento passa pelasbases conceituais e argumentos políticos que fundamentam a pre-empção e a prevenção. Para Zbigniew Brzezinski (2004), assessor deSegurança Nacional na presidência de James Carter, as ações unila-terais do governo Bush pautam-se por uma visão do mundo em pretoe branco que não admite matizes, cujo sustentáculo é uma doutrinade eficiência estratégica questionável.

“A preempção pode se justificar na base do supremo interesse nacional napresença de uma ameaça iminente, e assim, quase que por definição, é plau-sível que seja unilateral [...]. A prevenção, ao contrário, deve ser precedida,se possível, pela mobilização da pressão política (incluindo o apoio interna-cional) a fim de prevenir que ocorra o indesejável, e deve envolver o recursoda força somente quando outros remédios foram esgotados e a contençãonão é mais uma alternativa digna de crédito” (idem:37).

Caso a superpotência cometa erros de avaliação na caracterização dotipo de ameaça a enfrentar, pode terminar iniciando uma guerra pre-ventiva unilateral travestida de preempção. Embora reconheça a im-portância dos Estados Unidos como a única nação capaz de manter aordem em um mundo em constante turbulência, Brzezinski aposta nasua capacidade para liderar um esforço multilateral em favor da cria-ção de uma comunidade global de interesses compartilhados. No en-

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tanto, a nova doutrina, com sua decorrência imediata de invasão aoIraque, tem levado a um isolamento crescente, configurando um cu-rioso paradoxo: “A credibilidade militar global americana nunca foitão alta, no entanto, sua credibilidade política global nunca foi tão ba-ixa” (idem:214).

O viés militar da política externa dos Estados Unidos é enfatizadopor Michael Mann (2004) na caracterização do que denomina “im-pério incoerente”. Apesar dos argumentos universais invocados pelaadministração Bush em favor da democracia, a liberdade e a prospe-ridade econômica, o autor chama a atenção para uma prática pautadabasicamente na promoção dos interesses das elites dominantes, tantodaquelas mais próximas do Estado, como das que representam o po-der dos chamados mercados, defensoras da disseminação global doneoliberalismo. A incoerência entre o discurso e a realidade estariacomprometendo cada vez mais a credibilidade internacional do país,sendo que a resposta das autoridades governamentais tende a pau-tar-se pela exacerbação do poderio militar, marca do novo imperia-lismo em construção.

Para Mann (idem:25-26), a superação do impasse ao qual o país estásendo levado pela administração Bush deverá vir fundamentalmenteda mudança na correlação de forças na política nacional que se segui-rá ao fracasso da atual política externa: “Com um pouco de sorte, aisso seguirá o abandono voluntário do projeto imperial por parte dosestadunidenses, o que, por sua vez, preservará em grande medida ahegemonia norte-americana”.

Respondendo à pergunta sobre o que seria uma visão realista da atualconfiguração mundial do poder, em entrevista a Harry Kreisler(2003), do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade daCalifórnia, Kenneth Waltz resgata a atualidade das políticas de con-tenção e dissuasão:

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“Não importa o quão freqüentemente as pessoas da administração Bush di-gam que a ‘contenção e a dissuasão não funcionam’, funcionam da mesmaforma que sempre em relação às finalidades para as quais sempre pensamosque estavam projetadas. Isto é, deter outros países de usar suas armas de for-ma que coloquem em perigo interesses manifestamente vitais dos EstadosUnidos ou daqueles a quem dão apoio”.

No caso da invasão ao Iraque, Waltz considera inadequada a aplica-ção dos argumentos em favor da preempção e da prevenção. O regi-me de Saddam Hussein não representava uma ameaça iminente deataque aos seus vizinhos ou aos Estados Unidos, mantendo-se emuma posição defensiva. Por outro lado, sua capacidade potencial detransformar um país com um produto bruto de 15 bilhões de dólares,sob constante vigilância e controle por parte da Organização das Na-ções Unidas (ONU) e dos Estados Unidos, em uma futura potêncianuclear estava fora de cogitação.

Para Waltz, o ex-dirigente do Iraque, assim como os demais líderesdos chamados Estados fora-da-lei, são sobreviventes de situaçõesadversas que se estendem por longos períodos. “As pessoas insanasnão se mantêm no poder contra um grande número de inimigos, sejainternamente como externamente” (idem). Como sujeitos racionaisque buscam permanecer no poder, são suscetíveis à contenção e àdissuasão.

O mesmo se aplica às redes terroristas como Al Qaeda, na eventuali-dade de chegarem a governar algum país, mesmo um que tenha ar-mas nucleares, como o Paquistão. Para Waltz, as redes terroristas se-riam socializadas pela lógica do poder estatal, amenizando seu radi-calismo ideológico, principalmente o que justifica e estimula ataquessuicidas. Nesse sentido, defende a contenção nuclear como estraté-gia de eficácia comprovada, independentemente da inimizade radi-cal de certos regimes em relação aos Estados Unidos, citando comoexemplo a trajetória da China de Mao Tse-Tung, que transitou da tur-

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Internacionais Contemporâneas

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bulência esquerdista dos anos da Revolução Cultural aos acordoscom Nixon na década de 1970.

Em relação à situação de supremacia estadunidense que marca o pe-ríodo pós-Guerra Fria, Waltz descrê da capacidade de autocontroleda superpotência. “A característica-chave de um mundo unipolar éque não há nenhuma restrição e contrapeso a esse poder, então eleestá livre para seguir sua fantasia, está livre para agir por seus capri-chos” (idem).

Reafirmando a atualidade do realismo, Waltz (2002) vê a unipolari-dade como um momento transitório por definição. O futuro surgi-mento de grandes potências a partir da projeção internacional daUnião Européia, Japão, China e Rússia acabará restaurando o equilí-brio de poder, tendência predominante das relações interestatais des-de a segunda metade do século XVII.

Essa certeza é questionada por Ikenberry (2002a), que vê no ordena-mento pós-Guerra Fria uma peculiaridade que considera persistentee estável: a cooperação entre as democracias do capitalismo avança-do convivendo com a ausência de equilíbrio de poder. A permanênciadesta situação deve muito ao caráter liberal da hegemonia dos Esta-dos Unidos, que Ikenberry considera inédito comparativamente àspotências anteriormente predominantes no mundo ocidental. Asmarcas distintivas seriam a relutância em assumir explicitamente aprimazia dos EUA, seu caráter penetrante, que gera transparência ese abre a Estados secundários, e sua alta institucionalidade, que per-mite o estabelecimento de mecanismos de interação pautados por re-gras consensuais.

As características apontadas outorgariam ao país a credibilidade ne-cessária para consolidar uma liderança benigna e, conseqüentemen-te, aceitável para outros Estados, na promoção de uma ordem “cons-truída em torno de interesses e valores comuns entre os países indus-triais avançados e ancorada no capitalismo e na democracia. Mas

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também uma ordem politicamente projetada, construída com baseno poder americano, relações institucionais, e negociações políticas,particularmente com Europa e Japão” (idem:216).

A continuidade da tendência inaugurada pelo fim da bipolaridade de-pende da capacidade dos governos dos Estados Unidos de percebe-rem os ganhos estratégicos da autolimitação do uso do poder, apos-tando no fortalecimento das instituições, que Ikenberry consideraum investimento hegemônico em uma ordem mais previsível e per-manente “que proteja seus interesses no futuro” (idem:221).

Ikenberry situa suas posições em um campo distante do realismo e dahegemonia, abordagens estado-centristas que considera inadequa-das para explicar a dinâmica dominante de uma ordem ocidental ba-seada em instituições, cuja salvaguarda não se assenta no equilíbrio,mas na liderança de uma potência essencialmente liberal, que poderáter uma continuidade indeterminada, estreitamente vinculada à sabe-doria com que exerça seu poder.

Em relação a esse último aspecto, o autor manifesta preocupaçõescom as tendências unilaterais que marcam desde o início a adminis-tração Bush, acentuando-se após o 11 de Setembro, com a nova dou-trina de segurança, que classifica como neo-imperial, ameaçadoradas conquistas obtidas pelo país na construção da sua liderança. Apersistência no unilateralismo seria altamente custosa, principal-mente em quatro aspectos: 1) ao explicitar a decisão de agir preventi-vamente, poderia estimular respostas defensivas de outros países,que buscariam no desenvolvimento de programas de armas nuclea-res uma forma de dissuasão a eventuais ataques estadunidenses; 2) asintervenções militares trazem como conseqüência a implementaçãode ações de manutenção da paz e construção de nações que, depen-dendo do número e extensão das guerras movidas pelo país, gerarãouma carga econômica capaz de configurar o fenômeno da expansãoexcessiva; 3) a postura imperial dificulta as alianças, justamente em

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um contexto de luta contra o terrorismo que torna cada vez mais ne-cessária a divisão de responsabilidades com sócios confiáveis; 4) aosuperestimar seu próprio poder, o país pode cair na armadilha em quecaíram no passado outros Estados imperiais, o autofechamento, le-vando os demais países a buscar alternativas que descartem uma do-minação estadunidense.

Para Ikenberry (2002b:60), “mais do que inventar uma nova grandeestratégia, os Estados Unidos deveriam revigorar as antigas, que sebaseavam na idéia de que seus sócios em matéria de segurança nãosão meras ferramentas, mas elementos-chave de uma ordem políticamundial a preservar dirigida pelos Estados Unidos”.

A idéia de que o unilateralismo poderia representar o prenúncio deuma futura perda de hegemonia é compartilhada por diversos analis-tas, que apresentam um conjunto de fatos econômicos e políticos quefortaleceriam essa hipótese.

No âmbito da economia, a percepção de crise torna-se mais visível apartir da administração Bush, com a diminuição do ritmo de cresci-mento que caracterizou o período de Clinton, paralelamente ao au-mento do desemprego e à forte expansão dos gastos com defesa, cujoorçamento teve, em 2003, um incremento de 37 bilhões de dólaresem relação ao ano anterior, chegando a 355 bilhões e 400 milhões dedólares, ou quase 17% do orçamento nacional total do país, de 2 tri-lhões e 100 bilhões de dólares (Montoya, 2003). Para o ano fiscal de2006, o secretário da Defesa solicitou 419,3 bilhões de dólares, o querepresenta, segundo os cálculos do próprio Departamento, uma ele-vação de 5% em relação ao ano anterior e de 41% em relação a 2001(Department of Defense, 2005). De acordo com Chalmers Johnson(2004:288), “93% das alocações para assuntos internacionais estãoindo para a área militar e apenas 7% para o Departamento de Esta-do”.

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Para além do aumento de gastos do governo Bush, alguns autoreschamam a atenção para indicadores que expressam uma tendência dedeterioração econômica que vêm de períodos anteriores: crescentedéficit comercial, que passa de 100 bilhões de dólares em 1990 para450 bilhões em 2000, necessitando de entradas financeiras de 1 bi-lhão por dia para cobri-lo; concentração da renda, que para os 5%mais ricos passa de 15,5% em 1980 para 21,9% em 2000 e para os80% menos ricos cai de 56,9% para 50,6% (Todd, 2003); dependên-cia energética, dado que o país conta com apenas 5% da populaçãomundial, 2% das reservas globais de petróleo e 11% da produção pe-troleira mundial, mas consome quase 26% do total extraído no mun-do, sendo que, para os próximos vinte anos, calcula-se um incremen-to no seu consumo de 6 milhões de barris diários (Rifkin, 2002).

A dimensão petroleira é um dos aspectos destacados por David Har-vey (2004) na sua caracterização das motivações do militarismo deBush no Oriente Médio. Situando-se no campo do marxismo, suaabordagem toma como referência a interação entre as estratégias doEstado e do capital, como atores centrais da variedade capitalista doimperialismo. Dessa perspectiva, a ação no Iraque articula interessesque vão além do conjuntural em termos de garantir a presença de umgoverno confiável em um país que detém as segundas maiores reser-vas de petróleo, favorecendo um aumento da produção capaz de di-minuir o mais rapidamente possível os preços do barril. Consideran-do que grandes competidores internacionais dos Estados Unidos noscampos da produção e das finanças, como Europa, Japão e o Leste daÁsia, incluindo a China, são fortemente dependentes do petróleo daregião do Golfo Pérsico, Harvey (idem:30) formula duas questõesimportantes sobre as motivações do intervencionismo de Bush:

“Que melhor forma de os Estados Unidos evitarem essa competição e ga-rantirem sua posição hegemônica do que controlar o preço, as condições e adistribuição do recurso econômico decisivo de que dependem esses compe-tidores? E que modo melhor de fazê-lo do que usar a linha de força em queos Estados Unidos ainda permanecem todo-poderosos – o poder militar?”.

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Essa postura, embora expresse uma racionalidade estratégica, é reve-ladora da ausência de outras opções capazes de reverter um quadrode crescente deterioração da competitividade internacional da eco-nomia dos Estados Unidos. Neste aspecto, Harvey partilha das posi-ções de Arrighi e Silver (2001) de que está em andamento um proces-so de transição hegemônica, em que o declínio busca ser compensa-do com políticas explícitas de dominação.

No campo dos argumentos políticos, alguns autores europeus come-çam a questionar a relevância mundial que os Estados Unidos se atri-buem. Para Emmanuel Todd (2003), os fatores econômicos acimaapontados geram uma crescente necessidade de inflacionar ameaças,alimentando o ativismo internacional do país. Isto levaria seu gover-no a assumir um “militarismo teatral” composto por três característi-cas principais:

“– Nunca resolver definitivamente um problema, para justificar a ação mili-tar indefinida da ‘única superpotência’ em escala planetária.

– Fixar-se em micropotências – Iraque, Irã, Coréia do Norte, Cuba, etc. Aúnica maneira de continuar politicamente no centro do mundo e ‘enfrentar’atores menores.

– Desenvolver novas armas que supostamente poriam os Estados Unidos‘muito à frente’, numa corrida armamentista que não pode mais cessar”(idem:32).

Todd (idem:98) aposta na insustentabilidade do império americano,cuja desaparição ocorreria antes de 2050, por duas razões básicas:

“Seu poder de coerção militar e econômica é insuficiente para manter o ní-vel atual de exploração do planeta; seu universalismo ideológico está em de-clínio e não lhe permite mais tratar os homens e os povos de maneira iguali-tária, para garantir-lhes a paz e a prosperidade tanto quanto para explo-rá-los”.

Na mesma direção de Todd, Alain Joxe (2003) critica a fragilidadedas premissas em que se apóia o atual poderio americano, que carac-teriza como império do caos, ao assumir uma ação de combate aos

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sintomas e não às causas dos conflitos que se disseminam pelo mun-do, construindo um “sistema que apenas se consagra a regular a de-sordem por meio de normas financeiras e expedições militares, semum projeto de permanência no terreno conquistado” (idem:21). Casocontinue predominando essa postura na política externa dos EstadosUnidos, o autor vê como tendência a emergência de um regime anti-democrático mundial, diante do qual propõe a recuperação da tradi-ção republicana européia, que considera menos maniqueísta na abor-dagem dos conflitos, pautando suas relações exteriores pelo respeitoà pluralidade, pela tolerância, a não-intervenção e a busca de umamaior eqüidade econômica e social. Nessa tradição, a tirania

“[...] não é considerada como não humana senão como um modo de governoantidemocrático; a luta de classes não é um crime senão um estado normaldas sociedades desenvolvidas que deve pacificar-se na democracia, mas não‘desaparecer’. A redistribuição da renda mediante um procedimento volun-tário de partilha eqüitativa é o abc da ciência política desde Aristóteles, enão o pensamento delirante de um subversivo louco. A visão européia emrelação ao Outro, concebida como oposição política, é portanto essencial-mente diferente da dos estadunidenses, que a constroem como exclusão”(idem:239-240).

Para Ulrich Beck (2004), a União Européia exemplifica as possibili-dades de construção de um sistema estatal transnacional e cosmopo-lita, resposta necessária a uma dinâmica global que já não pode serinterpretada por meio de leituras nacionais. O conceito adequado é ode “metajogo” da política mundial, cenário no qual interatuam seustrês grandes protagonistas, os Estados, o capital e a sociedade civilglobal, configurando um equilíbrio de poderes em que nenhum atortem condições de impor seus interesses.

“Todos necessitam coligar-se para tornar realidade seus objetivos respecti-vos, o que põe em funcionamento uma dinâmica de entrelaçamento, [...] umregime de inimigos sem inimigos, ou seja, um regime que integra os opo-nentes mediante a reprodução inclusiva, com o que está perfeitamente emsituação de gerar e renovar o dissenso-consenso que assegura seu próprioespaço de poder” (idem:377; 379).

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Em termos estratégicos, o desenvolvimento desse processo de trans-nacionalização da economia e da política conduziria à conformaçãode um Estado cosmopolita, capaz de reconhecer e defender a igual-dade e a diversidade nas dimensões étnicas e nacionais. Para Beck, apolítica externa dos Estados Unidos pós-11de setembro caminha emdireção contrária a essa tendência, na medida em que atribui ao Esta-do nacional um papel vigilante e interventor com autonomia para sa-crificar a legalidade dentro e fora do país em nome do combate ao ter-rorismo, ao mesmo tempo em que promove de forma sistemática auniversalização dos valores do seu modo de vida, edificando um“despotismo cosmopolita”.

Entre os europeus, existem vozes discordantes sobre o questiona-mento do unilateralismo de George W. Bush e os anúncios de umaEuropa “essencialmente diferente”. Para Jean-François Revel(2003), há uma obsessão antiamericana que, além do envolvimentodos atores mais óbvios à esquerda, traz para o primeiro plano gover-nos aliados dos Estados Unidos, cujas manifestações contra a sua po-lítica externa tendem muitas vezes a superar as dos partidários e sim-patizantes do comunismo dos anos da Guerra Fria.

Sem desconhecer os méritos nacionais da atual preponderância nor-te-americana, Revel (idem:46) chama a atenção para os fatores que seoriginam do vazio de poder provocado por situações criadas externa-mente: “a falência do comunismo, o naufrágio da África, as divisõeseuropéias e os atrasos democráticos da América Latina e da Ásia”.Por outro lado, questiona a atribuição da principal responsabilidadepelos conflitos e calamidades econômicas e sociais que assolam omundo à vocação imperial da superpotência. Afinal, muitos dessesproblemas carregam o peso de um passado recente em que a Europafoi um protagonista essencial.

“À situação criada pelas tentativas européias de suicídio, constituídas pelasduas guerras mundiais e a propensão dos europeus para engendrar os regi-mes totalitários, estes também intrinsecamente suicidas, veio juntar-se, a

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partir de 1990, a obrigação de absorver o campo de ruínas deixado pelo co-munismo, após seu colapso” (idem:47).

A decadência européia tem seqüelas nos conflitos presentes em re-giões que eram parte dos seus impérios coloniais, cuja desagregaçãodeixou marcas permanentes no chamado “terceiro mundo”. O reco-nhecimento do peso das suas ações e omissões como um dos fatoresresponsáveis pela preponderância dos Estados Unidos e a adoção deuma posição que, além de cooperativa, exerça um papel vigilantecontra os eventuais abusos da superpotência, são as principais reco-mendações de Revel para a recuperação de um maior protagonismoeuropeu. A continuidade do antiamericanismo obsessivo só fortale-cerá o unilateralismo, na medida em que o governo dos Estados Uni-dos, contando de antemão com o posicionamento crítico dos aliadosocidentais, tenderá a agir cada vez mais por conta própria, sendo que,ao menos por um bom tempo, conta com os recursos de poder neces-sários para isso.

No âmbito dos conservadores norte-americanos, as posições defen-didas por Revel têm uma presença muito mais expressiva. Entre osnomes de destaque está Robert Kagan (2003), um dos fundadores,junto com William Kristol, do Project for the New American Cen-tury2. Para ele, a existência de visões divergentes entre os EstadosUnidos e a Europa é incontestável, especialmente “na importantíssi-ma questão do poder, da eficácia do poder, da moralidade do poder,da vontade de poder” (idem:7).

“A Europa está afastando-se do poder, ou, em outras palavras, está cami-nhando para além do poder, rumo a um mundo isolado repleto de leis, nor-mas, negociações e cooperação internacional. Está entrando num paraísopós-histórico de paz e relativa prosperidade, a concretização da ‘paz perpé-tua de Immanuel Kant. Os Estados Unidos, entretanto, continuam chafur-dando na história, exercendo o poder num mundo hobbesiano anárquico,onde as leis e as diretrizes internacionais não são dignas de confiança, a ver-dadeira segurança, a defesa e a promoção da ordem liberal ainda dependemda posse e do uso do poderio militar” (ibidem).

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A despeito do reconhecimento da diversidade de percepções e posi-ções, os contrastes não expressariam a oposição entre uma Europaessencialmente pacifista e democrática e uns Estados Unidos comvocação natural ao exercício realista do poder, mas capacidades dife-renciadas, embora ao mesmo tempo complementares, de uso da for-ça. Para Kagan, mais que uma escolha baseada em princípios, a atualpostura da Europa não difere daquela adotada pelos Estados Unidosno século XIX, então militarmente pouco expressivos, cujo cálculoestratégico de acúmulo de poder recomendava uma política de afas-tamento das disputas hegemônicas entre as potências européias, cujavisão do mundo refletia o momento de auge do seu poder econômico,militar e colonial. Nos dias atuais, as posições invertem-se, e EstadosUnidos e Europa assumem posições equivalentes ao seu peso nas re-lações internacionais. No entanto, há um paradoxo na posição euro-péia, cuja

“[...] passagem à pós-história dependeu do fato de os Estados Unidos não fa-zerem tal passagem. Por não ter disposição nem capacidade de proteger seupróprio paraíso e impedir que seja invadido, tanto espiritual quanto fisica-mente, por um mundo que ainda não adotou a lei da ‘consciência moral’, aEuropa tornou-se dependente da disposição americana de usar seu poderiomilitar para conter e derrotar aqueles que, ao redor do mundo, ainda são par-tidários da política do poder” (idem:75).

As expedições armadas que atacam os sintomas e não as causas dascrises, que Joxe (2003) associa a um Império do Caos, são funcionaisà indisposição da Europa para assumir um maior envolvimento, es-pecialmente quando se desencadeiam em seu próprio território,como aconteceu com os conflitos nos Bálcãs nos anos 1990.

Para Kagan (2003), tanto a posição adotada pela Europa quanto a dosEstados Unidos não vão sofrer alterações substanciais. A não ser queaconteça uma catástrofe militar ou econômica cujas proporções aba-lem a continuidade do poder estadunidense, “é razoável presumir

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que acabamos de ingressar numa longa era de hegemonia america-na” (idem:90).

Alguns indicadores tendem a reforçar essa avaliação, especialmenteos que se referem aos custos de manutenção da atual política para aeconomia nacional, que não seriam insuperáveis. Em relação aos dé-ficits externos, o financiamento do consumo americano seria funcio-nal à estabilidade da economia mundial, garantindo superávits co-merciais para diversos países e regiões, como mostram os dados doQuadro 1.

Quadro 1

Balança Comercial dos Estados Unidos com Países e Regiões Selecionados– 2003 e 2004

País/Região Déficit Comercial dos Estados Unidos

2003 2004

China –124,068.2 –161,938.0

Japão –66,032.4 – 75,562.1

Europa Ocidental –100,320.3 –113,378.8

México –40,648.2 –45,066.5

América do Sul e Central –26,882.8 –37,183.3

Coréia do Sul –13,156.8 –19,755.5

Israel –5,876.5 –5,382.4

Rússia –6,170.7 –8,930.3

Fonte: Elaborado com base no U.S. Census Bureau, Department of Commerce: Country Data

(http://www.census.gov/foreign-trade).

No âmbito dos gastos dos EUA com despesas militares como por-centagem do Produto Nacional Bruto (PNB), conforme assinala opróprio Todd (2003), houve uma queda considerável, passando de7% no fim dos anos 1980 para 5,2% em 1995 e 3% em 1999. No augeda hegemonia inglesa, entre 1815 e a década de 1870, os gastos esta-dunidenses com as forças armadas variava entre 2% e 3% do PNB(Kennedy, 1989).

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Niall Ferguson (2004), um defensor explícito da necessidade do im-pério estadunidense como fator de estabilidade e progresso mundial,relativiza o impacto dos gastos militares na economia do país. Há umproblema de déficits crônicos das finanças nacionais que não se ori-ginam dos compromissos externos assumidos pelas forças armadas.Para sustentar seu argumento, compara o volume dos gastos milita-res dos Estados Unidos, que excedem o conjunto dos orçamentos dedefesa da União Européia, China e Rússia, com a parcela que conso-me do PNB, correspondente a uma média de 3,5% na primeira meta-de da década de 2000, bem menor do que os 10% dos anos 1950. Des-ta forma, conclui: “Assim como o império liberal britânico um séculoatrás, o nascente império liberal americano é surpreendentementebarato para funcionar” (idem:262).

Para Ferguson, o mundo necessita mais do que nunca de um impériobenigno, liderado pelos Estados Unidos, mas que busque trazer paraseu lado a União Européia, cujo caráter liberal não apenas

“[...] subscreve a troca internacional livre dos produtos, do trabalho e do ca-pital, mas também cria e sustenta as condições sem as quais os mercadosnão podem funcionar – a paz e a ordem, o império da lei, uma administraçãonão corrupta, políticas fiscais e monetárias estáveis, assim como fornecebens públicos, tais como infra-estrutura para o transporte, hospitais e esco-las, que não existiriam de outra maneira” (idem:2).

Embora Ferguson considere o império uma condição inerente à his-tória dos Estados Unidos, nem sempre se assumiu enquanto tal, o queestaria mudando a partir da administração Bush e do 11 de Setembro.

O Desafio Conservador

Sistematizando as posições dos autores que vinculam o unilateralis-mo com a perda de capacidade dos Estados Unidos para gerar con-sensos na administração do sistema internacional, destacam-se trêsargumentos: 1) a exacerbação do poder duro, apesar de eventuais ga-nhos conjunturais, tende a comprometer a posição de supremacia a

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médio e longo prazo; 2) a manutenção do status de única superpotên-cia global torna-se cada vez mais dependente de respaldo financeiroexterno, em um contexto de crise da economia e fortalecimento cres-cente do setor privado transnacional; 3) o aprofundamento das desi-gualdades promovido pelo modelo econômico vigente, incapaz deresponder às demandas da maioria dos excluídos do sistema, estácristalizando um impasse social.

No contexto atual, o impasse social assume formas diversas: funda-mentalismo antiocidental, com desdobramentos na perpetração deatentados terroristas como os de 1998 nas embaixadas de Quênia eTanzânia, ganhando maior fôlego a partir do 11 de Setembro; as cri-ses financeiras inauguradas pela desvalorização do peso mexicanoem dezembro de 1994, atingindo posteriormente a Coréia do Sul, aRússia, o Brasil e a Argentina; movimentos sociais contra a agendade liberalização dos mercados, que assumem maior visibilidade apartir das manifestações de rua paralelas à reunião da OMC em Seat-tle, em novembro de 1999; fortalecimento de partidos críticos da or-dem nos eleitorados do “terceiro mundo”, com possibilidades con-cretas de alcançar o poder governamental, tendo-se Venezuela, Bra-sil e Uruguai como exemplos mais emblemáticos na América Latina.

Diante desse cenário, a percepção do caráter irremediável e irreversí-vel da polarização entre países e setores sociais – pelo menos a curtoe médio prazo – conduz o governo dos Estados Unidos a optar pelaexplicitação dos limites que demarcam a segurança do sistema, de-flagrando uma campanha de amplo espectro destinada a diminuir ní-veis de incerteza, combatendo os “novos bárbaros” que se dissemi-nam pelos territórios do império.

A radicalização de posições por parte do governo Bush não está asso-ciada ao abandono do consenso hegemônico, decorrente da acelera-ção de uma crise de caráter estrutural que impõe a dominação abertacomo única alternativa. O que se verifica é uma sinalização em favor

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do endurecimento, como ação preventiva contra os fatores de insta-bilidade associados a uma conjuntura de transição entre o mundo bi-polar e a nova ordem em configuração.

O antecedente mais próximo dessa postura na política externa é a ad-ministração de Ronald Reagan, que enfrentou um contexto mais de-licado, envolvendo diversas frentes: no aspecto econômico, o segun-do choque do petróleo, a recessão mundial e a perda de posições dopaís em relação ao Japão e à então Alemanha Ocidental; no âmbitopolítico, as seqüelas da derrota no Vietnã e do escândalo Watergate,paralelamente à expansão da esfera de influência da União Soviéticae às revoluções no Irã e na Nicarágua.

O unilateralismo daquele momento, com a diplomacia do dólar fortee o combate ao “império do mal”, foi a opção de uma equipe oriundade círculos neoconservadores3, cuja influência se estende às admi-nistrações de Bush pai e filho. A convicção desses modernos adeptosdo big stick de que a derrota soviética e a retomada da hegemonia dosEstados Unidos decorrem fundamentalmente do sucesso das políti-cas adotadas nos anos 1980 fortalece o favoritismo em prol da defla-gração de uma nova cruzada.

Diferentemente daquele contexto, não se visualizam no horizontenovos inimigos do sistema. As organizações que defendem progra-mas anticapitalistas, além de pouco expressivas, não contam com orespaldo de potências nucleares com ambições internacionais hege-mônicas. Nos países governados por partidos originários da esquer-da, predomina uma postura internacional pautada pela negociaçãodas diferenças e respeito da legalidade. Na América Latina, isto in-clui regimes políticos de partido único, como Cuba, e regimes de de-mocracia representativa, como o Brasil. Os movimentos sociais anti-globalização questionam, basicamente, seus desajustes, especial-mente a exclusão, diferentemente da esquerda comunista, que colo-cava o acento da crítica na propriedade privada dos meios de produ-

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ção e na extração de excedente no processo de trabalho, buscandoatingir os fundamentos do capitalismo.

Expandir o acesso e a inclusão torna-se um dos desafios estratégicosda ordem proclamada pelos Estados Unidos. No entanto, enquantonão se verificam ganhos significativos nesse campo, a opção pelo en-durecimento busca tornar mais explícitos os limites estruturais damudança possível, colocando a economia de mercado e a democra-cia liberal como fundamentos inegociáveis de um modo de vida apreservar. Tendo essa perspectiva estratégica como referência cen-tral, o governo Bush entra em campo na disputa pelo apoio políticodos “ganhadores” da globalização, deixando claro que, se o momen-to é de guerra, a defesa das hierarquias conquistadas antepõe-se aperdas conjunturais e localizadas de liberdade e bem-estar material,exigindo o fechamento de fileiras contra o crescente ativismo dos“perdedores”, que estaria contaminado por uma irracionalidade comfortes componentes de ressentimento e destruição. A partir do mo-mento em que se configure um desenlace favorável no combate aosnovos inimigos, será possível restabelecer a normalidade. Enquantoisso, caberá aos “falcões” cuidar da governabilidade sistêmica, assu-mindo os custos políticos do Estado de exceção.

Da minha perspectiva, a atuação internacional dos Estados Unidostem uma dimensão essencialmente estrutural. As diferenças entre o“unilateralismo” republicano e o “multilateralismo” democrata, osdefensores dos poderes brando ou duro, as abordagens cosmopolitas,imperiais ou nacionais, realistas ou liberais, referem-se mais aosmeios do que aos fins da política externa. Neste contexto, não se vis-lumbram ameaças à continuidade da ordem mundial cuja defesa ani-ma o espírito da Doutrina Bush.

Ao longo de sua história, e de acordo com os desafios de cada época ede cada país, o capitalismo conviveu com regimes monárquicos, de

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democracia representativa, totalitarismos nazifascistas, ditaduras mi-litares, nacionalismos populistas. Por que desta vez seria diferente?

Da mesma forma ocorrida na transição do século XIX para o XX, oexercício da hegemonia do imperialismo atual busca respaldo emparcela significativa das audiências nacionais e dos governos dos pa-íses do capitalismo avançado e atrasado, construindo um poder quese pretende incontestável nas dimensões econômica, militar, políticae cultural.

Notas

1. A Brookings Institution é considerada o mais antigo Think Tank dos Esta-dos Unidos. Fundada em 1916, atua nas áreas de educação, economia, políticaexterna e governança. Em termos políticos, assume uma opção explícita pelasposições moderadas, acima de definições partidárias, embora seja consideradatradicionalmente próxima ao Partido Democrata. William Cohen, secretário daDefesa, Lawrence Summer, secretário do Tesouro, e Joan Edelman Spero, sub-secretária do Departamento de Estado para Economia, Negócios e Agriculturado governo Clinton, pertenceram à instituição.

2. O Project for the New American Century, criado em 1997, tem entre osmembros fundadores intelectuais conservadores, como Norman Podhoretz eFrancis Fukuyama, e figuras que têm forte protagonismo na administração deGeorge W. Bush, como Elliott Abrams, Jeb Bush, Dick Cheney, Paula Dobri-ansky, Zalmay Khalilzad, Lewis Libby, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz.

3. O neoconservadorismo tem uma forte presença intelectual nos Estados Uni-dos, que envolve principalmente a participação em Think Tanks como o Ameri-can Enterprise Institute e The Project for the New American Century, e a veicu-lação de idéias por meio de publicações periódicas, em que se destacam Com-mentary, The Public Interest e The Weeckly Standard. Em termos de influênciapolítica, adquiriu grande visibilidade durante o governo Reagan, que se ampliouna administração de George W. Bush, especialmente após o 11 de Setembro de2001, quando os neoconservadores assumiram a liderança na formulação dasnovas diretrizes da política externa.

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Resumo

Os Estados Unidos e as RelaçõesInternacionais Contemporâneas

O artigo analisa a posição dos Estados Unidos nas relações internacionaispós-Guerra Fria, tomando como referência as controvérsias sobre os alcan-ces e limites da sua postura hegemônica, que adquirem maior impulso a par-tir da formulação da chamada “doutrina Bush”, sistematizada no documen-to “A Estratégia de Segurança Nacional dos EUA”.

No tratamento da temática proposta, enfatizam-se os seguintes aspectos:estabelecimento de um paralelo entre a transição dos séculos XIX-XX eXX-XXI, situando as características do imperialismo de cada época; umaanálise da atual política externa dos Estados Unidos, enfocando o debateentre unilateralismo e multilateralismo, com destaque para as reações gera-das pela intervenção no Iraque; uma discussão crítica das abordagens quevisualizam na agenda de segurança da administração Bush um indicador deperda de hegemonia, que imporia a substituição da busca do consenso peladominação aberta.

Palavras-chave: Bush – Unilateralismo – Multilateralismo – Hegemonia

Os Estados Unidos e as Relações

Internacionais Contemporâneas

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Abstract

The United States in the PresentInternational Relations

This article analyzes the position of the United States in the post-Cold Warworld, considering as a reference the controversies on the extension andlimits of its hegemonic posture, which acquires greater relevance after theformulation of the “Bush Doctrine”, systematized in the document “TheNational Security Strategy of the United States of America”.

Our approach will lay emphasis on the following aspects: establishment of aparallel between the transition of the XIX-XX and XX-XXI centuries, fromstudies that point out the characteristics of imperialism at different times;an analysis of the current foreign policy of the United States, focusing onthe debate between unilateralism and multilateralism, emphasizing thereactions caused by the intervention in Iraq; a critical argument of theapproaches that visualize in the security agenda of the Bush administrationan indicator of a loss of hegemony, which would impose open dominationover the search of consensus.

Key words: Bush Doctrine – Unilateralism – Multilateralism –Hegemony

Luis Fernando Ayerbe

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Introdução

Segundo teorias institucionalistas na disciplina de relações interna-cionais (RI), regimes – definidos genericamente como um conjuntode normas e regras formais ou informais que permitem a convergên-cia de expectativas ou a padronização do comportamento de seusparticipantes em uma determinada área de interesse – são criadoscom o objetivo de resolver problemas de coordenação que tendem aresultados não pareto-eficientes. Para Robert Keohane (1993), porexemplo, a constatação de que, em algumas situações, decisões ne-

283

*Artigo recebido em abril e aceito para publicação em setembro de 2005. Este artigo foi desenvolvido apartir de um trabalho final preparado para a disciplina de Economia Política, ministrada pelo professorLuis Manoel Rabello Fernandes. O autor gostaria de agradecer ao professor Luis Fernandes pelo incenti-vo e apoio recebidos na preparação deste artigo.** Mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Univer-sidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 283-329.

Autonomia eRelevância dosRegimes*Gustavo Seignemartin de Carvalho**

gociadas e tomadas de forma coletiva seriam mais eficientes do quequando tomadas de forma unilateral e individual explicaria a de-manda por regimes internacionais por parte dos Estados: “os regi-mes facilitam a cooperação, propiciando regras, normas, princípiose procedimentos que auxiliam os agentes a superar barreiras à coo-peração identificadas pelas teorias econômicas como falha de mer-cado” (idem:182)1.

No entanto, uma definição meramente funcionalista de regimes, ba-seada em sua “eficiência”, não parece suficiente para explicar suaefetividade. Desta forma, o presente artigo propõe uma definição di-ferente de regimes: a de arranjos políticos que permitem a redistri-

buição dos ganhos da cooperação pelos participantes em uma deter-

minada área de interesses em um contexto de interdependência. Elespossuiriam efetividade em virtude de sua autonomia e relevância, ouseja, por possuírem existência objetiva autônoma com relação a seusparticipantes e influenciarem o comportamento e as expectativasdestes de maneiras que não podem ser reduzidas à ação individual dequalquer um deles.

Este artigo se inicia com uma breve discussão sobre as dificuldadesterminológicas associadas ao estudo de regimes e a definição dosconceitos de autonomia e relevância. Em seqüência, classifica os di-versos autores participantes do debate em duas perspectivas distin-tas, uma negando (não-autonomistas) e a outra atribuindo (autono-mistas) aos regimes autonomia e relevância, e faz uma breve análisedos autores e tradições mais significativos para o debate, aprofun-dando-se nos autonomistas e nos argumentos que reforçam a hipóte-se aqui apresentada. Ao final, o artigo propõe uma decomposiçãoanalítica dos regimes em quatro elementos principais: normativida-

de, atores, especificidade da área de interesses e interdependência

complexa como contexto, que em conjunto possibilitam a autonomiae relevância apresentada pelos regimes.

Gustavo Seignemartin de Carvalho

284 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Regimes

Desde sua primeira formulação no artigo pioneiro de John Ruggie(apud Keohane, 1984:57), a definição de regimes tem sido alvo deacirradas disputas. Para Susan Strange (1982:484), por exemplo, aimprecisão terminológica do conceito é um dos problemas que colo-cam em dúvida o estudo de regimes: “‘Regime’ é mais um conceitovago que se torna uma fonte fértil de discussões simplesmente por-que as pessoas querem dizer coisas diferentes quando o empregam”.Outro problema identificado por Strange (idem:486), associado àimprecisão terminológica, é o viés normativo embutido no conceito:“o termo regime é carregado de valoração; ele traz implícitas algu-mas coisas que não deveriam ser pressupostas sem discussão”. O pe-rigo seria duplo: a palavra “regime” evocaria não apenas a idéia dealgo necessário à melhoria da “saúde” do sistema internacional anár-quico, mas também, por sua associação com a política interna dosEstados, a idéia de governo político ou de ordenação do sistema: “emsuma, governo, domínio e autoridade formam a essência da palavra,e não consenso, justiça ou eficiência na administração” (ibidem). Emconseqüência, “ela [a palavra regime] assume que o que todos dese-jam é mais e melhores regimes, que mais ordem e interdependênciaadministrada devem ser o objetivo coletivo” (Strange, 1982:487).

A crítica de Strange é repetida por outros autores. Para John Mears-heimer (1995), a definição de regimes é tão vaga que permite o en-quadramento no conceito de qualquer padrão regularizado de com-portamento na esfera internacional. Para ele,

“[...] definir instituições como ‘padrões reconhecíveis de comportamentoou práticas em função dos quais as expectativas convergem’ permite que oconceito compreenda praticamente qualquer padrão regular de atividadeentre os Estados, desde a guerra até a redução de tarifas negociadas sob oAcordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), o que o torna em grandemedida desprovido de sentido” (idem:8).

Autonomia e Relevância dos Regimes

285

Fazendo uma crítica à epistemologia racionalista no estudo de regi-mes, Friedrich Kratochwil e John Ruggie (1986:763) defendem quea literatura sobre o tema sofre de grande imprecisão quanto ao objetode estudo e aos limites da teoria: “não há consenso na literatura se-quer sobre questões básicas, tais como os limites de utilização doconceito: onde um regime termina e outro começa? O que diferenciaum regime de um ‘não-regime’?”. Em sua opinião, a refinação doconceito de regimes, apesar de necessária, seria possível apenas atécerto ponto. Como regimes não teriam existência objetiva e constitu-iriam o que os autores chamam de “construções conceituais”, umacerta indeterminação seria inerente a seu estudo em virtude do cará-ter subjetivo e normativo do conceito, o que seria reforçado pela im-possibilidade de separação efetiva entre sujeito e objeto. Nas pala-vras dos próprios autores:

“[...] as definições podem ser refinadas, mas apenas até certo ponto [...] nãoexiste um ponto ‘arquimediano’externo a partir do qual os regimes possamser vistos como ‘verdadeiramente’são, porque regimes são criações concei-tuais e não entidades concretas. Como ocorre com qualquer construção ana-lítica nas ciências humanas, o conceito de regimes reflete o senso-comum,as preferências dos atores e os objetivos particulares para os quais a pesqui-sa está sendo conduzida. Portanto, o conceito de regimes, da mesma manei-ra que os de ‘poder’, de ‘Estado’e de ‘revolução’, permanecerá um ‘concei-to discutível’” (ibidem).

Além disso, ao enfatizar normas, princípios e convergência de ex-pectativas, as definições de regimes propostas pelas tradições mains-tream acabariam impondo a uma ontologia melhor estudada combase em uma epistemologia não-fundacionalista as limitações ine-rentes a uma epistemologia racionalista. O resultado para os autoresseria “ontologia contra epistemologia” (Kratochwil e Ruggie,1986:764).

Refletindo sobre tais críticas, Oran Young (1999) sugere que essatensão entre ontologia e epistemologia se faria sentir em diversos ní-veis, levantando dúvidas quanto à validade epistemológica da sepa-

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ração entre sujeito e objeto e, sobretudo, quanto à premissa “raciona-lista” que assume que os interesses dos atores nos regimes são exoge-namente constituídos: “as instituições podem ter um papel importan-te na constituição das identidades de seus membros e, mais especifi-camente, podem influenciar a maneira pela qual estes atores definemseus interesses” (idem:204). Como princípios, normas e regras seri-am construídos intersubjetivamente, influenciariam não apenas suainterpretação como também sua aplicação pelos atores. A conclusão“não-fundacionalista” seria que “estes padrões prescritivos não pos-suem existência exterior às mentes dos sujeitos a eles submetidos”(idem:206). Regimes seriam melhor estudados como uma prática so-cial ou como formas discursivas internalizadas pelos atores:

“Na verdade, os regimes tornam-se partes integrantes de complexos com-portamentais e não arranjos exógenos criados e mantidos por atores queprocuram evitar ou diminuir problemas de ação coletiva associados a várioscomplexos comportamentais” (idem:208).

Outros autores diretamente ligados ao estudo de regimes mostram-sepreocupados com a indeterminação das definições normalmente for-necidas. Para Arthur Stein (1990:26), por exemplo, “muitos estudio-sos definem ‘regimes internacionais’ de maneira tão vaga que é pos-sível abranger na definição todas as relações internacionais ou todasas interações internacionais em uma determinada área de interesse”.Quando não-especificados, “‘regimes’não possuem status de concei-to; eles não delimitam os padrões normais de comportamento inter-nacional” (ibidem).

Contudo, ainda que os obstáculos ao estudo de regimes apontadospelos críticos sejam relevantes, não são intransponíveis. Um certograu de indeterminação é inerente a qualquer discussão sobre concei-tos e terminologia dentro das ciências sociais. O fato de os regimesserem “construções conceituais” não impede que possuam elemen-tos objetivos que tenham efeitos verificáveis sobre os comportamen-tos de seus participantes. Como bem nota Young (1999:208), “[regi-

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287

mes] devem afetar o curso da política mundial por meio da influênciasobre o comportamento de seus membros e o de outros que estejamsujeitos às suas determinações”. Para ele, regimes possuiriam exis-tência objetiva e poderiam ser estudados empiricamente a partir daanálise das convenções sociais que os compõem e das percepçõesque os atores delas possuem. Não obstante as dificuldades inerentes aeste tipo de estudo, “os atores normalmente possuem percepções re-lativamente precisas quanto à existência de convenções sociais. Por-tanto, há espaço considerável para a utilização de métodos diretos depesquisa (por exemplo, pesquisas de opinião)” (Young, 1982:734).

Uma discussão metodológica mais aprofundada encontra-se fora doescopo deste artigo. No entanto, a defesa do estudo de regimes a par-tir de uma perspectiva epistemológica racionalista é viável, assumin-do-se a possibilidade de separação entre sujeito e objeto. Natural-mente, isso não significa dizer que perspectivas não-racionalistas se-jam desprovidas de importância ou coerência; diferentes perspecti-vas e métodos podem possuir validade quando aplicadas a diferentesaspectos do problema. Como ressalta Young (1999:208),

[...] tanto o modelo de comportamento da escolha racional quanto o modeloconstrutivista são capazes de capturar aspectos importantes do papel prota-gonizado por instituições na sociedade internacional; nenhum deles [...] dáconta de todas as suas variações”.

Quanto à normatividade do conceito de regimes, condenada de for-ma tão contundente por Strange (1982), há muito a epistemologianas ciências sociais admite que as teorias são indissociáveis de valo-res ou de elementos normativos, que inevitavelmente as informam.Max Weber (s/d a:16) entendia como inevitável o papel dos valores eda ética na investigação científica: “o método científico dos juízos devalor não se limitará a compreender e reviver os fins propostos e osideais em que se baseiam, como também se propõe ensinar a ‘ajuizar’de modo crítico”. Para ele, desde que o método científico fosse obje-tivo, poderia ser utilizado na avaliação das conseqüências decorren-

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288 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

tes dos valores e das teorias, permitindo desta forma sua comparaçãoe a escolha entre umas e outras.

Para Karl Popper (s/d:32), o processo de formulação de teorias cien-tíficas tem por base elementos ou impulsos “irracionais” ou valorati-vos: “não existe um método lógico de conceber idéias novas [...] mi-nha maneira de ver pode ser expressa na afirmativa de que toda des-coberta encerra um ‘elemento irracional’ ou uma ‘intuição criado-ra’”. Devido à carga valorativa que as teorias possuem, Popper cons-trói sua epistemologia a partir da idéia da incomensurabilidade domarco teórico em que elas estão inseridas.

Assim, o que os autores dedicados ao estudo de regimes possuem emcomum é a visão destes como instituições sociais relevantes e autô-nomas, que produzem efeitos sobre os atores que delas participam (eque podem mesmo ser influenciadas pelo comportamento coletivodos atores). Logicamente, o conceito de regimes é uma construçãoque nos permite estudar analiticamente fenômenos ou instituiçõessociais desprovidos de existência física, principalmente quando nãoformalizados. Mas este fato não impede que os fenômenos que con-substanciam um regime produzam efeitos objetivos e verificáveis demaneira independente dos atores que dele participam. O estudo derelações sociais e seus efeitos não está restrito à perspectivaspós-modernas ou não-fundacionalistas.

Vale notar que aceitar um certo grau de imprecisão no conceito de re-gimes não é o mesmo que negligenciar sua definição. Por ocasião deuma conferência sobre o tema realizada em 19822, estudiosos deperspectivas diversas procuraram diminuir a confusão conceitualexistente por meio da formulação de uma definição “consensual”.Segundo Krasner (1982:186), que reproduz esta definição, regimessão “princípios, normas, regras e procedimentos para a tomada dedecisões, implícitos ou explícitos, em função dos quais as expectati-

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289

vas dos atores convergem em uma determinada área das relações in-ternacionais”.

Apesar da importância que a definição consensual adquiriu na disci-plina de RI, a conceituação de regimes ainda é fruto de divergências.Conforme dito na Introdução, o presente artigo procura classificardiversos autores que participaram deste debate em duas perspectivasdistintas, de acordo com a relevância e autonomia por eles atribuídaaos regimes.

Com o conceito de relevância, procura-se expressar o grau de in-fluência que os regimes possuem sobre o comportamento dos atores.Não se trata aqui de analisar a relevância dos regimes no caso concre-to, ou seja, se um determinado regime é forte ou fraco, mas sim quan-ta influência as diferentes perspectivas atribuem aos regimes em teo-ria.

Por meio do conceito de autonomia, procura-se expressar a dissocia-ção entre o regime e os atores que o compõem, mesmo no caso de re-gimes não formalizados. Depois de constituídos por um grupo deatores, os regimes produzem efeitos sobre todos, independente davontade individual dos participantes.

Relevância e autonomia não se confundem, apesar de estarem intrin-secamente ligadas. Para algumas formulações da teoria da estabili-dade hegemônica, por exemplo, regimes podem ter relevância semserem autônomos, na medida em que legitimam ou intermedeiam aatuação direta da potência hegemônica. Por outro lado, podem servistos como possuindo autonomia, mas, por diversas razões, tendoinfluência reduzida no comportamento dos participantes.

Na perspectiva que, para efeito de simplificação, é aqui chamada de“não-autonomista”, temos os autores que não atribuem relevâncianem autonomia aos regimes internacionais, mas no máximo umafunção meramente instrumental ao conceito. Em contraposição a es-

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290 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

tes autores, temos, em uma segunda perspectiva, autores que, mesmoem graus diversos e partindo de concepções ou epistemologias dife-rentes, atribuem relevância e autonomia aos regimes – esta perspec-tiva será chamada de “autonomista”.

O estudo de cada perspectiva será iniciado com uma breve análise dealgumas teorias, tradições e autores não-autonomistas representati-vos, após o que os autores autonomistas, que interessam mais direta-mente ao tema do presente artigo, serão analisados em mais detalhes.

Perspectiva

Não-Autonomista

Muitos dos autores não-autonomistas podem ser identificados com atradição realista na disciplina de RI.

Realismo

Como já mostrado anteriormente, Strange (1982) parte de uma pers-pectiva realista associada à economia política internacional (EPI)para questionar o conceito de regime. Para a autora, deve-se “consi-derar o Estado e os governos nacionais como os verdadeiros determi-nantes dos resultados” (idem:480). Em sua visão, regimes, assimcomo as organizações internacionais, servem a três propósitos espe-cíficos diretamente relacionados aos agentes estatais:

“Estes [propósitos] podem ser definidos de maneira ampla como estratégi-cos (ou seja, servem como instrumentos da estratégia estrutural e da políticaexterna do Estado ou dos Estados dominantes); adaptativos (ou seja, forne-cem a concordância multilateral a quaisquer arranjos que sejam necessáriospara permitir que os Estados gozem de autonomia política sem o sacrifíciodos dividendos econômicos derivados dos mercados mundiais e de estrutu-ras mundiais de produção); e simbólicos (ou seja, permitem que todos se de-clarem a favor da verdade, da beleza, da bondade e de uma comunhão mun-dial, enquanto os governos permanecem livres para perseguir os interessesnacionais e para fazer o que desejarem)” (idem:484, ênfase no original).

Autonomia e Relevância dos Regimes

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Na visão de Strange (idem), regimes são claramente destituídos derelevância e autonomia. Quando muito, serviriam apenas como uminstrumento do poder estatal.

Mearsheimer (1995) analisa o impacto dos regimes na área de segu-rança e conclui que possuem influência apenas marginal sobre ocomportamento dos Estados: “as instituições não exercem quase ne-nhuma influência sobre o comportamento estatal” (idem:7). Ele mes-mo resume sua posição da seguinte maneira: “eles [os regimes] se ba-seiam no cálculo dos interesses próprios das grandes potências e nãoexercem efeito independente sobre o comportamento estatal” (ibi-dem).

Os Estados seriam assim atores racionais e egoístas que, por interagi-rem em um sistema internacional anárquico, teriam preocupação emprimeiro lugar com sua segurança, procurando ativamente atingiruma posição de proeminência perante os demais: “a vida diária é es-sencialmente uma luta pelo poder, na qual cada Estado procura nãoapenas ser o ator mais poderoso do sistema como também assegurarque nenhum outro Estado alcance a mesma posição de proeminên-cia” (Mearsheimer, 1995:9). Dentro desta lógica, a preocupação comganhos relativos torna-se relevante, uma vez que “os Estados procu-ram maximizar suas posições relativas de poder no sistema internaci-onal com relação aos demais” (idem:11). Já as possibilidades de coo-peração e de formação de regimes seriam limitadas: “a cooperaçãoentre os Estados é limitada principalmente porque é constrangidapela lógica da competição por segurança” (idem:9).

De maneira um pouco diferente de Strange e Mearsheimer, mas ain-da dentro da tradição realista, a crítica de Joseph Grieco (1993) dire-ciona-se aos efeitos atribuídos pelo institucionalismo liberal aos re-gimes. Segundo este autor, a tradição realista demonstraria que, ape-sar de os Estados terem conseguido cooperar “por meio de institui-ções internacionais até mesmo nos duros anos 70” (idem:121, ênfase

Gustavo Seignemartin de Carvalho

292 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

no original), regimes e organizações internacionais não possuiriamrelevância pois “são incapazes de mitigar os efeitos restritivos exer-cidos pela anarquia sobre a cooperação interestatal” (idem:116). Aocontrário do que entenderiam autores institucionalistas liberais, osEstados, por serem posicionalistas, estariam preocupados não ape-nas com ganhos absolutos, mas também com os ganhos dos demaisEstados com a cooperação: “para os realistas, um Estado se preocupatanto com os ganhos absolutos quanto com os ganhos relativos da co-operação” (idem:118). Assim como Mearsheimer, Grieco entendeque a preocupação dos Estados com a segurança em um ambiente in-ternacional anárquico os levaria a enxergar os ganhos dos demais“competidores” como o fortalecimento de eventuais inimigos no fu-turo: “como resultado, os Estados precisam dar muita atenção aosganhos obtidos pelos parceiros” (ibidem).

Teorias da Estabilidade

Hegemônica

A formulação clássica da teoria da estabilidade hegemônica3 dentroda EPI foi apresentada por Charles Kindleberger (s/d) em seu estudoda Grande Depressão e da instabilidade política e econômica queatingiu o sistema capitalista na década de 1930. Para o autor(idem:28),

“[...] o sistema econômico e monetário internacional necessita de liderança,de um país que esteja preparado, consciente ou inconscientemente, sob umsistema de regras que tenha internalizado, a determinar padrões de condutapara outros países, a tentar fazer com que outros o sigam, a arcar com umacarga desproporcional dos custos do sistema e, em particular, sustentá-lo naadversidade, recebendo o excesso de matérias-primas nele produzido, man-tendo um fluxo de capitais para investimento e descontando seus títulos”.

A estabilidade de uma determinada “ordem” no sistema internacio-nal dependeria da liderança de um Estado disposto a arcar com oscustos da estabilização do sistema. Diante desta necessidade, a ca-

Autonomia e Relevância dos Regimes

293

racterística mais importante para determinar a estabilidade do siste-ma internacional seria a assimetria de poder e de capacidades entre apotência hegemônica e os demais participantes: “a simetria não é acaracterística do mundo em todas as épocas e lugares” (idem:292).Para o autor, a longa duração da crise, de 1929 a 1939, teria suas raí-zes em parte na ausência desta liderança:

“[...] parte da razão para a duração e grande parte da explicação para a pro-fundidade da depressão mundial são a inabilidade dos britânicos em conti-nuar atuando como garantidores do sistema e na relutância dos Estados Uni-dos em assumir este papel antes de 1936” (idem:28).

Apesar de não tratar diretamente de regimes, a teoria da estabilidadehegemônica, como formulada por Kindleberger (idem), traz conclu-sões interessantes para seu estudo na medida em que a coordenaçãodo sistema pelo líder hegemônico passa pela formação de arranjos eregras para orientar e até mesmo determinar a conduta dos demaisparticipantes.

A despeito de sua inspiração realista, algumas características destaformulação a diferenciam dos realistas clássicos. Logicamente, se osistema necessita da atuação direta de um líder para sua estabilizaçãoe ordenação, então os regimes não possuem autonomia, não se disso-ciam do ator que os estabeleceu. Além disso, a atuação direta e cons-tante desse líder é necessária para que os regimes por ele estabeleci-dos tenham relevância ou efetividade.

Todavia, ao contrário de outros autores realistas, a visão de Kindle-berger da hegemonia e de sua atuação na manutenção de regimespossui uma conotação menos conflituosa. Apesar da assimetria depoder e do elemento de dominação inerente à idéia de hegemonia,Kindleberger (idem:292) enxerga a estabilização do sistema comoum “bem público”: “quando todos os países passaram a proteger seusinteresses nacionais particulares, o interesse público do mundo foipara o buraco e com ele se foram os interesses privados de todos”.

Gustavo Seignemartin de Carvalho

294 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Além disso, apesar de a estabilidade ser um bem público e interessara todos os atores, isso não seria suficiente para promover a conver-gência dos interesses divergentes do líder hegemônico e de cada umdos demais participantes. Na visão do autor, para que haja estabilida-de, é necessária acima de tudo a atuação e liderança de uma potênciahegemônica consciente da necessidade de sacrificar seus interessesde curto prazo em prol dos interesses de estabilização a longo prazo,por intermédio da assunção dos custos necessários à “cooptação” dosdemais.

É curioso que apesar de se apoiar claramente no poder para sua eficá-cia, a hegemonia, como entendida por Kindleberger (idem), não éexercida explicitamente para a promoção dos interesses do líder he-gemônico. Sem dúvida, seus interesses seriam melhor atingidos pormeio da estabilidade, mesmo que isto venha em detrimento de seusinteresses de curto prazo: “os economistas têm argumentado que [...]é mais provável que um ator exerça tal liderança quando se vê comoum dos grandes consumidores dos benefícios de longo prazo produ-zidos pelo regime” (Keohane e Nye, 1989:44). Mas para Kindleber-ger (s/d), o exercício da liderança pelo líder hegemônico parte deuma concepção internalizada da ordem dentro do sistema ou do regi-me, algo que transcende o simples cálculo racional dos interesses dosparticipantes e possui uma conotação adicional que evoca a idéia deresponsabilidade: “se a liderança é entendida como o fornecimentodo bem público da responsabilidade e não como a exploração do pró-ximo ou a busca do bem privado do prestígio, ela permanece umaidéia positiva” (idem:307).

Outro ponto interessante da aplicação da teoria da estabilidade hege-mônica de Kindleberger ao estudo de regimes está na visão que osparticipantes possuem dos ganhos relativos. Ao contrário de realistascomo Mearsheimer e Grieco, a teoria de Kindleberger sugere que osganhos relativos não são tão importantes para os participantes de umregime, até porque a assimetria de poder é da própria natureza do ar-

Autonomia e Relevância dos Regimes

295

ranjo político entre todos os participantes e é fundamental para suaestabilidade.

Robert Gilpin (1981) apresenta uma versão diferente da teoria da es-tabilidade hegemônica e do papel das potências na manutenção dosistema e dos regimes:

“[...] os atores entram em relações sociais e criam estruturas sociais parapromover conjuntos específicos de interesses políticos, econômicos ou deoutros tipos [...]. [O]s interesses mais favorecidos por estes arranjos sociaistendem a refletir os poderes relativos dos atores neles envolvidos [...].[A]pesar dos sistemas sociais imporem restrições ao comportamento de to-dos os atores, os comportamentos recompensados ou punidos pelo sistemacoincidirão, ao menos inicialmente, com os interesses dos membros maispoderosos do sistema social” (idem:9).

Regimes, como meios de ordenação do sistema, seriam para Gilpin(idem) criações dos Estados para promover seus próprios interesses,principalmente os dos Estados em posição de liderança. Como bemlembram Keohane e Nye (1989:44), a concepção de “liderança” paraos realistas implicaria que “quando um Estado é suficientemente po-deroso para manter as regras essenciais governando as relações inte-restatais [...] pode ab-rogar as regras existentes, impedir a adoção deregras às quais se oponha ou exercer o papel dominante na constru-ção de novas regras”. Mas Gilpin (1981) qualifica o argumento rea-lista ao reconhecer que os Estados não controlam totalmente estes ar-ranjos políticos, os quais adquirem certo grau de influência sobre ocomportamento dos próprios Estados:

“[...] obviamente, eles [os Estados] não possuem controle absoluto sobreeste processo. Uma vez que esteja em funcionamento, o próprio sistema in-ternacional tem uma influência recíproca no comportamento estatal; eleafeta as maneiras pelas quais indivíduos, grupos e Estados procuram alcan-çar seus objetivos. O sistema internacional oferece um conjunto de cons-trangimentos e oportunidades sob os quais grupos e Estados procuram pro-mover seus interesses” (idem:25).

Gustavo Seignemartin de Carvalho

296 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Teorias Autonomistas

Ainda que partilhem de algumas premissas, existem diferenças mar-cantes entre autores institucionalistas liberais e realistas. Partindo deperspectivas liberais ou institucionalistas liberais, o estudo de regi-mes acabou concentrando autores de tradições diversas em torno darelevância e da autonomia dos regimes internacionais.

Alguns desses autores, como Arthur Stein (1990), expressam a rele-vância (em maior grau) e a autonomia (em menor grau) dos regimesao identificá-los como variáveis intervenientes que se situam, nas pa-lavras de Krasner (1982:189), “entre as variáveis causais básicas(sendo as mais importantes poder e interesses) e resultados e com-portamento”. Nesta formulação (que podemos chamar de “causal”),regimes, criados a partir dessas variáveis independentes e por elas in-formados, teriam uma relação de causalidade com o comportamentodos atores, o que demonstraria sua relevância, e não se resumiriam aum mero conjunto de interesses ou a um mero reflexo do poder dosatores, o que demonstraria sua autonomia. Segundo Krasner(idem:190), para esses autores, “o impacto independente dos regi-mes é uma questão analítica crucial”. Ele finaliza sua análise destaprimeira vertente apresentando o esquema da Figura 1.

Para outros autores dentro da perspectiva autonomista, como Young,os regimes se desenvolveriam a partir de padrões ou da repetição docomportamento dos agentes. De acordo com Krasner (idem:192),“padrões de comportamento que persistem ao longo de extensos pe-ríodos são impregnados de significância normativa” e “isto leva a umcomportamento convencional no qual existe alguma expectativa derepreensão em caso de desvio”.

Autonomia e Relevância dos Regimes

297

Variáveis Causais Básicas Regimes Comportamentos e Resultados

Figura 1

Representação Gráfica da Vertente “Causal”

Fonte: Krasner (1982:189).

Regimes adquirem para estes autores uma conotação mais próxima doque Hasenclever et alii (1997:2) chamaram de “escola de pensamentocognitivista”, na medida em que o aspecto intersubjetivo inerente aosregimes é enfatizado. Regimes, apesar de autônomos com relação aseus autores, influenciam ao mesmo tempo em que são influenciadospelo comportamento dos participantes. Krasner (1982) apresenta o se-guinte esquema gráfico para resumir a visão destes autores:

Outros autores possuem uma visão “estrutural” da formação dos re-gimes. Keohane e Nye (1989:8) conceituam regimes como institui-ções da ordem internacional que afetam as inter-relações dos atoresem um contexto representado pela “interdependência complexa”, ouseja, por dependências mútuas entre os diversos atores marcadas pelacomplexidade e diversidade dos laços e canais de dependência e co-municação (idem:24). Assim, regimes internacionais são “conjuntosde arranjos de governação que causam efeitos em relações de inter-dependência” (idem:19) e, quando presentes as condições estruturaisde interdependência, desenvolvem-se a ponto de possuírem relevân-cia e autonomia frente aos atores.

Para Keohane e Nye (idem), a estrutura do sistema internacional édada pela distribuição de capacidades (não apenas militares) entreunidades similares e não se confunde com os processos políticos pormeio dos quais essas capacidades são redistribuídas dentro do siste-

Gustavo Seignemartin de Carvalho

298 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Variáveis CausaisBásicas

Regimes

Comportamentos e Resultados

Figura 2

Representação Gráfica da Vertente “Cognitivista”

Fonte: Krasner (1982:193).

ma. Regimes possuem autonomia e relevância quando a lógica dosprocessos de redistribuição passa a ser constrangida pelas formas deinterdependência complexa, ou seja, quando a lógica do sistemamuda da anarquia defendida pelos realistas para uma anarquia condi-cionada pela interdependência complexa, e os processos e capacida-des econômicas assumem importância perante as questões militarese de segurança. Assim, regimes adquirem importância fundamentalpor servirem de arcabouço para os processos de redistribuição de ca-pacidades: “regimes internacionais ajudam a fornecer o arcabouçopolítico dentro do qual ocorrem os processos econômicos internacio-nais” (idem:38).

É interessante notar que, nesta formulação, a estrutura não aparecede forma clara como a variável independente, já que ela é também in-fluenciada pelos regimes, e estes não podem ser definidos como va-riáveis intervenientes, uma vez que as unidades possuem papel im-portante na criação e alteração de regimes:

“[...] a interdependência afeta a política mundial e o comportamento dosEstados; mas as ações dos governos também influenciam os padrões de in-terdependência. Ao criar ou aceitar procedimentos, regras ou instituiçõespara certos tipos de atividades, os governos regulam e controlam as relaçõestransnacionais e interestatais” (idem:5).

Para Keohane e Martin (1995:46), “a teoria institucionalista conceituainstituições tanto como variáveis independentes quanto como variáveisdependentes”. É possível estabelecer o seguinte diagrama para repre-sentar graficamente a vertente “estrutural” de Keohane e Nye:

Autonomia e Relevância dos Regimes

299

Interdependência(estrutura)

Regimes Comportamento estatal

Figura 3

Representação da Vertente “Estrutural”

Internacionalistas Liberais

(Vertente Estrutural)

Os autores que se definem como internacionalistas liberais ou sim-plesmente liberais constituem a maioria dos autores associados àperspectiva autonomista. Pode mesmo ser atribuída ao liberalismo,desde os autores clássicos, como Adam Smith (1983) e David Ricar-do (1987) na EPI e Norman Angell (2002) em RI, a primazia no estu-do do fenômeno da cooperação entre os Estados. Este foco foi esten-dido ao estudo das formas pelas quais o sistema internacional é orde-nado e, principalmente no pós-guerra, ao fenômeno das organiza-ções internacionais. Segundo Kratochwil e Ruggie (1986:754), “ocampo de estudos das organizações internacionais sempre se preocu-pou com o mesmo fenômeno: nas palavras de um texto de 1931, éuma tentativa de descrever e explicar ‘como a moderna Sociedade deNações se governa’”. Gradualmente, conforme a distância entre a si-tuação política internacional e as organizações formais “começou aaumentar de uma maneira que era difícil de ser conciliada” (Martin eSimmons, 1998:736), o objeto de estudo da tradição liberal ampli-ou-se para compreender outros aspectos da ordem no sistema inter-nacional, como os regimes internacionais. Para Kratochwil e Ruggie(1986:753), “estudiosos das organizações internacionais mudaramsistematicamente seu foco das instituições internacionais para for-mas mais amplas de comportamento internacional institucionaliza-do”. Martin e Simmons (1998:729) entendem da mesma maneira:

“[...] um dos avanços mais importantes para nosso entendimento das institu-ições internacionais veio no começo dos anos 1970, quando uma nova gera-ção de estudiosos desenvolveu idéias que originaram pesquisas para alémdas organizações formais e criaram postos avançados para o estudo maisamplo das instituições”.

Assim, em função de sua própria herança intelectual, o instituciona-lismo liberal pode ser considerado como a principal tradição na dis-

Gustavo Seignemartin de Carvalho

300 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

ciplina de RI a estudar regimes e atribuir a eles relevância e autono-mia, a despeito de adotar algumas premissas comuns ao realismo.

As definições de regimes fornecidas pelo institucionalismo liberalpartem da definição original apresentada por Ruggie em seu artigo,“International Responses to Technology: Concepts and Trends”, de1975. Para o autor (apud Keohane, 1984:57), regimes são um con-junto de instrumentos que, quando aceitos pelos Estados, pautamsuas relações no campo internacional: “um conjunto de expectativasmútuas, de regras e regulações, de planos, energias organizacionais ecompromissos financeiros, os quais foram aceitos por um grupo deEstados”.

Na mesma linha de Ruggie, Keohane e Nye (1989:19) definem regi-mes como “redes de regras, normas e procedimentos que regulari-zam o comportamento e controlam seus efeitos”. Há uma diferença,contudo, no papel atribuído por estes autores aos regimes na organi-zação dos processos de redistribuição de capacidades dentro da es-trutura do sistema. Como visto, para o institucionalismo liberal, ins-tituições e regimes possuem autonomia e relevância mediante aocorrência de algumas condições específicas. Na visão de Keohane eNye (idem), regimes atuam dentro de condições de interdependênciacomplexa, as quais Axelrod e Keohane (1985:238) apontam posteri-ormente para o “contexto da interação” (context of interaction).

Os autores divergem quanto ao que compõe o contexto de interação.Para Ruggie (apud Axelrod e Keohane, 1985), por exemplo, ele é re-presentado pelos valores e princípios internalizados pelos partici-pantes do sistema, que comporiam sua “estrutura profunda” (deepstructure). Axelrod e Keohane (1985:238) definem o contexto de in-teração como “o contexto de normas que são partilhadas, muitas ve-zes implicitamente, pelos participantes”, e que se expressariam, emuma perspectiva influenciada pela teoria dos jogos, em “questõesvinculadas (issue-linkage), conexões doméstico-internacionais e in-

Autonomia e Relevância dos Regimes

301

compatibilidades entre jogos de diferentes grupos de atores”(idem:239).

Como para os institucionalistas liberais a interação ocorre dentro docontexto da interdependência complexa, a preocupação dos Estadoscom ganhos relativos, privilegiada pela tradição realista, deve serqualificada. Uma vez que a interdependência complexa representauma mudança na “lógica” do sistema anárquico4, pode-se esperaruma mudança semelhante na importância atribuída pelos Estadosaos ganhos relativos. Keohane e Martin (1995:44) sugerem, assim,que “duas questões possuem maior relevância: 1) as condições sob asquais os ganhos relativos se tornam significantes; e 2) o papel das ins-tituições quando problemas de distribuição se tornam significantes”.

É importante notar que, para os institucionalistas liberais, o estudo eas definições de regime não podem estar dissociados do contexto emque ocorrem as interações: “uma vez que os regimes internacionaisrefletem padrões de cooperação e conflito ao longo do tempo, o focoem seu estudo nos leva a examinar padrões de comportamento delongo prazo em vez de tratar atos de cooperação como eventos isola-dos” (Keohane, 1984:63).

Aplicações da Teoria dos

Jogos (Vertente Causal)

Aplicando a teoria dos jogos à teoria de RI, Stein (1990) procura de-monstrar as condições em que a cooperação se dá na esfera internaci-onal e o papel dos regimes em sua facilitação. Fazendo uma breveanálise do debate entre realistas e liberais, o autor (idem:4) concluique tanto cooperação quanto conflito são características do sistemainternacional: “as premissas subjacentes ao modelo conflituoso dapolítica internacional admitem uma grande dose de cooperação e aspremissas do modelo cooperativo também admitem o conflito”. ParaStein (idem:24), o caráter competitivo das relações internacionais

Gustavo Seignemartin de Carvalho

302 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

pode inclusive levar a um comportamento verdadeiramente coopera-tivo, “que não pode ser totalmente explicado apenas com base no in-teresse nacional individualista”. Regimes, “arranjos mais ou menosinstitucionalizados que estruturam relações internacionais em várioscampos” (idem:25) constituiriam um desafio para ambas as tradiçõesmainstream, realista e liberal, que não conseguiriam explicar o surgi-mento de ordem na anarquia.

O autor possui uma preocupação particular com a especificidadeteórica do conceito de regimes. Em sua opinião, definições muitoamplas permitiriam a caracterização de quaisquer padrões de com-portamento encontrados na esfera internacional como regimes, emdetrimento da precisão teórica do conceito. Por isso, ele procura es-pecificar as condições sob as quais os regimes ocorrem: “existe umregime quando a interação entre as partes é constrangida ou baseadaem decisões tomadas em conjunto” (idem:28). Quando os Estados,entendidos como atores racionais maximizadores de utilidade, ob-têm o melhor resultado preferível unilateralmente, não há a necessi-dade de regimes. De igual forma, se um Estado obtém o melhor resul-tado preferível, mas os demais obtêm o pior resultado possível, nãohá cooperação – os Estados em desvantagem não possuem qualquerincentivo à cooperação. Para Stein, portanto, somente há cooperaçãoquando ambos os Estados necessitam cooperar sob pena de termina-rem com resultados não desejados ou sub-ótimos. Estas situaçõessão classificadas pelo autor (idem:32) como “dilemas de interessescomuns” e dilemas de “aversões comuns” (“dilemmas of common in-terests and dilemmas of common aversions”).

Dilemas de interesses comuns seriam caracterizados por situaçõesem que ambos os participantes preferem um resultado cuja situaçãode equilíbrio não é pareto-eficiente. O exemplo típico utilizado parademonstrar situações de dilema de interesses é o chamado “Dilemado Prisioneiro”. Neste “jogo”, dois bandidos possuem interesses emuma ordem de preferência, sendo o resultado preferido (4, também

Autonomia e Relevância dos Regimes

303

chamado de “estratégia dominante”) denunciarem o comparsa semque o outro faça o mesmo; o segundo mais preferido é não entrega-rem o comparsa, mas também não serem denunciados por ele (3); oterceiro é serem incriminados pelo comparsa, mas entregá-lo tam-bém (2); e o último é serem denunciados sem que entreguem o com-parsa (1). Na tentativa de evitar o resultado menos preferido, ambosprocuram antecipar-se à reação do outro, acabando por se entregarmutuamente, gerando um resultado (2, também chamado de “resul-tado de equilíbrio”) que, apesar de não ser o pior na lista de preferên-cias, não é pareto-eficiente. O Dilema do Prisioneiro segue a escalade preferências (4,1; 3,3; 2,2; 1,4) para ambos os prisioneiros e podeser representado graficamente conforme ilustrado abaixo:

Dilemas de aversões comuns, ao contrário, ocorrem quando os parti-cipantes possuem preferência (1) não por um resultado, mas em evi-tar pelos menos um resultado específico. Desta forma, dilemas deaversão podem ter equilíbrios múltiplos, desde que evitem o resulta-do menos preferido (0). O dilema de aversão comum mais simples

Gustavo Seignemartin de Carvalho

304 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Prisioneiro B

B1 B2

A1 1,4*

4,1* 2,2**

Prisioneiro A

* Estratégia dominante de cada prisioneiro

** Resultado de Equilíbrio

A2

3,3

Figura 4

Representação Gráfica do “Dilema do Prisioneiro”

Fonte: Stein (1990:33).

segue a escala de preferências (1,1; 0,0) para ambos os participantese pode ser representado graficamente da seguinte forma:

Contudo, nem sempre dilemas de aversão comum seguem o modelosimplificado. Em muitos casos, apesar de possuírem o mesmo inte-resse em evitar o resultado não desejado, os participantes discordamquanto à estratégia a ser adotada, possuindo preferências diferentespor equilíbrios diferentes. Neste jogo, ambos desejam evitar o mes-mo resultado (1), mas possuem preferências diferentes por três ou-tros resultados (2, 3 e 4). O jogo segue a escala de preferências (4,3;3,4; 2,2; 1;1) para ambos os participantes e pode ser representadograficamente conforme a Figura 6.

Para Stein (idem), regimes são importantes por possibilitarem que osEstados lidem com dilemas de interesses e aversões comuns, ao abri-rem mão da possibilidade de tomarem decisões unilateralmente e deforma independente em favor da criação de procedimentos que cons-tranjam seu comportamento futuro e permitam que haja uma conver-

Autonomia e Relevância dos Regimes

305

** Resultado de Equilíbrio

A2

1,1** 0,0

0,0 1,1**

Participante A

Participante B

B1 B2

A1

Figura 5

Representação Gráfica do Dilema de Aversão Comum Simplificado

Fonte: Stein (1990:37).

gência das expectativas dos participantes. Apesar de limitados emsua autonomia – sendo criados pelos Estados “no seu interesse pró-prio” (idem:39) –, regimes possuem relevância e não são meramenteinstrumentais, já que, após estabelecidos, incluem-se no cálculo raci-onal dos demais participantes, tornando-se auto-executáveis: “umavez criado, o regime em função do qual as expectativas convergem eque permite que os atores coordenem suas ações é auto-executável;qualquer ator que o desrespeite causa prejuízos apenas a si mesmo”(idem:42). Ainda segundo o autor, regimes são auto-executáveisquando “os custos do descumprimento arcados por um ator não sãopotenciais, mas sim imediatos e causados por seus próprios atos enão pela resposta dos demais a seu descumprimento” (ibidem5).

Outro aspecto reforçaria a autonomia dos regimes: o que Stein cha-mou de “tomada de decisões em conjunto” (“joint decision ma-king”). Padrões de comportamento na esfera internacional apenaspodem ser considerados como regimes quando os participantesabandonam a possibilidade de tomarem decisões unilaterais em uma

Gustavo Seignemartin de Carvalho

306 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Participante B

B1 B2

A1

** Resultado de Equilíbrio

A2

2,2 3,4**

4,3** 1,1

Participante A

Figura 6

Representação Gráfica do Dilema de Aversão Comum

Fonte: Stein (1990:38).

área específica e procuram tomar decisões conjuntamente com osdemais participantes: “pode-se dizer que decisões são tomadas emconjunto quando todos os atores participam na determinação das de-cisões de cada ator” (Stein, 1990:456).

“Cognitivistas”

Oran Young defende uma visão alinhada com vertentes identificadaspor Hasenclever et alii (1997) como “cognitivistas”, para os quais ofoco do estudo no comportamento percebido dos atores não seria su-ficiente para explicar o surgimento de regimes. Em conseqüência,esta vertente seria caracterizada por “uma mudança de ênfase, nãomais no comportamento observado, mas no significado intersubjeti-vo e em entendimentos compartilhados” (idem:16).

Segundo a definição de Young (1982:732), regimes são “instituiçõessociais que governam as ações dos interessados em atividades espe-cíficas (ou em conjuntos aceitos de atividades)”. Como instituiçõessociais, regimes seriam uma resposta social a problemas de coorde-nação em situações em que decisões negociadas e tomadas de formacoletiva tenderiam a levar a resultados mais eficientes do que quandofeitas individualmente.

Apesar de enfatizarem aspectos diferentes, Young acredita que suadefinição não é incompatível com a de Krasner (1982), já que “comoqualquer instituição social, eles [os regimes] são padrões reconheci-dos de comportamento ou prática em função dos quais as expectati-vas convergem” (Young, 1982:732). Uma das características dos re-gimes seria justamente esse caráter intersubjetivo, ou seja, uma con-junção entre as expectativas dos participantes e padrões de compor-tamento e prática na esfera internacional.

Apesar de necessária, para Young, a simples existência desta conjun-ção entre expectativas e comportamento não é uma circunstância su-

Autonomia e Relevância dos Regimes

307

ficiente para a formação de um regime, uma vez que pode informar aação dos atores na esfera internacional sem contudo eliminar o cará-ter casuístico ad hoc das relações e acordos efetuados entre eles.Apenas quando o cálculo dos custos e benefícios deixa de ser neces-sário caso a caso é que se tem instituições sociais e regimes: “estessão guias para ações ou para padrões comportamentais que os atoresconsideram eficazes sem fazer cálculos detalhados para cada situa-ção” (idem:733).

O conceito de regimes fornecido por Young permite que ele seja in-cluído entre os autores da perspectiva autonomista. Apesar de nãopossuírem existência “física”, pode-se dizer que para Young os regi-mes possuem existência objetiva, ou melhor, autonomia e relevância.O autor ressalta que regimes são construções sociais, mas isso nãoquer dizer que possam ser reduzidos a seus participantes individual-mente considerados, nem que possuam relevância ou que possam seralterados ou criados por simples ato de vontade:

“Regimes internacionais, como outras instituições sociais, são de um modogeral produtos do comportamento de um grande número de indivíduos ougrupos. Apesar de qualquer regime refletir o comportamento de todos aque-les que dele participam, individualmente os atores têm pouca influência so-bre o caráter do regime” (idem:734).

Decompondo Regimes

Observando o alerta de Stein (1990) e dos autores incluídos na pers-pectiva não-autonomista, é necessário especificar o conceito de regi-mes para que tenha precisão e aplicabilidade. Definições muito am-plas permitiriam que fosse compreendido dentro do conceito de regi-mes todo e qualquer padrão de comportamento entre Estados (ou ou-tros atores), incluindo a balança de poder ou a guerra, como bemaponta Mearsheimer (1995).

Gustavo Seignemartin de Carvalho

308 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Apesar de os regimes ocorrerem em contextos de conflito, este deveser qualificado pela mudança na “lógica” da anarquia apontada porKeohane e Nye (1989). Em um contexto de interdependência com-plexa, os regimes possuem autonomia e relevância quando a nature-za dos conflitos tem sua ênfase mudada de questões puramente rela-cionadas à segurança e à sobrevivência para considerações econômi-cas e de redistribuição política dos ganhos da cooperação.

Mesmo quando assumem como ponto de partida a definição “con-sensual” de Krasner (1982), muitos autores autonomistas divergemquanto aos elementos que diferenciam os regimes de padrões decomportamento não compreendidos em regimes. Uma definição me-ramente funcionalista de regimes, baseada em sua “eficiência”, nãoparece suficiente para esta diferenciação e para explicar sua efetivi-dade. Assim, na tentativa de determinar os elementos que conferemaos regimes autonomia e relevância, o presente artigo apresenta uma“decomposição” analítica do conceito de regimes em elementos bá-sicos: normatividade, atores, especificidade da área de interesses einterdependência complexa como contexto.

Normatividade

De acordo com a definição “consensual” de Krasner (idem:186), re-gimes são “conjuntos de princípios, normas, regras e procedimentospara a tomada de decisões, implícitos ou explícitos, em função dosquais as expectativas dos atores convergem em uma área determina-da das relações internacionais”.

Temos assim o primeiro elemento básico: regimes são padrões de or-denação do comportamento dos atores na esfera internacional. Se-gundo Young (1982:733), “isso é o que as pessoas normalmente têmem mente quando dizem que instituições sociais incluem conjuntosde normas reconhecidas ou exibem um elemento normativo”. Paraque padrões de comportamento se configurem como regimes e pos-

Autonomia e Relevância dos Regimes

309

suam autonomia e relevância, devem estar revestidos de normativi-dade.

A normatividade de um comportamento é o elemento (formal e ex-plícito ou informal e implícito) que promove sua internalização pelosatores e sua valoração, seja positiva ou negativa. Regimes influenci-am o comportamento de seus participantes, não são um conjunto deatos automáticos ou reflexos. No entanto, a normatividade não excluia “racionalidade” dos atores, sejam estes indivíduos, companhiastransnacionais, sindicatos, governos ou Estados. O grau de internali-zação do regime pelo participante pode condicionar ou promover demaneiras diferentes seu comportamento, mas como é capaz de fazerjuízos de valor, cada ator pode racionalmente optar por seguir ou nãoos padrões de comportamento estabelecidos pelo regime, assumindodesta forma os custos respectivamente associados ao cumprimentoou ao desvio de comportamento.

Logicamente, os conceitos de “ordem” e “normatividade” possuemfortes conotações ideológicas. No entanto, podemos interpretar “or-dem” como um processo de ordenação da vida na esfera internacio-nal, sem que tenhamos que considerar seus elementos valorativosneste primeiro momento. Isto não quer dizer que pretendamos for-mular teorias neutras ou “estudar a realidade” do ponto de vista do“observador neutro”, como ressalta Robert Cox (1986:207): “a teo-ria não existe por si mesma, dissociada de sua situação no tempo e noespaço”. Por outro lado, o estudo de regimes é possível sem que secaia na armadilha que Cox atribuiu às teorias de solução de proble-mas (problem solving theories) (idem:208). Quando nos referimos àordem como conceito analítico, desinteressado de juízos de valor,não pretendemos reificar o conceito de ordem, mas apenas indicar,parafraseando Hedley Bull (2002), que em um regime os princípios,normas e regras estão estabelecidos e relacionados entre si medianteum padrão discernível. Naturalmente, todo padrão de ordenaçãopossui um objetivo, como entende Bull (idem:8): “ordem [...] [é] uma

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estrutura de conduta que leve a um resultado particular, um arranjoda vida social que promove determinadas metas ou valores”. Mas épossível identificar estes arranjos sem a necessidade de um juízo devalor a priori.

Outra característica da normatividade dos regimes é seu caráter exte-rior aos Estados; ou seja, regimes, ao menos à luz da disciplina de RI,não são elementos subestatais, mas fenômenos que se desenvolvemna esfera “internacional”. Este é um dos motivos pelos quais os auto-res autonomistas em geral se referem a “regimes internacionais” eKeohane (1993:112) os define como “modelos regularizados decomportamento cooperativo na política mundial”.

Naturalmente, os regimes são necessariamente internacionais quan-do formados a partir dos Estados. Mas há outra razão. Se regimes sãonormativos e visam à ordenação do comportamento de seus partici-pantes, regimes “subestatais” atuariam como “competidores” inter-nos dos Estados no “fornecimento” de ordem7 ou no provimento dobem público da “estabilidade”, o que seria incompatível com a con-ceituação do Estado como titular do “monopólio do uso legítimo daviolência física” (Weber, s/d b:56). Porém, dentro da esfera estatal,os problemas de cooperação e de fornecimento de “estabilidade” e“ordem” são resolvidos pelos próprios Estados.

Reconhecer o caráter “internacional” dos regimes não significa, noentanto, negar suas ramificações nacionais. Regimes não apenas in-fluenciam o comportamento de atores subestatais como muitas vezesincorporam elementos e regras específicas de um Estado ou arranjosubestatal. Segundo Keohane e Nye (1989:19),

“[...] na política mundial, regras e procedimentos não são tão completos ouefetivos quanto em sistemas políticos domésticos bem ordenados, e tam-pouco as instituições são tão poderosas ou autônomas. As regras do jogo in-cluem algumas regras nacionais, algumas regras internacionais, algumasregras privadas – e grandes áreas sem regra alguma”.

Autonomia e Relevância dos Regimes

311

Contudo, mesmo quando incorporam atores subestatais, os regimesnão estão adstritos à ordem estatal e a transcendem, adquirindo destaforma um caráter “transnacional”8, mais do que meramente “interna-cional”.

A transnacionalidade dos regimes, sua normatividade e exteriorida-de com relação aos Estados questionam ainda de forma direta o quese convencionou chamar de “soberania” estatal9 dentro do modelowestphaliano difundido na disciplina de RI, entendida por Krasner(1995:119) como sendo “um arranjo institucional para a organizaçãoda vida política baseado na territorialidade e na autonomia”. Não éobjetivo deste artigo aprofundar esta discussão. No entanto, seu re-gistro é fundamental; regimes, quando autônomos e influentes nocomportamento dos Estados, podem apresentar restrições à autono-mia da ação estatal.

Passemos então ao próximo elemento da análise dos regimes: a defi-nição de seus atores.

Atores

Na literatura sobre regimes, os Estados são considerados como osprincipais (quando não os únicos) atores na esfera internacional e,portanto, na formação dos próprios regimes.

Esta visão “estadocêntrica”, inclusive entre institucionalistas liberais,remonta aos primórdios da disciplina de RI e, sobretudo, ao predomí-nio da tradição realista no pós-guerra. Mas as premissas do realismonão foram o único fator a contribuir para esta visão. Como apontadopor Kratochwil e Ruggie (1986), o estudo de regimes evoluiu a partirdo estudo das organizações internacionais após a Segunda GuerraMundial. Como demonstram Martin e Simmons (1998), pela própriacaracterística do sistema internacional na época, os primeiros auto-res “institucionalistas” voltaram suas atenções para as organizações

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312 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

interestatais, como a ONU, e os processos de decisão dos Estados noforo destas organizações: “a atenção estava concentrada na eficiên-cia com que estas novas instituições proviam soluções para os pro-blemas que haviam motivado sua criação” (idem:730).

O “estadocentrismo” da teoria de regimes também decorre da opçãoepistemológica adotada por diversos autores. A proposta de algunsinstitucionalistas ao iniciar o estudo de regimes não era romper como realismo ou com abordagens mais clássicas, mas, ao contrário, se-guir uma via média entre perspectivas que Keohane e Nye (1989:9)chamaram, de um lado, de “modernistas” (que enfatizariam o carátertransnacional das relações de interdependência e a relativização doEstado) e, de outro, “tradicionalistas” (mais identificados com o rea-lismo e que enfatizariam a continuação do Estado e sua predominân-cia em questões de política internacional): “tentamos utilizar o con-ceito de interdependência de forma a integrar e não dividir aindamais as perspectivas modernistas e tradicionais”.

A busca pela via média também levou à adoção pelo institucionalis-mo de algumas das premissas realistas, descritas por Hasenclever etalii (1997:23) como a visão dos Estados como atores “unitários”,“egoístas” e maximizadores de utilidade atuando em um ambienteanárquico:

“[...] Estados como atores que buscam resultados em seu próprio interesse ecujo comportamento pode ser explicado pela maximização da utilidade in-dividual [...]. [T]anto a política externa dos Estados quanto as instituiçõesinternacionais devem ser reconstruídas como sendo o resultado do cálculode benefícios feito pelos Estados. Por sua vez, estes cálculos são informa-dos, embora não determinados, pelas preferências (função de utilidade) dosatores”.

A ênfase dada pelas teorias de regimes ao papel do Estado atraiu acrítica de diversos autores, para os quais ele não apenas empobrece-ria o debate como também negligenciaria o estudo dos efeitos decor-rentes da atuação na esfera “internacional” de atores não-estatais e

Autonomia e Relevância dos Regimes

313

do fenômeno da transnacionalidade. Além disso, acabaria por condi-cionar o estudo de regimes às preferências estatais, que ditariam des-ta forma a agenda de tal estudo. Como ressalta Strange (1982:491),

“[...] a atenção dada a estas questões sobre regimes deixa o estudo da econo-mia política internacional excessivamente constrangido pelos limites im-postos pelo paradigma estadocêntrico [...] portanto, a atenção dada aos regi-mes confere em demasia aos governos o direito de definir a agenda da pes-quisa acadêmica e direciona a atenção dos pesquisadores principalmentepara aqueles assuntos considerados importantes pelos membros do gover-no”.

Mas, apesar da ênfase dada pelo institucionalismo liberal e por mui-tos autores autonomistas ao papel do Estado na formação de regimes,o conceito não exclui a presença e a influência de atores não-estataise até mesmo subestatais tanto na sua criação quanto na sua “manu-tenção”.

Em primeiro lugar, as teorias de regimes são influenciadas de manei-ra explícita por teorias econômicas. As questões relativas a dilemasde cooperação levantadas por estas teorias não se restringem ao com-portamento dos Estados, mas, ao contrário, foram adaptadas aos es-tudos de RI a partir do estudo do comportamento no mercado de fir-mas, consumidores e outros atores não-estatais.

Desta forma, as definições apresentadas pelos diversos autores insti-tucionalistas ou não definem “atores” ou, apesar de explicitamentedirecionadas aos atores estatais, podem ser claramente adaptadas aatores não estatais. Keohane e Nye (1989) sugerem o mesmo quandotratam das características da interdependência complexa e descre-vem o que chamam de “múltiplos canais” (multiple channels):

“Múltiplos canais conectam as sociedades, compreendendo laços informaisentre as elites governamentais, assim como arranjos diplomáticos formais,laços informais entre as elites não-governamentais (pessoalmente ou pormeio de telecomunicações) e organizações transnacionais (como bancosmultinacionais ou corporações). Estes canais podem ser classificados como

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relações interestatais, transgovernamentais e transnacionais. Relações inte-restatais são os canais normais considerados pelos realistas. O termo trans-governamental aplica-se quando se flexibiliza a premissa realista de queEstados atuam como uma unidade coerente; o termo transnacional apli-ca-se quando se flexibiliza a premissa de que os Estados são as únicas uni-dades [de análise]” (idem:24, ênfase no original).

Como a formação de regimes depende, segundo Keohane e Nye(idem), do contexto da interdependência complexa e esta, por suavez, atribui espaço e relevância à atuação de atores não-estatais, aconclusão lógica é que regimes, em contextos de interdependênciacomplexa, podem em teoria ser formados e mantidos por atores esta-tais, não-estatais e até mesmo subestatais.

Naturalmente, isto não significa dizer que o poder e a política perdemsignificância para o estudo de regimes. A política não apenas estápresente como é responsável pela dinâmica dos processos de redistri-buição dos ganhos da cooperação organizados pelos regimes. Ade-mais, a política, entendida neste artigo como “o conjunto de esforçosfeitos com vistas a participar do poder ou a influenciar a divisão dopoder” (Weber, s/d b:56), é inerente a toda instituição social.

No entanto, em um contexto de interdependência complexa, o poderdeixa de ser utilizado das mesmas formas em que em um contextoanárquico “puro” e passa a ser qualificado pelas próprias característi-cas da interdependência; a preocupação com ganhos relativos ganhauma conotação diferente. E se o exercício do poder se torna condicio-nado aos efeitos da interdependência complexa, os Estados passam asofrer restrições no uso desse poder, em detrimento de outras formasde exercício de poder por atores não-estatais. Pode-se mesmo dizerque a soberania estatal sofre restrições dentro deste contexto. Keoha-ne e Nye (1989) identificam este fenômeno como uma segunda ca-racterística da interdependência, “o papel diminuído da força mili-tar” (minor role of military force):

Autonomia e Relevância dos Regimes

315

“Especialmente entre países industrializados e pluralistas, a margem de se-gurança percebida aumentou: o medo de ataques em geral diminuiu e omedo de ataques entre si é praticamente inexistente [...]. [I]ntensas relaçõesde influência mútua existem entre estes países, mas na maioria deles a forçacomo instrumento de política é irrelevante ou deixou de ser importante”(idem:27).

Os Estados continuam mantendo sua importância, mas a presença deatores não-estatais se faz sentir de forma cada vez mais forte nos regi-mes internacionais. Hasenclever et alii (2000:5) resumem a questãoda seguinte forma:

“[...] em resposta à acusação de estadocentrismo [...] tentou-se consi-derar de forma mais sistemática o papel de atores não-estatais na cri-ação, implementação e desenvolvimento de regimes internacionais[...]. [E]studiosos começaram a se questionar sobre a possibilidadeteórica e a realidade empírica de regimes transnacionais, ou seja, ins-tituições normativas com abrangência transnacional criadas e manti-das por atores privados. Exemplos de tais regimes internacionais pri-vados incluem a cooperação baseada em regras entre grandes com-panhias transnacionais em setores como o de seguros, bancário e dearmação e navegação”.

Especificidade da Área de

Interesses

Outro elemento por meio do qual podemos caracterizar os regimes éa especificidade da área em que se formam. Apesar de se constituí-rem em uma forma de ordenação da esfera “internacional” (ou“transnacional”), regimes aplicam-se a áreas específicas de in-ter-relação entre os atores, também chamadas de issue-areas. Young(1982) chama a atenção para essa característica. Regimes governari-am assim “as ações dos interessados em atividades específicas (ouem conjuntos aceitos de atividades)” (idem:732). Mas a formulaçãoclássica de tal característica coube à definição “consensual” de Kras-

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ner (1982:186) – regimes são estabelecidos “em uma área determi-nada das relações internacionais” – e levou à observação de Hasen-clever et alii (2000:3) de que regimes “são criados para remover áre-as específicas da política internacional da esfera da au-to-assistência”.

Para Keohane (1984), regimes formam-se em áreas de interesse deli-mitadas pela afinidade de temas e pela conveniência de tratá-los den-tro de um mesmo arranjo político e segundo as mesmas regras: “en-tendemos que o escopo dos regimes internacionais corresponde, emgeral, aos limites de áreas de interesses, uma vez que os governos cri-am regimes para lidar com problemas que consideram tão ligadosque precisam ser tratados em conjunto” (idem:61).

A especificação da área de “atuação” de um regime é um de seus ele-mentos fundamentais, mas ao mesmo tempo um dos pontos de ques-tionamento dos críticos, principalmente por meio do que os estudio-sos convencionaram chamar de “governança global”. Dentro dessavertente, os regimes são criticados pela sua rigidez conceitual e porsua limitação, em contraposição à dinâmica apresentada pelo siste-ma ou pela ordem mundial. Para James Rosenau (2000:21),

“[...] a definição das características dos regimes, que enunciamos anterior-mente, e que é amplamente aceita, tem uma frase adicional [...] princípios,normas, regras e procedimentos de qualquer regime convergem, por defini-ção, ‘para uma área determinada das relações internacionais’, ou o que temsido denominado de issue-area, ou seja, ‘área temática’[...] em suma, comodissemos, a governança inerente à ordem mundial é o conceito mais am-plo”.

Apesar das críticas, a caracterização de regimes como arranjos polí-ticos delimitados, circunscritos a uma área temática específica, étambém necessária para que o conceito tenha especificidade e aplica-bilidade. As críticas de Stein (1990) e Mearsheimer (1995) são pro-cedentes, uma vez que para muitos autores o conceito de regime é tão

Autonomia e Relevância dos Regimes

317

amplo que compreende quaisquer comportamentos por parte dosatores estatais ou não-estatais.

Nunca é demais enfatizar, no entanto, que regimes não se formamisoladamente no sistema. Como corretamente apontado por Young(1999:197), “apesar de alguns comentadores considerarem algunsregimes específicos como auto-suficientes, a maioria dos regimes in-terage extensamente com outras instituições”.

Além disso, uma das funções atribuídas por Axelrod e Keohane(1985:239) aos regimes é possibilitar o que chamaram de “is-sue-linkage”, ou seja, o entrelaçamento e condicionamento de deci-sões dos autores em uma área de temas a decisões em outras áreas:“neste sentido, a vinculação de questões envolve tentativas de se ob-ter um maior poder de barganha por meio do condicionamento docomportamento de um participante em uma questão ao comporta-mento de outro em outra questão”. O que o conceito de issue-linkagesugere é que os regimes, por adquirirem autonomia e relevância emum contexto de interdependência complexa, permitem a seus partici-pantes a barganha política em torno de temas relativos a outros regi-mes e áreas temáticas diversas.

Interdependência Complexa

como Contexto

Como visto anteriormente, para os institucionalistas liberais, os regi-mes ganham autonomia e relevância quando o contexto em que ocor-re a interação é influenciado pela interdependência complexa.

Desenvolvido por Keohane e Nye (1989:8), o conceito de interde-pendência complexa significa, basicamente, situações de dependên-cia mútua entre um ou mais atores: “a interdependência na políticamundial refere-se a situações caracterizadas por efeitos recíprocosentre países ou entre atores em diferentes países”. Stein (1990:45)

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complementa o conceito da seguinte forma: “os ganhos obtidos porum ator são uma função tanto das suas escolhas quanto das do outro.Se os atores fossem independentes, no sentido de que suas escolhasafetassem apenas seus ganhos, os regimes internacionais não teriamfundamento”.

Apesar de identificado com o institucionalismo liberal, o conceito deinterdependência possui uma longa história dentro da disciplina deRI, remontando a trabalhos clássicos de autores internacionalistas li-berais, como Norman Angell (2002), e autores liberais clássicos emEPI.

Adam Smith (1983) foi um dos primeiros autores em EPI a tratar daquestão da interdependência, ressaltando os aspectos positivos que ocomércio internacional e a divisão do trabalho possui para os Estadosenvolvidos:

“[...] quaisquer que sejam os países ou regiões com os quais se co-mercializa, todos eles obtêm dois benefícios do comércio exterior.Este faz sair do país aquele excedente da produção da terra e do traba-lho para o qual não existe demanda no país, trazendo de volta, em tro-ca, alguma outra mercadoria da qual há necessidade [...]. [O] comér-cio externo presta continuamente esses grandes e relevantes serviçosa todos os países entre os quais ele é praticado. Todos eles auferemgrandes benefícios dele” (idem:372).

Mas a interdependência é mais do que o intercâmbio ou o comérciointernacional entre os Estados. Para Keohane e Nye (1989:9), “inter-conexão não é o mesmo que interdependência”. Para haver interde-pendência, deve haver influências e efeitos recíprocos sobre os diver-sos participantes: “onde as transações acarretam custos recíprocos(apesar de não necessariamente simétricos), há interdependência.Onde as interações não acarretam custos significativos, há apenas in-terconexão” (ibidem). Estes efeitos da interdependência podem se

Autonomia e Relevância dos Regimes

319

reforçar, ou seja, os efeitos e custos aos quais um dos atores está sujeitopodem reforçar os efeitos nos demais.

Os aspectos positivos da interdependência estão claramente presen-tes na defesa que Smith (1983) faz da liberdade de comércio. Mas suanatureza pode ser diversa em situações de crise e de guerra. A inter-dependência não se mostra intrinsecamente positiva ou negativa.Para Eichengreen (1996), os efeitos da interdependência, os quaischama de “network externalities”, podem atuar também como umentrave ao desenvolvimento de soluções necessárias à ordem inter-nacional:

“[...] entretanto, descrever a evolução dos arranjos monetários internacio-nais como a resposta individual de vários países a um mesmo conjunto decircunstâncias seria enganoso. Na verdade, cada decisão nacional não sedeu independente das demais. A fonte desta interdependência está nas ex-ternalidades sistêmicas que caracterizam os arranjos monetários internaci-onais [...] o arranjo preferido por um país será influenciado pelos arranjosnos demais [...] o sistema monetário internacional apresentará path depen-dence” (idem:5, ênfase no original).

Da mesma forma, David Ricardo (1987:175) sugere que não apenasos efeitos positivos da interdependência são recíprocos e reforçados,mas também os negativos:

“[...] em todos estes casos, aqueles que atuam na manufatura de tais produ-tos sofrerão consideravelmente e, sem dúvida, terão perdas. [...] O sofri-mento não se limitará àquele país onde tais dificuldades se originaram, masserá sentido nos países para os quais seus produtos eram anteriormente ex-portados. Nenhum país pode continuar importando a não ser que tambémexporte, ou pode continuar exportando a não ser que também importe”.

Dentro da disciplina de RI, Norman Angell (2002) retoma a discus-são dos ganhos absolutos e relativos e procura demonstrar que a ri-queza das nações não deriva necessariamente de seu poderio militarou político, mas está sujeita ao contexto da interdependência. Segun-do ele, a guerra seria economicamente desastrosa, principalmente

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320 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

para os países europeus, ligados por laços de dependência econômi-ca mútua:

“Dizem-me que a dependência recíproca das nações é coisa antiga, que to-dos esses fatores existem desde tempos imemoriais e que ela não contribuiupara despojar a força militar das suas prerrogativas ou para modificar a con-duta dos Estados entre si. [...] A dependência recíproca das nações foi invo-cada como argumento, pela primeira vez com uma certa seriedade, porHume, em 1752, e trinta anos depois por Adam Smith [...] no entanto, no fimdo século XVIII, seus argumentos evidentemente ainda não tinham influen-ciado a política geral [...]. Na realidade, a dependência vital dos Estados en-tre si era praticamente muito limitada, como se pode ver pelos resultados dosistema continental de Napoleão. [...] A Inglaterra ainda não tinha umagrande indústria vinculada à prosperidade dos seus vizinhos [...] mas aí pelaterceira ou quarta década daquele século, fez-se sentir plenamente a divisãode trabalho” (idem:120).

Angell aprofunda os argumentos apresentados por Smith e Ricardoacrescentando um aspecto interessante da interdependência, sua in-tersubjetividade:

“[...] uma autoridade financeira que já citei observa que essa dependênciamútua e complexa do mundo moderno se produziu a despeito de nós mes-mos [...]. No fundo, os homens continuam prontos, hoje como em qualquerépoca precedente, a apoderar-se de bens que não lhes pertencem e que nãoadquiriram legitimamente [...]. Mas, quando a riqueza depende principal-mente do crédito e do prestígio que têm no mercado os documentos que o re-gistram, a má-fé revela-se tão improdutiva e arriscada quanto o trabalhohonrado em épocas anteriores” (idem:57).

A ênfase na intersubjetividade é reforçada na análise de Young(1999). Para ele, regimes devem ser situados no contexto de regras eprincípios mais amplos, que comporiam o que ele chama de “socie-dade internacional”:

“[...] cada regime atua dentro de um contexto mais amplo proporcionadopela sociedade internacional, o que traz amplas conseqüências tanto para aefetividade dos regimes em solucionar problemas quanto para as conse-qüências mais gerais advindas das atividades exercidas em relação a cadaregime em particular” (idem:198).

Autonomia e Relevância dos Regimes

321

Assim, regimes não podem ser analisados fora do contexto da inter-dependência complexa. Sem dúvida, a preocupação com ganhos re-lativos não desaparece quando os atores constituem regimes. Mas emum contexto no qual a preocupação com a segurança deixa de ser ab-soluta, a preocupação com ganhos relativos deve ser qualificada.

Isso não quer dizer que regimes ocorram em situações de harmoniade interesses. Ao contrário, eles possuem funções específicas relaci-onadas à coordenação de resolução de conflitos de interesses. Não háregimes em que não haja conflitos, mas os conflitos podem ser resol-vidos sem a utilização necessária do recurso da força, como preconi-zado pela tradição realista em RI e, como Angell (2002) sugere, ocontexto da interdependência não apenas torna a utilização da forçamilitar menos premente, como também mais custosa e prejudicial.

Conclusão

Conforme visto, regimes apresentam um problema analítico para aperspectiva não-autonomista. Como eles poderiam ter relevância seo comportamento estatal na esfera internacional é pautado por preo-cupações relacionadas ao poder e a ganhos relativos, como preconi-zam os realistas clássicos, ou dependem e estão intimamente ligadosà hegemonia de uma potência capaz ou disposta a assumir os custosde seu estabelecimento? Dentro da “lógica da anarquia” e do princí-pio de auto-ajuda apresentados por Mearsheimer, Grieco, Gilpin eoutros realistas como sendo a característica do sistema internacional,a idéia de regimes como instituições sociais autônomas e relevantes,dotadas de normatividade, constituídas por atores estatais enão-estatais, dentro de um contexto de interdependência complexa, éincongruente com a premissa realista que considera os Estados comoatores racionais. Afinal, atores racionais, soberanos, atuando em umsistema anárquico baseado no princípio da “auto-ajuda”, poderiamsubmeter sua segurança e sobrevivência a “arranjos políticos” sobreos quais não exercem controle direto? Como ficariam as preocupa-

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ções com os ganhos relativos? O que aconteceria quando a potênciahegemônica deixasse de arcar com os custos da cooptação dos demaisEstados? E como fica o modelo de soberania westphaliano tão difun-dido na disciplina de RI?

A solução apresentada pelos autores não-autonomistas é eliminar oproblema, simplesmente negando a possibilidade de autonomia aosregimes e condicionando sua influência à ação direta das potênciasdominantes. No entanto, eliminar o problema do ponto de vista teóri-co não o elimina da vida social; por isso, as teorias de orientaçãonão-autonomista passaram a enfrentar dificuldades ao procurar for-necer explicações para situações e fenômenos intensificados duranteos anos 1970, como por exemplo “constatações sobre a crescente in-terdependência entre as sociedades e sobre a sobrevivência das insti-tuições criadas no pós-Segunda Guerra, mesmo em face das crisesdaquele período” (Herz e Hoffmann, 2004:52). Como notam Herz eHoffmann (idem:53), “a percepção de que as instituições internacio-nais podem mudar as relações entre Estados é o grande divisor deáguas que separa liberais e realistas no debate”.

Ao contrário do que entendem os autores não-autonomistas, regimespodem ser efetivos por possuírem autonomia, ou seja, uma existênciaobjetiva autônoma com relação a seus participantes, e por possuíremrelevância ao influenciarem o comportamento e as expectativas dosparticipantes de maneiras que não podem ser reduzidas à atividadeindividual de qualquer um deles.

Logicamente, o estudo de regimes não se encontra imune a críticas,principalmente de cunho epistemológico. No entanto, como já de-fendido, o estudo de instituições sociais, como os regimes, não é pri-vativo de perspectivas não-fundacionalistas. Tanto as perspectivasracionalistas quanto as não-fundacionalistas permitem a análise daquestão da ordem na “esfera internacional” em seus diferentes aspec-tos. Esperamos que o presente artigo possa contribuir para este deba-

Autonomia e Relevância dos Regimes

323

te e que o estudo dos regimes e do tipo de ordem no qual se inserempossa se desenvolver sem que seja legado ao esquecimento comomais uma “moda passageira”.

Notas

1. Os textos não disponíveis em língua portuguesa foram traduzidos livremen-te por mim.

2. A conferência foi especialmente convocada para a preparação de um núme-ro especial da International Organization dedicado ao estudo de regimes (verKeohane, 1984:57; Hasenclever et alii, 1997:8), o qual se tornou uma referênciasobre o tema (ver International Organization, vol. 36, no 2).

3. Segundo Gilpin (2002:86, nota 2), o termo foi cunhado por Keohane.

4. Para uma discussão da “lógica da anarquia” a partir de uma visão construti-vista, ver Wendt (1992).

5. Cf. nota 34.

6. Cf. nota 44.

7. Para uma ampla discussão sobre este processo, ver Tilly (1996).

8. Para uma discussão mais aprofundada sobre o conceito de transnacionali-dade e outros aspectos da globalização, ver Mann (1999).

9. Como referência à discussão da soberania, ver Krasner (1995).

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Resumo

Autonomia e Relevância dosRegimes

Teorias institucionalistas na disciplina de relações internacionais usual-mente definem regimes como um conjunto de normas e regras formais ou in-formais que permitem a convergência de expectativas ou a padronização docomportamento de seus participantes em uma determinada área de interes-ses com o objetivo de resolver problemas de coordenação que tenderiam aresultados não pareto-eficientes. Como estas definições baseadas mera-mente na “eficiência” dos regimes não parecem suficientes para explicarsua efetividade, o presente artigo propõe uma definição diferente para regi-mes: a de arranjos políticos que permitem a redistribuição dos ganhos da

Autonomia e Relevância dos Regimes

327

cooperação pelos participantes em uma determinada área de interesses emum contexto de interdependência. Regimes possuiriam efetividade pela suaautonomia e relevância, ou seja, por possuírem existência objetiva autôno-ma da de seus participantes e por influenciarem seu comportamento e ex-pectativas de maneiras que não podem ser reduzidas à ação individual denenhum deles. O artigo inicia-se com uma breve discussão sobre as dificul-dades terminológicas associadas ao estudo de regimes e a definição dosconceitos de autonomia e relevância. Em seguida, classifica os diversos au-tores participantes do debate em duas perspectivas distintas, uma que nega(não-autonomistas) e outra que atribui (autonomistas) aos regimes autono-mia e relevância, e faz uma breve análise dos autores e tradições mais signi-ficativos para o debate, aprofundando-se nos autonomistas e nos argumen-tos que reforçam a hipótese aqui apresentada. Ao final, o artigo propõe umadecomposição analítica dos regimes nos quatro elementos principais quelhes propiciam autonomia e relevância: normatividade, atores, especifici-dade da área de interesses e interdependência complexa como contexto.

Palavras-chave: Regime – Definição de Regime – Efetividade dos Regi-mes – Autonomia e Relevância dos Regimes – Elementos dos Regimes

Abstract

The Autonomy and Relevance ofRegimes

Regimes are defined by institutionalist theories in the discipline ofInternational Relations as formal or informal sets of norms and rules thatcreate patterns of behavior and allow the convergence of the expectations oftheir participants in specific issue areas, in order to solve coordinationproblems that could lead to non-pareto-efficient outcomes. Consideringthat such definitions based merely on the “efficiency” of regimes do notseem to be sufficient to explain their effectiveness, the present articleproposes a different definition for regimes: political arrangements thatallow a redistribution of the gains of cooperation among the participants incertain issue areas, within an interdependence context. Regimes wouldthus be effective due to their autonomy and relevance – that is, due to theirobjective existence autonomously from their participants and theirinfluence on the participants’ behavior and expectations in ways thatcannot be reduced to the individual action of any of them. This articlebegins with a brief discussion about terminological problems related toregime studies and with a definition of the concepts of autonomy and

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relevance. Then it classifies the authors that take part in this debateaccording to two distinct perspectives, one that denies (non-autonomists)and the other that attributes (autonomists) autonomy and relevance toregimes, briefly analyzing the authors and traditions that are moresignificant for this debate, focusing on autonomist authors and onarguments that back the hypothesis here presented. Finally, the articleproposes an analytic decomposition of regimes into four main elements thatgive them autonomy and relevance: normativity, actors, specificity of theissue area and complex interdependence as context.

Key words: Regime – Regime’s Definition – Regimes’ Effectivity –Regimes’ Autonomy and Relevance – Regimes’ Elements

Autonomia e Relevância dos Regimes

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Introdução

A moderna instituição parlamentar nasceu na Inglaterra do séculoXVII, como instrumento de controle dos poderes monárquicos porparte de uma burguesia ascendente. Não foi um acontecimento sin-gular e isolado na história política européia, mas o resultado de um

369

* Agradecemos a Daniel Bach, Helena Carreiras, Anne-Sophie Claeys-Nivet, Olivier Costa, Helge Hve-em e Laurence Whitehead pelos comentários a versões prévias deste artigo. Luís de Sousa também agra-dece à Fundação Calouste Gulbenkian por ter financiado parte deste projeto no âmbito do Programa Gul-benkian de Estímulo à Investigação 2003. Versões anteriores foram apresentadas no Fifth Pan-EuropeanInternational Relations Conference (SGIR-ECPR), em Aia, Holanda, 9-11 de setembro de 2004; noXXV Latin American Studies Association Congress (LASA 2004), Las Vegas, Nevada, 7-9 de outubrode 2004; e no First Global International Studies Conference, World International Studies Committee(WISC), Estambul, 24-27 de agosto de 2005. Artigo recebido em dezembro de 2004 e aceito para publi-cação em agosto de 2005.** Investigador auxiliar no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE) de Lisboa eprofessor auxiliar de Ciência Política na Universidade de Buenos Aires.*** Investigador auxiliar no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-ISCTE) de Lisboa.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 369-409.

ParlamentosSupranacionais naEuropa e na AméricaLatina: Entre oFortalecimento e aIrrelevância*Andrés Malamud** e Luís de Sousa***

processo gradual de desenvolvimento institucional para o qual con-tribuíram experiências da Antiguidade, tais como a assembléia geralde archons e o areopagus da antiga Grécia, o senado da Repúblicade Roma e os conselhos dos povos escandinavos. O Parlamento viriareclamar para si três competências ou poderes fundamentais, nosprocessos de governança: 1) a supremacia legislativa; 2) o poder úl-timo de decisão e de fiscalização sobre as políticas de tributação e dedespesa pública; e 3) a possibilidade de intervir indiretamente noprocesso de decisão, quer por meio da impugnação da escolha de umministro da coroa, quer pelo poder de votar a incapacitação do sobe-rano. Este modelo de assembléia representativa seria, posteriormen-te, exportado para o continente americano, onde se consolidariacomo órgão de soberania autônomo. Regressaria à Europa continen-tal com a Revolução Francesa e seria, novamente, exportado para oresto do mundo, afirmando-se, finalmente, como a instituição em-blemática dos processos de deliberação política e legislativos namaioria dos Estados modernos.

Assembléias legislativas análogas tiveram também a sua difusão aonível subnacional, em Estados (con)federados ou províncias autôno-mas que, posteriormente, constituíram-se em Estados federais. Se osParlamentos subnacionais datam, pelo menos, do século XVIII, poisjá se encontravam presentes em algumas colônias americanas quan-do foi proclamada a independência e jurada a Constituição, os Parla-mentos supranacionais são criações recentes.

O primeiro Parlamento supranacional relevante foi o Parlamento Eu-ropeu. Na definição dada pelo Tratado de Roma de 1957, o Parla-mento Europeu é “composto por representantes dos povos dos Esta-dos reunidos na Comunidade”. A legitimidade do Parlamento Euro-peu baseia-se no sufrágio direto e universal dos seus membros – des-de 1979 – e a sua investidura tem uma duração de cinco anos. Outrosprocessos de integração regional1 tentaram replicar este modelo deassembléia legislativa supranacional, sendo a América Latina a re-

Andrés Malamud e Luís de Sousa

370 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

gião onde a experimentação ou mimetismo institucional teve maiorrepercussão. Em junho de 2004, a International Parlamentary Union,organização internacional que reúne de um modo associativo os vári-os Parlamentos nacionais a nível mundial, era composta por 140membros nacionais e cinco associados, estes últimos de carácter re-gional/internacional: o Parlamento Andino, o Parlamento Cen-tro-Americano, o Parlamento Europeu, o Parlamento Lati-no-Americano e a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa.Para além destes, a Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul re-presenta também o embrião de uma instituição representativa supra-nacional e merece, por isso, um escrutínio mais atento.

Este desenvolvimento político e institucional levanta várias ques-tões. A primeira é saber por que razão os líderes políticos optarampor estabelecer um Parlamento regional (Rittberger, 2003) quando oprocesso de integração era, substancialmente, uma iniciativa de carizeconômico. A segunda é estabelecer se os órgãos parlamentares regi-onais constituem Parlamentos propriamente ditos ou algo diferente.Finalmente, inquere-se por que razão os Parlamentos regionais se de-senvolveram apenas em duas regiões do mundo, nomeadamente Eu-ropa e América Latina, e quais as diferenças observáveis entre osprocessos de integração regional nestas regiões. O artigo discute es-tas questões por meio da análise comparativa de cinco Parlamentosregionais, ditos supranacionais: todos aqueles anteriormente menci-onados, menos a Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa,porque se trata apenas de um órgão de deliberação coletiva e não dedecisão, para o qual não se antevê nenhum novo desenvolvimentoinstitucional que aponte em outra direção.

O artigo está dividido em cinco partes iniciais que incidem sobrecada um dos cinco Parlamentos regionais. Trata-se de uma breveanálise da evolução histórica e política destes organismos, examina-dos na sua estrutura, competências e modo de funcionamento à luz dequatro funções parlamentares clássicas: representação (legitimiza-

Parlamentos Supranacionais na Europa e na

América Latina: Entre o Fortalecimento...

371

ção), legislação (processo de decisão), controle do Executivo e doaparelho do Estado (fiscalização) e formação de elites e liderança po-lítica (recrutamento e treino). A parte final do artigo apresenta umconjunto de conclusões comparativas.

O Parlamento Europeu (PE)

Quem olhar pela primeira vez o tecido institucional da Europa ficarásurpreendido com a existência de vários arranjos institucionais quese sobrepõem, interagem e se articulam de modo a tornar a União Eu-ropéia (UE) um modelo único de integração regional. Tendo em con-ta o nível de integração conseguido entre os vários membros e a ex-tensão e intensidade das suas competências políticas, a UE é a estru-tura organizacional central da Europa. Existe, contudo, uma série deorganizações anteriores aos Tratados de Roma de 1957 que deram,cumulativamente, um contributo significativo para a singularidadedo processo de integração europeu – ainda que limitado, menosabrangente e sem poder de decisão. Algumas delas sobreviveram aoprocesso de integração europeu proporcionado pelas comunidadesdos Tratados de Roma, mas ficaram reduzidas a um papel deliberati-vo secundário e simbólico – como, por exemplo, o Conselho da Eu-ropa – ou foram, ultimamente, incorporadas pelas sucessivas revi-sões dos tratados – tal como aconteceu com a União da Europa Oci-dental, incorporada na política européia de defesa mediante o Trata-do de Maastricht2. Algumas destas organizações mantiveram a suafiliação e caráter europeu; outras, tais como a Organização para Coo-peração e Desenvolvimento Econômico (OCDE), expandiram suasatividades para outros países e regiões além da Europa. Todavia, umdos elementos comuns mais salientes a estas organizações continuasendo a existência de Parlamentos ou assembléias de cariz regional(Quadro 1).

Poderiam ainda ser mencionadas outras iniciativas de carácter inter-parlamentar ou fóruns regionais, tais como: o Conselho Nórdico, que

Andrés Malamud e Luís de Sousa

372 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Parlamentos Supranacionais na Europa e na

América Latina: Entre o Fortalecimento...

373

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Andrés Malamud e Luís de Sousa

374 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

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reúne os parlamentares dos países escandinavos; o Conselho de Con-

sulta Interparlamentar dos países que constituem o Benelux (Bélgi-

ca, Países Baixos e Luxemburgo); a assembléia dos países do Bálti-

co; a Assembléia Parlamentar de Cooperação Econômica dos países

do Mar Negro; ou mesmo a Conferência Parlamentar dos países da

Europa Central. Nenhuma destas iniciativas parlamentares regio-

nais/internacionais participa do processo de integração europeu de

forma tão relevante quanto o Parlamento Europeu. Contudo, tais ini-

ciativas não podem deixar de ser mencionadas, porque a sobreposi-

ção de afiliação institucional dos vários países europeus e das própri-

as competências destas instituições se destaca como um elemento

fundamental do modelo de integração política regional conseguido

pelos Estados-nação na Europa do pós-1945. A evolução do proces-

so de integração europeu seduz qualquer acadêmico que se debruce

sobre as razões que conduzem ao sucesso e fracasso de opções e mo-

delos institucionais. A integração européia construiu-se a partir de

vários projetos institucionais, que, embora apontassem para o mes-

mo objetivo último, isto é, a criação de uma unidade política regio-

nal, apresentavam métodos bastante diferentes e, conseqüentemen-

te, resultados díspares. Não só estes projetos coexistiram, como tam-

bém competiram entre si. Enquanto alguns obtiveram sucesso na im-

plantação e consolidação das suas instituições, outros foram relega-

dos a um papel secundário.

De todas as iniciativas parlamentares regionais acima mencionadas,

o Parlamento Europeu foi a única que desenvolveu poderes reais de

decisão, tornando-se, assim, um elemento central da estrutura com-

plexa de governança da UE. Para que melhor possamos compreender

a evolução do Parlamento Europeu, passando de uma entre várias

iniciativas parlamentares regionais ao primeiro Parlamento suprana-

cional, será conveniente rever brevemente a estrutura e processo da

Comunidade Européia (CE).

Parlamentos Supranacionais na Europa e na

América Latina: Entre o Fortalecimento...

375

Evolução e competências do

Parlamento Europeu

Os fundadores dos Tratados de Roma de 1957 pretendiam uma rup-tura com o passado. O fracasso do Conselho da Europa como respos-ta institucional à idéia de uma Europa unida era apontado por algunsex-dirigentes do Conselho, como Paul-Henri Spaak, como um exem-plo daquilo que o novo projeto deveria evitar a todo o custo. O novoprojeto institucional seria baseado em um equilíbrio sustentável, en-tre intergovernamentalismo e supranacionalismo, e em um modeloconstitucional liberal tripartido: um Poder Executivo que tomasse eimplementasse as decisões; uma assembléia onde os vários assuntose problemas seriam debatidos e deliberados; e um corpo judicial in-dependente, com capacidade de rever decisões e de resolver conflitosque suscitassem problemas de legalidade.

A originalidade deste novo regime internacional reside no fato deadaptar a clássica divisão tripartida dos Poderes – Executivo, Legis-lativo e Judicial – aos novos arranjos institucionais que resultaram doequilíbrio entre o caráter intergovernamental e supranacional dosprocessos de decisão. Contudo, as competências dos três corpos polí-ticos – Comissão, Conselho de Ministros e Parlamento Europeu –encontram-se entrelaçadas a ponto de tornar difícil estabelecer umadivisão clara dos Poderes Executivo e Legislativo.

A função executiva é partilhada pela Comissão Européia e o Conse-lho de Ministros. A Comissão é um corpo político supranacional no-meado de mútuo acordo entre os Estados-membros, mas os seusmembros exercem as suas prerrogativas independentemente dasvontades e interesses dos seus respectivos governos. A Comissão re-presenta os interesses da comunidade, atua como “guardiã dos Trata-dos” – no sentido de garantir a observância dos tratados e do DireitoComunitário, mesmo que isto implique em infligir sanções a umEstado-membro ou levá-lo a responder diante do Tribunal Europeu –

Andrés Malamud e Luís de Sousa

376 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

e continua sendo a interface central do sistema de decisão (Mény,1998:24). O Conselho de Ministros é um modelo clássico de corpopolítico intergovernamental composto por representantes dos Esta-dos-membros que defendem os interesses dos seus próprios gover-nos.

Embora estas duas instituições sejam denominadas de órgãos execu-tivos, também desempenham funções legislativas. A Comissão de-tém um quase-monopólio do direito de iniciativa legislativa, além deser responsável pela gestão e execução das políticas comuns, fiscali-zação da aplicação do Direito Comunitário (conjuntamente com oTribunal de Justiça) e representação da UE em âmbito internacional.Também pode tomar decisões, autonomamente ou mediante delega-ção do Conselho, emitir pareceres e elaborar recomendações. OConselho, por sua vez, possui amplos poderes de decisão: pode ado-tar regulamentos e diretivas, concluir acordos e tratados (que, no en-tanto, terão que ser negociados com a Comissão), retificar lacunas ouclarificar disposições nos tratados e partilhar competências orça-mentais com o Parlamento.

O Parlamento Europeu, à semelhança dos Parlamentos nacionais, éeleito por sufrágio universal desde 1979, mas, ao contrário da maio-ria de regimes parlamentares europeus, o “governo europeu” nãoemana da maioria ou coligação representada no Parlamento. Em ou-tras palavras, as eleições para o Parlamento Europeu não visam punirou gratificar o “Poder Executivo europeu”, ainda que o ParlamentoEuropeu tenha o direito de dissolver a Comissão por meio de um votode censura com maioria de dois terços. O Parlamento Europeu temtambém o poder de influenciar a adoção de legislação comunitáriapor intermédio do procedimento de cooperação e de fiscalização.Pode também iniciar ou instalar comissões de inquérito, questionaros Comissários sobre matérias relativas às várias políticas comuns,adotar resoluções e solicitar audiências com a Comissão, mas conti-nua sem possuir competências legislativas gerais próprias. Exceto a

Parlamentos Supranacionais na Europa e na

América Latina: Entre o Fortalecimento...

377

adoção do orçamento, competência que partilha com o Conselho eque incide apenas sobre 3% da despesa comunitária global, o Parla-mento não dispõe de capacidade legislativa própria, nem proporcio-na aos eleitores a faculdade de escolherem diretamente o Executivonas urnas. Este déficit institucional e democrático explica, de certomodo, a baixa participação nas eleições européias e a tendência de ospartidos nacionais utilizarem este escrutínio para testar a governabi-lidade do partido ou coligação no poder.

Em adição a este “triângulo institucional” complexo, como é deno-minado no jargão comunitário, não deverá permanecer esquecido o“poder” vinculativo das decisões do Tribunal de Justiça das Comuni-dades Européias. Este “gigante adormecido” constitui um dos maio-res motores do processo de integração europeu:

“O Tribunal de Justiça das Comunidades Européias é o órgão comunitáriomais discreto e menos conhecido pelo público, mas também o maior res-ponsável pela inesperada transformação da Comunidade (inicialmente comobjetivos bastante limitados) em uma espécie de quase-federação. Se o ‘go-verno dos juízes’existe em algum lugar, é em Luxemburgo! Mesmo quandoo desenvolvimento político da Comunidade abrandou, ou mesmo paralisou,durante os finais da década de 1960 até o início da década de 1980, o Tribu-nal nunca desistiu de aplicar assertivamente a sua jurisprudência ‘federati-va’, a qual viria a compensar a inércia dos governos nacionais e a incapaci-dade da Comissão de impulsionar eficazmente o processo de integração”(idem:25)3.

Este sumário pretende dar uma idéia geral da complexidade do apa-relho de decisão da UE e uma breve indicação das várias tensões e ba-talhas de poder travadas entre as três principais instituições políticasda comunidade quando da revisão dos tratados. Não será inoportunorecordar que este aparelho de decisão se baseia em um equilíbrio, emconstante evolução e ajuste, entre três fontes de legitimação e de inte-resses: os interesses e demandas do(s) povo(s) europeu(s), represen-tado(s) pelos deputados e partidos que integram o Parlamento Euro-peu; os interesses e exigências dos Estados-membros representados

Andrés Malamud e Luís de Sousa

378 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

no Conselho; e a missão e interesses comunitários – com expressãonos tratados, no Direito Comunitário e na jurisprudência do TribunalEuropeu – representados na Comissão.

O Fortalecimento do

Parlamento Europeu

Na sua gênese, o Parlamento Europeu não se diferenciava substanci-almente da assembléia do Conselho da Europa no que se refere ao seudesenho institucional e à amplitude das suas competências. O Parla-mento Europeu, denominado “a Assembléia” até 19624, era essenci-almente um fórum composto por delegações nomeadas pelos Parla-mentos nacionais. Detinha uma função consultiva limitada a um nú-mero reduzido de temáticas e de propostas legislativas antes de virema ser submetidas à aprovação do Conselho.

No início dos anos 1970, a então Comunidade Econômica Européiaatravessava um período turbulento causado quer por condicionalis-mos externos, como as sucessivas crises do petróleo, quer por dispu-tas internas, como a posição intransigente do general de Gaulle adi-ante da futura adesão do Reino Unido, e pelo enfraquecimento doequilíbrio interno de poder entre as três principais instituições políti-cas da Comunidade. O poder pendia a favor do Conselho, que entãodetinha quase um monopólio sobre a adoção de legislação comunitá-ria. Por outro lado, os interesses e preocupações dos cidadãos conti-nuavam deficitariamente representados e permaneciam à margemdas discussões e opções políticas tomadas pelos seus ministros noConselho.

Em resposta a este déficit democrático e institucional que caracteri-zava o sistema político europeu, o Conselho decidiu adotar a introdu-ção de eleições diretas dos membros do Parlamento Europeu. As pri-meiras eleições transnacionais européias ocorreram nos dias 7 e 10de junho de 1979. Esta decisão revolucionária se tornaria crucial para

Parlamentos Supranacionais na Europa e na

América Latina: Entre o Fortalecimento...

379

a consolidação do equilíbrio interno, na medida em que daria ao Par-lamento Europeu a capacidade institucional necessária para lutar, empé de igualdade, por competências legislativas mais amplas e assu-mir um papel de relevo no triângulo institucional. Ao mesmo tempo,iniciava-se uma nova experiência de representação supranacional(Corbett, 1998).

Desde 1979, portanto, o Parlamento Europeu é eleito diretamentepelo voto dos cidadãos europeus para um período de cinco anos e éconstituído de acordo com uma distribuição das cadeiras parlamen-tares que reflete, grosso modo, a dimensão geográfica dos váriosEstados-membros, embora se possa argumentar que favorece osmais pequenos. O sistema de representação proporcional, que já eraaplicado na maioria dos círculos nacionais desde 1979, foi finalmen-te adotado pela totalidade de Estados-membros durante as eleiçõeseuropéias de 1999. Os Quadros 2 e 3 mostram a evolução da distribu-ição de mandatos parlamentares em relação aos Estados-membros eformações partidárias.

O Tratado de Roma de 1957 também atribuiu ao Parlamento Europeuo poder de dissolver a Comissão por meio de um voto de censura commaioria de dois terços. Embora este instrumento ainda não tenha sidoaplicado, a magnitude do seu efeito de dissuasão é considerável: em1999, a simples ameaça de ser colocado em prática levou à demissãoda Comissão Santer. Contudo, os fundadores dos tratados não atribu-íram competências próprias nem poder de veto para que o Parlamen-to pudesse vir a assumir, a posteriori, um lugar central e um papelpreponderante no processo de integração europeu. Como observouOlivier Costa (2001:19),

“Importa salientar que a existência do Parlamento Europeu não se deve tan-to à vontade expressa dos fundadores de criar uma estrutura democrática su-pranacional, mas sim à busca de maior eficácia e legitimidade e a um fenô-meno de mimetismo institucional”.

Andrés Malamud** e Luís de Sousa***

380 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Parlamentos Supranacionais na Europa e na

América Latina: Entre o Fortalecimento...

381

Quadro 2

Parlamento Europeu: Cadeiras por Estado-membro e País Candidato*

1999-2004 2004-2007 2007-2009**

Bélgica 25 24 24

Bulgária – 18

Chipre – 6 6

República Checa – 24 24

Dinamarca 16 14 14

Alemanha 99 99 99

Grécia 25 24 24

Espanha 64 54 54

Estônia – 6 6

França 87 78 78

Hungria – 24 24

Irlanda 15 13 13

Itália 87 78 78

Letônia – 9 9

Lituânia – 13 13

Luxemburgo 6 6 6

Malta – 5 5

Países Baixos 31 27 27

Áustria 21 18 18

Polônia – 54 54

Portugal 25 24 24

Romênia – 36

Eslováquia – 14 14

Eslovênia – 7 7

Finlândia 16 14 14

Suécia 22 19 19

Reino Unido 87 78 78

Total 626 732 786

Fonte: <http://www.europa.eu.int/institutions/parliament/indexãen.htm> (Acessado em 26 de

agosto de 2004).

* Os países estão aqui listados em ordem alfabética de acordo com os nomes de cada país em

sua própria língua.

** Para 2007, prevê-se a adesão de dois países candidatos, Romênia e Bulgária, modificando o

número total de deputados.

Andrés Malamud e Luís de Sousa

382 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

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(continuação)

A criação e estruturação do Parlamento Europeu enquadra-se no pa-drão de desenho institucional comum às demais organizações oci-dentais de caráter regional e/ou internacional que tiveram origem nopós-1945. A maioria destas organizações dispunha de um aparelhode decisão semelhante: um conselho responsável pela tomada de de-cisões e uma assembléia consultiva de natureza representativa maisou menos permanente, como, por exemplo, a Organização das Na-ções Unidas (ONU), a União da Europa Ocidental, o Conselho daEuropa e a Organização do Tratado do Atlântico Norte(OTAN/NATO). A dimensão simbólica associada a estas assembléi-as foi fundamental na conjuntura da reconstrução pós-guerra: não sóserviram como interface entre o interesse coletivo das organizaçõesregionais e os interesses particulares dos membros nacionais, comotambém facilitaram a socialização das elites políticas de países quese tinham defrontado no palco de guerra, reforçando, conseqüente-mente, os níveis de confiança mútua e de cooperação internacional.

Havia, contudo, algo de maior envergadura e de inovador no projetoeuropeu visualizado por seus fundadores, Robert Schuman e JeanMonnet: a partilha de soberania. A idéia de construir um projeto polí-tico comum além do Estado-nação questionava o conceito tradicio-nal de soberania territorial e levantava problemas de legitimidade, depoder e de accountability. O caráter supranacional deste novo projetopolítico seria desde o início confrontado com a adoção de uma as-sembléia plenária onde pudessem ser representadas e expressas posi-ções e idéias diferentes entre as partes contratantes e onde as decisõesaplicáveis à totalidade dos seus membros, que seriam tomadas emum nível muito mais restrito, pudessem ser objeto de escrutínio cole-tivo e sujeitas à deliberação da maioria. Era ainda prematuro falar deum “Parlamento do(s) povo(s) europeu(s)” como parte integrante deuma versão de democracia decalcada das experiências nacionais etransposta para o nível regional, uma idéia demasiado inovadora quenão suscitaria o apoio ou aval de alguns países europeus, tais como o

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384 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Reino Unido. Em vez disso, fundadores procuraram apenas uma res-posta pragmática para um problema específico: a criação de uma ins-tituição parlamentar que controlasse e assegurasse a legitimidadedas atividades e decisões de caráter supranacional atribuídas à AltaAutoridade da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA).

É, por isso, legítimo questionarmo-nos sobre os fatores que contribu-íram para a metamorfose do Parlamento Europeu, que de uma as-sembléia parlamentar internacional comum passou a ser um Parla-mento supranacional único, com poderes de decisão concretos e umpapel central no processo de integração europeu. Não existe uma ex-plicação simples e direta. Talvez o fortalecimento do Parlamento Eu-ropeu se destaque como um processo de institucionalização singular,porque os membros das demais organizações internacionais nuncaambicionaram desenvolver uma estrutura política supranacional. Dequalquer forma, é lícito comparar a sua transformação e o seu papelno processo de integração europeu com outras assembléias parla-mentares regionais, cujos atores exprimiram uma intenção seme-lhante, isto é, a de criar um tipo de Parlamento supranacional. Sempretender formular um modelo explicativo deste processo institucio-nal, talvez possamos enumerar, com a ponderação devida, algunsdesses fatores:

� Enquanto a institucionalização da CE tem como gênese umaorganização edificada em torno de um problema transnacionalespecífico para o qual foi ambicionado um modelo de gestãosupranacional – a Comunidade Européia do Carvão e do Aço–, as demais organizações internacionais européias – designa-damente o Conselho da Europa – tiveram desde o início um en-foque difuso sobre uma série de objetivos de carácter econômi-co, social, militar e institucional, sem vocação ou força sufici-ente para desencadear a criação de um aparelho de decisão su-pranacional. A regulamentação supranacional da produção docarvão e do aço – matérias-primas fundamentais quer para a in-

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América Latina: Entre o Fortalecimento...

385

dustrialização, quer para a produção de materiais bélicos – re-presentava apenas um pequeno passo para nações que se ti-nham defrontado recentemente no campo de batalha pelo aces-so e controle dos mesmos, mas provaria ser um salto gigantes-co para o processo de integração europeu;

� Os atores, individuais e coletivos, por detrás deste empreendi-mento foram também co-responsáveis pela singularidade dopercurso institucional da CE. Monnet, Schuman e Spaak exer-ceram cargos de prestígio no Conselho da Europa, mas aban-donaram posteriormente este projeto institucional como rea-ção ao “euroceticismo” e relutância do Reino Unido em avan-çar para novas formas de governo supranacionais. As posiçõesinovadoras dos três seriam apoiadas por um número restrito deEstados – os Seis (Bélgica, França, Alemanha, Itália, Luxem-burgo e Países Baixos) – empenhados na expansão do “métodocomunitário” a novas áreas de política econômica e social.Cada um destes países tinha razões fortes para acreditar no pro-cesso de integração econômica europeu: os países que consti-tuem o Benelux tinham já implementado, com sucesso, umaunião alfandegária; a gestão e funcionamento eficaz da AltaAutoridade da CECA conseguira promover um clima de confi-ança mútua e cooperação franco-alemã; e a Itália era berço deimportantes líderes e movimentos federalistas;

� A eleição direta do Parlamento Europeu em 1979, e a subse-qüente emergência de formações partidárias européias (os “eu-ropartidos”), seria o ponto de viragem no papel que esta insti-tuição viria a desempenhar, quer no complexo triângulo insti-tucional da CE, quer no processo de integração europeu. O for-talecimento do Parlamento Europeu transformou-o na únicaassembléia parlamentar supranacional do mundo a gozar, si-multaneamente, de legitimidade democrática, capacidade dedecisão legislativa e poder de censura do governo. Trata-se, porisso, de um fórum político singular, em que os parlamentares

Andrés Malamud e Luís de Sousa

386 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

europeus têm a possibilidade única de treinar as suas compe-tências políticas em um ambiente genuinamente influente e su-pranacional. Contudo, pesa o fato de os parlamentares euro-peus serem freqüentemente recrutados entre políticos em fimde carreira ou dissidentes partidários. O mandato europeu con-tinua a ser interpretado, pelas formações políticas nacionais,como um pára-quedas dourado para a reforma ou um esquemade compensação para oponentes internos incômodos às dire-ções partidárias nacionais (Bardi, 1996; Scarrow, 1997).

A evolução do Parlamento Europeu nos últimos cinqüenta anos foisintetizada de um modo elegante por Hix et alii (2003:191-192):

“Desde o seu modesto começo, o Parlamento Europeu […] permane-ceu marginal ao desenvolvimento da integração européia e às políti-cas da União Européia. Inicialmente, esta instituição era apenas umaassembléia consultiva composta por delegados enviados pelos Parla-mentos nacionais. Cinqüenta anos depois, o Parlamento agora eleitopor sufrágio direto possui competências legislativas e de investidura(ou remoção) do Executivo importantes, assim como todas as carac-terísticas e componentes de um Parlamento democrático resultantesdo exercício desses poderes: organizações partidárias poderosas; co-missões de trabalho bem organizadas; uma burocracia de apoio pró-pria; e o constante lobbying de grupos de interesses privados”.

Se, do ponto de vista interno, a institucionalização e fortalecimentodo Parlamento Europeu é um processo contínuo e não necessaria-mente linear e progressivo, do ponto de vista externo, esta entidadepolítica é o arquétipo ao qual será comparado e medido o desempe-nho de todo e qualquer projeto de Parlamento supranacional, emanos vindouros. O Parlamento Europeu tornou-se um modelo paraaqueles que, em outras regiões, aspiram a institucionalizar os proces-sos de integração em curso. Até a presente data, a América Latina é aregião onde a sua influência se fez sentir com maior intensidade.

Parlamentos Supranacionais na Europa e na

América Latina: Entre o Fortalecimento...

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O Parlamento

Latino-Americano

(Parlatino)

O Parlamento Latino-Americano (Parlatino) é a assembléia regionalunicameral composta pelos membros de 22 Parlamentos nacionaisda América Latina e Caraíbas5. Fundado em Lima, Peru, em dezem-bro de 1964, foi posteriormente institucionalizado por um tratado in-ternacional celebrado em Lima, em novembro de 1987. Desde 1992,a sua sede se encontra permanentemente localizada na cidade de SãoPaulo, Brasil. De acordo com os seus próprios Estatutos, os objetivosfundamentais desta entidade representativa regional são a defesa dademocracia, a promoção da integração regional e o fortalecimento dacooperação entre parlamentares e Parlamentos em toda a AméricaLatina. Possui personalidade jurídica e um orçamento que lhe é atri-buído por todas as partes que participam do tratado. As línguas ofici-ais de trabalho são o espanhol e o português.

O Parlatino é integrado por delegações nacionais enviadas pelos Par-lamentos-membros, à luz da experiência européia anterior a 1979.Cada delegação nacional pode nomear no máximo doze representan-tes, em uma proporção que reflete o peso dos grupos parlamentaresnacionais. Se a delegação for inferior a doze membros, cada um dosrepresentantes poderá acumular no máximo quatro votos (proxy vo-ting), sem exceder o limite total de doze votos por delegação. Estadisposição atribui a todos os países o mesmo peso dentro do sistemade deliberação, independentemente da sua dimensão real. O quorumé obtido quando mais da metade das delegações nacionais estão re-presentadas, desde que os seus membros respectivos representempelo menos um terço do total de votos. O Parlatino reúne-se em ses-são plenária uma vez por ano, na sua sede em São Paulo. Não tem po-der de decisão, limitando-se apenas a aprovar acordos e a emitir reco-mendações e resoluções sem qualquer efeito vinculativo para tercei-ros.

Andrés Malamud e Luís de Sousa

388 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

Estranhamente, no Parlatino não está representado nenhum dos terri-tórios de expressão francesa da região: nem o Haiti, único Estado in-dependente de expressão francesa, nem os departamentos ultramari-nos franceses (Guiana Francesa, Guadalupe e Martinica). Contudo, eapesar do termo “latino” que figura na sua designação, o Parlatino in-clui três membros de expressão holandesa: o Estado do Suriname eduas colônias ainda dependentes da Holanda – Aruba e Antilhas Ho-landesas.

No que diz respeito à sua representação territorial aberta, maleável ealargada, o Parlatino está mais próximo do modelo da assembléiaparlamentar do Conselho da Europa que do Parlamento Europeu. Asua natureza intergovernamental e as escassas competências que lheforam atribuídas, similares também à mencionada asssembléia euro-péia, são comuns às demais assembléias regionais na América Latina– como será mostrado adiante. Contudo, importa notar que, ao con-trário das três assembléias regionais que iremos analisar, o Parlatinonão constitui o corpo representativo de uma organização regionalqualquer. Desde a sua fundação, possui um estatuto próprio e inde-pendente.

O Parlatino ganhou algum reconhecimento internacional apesar dassuas limitadas influência e competências. Em 1972, assinou umacordo com o Parlamento Europeu – que na época também era eleitoindiretamente pelos Parlamentos nacionais – no sentido de estabele-cer contatos permanentes e instituir uma Conferência Interparlamen-tar com periodicidade regular. A primeira ocorreu em Bogotá, em1974, e a partir do ano seguinte seria repetida a cada dois anos comsede rotativa: no primeiro ano, teria lugar em um país lati-no-americano, no seguinte, em um Estado-membro da União Euro-péia. Até a presente data, foram organizados dezesseis encontros,tornando-se assim o fórum bilateral com maior durabilidade. Os de-bates e resoluções produzidos são testemunho dos assuntos que do-minaram a agenda transatlântica, das suas deficiências e da sua evo-

Parlamentos Supranacionais na Europa e na

América Latina: Entre o Fortalecimento...

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lução. A relevância deste fórum diminuiu à medida que a democraciase consolidou e se estendeu à quase totalidade dos países da AméricaLatina e os Parlamentos nacionais viram a sua existência e continui-dade salvaguardadas. No momento em que a longa batalha da Confe-rência Interparlamentar em prol das instituições representativas e dadefesa dos Direitos Humanos obteve sucesso, a incapacidade do fó-rum em encontrar uma missão de igual capacidade mobilizadoraconduziu a uma redução gradual da sua importância. Embora os no-vos enfoques na qualidade das instituições e na reforma da adminis-tração pública estejam longe de suscitar o mesmo interesse das temá-ticas anteriores, a causa da integração regional encontrou novos de-fensores nos blocos sub-regionais que (re)emergiram no início dosanos 1990.

Apesar de existir um consenso generalizado em relação às matériassobre a agenda comum, algumas questões, em particular as que di-zem respeito ao comércio internacional ou à dívida externa, revelamuma assimetria persistente entre as duas regiões. A cooperação parao desenvolvimento constitui uma área sensível, na medida em queevidencia os desequilíbrios estruturais entre as duas regiões, masnunca suscitou controvérsia entre as partes, porque a sua gestão de-pende, tão-somente, da vontade unilateral do “parceiro rico”: aUnião Européia.

Em resumo, o Parlatino é mais uma instituição simbólica do que efe-tiva, capaz de acolher a deliberação de assuntos regionais e in-ter-regionais, mas sem qualquer perspectiva real de evolução paraum órgão de decisão; de fato, carece de significado político e de enra-izamento social. O seu mérito histórico foi o de constituir um reser-vatório de aspirações democráticas e procedimentos parlamentaresdurante a idade negra das ditaduras latino-americanas. As suas prin-cipais deficiências resultam, provavelmente, do fato de a sua existên-cia, missão e funcionamento não estarem enquadradas em uma orga-nização regional.

Andrés Malamud e Luís de Sousa

390 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

O Parlamento

Centro-Americano

(Parlacen)

O Parlamento Centro-Americano (Parlacen) constitui o órgão deli-berativo do Sistema de Integração Centro-Americano (SICA). OSICA foi estabelecido em 1991 como uma organização complexaque reúne os países da América Central por um processo seletivo degeometria variável e se encontra edificado sobre o Mercado ComumCentro-Americano, fundado em 1960. Enquanto o SICA acolhe setepaíses da América Central – Belize, Costa Rica, El Salvador, Guate-mala, Honduras, Nicarágua e Panamá –, o Parlacen exclui dois des-tes, Costa Rica e Belize, mas inclui um Estado das Caraíbas de ex-pressão espanhola: a República Dominicana. À semelhança da UE, oSICA também possui uma entidade judicial de caráter supranacio-nal, a Corte de Justiça Centro-Americana, e uma alta autoridade in-tergovernamental, a Cimeira Presidencial Centro-Americana. Intro-duz também a figura do secretário-geral, responsável pela coordena-ção de todo o sistema institucional. Embora o Parlacen tenda a servisto como órgão parlamentar do SICA, na realidade não desenvolvenenhuma função legislativa.

A criação do Parlacen foi idealizada, pela primeira vez, na Declara-ção de Esquipulas I, assinada pelos vários presidentes dos países daAmérica Central, com o intuito de pôr termo às rivalidades tradicio-nais e de promover a democracia e a paz na região. A cimeira presi-dencial, apoiada pelo Grupo Contadora, o Grupo de Apoio6 e a entãoComunidade Européia, teve lugar em maio de 1986. Em uma Decla-ração posterior, que seria conhecida por Esquipulas II, produzida em1987, os presidentes contratantes acordaram que a criação de umParlamento centro-americano deveria ser um bastião da liberdade,independência e reconciliação em uma região devastada por anos afio de chacina e instabilidade política. Entre o final de 1987 e iníciode 1989, Guatemala, El Salvador, Costa Rica, Nicarágua e Honduras

Parlamentos Supranacionais na Europa e na

América Latina: Entre o Fortalecimento...

391

assinaram e ratificaram, sucessivamente, o Tratado Constitutivo doParlacen. Três protocolos adicionais foram assinados posteriormen-te, de modo a permitir algum tempo útil para o atraso gerado na elei-ção dos representantes nacionais e facilitar a adesão do Panamá aotratado, embora a sua incorporação tivesse lugar apenas em 1999. OParlamento foi, finalmente, estabelecido em outubro de 1991, quan-do ocorreu a sua primeira sessão plenária na Cidade de Guatemala,que passaria a ser a sua sede permanente. A Costa Rica viria a retirara sua participação, enquanto a República Dominicana passaria a fa-zer parte do processo em 1999.

Desde 28 de outubro de 1991, o número de deputados do Parlacenpassou de um total de 65, representando quatro países e treze partidospolíticos, para os atuais 132 deputados, representando seis países e42 partidos políticos. Os deputados são eleitos diretamente por umperíodo de cinco anos pelos cidadãos eleitores de cada Esta-do-membro, podendo cada país preencher uma quota máxima devinte representantes. Cada Estado-membro tem o direito de enviardois deputados adicionais: o presidente e vice-presidente em fim demandato. O Parlamento está também aberto à participação de repre-sentantes, com o status de observadores, dos demais Parlamentos re-gionais, tais como o Parlatino, o Parlamento Andino e o ParlamentoEuropeu, ou de Estados não signatários da região, como Porto Rico eMéxico. Os primeiros assistiram aos trabalhos do Parlacen desde asua criação, ao passo que os últimos se associaram pouco tempo maistarde. Os representantes nacionais dividem-se em três grupos parla-mentares: o maior grupo representa o centro do espectro político, osoutros dois cobrem as alas ideológicas, esquerda e direita respectiva-mente.

Tal como prevê o primeiro artigo do tratado fundador, as competên-cias legislativas do Parlacen resumem-se à capacidade de proposta,análise e recomendação. Contudo, o tratado também confere ao Par-lamento o poder de eleger, nomear e dissolver o mais alto executivo

Andrés Malamud e Luís de Sousa

392 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

de todas as instituições pertencentes ao SICA. Por mais estranho quepareça, todavia, este órgão parlamentar não foi provido de capacida-de legislativa, mas foi capacitado para nomear e fiscalizar uma sériede técnicos e funcionários. Também compete a ele requerer informa-ção sobre qualquer atividade da organização e emitir recomendaçõessobre os relatórios de atividade dos demais órgãos do SICA que lhesão submetidos para apreciação, sem, contudo, interferir no seu fun-cionamento. No que diz respeito aos procedimentos de votação, oParlacen decide por maioria absoluta, exceto no que se refere à revi-são dos seus estatutos internos: neste caso, é necessária uma maioriaqualificada. Quanto ao orçamento do Parlamento, todos os Esta-dos-membros contribuem equitativamente.

Depois de mais de uma década de existência, o histórico do Parlacené misto: embora demonstre resultados positivos no que diz respeito àampliação da sua composição, não apresenta qualquer progresso sig-nificativo no que se refere ao aprofundamento das suas competênci-as. Se, por um lado, contribuiu para a pacificação e crescente interde-pendência entre as sociedades que representa, por outro lado, nãoevoluiu suficientemente para se tornar um ator crucial no, já por sifrágil, processo de integração da região centro-americana.

O Parlamento Andino

(Parlandino)

O Parlamento Andino (Parlandino) é o órgão deliberativo do SistemaAndino de Integração (AIS). O Pacto Andino7, antecessor do AIS,foi fundado em 1969 com o objetivo de colmatar as lacunas e defi-ciências da Associação Latino-Americana de Livre Comércio(ALALC), um projeto regional mais vasto cujo insucesso se deve,sobretudo, à reprodução interna da divisão entre países mais e menosdesenvolvidos – precisamente, o que em tempos, fora criticado emrelação ao funcionamento do sistema político internacional. Os fun-dadores do Pacto Andino inspiraram-se no projeto europeu, que co-

Parlamentos Supranacionais na Europa e na

América Latina: Entre o Fortalecimento...

393

meçava a consolidar-se nesse período, e decidiram formalizar o pro-cesso de integração por meio da criação de um conjunto de institui-ções que combinassem, simultaneamente, um sistema de votaçãomajoritário e autoridades com poder vinculativo supranacional. Nofinal dos anos 1980, após vários anos de turbulência e de paralisiainstitucional causados por razões domésticas e pelo fracasso na cria-ção da tão desejada interdependência econômica na região, os presi-dentes nacionais decidiram relançar o processo de integração comaspirações mais modestas e um desenho institucional sóbrio. Contu-do, a estrutura institucional da região continua, de um modo geral,semelhante à da UE: o complexo institucional compreende uma Co-missão, um Parlamento, um Tribunal de Justiça, um Conselho de Mi-nistros e um Conselho Presidencial, além de um conjunto de institui-ções de caráter técnico, tais como agências financeiras, fóruns deconsulta junto da sociedade civil e, até mesmo, uma universidade.Com o mérito que lhe é devido, na prática, as competências reais edesempenho destas instituições regionais ficam aquém das do mode-lo europeu.

Das várias instituições mencionadas, o Parlandino é o órgão de repre-sentação dos povos da Comunidade Andina e possui caráter suprana-cional. O seu tratado fundador foi assinado em 1979 e entrou em vigorem 1984. A sua sede foi estabelecida em Bogotá, Colômbia, e em 1997foi introduzida a eleição direta dos seus representantes. O processoeleitoral devia ter início durante os cinco anos seguintes; todavia, até apresente data, só Venezuela e Equador colocaram o pressuposto emprática. Nos restantes países, a eleição direta ou está agendada para ospróximos anos, como é o caso da Colômbia e do Peru, ou está sujeita auma revisão constitucional prévia, no caso da Bolívia.

O Parlandino é composto por 25 deputados, cinco por cada Esta-do-membro. Há cinco comissões permanentes, integradas por cincoelementos, um de cada nacionalidade. O Parlandino pode aprovarquatro tipos de atos – decisões, acordos, declarações e recomenda-

Andrés Malamud e Luís de Sousa

394 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 27, no 2, jul/dez 2005

ções – mediante maioria absoluta, mas carece de qualquer poder dedecisão. As suas competências estão limitadas ao enquadramento efomento do processo de integração, por meio da promoção de legis-lação entre os Estados-membros, da cooperação e coordenação deiniciativas com os Parlamentos nacionais, países terceiros ou outrasorganizações de integração regional que formulem recomendaçõesrelativamente ao orçamento da Comunidade Andina.

Em 2004, o Parlandino celebrou o seu 25º aniversário, metade da ida-de do modelo em que sempre se inspirou, o Parlamento Europeu. Asdiferenças entre as duas assembléias regionais são evidentes: a co-meçar pela prolongada e atrasada eleição direta dos seus represen-tantes, seguida pela composição que não respeita as proporções de-mográficas dos Estados-membros, e terminando na ausência de po-deres de decisão. Embora o Parlandino já tenha trilhado bastante ca-minho, tendo em conta a sua jovem existência, não deixa de ser umarealidade que evoluiu pouco ao longo dos anos, tal como o bloco re-gional em que se insere (Bonilla, 2001; Malamud, 2004). Os interes-ses nacionais contraditórios, a instabilidade institucional, a turbulên-cia econômica e os conflitos políticos entre os Estados-membrostransformaram a Comunidade Andina em um exemplo a não ser se-guido. Precisamente, os primeiros passos do Mercosul seriam basea-dos na tentativa de evitar a repetição dos fracassos andinos (Caputo,1999; Pereira, 2000).

A Comissão Parlamentar

Conjunta do Mercosul

(CPCM)

O Mercosul, designação abreviada de Mercado Comum do Sul, é omais recente bloco regional da América Latina e integra dois velhosrivais, Argentina e Brasil, e dois “Estados-tampão”, Paraguai e Uru-guai. Fundado em 1991 pelo Tratado de Assunção e consolidado em1994 no Protocolo de Ouro Preto, o Mercosul visava criar, primaria-

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mente, um mercado comum no Cone Sul por meio da eliminação deobstáculos intra-regionais à circulação de bens, capital e serviços –embora algumas medidas também tenham sido tomadas em relação àlivre circulação de pessoas. Os fundadores deste novo projeto de in-tegração regional tinham presente duas realidades históricas: a expe-riência de sucesso da União Européia e a experiência negativa da in-tegração na América Latina. Os riscos de insucesso seriam reduzi-dos, por um lado, evitando uma institucionalização prematura e, poroutro, depositando o controle do processo nas mãos dos presidentesnacionais (Malamud, 2003). Desde então, o Mercosul desenvol-veu-se como uma organização estritamente intergovernamental: nãoobstante a sua personalidade jurídica lhe permita tomar parte em ne-gociações internacionais representando os seus membros, é semprenecessária a unanimidade para adotar uma decisão coletiva. A sobe-rania nacional não foi nem delegada nem partilhada e todos os órgãosde decisão do Mercosul são compostos exclusivamente por altos re-presentantes governamentais dos Estados contratantes (Peña, 1998).Existem, porém, algumas instituições que, embora desprovidas depoderes de decisão, convém serem analisadas, tais como a ComissãoParlamentar Conjunta do Mercosul (CPCM).

A CPCM é o órgão do Mercosul que reúne as delegações dos quatroCongressos Nacionais. Entre os cinco Parlamentos regionais anali-sados neste artigo, a CPCM é a única que ainda não adquiriu o statusde Parlamento, pelo menos na sua designação oficial. O Tratado deAssunção, celebrado em março de 1991, de fato indicava este órgãocomo o mecanismo que proporcionaria a criação de um mercado co-mum. Contudo, ainda não era claro o modo como a CPCM contribui-ria para a realização do objetivo último de integração, pois o tratadonão lhe endossara qualquer tipo de atribuições específicas; em alter-nativa, o mesmo tratado mencionara a obrigação dos Executivos na-cionais manterem os respectivos Congressos Nacionais informadosdos progressos conseguidos no projeto de integração em curso.

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Somente por meio do Protocolo de Ouro Preto, celebrado em dezem-bro de 1994, é que foram definidos a estrutura institucional do Mer-cosul e o formato atual da CPCM. Esta passou a constituir um órgãorepresentativo dos Parlamentos nacionais, responsável pela transpo-sição acelerada dos procedimentos do Mercosul para a ordem jurídi-ca dos Estados-membros. Adicionalmente, foi incumbida de desem-penhar um papel subsidiário nas iniciativas de harmonização de polí-ticas e um papel consultivo em relação ao Conselho do Mercado Co-mum, o órgão regional supremo composto pelos ministros das Rela-ções Exteriores e da Economia dos países signatários. Compete àCPCM exercer as suas funções e competências mediante a elabora-ção de recomendações, disposições e declarações (Caetano e Perina,2000; 2003). Contudo, nenhum destes atos possui qualquer efeitovinculativo. Neste contexto de reduzidos poderes de decisão, rece-beu ainda a missão, pouco clara, de estudar e criar as condições ne-cessárias para a eventual criação de um Parlamento regional para oprojeto Mercosul.

O Protocolo de Ouro Preto estabeleceu que a CPCM seria constituídapor um total de 64 membros. A cada país competia eleger, no máxi-mo, dezesseis representantes entre prestigiados advogados, incluin-do membros das duas Câmaras nacionais – notando-se que os quatroEstados-membros do Mercosul possuem um sistema parlamentar bi-cameral. Os representantes nacionais da CPCM são agrupados emseções nacionais compostas por deputados e senadores. O Protocolorecomendou a eleição por um termo de dois anos, de modo a possibi-litar alguma continuidade de trabalho, mas deixou ao critério dosParlamentos dos Estados-membros a decisão final sobre a duraçãodo mandato e a definição da data e mecanismo de eleição.

O Protocolo também estabeleceu que a CPCM se reunisse, no míni-mo, duas vezes por ano, com a ressalva de que a validade do encontrodependeria da participação dos representantes de todos os Esta-dos-membros. Mais ainda, todas as decisões da CPCM teriam que

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ser tomadas por consenso entre as partes, a regra de ouro aplicável atodos os órgãos constitutivos do Mercosul. O caráter extremamenteintergovernamental destas disposições neutraliza uma das principaisfunções exercidas no seio de qualquer instituição parlamentar: a vo-tação. Nem mesmo a presidência da CPCM é eleita pelo plenário,não obstante um sistema de rotação, por um período de seis meses,tenha sido adotado, à semelhança do estabelecido para a presidênciado Mercosul como um todo. Os vários órgãos de decisão que com-põem o Mercosul são coadjuvados por um Secretariado Administra-tivo Permanente. O secretário, que não pode exercer funções de de-putado a nível nacional, é também nomeado, rotativamente, pelosquatro Estados-membros, mas, ao contrário das presidências, a suacomissão de serviço dura dois anos em vez de seis meses.

O Estatuto Interno da CPCM contempla a possibilidade de criar co-missões de trabalho, desde que não tenham um caráter estatutáriopermanente e funcionem apenas como instrumentos ad hoc. Estaprovisão não permite a especialização dos parlamentares, nem lhesproporciona uma carreira estável ou uma formação progressiva dassuas aptidões. Como regra, a CPCM reúne-se no Estado-membroque detém, temporariamente, a presidência. O seu orçamento é atri-buído em iguais proporções pelos Estados-membros do Mercosul.Desde, pelo menos, meados da década de 1990, um número crescen-te de políticos, acadêmicos e líderes de opinião têm se mobilizado emfavor da criação e fortalecimento de um Parlamento do Mercosul(Caetano e Antón, 2003; CEFIR, 1998; SM, 2004; Vazquez, 2001).Até a data, permanecem apenas boas intenções.

Conclusões Comparativas

De todas as instituições internacionais designadas como Parlamen-tos, apenas o Parlamento Europeu desenvolveu um caráter verdadei-ramente supranacional e poderes efetivos próprios. Os restantes es-tão ainda aquém desta realidade (ver também Vieira Posada, 2000).

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A história, estrutura, competências e funções destas instituições sãobastante variáveis, tal como o grau de legitimidade de que gozam. Aanálise dos Parlamentos regionais apresentada neste artigo tevecomo objetivo, por um lado, a homogeneização dos conceitos utili-zados nesta área de estudos e, por outro, a apresentação de uma ima-gem comparativa de cinco instituições que reclamam a mesma de-signação.

Depois de examinados os cinco Parlamentos regionais das duas re-giões consideradas, as diferenças encontradas entre o ParlamentoEuropeu e os quatro proto-Parlamentos da América Latina são signi-ficativas, qualquer que seja a dimensão considerada. O Quadro 4 ofe-rece uma comparação das principais diferenças (e semelhanças) en-tre os cinco casos de estudo.

No que diz respeito à dimensão representativa, apenas o Parlacen de-signa os seus membros por eleições diretas, à semelhança do Parla-mento Europeu. Todavia, não são levadas em conta as diferenças de-mográficas entre os vários círculos eleitorais, isto é, os Esta-dos-membros. Em relação aos processos de decisão, a nenhum Parla-mento regional da América Latina foram atribuídos quaisquer pode-res legislativos. O Parlacen, novamente, destaca-se como o único quepossui competências de fiscalização sobre os restantes órgãos da or-ganização. Contudo, tem tido resultados menos brilhantes do que oParlatino e o Parlandino no que se refere à institucionalização de co-missões estatutárias permanentes e especializadas. Em contraste, oParlamento Europeu figura, cada vez mais, com capacidades nasquatro dimensões consideradas. Vários fatores confluem para a ex-plicação desta diferença. A seguir, mencionamos cinco que conside-ramos fundamentais e sugerimos algumas pistas para uma investiga-ção mais aprofundada sobre o assunto.

O primeiro fator que distingue a evolução dos Parlamentos regionaisnas duas regiões em análise é o tempo: existe uma diferença de duas a

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(continuação)

quatro décadas entre o início do processo de integração europeu e osprocessos em curso na América Latina; portanto, algumas das dife-renças de desenvolvimento institucional assinaladas poderão resu-mir-se a uma questão de maturidade.

O segundo fator é a seqüência: a atual estrutura da UE foi construídaa partir do tão falado “método Monnet”, isto é, a função precede aforma e o “incrementalismo” é preferido à institucionalização pre-matura. Em contraste, algumas das experiências da América Latinatentaram, sem sucesso, emular o resultado do processo de integraçãoeuropeu, mas descuidando do seu método.

Em terceiro lugar, existe uma grande disparidade no nível de integra-ção conseguido: enquanto a UE é já um mercado comum e continua aconsolidar a sua união econômica, nenhum dos projetos lati-no-americanos alcançaram sequer o nível de união aduaneira. Porconseguinte, a estrutura institucional necessária para um tipo de or-ganização poderá ser inadequada aos requisitos das outras.

Em quarto lugar, o grau de sucesso na criação de instituições regio-nais não pode estar desassociado do modo efetivo como essas institu-ições funcionam em nível nacional. Em outras palavras, o caráterprecário e de instabilidade das instituições nacionais não pode servirde base estável para a construção de instituições que visam a integra-ção política regional.

Em último lugar, a maioria dos países europeus constituem regimesparlamentares ou semiparlamentares, enquanto todos os países daAmérica Latina são democracias presidencialistas. Uma conseqüên-cia desta variação institucional é que o papel dos Parlamentos nacio-nais em todo o processo de integração é inevitavelmente diferente emuma e outra região: se, na Europa, os Parlamentos nacionais são en-tendidos como instituições supremas, em que os governos são consti-tuídos e dissolvidos, na América Latina, as eleições, autoridade e so-brevivência dos governos são independentes da vontade parlamen-

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tar. Portanto, é razoável esperar que os chefes de governo de regimespresidencialistas tencionem replicar, em nível regional, um esquemaque lhes tem proporcionado dividendos em nível nacional (Mala-mud, 2005).

O princípio que baseia este último argumento é o de que, mesmo nosprocessos de integração regional, a natureza presidencialista ou par-lamentar dos regimes dos Estados-membros importa e tem implica-ções diretas, especialmente no que diz respeito à criação e desempe-nho de Parlamentos regionais. Conseqüentemente, também os parti-dos políticos cumprem um papel diferente em um ou outro contextoinstitucional regional. Não seria inoportuno que os reformadoresdestes processos levassem em consideração estas conclusões, pois,como já foi referido por alguns autores, um sistema parlamentar po-derá não ser a solução mais adequada para governar uma democraciamultiestatal (Fabbrini, 2004; McKay, 2001). Nota-se ainda que asimplicações desta hipótese dizem respeito não apenas ao futuro dosParlamentos regionais na América Latina, mas a qualquer processode integração política, incluindo o europeu. Fóruns birregionais, taiscomo a Conferência Interparlamentar Europa-América Latina8, po-deriam desempenhar um papel mais significativo e de mútuo interes-se, ajudando os Parlamentos nacionais a prevenir possíveis insuces-sos geralmente associados à criação de expectativas quiméricas.

Os Parlamentos regionais podem contribuir para a criação, a longoprazo, de alicerces complementares da integração, tais como: a cons-trução de uma identidade regional entre as elites políticas; o fortale-cimento da presença simbólica da organização regional no seio daopinião pública e a sua promoção em países terceiros; e a intensifica-ção da comunicação intra-regional. Contudo, estas funções não sãonem exclusivas, nem características fundamentais de uma instituiçãoparlamentar. Se a reforma dos Parlamentos regionais é para ser toma-da seriamente, a distinção entre funções constitutivas e complemen-tares não pode ser negligenciada. Como ensina a história, embarcar

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em propostas pouco realistas, sejam elas baseadas na emulação acrí-tica, sejam resultantes de uma compreensão insuficiente do contex-to, condenará qualquer empresa ao fracasso ou, na melhor das hipó-teses, à irrelevância.

Notas

1. Por regional, entenda-se a dimensão internacional e/ou os processos de de-cisão de natureza intergovernamental ou supranacional em um espaço contíguoque afeta várias jurisdições territoriais nacionais. Não se refere ao nível inter-médio de governo entre o local e o nacional dentro de uma jurisdição estatal.

2. A Declaração de Roma de 27 de outubro de 1984 sublinhou a importânciade a União da Europa Ocidental vir a fazer parte do complexo da política de de-fesa européia. Esta intenção política seria, posteriormente, posta em práticapelo Tratado de Maastricht de 1991.

3. Esta e as demais citações de textos em língua estrangeira foram livrementetraduzidas por nós.

4. O Ato Único Europeu de 1986 tornaria, finalmente, oficial a designação deParlamento Europeu.

5. Os países signatários são: Argentina, Aruba, Bolívia, Brasil, Chile, Colôm-bia, Costa Rica, Cuba, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatema-la, Honduras, México, Antilhas Holandesas, Nicarágua, Panamá, Paraguai,Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.

6. O Grupo Contadora foi fundado em 1983 com a participação do México,Colômbia, Venezuela e Panamá. O Grupo de Apoio foi estabelecido, posterior-mente, em 1985 e era composto pela Argentina, Uruguai, Brasil e Peru. A mis-são de ambos os grupos era a de contribuir para uma solução negociada dos con-flitos na América Central e os seus princípios diretores eram, fundamentalmen-te, quatro: autodeterminação, não-intervenção, desmilitarização e democratiza-ção. Em 1986, os dois grupos fundiram-se em um só, que viria a ser conhecidocomo Grupo do Rio.

7. O Pacto Andino foi assinado pela Bolívia, Chile, Colômbia, Equador ePeru. Em meados dos anos 1970, a Venezuela integrou-se ao processo, ao passoque o Chile o abandonou.

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8. Este fórum, cujo terceiro encontro teve lugar em Puebla entre 17 e 19 demarço de 2004, inclui a participação de delegados dos cinco Parlamentos regio-nais analisados neste artigo.

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Resumo

Parlamentos Supranacionais naEuropa e na América Latina:Entre o Fortalecimento e aIrrelevância

Nenhum processo de integração regional está isento de críticas sobre o seualegado déficit democrático e/ou institucional. A razão destes déficits é,freqüentemente, apontada como uma conseqüência da escassa accountabi-lity e da falta de transparência dos sistemas de decisão em nível regional. Osdiferentes blocos regionais têm tentado responder a um ou ambos dos défi-cits em causa, mediante uma variedade de métodos e opções institucionais.A mais visível das fórmulas aplicadas é a criação e fortalecimento de umParlamento regional – ou seja, supranacional. Este artigo pretende analisar,comparativamente, cinco Parlamentos regionais na Europa e na AméricaLatina – o Parlamento Europeu, o Parlamento Latino-Americano, o Parla-mento Centro-Americano, o Parlamento Andino e a Comissão ParlamentarConjunta do Mercosul – com o objetivo de compreender o impacto que estasinstituições têm tido no âmbito da representação regional, dos processos dedecisão e do fortalecimento da accountability. As conclusões sugerem cin-co fatores que os autores consideram pertinentes para a explicação das dife-renças verificadas entre as duas regiões transatlânticas.

Palavras-chave: Parlamentos Supranacionais – Integração Regional –Integração Latino-Americana – Integração Européia

Abstract

Regional Parliaments in Europeand Latin America: BetweenEmpowerment and Irrelevance

Virtually no process of regional integration has been safe from the criticismof allegedly suffering from either democratic deficit, institutional deficit orboth. These deficits, the argument goes, are the consequence of scarceaccountability and the lack of transparency in regional decision-making.Different regional blocs have attempted in a variety of ways to confront oneor both of these deficits, the most visible of which is the creation and

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empowerment of a regional parliament. This paper presents a comparativeanalysis of five of these institutions in Europe and Latin America – i.e. theEuropean Parliament, the Latin American Parliament, the CentralAmerican Parliament, the Andean Parliament, and the Joint ParliamentaryCommission of Mercosur – with the aim of understanding their impact onregional representation, decision-making and accountability. Theconclusions pinpoint five plausible factors in accounting for the differencesfound across the Atlantic divide.

Key words: Supranational Parliaments – Regional Integration – LatinAmerican Integration – European Integration

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*Resenha recebida em agosto e aprovada para publicação em outubro de 2005.**Mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Univer-sidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).

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ResenhaTaming the Sovereigns*Kalevi J. Holsti. Cambridge, Cambridge University Press, 2005, 349 páginas.

Marcelo Valença**

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Resenha

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Genocídio – A Retórica Americana em Questão (má tradução para AProblem from Hell: America in the Age of Genocide), excelente livrode Samantha Power, é um estudo sobre a reação dos Estados Unidosaos genocídios ocorridos no século XX. A autora examina o massa-cre dos armênios pelos turcos, o Holocausto, o Khmer Vermelho noCamboja, o extermínio dos curdos no Iraque e as guerras étnicas naex-Iugoslávia e em Ruanda. Embora o título mencione apenas osEstados Unidos, o resultado é um painel mais amplo, abrangendo ospapéis desempenhados por governos, imprensa, organizações inter-nacionais, políticos e organizações não-governamentais (ONGs) nascrises internacionais que envolvem esse tipo de crime.

Power é irlandesa, formada em Direito por Harvard, onde lecionaCiência Política. Seu interesse pelo tema do genocídio começou

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* Resenha recebida em março e aceita para publicação em agosto de 2005.** Doutorando em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj),pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE) e professor dapós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Candido Mendes.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 493-501.

ResenhaGenocídio – A RetóricaAmericana em Questão*Samantha Power. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, 693 páginas.

Maurício Santoro**

quando, com apenas 23 anos, cobriu como jornalista a guerra da Bós-nia. Como outros personagens do livro, seu forte envolvimento emo-cional com o assunto veio da experiência direta.

A autora constata que a norma é a não-intervenção da comunidadeinternacional em casos de genocídio, pelo menos até que a força daopinião pública leve os Estados mais poderosos a reagir. Outra obser-vação é a recusa dos políticos e diplomatas em reconhecer a naturezada catástrofe em andamento: “Representam a carnificina como algobilateral e inevitável, e não como um genocídio” (:19). Muito contri-bui para essa posição o exame abstrato da noção de “interesse nacio-nal”, realizado por pessoas que consideram os crimes em discussãoapenas como imagens distantes do cotidiano e que ainda por cimaatrapalham a agenda política do momento.

Um Crime com Nome

A palavra genocídio foi inventada no fim da Segunda Guerra Mundi-al pelo jurista polonês Raphael Lemkin, um refugiado judeu que con-seguiu asilo nos EUA. Power narra com simpatia o esforço de Lem-kin para criar um termo que desse conta do que ocorria na Europaocupada pelos nazistas, algo que descrevesse “ataques a todos os as-pectos da nacionalidade – físicos, biológicos, políticos, sociais, cul-turais, econômicos e religiosos” (:66). A palavra foi cunhada porLemkin em um livro sobre a legislação racial promulgada nos territó-rios conquistados por Hitler, livro que teve repercussão imediata naimprensa e nos meios diplomáticos.

Após a guerra, Lemkin tornou-se um lobista incansável para que aOrganização das Nações Unidas (ONU) elaborasse uma convençãocontra o genocídio, que formasse a base legal para futuras interven-ções militares. O jurista era especialmente preocupado em impedirque a soberania pudesse ser utilizada por um Estado como pretextopara perpetrar genocídio contra suas minorias populacionais: “Pare-

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ce incoerente com nossos princípios de civilização que vender umadroga a um indivíduo seja considerado um problema de interessemundial, enquanto envenenar com gás milhões de seres humanospossa ser um problema de interesse interno” (:73).

A convenção foi aprovada em 1948, mas os EUA não a assinaram –além de evitar o compromisso de se envolver em guerras, havia o te-mor de que a convenção pudesse aplicar-se aos próprios atos do go-verno norte-americano contra índios e negros.

O tratado, além de definir genocídio, estipula que a ONU é obrigadaa agir para impedi-lo. Embora a intenção fosse louvável, o resultadoprático foi a relutância dos governos em reconhecer uma determina-da situação como “a palavra g”1, preferindo eufemismos como “atro-cidades” ou “crimes”. Ao contrário do que normalmente se imagina,o genocídio não é definido a partir da aniquilação de toda uma popu-lação, como no nazismo. Sua marca característica é a tentativa de eli-minar as características de uma nacionalidade, não necessariamentepelo assassinato, mas também pela ação cultural.

O fracasso da convenção tornou Lemkin um homem amargurado esolitário. Apesar de ter sido indicado várias vezes para o Nobel daPaz, ele nunca ganhou o prêmio e ao morrer era uma figura algo fol-clórica entre os jornalistas que cobriam a ONU – um tipo curioso eexcêntrico, que deveria ser evitado.

Passividade: Camboja e

Iraque

Apesar de os detalhes do Holocausto terem se tornado conhecidosnas décadas do pós-guerra, o mundo assistiu passivamente a um novogenocídio, executado pelo Khmer Vermelho no Camboja. Powerexamina os diversos fatores envolvidos na crise cambojana: o modocomo o país foi arrastado para o conflito vizinho entre o Vietnã e os

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EUA, sofrendo pesados bombardeios, a guerra civil que se seguiu e ainvasão vietnamita que pôs fim aos massacres do Khmer Vermelho –apenas para que as potências ocidentais patrocinassem um refúgiopara o grupo na fronteira tailandesa, com o objetivo de apoiar adver-sários do Vietnã.

Como era de se esperar, os cálculos da realpolitik – que levam emconta apenas interesses econômicos e políticos, sem considerar valo-res éticos, direitos humanos etc. – muitas vezes ignoram o genocídiopara favorecer um aliado que é estrategicamente importante. Istoocorreu no caso do Camboja e do Iraque, mas, de modo geral, trazertemas humanitários à tona é considerado na burocracia governamen-tal algo típico de encrenqueiros. A autora cita um dirigente do Depar-tamento de Estado dos EUA que pergunta a um indignado subalter-no: “Você conhece algum funcionário que tenha subido na carreiraporque falou em defesa dos direitos humanos?” (:111).

Power afirma que os argumentos utilizados para a não-intervençãoseguem o esquema observado por Albert Hirschman em seu livro ARetórica da Intransigência, ou seja, enquadram-se em três categori-as: futilidade (não vai adiantar), perversidade (o efeito será o contrá-rio do pretendido) e perigo (trará mais problemas).

Às vezes, incidentes circunstanciais podem levar a reformulações napolítica externa. No caso dos EUA, o país só assinou a Convenção so-bre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio após uma crise cri-ada quando o presidente Reagan visitou o cemitério de Bitburg, naAlemanha Ocidental, onde estavam enterrados soldados da SS. O fu-ror das entidades judaicas fez com que o governo norte-americanoprecisasse dar uma resposta mostrando seu compromisso com a me-mória do Holocausto e a determinação de impedir que algo seme-lhante voltasse a ocorrer.

A gafe de Reagan é irônica, pois já existia uma campanha de dezeno-ve anos do senador William Proxmire, que discursou 3.211 vezes no

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Congresso – uma por dia –, defendendo a assinatura da convenção.Mas o resultado de os EUA a terem assinado foi decepcionante:“Longe de aumentar a probabilidade de os Estados Unidos fazeremmais para impedir o genocídio, a ratificação pareceu apenas tornar asautoridades mais cautelosas no uso do termo.” (:203). Além disso, osEUA impuseram diversas restrições à convenção, tornando sua assi-natura praticamente um gesto simbólico.

A resistência em agir ocorreu novamente quando o Iraque massacrousua população curda, mas então Saddam Hussein era um aliado oci-dental contra o Irã – medidas contra Saddam só foram tomadas apóssua derrota na invasão do Kuwait, quando a ONU estabeleceu um en-clave curdo no norte do Iraque.

Contudo, os meios de comunicação documentaram fartamente o ata-que químico à cidade curda de Halabja. E as ONGs de direitos huma-nos fundadas nos anos 1970, como a Human Rights Watch e a Anis-tia Internacional, atuaram pela primeira vez no combate ao genocí-dio, levantando informações, chamando a atenção da opinião públicae até mesmo conduzindo sua própria investigação, recolhendo dadosque nem mesmo os governos tinham disponíveis.

As Crises nos Bálcãs

As guerras civis na Iugoslávia foram um caso à parte de genocídio – afalta de ação inicial da União Européia e dos EUA acabou se transfor-mando em uma intervenção militar, após pressão da imprensa e degrupos políticos. Em casos como este, às vezes a motivação é pesso-al: o senador republicano Bob Dole teve a vida salva na juventude porum médico armênio, sobrevivente do genocídio cometido pelos tur-cos, e tornou-se um importante defensor da atuação norte-americanana Bósnia. Seu principal assessor diplomático, Mira Baratta, resu-miu bem a influência da experiência em primeira mão: “Uma coisa éter uma inclinação natural para preocupar-se com os direitos huma-

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nos, mas outra bem diferente é ver pessoas que só desejam acenarpara americanos serem espancadas diante dos nossos olhos. Depoisde ver isso, não se pode virar as costas.” (:297).

As crises nos Bálcãs também provocaram reações dentro do Depar-tamento de Estado, com diplomatas se demitindo em protesto peran-te a passividade norte-americana, no que foi provavelmente a tensãoinstitucional mais séria desde o Vietnã. Houve ainda o fator CNN,como admitiu um funcionário: “Nossa intenção era avançar um pas-so, mas os noticiários avançaram dois” (:317).

Nada disso, evidentemente, foi feito sem inúmeras tensões, hesita-ções e erros trágicos. O maior deles foi o fracasso em defender as áre-as de segurança criadas pela ONU para os bósnios, freqüentementeinvadidas pelos sérvios. No caso mais sangrento, em Srebrenica,mais de 7 mil pessoas foram assassinadas, o pior massacre na Europadesde a Segunda Guerra Mundial. O paralelo com o Holocausto cho-cou o Velho Mundo: cinqüenta anos depois de Auschwitz, os camposde concentração estavam de volta.

A dificuldade da comunidade internacional em reagir provocou de-clarações exaltadas de muitos políticos norte-americanos. Além dorepublicano Bob Dole, o democrata Joseph Biden questionou a retó-rica do seu correligionário Bill Clinton: “Conforme definida por essageração de líderes, segurança coletiva significa dar um jeito de culparuns aos outros pela inação, de maneira que todos tenham uma descul-pa. Não significa enfrentarem juntos; significa esconderem-se jun-tos.” (:349).

A Bósnia ensinou aos EUA as dificuldades de se operar na região eenfrentar o governo sérvio. Quando o presidente iugoslavo Milose-vic começou a perseguir sua minoria albanesa em Kosovo, Clintonreagiu com a decisão inédita de atuar para prevenir o genocídio (e oalastramento do conflito para países vizinhos, como Grécia, Albânia

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e Macedônia), levando ao bombardeio da Sérvia pela Organizaçãodo Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

A Tragédia de Ruanda

Todavia, a Iugoslávia, com todas as suas tragédias, ficava na Europa –foco principal da atenção internacional. Em Ruanda, perdida na ÁfricaCentral, o interesse da imprensa foi pequeno e o genocídio que lá ocor-reu em 1994 pode ter matado até 800 mil pessoas, em menos de umano. Os crimes executados pelos governantes hútus contra a minoriatutsi aconteceram em um país sem recursos naturais importantes,abandonado à própria sorte. A missão de paz da ONU presente em Ru-anda chegou a ser quase completamente evacuada, para desespero deseu comandante, o general canadense Roméo Dallaire, que ao pedirreforços ouviu de um funcionário das Nações Unidas que aquela orga-nização “não era a OTAN” e se encontrava incapaz de ajudá-lo.

Dallaire reconheceu a importância de mobilizar a opinião pública,afirmando que “um repórter comunicando-se com o Ocidente valiaum batalhão em campo” (:406). De fato, na Bósnia, até mesmo umafoto – como a imagem de uma jovem de 20 anos enforcada em umaárvore, após se suicidar – podia fazer a diferença. Em Ruanda, nadadisso existia. O genocídio só foi detido pela ação de um grupo militarrebelde, a Frente Patriótica Ruandesa.

O general voltou de sua missão com sérios problemas psicológicos;hoje, vive à base de tranqüilizantes e foi dispensado do Exército ca-nadense: “Minha alma está em Ruanda. Nunca voltou, e não sei se al-gum dia voltará” (:443).

Ironicamente, o caso de Ruanda voltou a ser debatido recentemente,por causa de um filme baseado na história verídica de um gerente dehotel em Kigali que salvou diversas pessoas de serem assassinadas.Se Ruanda não conseguiu ganhar as manchetes da seção internacio-nal, talvez consiga melhor sorte nas páginas de cinema.

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No Banco dos Réus

A trágica experiência dos anos 1990 resultou na criação de tribunaispara lidar com os crimes de genocídio em diversos países. Power ana-lisa o andamento das investigações, ressaltando o retorno do interessepelo trabalho do pioneiro Raphael Lemkin e o destaque obtido peloTribunal de Haia, encarregado dos julgamentos nos Bálcãs. O réu maisconhecido é o próprio ex-presidente Milosevic, entregue pela Sérviaapós ser derrubado do poder por uma insurreição popular.

Contudo, os tribunais ainda estão longe de se consolidar. Em muitoscasos, enfrentam problemas de infra-estrutura, pouca transparênciademocrática, dificuldades de comunicação com os países que supos-tamente protegem e assim por diante.

A autora observa, por exemplo, a resistência de países como EUA eChina em aderir ao recém-criado Tribunal Penal Internacional, cujaatuação poderia ser um freio, ou ao menos um sinal de alerta, avisan-do a possíveis genocidas que seus atos seriam julgados pela comuni-dade internacional.

O livro de Samantha Power tornou-se uma das principais referênciassobre o tema do genocídio, rendendo à autora o prêmio Pulitzer de2003 e o título de uma das cem pessoas mais influentes do mundo,concedido pela revista Time. Seu estudo mostra que, embora os Esta-dos sejam relutantes em agir durante crises humanitárias, podem serlevados a isso em decorrência da pressão da opinião pública, incluin-do aí imprensa e ONGs capazes de tornar os massacres parte da agen-da política doméstica.

Power mantém-se um tanto cética quanto à idéia de estarmos em umaera menos propensa aos genocídios, ressaltando que na década de1990 já existia uma série de fatores que supostamente poderiam im-pedir esse crime, como a atuação de ONGs internacionais de direitoshumanos, a difusão de meios de comunicação em massa em escala

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global e mesmo a expansão da democracia para regiões anteriormen-te marcadas por governos autoritários.

Aos leitores brasileiros, fica a frustração pela ausência de uma análi-se sobre a questão do Timor Leste, onde a população de fala portu-guesa e religião católica sofreu genocídio durante a ocupação indo-nésia. A falta é ainda mais sentida por Power estar escrevendo umabiografia de Sérgio Vieira de Mello, cuja carreira como funcionáriona ONU o levou diversas vezes a atuar em cenários de genocídio oureconstrução pós-conflito – como no Camboja, em Kosovo e comoadministrador do Timor Leste.

Também seria interessante um exame mais detalhado do papel que asorganizações regionais podem desempenhar na prevenção e no com-bate ao genocídio. Todos os casos analisados no livro foram crisesque tiveram impacto direto nos países vizinhos, em geral pelo êxodode refugiados. É de se esperar que articulações regionais fossem ca-pazes de agir de modo mais decisivo do que as Nações Unidas.

Infelizmente, no início do século XXI permanecem as mesmas ten-dências assustadoras do conflito étnico e do genocídio, como se evi-dencia em Darfur, no Sudão – um crime que ocorre longe dos olhosocidentais, focados nas crises do Oriente Médio. Como afirma a au-tora, cada ato de agressão não punido é um incentivo a futuros crimi-nosos. O próprio Hitler, ao planejar o Holocausto, perguntou a seusgenerais: “Quem hoje em dia fala dos armênios?”.

Notas

1. O termo “palavra g” é usado como uma maneira de se referir ao genocídio.A expressão ironiza o medo que os governos têm de reconhecer que há um geno-cídio em curso.

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Principal órgão de uma organização quase sexagenária, o Conselhode Segurança (CS) da Organização das Nações Unidas (ONU), aolongo de décadas, sobreviveu às contradições e às tensões decorren-tes de sua atuação, entre ambigüidades, fragilidade e sucesso. De umponto de vista mais amplo, inserida sua ação na perspectiva do siste-ma de segurança coletiva, temas como o direito natural de legítimadefesa (artigo 51 da Carta da ONU), a responsabilidade principal doCS em matéria de paz e segurança internacionais (artigo 24, capítuloVII) e os limites e condições de controle de determinadas “situa-ções” internacionais encontram-se, hoje, política, militar e midiati-camente na ordem do dia da diplomacia multilateral. A eficácia des-se sistema que repousa tanto sobre a fragmentação (sistemas de

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* Resenha recebida em julho e aceita para publicação em setembro de 2005.** Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais; mestre em Relações Inter-nacionais pela Faculdade de Direito da Universidade Panthéon-Assas, Paris; doutorando em Direito Pú-blico, com especialidade em Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade Pan-théon-Assas; e juiz do Trabalho substituto do Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região, MinasGerais.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 27, no 2, julho/dezembro 2005, pp. 479-491.

ResenhaLe Conseil de Sécurité dansl’après 11 Septembre*Serge Sur. Paris, LGDJ, 2004, 162 páginas.

Tarcisio Corrêa de Brito**

equilíbrio) quanto sobre a aglomeração (sistemas de dominação) so-mente será atingida a partir da realização de duas séries de objetivoscomplementares: preventivo ou dissuasivo, de um lado, e corretivoou coercitivo do outro.

Conhecido pesquisador das questões relativas à paz e à segurança in-ternacionais, o professor Serge Sur transita, com maestria, entre ostemas contemporâneos do direito internacional público e das rela-ções internacionais, sendo hoje, reconhecidamente, um dos maioresespecialistas na área, em língua francesa. Sua mais recente obra, “LeConseil de Sécurité dans l’après 11 Septembre”, inserida no contextode continuidade de suas reflexões no domínio das relações internaci-onais, oferece uma abordagem dinâmica do CS, convidando à refle-xão e ao diálogo, em três perspectivas complementares: visão de lon-ge (problemas permanentes em síntese), visão de perto (problemasexistenciais, considerando suas principais crises no pós-11 de Se-tembro e as reações subseqüentes) e visão em movimento (dinâmicae perspectivas da evolução e reforma do CS).

Sur considera que, visto de longe, o CS pode ser apreendido tanto apartir da análise da ação dos membros permanentes (P5)1, os “mes-tres do sistema”, quanto da perspectiva do alcance e dos limites doexercício do direito natural de legítima defesa previsto no artigo 51da Carta da ONU. Na primeira perspectiva, torna-se evidente que asdeficiências estruturais do órgão se encontram calcadas na existênciado direito de veto de ordem constitucional. Do ponto de vista materi-al, este direito, ainda que considerado em sua “lógica de fusível”,funciona como um instrumento de discriminação legal entre os Esta-dos-membros, contraditoriamente reconhecido no seio de uma orga-nização fundada sobre o princípio da igualdade soberana de seusmembros (artigo segundo, parágrafo primeiro da Carta). Do ponto devista procedimental, a atuação dos membros do P5 acaba por criarum “efeito de meio” imposto a cada membro do CS, uma lógica dediplomacia multilateral, mesclando igualmente individualismo e co-

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legiado, igualdade e hierarquia. Assim, no que diz respeito à compo-sição do CS, prevalece a lógica de eficácia sobre a lógica de repre-sentação: a primeira identifica-se com o poder efetivo de contribui-ção político-militar de cada membro permanente (capacidade efetivade decisão e de ação); a segunda, com os membros não-permanentese o papel significativo a eles atribuído na composição de interessesno caso de divergências no plano de decisão entre os membros do P5,desde que não exercido, de maneira afirmativa, o direito de veto.

Superando essa aparente contradição inicial que privilegia a ação he-gemônica do P5 em detrimento da igualdade formal entre os Esta-dos-membros da ONU, Sur afirma, na segunda perspectiva, que adiscricionariedade e a arbitrariedade da atuação do Conselho é reco-nhecida no capítulo VII da Carta (que trata da ação em caso de amea-ça à paz, ruptura da paz e atos de agressão), além de sua lógica políti-ca e hegemonia coletiva, baseadas mais nos interesses vitais do queem uma consideração objetiva da paz e da segurança internacionais.É, pois, esse aspecto que permite ao CS adaptar-se de maneira flexí-vel à evolução dos problemas de segurança internacional, tais comoos conflitos regionais de caráter internacional, o hiperterrorismo e aproliferação de armas de destruição massiva, o que explica por que sepreferiu criar um órgão político em vez de dotá-lo de uma naturezajudiciária ou de submeter suas decisões a tal controle.

Quanto à possibilidade desse controle, a resistência de Sur é infunda-da, por algumas razões. Primeiramente, é importante observar que aCorte Internacional de Justiça (CIJ) é um elemento do sistema para amanutenção da paz estabelecido pela Carta da ONU, constituindo oórgão judiciário principal do sistema onusiano. É inegável, ainda,que a própria Carta distingue as competências conferidas ao CS e àCorte no que diz respeito às questões relativas ao uso da força nas re-lações internacionais e da legítima defesa, explicitadas pela CIJ emvários casos por ela julgados: Companhia de PetróleoAnglo-Iraniana (1952); Plataforma Continental do Mar Egeu

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(1978); pessoal diplomático e consular dos Estados Unidos em Teerã(1980); atividades militares e paramilitares em Nicarágua (1984) ; equestões de interpretação e de aplicação da Convenção de Montrealde 1971 resultantes do incidente aéreo de Lockerbie (1992). Argu-mentativamente, a Corte estabeleceu que, embora as questões sejamsubmetidas ao CS, nada impede que a CIJ tome conhecimento delas,podendo os dois procedimentos – político e judicial – serem conduzi-dos paralelamente, situação, por certo, diferente daquela prevista noartigo 12 da Carta.

Em segundo lugar, contrariamente à interpretação de Sur, a respon-sabilidade principal reconhecida pela Carta ao CS nos moldes de seuartigo 24 não significa exclusividade quanto ao sujeito da manuten-ção da paz e da segurança internacionais, consagrando-se a idéia do“paralelismo funcional” (artigo 36, parágrafo terceiro da Carta). Issodemonstra, ainda, que o argumento da importância política do confli-to, avatar moderno dos interesses de poder, não tem conseqüência ju-rídica e não constitui obstáculo ao exercício de jurisdição da Corte.Afinal, a política judiciária desta é inspirada nas exigências de manu-tenção da paz. Inegavelmente, contudo, a utilização desse meio con-tinuará sendo da livre escolha que emana da política jurídica exteriordos Estados envolvidos. O que está em jogo não é uma análise de le-gitimidade, mas de ilicitude com relação ao descumprimento dasobrigações oriundas da própria Carta, por eventual decisão do Con-selho.

Isso não significa que se defenda a possibilidade de revisão de deci-sões do CS, visto que a posição da Corte, nesse tema, já é conhecidadesde a decisão no Aviso Consultivo “Conseqüências jurídicas paraos Estados da presença contínua da África do Sul na Namíbia”2. Porcerto, e reproduzindo a argumentação dessa sentença, se inexiste pre-visão na Carta e no estatuto da CIJ autorizando a revisão judicial, amesma não é possível, não podendo valer-se o intérprete, para tanto,da “teoria das competências implícitas”, distinguindo-se, pois, a na-

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tureza política do Conselho e judicial da Corte. Contudo, com baseem suas funções, a Corte pode não se intimidar a se pronunciar pelaconformidade dos atos do Conselho com a Carta, tanto no caso da ju-risdição contenciosa quanto dos avisos consultivos, o controle políti-co sendo exercido pelos próprios Estados-membros a partir de umatécnica de contra-poderes.

Visto de perto, Sur analisa o CS na linha de continuidade e/ou de rup-tura da lógica de sua ação em quatro momentos paradigmáticos: a) dacrise de Cuba de 1962 ao fracasso das operações de paz na África, noinício dos anos 1990; b) a questão do Kosovo em 1999; c) o pós-11 deSetembro de 2001; d) a segunda guerra dos Estados Unidos contra oIraque em 2003.

Se o período que vai de 1960 ao início de 1990 é marcado, grossomodo, pelo confronto ideológico leste-oeste, dissuasão nuclear,arms control, primeira guerra do Iraque e relativo fracasso de algu-mas operações de paz na África (Somália, Serra Leoa, Libéria, Ruan-da, República Democrática do Congo e Costa do Marfim), a soluçãoencontrada no âmbito do Conselho para “resolver” os conflitos noKosovo marcará uma antecipação das vicissitudes vivenciadas peloCS nos anos posteriores. Isso fica claro com a aprovação da Resolu-ção 1.244 da ONU (1999) e com a atuação das forças da Organizaçãodo Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e da União Européia comoconcorrentes do Conselho na questão da paz e da segurança interna-cionais no Kosovo.

Já o tema do terrorismo internacional, embora não fosse inédito noseio do CS, ganhará novo enquadramento após os atentados de 11 deSetembro em Nova Iorque, com a aprovação das resoluções 1.368(2001) e 1. 373 (2001), tema central da obra de Sur. A primeira reso-lução considera o caso como questão de segurança internacional,qualificando-o, com base no artigo 39 da Carta, como uma agressãoarmada (mesmo que não se identificasse a ação direta ou indireta de

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um Estado) e reconhecendo aos Estados Unidos o exercício do direi-to natural de legítima defesa, sem limitar, quanto à sua natureza e suaintensidade, a reação militar americana. Mas é Sur quem observaque, na condução da intervenção coercitiva propriamente dita, a açãoé realizada sob “autorização” do CS e não sob sua “autoridade”, oque evidencia a sua efetiva “perda de responsabilidade” nessa gestãoda crise internacional.

Por outro lado, com a resolução 1.373 (2001), estabeleceu-se um ver-dadeiro programa de prevenção e de luta contra o terrorismo interna-cional, com um inegável poder normativo de natureza não legislati-va. Seu texto comporta um programa amplo e obrigatório de coope-ração para os Estados-membros e organizações internacionais, decaráter civil, penal, policial e financeiro. Assim, seguindo-se uma ló-gica contínua de enquadramento jurídico, a resolução 1.368 (que si-tua a ação americana nos moldes da Carta) fundamenta a 1.373 (quesitua o Conselho no centro da ação jurídica), ainda que elas sejamdissociadas em seus meios e técnicas de aplicação. Nesse caso, o quese evidencia é que o artigo 51 da Carta acaba por exceder a competên-cia do CS prevista no capítulo VII da mesma, constituindo a legítimadefesa uma modalidade particular de segurança coletiva, superior àsdemais disposições da Carta.

Nessa linha de argumentação, o autor considera, ainda que de manei-ra não explícita, que esse “enquadramento” condicionou todas asações internacionais subseqüentes quanto ao tema da paz e seguran-ça (coletiva) internacionais, podendo-se citar, por exemplo, as reso-luções 1.526 (2004), 1.530 (2004), 1.535 (2004) e 1.566 (2004). Po-de-se dizer, contudo, que, com a resolução 1.530 (2004), o CS, con-denando os atentados terroristas perpetrados em Madri no dia 11 demarço de 2004, de maneira apressada e equivocada, mas na mesmalógica das resoluções que identificaram o Talibã e a Al Qaeda comogrupos terroristas, errou ao apontar o grupo radical basco ETA comoo principal responsável pelos atentados, constatação que se provou

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falsa a posteriori. Nota-se, portanto, os riscos dessa interpretação doartigo 51 e da possibilidade política de generalizar, flexibilizando aomáximo e descontroladamente, a identificação de determinados gru-pos terroristas. Em outra perspectiva, o reconhecimento pela Espa-nha da competência universal de sua jurisdição para crimes contra ahumanidade e o início do julgamento de alguns dos implicados noatentado demonstraram a importância reconhecida por esse país eu-ropeu a esse modo pacífico de solução de controvérsias.

Por outro lado, a administração da crise iraquiana pelo CS, entre osconflitos de 1991 e 2003, demonstrou a evolução dessa “situação” re-gional que, segundo Serge Sur, não se fundamenta exclusivamentena continuidade das resoluções motivadas pelos atentados de 11 desetembro de 2001, a não ser pela inclusão do Iraque no denominado“eixo do mal”. Relembre-se, por exemplo, a resolução 1.441 (2002),que organizou um novo processo de inspeções coercitivas com o ob-jetivo de realizar o desarmamento iraquiano e assegurar a eficáciados mecanismos de verificação do sistema onusiano. O debate públi-co internacional decorrente disso se dividiu entre a posição america-na (sistema de verificação negativa), com apoio britânico e de outrospaíses europeus, que pretendia o emprego imediato da força armada,e a posição franco-germânica, que não recusava totalmente o recursoà guerra, mas subordinava-o, como ultima ratio, a uma decisão doConselho se comprovada “flagrante” a violação pelo Iraque de suasobrigações internacionais (sistema de verificação positiva).

Apesar de a ação unilateral americana, que se seguiu, parecer despre-zar a responsabilidade principal do Conselho em matéria de paz e se-gurança internacionais, Sur afirma que não se contestou o fato deesse órgão agir (otimização restritiva) na “organização” da luta inter-nacional contra o terrorismo. O novo dado que surge nesse contexto éo da “guerra preventiva” ou “guerra por escolha ou por necessidade”,que modifica, de certa maneira, a amplitude do recurso pretendido àforça. Se for apreendida institucionalmente, a resolução 1.483

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(2003) consagrará a criação de uma autoridade de ocupação3 – prin-cipal responsável pela promoção do bem-estar da população iraquia-na, assegurando uma administração eficaz do território e contribuin-do ainda para restabelecer a segurança e a estabilidade, além de criarcondições de reconstrução futura do Iraque – e de um representanteespecial do secretário-geral da ONU. Isso evidencia que, no conjuntodos processos de reconstrução e de reconstituição de uma autoridadepolítica iraquiana, a atuação do CS não é nem residual, nem subalter-na, ainda que permaneça, também em matéria de desarmamento, vir-tual.

Para além da análise de Sur, no que diz respeito à situação precária doIraque, passadas as eleições gerais do início de 2005, permanece evi-dente a dificuldade de administração da crise interna iraquiana pelacoalizão internacional e pela própria ONU, não se podendo esquecerainda do atentado que vitimou, em 2004, o primeiro representante es-pecial no Iraque, o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Essecontexto de instabilidade interna (atentados e seqüestros de estran-geiros) desafia uma nova reflexão sobre os limites e conseqüênciasdo exercício do direito natural de legítima defesa (sua extensão “polí-tica” a conflitos em outras regiões, como, por exemplo, no caso daRússia, Palestina, Afeganistão e da ação contra os “rogue states” –Coréia do Norte, Síria e Irã –, integrantes do “eixo do mal”) e da pre-valência da defesa de “interesses vitais” (realismo estratégico) con-tra a implementação das obrigações convencionais internacionaisem vigor.

Vista em movimento, quanto às dinâmicas e perspectivas futuras doCS, segundo Serge Sur, a discussão organiza-se em quatro itens: (I) acontinuação das ações ordinárias desse órgão no que diz respeito àrenovação e à ampliação das operações de paz; (II) os vínculos entreas instituições internacionais nos domínios da segurança, entre a co-operação e a concorrência; (III) a pretendida reforma do Conselho; e

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(IV) a conservação, pelo CS, e para o futuro, de suas capacidades evirtualidades.

Se é possível mencionar a existência de “gerações” de operações demanutenção da paz fundadas nos capítulos VI e VII da Carta, por ou-tro lado, na perspectiva de uma cooperação/concorrência na ação doConselho com outros órgãos da ONU ou organizações internaciona-is, o especialista francês aponta o precedente histórico da ResoluçãoAcheson de 1950 perante a Assembléia Geral da ONU; a exclusão doexercício do direito de veto nos limites propostos no RelatórioEvans-Sahnoun de 2001; a possibilidade discutível de controle juris-dicional dos atos do Conselho pela Corte Internacional de Justiça emesmo a influência das organizações não-governamentais (ONGs)no estabelecimento da Corte Penal Internacional. Como alternativasa essa concorrência, discute-se o papel da Organização do Tratado doAtlântico Norte (OTAN) como novo instrumento institucional de se-gurança internacional; o G7/8 como instância de “concertação inter-nacional”; e a Organização para Segurança e Cooperação na Europa(OSCE) como idéia de uma “segurança cooperativa” herdada daConferência de Segurança e Cooperação na Europa (CSCE). Impor-ta ainda relembrar a competência do Conselho em criar, como órgãosde cooperação na manutenção e/ou restabelecimento (prevenção/co-erção) da paz internacional, os tribunais penais ad hoc e especiais nocaso de violações ao direito humanitário internacional, verdadeiroprincípio/regra de jus cogens (ordem penal internacional e compe-tência penal universal).

Em princípio, é inegável a flexibilidade do Conselho em criar tribu-nais internacionais ad hoc, baseando-se em uma lógica não de pazpelo direito, mas de considerações de ordem política, segundo aapreciação e discricionariedade que são próprias ao Conselho. SergeSur poderia, pois, completar sua análise acrescentando que a criaçãodesses tribunais representa o fracasso do sistema de segurança coleti-va, o que significa que tanto o mecanismo dissuasivo não funcionou

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quanto, no mais, o próprio Conselho não conseguiu impedir ou pre-venir os comportamentos individuais ou coletivos “tipificados”como (1) crime contra a paz, (2) de genocídio, (3) contra a humanida-de ou (4) crime de guerra. Revitaliza-se, assim, a teoria da responsa-bilidade individual originária dos tribunais militares de Tokyo e deNuremberg de 1945 e 1946.

Contudo, nota-se que o próprio CS não tem conseguido, embora suanatureza assim o impusesse, a cooperação dos Estados no caso dostribunais penais internacionais ad hoc, o que tem retardado os traba-lhos, da fase de inquérito e de entrega dos acusados a essas jurisdi-ções internacionais (impossibilidade de julgamento por contumácia)à finalização do procedimento e decisão final, após recurso. As su-cessivas resoluções sobre esse tema demonstram que um compro-misso internacional efetivo ainda não foi encontrado. A própria evo-lução e desenvolvimento desses tribunais penais ad hoc para aex-Iugoslávia e para Ruanda, quando analisados de perto, demons-tram a sua precariedade institucional, que representará um desafio,inclusive, para a Corte Penal Internacional, diante da posição ameri-cana, respaldada pelo próprio Conselho, e da possibilidade de cria-ção de outros tribunais ad hoc concorrentes para situações especiais,a critério do mesmo.

No que diz respeito à reforma do Conselho, o que se encontra emjogo, segundo Sur, é o “espírito” mesmo da instituição, por ser inexe-qüível o concerto político que prevalece apenas em um contexto depaz estrutural. Para o autor, uma reforma calcada no estabelecimentode um “regionalismo de descentralização” incluiria: fazer o exercí-cio do veto preceder de um “concerto regional” ou de outro processode decisão formal; substituí-lo pela técnica do consenso, relativizan-do o exercício desse direito em decorrência da ampliação do númerode membros permanentes. Na verdade, tais proposições contornam a“lógica de eqüidade” que emana dessa reforma, contrária e incompa-tível com a natureza desse órgão. Outra proposta a ser considerada é:

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a criação de conselhos de segurança regionais ou de outro(s) órgão(s)ad hoc de natureza consultiva, mantendo-se, porém, a competênciade decisão do CS. Esse procedimento poderia, pois, atualizar de ma-neira menos radical a composição do Conselho, sem representar, nabase, um processo de fragmentação ou de desmembramento do ór-gão.

Atualmente, a discussão da reforma do Conselho com a inclusão doG4 (Brasil, Alemanha, Japão e Índia) sofre resistências regionais porparte da Argentina, Colômbia, Nicarágua, México, Venezuela, Itália,China e Paquistão, com base na acusação de que os países do G4 nãorepresentam legitimamente as correspondentes regiões (América,Europa e Ásia). Os países do G4 enfrentam ainda a falta de apoio docontinente africano, que procura apresentar candidatos próprios en-tre Egito, Nigéria, África do Sul, Argélia, Quênia e Senegal. Recen-temente, ainda em junho de 2005, a ação diplomática do G4 incluiuaté mesmo a tentativa de submeter uma proposta ao Conselho de Se-gurança de renúncia por quinze anos do exercício do direito de veto,propondo a ampliação do número de membros permanentes do CSde cinco para onze.

Nesse contexto, por exemplo, o Brasil mobilizou-se quando do co-mando da Força criada no âmbito da Missão das Nações Unidas paraa Estabilização no Haiti (Minustah), instituída pela resoluçãoS/RES/1542/2004 (que substituiu a Força Multinacional Interina es-tabelecida pela resolução S/RES/1529/2004), prorrogada até junhode 2005. Recentemente, a decisão de enviar militares nor-te-americanos para a estabilização do Haiti reforçou a acusação defalta de profissionalismo e de coesão do comando do general brasi-leiro Augusto Heleno Ribeiro Pereira (substituído pelo General Ura-no Bacellar), o que compromete a “publicidade eleitoral” em tornodessa operação, que representa o maior contingente enviado ao exte-rior pelo Brasil desde a Segunda Guerra Mundial.

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Sur afirma que o CS não pretende ser um espaço de representação,mas de eficácia. Com isso, a contestável atuação da força internacio-nal comandada pelo Brasil no Haiti, dentro, ainda, do contexto defracasso generalizado das operações de paz onusianas no continenteafricano, torna discutível a reforma apressada e não refletida sobre acomposição dos membros permanentes do CS. Ainda que os Estadosque integram o P5 representem a lógica do pós-Segunda GuerraMundial, dificilmente se encontrará, para o respeito à eficácia desuas decisões, uma “nova” composição que faça coabitar a legitimi-dade decorrente de maior representação e a eficácia decorrente dopoder de mobilização para as situações que violem a paz e a seguran-ça internacionais. O livro de Sur, por outro lado, tem o mérito de de-monstrar que, mesmo a hiperpotência norte-americana, contra a qualparece inexistir recurso, não prescinde das instâncias multilaterais edo Conselho de Segurança enquanto instrumentos de legitimação,pois esta não se fundamenta única e exclusivamente no seu exercícioindividual de poder.

Por esse motivo, e conclusivamente, Serge Sur constata que o CS setorna um instrumento complexo e sutil de cooperação entre as gran-des potências e uma “câmara de eco” para os pequenos países. É umcatalisador, fonte de legitimidade internacional e não um mero ins-trumento de hegemonia de um único Estado. Por outro lado, esse ór-gão da ONU tem a necessidade de ser alimentado por fontes exterio-res, principalmente pelos Estados. Criado em um momento de urgên-cia, alterna hoje, instrumentalmente, a necessidade de correção de(novas) situações e a adoção de medidas repressivas, ainda que pre-cárias do ponto de vista de sua atuação operacional, baseada, sobre-tudo, em uma lógica de eficácia.

A obra de Serge Sur representa, pois, de maneira inegável, um instru-mento de consulta e de reflexão fundamental na apreensão do temacentral da paz e da segurança nas relações internacionais contempo-râneas.

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Notas

1. República da China, França, Rússia, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlan-da do Norte e Estados Unidos da América.

2. CIJ – Corte Internacional de Justiça. (1971), Aviso Consultivo, 21 de junho.Recueil, pp. 16 e ss.

3. Representantes permanentes do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda doNorte e dos Estados Unidos da América enquanto potências ocupantes agindosob comando unificado, em virtude do direito internacional aplicado.

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Autores

Ana Cristina Araújo Alves mestre em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio,2005) e professora da graduação em Relações Internacionais do IRI/PUC-Rio.

Andrés Malamud PhD em Ciência Política e Ciências Sociais pelo European University Institute, em Florence. Atualmente, ocupa o cargo de pesquisador-assistente no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa. É também professor assistente de Ciência Política na Universidade de Buenos Aires. Suas áreas de interesse são política latino-americana e européia, integração regional, partidos políticos e comparação das instituições democráticas.

Gustavo Seignemartin de Carvalho mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).

Luis Fernando Ayerbe doutor em História pela Universidade de São Paulo(USP)e livre docente pela Universidade Estadual Paulista(Unesp).Atualmente, é professor do Departamento de Economia da Unesp, campus de Araraquara,e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Unesp,Unicamp e PUC-SP.

Luís de Sousa PhD em Ciência Política e Ciências Sociais pelo European University Institute, Florence. Atualmente, ocupa o cargos de pesquisador no Programa de Ciência Política no Research School of Social Sciences of the Australian National University e de pesquisador assistente no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa.Suas áreas de interesse são política européia, parlamentos regionais, partidos políticos,corrupção partidária e regulação política.

Marcelo Valença mestrando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).

Marco Antonio de Meneses Silva mestre em Relações Internacionais pela University of Kent at Canterbury. Atualmente, é professor no Centro Universitário de Brasília e coordenador do curso de Relações Internacionais.

Maurício Santoro doutorando em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (I B A S E) e professor da pós-graduação em Relações Internacionais da Universidade Candido Mendes.

Tarcisio Corrêa de Brito mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais;mestre em Relações Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade Panthé on-Assas, Paris; doutorando em Direito Público, com especialidade em Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade Panthé on-Assas; e juiz substituto do Trabalho do Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região desde outubro de 1998.