TRIBUNAL DO FACEBOOK: UM ESTUDO SOBRE...

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Performances Interacionais e Mediações Sociotécnicas Salvador - 10 e 11 de outubro de 2013 TRIBUNAL DO FACEBOOK: UM ESTUDO SOBRE SISTEMAS DE ACUSAÇÃO NOS SITES DE REDES SOCIAIS 1 José Carlos Ribeiro 2 Lisieanne Araújo Barberino 3 Resumo: Categorias de acusação são constantemente acionadas nas sociedades contemporâneas. Tais categorias legitimam visões de mundo e estigmatizam comportamentos e indivíduos desviantes. O presente artigo tem como objetivo investigar os sistemas de acusação iniciados e reverberados a partir de sites de redes sociais, sobretudo através do Facebook. A fim de dispor sobre o objetivo proposto, caberá compreender o locus específico no qual se estabelecem interações sociais, os chamados sites de redes sociais, para posteriormente tratar de acusações sociais e as formas como operam os sistemas acusatórios. Para tanto, propõe-se para análise o estudo de caso que envolve a participação do músico Tom Zé no comercial da Coca-Cola para a Copa do Mundo de 2014. Palavras Chave: sites de redes sociais, sistemas de acusação, Facebook, Tom Zé. 1 APRESENTAÇÃO No dia 20 de fevereiro de 2013, a marca de refrigerante Coca-Cola, pertencente à corporação multinacional americana The Coca-Cola Company, lançou sua campanha para a Copa do Mundo, que será sediada no Brasil em 2014. A partir da chamada “Não haverá protagonistas na Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014, ela será a Copa de Todo Mundo”, a marca apresentou ao público brasileiro o primeiro exemplar de uma série de vídeos sobre a temática. Com o lançamento oficial realizado através do canal da Coca-Cola no Youtube 4 , a campanha circulou em sites e blogs de publicidade e em pouco tempo se espalhou através de blogs dedicados a música e sites de redes sociais (SRS). Se para uma parte do público o comercial se destacou por seu conceito e qualidade visual, para outra parte, tal promoção mereceu destaque pela “inusitada” narração do compositor baiano Tom Zé. O músico, considerado uma voz alternativa influente no cenário musical brasileiro, desagradou seus fãs ao associar 1 Artigo submetido ao NT1 Sociabilidade, novas tecnologias e práticas interacionais do SIMSOCIAL 2013. 2 Psicólogo e Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. Professor do Instituto de Psicologia (UFBA) e pesquisador associado aos Programas de Pós- Graduação em Psicologia e em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA). Coordenador do Grupo de Pesquisa em Interações, Tecnologias digitais e Sociedade GITS. 3 Mestranda no Programa de Pós Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas - POSCOM, pela Universidade Federal da Bahia - UFBA. Integrante do Grupo de Pesquisa em Interações, Tecnologias digitais e Sociedade - GITS. Bolsista CNPq 4 www.youtube.com

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Performances Interacionais e Mediações Sociotécnicas Salvador - 10 e 11 de outubro de 2013

TRIBUNAL DO FACEBOOK:

UM ESTUDO SOBRE SISTEMAS DE ACUSAÇÃO NOS SITES DE REDES

SOCIAIS1

José Carlos Ribeiro2

Lisieanne Araújo Barberino 3

Resumo: Categorias de acusação são constantemente acionadas nas sociedades

contemporâneas. Tais categorias legitimam visões de mundo e estigmatizam comportamentos

e indivíduos desviantes. O presente artigo tem como objetivo investigar os sistemas de

acusação iniciados e reverberados a partir de sites de redes sociais, sobretudo através do

Facebook. A fim de dispor sobre o objetivo proposto, caberá compreender o locus específico

no qual se estabelecem interações sociais, os chamados sites de redes sociais, para

posteriormente tratar de acusações sociais e as formas como operam os sistemas acusatórios.

Para tanto, propõe-se para análise o estudo de caso que envolve a participação do músico Tom

Zé no comercial da Coca-Cola para a Copa do Mundo de 2014.

Palavras Chave: sites de redes sociais, sistemas de acusação, Facebook, Tom Zé.

1 APRESENTAÇÃO

No dia 20 de fevereiro de 2013, a marca de refrigerante Coca-Cola, pertencente à corporação

multinacional americana The Coca-Cola Company, lançou sua campanha para a Copa do

Mundo, que será sediada no Brasil em 2014. A partir da chamada “Não haverá protagonistas

na Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014, ela será a Copa de Todo Mundo”, a marca

apresentou ao público brasileiro o primeiro exemplar de uma série de vídeos sobre a temática.

Com o lançamento oficial realizado através do canal da Coca-Cola no Youtube4, a campanha

circulou em sites e blogs de publicidade e em pouco tempo se espalhou através de blogs

dedicados a música e sites de redes sociais (SRS). Se para uma parte do público o comercial

se destacou por seu conceito e qualidade visual, para outra parte, tal promoção mereceu

destaque pela “inusitada” narração do compositor baiano Tom Zé. O músico, considerado

uma voz alternativa influente no cenário musical brasileiro, desagradou seus fãs ao associar

1 Artigo submetido ao NT1 Sociabilidade, novas tecnologias e práticas interacionais do SIMSOCIAL 2013.

2 Psicólogo e Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia.

Professor do Instituto de Psicologia (UFBA) e pesquisador associado aos Programas de Pós- Graduação em

Psicologia e em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA). Coordenador do Grupo de Pesquisa em

Interações, Tecnologias digitais e Sociedade – GITS.

3 Mestranda no Programa de Pós Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas - POSCOM, pela

Universidade Federal da Bahia - UFBA. Integrante do Grupo de Pesquisa em Interações, Tecnologias digitais e

Sociedade - GITS. Bolsista CNPq 4 www.youtube.com

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sua imagem à marca de refrigerantes e passou a sofrer com um pesado sistema de acusações

que se estabeleceram em SRS.

Investigar os processos e categorias acusatórias atribuídas a Tom Zé, a partir do mencionado

episódio, constitui o objetivo geral desse trabalho. Visando perseguir tal intento, serão

analisadas as publicações sobre o tema que circularam entre os meses de março e abril de

2013 no Canal da Coca-Cola no Youtube, e principalmente, no SRS Facebook. A principal

fonte de coleta dessas publicações foi a fanpage do cantor, disponível no Facebook. No

entanto outros espaços de publicações também foram observados, incluindo o perfil pessoal

do músico.

A opção metodológica pela análise do SRS Facebook significa vislumbrá-lo como locus

privilegiado, onde se estabelecem parte dos sistemas acusatórios informais na

contemporaneidade. Sobretudo, pelas múltiplas conexões estabelecidas pelos usuários e pela

velocidade de propagação das informações nesse ambiente. Portanto, esse trabalho parte da

constatação de que muitos dos sistemas acusatórios, que repercutem na mídia tradicional

brasileira e formam a chamada opinião pública, são iniciados e reverberados em SRS.

2 FACEBOOK

O Facebook é um site de rede social (SRS) lançado em 4 de fevereiro de 2004, e de

propriedade privada da Facebook Inc. Fundado por Mark Zuckerberg. Atualmente é o SRS

mais acessado no mundo – apenas no Brasil, estima-se que 67 milhões de pessoas utilizam o

serviço5. Através do site, usuários criam perfis com informações e interesses pessoais e

passam a se relacionar com outros usuários. O Facebook é gratuito e obtêm receita

proveniente de publicidade, incluindo banners, destaques patrocinados no feed de notícias e

de grupos patrocinados.

Cabe destacar que o Facebook foi investigado, no presente trabalho, a partir dos estudos sobre

fofoca (gossip) de Nobert Elias e John L. Scotson (2000), no qual é compreendido mais

precisamente como um “centro de intriga” em uma comunidade fragmentada, que ganha

coesão a partir de um “fluxo constante de mexericos” (ELIAS e SCOTSON, 2000). Para os

autores, a fofoca, sobretudo a negativa, desempenha um papel integrador em determinado

grupo a partir do momento em que ressalta valores considerados positivos, que apelam

diretamente para o “sentimento de retidão e virtude daqueles que o transmitiam” (ELIAS e

5Fonte: http://g1.globo.com. Acesso em: 10 de julho de 2013.

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SCOTSON, 2000, p. 121). Investigar os sites de redes sociais como um dentre os diversos

canais de fofoca existentes na sociedade, e o Facebook, como um dos mais povoados e

democráticos, permite-nos acompanhar um amplo espectro de interações, opiniões,

comentários e acusações.

Desse modo, o presente trabalho não se preocupa com o que realmente tenha acontecido no

caso “Tom Zé e a Coca-cola”, mas sim com as versões difundidas através de postagens e

comentários publicados no Facebook. Assim como acontece na fofoca, fora de ambientes

digitais – ou na “vida real”, como alguns insistem –, tais versões chegam à discussão pública,

alteradas, distorcidas e, por vezes, recriadas pelas convicções morais do fofoqueiro. A fim de

dispor sobre os objetivos propostos por esse trabalho, fez-se necessário primeiramente

esclarecer alguns pontos a respeito dos chamados SRS e as interações ocorridas nesses

ambientes, para em seguida tratar de acusações sociais e desvio. Por fim, apresentamos o caso

sobre a polêmica envolvendo Tom Zé e a Coca-Cola Company, ocorrida em março de 2013.

3 SITES DE REDES SOCIAIS E INTERAÇÕES.

O desenvolvimento e a proliferação dos sites de redes sociais (SRS), na contemporaneidade,

fez com que inúmeros pesquisadores se debruçassem sob a temática, com o intuito de

investigar suas características, potenciais e especificidades. Ainda que grande parte desses

estudos seja dedicada às análises mercadológicas, aspectos relacionados às interações

cotidianas e sociabilidades também tem ganhado destaque. Boyd e Ellison (2007), em um

artigo intitulado “Social network sites: Definition, history, and scholarship”, definem os SRS

como:

serviços de web que permitem aos usuários (1) construir um perfil público ou

semipúblico dentro de um sistema conectado, (2) articular uma lista de outros

usuários com os quais eles compartilham uma conexão e (3) ver e mover-se pela sua lista de conexões e pela dos outros usuários (BOYD e ELLISON, 2007,

online)

Embora os SRS tenham características variadas entre si, em termos, por exemplo, de foco de

audiência e especificidades técnicas, tais sites têm em comum o fato de servirem,

primordialmente, para os indivíduos criarem seus perfis pessoais e se relacionarem com

outros indivíduos em conexões públicas (BOYD e ELLISON, 2007). A noção de Boyd e

Ellison (2007) é amplamente adotada por inúmeros estudiosos da área, mas ainda sim é

passível de críticas. Alguns pesquisadores, incluindo Beer (2008) consideram a categoria SRS

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pouco útil analiticamente, em função de sua amplitude. Buscando resolver tal problema o

autor propõe a adoção de duas nomenclaturas: social network sites e social networking sites.

A primeira categoria (social network sites) compreende sites que enfatizam o processo de

construção e manutenção de relacionamentos pessoais, tais como Facebook e Orkut. A

segunda (social networking sites) abrange sites que possuem foco no compartilhamento de

conteúdos, como por exemplo, Youtube e Twitter. Ainda que a classificação de Beer (2008)

seja pertinente, adotamos nesse artigo a definição a proposta por Boyd e Ellison (2007), por

consideramos de extrema importância o foco no compartilhamento de conexões.

Sobre os motivos que levam as pessoas a se conectarem e compartilharem conexões, Boyd

(2004) afirma que indivíduos se conectam em sites de redes sociais a fim de criar e

estabelecer redes de contato (networking). Tais redes podem se constituir por relacões de

amizade, amor, trabalho dentre outras. Para a autora, os SRS operam a partir da hipótese de

que estabelecer conexões, em um número cada vez maior, pode ser necessário e benéfico para

o usuário.

Raquel Recuero (2012) chama atenção para a amplificação das conexões nos sites de redes

sociais. Segundo a autora, em SRS as pessoas tendem a se conectar com outras pessoas que

não conheciam anteriormente ou que conhecem muito pouco, gerando redes cada vez mais

conectadas (hiperconectadas). Tais conexões diminuem a distância social entre os indivíduos

e grupos e tornam mais visíveis as interações, conexões e os conteúdos publicados nesses

ambiente, permitindo assim, que grupos mais heterogêneos entrem em contato (RECUERO,

2012).

Considera-se aqui a tendência de que os relacionamentos se desenvolvam através de partilha

de interesses, valores e formações similares. No entanto, a hiperconexão em SRS

(RECUERO, 2012) têm como consequência inevitavel para os usuários a relação, mesmo que

indireta e não desejada, com grupos e indivíduos que não partilham dos mesmos códigos e

valores a que estão habituados. Quando os indivíduos são obrigados a conviver diretamente

com o diferente, costuma ocorrer um aumento na possibilidade de emergência de situações

antagônicas e conflituosas.

Apesar de o antagonismo estar associado costumeiramente a aspectos negativos da interação,

Ribeiro (2003), ao estudar o ambiente dos web-chats, admite a presença da oposição como

parte de uma dinâmica necessária e útil para a conservação do vínculo social entre díades

interacionais e grupos de usuários:

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a dinâmica social revela-se como sendo configurada basicamente através da

alternância entre períodos de antagonismos explicitamente declarados e de

acordos continuamente renovados. Assim, a oposição pode se apresentar não só

como fator importante no processo identificatório e na conservação de grupos de

usuários (associados em torno de uma antipatia ou ódio comum) e de díades

interacionais (comumente formadas nesse ambiente social), mas também como

um dos agentes propulsores do próprio processo (RIBEIRO, 2003, p.201).

Nesse sentido, o destaque é que, nos ambientes dos atuais sites de redes sociais, os conflitos

são capazes de gerar unidade e formas de sociabilidade em grupos. Braga (2011) endossa

esse papel positivo dos conflitos ao afirmar que:

Apesar dos conflitos serem motivados por fatores de dissociação, são também

modos de se conseguir algum tipo de unidade. Assim, o conflito pode ser visto

como algo positivo, na medida em que ambas as formas de relação, a divergente

ou a convergente, se diferenciam fundamentalmente da indiferença entre indivíduos ou grupos, que seria nesse sentido puramente negativa. É da

divergência de ânimos e direções de pensamentos que fluem a estrutura orgânica

e a vitalidade do grupo. Ao contrário do que pode parecer, unidade e

discordância são tipos de interação que não se anulam, mas se somam (BRAGA,

2011, p. 98).

Ainda, de acordo com a autora, mesmo que a discordância possa ser destrutiva em relações

particulares, ela não possui necessariamente o mesmo efeito no relacionamento total do

grupo, podendo até ter um papel inteiramente positivo nesse quadro mais abrangente. As

hostilidades seriam, portanto, responsáveis pela preservação de limites no interior do grupo e

muitas vezes por garantir suas condições de sobrevivência (BRAGA, 2011).

Os conflitos surgidos em SRS podem evidenciar pontos de tensão presentes na rede,

acentuando contradições e diferenças entre os usuários. Mas também podem revelar uma

força poderosa de agregação social, definindo um grupo a partir da oposição a “outro”. Cabe

destacar que, nos ambientes dos SRS, as discordâncias podem ter sua manifestação

caracterizada pela presença de uma dose maior de atitudes explicitamente hostis, facilitadas

pela prática do anonimato, hiperconexão e pela distância física presente entre os

interlocutores.

Goffman (1970) nos fornece novas pistas para tentarmos compreender por que indivíduos e

grupos podem se sentir a vontade em expressar suas hostilidades em interações mediadas.

Para o autor, em relações face a face interlocutores procuram manter a situação de equilíbrio

precário, que se instaura no processo internacional, a partir de dois movimentos: (1)

gerenciando uma imagem pública de si mesmo, na qual se evidencia os traços positivos e se

oculta os negativos; (2) protegendo a imagem dos interlocutores, evitando atos socialmente

entendidos como desagradáveis, pouco educados, agressivos, entre outros. Goffman (1970)

chama essa imagem gerenciada e protegida de face:

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Pode definir-se o termo face como o valor social positivo que uma pessoa

reclama efetivamente para si por meio da linha que os outros supõem que ela

seguiu durante determinado contato. A face é a imagem da pessoa delineada em

termos de atributos sociais aprovados, ainda que se trate de uma imagem que

outros podem compartilhar, como quando uma pessoa enaltece sua profissão ou

sua religião graças a seus próprios méritos (GOFFMAN, 1970, p. 12).

Sendo assim, a manutenção da face se dá através de negociações entre os interlocutores, que

precisam propô-las e legitimá-las. Manter uma face com sucesso gera sentimentos positivos

para os interlocutores e confere segurança a interação. Nos SRS também gerenciamos nossa

imagem pública. A partir das especificidades técnicas de cada rede, construímos nosso perfil

público, escolhemos a foto mais adequada, pensamos nos conteúdos que compartilhamos com

nossos amigos e seguidores. Paralelo a isso, nossa face apresentada, vai sendo legitimada ou

não, pelos demais usuários dos SRS. Entretanto, as interações nesses ambientes podem

oferecer maior risco para a face apresentada já que seus usuários estão menos propensos às

sanções resultantes da quebra do equilíbrio da interação.

Em nossas relações face a face, quando agimos de forma inadequada, observamos de imediato

a consequências desse ato no outro - seja através de expressões faciais, gestos, tom de voz ou

conteúdo da fala (GOFFMAN, 1985). Em interações mediadas, como as que ocorrem em

SRS, não observamos prontamente tais consequências (seja pela distância fisica, pelo

anonimato ou pela heterogeneidade de conexões) e com isso nos sentimos mais à vontade em

executarmos atos de ameaça a face do outro. Cabe destacar que todo ato de ameaça de face

deslegitima interlocutores que podem até mesmo ser silenciados e se afastarem da interação.

Esse conjunto de manifestações caracterizadas de modo geral como “desvio

comportamentais” é muito variável de um ambiente interacional online para outro, posto que

sofre influências das especificidades técnicas do ambiente, assim como das particularidade

sociais dos freqüentadores que nele interagem (RIBEIRO, 2003). Vale ressaltar que tais

práticas nem sempre serão intencionais ou delituosas, “haja vista poderem expressar apenas

desconhecimento, imaturidade ou descuido em relação às normas sociais e técnicas

convencionais adotadas naquele ambiente específico” (RIBEIRO, 2003, p. 204).

4 ACUSAÇÃO SOCIAL E DESVIO

Os estudos sobre acusações estão, historicamente, imbricados com o tema do comportamento

desviante, sobretudo a partir da tradição sociológica do interacionismo simbólico e dos

estudos de antropologia urbana. Para investigar a lógica das situações e processos dos quais

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emergem categorias acusatórias é necessário compreender a noção de desvio fugindo de uma

linha de abordagem que coloque, de um lado, um individuo particular estigmatizado, e, do

outro, um mundo tido como normal. Torna-se fundamental, portanto, perceber que toda

acusação a respeito de desvios ou transgressões de comportamento é feita a partir de

expectativas e padrões de um determinado grupo social.

Howard S. Becker (2008) oferece importantes contribuições nesta área. Tal autor interpreta o

desvio não como um conjunto de características inerentes a grupos ou indivíduos, mas sim, a

partir dos processos de interação entre desviantes e não desviantes construídos socialmente

(BECKER, 2008). Dito de outra forma, a noção básica de desvio em Becker (2008) é a de que

não existem desviantes em si mesmos, mas sim um desvio construído a partir da relação entre

atores, que acusam outros atores de estarem transgredindo limites e valores de determinada

situação social. Sendo assim, o desvio é edificado a partir de um embate entre acusadores e

acusados.

Gilberto Velho (2013) chama atenção para tais embates, ao afirmar que as acusações sociais

só podem ser compreendidas a partir de constatações sobre a distribuição do poder social.

Para o autor é fundamental observar pelo menos três questões: “Quem acusa quem?”,

“Quando uma pessoa é acusada?” e “Qual a eficácia das acusações?” Desse modo, é

importante notarmos que nem toda acusação será capaz de atribuir rótulos e estigmatizar

grupos e indivíduos como transgressores ou desviantes. Para uma acusação ter maior

probabilidade de sucesso é preciso existir uma desigualdade de poder social entre tais grupos

ou indivíduos. O poder conferido pela atribuição de papeis sociais (professores-alunos, pais-

filhos, psiquiatras- pacientes) é um bom exemplo para aferirmos tais desigualdades (VELHO,

2013).

Mas por que acusamos? Ainda de acordo com Velho (2012), os sistemas de acusação são

importantes, pois delimitam fronteiras e exorcizam dificuldades sociais. As acusações de

desvio sempre possuem uma dimensão moral que denunciam a crise de certos padrões que

dão sentido ao estilo de vida de um grupo ou sociedade. Sendo assim, o desviante permite que

a sociedade se perceba pelo aquilo que não é e por aquilo que ela não quer ser. Não cabe aqui

compreendermos a noção de acusação de um ponto de vista puramente racional e com

objetivos claros e bem delimitados. É importante termos em mente que nem sempre os

envolvidos em processos acusatórios agem do ponto de vista estritamente racional, mas sim,

também a partir de um fluxo de emoções e afetos. Sendo assim, os acusadores muitas vezes

são motivados não apenas pela manipulação e exercícios de poder, mas também, por um estilo

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de vida internalizado através de emoções e de um conjunto de símbolos socializados (VELHO

2012).

Michel Misse (2008) assinala que a acusação social tem, ao menos, duas facetas:

(1) Numa, a acusação é um ato subjetivo, que não ganhou exterioridade, e se

dirige a si mesmo, seja para auto-acusar-se de um propósito ou ação, seja

como uma acusação subjetiva, íntima a conduta de outrem. Nesta faceta, a

acusação cumpre uma função auto-reguladora, que reforça a identidade

normativa do sujeito da experiência através da vigilância exercida sobre seu

auto-controle. (2) Na outra faceta, a acusação é exteriorizada, ultrapassa a

intimidade e ganha a esfera pública. Aqui ela pode se tornar também, e principalmente, um modo de operar poder numa relação social, dependendo

do modo como se desenvolverá (MISSE, 2008, p.14).

A partir dessas facetas, a acusação social poderá ainda ser classificada como interpeladora,

pois exige resposta, quando dirigida diretamente ao acusado, ou como uma agressão verbal,

que pode até estar banalizada em alguns contextos, mas que cumpre sua função. Quando

indireta, ela não é posta ao acusado, mas a outros que conhecem, ela não é para ele, mas sobre

ele, e pode ir da mera fofoca à denúncia e ao testemunho público (MISSE, 2008). No primeiro

caso a acusação recai sobre a transgressão, enquanto no segundo se acusa as subjetividades do

sujeito, sua personalidade, seu autocontrole e sua normalidade. Desse modo, a acusação se

especializa em “refinar a associação do sujeito a transgressão, reificando seu caráter ou sua

personalidade como homogeneamente transgressor ou não transgressor”. Ao investir no

acusado uma posição de fraqueza moral, aumenta-se o poder do acusador (MISSE, 2008,

p.16).

5 TOM ZÉ E O COMERCIAL DA COCA-COLA

No final de fevereiro de 2013, foi divulgado através da internet e de canais da TV fechada

uma propaganda da Coca-Cola narrada pelo músico e compositor baiano Tom Zé. O vídeo

com pouco mais de um minuto, fala sobre a Copa do Mundo de 2014 que acontecerá no Brasil

e a voz de Tom Zé narra de forma bem humorada e otimista como será o evento no país:

Muita gente se pergunta como vai ser a Copa, a Coca-Cola vai dizer como ela

não vai ser. Não vai ser a Copa da vuvuzela, do vidente, da celebridade, da

menina bonita, dos jogadores ou do cabelo da moda. Nem de quem tem ingresso,

nem de quem ganhou, nem de quem perdeu ou do jogador galã, isso é pouco.

Muito pouco para um país que tem tanto, porque o Brasil não é um país, é um

caldeirão. E aqui, a gente põe mais água no feijão. É por isso que a gente vai fazer uma Copa de todo mundo. E quando falo de todo mundo, é todo mundo

mesmo. Uma copa de um país que vive de braços abertos. E uma coisa é

verdade, onde cabe mais um, cabe 200 milhões. Porque o Brasil é um pais de

todo mundo, o futebol é o esporte de todo mundo e a Coca-Cola é a bebida de

todo mundo. Juntos vamos fazer a Copa do Mundo da FIFA ser a copa de todo

mundo (The Coca-Cola Company, 2013)

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A princípio não existe nada de errado com a propaganda que anuncia um produto, exaltando

as qualidades do país, através da voz de um ídolo nacional. Mas rapidamente usuários de sites

de redes sociais (SRS), passaram a criticar a participação do artista na publicidade do

refrigerante. Em meio a inúmeras críticas, duas categorias acusatórias emergiram como as

principais: vendido e traidor.

O músico de 77 anos, nascido em Irará, é um dos maiores representantes da música popular

brasileira. Também é um dos mais irrequietos e originais. Com uma produção musical

peculiar e inovadora, sua obra é caracterizada por experimentalismos provenientes da vertente

do tropicalismo, e por sua postura crítica e influenciada pela contracultura. Apesar de ser

referência para centenas de artistas nacionais e internacionais, Tom Zé nunca enriqueceu

através da música, nem manteve contratos com grandes gravadoras. Nos anos 1980,

experimentou o ostracismo e passou por profundas dificuldades financeiras que quase o

afastaram da música.

Apesar de possuir uma trajetória aparentemente coerente ao longo de toda sua carreira, Tom

Zé não foi poupado de acusações públicas. As críticas ao músico se iniciaram logo após o

comercial intitulado “Coca-Cola – A Copa de Todo Mundo” ser divulgado no Canal do

Youtube da Coca-Cola Brasil6 no dia 20 de fevereiro de 2013:

Figura 1 e 2: alguns exemplos de comentários deixados sobre Tom Zé no Canal da Coca-Cola no Youtube.

No Youtube, as acusações contra Tom Zé apesar de serem publicizadas não são diretamente

dirigidas a ele, mas sim a outros indivíduos que o conhecem e respeitam sua carreira visando

atingir sua reputação. As duas categorias acusatórias que emergem no Youtube são as mesmas

6 http://www.youtube.com/user/cocacola

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que permanecem em destaque durante todo o processo acusatório: vendido e traidor. Apesar

de tais palavras não serem sinônimas, ambas se referem de alguma maneira ao abandono de

causas e valores que deveriam ser preservados. Desse modo uma funciona

complementarmente à outra: o problema de se vender é trair seus ideais na busca de dinheiro

ou sacrificar (a troco de dinheiro) algo que se deveria preservar ou defender.

Acusar Tom Zé de vendido e traidor por conta da participação no comercial da Coca-Cola

revela uma incoerência muito maior de seus fãs do que do próprio artista, visto que essa não é

a primeira vez que o cantor, ao longo de sua carreira, participa de projetos publicitários. Nos

anos 1990, Tom Zé compôs jingles para o refrigerante Taí, que pertencia a Coca-Cola

Company. Em 2012, o artista teve sua turnê financiada pela empresa brasileira de cosméticos

Natura, sem que tais fato despertassem nenhum tipo de reação em seu público. Para

entendermos o porquê de tais acusações contra o cantor terem emergido apenas nesse

episódio, investigaremos brevemente o contexto que se insere o comercial: “Coca-Cola – A

Copa de Todo Mundo”.

Desde o anúncio do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014, em outubro de 2007,

inúmeras criticas a realização do evento em território nacional começaram a emergir. Ainda

que o Governo Federal do Brasil, as entidades de futebol brasileiras e internacionais e a mídia

tradicional insistam em apresentar a Copa do Mundo como uma oportunidade única e

imperdível para o Brasil, a população percebe o evento com desconfiança. Diversos eventos

relacionados à Copa do Mundo de 2014 se tornaram estopim de polêmicas em SRS nos

últimos anos. Dentre eles, destacam-se: o mascote do evento “Fuleco”; a marca – “trolada”,

por usuários de blogs e SRS, como alusão ao líder espírita Chico Xavier (ver Imagem 1); o

preço abusivo dos ingressos; os estádios entregues com uma qualidade inferior aos projetos

propostos; as imposições da Federação Internacional de Futebol (FIFA) ao Governo Federal

do Brasil; e a inauguração da máxima para tratar dos problemas nacionais “Imagine na Copa”.

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Figura 3: À esquerda a logo da Copa do Mundo 2014, denunciada através de “trolagem”, por usuários em blogs e

SRS, como alusão ao líder espírita Chico Xavier.

A marca de refrigerante Coca-Cola sempre esteve envolvida em polêmicas no país, devido a

sua “fórmula secreta”, possíveis riscos a saúde e por ser considerada um forte símbolo do

capitalismo, que representa a cultura imperialista norte-americana. Trazida ao Brasil em

meados dos anos 1940, não coincidentemente, a Coca-Cola começou a se popularizar no país

ao patrocinar a Copa do Mundo de 1950. A aceitação do refrigerante por aqui não foi

imediata e nunca se tornou unânime. Antes de sua chegada, os refrescos eram vendidos em

garrafas escuras e tinham sabores e cores reconhecíveis, como laranja e limão. Os brasileiros

estranharam a cor escura e o sabor da Coca-Cola, vendida em garrafas transparentes, levando

a empresa a realizar operações maciças de degustação para atrair o consumidor.

Nas décadas seguintes, a Coca-Cola se tornaria símbolo do poder global dos americanos:

armas da propaganda política e ideológica, na época da Guerra Fria. Símbolo da sociedade

capitalista, os refrigerantes se transformaram em pilares do american way of life, sendo a

Coca-Cola um dos principais representantes desse modo de vida. A simples união da Coca-

Cola e Copa do Mundo em um comercial, provavelmente, seria motivo suficiente para uma

enxurrada de críticas de parte do público brasileiro. Porém, a participação de Tom Zé acabou

potencializando a revolta e direcionando a maior parte das críticas a sua moralidade.

Em março de 2013, as críticas ao músico já haviam se espalhado através de blogs e sites de

redes sociais e os fãs do cantor resolveram expressar sua indignação na página de Tom Zé

mantida no Facebook:

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Figura 4: Alguns exemplos de comentários deixados na fanpage de Tom Zé sobre sua participação no comercial

da Coca Cola.

Os comentários publicados na fanpage de Tom Zé mostram a princípio um não entendimento

do porquê de sua participação em tal comercial. Como é possível observar na Figura 3, seus

fãs não questionam a participação de Tom Zé em uma publicidade qualquer, mas sim em uma

publicidade da Coca-Cola, que acusam de ser a representante de um imperialismo cruel. Fãs

indignados com a narração de um comercial em prol da Copa do Mundo de 2014 também

manifestaram sua insatisfação, mas de forma menos freqüente:

Figura 4: Exemplo de comentários deixados na fanpage de Tom Zé sobre sua participação no comercial da Coca

Cola.

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As acusações circuladas através da página do Facebook do cantor são interpeladoras, ou seja,

são diretamente dirigidas ao acusado e exigem uma resposta. Cabe observar que são os

indivíduos que se identificam como fãs de Tom Zé que iniciam e mantém o sistema de

acusações, revelando, para além de um fluxo de emoções, o poder social que os fãs exercem

sob a figura pública do cantor. Fãs que independemente de qualquer outro fator, acreditam

que não devem ter suas expectativas frustradas por seu ídolo. Tom Zé ao se vender as forças

do capitalismo se torna um desviante perante as expectativas do grupo de fãs que se identifica

com o cantor por sua “carreira independente e estilo de vida alternativo”. Conforme Velho

(2012) nos lembra, as acusações de desvio sempre possuem uma dimensão moral que

denunciam a crise de certos padrões ao estilo de vida de um grupo. Sendo assim, o grupo de

fãs de Tom Zé, se percebe como moralmente superior ao ídolo através daquilo que ele não

quer ser, nesse caso, um vendido, um traidor, um capitalista cruel, um americanizado.

Preocupado com a repercussão do caso, Tom Zé publicou no dia 8 de março de 2013 uma

resposta pública:

Pois é, pessoal, estou preocupado. Eu dou importância à opinião de vocês. Essa

alegria sempre me acompanhou. Quando o anúncio saiu na tv, imaginei que até

as opiniões contrárias eram uma espécie de comemoração por eu aparecer com

status de locutor de uma propaganda grande. Mas agora, quando perco o sono

por causa do assunto... não, agora eu estou preocupado! O apoio de vocês sempre

foi uma base de sustento. Será que uma alegria nascida do privilégio de até hoje,

aos 76, ter vivido dessa profissão de músico e cantor, me fez pensar que eu

poderia afrontar essa sustentação? É curioso que quando fui consultado sobre o

anúncio nem pensei nessa probabilidade. No ano passado meu disco fora patrocinado pela Natura e como eu nunca tinha recebido patrocínio desse tipo –

nem de nenhum outro - , cara, eu me senti como um artista levado em conta!

Para profissionais de meu tipo as gravadoras são agora inalcançáveis. A Trama,

de João Marcello Bôscoli, me deu grande apoio nos anos 90 e até Estudando o

Pagode, em 2004. Mas em Danç-Êh-Sá”, já dividimos as responsabilidades. Em

2008 Estudando a bossa foi muito ajudado pela Biscoito Fino; Agradeço, mas

ficou difícil continuar lá. No ano passado o apoio da Natura me deu tanta

confiança pessoal que ousei fazer o Tropicália Lixo Lógico.

No lançamento de Danç-Êh-Sá, em 2005, o resultado foi de extremos. A

gravadora francesa teve um ódio tão grande do disco que quase perco até a

amizade de Henri Laurence, que lá me lançava pela Sony. Nos E.U.A. houve

comentários apaixonados na crítica, mas Yale Evelev recusou o disco na Luaka Bop. Logo a seguir a mesma Luaka Bop me respondeu com entusiasmo ao

Estudando a bossa de 2008 e depois lançou o super set box de vinis com os 3

Estudando... E o ... Lixo Lógico recuperou também a amizade de Henri

Laurence. Toda essa dança de lançamentos e esse céu-e-inferno com os editores-

lançadores é própria desse setor onde não devo nem quero relaxar o arco-tenso-

da-ousadia. Mas nos dias atuais vivemos a era da internet e a venda de disco

passou a ter um peso insignificante. Já o papel desses lançamentos, em termos de

divulgação, é muito eficiente.

Voltemos ao presente. Atualmente sinto paixão pela retomada do projeto dos

instrumentos experimentais de 1972. Com a eficiente colaboração do engenheiro

Marcelo Blanck, começamos a desenvolver alguma tecnologia, mas com

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recursos parcos, insuficientes. Os resultados estão nos animando muito. Aí

entrou o anúncio da Coca-Cola que, mesmo sem ela saber, patrocinaria boa parte

da pesquisa. Será que o uso dos recursos obtidos com o anúncio muda a

avaliação de vocês? Madrugada de sexta, 8 de março, 6h22 (TOM ZÉ, 2013,

online).

A carta publicada por Tom Zé em sua página obteve repercussão imediata no Facebook e

serviu de base para algumas matérias e colunas sobre o assunto na mídia impressa e online.

Mais de 2.000 usuários curtiram a publicação do cantor, que recebeu cerca de 800

comentários de crítica, mas também de apoio:

Figura 6: Exemplo de comentários críticos publicados na reposta do cantor ao caso Coca-Cola.

Figura 7: Exemplo de comentários de apoio publicados na reposta do cantor ao caso Coca-Cola.

A resposta pública de Tom Zé enfraqueceu os sistemas de acusação que se valiam da

categoria vendido e traidor. Ao explicar que a coisa mais importante de sua carreira eram os

seus fãs, e por isso era fundamental ter o apoio deles, o músico apaziguou os ânimos e

conseguiu uma abertura para o diálogo. Em sua resposta pública, Tom Zé reafirma a trajetória

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de sua carreira e comunica a decisão de doar o dinheiro recebido, a fim de se livrar dos rótulos

conferidos a ele. Previsivelmente Tom Zé não se identifica como vendido e traidor e faz

questão de explicar o porquê não se reconhece enquanto possuidor de tais atributos. A

tentativa do público de enquadrá-lo em um tipo social no qual ele não se reconhece é uma

acusação da qual ele se ressente e procura se desvincular.

É interessante perceber que os sistemas de acusação do caso não cessaram com a publicação

da resposta de Tom Zé, apenas mudaram de foco. Os usuário do Facebook deixaram (ou pelo

menos diminuíram) as acusações contra o cantor e passaram a se acusar mutuamente.

Divididos entre os que apóiam o cantor e os que permaneceram irredutíveis em suas

indignações, as interações passaram a ser pautadas em novas categorias de acusações

alienados e hipócritas. Naturalmente, os alienados seriam os que apóiam Tom Zé mesmo

após ele ter se vendido e traído seus ideais. Enquanto os hipócritas seriam aqueles que

continuaram criticando o cantor, mas que supostamente bebem Coca-Cola e se vendem no seu

dia-a-dia por muito menos.

Sendo assim, as acusações em torno de Tom Zé, revelam a heterogeneidade, a polarização de

focos de interesse (contra e a favor) e as disputas internas do grupo de fãs. Entretanto, essa

oposição acirrada se mostra útil a conservação do vinculo social dos fãs reunidos em torno da

página do cantor no Facebook. Tal grupo fortalece sua unidade através do antagonismo

deflagrado pelo sistema de acusações. Nesse caso, o conflito pode ser visto como algo

positivo ao grupo – uma força poderosa de agregação social.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisamos neste artigo, alguns elementos que se mostraram relevantes para compreender os

sistemas de acusações em sites de redes sociais (SRS), sobretudo no Facebook, tais como,

interações sociais, sites de redes sociais, desvio, acusação social, dentre outros. A opção pelo

estudo de caso se deveu ao fato de que o episódio “Tom Zé e a Coca-Cola” é emblemático

para tentarmos compreender os sistemas de acusação social informais, assim como as

tentativas de imposição moral por parte de grupos sociais. A deflagração de sistemas

acusatórios em ambientes online pode gerar danos consideráveis para indivíduos, sejam esses

famosos ou anônimos, e grupos conectados rede, notadamente perseguidos e estigmatizados

socialmente. O anonimato, a hiperconexão dos grupos e a distância física entre os usuários de

tais sites, colaboram com a prática e potencializam os danos causados pelas acusações. Sendo

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assim, é preciso observar com cuidado os contornos que tais práticas conflituosas e ao mesmo

tempo conformadoras de grupos adquirem em tais ambientes.

Apesar de ter sido bastante polêmico, o caso “Tom Zé e a Coca-Cola” se torna ainda mais

interessante por ter sido conduzido pelo músico de uma forma que diluiu as acusações. Além

de propor o diálogo com seu público através da sua página de fãs, Tom Zé lançou no inicio do

mês de maio de 2013 o álbum “Tribunal do Feicebuque” – ao qual o título desse trabalho faz

referência –, no qual ironiza e busca desconstruir toda a polêmica. Ao apelar para sua

criatividade e inventividade, Tom Zé, mais uma vez se torna merecedor do rótulo de gênio, o

qual parte dos fãs lhe atribuem, e encerra o caso, desvinculado dos processos acusatório que

“tiraram seu sono”, durante o mês de março. Porém, nada garante que qualquer novo deslize

seu ou de qualquer outro usuário de SRS, possam ativar e reativar categorias acusatórias a

qualquer momento.

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