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1 UNIVERSIDADE ESTACIO DE SÁ – UNESA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DIREITO PÚBLICO E EVOLUÇÃO SOCIAL JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO MEIO DE ASSEGURAR MAIOR EFETIVIDADE NA SOLUÇÃO DE CONFLITO NO CURSO DA EXECUÇÃO PENAL. SILVIA RODRIGUES DA SILVEIRA SAVERIO RIO DE JANEIRO JULHO/2008

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UNIVERSIDADE ESTACIO DE SÁ – UNESA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

DIREITO PÚBLICO E EVOLUÇÃO SOCIAL

JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO MEIO DE ASSEGURAR MAIOR

EFETIVIDADE NA SOLUÇÃO DE CONFLITO NO CURSO DA EXECUÇÃO

PENAL.

SILVIA RODRIGUES DA SILVEIRA SAVERIO

RIO DE JANEIRO JULHO/2008

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SILVIA RODRIGUES DA SILVEIRA SAVERIO

JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO MEIO DE ASSEGURAR MAIOR

EFETIVIDADE NA SOLUÇÃO DE CONFLITO NO CURSO DA EXECUÇÃO

PENAL.

Dissertação apresentada como requisito para obtenção do título de Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Orientador: Prof. Rogério José Bento Soares do Nascimento

RIO DE JANEIRO JULHO/2008

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO MEIO DE ASSEGURAR MAIOR

EFETIVIDADE NA SOLUÇÃO DE CONFLITO NO CURSO DA EXECUÇÃO

PENAL.

SILVIA RODRIGUES DA SILVEIRA SAVERIO

Avaliada e aprovada por todos os membros da Banca examinadora foi aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Direito como requisito parcial à obtenção do título de

MESTRE EM DIREITO

Rio de Janeiro, ________ de__________ de 2008.

BANCA EXAMINADORA

___________________________ Prof. Dr.

Presidente Universidade Estácio de Sá

____________________________ Prof. Dr.

Universidade Estácio de Sá

__________________________ Prof. Dr.

Universidade

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SAVERIO, Silvia Rodrigues da Silveira. JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO MEIO DE ASSEGURAR MAIOR EFETIVIDADE NA SOLUÇÃO DE CONFLITO NO CURSO DA EXECUÇÃO PENAL. Prof. Orientador: Rogério José Bento soares do Nascimento. Rio de Janeiro: UNESA, 2008. RESUMO – Esse trabalho contém uma abordagem sobre o impacto da justiça restaurativa no sistema de justiça criminal brasileiro, com uma introdução conceitual à idéia da Justiça Restaurativa e às diferenças entre a justiça restaurativa e a justiça criminal convencional. Abrange, também, a questão da sustentabilidade do paradigma e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro, com considerações sobre o papel dos operadores jurídicos. O autor procura demonstrar que, se observados os princípios, valores e procedimentos da justiça restaurativa e as peculiaridades jurídicas do país, é viável implementar a justiça restaurativa em casos de condenações e paralelo a estas, a partir da legislação vigente, embora admita a necessidade de introduzir na legislação normas permissivas das práticas restaurativas. O processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles). Palavra chave: Justiça Restaurativa; mediação penal ABSTRACT – The content of present work is an approach to the impact that restaurative justice causes to the system of criminal justice in Brazil, comprising a conceptual introduction to the idea of Restaurative Justice and the differences between that aspect of justice and the conventional criminal justice. It comprises, also, the question respecting the dependability of the standard and its compatibility with the Brazilian legislative prescriptions, with considerations about the role performed by the operative agents. The author seeks to demonstrate that, if the principles, values and prodecures of restaurative justice are observed and so the juridical peculiarities prevailing in Brazil, it is possible to implement the restaurative justice in cases of condemnations and, paralleling them, starting from the ruling legislation. However, it is necessary to admit the need to introduce in the legislation permissive rules to restaurative practices. The restaurative process means any process in which the victim and the offender, and, whenever appropriate, any other individuals or members of the affected community by a crime, all participate actively in the resolution of the questions originating from the crime, generally with the aid of a facilitater. The restaurative processes mey include mediation, conciliation, fammily meeting or conferencing and sentencing circles.

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SUMÁRIO 1. Introdução 06 2. A Origem das Penas 09 3. As garantias jurídicas e o direito ao processo 12 4. O poder de punir 16 5. Processo, procedimento e execução da pena 31 5.1 O processo como meio de acesso à ordem jurídica justa 33 5.2 Conceito de processo 37 5.3 A teoria do procedimento 40 5.4 A teoria do procedimento em contraditório 43 5.5 Processo e procedimento: conceitos interligados 43 5.6 A instrumentalidade garantista do processo de execução penal 45 5.7 Natureza e objeto da execução penal 47 5.8 A quebra do paradigma punitivo 57 6. Justiça restaurativa 62 6.1 Premissas 62 6.2 A proposta restaurativa 64 6.3 Consultando o direito estrangeiro 67 6.4 O desenvolvimento de medidas e sanções comunitárias 72 6.5 Algumas medidas e sanções comunitárias desenvolvidas no sistema franco-belga.

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6.6 A necessidade de uma nova abordagem 79 6.7 Vitimologia e movimento vitimológico 84 6.8 mediação penal: Projeto Belga, uma resposta às necessidades das vítimas

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6.9 Detenção restaurativa: o modelo belga 96 7. Considerações Finais 111 8. Bibliografia Consultada 116 9. Anexos 120

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1. INTRODUÇÃO

A evolução social, política e científico-tecnológica, movimento que

marcou o processo de civilização, denota características que revelam a

permanente insatisfação humana. Em virtude dessa vitalidade incontrolável e

quase ilimitada, nós, humanos, lançamo-nos na busca da superação de limites

e de novos horizontes, nas mais diversas áreas e campos do conhecimento.

Em síntese, a própria natureza de insatisfação humana revela sua outra

face conservadora que com freqüência, parece preferir permanecer na

tranqüilidade da segurança, apegada ao status quo ante, em lugar de enfrentar

o desafio e buscar solução mais viável, porém desconhecida e ameaçadora.

Seria de grande proveito que essas transformações fossem automáticas

e indolores para todos. Porém a evolução nem sempre resulta de processo

simples e tranqüilo; por vezes as mudanças no âmbito jurídico-social são de

aceitação até mais difíceis do que nos demais grupos sociais, talvez pela

noção de segurança, que está sempre subjacente ao mundo do direito.

Até pouco tempo, as sociedades ocidentais vinham utilizando punições,

normalmente vistas como a única forma eficiente de disciplinar aqueles que se

comportavam mal ou cometiam crimes. Além disso, nesse sistema de justiça

penal que simplesmente pune os transgressores e desconsidera as vítimas,

não leva em consideração as necessidades emocionais e sociais daqueles

afetados por um crime, sendo certo que este causa dano as pessoas e

relacionamentos, devendo ser reparado ao máximo.

Questionar a forma como se exerce justiça tem repercussões não

apenas no campo da Justiça formal, aquela praticada institucionalmente,

através do Poder Judiciário, mas se revela de profundo impacto no âmbito

cultural e das práticas sociais. Disso decorre do fato de que, em regra,

predomina os métodos tradicionais de fazer justiça que são transmitidos ao

longo das gerações.

Assim, a justiça restaurativa é uma nova maneira de abordar a justiça

penal, que enfoca a reparação dos danos causados às pessoas e

relacionamentos, ao invés de punir os transgressores. É um processo

colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime.

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A essência da Justiça restaurativa é a resolução de problemas de forma

colaborativa. Práticas restaurativas proporcionam, àqueles que foram

prejudicados por um incidente, a oportunidade de reunião para expressar seus

sentimentos, descrever como foram afetados e desenvolver um plano para

reparar os danos ou evitar que aconteça de novo. A abordagem restaurativa é

reintegradora e permite que o transgressor repare danos e não seja mais visto

como tal.

O referencial teórico da Justiça Restaurativa está fundado no

reconhecimento de que o sistema punitivo tradicional concentra-se

excessivamente nos papéis de atores estatais (policial, promotor, juiz) e na

figura do acusado (e seu defensor), ao mesmo tempo em que remete a

considerações abstratas a respeito da transgressão ou não da norma pelos

fatos ocorridos no passado, que se ocupa de reconstituir para então punir.

O sistema de justiça restaurativa tem como objetivo não apenas reduzir

a criminalidade, mas também o impacto dos crimes sobre os cidadãos. A

capacidade da justiça restaurativa de preencher essas necessidades

emocionais e de relacionamento é o ponto chave para a obtenção e

manutenção de uma sociedade civil saudável.

Nesse trabalho propomos uma teoria conceptual de Justiça

Restaurativa. Não é proposta como uma forma de justiça alternativa, mas como

uma solução paralela, que deve conviver com a justiça tradicional, visto ser

aplicável em circunstâncias peculiares, pois depende fundamentalmente da

admissão pelo transgressor quanto à verdade dos fatos, bem como da

concordância de todos os interessados na solução do problema. Todos

assumem a responsabilidade de produzir uma solução de consenso, que

respeite igualmente as necessidades de cada uma das partes envolvidas.

Desse modo, todos os afetados pelo crime têm papéis e

responsabilidades nesse processo e devem, por isso, trabalhar coletivamente

em torno do impacto e das conseqüências do delito. A restauração, a solução

de problemas e a prevenção de males ulteriores deve ser enfatizado no

programa. A idéia é buscar restaurar os relacionamentos em vez de

simplesmente concentrar-se na determinação de culpa.

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O proposto aqui é a aplicação restaurativa após a sentença

condenatória, no curso da execução da pena, sobretudo como um

procedimento processual paralelo aos procedimentos de livramento condicional

e progressão de regime de pena, sendo que a grande inovação do projeto é

conferir poderes de legitimidade à comunidade, afastando, em parte, o controle

judicial e do executivo na gerência de medidas contra os apenados, de sorte

que o sistema formal se converta numa alternativa de controle no caso de a

ação comunitária não se revelar suficiente.

Nessa vertente, procura-se o acesso à justiça mais amplo e efetivo. Com

efeito, transformar procedimentos ou flexibilizá-los, em regra, é uma tendência

da modernidade processual, mas que não inibe ou esgota o paradigma da

litigiosidade. Entretanto, mudar o foco para a prática restaurativa do direito,

fundada no discurso persuasivo, na reparação negociada entre cidadãos

dotados de igual liberdade para assumir responsabilidades, pode vir a

suplementar a atuação estatal coercitiva.

A realidade vivida pelo homem contemporâneo, em todas as esferas da

sociedade e, principalmente, no seio da instituição judiciária, foco de nossas

reflexões e preocupações, torna imperativa a necessidade de profundas e

urgentes mudanças. Em um modelo democrático, a reflexão, o debate e a

discussão contribuem para o esclarecimento de todos e, principalmente, para o

amadurecimento de soluções criativas e eficazes.

Diante do exposto, justifica-se o presente estudo, por meio do qual,

pretende-se, entre outros objetivos, contribuir para superar o preconceito em

relação à justiça restaurativa. Segundo esse diapasão, acredita-se ser possível

retirar os operadores/pensadores do Direito da tendência a uma visão única,

impelindo-os a entrar em sintonia com a evolução e demandas mais elevadas

da sociedade.

Trata-se de tarefa das mais árduas, levando-se em consideração a

tendência humana à resistência do desconhecido. Porém, o direito em geral

está em transformação, sobretudo o direito penal repressivo, sendo este

momento de crise, dentro de um modelo democrático, oportuno para a reflexão,

o debate e o amadurecimento de soluções criativas e eficazes.

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2. A ORIGEM DAS PENAS

Abordar o caráter histórico da pena é atrelá-la a contextos

socioeconômicos no qual ela teve seu advento, sua formulação, mudança ou

extinção. Enfim, é necessário captar e entender a ideologia de fundo em que a

pena é formulada, para atingirmos sua função teleológica.

O processo histórico aqui exposto abordará apenas superficialmente a

transformação da pena ao longo do tempo e das idéias. Assim o olhar

panorâmico atem-se do industrialismo adiante, de onde o controle social

deixou de figurar no campo abstrato do conhecimento e passou a concretizar

como meio ideológico material-positivista, dando origem às codificações

modernas.

Com as mudanças trazidas no bojo da industrialização vê-se na

supremacia da aglomeração urbana a característica mais marcante. O homem,

agora livre do controle dos senhores feudais, aglomera-se nas cidades. A

criação de sociedades comerciais, deliberando novas regras, configura-se

como novo paradigma, fundamentando no comércio a sua prática. O comércio

pressupõe o trabalho e beneficiamento de produtos para a venda e produção

de riquezas como seu objetivo primário.

Entretanto, o simples fato de estar o homem no âmbito da cidade não

lhe garantia a sobrevivência. Com o aumento numérico de indivíduos

disponíveis, houve uma queda na taxa de procura de mão de obra. Esta

diminuição criou uma margem populacional desvinculada dos meios de

produção, e como toda população, possuía necessidades. Evidenciava-se uma

escolha a esta população marginalizada na satisfação de suas necessidades

primárias, em vista da ausência de recursos à época.

Assim, surgiu necessidade de controle social, em sua forma primitiva.

Como a sociedade comercial tinha no corolário de seu paradigma a liberdade

contratual, o direito repressor toma esta forma, decorrendo daí um dispositivo

abstrato novo, a indenização.

O Estado assume lugar de signatário junto ao indivíduo, e a

promulgação dos direitos universais do homem implica uma cláusula que o

Estado deve obedecer em face do indivíduo. Os limites que o homem

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experimentava diante dos outros homens eram incorporados como deveres

diante do Estado, pois este representava em tese a coletividade.

Uma vez que as massas destituídas de bens a fim de indenizar a

violação de cláusulas contratuais não dispunham de patrimônio, retirava-se

deles, como medida indenizatória, a única coisa que dispunha: a Liberdade.

Assim surge a pena, corporificada como forma de suprir a ausência de

bens para indenização por violação de deveres. A prisão até então fora apenas

uma medida preventiva, pois as penas eram, sobretudo, antes do advento do

contratualismo industrial, corporais. Tais são, em linhas gerais, o processo de

desenvolvimento das penas, desde a ruptura com o sistema feudal até a

atualidade.

O pensamento filosófico pós contratualista, voltou-se a bases idealistas

e parece ter lançado mão de conceitos antigos cuja ressignificação foi de plano

ideada pelos pensadores alemães.

Assim, a pena para Hegel é conseqüência lógica, de caráter retributivo,

e como tal, guarda justificação dialética. Logo, o delito é a negação do direito, e

a pena a negação do delito, e neste método, como negação da negação

constitui uma afirmação, a pena é a afirmação do direito.

Dando confirmação ao pensamento de Hegel, de que uma afirmação

tem em seguida uma negação mensurada na mesma proporção, surge uma

corrente irracionalista que se justifica numa visão totalmente distorcida da

democracia, conhecida como direito penal popular. Neste âmbito, levanta-se

Nietzsche em defesa da lei natural de caráter evolucionista, onde a seleção

natural do mais forte se impõe de modo cru e o “Estado” é um contrato entre os

mais fracos contra o domínio dos mais fortes.

O pensamento de Marx descortinou uma nova teoria do delito, fazendo

uma releitura crítica e enviesada da obra de Hegel. Assim, o indivíduo que

incorresse em condutas tidas como criminosas não deveria ser punido, posto

que reproduzisse no Âmbito individual as tensões existentes no Âmbito social.

Antes deveria-se observar e combater as raízes anti-sociais do crime, de modo

que o indivíduo pudesse dar vazão à satisfação de suas necessidades,

possibilidade que o capitalismo excluía de plano, uma vez que o bem estar de

uma minoria só era possível enquanto alienação de uma maioria. Em suma, o

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delito era visto como resultado das tensões sociais, da contradição entre

classes, e deste modo, era resultado das desigualdades.

Desse modo, é função do Estado legitimar a supremacia da classe

dominante, legislando subservientemente a esta classe e imprimindo as leis

penais a ótica inerente a ela, positivando condutas que recairão mais

facilmente sobre a classe dominada. Isso facilitaria a punibilidade, da qual

decorre a marginalização, criada em função da própria lei.

Nesse contexto, nasce o positivismo de Conte e adaptado no âmbito

jurídico por Hans kelsen, reproduzindo a ideologia industrial capitalista. Datam

desta época os conceitos legados pelo nosso sistema penal, tendo em linhas

gerais os pressupostos evolutivos do conceito de pena.

Ocorre que, o direito penal não é utilizado como última alternativa, mas é

a alternativa mais utilizada no trato com as classes marginalizadas, e foi criado

especialmente para elas. Assim, segundo a teoria materialista do desvio não há

prática legislativa neutra e a pena está em estrita relação com o modo de

produção Neo-Liberal. Aumenta-se a tecnologia, aumenta-se o desemprego,

aumenta-se a marginalização, aumenta-se a punibilidade. A sociedade –

orientada pelos meios de comunicação de massa que atendem aos

movimentos de “lei e ordem” – pede mais severidade punitiva: na mesma

proporção em que se produz mais bens de consumo ou de capital, se produz

mais crimes e as penas são alargadas.

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3. AS GARANTIAS JURÍDICAS E O DIREITO AO PROCESSO

O procedimento restaurativo, para subsistir juridicamente, jamais poderá

contrariar os princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais – violando

o princípio da legalidade, igualdade proporcionalidade e da presunção de

inocência. Do contrário o procedimento e seus atos resultarão naturalmente

inexistentes, nulos ou ineficazes, portanto inaptos para irradiar efeitos no

mundo jurídico.

É forçoso reconhecer que as garantias do processo representam o maior

“nó a desatar” presente no procedimento restaurativo, posto que este não é

expressamente previsto na lei como um devido processo legal no sentido

formal. Nas formas de justiça negociada a verdade e a justiça ocupam, quando

muito, um segundo plano.

Sabe-se que, a renúncia ao direito penal ou a adoção de práticas

alternativas é muito pior que o próprio direito penal que está alicerçado sob

bases dos princípios garantistas, e que essa informalização da justiça gera

diminuição de garantias, podendo implicar em déficits de legalidade ou de

imparcialidade, pois o que se pretende é contornar os estritos atalhos dos

princípios de igualdade e generalização das decisões.

Tal advertência deve ser considerada ao lidar com justiça restaurativa.

Entretanto, tomou conta da justiça penal o hábito de punir, ou seja, é a

instrumentalização do direito penal para manter o distanciamento e isolamento

de determinadas pessoas rotuladas inimigos sociais. No mais, a redução da

violência por meio da atuação da justiça punitiva é um ideal que não se

sustenta.

Portanto, deve ser rigorosamente observados todos os direitos e

garantias fundamentais de ambas as partes, a começar pelo princípio da

dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da proporcionalidade, da

adequação e do interesse público. Outros princípios fundamentais aplicáveis ao

direito penal formal, tais como o da legalidade, intervenção mínima, lesividade,

humanidade, culpabilidade, entre outros, devem ser levados em consideração.

A justiça restaurativa apenas pretende abater esse sentimento punitivo e

preservar a evolução da vida comunitária.

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A abordagem restaurativa, com alto controle e alto apoio, confronta e

desaprova as transgressões enquanto afirmando o valor intrínseco do

transgressor, livrando-o de rótulos e do estigma marginalizante.

Falsa é a premissa de que há necessidade de castigo e de que a justiça

punitiva opera sem margem de erro e num alto índice de respeito à legalidade

e à igualdade. A Constituição tem sido relativizada por leis penais e

processuais penais e os discursos de segurança pública pressionam a

substituição do processo penal pelo direito processual de polícia.

Neste diapasão, a produção acadêmica garantista, demonstra

preocupação com a contaminação policialesca da jurisdição e com os vícios de

ambos os sistemas que não são controláveis nem remediáveis em outra sede.

E freqüentemente, dentro do sistema penitenciário, nos deparamos com as

vítimas da lentidão e do formalismo, da cegueira dos automatismos, de

procedimentos arbitrários que revelam que o Juízo não é mais um lugar de

verificação do material probatório compilado.

Quanto à compatibilidade do sistema garantista com o procedimento

restaurativo, ressalte-se o garantismo não veda ou fecha as portas a este;

Apenas faz crítica dura a tendência de negociação penal, que encurta e agiliza

procedimentos com enfraquecimento das garantias processuais, despenaliza

condutas ou inibe o contraditório com práticas persuasórias.

O que de fato mina a função garantista da jurisdição penal desdobra-se

em três ítens relevantes: a) a discricionariedade da adminsitração da justiça

penal, desvinculada de qualquer critério legal; b) a marginalização da fase de

debates; c) e a incerteza quanto a pena. Ora, a justiça restaurativa não

compreende aplicar diretamente a lei violada, tarefa que permanece e deve

permanecer nas mãos da justiça formal. Ela propõe uma imagem de

elaboração dos conflitos que não se situa na lei, nem fora da lei, mas sob a

insígnia da lei. Se o preceito contém descrição do que não se deve fazer, é sob

a descrição desse fato que ocorre o encontro entre o ofensor e a vítima. E é a

pena o ponto de partida do qual o sujeito vai debater maneiras restaurativas.

Não há privatização da lei. Os operadores do sistema restaurativista

estão vinculados a essas normas, que se expressam por princípios e regras

inderrogáveis. A validade de qualquer acordo oriundo de um procedimento

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restaurativo construído ao arrepio da Constituição e das leis é insustentável

juridicamente.

O procedimento combina técnicas de mediação, conciliação e transação

permitidas no contexto sistemático da legislação, com a diferença que se usará

a metodologia restaurativa, mediante a participação da vítima e do infrator no

processo decisório, quando for possível e for essa a vontade das partes.

Ainda, quanto à crítica as formas de justiça consensual, os

processualista pátrios Geraldo Prado (2002) e Aury Lopes Jr. (2002) 1defendem uma intervenção mais respeitosa aos direitos humanos e que não

atropele critérios de justiça e igualdade pela idéia de fazer “justiça rápido”.

Contudo, não é verdade que a justiça restaurativa se insira dentro de uma

lógica de celeridade e obtenção de resultado a qualquer custo, pelo contrário o

fator tempo não importa e a solução consensual ou o eventual acordo não são

as metas do procedimento. Mesmo assim, é mister reconhecer que a

banalização da violência pressiona a sociedade insegura no sentido único da

crença na repressão penal, sinalizando-o como único e principal instrumento

com potencial de obstáculo, tornando inócua qualquer ponderação de cunho

humanista e aqui, vale dizer, garantista, utilitarista ou restaurativista.

Logo, se a eficiência almejada consiste na redução da marginalidade,

quais os êxitos do modelo vigente de Justiça Penal? A eficácia do direito penal

depende da resposta sancionatória com severidade em grau máximo? Uma

justiça penal sem castigo seria obrigatoriamente violadora da Constituição e do

sistema processual penal?

Pois bem: as críticas dos processualistas pátrios procedem, mas elas se

lançam sob uma justiça negociada e estabelecem uma oposição entre

garantismo e utilitarismo.

A justiça restaurativa proporciona muitos resultados positivos para

vítimas e ofensores em relação ao impacto da atuação da justiça sobre eles

(ajuda o ofensor a entender o impacto do crime, facilita a reparação simbólica e

material à vítima e, principalmente, proporciona sentimento de solução do

problema. O direito ao processo mantém-se intacto no modelo de justiça

1 LOPES JR, Aury, Introdução Crítica ao Processo Penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004; PRADO, GERALDO. Sistema Acusatório:a conformidade constitucional das leis processuais penais. 2ª Ed. Rio de Janeiro:Lúmen Júris,2000.

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restaurativa, sendo a voluntariedade requisito básico; assim, o direito ao

processo, para ser pleno e realizável, deve incluir o direito de evitar o processo.

O fundamental é que a decisão de abdicar ao processo ocorra sob condições

adequadas, ou seja, em circunstâncias que o acusado não seja coagido,

forçado ou induzido a aceitar a proposta de discutir uma solução consensual e

tal decisão é que consolida o direito ao processo.

A plea bargaining do direito anglo-saxão, a transação penal e a

conciliação da Lei nº 9.099/95, são exemplos de justiça consensual que não se

aplicam a justiça restaurativa, uma vez que esta procura se distanciar de uma

negociação forçada sob ameaça de pena e de processo.

Assim, o que faz-se necessário é a integração entre um discurso crítico

e outro propositivo, entre o controle negativo e o controle positivo, construindo

o garantismo sobre uma base multidisciplinar, como a emancipação de todas

as necessidades reais, a proteção dos direitos fundamentais em face de todo

tipo de repressão, pois uma visão meramente “defensiva e formalística da

política de direitos” é insuficiente no cenário mundial de emergência repressiva

e presta-se, somente, a um garantismo de padrões, um pseudogarantismo, um

garantismo só penal.

Nessa ótica, a pena como elemento central da racionalidade penal

moderna funcionaria como um contra-estímulo ao crime ou como necessária

para revelar na sociedade o funcionamento da ordem normativa. De qualquer

forma impõe sofrimento e exclui a vítima, sem nada prevenir ou dissuadir da

prática da conduta proibida, sendo que a experiência dos anos em sistema

penitenciário permite dizer que o exercício da função punitiva sequer inibe a

reincidência. Esta resulta numa percepção maior de eficiência do sistema de

justiça e nos remete ao problema da necessidade de punir e qual é a sua

lógica dentro dessa visão equivocada que é a imagem bélica do direito penal.

Por fim, é mister ressaltar que, o sentimento de injustiça que um

prisioneiro experimenta é uma das causas que mais podem tornar indomável

seu caráter. Quando se vê assim exposto a sofrimentos que a lei não ordenou

nem mesmos previu, ele entra num estado habitual de cólera contra tudo que o

cerca; só vê carrascos em todos os agentes da autoridade: não pensa mais ter

sido culpado, acusa a própria justiça.

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4. O PODER DE PUNIR

É assente na doutrina penal o reconhecimento de que Kant é o pensador

referencial na discussão e fundamentação do modelo retributivo.

Se as discussões em torno deste modelo, no âmbito do direito, cingem-

se, no mais das vezes, às funções atribuídas à pena e à preocupação candente

por parte de Kant de que, ao ser punido, o homem não seja funcionalizado à

vista de outros fins que não a resposta à sua conduta, preservando deste

modo, sua dignidade enquanto homem, deixa-se comumente, a pergunta pelo

sentido da pena.

Se a função tem o significado técnico de papel e características

desempenhadas por um órgão num conjunto cujas partes são

interdependentes, ou a um sistema de causas centradas nos mesmos objetivos

gerais, o sentido é a idéia ou a intenção valorativa implicada no pensamento,

que ora pode se expressar em uma definição, ora em uma intuição simples. Se

para a primeira a pergunta volta-se ao “para quê da pena, se o segundo centra-

se no “por quê”

A pena deve, obrigatoriamente, trazer uma forte dose de utilidade social,

servindo como medida sócio-educativa que respeite a dignidade humana, ou

voltaremos ao ritual público de dominação pelo terror quando o poder de punir

sem possuir uma essência determinada, podia ser definido como “suplício do

corpo”, ou seja, o objeto da pena criminal era o corpo do condenado, mas o

objetivo da pena criminal é a massa do povo, convocado para testemunhar a

vitória do soberano sobre o criminoso, o rebelde que ousou desafiar o poder.

No pensamento marxista, a idéia de poder está ligada à de centralização

do poder nas mãos da classe dominante. Como forma diferente de pensar o

poder, Foucault2 define-o, rompendo com as concepções clássicas deste

termo, como dispersão. Para ele, o poder não pode ser localizado em uma

instituição ou no estado e não é considerado como algo que o indivíduo cede

2 FOUCAULT. Vigiar e Punir.Editora Vozes.1987

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ao soberano, mas sim como uma relação de forças. Ao ser relação de forças, o

poder está em todas as partes e interligando as pessoas.

De fato, o que nos ensina Foucault é justamente que a instituição de um

órgão que decida, sobre as partes litigantes, sobre o que é justo, tornando-se

um terceiro em relação ao conflito, subtrai-lhes toda a possibilidade de efetiva

autonomia e de solução de conflitos, colocando uma instância que liga justiça à

verdade, de cuja prolação se torna detentora.

Isso nos mostra o quanto a Justiça restaurativa nos oferece a

oportunidade de reflexão sobre como as relações de poder se estabelecem

entre indivíduos. Acentua a responsabilidade individual nesta tentativa de

encontrar fundamento de sua ação e, com isto, deixar de ser mero destinatário

de uma regra que lhe é estranha. Trata-se, portanto, de superar uma situação

em que a regra se mostra alheia e impessoal, em que falta ao homem a

capacidade de julgamento do justo de sua ação

Desse ponto de vista, o sistema punitivo seria um subsistema social

garantidor do sistema de produção da vida material, cujas práticas punitivas

consubstanciam uma economia política do corpo para criar docilidade e extrair

utilidade das forças corporais. As relações de produção da vida material

engendram as relações de dominação do sistema punitivo, orientadas para

construir o corpo como força produtiva, ou seja, como poder produtivo e como

força submetida , mediante constituição de um poder político sobre o poder

econômico do corpo.

O poder de punir, tende a desaparecer do Estado como elemento de

tormentos horríveis para dar lugar a nova ideologia da época (na segunda

metade do século XVII), descrita como disseminação, através das máquinas de

poder, nas quais o Estado perde sua substância para uma realidade visível no

campo social. O poder instala-se na horizontalidade do sujeito individualizado,

modelando seu corpo até à passividade.

A analítica do poder realiza um duplo movimento: primeiro destitui do

Estado o papel de sede do poder; depois, inaugura-lhe um novo lugar. Contra a

centralização do poder na forma de Estado, é apresentada uma nova

rematerialização de seu lugar; sua particularidade tem um caráter secundário e

subalterno, e pode ser visto no asilo, na clínica, na prisão.

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O poder não é assimilável a instituições, porque não existe mais um

centro material. Trata-se mais de relações entre indivíduos e classes,

indivíduos e instituições, polícia e prisão. As instituições são lugares de

intensificação das relações de poder.

Embora o poder seja localizável nas máquinas de poder, ele não se

reduz a elas, pois há duplo aspecto do poder: a parte visível e a invisível. A

visibilidade do poder são as instituições, as disposições das máquinas, como

formas terminais. O “dispositivo” é aquilo que fica invisível no interior do qual

circulam novas intensidades de poder, refletindo a paisagem mental de uma

época.

O poder é a estratégia das classes dominantes para produzir a ideologia

de submissão ao sistema penal que é definido como o instrumento de gestão

diferenciada da criminalidade e não de supressão da criminalidade, na medida

que pune com prisão as classes populares e estimula omissões e tolerância da

legislação para as ilegalidades da burguesia. Descreve a disciplina com o

objetivo de tornar o indivíduo dócil e útil e como o instrumento instituído pela

política de coerção para controle de sujeição do corpo.

Se não estamos à frente de uma concepção linear da existência, com

caráter evolutivo, tornando-se impossível que demos garantias de poder

controlar a vida em todos seus termos futuros, este comprometimento ganha

em simbolismos mais do que pela instauração de arranjos outros de existência,

pelo peso que recai em sua avaliação presente e em seu engajamento volitivo

para determinação do justo, pela grandeza de seu poder de construir o futuro e

que lhe dá o direito de julgar o passado sem ter de se soçobrar por causa dele.

Por isso, tal modelo não pode prescindir de um envolvimento

comunitário para sua resolução e da intervenção efetiva de uma rede de

atendimento fundada em políticas públicas voltadas a todos, que dê amparo às

necessidades outras que entrem em questão naquele primeiro momento. São

questões que, para além de uma mera divergência interpessoal, podem

envolver aspectos sociais que demandarão não apenas a compreensão por

parte da vítima, mas também da comunidade do entorno em que se dá o

conflito. Em jogo está outro modo de reflexão da justiça que passe da coerção

ao juízo sobre suas práticas.

19

Retomando a análise do poder não como processo de totalização,

centralização, mas como transversalidade, sugerindo o abandono de certo

número de postulados que marcaram a posição tradicional da esquerda:

propriedade, localização, subordinação, essência ou atributo, modalidade,

legalidade.

O postulado da “propriedade” declara que o poder pertence à classe que

o conquistou. O poder é menos uma propriedade que uma estratégia, cujos

efeitos não devem ser atribuídos a uma apropriação, aplicando-se mais as

disposições, manobras, táticas, técnicas, funcionamentos.

O poder não pode ser o privilégio adquirido ou conservado da classe

dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas. Essa nova

análise funcional não anula a existência das classes e suas lutas, mas as

distribuem num outro quadro, com outras paisagens, outros personagens,

outros procedimentos, diferentes daqueles assinalados na história tradicional.

O poder não possui homogeneidade, definindo-se pelos pontos singulares por

onde passa.

Pelo postulado da “localização”, o poder circunscrever-se-ia no Estado,

no interior de seus aparelhos, no qual os poderes privados seriam ainda

aparelhos especiais. O Estado aparece como efeito de conjunto, multiplicidade

de centros que se situam em níveis bem diferentes.

Uma das idéias do sistema punitivo afirma que as sociedades modernas

podem ser definidas como sociedades disciplinares. Elas não podem ser

identificadas com uma instituição ou aparelho, porque as sociedades

disciplinares são um tipo de poder que atravessa todos os aparelhos e

instituições, para ligá-los, prolongá-los, convergi-los de um novo modo.

A polícia se organiza sob a forma específica de um aparelho de Estado,

encarregando-se da manutenção da disciplina no espaço efêmero de um

campo social, tornando-se independente dos aparelhos jurídico e político.

A prisão não teve sua origem na estrutura jurídico-política de uma

sociedade, não dependeu de uma evolução do direito penal; enquanto

geradora da punição, a prisão dispõe de uma autonomia necessária, de um

suplemento disciplinar, que excede um aparelho de Estado

20

A visão funcionalista do poder postula um poder fora do Estado. Supõe

que o cidadão tenha aceito de uma vez por todas, numa espécie de contrato,

que as leis da sociedade poderá puni-lo em caso de rompimento do pacto.

Assim o poder de punir é uma função generalizada do corpo social e de cada

um de seus elementos, sendo problema tão somente a sua medida.

O postulado da “subordinação” encarnaria o poder no aparelho de

Estado e seria subordinado a um modo de produção, como uma infraestrutura.

Pode-se estabelecer uma relação entre os grandes regimes punitivos e

sistemas de produção.

Os mecanismos disciplinares não estão separados da explosão

demográfica do século XVIII; O crescimento de uma produção, que procura

aumentar seu rendimento e compor as forças extraindo dos corpos toda força

útil, não legitima remeter a uma determinação econômica.

Em última instância - a oficina ou a fábrica pressupõem estes

mecanismos de poder, agindo no interior do campo econômico sobre as forças

produtivas e as relações de produção.

As relações de poder não se encontram numa relação de exterioridade

com essas forças produtivas, e nem se situam na superestrutura. Estão

presentes no mesmo espaço em que se exerce a produção

Pelo postulado da “essência” ou do “atributo”, o poder teria uma

essência ou seria um atributo, quantificando aqueles que o possuem como

dominantes, e distinguindo-os daqueles sobre os quais o poder se exerce, isto

é, os dominados.

O poder não tem uma essência, porque é um conceito operatório; não é

atributo, trata-se mais de uma relação, um conjunto de forças, que passa tanto

pelas forças dominantes como pelas dominadas, constituindo a ideologia do

contrato social, em que a posição de membro da sociedade implica aceitação

das normas e a prática de infrações determina aceitação da punição.

Ao fazer a analise das noções de privado e público, Foucault 3 procura

encontrar mecanismos de poder, cujo modelo não é um aparelho de Estado,

pois o que está em jogo é o entrelaçar de interesses e táticas particulares em

públicos.

3 FOUCAULT, Michel, A verdade e as formas jurídicas, rio de Janeiro: Nau Editora, 2005

21

Sabe-se que no nascimento de nosso sistema correcional, a reclusão

determinada pela ordem do rei torna-se educativa, procurando menos

estigmatizar os maus indivíduos através do castigo físico, e mais conduzi-los

ao arrependimento pela privação da liberdade.

O interessante é que a arbitrariedade do rei não decorre de um atributo

de seu poder transcendente, mas brota da solicitação dos mais humildes

(parentes, vizinhos, colegas) que desejam o afastamento e a reclusão do

elemento perturbador, em suma, o apelo ao monarca absoluto é a saída para

resolver os conflitos familiares, conjugais ou profissionais.

Entre as razões invocadas para o internamento estão: desordem,

devassidão, embriaguez, vagabundagem, violência dos pais para com os filhos,

loucura. A coisa pública identifica-se com a ordem familiar e a família torna-se

assunto público. Essa privação da liberdade estabelece uma relação mais

próxima do rei com a gente humilde pela confissão de um segredo

Pelo postulado da “modalidade”, o poder agiria por violência ou

ideologia. No entanto, o poder não se opera pela ideologia, mesmo quando se

dirige às almas, e nem se exerce necessariamente pela violência e repressão,

mesmo quando recai sobre o corpo.

A violência exprime o efeito de uma força sobre qualquer coisa, objeto

ou ser; como relações de força com outra força, ou uma ação sobre outra ação.

Uma relação de forças é uma função do tipo “incitar, suscitar, combinar”; nas

sociedades disciplinares, a função é “repartir, seriar, compor, normalizar”.

O poder produz o real antes de reprimir, o verdadeiro antes de

ideologizar, abstrair. A repressão e a ideologia nada explicam, mas supõem um

agenciamento ou “dispositivo” no interior do qual podem operar; elas não

constituem o combate das forças, são apenas “a poeira levantada pelo

combate”.

A sociedade disciplinar utiliza técnicas que são simplesmente

denominadas “disciplina”. A disciplina é uma anatomia política do “detalhe”, é

dispositivo tático de poder, sustentado por uma racionalidade econômica ou

técnica. A disciplina torna-se arte e técnica de compor forças para obter um 1 É

aparelho eficiente, no interior do qual o corpo se constitui como peça de uma

máquina multisegmentar.

22

A tática é a forma mais elevada da prática disciplinar; é “saber” que

fundamenta a prática militar no século XVIII, desde o controle e o exercício dos

corpos individuais, até à utilização de forças mais complexas, ou seja, é a

própria ciência da guerra. Contudo, é possível que a guerra, como estratégia,

seja a continuação da política.

A política, pensada como modelo militar, apóia-se tanto em táticas como

em estratégias: por um lado, o exército-política representa a massa

disciplinada, dócil e útil que garante a paz e a ordem civil, pela disciplina tática

que controla os corpos e as forças individuais, por meio de uma técnica e de

um saber.

Por outro lado, a guerra-política representa a força real e efetiva, no jogo

das forças estratégicas entre os Estados. A ciência militar, para manejar a

espada vitoriosa, deve começar pela coerção individual e coletiva dos corpos.

Mais tarde, a vontade de saber desenvolverá as noções de tática e estratégia,

imbricando-as numa imanência entre saber e poder.

Pelo postulado da “legalidade”, o poder do Estado expressar-se-ia na lei

sendo esta conhecida, ora como um estado de paz imposto às forças brutas,

ora como resultado de uma guerra ou luta ganha pelos mais fortes. Nos dois

casos, a lei é definida pelo término imposto ou voluntário de uma guerra, e se

opõe à ilegalidade que passa a ser sinônimo de exclusão. Os revolucionários

não podem sequer reclamar de uma outra legalidade que passaria pela

conquista do poder e pela instauração de um outro aparelho de Estado.

A lei é sempre uma composição de ilegalismos que ela diferencia,

formalizando-os, sendo uma gestão de ilegalismos: alguns, que ela permite,

tornam possível o privilégio da classe dominante; outros, que ela tolera,

permitem a compensação das classes dominadas; e outros mais, que ela

interdita e isola, são tomados como objeto de dominação.

No século XIX, as mudanças da lei têm no fundo uma nova distribuição

de ilegalismos. Não só porque as infrações tendem a mudar de natureza,

portando mais e mais sobre a propriedade que sobre as pessoas, isto, porque

os poderes disciplinares recortam e formalizam de outra maneira essas

infrações, delineando uma forma original chamada “delinqüência”, e permitindo

um novo controle de ilegalismos

23

O ilegalismo não é um acidente, uma imperfeição mais ou menos

inevitável. A lei não foi feita para impedir comportamentos inadequados, mas

para diferenciá-los através de sua própria aplicação. A delinqüência é

produzida pelo dispositivo disciplinar da prisão, compreendendo um sistema

complexo, no interior do qual se pôde destacar quatro termos: 1) o suplemento

disciplinar da prisão; 2) a produção de uma objetividade, de uma técnica, de

uma racionalidade penitenciária como elemento desse saber; 3) a recondução

efetiva de uma criminalidade que a prisão deveria destruir, mas não o fez; 4) a

repetição de uma reforma que é isomorfa ao funcionamento disciplinar da

prisão.

O sistema carcerário é um complexo onde se encontram discursos,

arquiteturas, regulamentos coercitivos, proposições científicas, efeitos sociais

reais e utopias, programas para corrigir a delinqüência e mecanismos que, por

outro lado, a solidificam.

O objetivo mais geral do sistema carcerário estaria, aparentemente,

condenado ao fracasso, porque não conseguiria a recuperação do delinqüente,

reconciliando-o com a sua “humanidade” desviada. A instituição prisão, nos

anos 1960, resistiu tanto tempo no imobilismo, porque exercia funções precisas

no interior do corpo social, com a mesma maquinaria do panóptico de um

século atrás.

A penalidade, ou o poder de punir, simplesmente não reprime as

ilegalidades. Se a distribuição e aplicação da justiça privilegiam os interesses

de uma classe, não é porque o ato de punir pertença à classe dominante como

o lugar localizado de um aparelho jurídico-policial; trata-se mais de dispositivos

gestores dos mecanismos de dominação. As ilegalidades são mantidas e

reproduzidas pelo sistema penal; a lei e a justiça estabelecem a dessimetria de

classes, produzindo a delinqüência como uma forma nociva de ilegalidade, e o

delinqüente, como sujeito patologizado.

A discussão sobre o fracasso da prisão e sua manutenção resistindo

tanto tempo na imobilidade, encontra sua explicação na hipótese que afirma

que a instituição-prisão produziu a delinqüência, como forma economicamente

menos perigosa de ilegalidade. A delinqüência pode ser controlada, vigiada,

localizada, concentrada, isolada em relação a outras ilegalidades pela classe

24

dominante, tornando-se também um agente útil para os desvios ilícitos dessa

mesma classe, porque “a vigilância policial fornece à prisão os infratores que

esta transforma em delinqüentes, alvo e auxiliares dos controles policiais que

regularmente mandam alguns deles de volta para a prisão”.

O controle da delinqüência é feito através de táticas empregadas pelo

sistema polícia-prisão, que visam mais a diferenciar as ilegalidades do que a

regenerar os delinqüentes: táticas de controle através de um sistema de

documentação, fichamento, estatísticas, registros utilizados pelo poder, a partir

dos quais a delinqüência é transformada em discurso.

Dentro desse saber, os noticiários policiais, as literaturas de crimes

ganham o espaço público, atribuindo à delinqüência uma existência distante,

embora ameaçadora à vida cotidiana. Esse jogo de táticas e discursos produziu

múltiplos efeitos: hostilidade junto às camadas populares, análise política da

criminalidade com o deslocamento da origem da delinqüência para a

sociedade.

Nessa polêmica antipenal, uma teoria política teria surgido, atribuindo ao

crime uma valorização positiva, à medida que é efeito da “civilização”,

constituindo o crime o lado selvagem da sociedade. Sob essa ótica, a prisão

como aparelho disciplinador e construída para que o poder de punir recaia no

bem jurídico mais geral das sociedades modernas, mediante a supressão do

tempo livre, é um projeto fracassado e marcado por eficácia invertida: em lugar

de reduzir a criminalidade , introduz os condenados em carreiras criminosas,

produzindo reincidência e organizando a delinqüência.

Neste sentido, o crime é uma arma contra esse estado mais adiantado

da sociedade, impondo-se como força viva, vigor e futuro. Não há natureza

criminosa, mas jogos de força que, segundo a classe a que pertençam os

indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão. Deve-se ver, no crime, mais

que uma fraqueza ou uma doença, uma energia que se ergue, um poder de

agir que desafia todos os poderes constituídos.

O discurso da delinqüência traz à luz as estratégias e os jogos de força

que se opõem reciprocamente, a batalha que se trava entre a rebeldia do

delinqüente e os dispositivos disciplinares de controle. Em definitivo, não há

25

indivíduos com natureza criminógena e o crime é um jogo de forças, no qual a

posição de classes produz o poder e a prisão.

Contra a teoria de uma natureza humana, da qual o delinqüente se teria

desviado e que seria preciso resgatá-lo, levantam-se argumentos de que não

precisamos de um Direito Penal melhor, mas algo melhor que o Direito Penal.

A lei é menos um estado de paz que o resultado de uma guerra

vitoriosa: a lei é a guerra mesma, a estratégia dessa guerra em ato, da mesma

forma que o poder não é uma propriedade adquirida pela classe dominante,

mas o exercício atual de sua estratégia.

Assim, não basta só repensar certas noções clássicas, mas estabelecer

novas coordenadas para a prática: pensar a guerra, com suas táticas locais e

suas estratégias de conjunto que não procedem pela totalização, mas pela

transversalidade

O direito penal transformar-se-á numa multiplicidade de procedimentos

escravizantes, capazes de transformar delinqüentes e seus perseguidores em

atores sociais do mesmo tipo, atravessados por dispositivos de saber e de

poder.

A criminalização da delinqüência cumpriria a função de moralizar a

classe operária, mediante a aquisição de uma legalidade de base :

aprendizagem das regras da propriedade, o treinamento para a docilidade no

trabalho, a estabilidade na família, na habitação etc. Por outro lado essa

criminalidade de repressão, localizada nas classes oprimidas da população,

realizaria o papel de ocultar a criminalidade dos opressores, com suas leis

tolerantes, tribunais indulgentes e imprensa discreta.

O itinerário descrito não recupera a reconciliação com a humanidade, ao

contrário, permanecem as espoliações, mas moldados em instituições,

inaugurando uma nova anatomia política.

No Antigo Regime, a violência assume uma luta entre o soberano e o

culpado: sobre o corpo do criminoso se expõe a violência soberana do

soberano. O abrandamento e a humanização das penas, a passagem da

justiça arbitrária do Antigo Regime a um contratualismo (no qual toda pena é

proporcional ao delito cometido etc.) forma a superfície macroscópica de um

26

processo microscópio, constituído das tecnologias do corpo, de um poder-

saber.

Essa nova arte de punir instaurou uma nova representação jurídica: pelo

respeito à “humanização” do criminoso, e por essa mesma razão, este adquire

o direito à reintegração social. O criminoso torna-se sujeito jurídico objetivado,

subjugado. E essa relação Rei-súdito não se restringe mais aos corpos

singulares, a sua vida; As penas e a punição generalizada estendem seus

efeitos ao conjunto do espaço social.

Uma mutação desloca o alvo do crime, antes centrado na figura do Rei,

para a sociedade inteira, que se sente atingida pela ofensa recebida. A

dimensão da falta e a responsabilidade moral do súdito remete-se não mais à

soberania real, mas ao espaço público. O poder instala-se na horizontalidade

do sujeito individualizado, modelando seu corpo até à passividade e ocorre

uma transformação nas relações entre a regra e norma.

A norma designa sempre uma medida que serve para avaliar o que está

conforme a regra e o que a distingue; não está mais ligada à idéia de retidão,

esquadro, mas de “mediana” – a norma torna-se agora o parâmetro para opor

normal/anormal, “normalidade”, “normativo”, “normalização”, atravessando

uma multiplicidade de domínios técnicos e econômicos, assim, o conjunto das

ciências morais, jurídicas e políticas.

A partir do fim do século XIX, vão se refletir como ciências normativas as

disciplinas como “poder da norma”, desempenhando uma das principais

tecnologias de poder das sociedades modernas.

A difusão da sociedade disciplinar tem operado segundo três grandes

modalidades: 1) inversão funcional das disciplinas, ocorrendo a passagem da

disciplina compacta, voltada para funções negativas e mecânicas; 2)

proliferação dos mecanismos disciplinares; enquanto os estabelecimentos de

disciplina se multiplicam, seus mecanismos têm a tendência de se

desinstitucionalizar, sair das fronteiras fechadas onde funcionam e circulam em

estado livre (toda instituição torna-se suscetível de utilizar o esquema

disciplinar), não se dirigido somente aos que ela pune, mas pondo-se ao

serviço do bem de todos, de toda produção socialmente útil; 3) estatização dos

mecanismos de disciplina, funcionando através de uma polícia centralizada,

27

com a missão de uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de

tornar tudo visível.

A generalização do esquema e das técnicas disciplinares tornou possível

a prisão, assim como as escolas, fábricas, casernas, hospitais.

Com isso, a sociedade disciplinar não que dizer que seja uma sociedade

generalizada de confinamento; ao contrário, sua difusão, longe de cindir ou

compartimentar, homogeneíza o espaço social. O importante na idéia de

sociedade disciplinar é a própria idéia de sociedade: as disciplinas fazem a

sociedade, criam uma linguagem comum entre as instituições.

A prisão pretende reeducar o criminoso e encontrar o seu fim na

socialização do delinqüente. O tema das práticas disciplinares sugere,

tradicionalmente, a imagem da esterilização da vida. Os procedimentos de

dominação interditam, bloqueiam as iniciativas e as forças do corpo.

Entretanto, as disciplinas não são negativas, mas “positivas”: o corpo não é

passivo, ao contrário, é ativo.

É preciso dimensionar a criação “disciplinar” de potências corporais e de

atitudes; Para isso, torna-se necessário que as práticas disciplinares, para

serem eficazes, sejam invisíveis. Quando o corpo é forçado a suportar penas

físicas, para aceder às normas e obedecer às exigências de um poder

onipresente, penetrante e difuso não é o cerimonial da justiça que manifesta

sua força, mas é notável a investida da economia do poder. O corpo

normalizado é um corpo corrigido. A mão invisível do poder guia todo

deslocamento, corrige todo gesto, como a corda que direciona o crescimento

da árvore. Os entraves, para essa ortopedia corporal, são feitos de materiais

resistentes, obstáculos físicos, dispositivos solidificados: muros, tabiques,

aparelhos que esquadrinham o espaço, empecilhos que bloqueiam a

espontaneidade. O corpo, nesse contexto, é passivo, suportando a orientação

que o modela. A disciplina fabrica corpos submissos, dando uma

homogeneidade comum no detalhe e nas minúcias.

A disciplina não pode ser exercida sem uma cumplicidade com o ativo, o

orgânico. O corpo, preparado para a docilidade, opõe-se ao poder e mostra as

condições de funcionamento próprias a um organismo. A docilidade só poderá

ser obtida, se for dada uma atenção especial às forças e às operações

28

específicas do corpo; não se pode circunscrever o adestramento dócil apenas a

um dispositivo mecânico e passivo.

Mais uma vez, invertendo a ótica que analisa negativamente o poder; é

preciso abandonar o uso de expressões que indiquem exclusão - “reprimir”,

“recalcar”, “censurar”, “ocultar”; é preciso inverter as tonalidades, passar do

mecânico ao orgânico, do negativo ao positivo. O corpo dócil torna-se hábil,

eficaz, rentável, porque constrói, realiza. Uma potência do corpo existe nessa

“economia positiva”, onde coação não é mais sujeição. Poder-se-ia esperar

desse corpo uma autonomia? A disciplina - sublinhando e instalando uma

individualidade corporal - dar-lhe-ia forças independentes? Engendrar-se-ia um

corpo mais eficaz aumentando seu dinamismo? Uma apropriação pessoal de

vigores, habilidades, densidades sensíveis brotaria de coações interiorizadas?

Para responder a essas questões, poderia sugerir a existência de um corpo

que, escapando das disciplinas, voltar-se-ia contra elas.

Poder-se-ia pensar no caso da indisciplina, da ilegalidade delinqüente,

como “liberdade nata e imediata”, como jogo de forças, tensão entre relações

de forças que se opõem, defrontando-se reciprocamente - na revolta (voltar

outra vez) daquele que foi oprimido, na força “selvagem” que entra em luta

com as forças “civilizadoras”

São estratégias que se atualizam nos discursos, nas táticas. É preciso

lembrar, mais uma vez que, não existe uma natureza humana da qual o

indivíduo delinqüente tivesse se separado; a delinqüência não seria um desvio

a ser resgatado pelas leis e pela ortopedia punitiva dos aparelhos disciplinares.

Essa liberdade, manifestante de uma indisciplina ou delinqüência e

pertencente a uma individualidade corporal, é ainda de ordem política -

liberdade como autonomia e “resistência” a um poder dominador - e que mais

se poderia chamar de “liberação”.

Na pesquisa dos efeitos positivos da prisão, há relato das formas

estratégicas das classes dominantes para criar docilidade e extrair utilidade das

forças corporais que produziriam o indivíduo, tornado normalizado por um

poder maior que ele. Por outro lado, produziria o criminoso dentro da lei,

introduzido em carreiras criminosas pelo processo pedagógico das prisões,

colônias penais e outras instituições de controle

29

Ainda, no espaço da violência, do jogo de forças, das estratégias, no

qual o poder, disseminado nas múltiplas formas institucionais, afirma-se

através de dispositivos disciplinares, produzindo sujeitos “sujeitados” na história

da modernidade, é preciso esperar para ver resplandecer a liberdade, não mais

como fenômeno de resistência a um poder modelador e produtor de

individualidades, mas “liberdade”, como coragem no ato mesmo do dizer

verdadeiro, do sujeito ético ligado à sua própria identidade pelo “cuidado de si”.

As referências a liberdade, - definida como desenvolvimento selvagem,

natural e instintivo, brutal e limitado - guarda todas as características que a

separam dos atributos das forças da civilização. Permanece, portanto, a

dicotomia civilização/selvagem, marcando a separação e a exclusão dessa

liberdade anti-social que precisa ser normalizada, para ser enquadrada,

dominada em seus impulsos mais instintivos e destruidores.

A liberdade, como forma de reação, rebeldia, indisciplina e luta, é ainda

resistência aos aparelhos de poder, permanecendo na esfera das táticas e

estratégias do poder político. A história do presente e de nossa identidade foi

formulada como relação saber-poder na sociedade ocidental, produzindo o

sujeito objetivado, ainda dentro da esfera das relações políticas, no eixo do

poder.

O poder de punir é legitimado pela identificação das funções de punir,

curar e ensinar, que fundamentam as tarefas judiciais de medir, avaliar e

distinguir o normal do patológico. A lei penal é instrumento de classe, produzida

por uma classe para aplicação a classes inferiores e a justiça penal efetua uma

gestão diferenciada das ilegalidades. A perda da liberdade é o ponto central da

estratégia ideológica das sociedades capitalistas, implementadas com o

objetivo de subordinação do assalariado ao capital

O que importa é mostrar a onipresença “invisível” das práticas

disciplinares. A tática disciplinar age sobre o corpo, para estabelecer com ele

uma ligação coatora, entre uma aptidão desenvolvida e uma dominação

aumentada, provocando uma imediata contrapartida: a servidão.

As práticas disciplinares não tocam o corpo, apenas se distanciam, mais

do que se aproximam; distinguem-se, mais do que se misturam. A tática

30

disciplinar é a repartição, a homogeneização dos corpos, acompanhados pela

constante permanência do “olhar”.

O poder, tornando-se “incorporal”, é o mais violento, porque suas figuras

orientam sem tocar e sem entrar em contato direto com o corpo; seu

procedimento coloca em prática a “interiorização” de suas normas e regras. O

“incorporal” está no centro dos procedimentos disciplinares, como exigência e

fim.

A vigilância e a punição não pretendem outra coisa que uma “realidade

sem corpo”. A grande rede carcerária foi o modelo para a difusão do normativo

para a sociedade inteira. O processo de individualização é produto do

adestramento, da universalidade da norma. Saber-poder são as duas faces de

um mesmo processo que produz o sujeito normalizado, não só na rede

carcerária, como na arte de educar ou curar, na empresa, fábrica, exército,

onde a técnica do “exame” molda o indivíduo que se torna “objeto” de um

conhecimento possível, ocorrendo intensificação de dispositivos de

normalização e a necessidade de novas regras estratégicas.

Assim, a Justiça Restaurativa expressa uma outra percepção da relação

indivíduo-sociedade no que concerne ao poder: contra uma visão vertical na

definição do que é justo , ela dá vazão a um acertamento horizontal e pluralista

daquilo que pode ser considerado justo pelos envolvidos numa situação

conflitiva. Este modelo volta-se mais à relação do que a resposta estatal, a uma

regra abstrata prescritora de uma conduta, o próprio conflito e a tensão

relacional ganha um outro estatuto, não mais como aquilo que há de ser

rechaçado,apagado, aniquilado, mas sim como aquilo que há de ser

trabalhado, elaborado e potencializado naquilo que pode ter de positivo.

31

5. PROCESSO, PROCEDIMENTO E EXECUÇÃO DA PENA

A execução da pena se constitui na maior manifestação do poder do

Estado sobre a liberdade dos indivíduos e, portanto, a instrumentalidade do

processo deve se fazer presente, assegurando a defesa dos direitos e

garantias do condenado. Entretanto, “a efetividade desses direitos somente é

possível se houver instrumentalidade processual garantista”.

A importância de tal instância limitadora é nítida ao se constatar que

vivemos um perigoso momento histórico, em que se tenta, sistematicamente,

fazer prevalecer, na Lei de Execução Penal, “um Direito Penal do Autor” sobre

o “Direito Penal do Fato”, visto que a personalidade do agente, o tipo de

infração, bem como os motivos de foro íntimo que o levaram a cometê-la serão

determinantes para o pleno exercício de direitos.

Ressalte-se que após o advento da Constituição Federal de 1988, a

predominância de um Direito Penal do Autor tornou-se algo incompatível com o

nosso sistema, visto que sob à luz do princípio da secularização, “o Estado não

pode criminalizar ou penalizar a esfera do pensamento”. Deve criminalizar

apenas condutas danosas, impondo sanção sobre aquela liberdade

previamente acordada, sob pena de excesso ou desvio, o que levaria a um

rompimento do pacto e o conseqüente retorno às incertezas do estado de

natureza.

Ademais, embora hoje em dia exista uma consciência maior da

importância dos direitos humanos, constata-se que quando estes dizem

respeito a presos continuamos esbarrando no preconceito de uma sociedade

que os estigmatiza.

Nessa linha, dando ênfase aos princípios constitucionais, procura-se

realizar uma análise sobre o procedimento, cujo conteúdo teleológico deve se

manter na execução penal, não mais sendo acolhida a visão essencialmente

formal que o considera como uma mera seqüência de atos coordenados,

produtores de efeitos meramente processuais, bem como demonstrar a

necessidade de efetivação de um modelo acusatório em tal fase processual.

Assim, papel essencial cabe ao processo penal, eis que é entendido

como conditio sine qua nom para aplicação de uma sanção. Dentro desta

32

perspectiva, pode -se concluir que indispensável é a efetivação de um sistema

acusatório na execução penal, a fim de tornar viável a implantação de uma

instrumentalidade garantista na fase executória do processo penal, pois “el

sistema acusatorio favorece modelos de juez popular y procedimentos que

valorizan el judicio contradictorio como método de investigación de la verdad, el

sistema inquisitivo tiende a privelegiar estructuras judiciales burocratizadas y

procedimentos fundados em poderes de instrucción del juez, acaso

compensados por vínculos de pruebas legales y por pluralidad de grados em el

enjuiciamento4”

Pode-se afirmar, em suma, que somente se for reconhecida como

necessária a existência de uma relação jurídico-processual na execução penal

será permitido o fortalecimento da posição do apenado, bem como restará

assegurada a eficácia de seus direitos e garantias fundamentais não atingidos

pela sentença. Apenas desta forma, o apenado deixaria de ser um mero objeto

e passaria a ter o status de parte integrante do processo e, como tal, possuidor

de um conjunto de direitos subjetivos exigíveis do estado.

Por fim, salienta-se que somente poderemos atingir determinado grau de

garantias se concebermos o processo de execução penal com feição

acusatória, numa leitura constitucional de legitimação das normas ordinárias

editadas para disciplinar o sistema carcerário.

Portanto, parece-nos importante, neste momento, ressaltar o quanto o

estudo dessa nova estrutura de procedimento e processo interfere em

conceitos há muito arraigados na ciência do Direito Processual. Pois, a partir

da adoção da noção de processo como procedimento realizado em

contraditório, o conceito de jurisdição, o conceito de direito de ação e o de

direito subjetivo, em conseqüência, e mesmo a noção de processo como

relação jurídica, têm que ser repensados, a fim de excluirmos aqueles

incompatíveis com a nova concepção de processo, ou a fim de adequarmos os

demais à nova concepção.

Desse modo, trataremos da noção de processo como relação jurídica e

como situação jurídica, e dos reflexos frente à teoria do processo como

procedimento em contraditório. Posteriormente, estudaremos o conceito de 4 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. 4 ed. Madrid: Trotta, 2000, disponível em http://sociologiajur.vilabol.uol.com.br.

33

execução penal jurisdicional, e alguns procedimentos próprios do processo

executório

5.1. O processo como meio de acesso à ordem jurídica justa.

É fato que, na atualidade, existe uma guerra literária sendo travada

diariamente nos meios acadêmicos do mundo inteiro, envolvendo de um lado

ilustres estudiosos rotulados como processualistas, e de outros notáveis

jusfilósofos tratados como materialistas, tendo como pano de fundo descargas

recíprocas de culpas e defeitos pela não consecução de uma ordem jurídica

mais justa. Independentemente do rótulo que ostentam, ou até mesmo da

corrente que defendem, um anseio comum unem os seus propósitos: a luta

pela harmonia das relações sociais intersubjetivas.

Desprezando o caráter científico, muita gente vem utilizando a expressão

direito como sinônimo de bens e utilidades da vida, considerando direito

apenas aquele materializado em um corpo de normas jurídicas próprias (direito

civil, direito penal, administrativo, comercial, tributário, trabalhista, etc.).

Ignoram os que assim pensam que, paralelamente, a expressão também

engloba o complexo de normas que regulamentam a atividade jurisdicional do

Estado, na sua atribuição de dirimir conflitos ou insatisfações dos seus

cidadãos, seguindo um iter metodológico definido em lei. É o chamado direito

processual.

Tratando especificamente sobre o processo, bem alerta a doutrina

moderna que o processo não é um fim em si mesmo, e não deve ser guindado

à condição de fonte geradora de direitos. Sua função e finalidade são bem mais

amplas. O processo afigura-se, no dizer de JOSÉ FREDERICO MARQUES,

como "um meio de composição de litígios, ou conjunto de atos destinados à

aplicação do direito objetivo a uma situação contenciosa5”.

Na lição de FRANCESCO CARNELUTTI 6“ a palavra processo serve,

pois, para indicar um método para a formação ou para a aplicação do direito

que visa a garantir o bom resultado, ou seja, uma tal regulação do conflito de 5 “Instituições de direito processual civil”, José Frederico Marques, revista, atualizada e complementada por OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL. Vol. I, Campinas: Millennium, 1999. 6 CARNELUTTI, Francesco. Instituições do processo civil. Vol. I, Campinas : Servanda, 1999.

34

interesses que consiga realmente a paz e, portanto, seja justa e certa: a justiça

deve ser sua qualidade superior ou substancial; a certeza, sua qualidade

exterior ou formal."

Através do processo, portanto, a pretensão que possui ressonância na lei

(direito objetivo), recebe do Estado, através de seus agentes jurisdicionados, a

tutela apropriada, resolvendo-se o conflito de interesses.,

Cientificamente, o direito material e o processual estão em planos

separados. Em certas ocasiões, todavia, o juiz se depara no processo com um

caso concreto de colisão entre o direito material e o direito processual; às

vezes se vê desenhada nos autos uma verdadeira elisão entre o direito objetivo

e o direito subjetivo. É preciso deixar bem patente o que seja a função do

processo e a sua instrumentalidade.

Função seria a maneira concreta de operar de um instituto, de um direito,

de uma organização etc. A palavra função, no âmbito da ciência jurídica,

adquiriu relevância com o chamado Estado de Direito Democrático.

A igualdade essencial de todos os homens - postulado básico da

democracia - implica a resultante, necessária, de que todo poder humano só se

legitima enquanto está a serviço da coletividade. Superando o dogma religioso

do comportamento individual humano instituído por Cristo e lembrado por

Santo Agostinho de que, “quem não vive para servir, não serve para viver”, no

nosso século a visão é do serviço em função da coletividade.

Foi pensando no bem-estar social que foi transportada para a área

privada a reflexão antiga que era feita para o setor público. Passou-se a falar

em função social da propriedade, da empresa, do capital etc. Hoje, toda a ação

humana individual deve servir aos interesses sociais.

Sozinho e isolado, acorrentado ao iluminismo filosófico, o homem não tem

valor se não der às suas ações uma função social. Que o digam as nossas

instituições e a nossa classe política, cada vez mais depuradas e purificadas

por força da cobrança do povo e dos meios de comunicação, estes últimos

efetivos fiscais das intenções e ações dos eleitos para cargos públicos ou dos

indicados para ocupação de postos na Administração Pública.

É da sua própria essência do direito público, que todo e qualquer direito

ou poder seja exercido no interesse coletivo, pelo que lhe será conatural a

35

natureza de função social. Assim sendo, definir a função social de uma

atividade pública é, em verdade, traçar-lhe o espaço que, no universo do

interesse coletivo, lhe é particularmente reservado em termos de competência.

No vasto campo das funções públicas, a do processo é a de

simplesmente distribuir justiça, diriam os simplistas. Não é tão lógico assim. O

processo, como se sabe, materializa-se através de um procedimento, cuja

estrutura revela o encadeamento de atos, cada qual deles guardando sua

particular conceituação e função, todos, entretanto, vinculados por um nexo de

antecedente e conseqüente, que os articula finalísticamente, tendo-se em vista

o resultado final típico perseguido - a prestação jurisdicional. É uma fattispecie

complexa de formação sucessiva, do tipo procedimento, na dicção de Giovanni

Conso7.

Sendo o processo de natureza complexa, não contém ele um

conglomerado caótico de atos jurídicos processuais isolados. Todo ato

praticado no processo tem um antecedente e um postecedente. Por isso, se diz

que a função social do processo é a de ser efetiva como meio de acesso à

justiça e de instrumento à concretização do direito material perseguido por uma

das partes em litígio.

Numa espécie de catarse filosófica sobre o processo e as deturpações da

sua função, concluem os professores Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada

Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco8, que “O reconhecimento das

conotações ideológicas do processo constitui um dos passos mais significativos

da doutrina processual contemporânea”. A mudança de mentalidade em

relação ao processo é uma necessidade, para que ele possa efetivamente

aproximar-se dos legítimos objetivos que justificam a sua própria.

No indispensável ofício judicante em um processo, o juiz não cumpre

apenas o dever de ocupante de um cargo estatal ou se desincumbe de uma

mera tarefa profissional. Ao contrário, o juiz ao decidir um processo o faz com

vistas a um objetivo maior, que é a pacificação social.

Atua para evitar ou eliminar conflitos entre pessoas, fazendo justiça. É o

processo, nesse quadro, um instrumento a serviço da paz social. Falar em 7 CONSO, Gionni , . I.fatti giuridici processuali penali, Milão, Giurffrè,1955, p.p. 115 e ss.). 8 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 1997.

36

instrumentalidade do processo, pois, não é falar somente nas suas ligações

com a lei material. O Estado é responsável pelo bem-estar da sociedade e dos

indivíduos que a compõem: e, estando o bem-estar social turbado pela

existência de conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para,

eliminando os conflitos, devolver à sociedade a paz desejada.

O processo é uma realidade desse mundo social, legitimada por três

ordens de objetivos que através dele e mediante o exercício da jurisdição o

Estado persegue: sociais, políticos e jurídico. A consciência dos escopos da

jurisdição e sobretudo do seu escopo social magno da pacificação social

constitui fator importante para a compreensão da instrumentalidade do

processo, em sua conceituação e endereçamento social e político.

Essa onda moderna da instrumentalização do processo vem

gradativamente arrastando juízes e tribunais, conscientizando-os cada vez

mais dos valores humanos contidos nas garantias constitucionais do

contraditório e do devido processo legal e da necessidade de tratar o processo,

sempre, como meio privilegiado de acesso à ordem jurídica justa. Foi um longo

caminho percorrido para que essa realidade chegasse em alguns ramos do

Direito.

No Direito Penal, por exemplo, hoje em dia são marcantes as atenções

dispensadas para a presunção de inocência do acusado, o direito à prova, à

melhor defesa técnica etc. No ramo da execução penal, contudo, os avanços

são mais modestos, imperando e prevalecendo ainda a maioria dos institutos

advindos do Direito Romano.

Algumas execuções são levadas a tanto rigor, e de tão distorcidas que

são as garantias e os princípios processuais, terminam por execrar o apenado

e a lhe expor a condições degradantes, pondo-o bem abaixo da linha meridiana

da cidadania.

Já se viu casos em que a parte executada sequer tinha participado do

processo de conhecimento, e, lógico, não havia tampouco sido citada para

integração na lide naquela fase cognitiva e, no entanto, ter sido compelida

forçosamente a assumir – impropriamente - o ônus da prisão constituída na

condenação.

37

Neste caso, não se pode dizer que foi um processo justo. É natural o

sentimento que brota no íntimo do delinqüente de querer, na fase de execução

da pena, fazer cumprir na íntegra a tutela jurisdicional; mesmo sendo justa e

nobre a intenção de materializar o direito da parte violada, para ser o processo

instrumento de uma ordem jurídica justa é preciso dar cumprimento ao

julgamento observando direitos fundamentais do sentenciado;

Traduzir aquela condenação num conseqüente lógico que é a execução

da punição, ou seja, o objeto reclamado no litígio não traduz o ato de fazer

Justiça e recompor a pacificação social. Todavia, é justamente nessa fase

coativa da execução que se materializam equívocos processuais e

procedimentais, cometendo o órgão judicial, paradoxalmente, injustiças.

5.2. Conceito de processo

Para o estabelecimento do conceito, alguns autores sublinham ainda

tratar-se de um conjunto de atos coordenados ou preordenados na obtenção

de um fim, realçando desde logo o caráter instrumental das normas

processuais lato sensu.

A noção de finalidade pertence ao conceito genérico de processo: 'Em

geral, processo (de procedere) significa uma sucessão de atos, fatos ou

operações que se agrupam segundo uma certa ordem para atingir um fim.

Parece-nos, porém, que tal entendimento leva a restringir-se o conceito,

excluindo os processos naturais

No âmbito jurídico, observamos que os doutrinadores, em geral, pouco

têm-se ocupado com o problema de uma ampla conceituação do processo,

preferindo examiná-lo a partir de pressupostos específicos dos respectivos

departamentos.

Assim é que CHIOVENDA define-a como o conjunto de atos

coordenados para a finalidade de realização da vontade concreta da lei por

parte dos órgãos da jurisdição ordinária9.

Entre nós, FREDERICO MARQUES vem ensinando que o termo

processo é exclusivo da atividade jurisdicional, daí por que seriam incorretas as 9 Chiovenda, Instituciones de Derecho Procesal Civil (trad. esp.), 1936, p. 38, apud Alberto Xavier, ob. cit. p.

38

expressões processo legislativo e processo administrativo que deveriam ser

substituídas por procedimento legislativo e procedimento administrativo10.

E prossegue dizendo que: “ é o processo exclusivamente que traz

conotações teleológicas, reduzindo-se o procedimento a mero esquema

formal.”

É fora de dúvida que, de modo análogo, as atividades legislativas,

administrativas, ou mesmo privadas, colimam um fim objetivo quando se

utilizam dos respectivos processos.

Como é sabido, ao lado do aspecto estático-material, que constitui o

direito substantivo ou material, o ordenamento jurídico comporta outra face, de

caráter dinâmico-formal, que representa o direito processual, eis que o direito

regula sua própria criação, estabelecendo normas que presidem a produção de

outras normas, sejam gerais ou individualizadas.

Tal perspectativa permite concluir-se, que o direito processual não é um

direito técnico, regulado por considerações de oportunidade, e sim mero meio,

que se quer simples, rápido e econômico, de aplicar um direito que lhe é

previamente dado, mas uma forma especial do existir do direito, um particular

modo de ser do direito.

Cabe, pois, intentar uma definição genérica do processo jurídico. Os

doutrinadores que se esforçaram para superar um conceito restrito têm

chegado a um resultado aproximado.

Tomando como ponto de partida o processo jurisdicional, SANDULLI 11pretende superar o conceito tradicional e restrito de processo, admitindo que

haveria procedimento ou processo em sentido amplo sempre que a produção

de um efeito jurídico dependesse de uma sucessão coordenada de atos

humanos tendentes àquele fim..

Conclui-se, então, que estariam abrigados no conceito as sucessões

coordenadas de atos que visam a emissão de um ato legislativo ou

administrativo; a própria formação dos contratos; os atos plurilaterais e atos

complexos; os casos em que a realização do ato depende de autorização ou

10 J. Frederico Marques, Instituições de Processo Civil, Forense, São Paulo 11 Aldo M. Sandulli, II Procedimiento Administrativo, 1959 (Ristampa), Milão, Ed. Giuffrè, p. 1 a 16, apud Alberto Xavier, ob. cit., p. 1

39

aprovação; as hipóteses de administração pública de direitos privados, em que

a regularidade ou perfeição de um ato supõe a intervenção da autoridade;

ainda seriam abarcadas as figuras de sucessão de fatos ilícitos, como os

crimes continuados

Segundo conhecido cânon da lógica formal, para diminuir a extensão,

faz-se necessário aumentar a compreensão. Sob o pressuposto de que o

processo está intimamente ligado ao problema da vontade e de sua formação,

ALBERTO XAVIER 12procura aperfeiçoar o conceito de SANDULLI, fazendo

nele incluir um novo elemento — a vontade funcional — que está presente

quando a formação da vontade é objeto de uma disciplina processual, nas

hipóteses em que se cuida de adequar a vontade psicológica individual a fins

legalmente determinados.

Desse modo, extremam do conceito de processo as hipóteses

supracitadas em que ocorreria a formação de uma vontade funcional, tais

como: a formação sucessiva dos contratos, a série representada pelo ato de

aprovação e pelo ato aprovado, a sucessão de atos dos particulares e das

autoridades nas hipóteses de administração pública de direitos privados.

A todas elas, melhor se ajustaria o conceito de atividade — sucessão de

atos interligados com vista à realização de um fim. Reserva ao processo, como

fattispecie de formação sucessiva, um componente que aumentaria a

compreensão do conceito e, ao mesmo tempo, reduziria a sua extensão: a

formação ou execução de uma vontade funcional. Em razão dessas

considerações, conclui-se que a melhor definição para processo seria a

sucessão ordenada de formalidades tendentes à formação ou à execução de

uma vontade funcional.

Talvez a conceituação ainda seja insuficiente sobretudo pela falta de um

maior desenvolvimento para um elemento nuclear, como é o caso de vontade

funcional. Parece-nos, todavia, representar um grande passo para o

estabelecimento de uma noção tão fundamental, mas que, na maioria dos

compêndios, é examinada de modo superficial, quando não é simplesmente

omitida por inteiro.

12 XAVIER, Alberto. Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário, Forense, 2ª edição.

40

De qualquer sorte, o método utilizado, tomando como ponto de partida o

processo jurisdicional, revelou-se o mais adequado à consecução do objetivo.

A formulação de um conceito genérico de processo jurídico traz conseqüências

na caracterização do processo jurisdicional. Numa visão um tanto distorcida,

explicável pela humana tendência de supervalorização da própria

especialidade, alguns processualistas têm reivindicado esse vocábulo como

exclusividade do processo jurisdicional.

Dito isso, é forçoso concluir que Processo é o conjunto de todos os atos

necessários para a obtenção de uma providência jurisdicional, podendo ele

conter um ou mais procedimentos ou, inclusive, apenas um procedimento

incompleto.

5.3 A teoria do procedimento

No desenvolvimento do Direito Processual Civil como ciência autônoma,

a doutrina reagiu contra a postura tradicional de séculos passados, que

absorvia o processo no procedimento e considerava este como mera sucessão

de atos componentes de um rito de aplicação judicial do direito.

Paulatinamente, buscou estabelecer a distinção entre processo e

procedimento, encontrando no critério teleológico a base dessa diferenciação.

Essa distinção prevaleceu inquestionável por muito tempo, até despontar outra

proposta que possibilitou a consideração das relações entre procedimento e

processo.

A corrente doutrinária que separa o procedimento do processo com

fundamento no critério teleológico enfrenta um problema para o qual não se

encontra solução adequada: se o procedimento se constitui em meio

necessário à existência e ao desenvolvimento regular do processo, pois ainda

não se pôde suprimir a necessidade do procedimento, então, que também o

procedimento tem o caráter teleológico inerente a toda e qualquer técnica.

Afora isso, essa vertente continua a tratar o processo com apelo a

categorias conceituais antigas, como as da relação jurídica e do direito

subjetivo. Nela a relação jurídica é vista como um enlace normativo entre duas

pessoas, em que uma pode exigir da outra o cumprimento de um dever

41

jurídico. Já os direitos subjetivos são pensados em termos de uma liberdade

absoluta que, derivada do direito natural ou a ele relacionada, se opõe ao

Estado e ao direito dele emanado. O direito de ação, assim, configura-se a

partir de um conceito de relação jurídica engendrado por uma noção de direito

subjetivo.

Em bases diferentes da adotada, mas se destinando, também, à

superação do conceito de relação jurídica, desenvolveu-se a teoria das

situações jurídicas a partir das diferentes contribuições de LÉON DUGUIT,

GASTON JEZÈ e PAUL ROUBIER13. Em todas essas propostas, a situação

jurídica não se estrutura como vínculo jurídico entre dois sujeitos, em que um

tem o poder de exigir uma determinada conduta do outro, mas se forma a partir

de um fato ou ato jurídico produzido segundo a lei que governa sua

constituição. Uma vez constituída, ela se transforma no complexo de direitos e

deveres de uma pessoa, direitos e deveres que não mais se confinam no plano

abstrato e genérico da norma, mas que se realizam na situação de um

determinado sujeito.

Nesse diapasão, convém salientar que a teoria das situações jurídicas

não pretendeu eliminar a noção de um direito fluindo da norma para um

determinado titular. Pretendeu, isto sim, escorá-lo em outras bases, eis que a

reflexão jurídica havia demonstrado a possibilidade do direito qualificado de

subjetivo ser visto como uma faculdade ou como um poder de agir, mas nunca

como um poder sobre a conduta alheia.

A doutrina contemporânea reconhece que o único ato imperativo que

pode incidir sobre a universalidade de direitos de uma pessoa é o ato

imperativo do Estado, proferido segundo um procedimento regulado pelo

Direito, que disciplina o próprio exercício do poder, manifeste-se ele no

cumprimento de qualquer das funções do Estado, legislativa, administrativa ou

jurisdicional.

A teoria das situações jurídicas cumpre seu papel ao demonstrar a

impossibilidade de se considerar vínculos imperativos entre sujeitos,

superando, dessarte, o conceito de relação jurídica. Isso não basta, contudo,

13 GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro. Aide, 20001

42

para definir processo como situação jurídica. As situações jurídicas nele estão

presentes, mas não o delimitam.

O procedimento, como atividade preparatória do provimento, possui uma

estrutura específica, constituída da seqüência de normas, atos e posições

subjetivas de tal maneira conectados que o cumprimento de uma norma é

pressuposto tanto da incidência da norma seguinte quanto da validade do ato

nela previsto.

Assim, os efeitos do ato final (provimento) é condicionado à perfeita

realização de todos os atos da série, só sendo possível se cada um gerar o

efeito que lhe é próprio, ou se a falta de um ato singular tiver sido superada

pelo efeito resultante de outro ato; assim, o efeito substancial não é na

realidade produto somente do último da série.

O realce à dependência do ato final aos demais atos ressalta a idéia de

legitimidade do procedimento, evidenciando-se que o provimento é

condicionado à participação dos interessados, de modo a que possam influir no

resultado final.

DINAMARCO acentua bem esse caráter político do procedimento, ao

dizer que “ o procedimento é um sistema de atos interligados numa relação de

dependência sucessiva e unificados pela finalidade comum de preparar o ato

final de consumação do exercício do poder (no caso da jurisdição, sentença de

mérito ou entrega do bem ao exeqüente).14

Nessa quadra, o processo caracteriza-se como uma espécie do gênero

procedimento, pela participação, na atividade de preparação do provimento,

dos interessados, juntamente com o autor. Os interessados são aqueles em

cuja esfera particular o ato está destinado a produzir efeitos.

A caracterização do processo, não obstante, conclui-se com a

apreensão da estrutura legal específica desse procedimento: a participação

dos interessados em contraditório.

14 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido R. Teoria geral do processo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

43

5. 4 A teoria do procedimento em contraditório.

Há processo, por conseguinte, sempre que o procedimento se realiza

em contraditório entre os interessados, e a essência do contraditório está na

simétrica paridade da participação, nos atos que preparam o provimento, dos

interessados, porque, como destinatários, sofrerão seus efeitos.

Em sendo o contraditório o elemento definidor do processo, que o

distingue do procedimento, é necessário analisar a sua estrutura.

Anteriormente, o contraditório era visto como a simples participação dos

interessados no processo. Mas, como ressalta FAZZALARI15, a participação é

exigida não só do autor ou do réu; participam do processo, como sujeitos

processuais: o juiz, os seus auxiliares, o Ministério Público, os peritos e

também os autores e os réus. Sob este enfoque, todos são partes.

Para se definir quem serão os contraditores, ou seja, quem participará

do processo em contraditório, é necessário verificar quais sujeitos serão

afetados pelo ato final, quais serão os sujeitos destinatários do provimento.

Estes, que suportarão os resultados favoráveis ou desfavoráveis do

provimento, é que serão os participantes em contraditório e que possuem

legitimidade para agir, como adiante veremos.

Mas o contraditório entre os interessados e os contra-interessados não

pode ser entendido como mera participação destes sujeitos no processo, mas a

participação em simétrica paridade. É esta participação em simétrica paridade

que define o contraditório, nesta nova concepção.

5.5. Processo e Procedimento – conceitos interligados:

O procedimento evidencia-se quando há previsão de uma seqüência de

normas, em que uma norma valora uma conduta como lícita ou devida, e esta

conduta qualificada é pressuposto para qualificação da conduta prevista na

norma precedente. Em outras palavras, o procedimento é uma seqüência de

normas, atos e posições subjetivas, que se encadearão até a realização do ato

final, na qual a norma precedente – que estabelece uma conduta valorada

15 FAZZALARI, ELIO. Instituzioni di Diritto Processuale, Padova: Cedam, 1992.

44

como lícita ou devida – é pressuposto para realização da conseqüente. A

primeiras norma e a conduta dela decorrente ligam-se à segunda como um

pressuposto ou como sua fattispecie.

A esse conceito de procedimento, o autor agrega o conceito de

processo, que se distingue pelo critério lógico de inclusão pois o processo é

uma das espécies de procedimento, que se distingue pelo tratamento

dispensado aos partícipes que sofrerão os efeitos do ato final, que devem

participar do procedimento em posição de simétrica paridade, ou seja, em

contraditório. Foi sob esse espectro histórico que Aroldo Plínio Gonçalves ao

apreciar a obra de FAZZALARI buscou em um critério lógico de inclusão,

definir o que seja processo e o que seja procedimento.

Pelo critério lógico, as características do procedimento e do processo não devem ser investigadas em razão de elementos finalísticos, mas devem ser buscadas dentro do próprio sistema jurídico que os disciplina. E o sistema normativo revela que, antes que distinção, há entre eles uma relação de inclusão, porque o processo é uma espécie do gênero procedimento, e, se pode ser dele separado é por uma diferença específica, uma propriedade que possui e que o torna, então, distinto, na mesma escala em que pode haver distinção entre gênero e espécie. A diferença específica entre o procedimento em geral, que pode ou não se desenvolver como processo, e o procedimento que é processo, é a presença neste do elemento que o especifica: o contraditório. O processo é um procedimento, mas não qualquer procedimento; é o procedimento de que participam aqueles que são interessados no ato final, de caráter imperativo, por ele preparado, mas não apenas participam; participam de uma forma especial, em contraditório entre eles, porque seus interesses em relação ao ato final são opostos (Técnica Processual e Teoria do Processo)

O procedimento pode ser definido como uma série ou seqüência de

normas, atos e posições subjetivas, que se conectam e inter-relacionam em um

complexo normativo, constituindo a fase preparatória de um provimento, visto

como ato final de caráter imperativo.

45

Tais ensinamentos, repetidos na doutrina de um modo mais ou menos

uniforme, poderiam ser adaptados, sem dificuldades, aos demais processos

jurídicos. A final, todos eles comportam um enfoque teleológico ou formal,

como também implicam uma sucessão de atos, cuja execução está

subordinada à observância de determinadas regras, mais ou menos rígidas, de

acordo com a natureza de cada um.

Conclui-se, dessarte, que o conceito de processo deve ser estudado na

teoria geral do direito como procedimento contraditório em consonância com a

instrumentalidade garantista do processo.

5.6. A instrumentalidade garantista do Processo de Execução Penal.

O processo de execução é atividade que exige, na sua plenitude, a

atuação jurisdicional. A instrumentalidade, inerente ao processo, está fundada

na tutela judiciária dos direitos subjetivos do sentenciado e, também, voltada

para a efetividade do comando concreto emergente da sentença.

Verificado no curso do processo a efetiva existência do delito e proferida

a sentença, o processo de execução é atividade que exige, na sua plenitude, a

atuação jurisdicional. A instrumentalidade, inerente ao processo, está fundada

na tutela judiciária dos direitos subjetivos do sentenciado e, também, voltada

para a efetividade do comando concreto emergente da sentença.

É importante destacar que atualmente o grande problema do processo

penal está nos seus dois extremos: no inquérito policial e na execução da

pena. Ambos administrativos e inquisitivos, deixando o sujeito passivo em

completo abandono, sendo tratado com objeto e sem as mínimas garantias.

A LEP é notadamente inquisitiva já nos primeiros passos da execução,

pois a jurisdição executiva inicia-se de ofício, com a expedição da carta de guia

pelo juiz. A continuação, atribui ao juiz ampla possibilidade de atuar ex officio,

predomina a forma escrita dos atos, o contraditório e o direito de defesa são

bastante limitados (defesa técnica), e, por derradeiro, a própria coisa julgada

pode ser violada. Em definitivo, o processo de execução concebido pela LEP é

inquisitivo, incompatível com a matriz democrática-garantista e, portanto,

acusatória, da nossa Constituição.

46

Não há dúvidas de que a posição do juiz inquisidor fulmina sua

imparcialidade e, por decorrência, toda e qualquer esperança de efetividade

dos direitos fundamentais do apenado. Assim, a execução penal só pode ser

levada a cabo com estrita observância das garantias próprias do Estado de

Direito e, portanto, deve realizar-se por intermédio da atividade jurisdicional.

É imprescindível aproximar a execução penal à estrutura dialética do

processo, deixando o juiz como um terceiro imparcial, colocando a iniciativa

nas mãos do Ministério Público, assegurando a contraposição de funções e de

órgãos encarregados de exercê-las e, ao apenado, a possibilidade de resistir

e fazer valer seus direitos públicos subjetivos, através de um procedimento

jurisdicional, contraditório e com ampla defesa (principalmente técnica, a cargo

de advogado).

Outro aspecto importante é considerar a execução como uma relação

processual – logo apenado no caso da execução – não é um mero objeto do

processo, senão um sujeito que exercita nele direitos subjetivos e,

principalmente, que pode exigir do juiz que efetivamente preste a tutela

jurisdicional solicitada sob a forma de resistência (defesa).

Em suma, o reconhecimento da existência de uma relação jurídico-

processual na execução penal fortalece a posição do apenado, assegurando-

lhe a eficácia de seus direitos e garantias fundamentais não atingidos pela

sentença. Com isso, o apenado deixa de ser um mero objeto e passa a ter o

status de parte integrante do processo e, como tal, possuidor de um conjunto

de direitos subjetivos exigíveis do Estado.

Os juízes não podem absorver o papel de mero homologador de laudos

técnicos e acabar por substituir o discurso jurídico pelo discurso da psiquiatria,

tornando sua decisão impessoal, inverificável e impossível de ser contestada. .

Isto consiste numa pulverização da responsabilidade de decidir. Verifica-

se de plano a nefasta substituição do direito penal do fato pelo direito penal do

autor. Não se pune mais pelo que o apenado objetivamente fez, mas sim pelos

diagnósticos irrefutáveis de personalidade perigosa, desviada, etc. Por isso,

qualquer perspectiva de evolução passa, necessariamente, por uma

maximização da intervenção jurisdicional e um fortalecimento da situação

jurídica do apenado, pois, apesar de condenado, não perdeu sua característica

47

de ser “social” e, como tal, merecedor de incondicional respeito de seus direitos

e garantias fundamentais.

5.7. Natureza e objeto da execução penal

É sabido que a execução penal foi tida como administrativa durante quase

toda a nossa história, passando, progressivamente, a ser jurisdicionalizada de

fato. Por qualquer dos argumentos, seja por uma questão ontológica ou

histórica, a execução penal é atividade jurisdicional e, como tal, é indelegável e

irrenunciável por parte do Estado. Portanto, o atual cenário jurídico permite

concluir que a execução penal integra a função jurisdicional do Estado.

Pois bem: se jurisdição, na concepção clássica, é o poder/dever de

solucionar os litígios, aplicando o direito ao caso concreto, é difícil entender, à

primeira vista, como se negou à execução penal o caráter de atividade

jurisdicional.

Vê-se que a jurisdição não se encerra com a produção da coisa julgada,

envolvendo também a prática dos atos de execução forçada. Esta concepção,

relativamente pacífica quando diz respeito à execução civil, entretanto não é

aceita com a mesma tranqüilidade no caso da execução penal. Nessa linha,

Ada Pellegrini Grinover16, defensora da natureza mista da execução penal,

ressalta que, “apesar de peculiaridades e diferenças em confronto com a

execução civil, a natureza do processo de execução – civil e penal – é

exatamente a mesma”.

JULIO FABBRINI MIRABETE 17anota que: “.afirma-se na exposição de

motivos do projeto que se transformou na Lei de Execução Penal: 'Vencida a

crença histórica de que o direito regulador da execução é de índole

predominantemente administrativa, deve-se reconhecer, em nome de sua

própria autonomia, a impossibilidade de sua inteira submissão aos domínios do

Direito Penal e do Direito Processual Penal”.

16 Grinover, Ada Pellegrini. O Processo em Evolução. 9ª Ed. São Paulo, Malheiros, 1998. 17 MIRABETE, Julio Fabrini. Execução Penal, 9ª Ed. São Paulo: Atlas, 2000.

48

Por fim, SALO DE CARVALHO18, com a habilidade habitual, esclarece

que "o entendimento puramente administrativista acabava por se chocar com a

imperiosa necessidade de intervenção judicial nos chamados incidentes da

execução (basicamente no livramento condicional), o que teria gerado

"dogmaticamente uma concepção híbrida, qual seja, de que a natureza da

execução penal seria tanto administrativa como jurisdicional"

Temos que a execução penal é de natureza jurisdicional, não obstante a

intensa atividade administrativa que a envolve.

Embora envolvida intensamente no plano administrativo, não se

desnatura, até porque todo e qualquer incidente ocorrido na execução pode ser

submetido à apreciação judicial, por imperativo constitucional, o que acarreta

dizer, aliás, que o rol do art. 66 da Lei de Execução Penal é meramente

exemplificativo. Ainda segundo Carvalho, a jurisdicionalização (formal) da

execução penal no Brasil se completou a partir do início da vigência da Lei de

Execução Penal (LEP), "que fixa o conteúdo jurídico da execução (art. 1º),

anuncia a jurisdição e o processo (art. 2º), detalha a competência do Juiz de

Execução Penal (art. 66) e determina o procedimento judicial (art. 194)". O

penalista gaúcho, contudo, reconhece que a evolução doutrinária e

jurisprudencial não acompanhou a inovação normativa, e que ainda há diversos

defensores da tese da natureza jurídica mista.

É extremamente salutar a percepção de que, no cumprimento das penas

não privativas de liberdade (pecuniárias ou restritivas de direitos), a

participação do Poder Executivo é muito menor e pode não chegar a acontecer

se, por exemplo, no caso das penas de multa ou de prestação pecuniária,

houver cumprimento voluntário e dentro do prazo. Dessa forma, a própria

execução penal pode se dá sem a colaboração de órgãos externos ao

Judiciário.

Portanto, correto é o entendimento de que na esfera penal, tal atividade

é reconhecida pacificamente como continuação da atividade jurisdicional, logo

admitindo que sua natureza é idêntica à da execução civil, sendo uma

singularidade das sentença penais a imposição de penas privativas de 18 CARVALHO, Salo de (org.) Crítica à Execução Penal: doutrina e jurisprudência e projetos legislativos. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2002.

49

liberdade e que o Estado para dar cumprimento às penas de prisão, precise

manter enormes estabelecimentos penais que tradicionalmente integram a

estrutura do Poder executivo.

Há de ser realçado algumas formas de atuação judicial e extrajudicial do

juiz no processo de execução penal, sendo ambas atuação jurisdicional do

estado no campo da execução das penas:

1) fiscalização das unidades prisionais:

a) Juizes da Execução Penal. De acordo com o artigo 66, inciso VII, da LEP, os

juízes deveriam realizar visitas mensais aos presídios sob sua

responsabilidade, a fim de fiscalizar as unidades e verificar as necessidades

dos presos.

b) Ministério Púbico. O artigo 68, parágrafo único, da LEP, exige do Ministério

Público o mesmo dever dos juízes de visitar mensalmente.

c) Conselho Penitenciário. Os artigos 69 e 70 da LEP o definem como um

órgão consultivo e fiscalizador da execução da pena com responsabilidade de

visitas periódicas às unidades;

d) Conselho da Comunidade. Poucas são as comarcas do nosso estado em

que foram instalados os conselhos da comunidade e mais raras ainda são as

que possuem conselhos em efetivo funcionamento.

e) Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias (CNPCP).

Localizado em Brasília, tem também a atribuição de visitar os locais de

detenção, artigo 63 da LEP.

f) Vale lembrar, a presença da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro,

através de Núcleo do Sistema Penitenciário desenvolvendo um trabalho

pioneiro de assistência junto aos presídios e penitenciárias estaduais que

engloba o atendimento ao preso e a família, acompanhamento processual,

informação processual e jurídica como um todo e especialmente fiscalização

quanto ao cumprimento da pena e a violação de direitos, sem prejuízo a

individualização da pena e na tentativa de proporcionar dignidade ao

encarcerado sentenciado.

50

2) Progressão de Regime Prisional e Livramento Condicional

O sistema progressivo de regime foi instituído com vistas à reinserção

gradativa do condenado ao convívio social. Ele cumprirá a pena em etapas e

em regime cada vez menos rigoroso, até receber a liberdade. Durante esse

tempo, o preso será avaliado e só será merecedor da progressão caso a sua

conduta assim recomende.

O mérito do condenado para a progressão de regime prisional (requisito

subjetivo) diz respeito a seu bom comportamento carcerário e aptidão para

retornar ao convívio social. Destarte, para que possa obter a progressão, em

nosso entender, não basta o bom comportamento carcerário, sendo

necessário, também, que esteja apto a ser colocado em regime menos

rigoroso. Um dos instrumentos empregados para a verificação da aptidão para

a progressão de regime é o exame criminológico, que será realizado quando

for necessário.

O referido exame será realizado obrigatoriamente nos presos que se

encontrem no regime fechado e facultativamente nos que estão no regime

semi-aberto (art. 8º da LEP). É uma espécie de exame de personalidade e tem

a finalidade de obter elementos indispensáveis à classificação do sentenciado

e à individualização da execução penal. Por isso, examina a personalidade do

criminoso, sua periculosidade, eventual arrependimento, possibilidade de voltar

a delinqüir, etc., propondo as medidas necessárias para a recuperação. Por se

tratar de perícia oficial, deve ser realizado por profissionais capacitados

(psicólogos e psiquiatras). Entretanto, a realização do exame criminológico é

atribuição da administração pública, através do Poder executivo, encarregado

da gestão das prisões.

Com efeito, o condenado com mau comportamento carcerário, que não

queira trabalhar, com dificuldades para obedecer ao regulamento, que exiba

sinais de periculosidade, etc. demonstra com sua conduta não ser merecedor

do benefício da progressão de regime prisional.

É importante salientar que, em sede de execução penal, não é raro

encontrar apenado com tempo necessário para progredir de regime ou sair em

51

livramento condicional atrelado às normas de prêmio/castigo dessas unidades,

sendo certo que alguma mudança na organização da unidade ou de unidade

pode repercutir na adaptação do preso, entre outros fatores determinantes de

seu comportamento, o que, portanto, acarretam muitas das vezes no

cumprimento integral da pena sem gozo do direito previsto na LEP, pela

constatação de inaptidão nos malfadados exames criminológicos.

Nesse ponto, faz-se mister a existência de um processo de execução,

com garantias de ampla defesa, do contraditório e as demais garantias

inerentes ao direito material e instrumental.

3) A classificação do condenado:

Será feita por Comissão Técnica de Classificação, que é o órgão

responsável pela elaboração do programa individualizador da execução da

pena privativa de liberdade (art. 6º da LEP). A Comissão Técnica de

Classificação existe em cada estabelecimento prisional e é presidida pelo

diretor e composta, no mínimo, por dois chefes de serviço, um psiquiatra, um

psicólogo e um assistente social, quando se tratar de pena privativa de

liberdade. Nos demais casos, a Comissão atuará junto ao Juízo da Execução e

será integrada por fiscais do Serviço Social (art. 7º da LEP).

Para a correta individualização da pena privativa de liberdade, a

Comissão Técnica de Classificação deve valer-se do exame criminológico, nos

casos em que ele é exigido (regime fechado), ou quando ele for necessário

(regime semi-aberto). A fim de obter dados reveladores acerca da

personalidade do condenado, a Comissão poderá entrevistar pessoas;

requisitar, de repartições ou estabelecimentos privados, informações e dados a

respeito do condenado; realizar outras diligências e exames necessários (art.

9º da LEP).

Não havendo exigência ou necessidade da realização do exame

criminológico, a classificação será feita por exame de personalidade comum,

em que serão colhidos elementos para a elaboração de um programa de

individualização da execução da pena.

52

No entanto, a falta de contato dos Juízes da execução com as equipes

multidisciplinares encarregadas da realização dos exames criminológicos e a

Classificação do preso, cujo controle é do órgão de administração

penitenciária, ficando sob domínio quase exclusivo da SEAP, torna a atuação

judicial uma última instância em assuntos de transferência, trabalho, falta

disciplinar e outros, acarretando morosidade das decisões e ausência de dados

estatísticos ou ignorância do aparato administrativo envolvido na execução da

pena.

4) A individualização da pena:

É direito constitucional previsto no artigo 5º, XLVI, 1ª parte, da CF. e

objeto de controle do judiciário - diante das modificações introduzidas pela Lei

10.763, de 12 de novembro de 2.003, pela Lei nº 10.792, de 1º de dezembro

de 2.003 e na Lei nº 11.464 de março de 2007: .

Individualizar a pena consiste em propiciar ao preso as condições

necessárias para que possa retornar ao convívio social. A individualização

deve ater-se a métodos científicos, nunca improvisados, iniciando-se com a

classificação dos detentos, de forma que possam ser destinado aos programas

de execução mais apropriados de acordo com suas necessidades pessoais.

A Lei de Execuções Penais (LEP), em seu art. 112, dispõe que a pena

privativa de liberdade será executada de forma progressiva com a transferência

para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver

cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom

comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento,

respeitadas as normas que vedam a progressão. Prevê, ainda, a norma em seu

§ 1º, que decisão será sempre motivada e precedida de manifestação do

Ministério Público e do seu defensor.

A Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2.003, deu nova redação ao

artigo 112 da LEP, não mais exigindo que o mérito do condenado lhe seja

favorável à progressão, bem como a manifestação do Conselho Penitenciário e

exame criminológico, quando necessário.

53

Embora a lei tenha mantido o sistema progressivo, instituiu como

requisitos para a progressão de regime apenas que o preso tenha cumprido ao

menos um sexto da pena no regime em que se encontra e que ostente bom

comportamento carcerário, atestado pelo diretor do estabelecimento prisional.

Por outro lado, as normas que vedam a progressão de regime prisional,

no caso a Lei dos Crimes Hediondos, não mais permanecem íntegras, uma vez

que a Lei 11. 464/2007, deu nova redação ao art. 112 da LEP, determinando o

cumprimento de 2/5 e 3/5 da pena para passar ao regime menos severo.

Assim, cometendo o agente crime hediondo, tráfico ilícito de entorpecentes ou

drogas afins, ou terrorismo, deverá cumprir a pena em regime inicialmente

fechado, sendo franqueada a progressão de regime, em um sexto para os

apenados cujos crimes foram praticados antes período de vigência da referida

Lei. Além do bom comportamento carcerário do condenado, para que possa

ser deferida a progressão, há necessidade do cumprimento de pelo menos um

sexto da pena no regime em que se encontra (requisito objetivo), sendo vedada

a progressão por salto, ou seja, pulando um dos regimes.

Outra imposição da lei para a progressão é a prévia manifestação do

Ministério Público e do Defensor, e que a decisão judicial seja motivada (art.

112, § 1º, da LEP). Observamos que a manifestação do Ministério Público e a

fundamentação da decisão judicial sempre foram requisitos necessários nos

procedimentos afetos às execuções penais. O Ministério Público possui a

atribuição de fiscalizar a execução da pena e da medida de segurança,

oficiando em todos os processos e incidentes da execução (art. 67 da LEP). À

Defesa cabe defender os interesses do condenado, podendo requerer o que de

direito para a obtenção da progressão de regime.

Entretanto, mesmo com a modificação do artigo 112 da LEP,

entendemos que o Juiz pode determinar o exame criminológico quando o preso

tiver praticado crime doloso com o emprego de violência ou grave ameaça à

pessoa, ou seja, se houver necessidade de ser aferido o mérito do condenado.

Isso porque o artigo 33, § 2º, do Código Penal, de forma genérica, diz que a

pena privativa de liberdade deve ser executada de forma progressiva e

segundo o mérito do condenado.

54

Aliás, para a concessão de livramento condicional, progressão de regime

e visita periódica ao lar, benefícios que colocam o preso em contato com a

“rua”, na linguagem informal das penitenciárias, exige-se a constatação de

condições pessoais que façam presumir que o liberado está arrependido e não

voltará a delinqüir, sendo que essa prova é feita por meio de exame

criminológico.

Essa forma de avaliação é fácil de ser maquiada, sendo certo que o Juiz

das Execuções Penais não tem contato com o postulante desses direitos, mas

apenas com o exame criminológico, ou seja, se tiver dúvidas sobre a cessação

da periculosidade do condenado, deverá indeferir o pedido, ao passo que

melhor seria a avaliação em procedimento contraditório ou por um programa de

Justiça restaurativa.

Seria um contra-senso permitir a progressão, ou até mesmo a liberdade,

para alguém que ainda não possui condições de retornar ao convívio social,

mostrando-se perigoso para a coletividade. Entretanto, se o exame

criminológico concluir que o preso tem condições de progredir de regime

prisional, o juiz deverá deferir a progressão ou liberdade antecipada, o que não

pressupõe a readaptação gradativa do preso à liberdade e permite o retorno do

mesmo mais rapidamente ao mundo da delinqüência, sem que a sociedade

possa opinar ou efetuar o controle da readaptação prometida no exame

criminológico.

Infelizmente, esse conteúdo burocrático e inócuo da lei de execução

penal, contraria os anseios da sociedade, que após os noticiários de detentos

ou ex-detentos que continuam praticando crimes passa a exigir punições mais

rígidas para os criminosos cada vez mais violentos, fomentando mais e mais o

processo de exclusão.

Da forma como a lei é aplicada, inúmeros criminosos perigosos e que

não possuem condições de retornar ao convívio social poderão ser soltos sem

qualquer consciência do mal causado à vítima e à sociedade e sem qualquer

obrigação de reparação do dano, haja vista que nesses exames criminológicos

faz-se uma mera declaração da impossibilidade de compô-los e isso é o

suficiente para nunca mais tocar no assunto “reparação dos danos”, deixando

55

o preso sem qualquer ônus pela violação perpetrada e com a certeza de que o

retorno a prisão é um risco do seu negócio ilícito.

Diante disso, os debates e as decisões no sentido de que basta o

cumprimento de um sexto da pena ou dois e três quintos e bom

comportamento carcerário, atestado pelo diretor do estabelecimento prisional,

para que o condenado possua o direito subjetivo de progredir, visitar a família

ou sair em condicional, é inócuo e dispensável, pois o que se deve estabelecer

é um programa sério, que leve o condenado a análise do crime condicionada à

efetiva reparação do dano que causou somada à devolução do produto do

ilícito praticado, com os acréscimos legais., numa verdadeira revolução

procedimental.

O direito penal produzido para enfrentar a emergência de crimes

bárbaros noticiados e da criminalidade organizada produziu uma justiça

política, não cognitiva e não baseada na imparcialidade do Juízo; mas incita

procedimentos decisionistas e inquisitórios, fundados no princípio do

amigo/inimigo.

Essa tem sido a lógica que está penetrando todos os momentos do

mecanismo punitivo: na legislação e, em especial, na execução penal.

O que deve ser mudado no paradigma deste direito penal de exceção é

a separação entre juiz e acusação e a supressão da figura do juiz instrutor,

além da diminuição da contaminação policialesca da função jurisdicional. O

juízo não é mais a sede de verificação do material probatório compilado, mas é

lugar de coerção ou de constatação da validade do material produzido pela

imprensa que se presta a fazer o trabalho de investigação para a acusação.

A questão é de importância central para uma doutrina garantista do

direito penal e nós estamos indo na contra mão.da tese dominante na cultura

jurídica do mundo, haja vista que o estado de direito se legitima pelas

garantias plenamente respeitadas e abolição do direito penal de exceção.

Nessa perspectiva emerge novo paradigma, cujos conteúdos supõem

uma projeção legislativa de recuperação dos valores da constituição. Isto quer

dizer recodificar os bens jurídicos que são meritórios de tutela penal,

despenalizar todos os crimes menores, as contravenções e aos crimes punidos

com simples penas pecuniárias, os quais não justificam nem pena, nem

56

processo; ampliar a esfera da tutela civil e administrativa, transferindo muitos

interesses hoje tutelados penalmente, redefinir os tipos penais delituosos,

suprimir as figuras elásticas e indeterminadas, expulgar do sistema toda forma

de responsabilidade objetiva ou coletiva e estabelecer limite máximo de pena.

De nada serve um sistema formalmente garantista e efetivamente

autoritário. Essa falácia garantista consiste na idéia de que bastam as razões

de um “bom” Direito, dotado de sistemas avançados e atuais de garantias

constitucionais para conter o poder e pôr os direitos fundamentais a salvo dos

desvios e arbitrariedades. Não existem Estados democráticos que, por seus

sistemas penais, possam ser considerados plenamente garantistas ou

antigarantistas, senão que existem diferentes graus de garantismo e o ponto

nevrálgico está no distanciamento entre o ser e o dever ser.

O clamor de hoje é por uma nova fundação do direito penal garantista,

tendo como pressuposto a busca de nova legitimação procedimental.

A idéia de levar o apenado ao arrependimento pelo mal causado, reflete

os conceitos teleológicos e morais da época da criação das penitenciárias,

quando a pena era associada a fins didáticos de reeducação de prisioneiros.

O pensamento jurídico mais moderno busca uma utilidade social na

punição, retirando o apenado da posição de mero objeto de execução para ser

parte integrante do processo e possuidor de direitos subjetivos, razão pela

qual, fica abandonada a idéia de soma de atos do processo, por uma nova

proposta dirigida a restaurar as garantias dos cidadãos e dar legitimação

formal e substancial a jurisdição.

5) Execução da medida de segurança:

Transitada em julgado a sentença, o juízo da condenação devera

ordenar a expedição da guia para execução (art.171 a LEP).

Essa guia contendo os requisitos do art. 173 da LEP, será remetida a

autoridade administrativa incumbida da execução da medida de segurança.

O inimputável será obrigatoriamente submetido a exame criminológico.

Este exame no tratamento ambulatorial passa a ser facultativo. Ao

final do prazo mínimo da duração da medida de segurança o agente e

57

obrigatoriamente submetido à perícia psiquiátrica de averiguação da

periculosidade.

O laudo psiquiátrico, acompanhado do minucioso relatório aludido no art.

175 da LEP, será remetido ao juízo da execução, que dará vista dos autos ao

Ministério publico e a defesa ou curador no prazo de três dias para cada um..

Concluindo pela cessação da periculosidade, o juiz suspende a medida

de segurança determinando a desinternação ou liberação do agente,

sendo certo que será sempre condicional, pois o juiz deve impor ao agente as

mesmas condições do livramento condicional, quais sejam : a) obter ocupação

licita, se for apto ao trabalho; b) Comunicar periodicamente ao juiz sua

ocupação; c) Não mudar da comarca sem previa autorização judicial.

A decisão que revoga a medida de segurança que determina a

desinternação ou liberação é resolutiva, e torna-se definitiva se dentro de um

ano o agente não praticar nenhum fato indicativo de persistência, de sua

periculosidade, caso contrario, o juiz restabelecera a Medida de Segurança.

5.8. A quebra do paradigma punitivo

Por que uma reação punitiva seria mais adequada do que respostas não

punitivas para os problemas da conflitualidade e da litigiosidade das

sociedades contemporâneas? Por que o desejo obsessivo de punir, de punir

mais e sempre com maior intensidade? É bem provável que a obsessão

punitiva da comunidade contemporânea se explique justamente pelo modo de

funcionamento da sociedade de risco que edifica toda uma imensa e resistente

superestrutura de prevenção e segurança para fazer face aos medos, perigos e

ameaças que tornam a vida humana, social e intersubjetiva, absolutamente

incerta.

Utilizar a prisão como “aspirador social” para limpar as escórias das

transformações econômicas em curso e retirar do espaço público o refugo da

sociedade de mercado – os pequenos delinqüentes ocasionais, os

desempregados e os indigentes, os sem-teto e os sem documentos, os

toxicômanos, os deficientes e doentes mentais deixados de lado por incúria da

proteção sanitária e social, assim como os jovens de origem popular

58

condenados a uma sobrevivência feita de expedientes e de furtos para suprir

a precariedade dos salários – é uma aberração no sentido exato do termo, isto

é, um “erro de juízo” tanto político quanto penal.

A evolução da criminalidade não justifica em nada o crescimento

fulgurante da população prisional, ao contrário já se constatou em trabalho do

Instituto de Segurança Pública 19que alguns tipos de crime estão diminuindo

regularmente desde 2003; segundo os levantamentos do referido Instituto,

homicídios e roubos diminuíram em 8,8% em relação ao mesmo período do

ano anterior (de 2007 para 2006). Entretanto a mídia, anuncia o aumento do

número de presos e a necessidade de construção de novas unidades

penitenciárias no país e o judiciário proclama que há um inchaço nos Juizados

Especiais Criminais relativo a delitos que englobam “violência” verbal (insultos,

ameaças), sobretudo no seio da organização familiar.

Tomando os dados estatísticos da Secretaria de Segurança Pública, não

houve um surto de delitos que justifique automaticamente a confusa

intervenção do Estado nesse ponto. Além disso, ao invés da impressão

esmagadora criada pela recente obsessão da imprensa sobre o assunto, a

preocupação com segurança hoje não é excepcionalmente aguda na

população. As sondagens de rua mostram que o medo do crime permanece

relativamente estável nas duas últimas décadas, exceto em modestos picos

quando são noticiados delitos que chocam pelo particular modo de execução.

Enfim, sabe-se que o medo do crime não tem muito a ver com sua

incidência real, já que a imagem dominante de uma violência anônima que

atingiria todo mundo em toda a parte, e em especial os mais vulneráveis

(idosos, mulheres e transeuntes comuns), não corresponde de modo algum à

distribuição sócio-espacial dos delitos.

Em suma, não foi tanto a criminalidade que mudou nos últimos anos e

sim a maneira como porta-vozes dos interesses dominantes, vêem a

delinqüência de rua e as populações que supostamente a alimentam. Os mais

visados são os jovens das classes populares, confinados na periferia retalhada

há três décadas pela desregulação econômica e pela omissão urbana do

19 Balanço das incidências criminais e administrativas no Estado do Rio de Janeiro (1º semestre de 2007). Coordenação: Ana Paula Mendes de Miranda, Ana Luísa Vieira de Azevedo e Kátia Sento Sá Mello. Disponível em WWW.isp.rj.gov.br.

59

Estado, periferia transformada em chaga que a cataplasma administrativa da

“política da cidade” tentou, sem êxito, cauterizar.

A criminologia comparada confirma peremptoriamente que não existe

em lugar nenhum – em nenhum país e em nenhuma época – correlação entre

a taxa de encarceramento e o nível de criminalidade. Seja como for, a prisão só

atende, na melhor hipótese, a uma ínfima parcela da criminalidade e até a mais

violenta. Percebe-se, assim, como a prisão está inapta para lutar contra a

pequena e média delinqüência e, com maior razão, contra as “incivilidades”

que, na maioria, nem constam do Código Penal (atitude agressiva, baderna em

locais públicos, pequenos vandalismos etc.).

Mais uma prova de que a repressão judiciária é ineficaz e o recurso

automático do encarceramento para debelar as desordens urbanas é um

remédio que, em muitos casos, só agrava o mal que pretende sanar, é que o

preso não perde só a sua liberdade, perde a dignidade e em alguma regiões do

país ultrapassam a 80% o índice de reincidência.

Instituição baseada na força e agindo à margem da legalidade, a prisão

é um cadinho de violências e de humilhações cotidianas, um vetor de

desagregação familiar, de desconfiança cívica e de alienação individual. E,

para muitos presos implicados ligeiramente em atividades ilícitas, é uma escola

de formação, para não dizer de “profissionalização”, na carreira do crime. Para

outros, o que também é péssimo, o cárcere é um abismo sem fundo, um

inferno alucinante, a extensão da lógica de destruição social que eles já viviam

fora do presídio, agora, acrescida da aniquilação pessoal.

O funcionamento dos presídios caracteriza-se pela completa disjunção

entre a pena proferida pelo discurso judiciário e a que é de fato aplicada, o que

provoca “nos detentos uma descrença radical aliada a um profundo sentimento

de injustiça”. A história penal mostra, além disso, que em nenhum momento e

em nenhuma sociedade a prisão cumpriu sua suposta missão de recuperação

e reintegração social, de acordo com a óptica de redução da reincidência.

Como observou laconicamente um agente penitenciário, “a reintegração não

se dá na prisão. Aí já é tarde demais. Para reintegrar é preciso dar trabalho,

igualdade de oportunidades, escola.

60

Medidas de tipo 'social' podem ser tentadas, mas já pouco adiantam”.

Sem contar que tudo, até a organização de trabalho dos guardas, passando

pela pobreza de recursos institucionais (trabalho, formação, escolaridade,

saúde), pela extinção deliberada do livramento condicional e pela ausência de

medidas concretas de ajuda no momento da libertação – se opõe à suposta

função de “reforma” do detento.

Finalmente, convém destacar que e a contenção carcerária atinge

desproporcionalmente as categorias sociais econômica e culturalmente mais

frágeis. O argumento, habitualmente invocado pelos partidários da política

punitiva, segundo o qual a inflação carcerária corresponde a uma redução

automática da criminalidade, pois “neutraliza” condenados que, atrás das

grades, já não oferecem perigo, parece cheio de bom senso, mas, se bem

examinado, revela-se ilusório, porque, quando aplicado à delinqüência de baixa

periculosidade, o encarceramento desmesurado equivale a “recrutar” novos

delinqüentes por efeito de substituição.

Além disso, a prisão tem a característica de uma bomba social que

aspira-e-expele: ela devolve à sociedade indivíduos capazes de cometer ainda

mais delitos e crimes em virtude do corte sociobiográfico que a reclusão

exerce; da carência de programas de “reinserção” durante e após o

encarceramento; e da série de restrições, incapacidades e outros prejuízos

decorrentes de uma passagem pela polícia.

Mesmo assim, nada é feito para interromper de fato o circuito crime-

prisão-crime, a não ser o agravamento da pena e das disposições

procedimentais relativas a aquisição de direitos previstos na Lei de Execuções

Penais, o que gera uma sobrecarga da função jurisdicional. Como escapar?

Nossa proposta é a coexistência da justiça restaurativa com a justiça

penal comum, para que pouco a pouco uma visão restauradora seja inserida

como um caminha diferente, ou seja, processo onde as partes ao sofrer algum

tipo de delito, resolvem, coletivamente, como abordar as conseqüências do

delito e suas implicações para o futuro.

Os programas de justiça restauradora habilitam a vítima, o infrator e os

membros afetados da comunidade a estarem diretamente envolvidos com o

Estado para dar uma resposta ao delito.

61

Definitivamente, os programas restaurativos tem uma importante função

de prevenção e integração, da volta a legalidade para o ofensor e a quebra da

estigmatização da vítima, sendo certo que o acordo entre as partes muitas

vezes se pautam de determinadas obrigações que servem para restaurar as

relações entre as pessoas envolvidas.

62

6. JUSTIÇA RESTAURATIVA

6.1. Premissas: O problema da criminalidade é um mau que nos constrange de longa

data, tirando nosso sossego, trazendo insegurança e muitos outros aspectos

negativos causadores de desagrado e infelicidade a todos aqueles que com ela

convivem.

Até os remotos tempos não existiu sociedade sem o fenômeno da

criminalidade, sempre em constante mutação, com formas variadas,

tonalidades locais e épocas distintas, porquanto o homem sempre e de alguma

forma, violou e violará os dispositivos legais, incorrendo nas penalidades

estabelecidas à luz do princípio da legalidade estrita norteador do direito penal.

O delinqüente, num passado não tão distante, era visto como pervertido,

egoísta ou desonesto, necessitando ser punido ou eliminado. Já no presente,

como alguém desajustado, precisando, urgentemente, de tratamento,

educação e ressocialização, por estar na situação de vítima da própria

sociedade, donde a necessidade de assistência. A maneira como tem sido

encarado pelos integrantes das variadas camadas da sociedade, é

comprovada pela história da pena, sua evolução filosófica, natureza, finalidade

e fundamento.

Neste desenvolvimento há uma clara mudança no foco da ação de punir.

Enquanto a clássica reação retributiva repressiva leva o crime e a sua

qualificação ao centro de debates jurídicos, a punição segue como uma reação

lógica legalmente definida e como uma obrigação moral.

Todavia, não basta reconhecer o quadro vigente; é preciso buscar

soluções e diagnósticos para refreá-la ou extingui-la. Nessa batalha em busca

de soluções surgem mecanismos alternativos de solução dos conflitos,

contruibuindo com seus esforços e conclusões no intuito de adequar a

prestação jurisdicional à realidade social.

A introdução de uma abordagem reabilitativa complementar mudou o

foco de interesse parcialmente para o acusado e levou a um número crescente

de reações penais, que permitiu que se levasse em conta as características

pessoais e as necessidades do acusado. O modelo reabilitativo aumentou o

63

escopo da ação de sentenciar e levou à introdução de um conjunto de medidas

e sanções que incluíram sanções comunitárias e medidas de segurança a

serem tomadas contra os criminosos, tendo como pano de fundo a prevenção

individual e geral.

A prevenção não se dá somente contra motivando o infrator potencial

com a ameaça de castigo, contra estimulando psicologicamente; senão de

outras maneiras, apoiando-se em programas que atuam em vários

componentes do seletivo fenômeno criminal como o espaço físico, o clima

social, as condições ambientais, os agrupamentos de pessoas que podem ser

alvos de delitos, a própria população punida, etc. Por esse caminho, a

Criminologia pode contribuir com informações de grande utilidade e, sem

dúvida, necessárias para que o homem sofra intervenção.

Com ligação a criminologia está a vitimologia, incumbida de estudar a

relação vítima-criminoso no fenômeno da criminalidade hodierna, enfatizando a

vítima, como causadora e eventual provocadora da conduta exteriorizada.

Vitimologia e pesquisa vitimológica têm imposto aos criminologistas e

outros cientistas penais que repensem o conceito de punição. O processo de

sentença tem que se endereçar ao crime, às suas conseqüências, à vítima,

assim como ao criminoso e à comunidade em que eles funcionam.

É mister, concentrar a discussão especialmente em torno do

desenvolvimento de uma abordagem restaurativa dentro do contexto de

punição e do processo de sentença. Nessa senda, imprescindível a

abordagem atual, partindo de conhecimentos científicos e de modelos

modernos de prestação jurisdicional, cujos resultados tenham sido favoráveis

no sentido de amenizar os reflexos de um justiça estritamente retributiva..

Vale dizer que a atuação do estado-juiz não é o único modo de se

alcançar a justiça. Assim é que para ter acesso à justiça, nem sempre é

necessário que o problema seja submetido ao veredicto judiciário. Muitas

vezes o melhor caminho a ser escolhido para a solução de uma demanda não

é o processo judicial, mas outras formas menos solenes, tal como a mediação,

inserida dentre os meios alternativos de solução das disputas, que melhor

pacificam a sociedade, viabilizando ganhos mútuos, pois tendem a própria

vontade das partes.

64

Assim, o presente estudo terá como ponto de partida, uma primeira

visão geral tratando da justiça restaurativa e das sanções comunitárias dentro

da prática mundial. A segunda parte será construída em torno do ponto central

de interesse, ou seja, a influência da vitimologia e o desenvolvimento de uma

abordagem restaurativa e a ampliação dos objetivos e práticas da punição. E

por fim, deixa-se claro que também a punição prisional deve ser o tópico

central da abordagem restaurativa. Isto será ilustrado com a apresentação do

plano piloto Belga de prisões restaurativas.

6.2. A proposta Restaurativa: A Justiça Restaurativa é uma nova forma de abordar a justiça penal,

com enfoque nos danos causados a vítima e não na punição dos

transgressores. Nos últimos anos, para além da mediação vítima-agressor,

foram introduzidas novas práticas de participação da comunidade, da família e

amigos das vítimas e dos agressores.

A Justiça Restaurativa tem como objetivo não só reduzir a criminalidade

mas também o impacto dos crimes sobre os cidadãos. “A resolução dos

conflitos por esta via parece ter o potencial de fortalecer as relações ente os

indivíduos e aumentar a coesão social”

Contudo, o conceito de Justiça Restaurativa, como há um consenso

crescente nos últimos anos na teoria e na prática, é amplo. Este conceito, de

origem anglo-saxônica, não é restrito a um método concreto, um programa ou

técnica, mas vai mais na direção de um novo paradigma ou visão global. O que

se quer dizer aqui é o desenvolvimento de outra visão, não só da reação da

justiça penal ou social que deve seguir um crime, mas também e

primordialmente da natureza do crime em si.

Um crime não é visto tanto em termos da violação de regras de lei

abstratas, mas como uma violação das pessoas e relações. Baseado nesta

visão, a reação fundamental é então também direcionada à restauração do

dano: o dano às vítimas, seu ambiente e possivelmente à sociedade, e também

o dano que o agente provocou no seu próprio entorno social.

65

Para muitos, a “Justiça Restaurativa” é uma “terceira maneira”

decididamente a ser escolhida no lugar da lei penal (neoretributiva) e depois do

colapso do modelo reabilitativo.

Uma definição geralmente aceitável de justiça restaurativa é dada por

Tony Marshall numa visão geral de justiça restaurativa publicada pela revista

ultima ratio)20: “Justiça restaurativa é um processo pelo qual as partes com

interesse em um delito específico resolvem coletivamente como lidar com as

conseqüências do delito e suas implicações para o futuro.” Ou de outra

maneira: “A justiça restaurativa é uma abordagem do crime solucionadora de

problemas que envolvem as parte, e a comunidade geralmente, em um

relacionamento ativo com agências estatutárias. Não é uma prática particular,

mas um conjunto de princípios que podem orientar a prática geral de qualquer

agência ou grupo em relação ao crime.”

Também útil para clarificar o conceito é o objetivo expresso nos seus

padrões pelo Consórcio Britânico de Justiça Restaurativa (1998): “A Justiça

Restaurativa procura equilibrar as preocupações da vítima e da comunidade

com a necessidade de reintegrar o agente na sociedade. Ela procura assistir a

recuperação da vítima e capacitar todas as partes com interesse no processo

judicial a participar proveitosamente dele”.

A partir destas definições fica claro que a “justiça restaurativa” não é um

movimento paralelo ou contra o sistema de justiça penal atual. Mais e mais

vozes podem ser ouvidas para integrar ao máximo esta abordagem dentro do

sistema de justiça penal existente para modificar as fundações do próprio

sistema.

Uma segunda clarificação diz respeito a crescente tendência de

desindividualizar a Justiça Restaurativa. No começo estava fortemente

associada à mediação vítima-agente, agora vemos modelos que não envolvem

as duas partes imediatas do conflito, mas também um número de pessoas ou

corpos do seu entorno.

A Justiça Restaurativa na Europa atualmente encontra pelo menos três

grandes desafios. O primeiro é a recuperação ameaçadora desta linha de

20 SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal, Lúmen Júris, 2007.

66

pensamento dentro dos métodos e conceitos dominantes dentro da

administração da justiça penal. O segundo desafio na realização da justiça

restaurativa está na possibilidade de expansão da mediação vítima-agente

para mais categorias de crimes (também sérios) e agentes e na aplicação de

uma abordagem para a vítima nos sucessivos estágios da administração da

justiça penal, incluindo correções e pós-cuidados. Uma terceira tarefa diz

respeito ao estabelecimento de estruturas legais e uma clarificação da relação

do programa de justiça restaurativa em relação aos crimes, ou a sua posição

dentro dos sistemas de justiça penal dos diferentes países.

A questão do enquadramento jurídico destes desafios tornou-se urgente.

Na verdade, só assim será possível oferecer a todos o mesmo serviço e

garantir que todos os implicados num processo penal disponham das mesmas

possibilidades, independentemente da circunscrição judicial do país.

Por outro lado, os projetos poderão passar a desenvolver-se de forma

mais uniforme. Por isso se tem verificado alguma atividade legislativa neste

domínio. Entre 1998 e 2003 várias iniciativas legislativas foram promovidas em

países como a Áustria, República Checa, França, Noruega, Polônia, Eslovênia,

Suécia, Suíça e ainda Espanha, na Catalunha.

Comparando o número de habitantes com o número de processos em

que foi utilizada a mediação, segundo dados de 1998, pode concluir-se que a

Noruega é o país europeu no qual a prática de mediação está mais

desenvolvida, seguindo-se a Áustria, a Finlândia, a França, a Bélgica a

Alemanha e o Reino Unido.

A criação de um quadro legal encorajando a mediação ou impondo uma

oferta de mediação ao longo do processo judicial, neste se compreendendo a

fase de execução da pena, pode constituir um grande impulso para o

desenvolvimento desta forma de Justiça Restaurativa.

No entanto, não deverá ser descurado o desenvolvimento de programas

de sensibilização e deformação destinados às instâncias policiais e judiciárias.

Como se constatou, a maior parte dos programas europeus de justiça

restaurativa são do tipo "desjudicializado”, isto é., os casos são remetidos para

procedimentos restaurativos – na maior parte dos casos, para mediação – em

diferentes fases (começando na fase policial).

67

Situação diversa é a remessa do processo pelo juiz para procedimentos

restaurativos, com vista ao acordo sobre a compensação material e não

material a atribuir à vítima, o qual irá influenciar a sentença. Os procedimentos

restaurativos no contexto prisional – na fase de execução de penas – ocupam,

ainda, um lugar diferente relativamente aos procedimentos anteriormente

referidos.

O potencial ou o resultado esperado deste tipo de procedimentos

pertence à esfera relacional e emocional, mas diz igualmente respeito à

segurança da vítima e à reintegração, ou reinserção social do agressor.

Colocando-se num plano completamente distinto, os procedimentos

restaurativos designados por “sentencing circles”, atualmente em

desenvolvimento no Reino Unido, constituem um modo verdadeiramente

alternativo ao procedimento criminal, não complementar e não se integrando

neste. Estes procedimentos implicam um grande envolvimento da comunidade

no sentido de desenvolver um consenso relativamente à adequada decisão-

sentença final, respondendo às preocupações e interesses de todas as partes,

incluindo a vítima, o agressor, o juiz, a acusação, a defesa, a polícia e todos os

membros da comunidade com interesse no caso.

Esta visão geral, quer detalhar tanto os mecanismos que são impostos

antes do julgamento por um promotor público ou um juiz para evitar processo

penal adicional ou detenção pré-julgamento, como mecanismos impostos pela

decisão da corte, e mecanismos usados pós-julgamento para executar parte da

sentença de prisão na comunidade.

6.3 Consultando o direito estrangeiro.

a) França

A forma de Justiça Restaurativa mais desenvolvida na França é a

mediação penal. E esta ligada, estreitamente, ao sistema penal tradicional. A

mediação constitui uma resposta judicial a infrações como injúrias, violências

ligeiras, furto, contenciosos familiares menores ou mesmo contenciosos de

vizinhança.

68

A mediação penal é promovida por iniciativa do Procurador da República

e decorre num tribunal, numa associação ou numa casa de justiça – a

chamada “maison de justice” Em contrapartida, a prática da mediação está

fortemente regulada, não se limitando apenas ao direito penal. A mediação

penal está institucionalizada no Código de Processo Penal desde 1993.

A prática de mediação tem-se desenvolvido ao longo destes anos,

sobretudo, como se referiu, nas “maison de justice" criadas junto aos Tribunais.

Mas, igualmente, tem havido grande desenvolvimento da mediação realizada,

diretamente, por associações de apoio à vítima e de mediação, existindo,

ainda, um movimento crescente das mediações de bairro para-judiciárias, um

modelo conjunto de gestão de conflitos, associando Municípios e Ministério

Público.

b) Reino Unido

As práticas de justiça restaurativa desenvolveram-se no Reino Unido a

partir de iniciativas locais e comunitárias. Desde 1998 que essas práticas têm

sido introduzidas no sistema de justiça de menores, através de sucessivas

reformas.

A estratégia do Governo, atualmente, é a de desenvolver e maximizar o

uso de práticas de Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal –

reparação às vítimas pelos respectivos agressores, práticas reparadoras para a

comunidade, mediação vítima-agressor nas prisões, durante a fase de

execução de penas e incrementar a pesquisa e o estudo nesta área.

Assim, o Governo criou três planos-piloto de Justiça Restaurativa, os

quais serão acompanhados e avaliados de forma independente por uma

Universidade, visando a recolha de informação sobre o desenvolvimento de

projetos de Justiça Restaurativa e a identificação de áreas problemáticas, um

plano destinado à pesquisa e desenvolvimento de especialização nesta área, o

outro criando um serviço voluntário de mediação para adultos ou jovens

agressores e suas vítimas, condenados a penas em favor da comunidade e

um terceiro, para oferecer justiça restaurativa a autores de crimes, depois da

respectiva condenação.

69

No Reino Unido os processos restaurativos podem revestir diversas

formas, incluindo a mediação vítima-agressor, as conferências restaurativas ou

mesmo a mediação indireta.

c) Bélgica

O parlamento belga votou, em Fevereiro de 1994, uma lei visando a

organização de um procedimento de mediação penal (lei de 10 de Fevereiro

de 1994). Esta lei introduziu no Código de processo penal uma nova

disposição, que permite ao Procurador do Rei cessar as investigações em

certas condições.

A mediação penal aplica-se a infrações cometidas por adultos, punidas

com pena não superior a dois anos de prisão. A mediação penal é realizada

por assistentes de justiça, que são empregados pelo Ministério da Justiça.

Existem ainda programas de mediação para menores delinqüentes, em muitos

Municípios.

A competência destes programas pertence às autoridades federadas e

não ao Ministério da Justiça. Ao nível local, a mediação é organizada por

organizações não governamentais do setor da proteção da juventude. Em

muitos Municípios é, igualmente implementada a mediação no âmbito de

serviços da polícia destinada a infrações de menor gravidade. Se a mediação

for bem sucedida o procurador, posto ao corrente do acordo, arquiva o

processo.

A mediação no contexto prisional tem diversos projetos-piloto. Esta

prática permite assegurar, ainda, a reparação das vítimas ao nível da fase de

execução da pena.

d) Espanha - Catalunha

A introdução, na Espanha, de um programa de mediação e reparação

penal, data de 1990, quando o governo da Comunidade Autonômica da

Catalunha iniciou a aplicação de um programa no âmbito da justiça juvenil.

Dois anos depois, em Junho de 1992, foi publicada uma lei de reforma da lei

reguladora do procedimento do julgamento de menores, a qual veio dar base

legal à aplicação dos programas de mediação e reparação, uma vez que

70

atribuiu ao Ministério Público, a faculdade de decidir não levar por diante o

processo, se fosse conseguida a reparação da vítima. A lei penal de menores,

aprovada em Janeiro de 2000, veio confirmar e ampliar esta faculdade.

No que se refere à justiça penal de adultos, desde Dezembro de 1998

que funciona, no âmbito do Departamento de Justiça do Governo Autônomo da

Catalunha, uma experiência piloto, igualmente constituída por um programa de

mediação. O normativo penal e processual impede, todavia, o crescimento da

mediação na justiça penal de adultos, já que não cabe ao Ministério Público a

instrução do processo, mas sim ao juiz, imperando, ainda, o principio da

legalidade e não da oportunidade, dificultando assim as soluções de consenso.

e) Nova Zelândia

O principal impulso do movimento restaurativo ocorreu na Nova

Zelândia, onde foram incorporados ao sistema algumas práticas da justiça

ancestral dos aborígenes Maoris. Essas contribuições relacionam três aspectos

fundamentais: 1) a participação da comunidade, representada pelo maior

número de pessoas possível (desde que de alguma forma relacionadas aos

envolvidos e aos fatos); 2) o fato das discussões deve ser o fato ocorrido, não

as pessoas de A ou de B; 3) a reparação do dano nos seus aspectos

simbólicos, ou psicológicos, é tão importante ou mais que os aspectos

materiais.

Além dessas contribuições conceituais que foram estruturantes do novo

modelo, a Nova Zelândia, em que inclui expressamente na legislação sobre

crianças, jovens e suas famílias a previsão de que os crimes mais graves

praticados por menores de idade (com exceção dos crimes de homicídio)

passariam obrigatoriamente pelas “Family Group Conferences”, ou seja, por

encontros restaurativos envolvendo réus vítimas e comunidades.

Essa foi a primeira experiência internacional de institucionalização das

práticas restaurativas num Sistema Oficial de Justiça. No ano de 2002, a 21ONU votou uma recomendação sugerindo aos países membros a

incorparação das práticas restaurativas aos seus sistemas oficiais.

21 Anexo

71

Atualmente, toda a Comunidade Européia prepara-se para colocar em

prática, a partir de 2006, uma Resolução que incorporará encontros

restaurativos entre réus e vítimas, entre outras metodologias próprias das

práticas restaurativas, em diversos procedimentos da justiça criminal.

f) América Latina

Na América Latina de hoje reformas são cada vez mais identificadas

com mudanças de caráter gerencial, ou seja, há ênfase em novos padrões de

racionalização de procedimentos, simplificação de esquemas operacionais,

capacitação do pessoal e administração menos burocratizada.

Desse modo, a abordagem estreitamente gerencial do judiciário justifica-

se pelo fato do sistema judiciário se inacessível para amplos segmentos da

população e uma “luta sem fim “ para quem tem acesso e não consegue ver os

seus direitos reconhecidos pela Justiça.

Diante da gravidade da situação, e em linha com propostas que florejam

em décadas recentes, os legisladores da Colômbia regulamentaram a

aplicação de métodos alternativos de conflitos, principiando com a Lei nº

23/1991, que provisoriamente autorizou particulares a administrar justiça sem

necessidade de ação ou sentença judicial.

Os legisladores colombianos forjaram instrumentos de desjudicialização,

que visam, pela ordem, (1) outorgar ou adjudicar competências jurisdicionais a

organismos administrativos (como as “Casas de Justiça”), criadas com apoio

de entidades internacionais e do governo dos EUA, que agrupam todas as

autoridades que aplicam justiça extrajudicialmente: comissários de polícia,

defensores públicos de família etc.), (2) ampliar vias tradicionais ou

comunitárias (incluindo Justiça Restaurativa) de resolução de conflito, Por fim

a Constituição Colombiana atribuiu função jurisdicional a árbitros e

conciliadores particulares.

No Peru há juízes de paz, respeitáveis membros da comunidade que

trabalham à domicílio ou nas empresas, com honorários pagos pelo Estado e

investidos do poder de conciliação na resolução de conflitos submetidos à

justiça.

72

No entanto, em ambos os países aborda-se a conciliação como um

elemento informal e emergencial, basicamente alternativo, em contraposição

aos procedimentos usados pelas instâncias reconhecidas pelo Estado.

Na Argentina, mediação e conciliação se tornaram parte integrante do

sistema, na condição de procedimentos pré-judiciais. Na fase experimental da

vigência da Lei 24. 573/1995 foram excluídas de opção por mediação e

conciliação as causas penais, as causas em que o Estado e seus organismos

eram parte, assim como determinadas questões de família e ações de despejo.

As audiências eram confidenciais e se realizavam nos escritórios dos

mediadores e conciliadores, fixando-se um prazo máximo de 60 dias para o

encerramento dos trâmites. O processo tinha início no balcão de recepção das

varas cíveis, comerciais e federais, preenchendo os interessados um

requerimento, depositando uma taxa de 15 dólares aproximadamente e

conhecendo logo em seguida o mediador, o juiz e os membros do Ministério

Público através de sorteio.

6. 4 O desenvolvimento de medidas e sanções comunitárias

A introdução e o desenvolvimento das medidas e sanções comunitárias

têm sido influenciados pelas percepções variáveis do que é crime e como a

sociedade deve reagir a ele. A maioria das sanções e medidas existentes na

europa atualmente, foi elaborada de acordo com a maneira de pensar sobre

crime e controle do crime predominante na época em que foram introduzidas.

Penas eram impostas de acordo com o modelo repressivo-retributivo. A

soltura condicional, suspensão da sentença, adiamento da execução da

sentença, suspensão condicional e pretoriana da pena foram adotadas de

acordo com o modelo reabilitativo. Mediação penal foi introduzida em

concordância com o modelo voltado à vítima.

Entretanto, algumas medidas e sanções comunitárias têm sido

introduzidas principalmente por razões bem pragmáticas, como a crescente

sobrecarga das cortes e a superlotação nas prisões.

73

A Multa

A multa foi introduzida na Lei do Código Penal moderno em 1867.

Naquele tempo, a punição tinha por objetivo infligir dor e privar o agente de

vantagens ilegalmente adquiridas. A multa era a principal forma de punição que

era executada enquanto o réu ficava na comunidade

A multa é uma punição que consiste no pagamento que uma

determinada quantia em dinheiro ao Estado. O valor da multa depende da

categorização do delito. O código penal sempre indica um valor mínimo e um

máximo. Entre esses limites, o juiz pode livremente determinar o valor exato.

Desta maneira ele pode levar em consideração a seriedade objetiva do crime, o

tipo de crime, o passado legal do criminoso e sua capacidade financeira. Cada

vez que o juiz impõe uma multa, ele também tem que pronunciar uma sentença

de prisão alternativa. Esta sentença alternativa será executada se o agente não

pagar a multa imposta a ele.

Liberdade Condicional (Conditional Release)

Principalmente sob a influência das ciências sociais, a pessoa do agente

se tornou o foco de atenção a partir do final do século XIX. O controle criminal

se tornou uma maneira de remover da sociedade os agentes perigosos e

“incuráveis”. Agentes ocasionais ou inofensivos recebiam punição mais leve,

que tinha que ser adaptada as circunstâncias do caso.

Neste contexto, a soltura condicional é uma fase transitória entre estar

na prisão e a liberdade completa, durante a qual o condenado se encontra sob

uma “liberdade supervisionada”. Estar solto sob condições é um direito e não

um privilégio.

Três condições principais precisam ser cumpridas para um prisioneiro

ser solto sob condicional. Primeiramente o prisioneiro deve ter servido um terço

da pena se não reincidente e em crimes comuns. Se a sentença foi aplicada

por um crime recorrente, a soltura condicional pode ser concedida depois de

ele ter servido metade da pena. Em caso de crime hediondo cumprirá dois

terços de sua sentença.

74

Prisioneiros servindo prisão superior a trinta anos podem ser soltos sob

condicional, depois ultrapassados os prazos acima descritos do total de suas

penas.

Ao contrário de países como Bélgica e França, em que o prisioneiro tem

de apresentar um plano de reabilitação que demonstre a sua boa vontade em

reintegrar a comunidade e estabelecer os esforços já realizados nesta direção,

no Brasil bastem alguns exames criminológicos.

Por fim, mesmo havendo no histórico penal do preso contra-indicações

que mostrem que a soltura ofereça sério risco para a comunidade ou sintomas

que obstrua consideravelmente sua reintegração social, se sua personalidade,

sua conduta durante o encarceramento demonstrar que não oferece risco de

ele cometer novos crimes, o condenado é passível de liberação.

As decisões sobre solturas condicionais são feitas por uma comissão.

Esta comissão consiste em um psicólogo, um assistente social especialista na

execução de sentenças e um psiquiatra, todos do órgão da administração

incumbido da custódia na execução da pena.

Apelações da decisão da comissão não são possíveis. Em nenhum

caso, a comissão ouvirá a vítima (ou o reclamante de direito no caso de a

vítima estar morta) quando esta requisita e mostra interesse legítimo. A

avaliação se concentrará somente nas condições que estão apresentadas no

exame criminológico, pelo Poder Judiciário.

Progressão de Regime (sem similar nos demais sistemas europeus)

Progressão é outra forma de soltar prisioneiros antes de eles terem sido

beneficiados por outras medidas libertarias. Ela afeta principalmente

prisioneiros com um sexto da sentença cumprida e especialmente aqueles que

não podem se beneficiar do sistema de soltura condicional. Este mecanismo

nunca foi tão regulamentado por cláusula estatutária até a repercussão da Lei

dos Crimes hediondos que efetuou proibição inconstitucional reconhecida pelo

Supremo Tribunal federal a posteriori, mas é uma medida de ocasião,

materializada na Lei 11.464/2007 deu-lhe nova roupagem.

75

Suspensão da Sentença (sursi), Suspensão Condicional do Processo e

Transação

A suspensão Condicional do Processo impede a estigmatização que é

inerente a “não ter um registro criminal limpo” desde que cumpridas

determinadas condições O sursi objetiva o adiamento da execução e impede

os efeitos desocializante tais como o recolhimento a prisão, mediante algumas

condições. A transação condiciona o réu ser ou não denunciado, permite a

imposição de conduta ao criminoso que o ajudará a não ser processado caso a

aceite.

Liberdade Provisória (Provisional Release)

A Liberdade Provisória é outra forma de soltar prisioneiros antes de eles

terem sido sentenciados. Ela afeta principalmente prisioneiros sem sentenças,

preso em flagrante ou provisoriamente, que pode se beneficiar do sistema de

soltura desde que compareça regularmente ao Juízo e acompanhe os atos do

processo, mas é uma medida que rareada anda na contramão da evolução.

6.5 Algumas medidas e sanções comunitárias desenvolvidas no sistema

Franco-belgo.

A suspensão da sentença e o Adiamento da sentença.

O juiz pode aplicar a suspensão de uma sentença de até cinco anos de

aprisionamento correcional e quando o réu não tiver sido sentenciado a uma

punição criminal ou a uma sentença de prisão de mais de dois meses.

A suspensão da sentença não pode ser aplicada sem o consentimento

do réu. A suspensão da sentença pode ser revogada se o réu for sentenciado a

uma punição criminal ou a uma punição de pelo menos um mês durante o

período probationary.

O adiamento da execução significa que a sentença foi pronunciada,

mas não será executada contanto que o réu não seja sentenciado a uma

76

punição criminal, ou uma punição correcional de mais de dois meses sem

suspensão da execução durante um período probationary de um a cinco anos

seguintes ao julgamento.

O adiamento da execução é possível para sentenças de até cinco anos

e quando o réu não tiver sido sentenciado previamente a uma punição criminal

de mais de doze meses. O réu precisa consentir. O adiamento da execução é

legalmente revogado automaticamente quando o réu é sentenciado a uma

punição criminal ou punição correcional de mais de dois meses sem a

suspensão da execução durante o período probationary.

Probation

Probation significa que o juiz aplica a suspensão da sentença ou o

adiamento da execução da sentença e anexa condições que o agente tem que

respeitar durante o período probationary. As condições necessárias para

aplicar probation são as mesmas para a suspensão de uma sentença ou para

o adiamento de uma execução. Isto significa que cada vez que o juiz impõe

tanto a suspensão da sentença quanto o adiamento da execução, ele pode

aditar probation22

Quando probation é aditada, a fundamentação para a revogação

continua a mesma, mas além disso pode haver revogação quando o

probationer deixa de respeitar as condições aplicadas e quando a comissão de

probation considera isto sério o suficiente para trazer à atenção do promotor.

Probation só pode ser aplicada quando o réu concorda com as condições

propostas. Fica a critério do juiz decidir que condições ele irá aplicar.

22 De acordo com o sistema anglo-saxão de prova (probation), o juiz suspende a prolação da sentença condenatória, submetendo o processado a um sistema de prova que, se resultar satisfatório evita a prolação da sentença e, consequentemente, a própria condenação. O 8Sistema franco-belga (sursi) leva o juiz a prolatar a sentença condenatória de maneira condicional, isto é, se o apenado condicionalmente cumpre, durante certo tempo, as condições da condenação, é a condenação em si que desaparece. Uma variável deste sistema franco-belga é aquela em que o juiz pronuncia a condenação, e o que se suspende mediante prova é unciamente a execução da pena. Se são cumpridas as condições, não desaparece a condenação, mas unicamente se dá por executada a pena. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro. RT 2003.

77

A lei só indica a possibilidade de aplicar treinamento ou serviço

comunitário e descreve sob que condições isto pode ser feito. Serviço

comunitário pode, por exemplo, ser aplicada por um mínimo de 20 horas e um

máximo de 240 horas e pode ser executada dentro de doze meses durante o

tempo livre do probationer. Para treinamento a duração máxima não é indicada,

mas também tem que ser seguida durante o tempo livre e dentro de doze

meses.

A suspensão da sentença, com ou sem condições de probation, podem

ser aplicadas pelas cortes de investigações e pelas cortes de primeira

instância. Um adiamento da execução da sentença, com ou sem probation,

pode ser aplicada por todas as cortes de julgamento.

O assistente de probation e o comitê de probation são as duas entidades

que monitoram o respeito das condições pelo probationer.

O promotor, o juiz de investigação, as cortes de investigação e as cortes

de primeira instância (exceto pela corte Assize) podem pedir que um assistente

de probation prepare um relatório social de inquérito. Isto pode ser feito a

pedido do réu ou com seu consentimento. Quando o juiz quer aplicar

treinamento ou serviço comunitário como condição de probation, um relatório

social de inquérito é obrigatório.

Penal Transaction

O mecanismo de transaction foi introduzido em 1984, quase que somente

para combater o acúmulo de trabalho nas cortes depois que a pressão política

para que se fizesse alguma coisa em relação a este problema. Entretanto esta

medida também serve ao interesse da vítima. Numa penal transaction o

promotor propõe não processar o agente se ele concordar em pagar uma certa

quantia em dinheiro em benefício do Estado.Se o agente aceita a proposta e

paga, a ação é formalmente retirada. O agente dever ter compensado a vítima

antes que a transaction possa ser proposta.

78

Conditional Pre-Trial Release

Em 1990 o parlamento Belga votou uma nova lei sobre detenção pré-

julgamento. O objetivo desta introdução era a redução do alto número de

prisioneiros em detenção pré-julgamento nas prisões belgas. Esta mesma lei

introduziu o sistema de liberdade condicional chamado Conditional pre-trial

release, que é uma medida pela qual uma jurisdição investigativa, um juiz

investigativo ou em algumas situações um juiz de julgamento, ao invés de

prender um suspeito ou mantê-lo em detenção pré-julgamento, decide deixar

esta pessoa na comunidade ou soltá-la sob certas condições. È uma medida

substitutiva a detenção pré-julgamento.

A lei não dá uma lista limitada de condições que o magistrado pode

aplicar. Mas há algumas restrições. A própria lei diz que o magistrado tem que

mostrar que as condições que ele impõe servem para impedir que o suspeito

cometa novos crimes, fuja, tente destruir provas ou organize um conluio. De

acordo com o Conselho de Estado, condições que dizem respeito à integridade

física e/ou psicológica do suspeito (por exemplo, um tratamento de reabilitação

contra drogas) só pode ser aplicado se o suspeito concordar com elas.

Instâncias diferentes controlam se o agente respeita as condições

aplicadas. Quando a soltura pré-julgamento é concedida por um juiz

investigativo ou uma corte investigativa, é o juiz investigativo que é responsável

por este controle. Quando a soltura pré-julgamento é concedida por um juiz de

primeira instância, a promotoria é responsável pelo controle.

Na prática, a supervisão é feita pela polícia quando as condições têm o

caráter de simplesmente controlar a conduta do agente (por exemplo, não

deixar uma certa área, não consumir drogas ou álcool, manter-se longe de

jogos de futebol...). Quando as condições têm a ver com assistência social (por

exemplo, tratamento de desintoxicação, encontros semanais com assistente

social) a supervisão é feita por um oficial de probation, que trabalha

pessoalmente com o agente ou mantém contato com o serviço social que

trabalha com o agente.

79

Serviço Comunitário

Trata-se de determinação judicial pela qual o condenado receberá

tarefas gratuitas, a serem realizadas perante entidades privadas ou públicas

(como escolas, creches, hospitais, orfanatos, entidades assistenciais,

programas comunitários ou estatais Como explicado acima, o serviço

comunitário pode ser pedido de duas maneiras: como condição para mediação

penal ou como condição para probation.

Tentamos resumir algumas sanções gerais e sua aplicação, na tentativa

de conjugar nos dois modelos juntos (retributivo-restaurativo) a prática da

mediação penal, como será visto adiante.

6.6 A necessidade de uma nova abordagem

As partes anteriores desta visão geral se referem a alguns problemas

fundamentais que dizem respeito às origens, à conceituação e a

implementação de medidas e sanções comunitárias, que têm mais ampla

aplicabilidade no sistema brasileiro.

Em primeiro lugar, medidas e sanções comunitárias são usadas, de

modo geral, de uma forma muito limitada. As razões para isso não estão

sempre claras e têm a ver com uma combinação de fatores. Entre estes estão

o conhecimento restrito sobre as atitudes em relação às alternativas para a

polícia, promotores, juízes e advogados. Uma segunda razão está na fraca

cooperação entre autoridades judiciais e Órgãos não judiciais. Um problema

repetidamente mencionado diz respeito a clássica maneira punitiva de pensar

compartilhada por diferentes grupos profissionais no sistema de justiça penal.

Enquanto o Brasil faz a quase duas décadas a sub-utilização do sistema de

transação penal, a nova medida alternativa de mediação penal que tem sido

implementada quantitativamente e de maneira rápida na Europa, significativa

um vazio na legislação.

Mas mesmo a partir de uma perspectiva de um uso crescente de

medidas e sanções comunitárias, temos que encarar algumas questões

80

fundamentais. Sabemos suficientemente como esta variedade de novos

programas está operando na prática? Que grupos de agentes são atingidos?

Qual a natureza e a qualidade da intervenção? E quanto aos efeitos sobre as

pessoas envolvidas, seu ambiente e sobre a opinião pública? Como estas

alternativas se relacionam com o sistema de justiça formal? Qual o impacto

sobre as taxas de encarceramento? Para a situação Brasileira está faltando

informação essencial sobre a maioria destas questões.

Não há dúvida sobre um ponto: medidas e sanções comunitárias não

funcionam atualmente como alternativa para custódia. Sua introdução não

limitou as crescentes taxas de população prisional. Pelo contrário, descobertas

sugerem que medidas e sanções comunitárias, através do efeito de

mecanismos não-intencionais, se tornem um dos fatores facilitadores para a

expansão das sentenças de prisão. Em um futuro próximo, podemos esperar

um aumento na população prisional.

Um dos efeitos da implementação das medidas e sanções comunitárias

mencionados no último parágrafo é que elas podem indiretamente causar um

input suplementar nas prisões, uma vez que estas alternativas mantêm uma

ligação estrutural ou de fato com a sentença de prisão.

Este pode ser o caso com as medidas e sanções, porque elas podem

aplicar nos agentes que deixam de cumprir suas sanções comunitárias uma

sentença de prisão efetiva ou condicional. A conclusão provisória deste

desenvolvimento paradoxal parece ser que um maior uso de medidas e

sanções comunitárias está de mãos dadas com a expansão da população

prisional.

No Brasil, medidas e sanções comunitárias são aplicadas

principalmente para crimes leves. As condições penais ligam a aplicabilidade

destas sanções e medidas a certos limites de uma possível sentença de prisão

em determinado caso. E mesmo quando o alcance legal é relativamente

amplo, promotores e juízes tendem a usar estas alternativas de maneira

restrita, limitando-as a crimes leves, a réus jovens ou primários, ou a pequenos

delitos.

O resultado geral é um desenvolvimento bilateral. Sanções

comunitárias representam a opção mais leve; elas são vistas como um favor

81

ou uma última oferta para o agente que cometeu um crime menor. Casos

“sérios” então, como crimes violentos e crime organizado são tratados de

maneira mais rígida, porque estes casos não são considerados apropriados à

uma abordagem comunitária.

Entretanto há um aumento de detentos com sentenças de dez ou mais

anos, muitos deles jovens e primários, o que parece confirmar esta dualidade

nas relações penais. De qualquer modo, a prática mostra que mesmo sanções

comunitárias podem ser executadas de maneira punitiva e estigmatizante.

Um novo elemento entra nos debates sobre crimes e justiça penal: a

atenção às vítimas do crime. Isto é totalmente novo nas políticas de justiça

penal, comparado à orientação unilateral ao agente em ambos os modelos

tradicionais: repressivo e reabilitativo.

Esta evolução pode ter conseqüências de longo alcance. Em toda

sociedade ocidental o cuidado com as vítimas de crimes está presente agora

e, por vezes, de maneira explícita. Vitimologia e movimento vitimológico

indubtavelmente afetaram a maneira como a sociedade e o sistema penal

reagem ao crime. Claramente influenciados por esta perspectiva. O novo

Código Belga de Procedimentos Penais(1998) e a nova lei sobre Soltura

Condicional (1998) também integram a posição da vítima nos seus

procedimentos.

Falar sobre sanções e sanções alternativas sem levar em conta a

posição da vítima se tornou quase impossível. A vítima é também

representada nas Regras Européias sobre medidas e sanções comunitárias,

conforme grifamos: (Recomendação R99(16), onde a Regra 30 estipula: “ a aplicação e

implementação de medidas e sanções comunitárias deve

desenvolver o senso de responsabilidade do agente em relação à

comunidade em geral e à vítima em particular13”.

O interesse da vítima assim como a importância do envolvimento da

comunidade são também enfatizados pelas Regras Mínimas das Nações

Unidas para Medidas não Privativas de Liberdade. Regra 30 estipula: “ a aplicação e a implementação de medidas e

sanções comunitárias deve desenvolver o senso de

82

responsabilidade do agente em relação à comunidade em geral e à

vítima em particular.

Os direitos das vítimas são mencionados em diversas Regras, que lidam

com salvaguardas legais, dispositivos pré-julgamento e prevenção de prisão

preventiva, dispositivos e condições de medidas não privativas de liberdade. Regra 8.1 sobre disposições de sentenças estipula: A autoridade

judiciária, tendo à sua disposição um arsenal de medidas não

privativas de liberdade, tem em conta, na sua decisão, a

necessidade de re-inserção do agente, a proteção da sociedade e

do interesse da vítima, que deve poder ser consultada sempre que

for oportuno.

Há claro, o risco de que a atenção à vítima e o reforço de sua posição

dentro dos procedimentos de justiça penal reforce mais uma vez o modelo de

justiça retributiva. Sendo assim, uma abordagem equilibrada é necessária, o

que garante a atenção devida à vítima, ao agente e à sociedade.

Este novo modelo pode ser encontrado no conceito de “justiça

restaurativa”.23Justiça restaurativa não é uma nova sanção, medida ou

programa. Justiça restaurativa se refere a um conjunto de princípios e valores,

que representam uma maneira específica de definir crime e elaborar reações

sociais adequadas. Um crime não é mais visto como uma violação de regras

abstratas, mas como um conflito que causa dano às pessoas e relações.

Dentro deste raciocínio, a resposta do sistema de justiça penal deve

primeiramente se concentrar nas necessidades das vítimas e comunidades

locais.

Os programas de justiça restauradora habilitam a vítima, o ofensor e os

membros afetados da comunidade para que estejam diretamente envolvidos

junto ao Estado a fim de dar uma resposta ao delito.

A Justiça Restaurativa tem cinco tópicos básicos:

1.O delito é mais que uma violação à lei é um desafio à autoridade do governo;

23 Ver Marcos jurídicos de referência. SICA.Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: O Novo Modelo de Justiça Criminal e de Gestão do Crime. Lúmen Júris.2002

83

2. O delito implica um rompimento em três dimensões: vítima, delinqüente e

comunidade;

3. O delito fere a vítima e a comunidade;

4. A vítima, a comunidade e o delinqüente, todos, devem participar para

determinar o que está ocorrendo e qual o caminho mais adequado para a

restauração do dano.

5. A resposta deve basear-se nas necessidades da vítima e da comunidade e

nunca na necessidade de evidenciar a culpa do infrator, os perigos que este

representa, nem sua história de delitos

Como programa pode-se elencar como base:

- É uma maneira diferente de pensar sobre o delito e a resposta a suas

conseqüências;

- Busca a reintegrar à comunidade tanto a vítima como o ofensor;

-Reduz, a partir da prevenção, as possibilidades de danos futuros;

- Necessita do esforço cooperativo da comunidade e do Estado;

- Entende o delito como gerador de uma ferida na pessoa e um rompimento em

suas relações. Isto cria a obrigação de pôr as coisas em ordem

Dada uma visão clara e bem articulada sobre vitimização, suas

conseqüências e das respostas desenvolvidas pelo sistema de justiça penal, é

nossa intenção discutir a mudança do paradigma penal como resultado da

análise e pesquisa científica. Mais que outras partes das ciências

criminológicas, a vitimologia se tornou uma abordagem aplicada claramente.

Isto inclui uma grande diversidade de práticas e ações orientadas para a

proteção, apoio, assistência e o reforço da posição legal das vítimas de crime.

Estas práticas têm sido realizadas dentro de estruturas de políticas

diferentes e oferecem legitimidade a diversos tipos de grupos de profissionais e

cidadãos que tenham a colaborar neste campo. Vitimologia e justiça

restaurativa são, além de um importante campo de aplicação nas ciências

criminológicas, um campo de batalhas ou encontro onde muitos interesses se

opõem.

84

6.7 Vitimologia e Movimento Vitimológico

O fato de a vitimização desde as últimas duas décadas ter se tornado de

interesse criminológico primário e ser dada alta prioridade em agendas políticas

só é memorável porque o oposto, a falta da perspectiva da vítima, tem sido

uma regra geral nos anos procedentes. Dos três protagonistas de um crime, o

agente, a vítima e a comunidade, a justiça penal tem sempre focalizado na

relação entre o agente e a sociedade.

Pesquisa em justiça criminal foca principalmente nos problemas de

proteção legal do suspeito ou nos problemas da eficiência do sistema. Os

interesses da vítima do crime têm sido por um longo tempo deixado de lado.

Punição e reintegração social do agente polariza os poderes da justiça penal. A

partir do momento da denúncia do crime a vítima experimenta a passiva

posição de testemunha.

Entretanto, a história da administração da justiça penal mostra que em

sociedades não estatais a vítima tem uma posição igual comparada ao agente.

Para acabar ou evitar desavença, vingança e até mesmo guerra, o arranjo

particular do dano, levando em consideração o princípio da proporcionalidade,

se tornou uma prática usual em que a mediação não seria exceção.

A primeira atenção penal sistemática dada às vítimas de crime estava

subordinada às questões etiológicas tradicionais (sobre as causas do crime) de

criminologia positivista. Desde os anos quarenta alguns criminologistas, que

agora são vistos como os “pais fundadores24” da vitimologia, focaram suas

pesquisas no papel da vítima na construção do ato criminoso (Mendelsohn

1956 and Von Hentig 1941); Desenvolveram uma tipologia vítimo-genética ( o

processo de se tornar uma vítima) na qual o grau de culpa ou inocência e o

grau de resistência ou colaboração com o agente tornou-se critério para

distinguir entre as vítimas.

O estudo da vítima, suas características, seus relacionamentos e

interações com o vitimizador, seu papel e sua contribuição para a gênese do

crime pareciam oferecer grande promessa para transformar a criminologia

etiológica de um estudo estático e unilateral das qualidades e atributos do 24 KOSOVSK, Ester. Artigo: Fundamentos da vitimologia, disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.

85

agente em uma abordagem situacional dinâmica que vê o comportamento

criminoso como resultado de processos dinâmicos de interação.

A abordagem empírica da perspectiva vitimológica na criminologia

positivista tem sido o estudo de Marvin Wolfgang25 “Padrões de homicício

criminal” no qual ele desenvolve o conceito de “precipitação da vítima” para

expressar a contribuição da vítima na realização do crime. Usando o mesmo

conceito em um estudo sobre estupro provocou fortes reações negativas do

ponto de vista feminista. Seu estudo não foi visto como uma análise objetiva da

relação entre agente e vítima, mas como um julgamento moral de culpar a

vítima. Este foi o fim da abordagem vitimológica etiológica e um passo

importante na direção de um novo movimento vitimológico tipificado por Fattah

(1979) como “ de uma vitimologia do ato para uma vitimologia da ação26”. Desde os anos sessenta há uma clara mudança dentro das ciências

criminológicas de uma perspectiva clinico-psicológica para uma perspectiva

socio-interacionista. Uma das mais importantes reflexões clínicas se refere ao

estudo da quantidade de crime na sociedade. As fontes clássicas de

estatísticas de crimes têm sido questionadas de maneira fundamental pela

abordagem de reação social do crime (teoria do rótulo), que se concentra na

compreensão e análise da seletividade da ação da polícia e o sistema de

justiça penal ao lidar com o crime.

Para ser capaz de medir o fenômeno do crime pesquisadores

embarcaram no assim chamado “número negro do crime”, usando estudos de

auto-relatórios nos quais um cidadão é abordado como um agente em potencial

que é requisitado a reportar sobre crimes cometidos nos últimos 6 ou 12

meses. Discutindo os resultados destes estudos e, especialmente os

problemas metodológicos, ao tentar conseguir informações adequadas dos

agentes em potencial resultou em um passo a frente na direção pedir aos

cidadãos para reportar como vítimas em potencial de crimes. Depois de pouco

tempo uma rápida e crescente prática de “levantamento de vítimas” se

desenvolveu.

25 Wolfgang, Marvin E. & Ferracuti, F., The subculture of violence: Towards an integrated theory in criminology, London, 1967 26article: “victimology: past, present and future” Ezzat A. Fattah. Criminologie. Vol. 33, n.1, 2000, p. 17-46 Pour citer cet article, utiliser l’adress suivante: http://id.erudit.org/iderudit/004720ar

86

Levantamento de vítima passo-a-passo tornou-se importante para

vitimologia como parte da criminologia. Os levantamentos de vítimas têm sido

preenchidos com perguntas referentes a diversas experiências das vítimas, as

conseqüências desta vitimização, as reações à vitimização pela polícia,

promotor, juiz e a atitude das vítimas em potencial em relação ao crime,

insegurança na vizinhança e sentimentos de medo.

Assim tornam-se instrumentos completos de pesquisa vitimológica e

permitem uma análise vitimográfica estendida que é muito mais rica que a

simples medida de um crime.

Por derradeiro, é mister dizer que o feminismo é um movimento político

emancipativo que teve influência decisiva na mudança do conteúdo da

vitimologia nos anos setenta.”

A mudança no pensamento vitimológico pode ser definida como uma

orientação explícita da vitimologia em direção a ações e intervenções em favor

de mulheres vítimas de agressões sexuais, de violência intra-familiar e de

estupro. Ao mesmo tempo havia uma crescente atenção às diferentes formas

de negligência, abuso e maus-tratos de crianças.

Teóricos e pesquisadores empíricos foram diretamente confrontados

com os fatos sociais que estimularam pesquisas relativas às conseqüências

morais, materiais, físicas e psico-sociais da vitimização. O desenvolvimento

temático da legitimação cultural da vitimização de mulheres revelou as

justificativas sócio-culturais de violência física contra mulheres como parte da

socialização de homens e os preconceitos entre polícia e pessoal da justiça

como seus correlativos.

Entretanto, os interesses e necessidades das vítimas do crime foram

respondidas e cuidadas apenas a partir do começo dos anos setenta na

Europa, assim como na América do Norte, por iniciativas locais nas quais o

começo da convicção e inspiração feminista determinaram o sabor e cor.

A partir dos anos oitenta a assistência à vítima abriu seu caminho sob as

asas de organizações nacionais que agiam como parceiras do governo. Na

Europa, diferentes organizações começaram suas reuniões internacionais a

partir de 1986 e fundaram uma organização superior européia, “O Fórum

Europeu de Serviços e apoio a Vítimas”. O conselho da Europa, desde um

87

primeiro momento, teve um papel de apoio ao desenvolvimento de esquemas

de compensação de vítimas, de assistência às vítimas e de orientar a polícia e

o judiciário em relação aos problemas das vítimas de crime.

Enquanto em alguns países sempre houve leis sobre compensação de

vítimas (por exemplo, na Grã-Bretanha, Os Países Baixos, a França) e em

outros países como a Bélgica o debate ainda estava acontecendo e sem tal

regulamentação foram fortemente estimulados a introduzir seu próprio

esquema de compensação.

Esta pesquisa moderna sobre as conseqüências da vitimização deu um

forte impulso na comunicação entre cientistas e os responsáveis pelas

diretrizes políticas. Entretanto, os programas de justiça restaurativa não podem

ocupar o espaço de justiça criminal, pois sempre haverá vítimas e ofensores

que escolherão ter seus casos mantidos naqueles. Quanto ao sofrimento da

vítima, essência pretendida pela justiça restaurativa, é franqüeado uma

modalidade mais satisfatória de compensar a dor.

As conseqüências da vitimização não são fáceis de estimar com base

na seriedade do crime. Pesquisas com vítimas têm largamente demonstrado

que grande a maioria experimentam nenhuma ou poucas conseqüências

seguintes à vitimização, uma vez que o que aconteceu não é na maioria das

vezes alguma coisa muito séria. Entretanto, estudos qualitativos mostram

que em um número limitado de casos as conseqüências podem ser muito

sérias também a longo prazo e difíceis de sobreviver e lidar com elas.

As características das vítimas, seus comportamentos e capacidades,

suas possíveis experiências com o crime, mesmo no passado e a eventual

influência de outros problemas emocionais são, combinados com o contexto

social em que vivem, os fatores mais importantes que determinam o impacto da

vitimização.

Entretanto, os riscos de extensas conseqüências são em primeiro lugar

dependentes dos crimes como assassinato, homicídio, violência, abuso e

estupro. Estes crimes provocam quase sempre um acúmulo de efeitos variando

entre a perda da vida, sérios danos físicos, a perda de integridade psicológica e

outras conseqüências financeiras ou materiais.

88

Com freqüência estes efeitos provocam uma perda irreversível de

qualidade de vida para a vítima e seu grupo social e a apropriação do conflito

pelo poder público, não leva a exclusão desse sentimento.

O acesso à justiça para as vítimas começa com o contato com a polícia.

Por isso este contato tem estado no centro das atenções das políticas de

vítimas desde os anos oitenta. A Recomendação Européia R(85)11, sobre a

vítima na estrutura da lei e processos penais discute explicitamente o que deve

ser feito por estados membros a nível de polícia, a nível de justiça, o

questionamento da vítima e a nível de processos legais.

A principal mensagem é a obrigação da informação. Em todos os níveis

o acesso à informação sobre como o caso está sendo conduzido é a

expectativa básica de todas as vítimas. Durante a última década muito trabalho

tem sido feito em preparar, treinar e apoiar a polícia e mais recentemente

serviços de promotoria estariam preocupados sobre como as vítimas são

recebidas, tratadas, informadas e quando necessário, recomendadas a

serviços mais especializados.

A Recomendação R(87)21 que trata da assistência às vítimas e

prevenção da vitimização, enfatiza a necessidade de coordenar as relações

entre assistência à vítima e as agências do sistema de justiça penal. Mais

recentemente na Recomendação R(98)13 sobre intimidação de testemunhas e

o direito de defesa, o foco é posto no desenvolvimento de medidas práticas e

legislativas apropriadas para proteger testemunhas, freqüentemente as vítimas

de crime, para serem capazes de testemunhar livremente. Atenção especial é

dada a problemas experimentados em relação ao crime organizado e em casos

de crime dentro da família.

Por outro lado, programas de compensação estatal foram introduzidos

primeiramente na Grã-Bretanha (1964) e em outros lugares desde o final dos

anos setenta (por exemplo, na Holanda e na França). Neste momento a

maioria dos países tem seguido estes exemplos. Estas práticas introduzidas

por lei visam à compensação financeira para vítimas de crimes violentos

(intencionais) no caso de o agente continuar desconhecido ou insolvente.

Embora diferenças marcantes existam entre os muitos sistemas

nacionais especialmente ao definir o grupo de vítimas que pode receber

89

compensação e a compensação máxima, há no entanto pontos claros de

semelhança. O mais importante é que nenhum destes programas dá à vítima o

direito formal à compensação financeira.

A compensação estatal para vítimas é baseada no princípio de

solidariedade. A compensação financeira é uma decisão a critério de uma

comissão que julga com base em justiça. Estes princípios foram consolidados

também quando alguns países alteraram a lei (alguns várias vezes) no sentido

de mais flexibilidade em relação à compensação (por exemplo, através de

empréstimos antecipados).

As críticas permanecem em todos os lugares quase as mesmas.

Compensação estatal é um procedimento complexo, de longa duração, que

leva a um resultado bem sucedido em um número bem limitado de casos.

Frustrante para as vítimas são as muitas obrigações administrativas, a

incerteza sobre a decisão, a longa espera e a falta de informação sobre a

determinação sobre o valor da compensação. Tudo isto é acrescido da

frustração que muitas vítimas experimentam no contato com a polícia e o

judiciário.

O procedimento de compensação estatal é freqüentemente uma

continuação de uma “vitimização,” sendo que este conceito se refere à

continuação de experiências negativas da vítima que se seguem ao primeiro

choque do momento quando o crime é cometido.

A maneira pela qual o entorno da vítima, mas principalmente as

instituições oficiais, reagem à “vitimização” freqüentemente provocam efeitos

negativos que podem ser mais traumatizantes do que a experiência inicial do

crime.

Estes fenômenos são extremamente importantes e pertencem à visão

total das conseqüências. Pesquisas focadas nos problemas decorrentes da

ação danosa têm sido a base para a demanda e a construção de uma posição

legal para a vítima nos processos de justiça criminal.

90

6.8 Mediação Penal: projeto belga, uma resposta às necessidades das Vítimas.

Vítimas em geral expressam a necessidade de entender sobre o que

aconteceu e em muitos casos eles desejam deixar claro para o agente as

conseqüências do crime. Estes elementos são freqüentemente assuntos

importantes para lidar com o evento e seus resultados.

Quando questionados sobre o desejo e as possíveis conseqüências de

um encontro e discussão com o agente, um significante grupo de vítimas

confirmam que eles gostariam de fazer uso desta oportunidade. Iniciativas em

relação à mediação entre vítima e agente foram solicitadas pelas acima

mencionadas Recomendações R(85)11 e R(87)21 do Conselho da Europa. E

acima de tudo, nós devemos nos referir a Recomendação R (99)19 pelo

conselho da Europa no que diz respeito à mediação em assuntos penais.

A recomendação reconhece, entre outros, “o legítimo interesse das

vítimas para ter uma voz mais forte ao lidar com as conseqüências de sua

vitimização, comunicar-se com o agente e obter desculpas e reparação”.

Um dos benefícios da mediação pode ser a possibilidade da vítima ter

uma compreensão mais realista do agente e seu comportamento”. A mediação

vítima-agente não precisa ser limitada necessariamente a uma única prática.

Há um número de projetos-piloto na Europa continental, que tem vindo a

aumentar, e o interesse, neste domínio, é crescente. Os projetos que têm sido

implementados apresentam, geralmente, relação com o sistema penal

tradicional.

Enquanto em programas de assistência à vítima, esta fica principalmente

numa posição externa em relação ao sistema judiciário, a mediação permite

que ela integre suas necessidades e interesses dentro do processo de justiça

penal. A mediação desta forma mostra que ao satisfazer os interesses da

vítima, o agente e a sociedade em geral não são incompatíveis. A natureza

conciliatória da mediação pode assistir ao sistema de justiça penal em realizar

um dos seus objetivos principais, ou seja, 27contribuir para uma sociedade

pacífica e segura, ao restaurar equilíbrio e paz social após um crime ser

cometido. 27 European Forum for Victim-Offender Mediation and Restorative Justice (ed.), Victim-Offender Mediation in Europe:Making Restorative Justice Work,Leuven, University Press, 2000, p.14

91

A recomendação afirma que a mediação vítima-agente deve ser um

serviço disponível em todos os estágios do processo de justiça penal. Além da

definição de mediação vítima-agente e a menção de alguns princípios gerais, a

recomendação lida com a necessidade de uma base legal para mediação, a

relação com a justiça penal e a operação dos serviços de mediação. Muita

atenção é dada às qualificações, seleção e treinamento de mediadores e o

desenvolvimento dos padrões de prática.

O reconhecimento de questões específicas das vítimas, junto com a

busca por uma maneira mais significativa e eficaz de trabalhar com os agentes,

levou à criação da mediação vítima-agente ou programas de reconciliação em

muitos países. Após as primeiras iniciativas acontecerem no Canadá e

subseqüentemente nos EUA nos anos 70, no começo dos anos 80 o

movimento se espalhou pela Europa. Entretanto, deve-se notar que alguns

países Nórdicos desenvolveram simultaneamente iniciativas de certa maneira

independentes.

A Noruega e a Finlândia são agora dois países com larga prática de

mediação que em ambos os casos se esforçam por um modelo voluntário.

Membros da comunidade local são ativos na mediação – tanto nos casos

penais e civis – e são apoiados por um coordenador pago pelos serviços

municipais.

Enquanto na Noruega e na Finlândia a mediação se desenvolveu

separadamente da “probation” e de programas de assistência à vítima,

descobrimos que na Áustria, Alemanha e Reino Unido serviços de “probation”

estão a frente na organização de mediação vítima-agente. A Áustria tem tido

um papel pioneiro no desenvolvimento de um modelo de mediação para

menores e criou uma bem organizada rede de serviços para

“Aussergerichtlicher Tatausgleich”.

O maior número de serviços de mediação, entretanto, é encontrado na

Alemanha: uns 300 serviços para “Täter-Opfer Ausgleich”, dos quais aqui

também a grande maioria (260) é direcionada a jovens infratores.

O fato de que em alguns países serviços direcionados ao agente como

“probation” tem sido a força motriz por trás dos primeiros movimentos colocou

inicialmente o movimento da vítima em uma certa posição defensiva. O medo

92

era que a vítima pudesse ser “usada” em benefício dos interesses e tratamento

do agente.

Como a prática da mediação vítima-agente progrediu, os métodos de

mediação foram vislumbrando mais às necessidades das vítimas. Logo o

resultado de pesquisas sobre os efeitos positivos para as vítimas foram

revelados e esta resistência diminuiu.

Na França, o apoio às vítimas tem tido um papel estimulador mais

importante desde o começo ao fundar serviços de mediação. Já na Bélgica, o

modelo de mediação tem sido desenvolvido para crimes mais sérios, com o

foco sendo amplamente as necessidades das vítimas como ponto de partida.

Além dos países europeus mencionados, onde a mediação vítima-agente

passou por forte desenvolvimento, outros países tomaram iniciativas na forma

de projetos-piloto. Estão incluídos aqui a Dinamarca, Irlanda, Itália,

Luxemburgo, os Países Baixos, a Espanha e a Suécia. Países do centro e leste

Europeu tem recentemente sido ativos também e começaram programas de

mediação, por exemplo, a Albânia, a República Tcheca, a Polônia, a Rússia e

Eslovênia.

Uma grande maioria de casos de mediação vítima-agente nos países

europeus envolve crimes relativamente leves de propriedade ou violência

menos séria cometida por jovens que são freqüentemente e na sua maioria

primários. Crimes violentos ou mais sérios por adultos ou jovens, entretanto,

não são excluídos e alguns programas focam especialmente nestes tipos de

casos. Mas é preciso admitir que o impacto quantitativo de programas de

mediação vítima-agente nos diferentes países europeus continua um tanto

limitado.

Em um número de países europeus a mediação vítima-agente recebeu

uma base legal, como parte do Ato de Justiça Juvenil (Áustria, Alemanha,

Finlândia e Polônia), o Código de Processo Penal (França, Bélgica, Finlândia e

Polônia), o Código Penal (Alemanha, Finlândia, Polônia), ou como uma “lei de

mediação” autônoma (Noruega).

Em relação ao processo e efeitos da mediação vítima-agente, muita

informação de pesquisa avaliativa, de natureza quantitativa e qualitativa,

tornou-se disponível (veja, por exemplo, Dünkel, 1996). Não podemos entrar

93

em detalhes aqui, mas as descobertas mais importantes e promissoras dizem

respeito ao grau de satisfação das partes, a boa-vontade de participar, o

número de acordos alcançados e o conteúdo dos acordos, as taxas de

observância, o efeito sobre a reincidência, o trabalho e o tempo intensivo no

processo de mediação e a eficácia de custos.

“Mediação por reparação” começou em 1993 como um programa local

em Leuven e se estendeu para outros distritos judiciais até o fim de 1998. O

programa lida exclusivamente com crimes com certo grau de seriedade e

opera paralelo à ação penal. Os objetivos centrais do programa eram

inicialmente o desenvolvimento de uma metodologia apropriada para mediação

em crimes sérios e a verificação do efeito da mediação no processo de

sentença.

O mediador foca na comunicação profunda e troca de informações entre

vítima e agente. Através de vários contatos separados com a vítima e o

agente, o mediador prepara cuidadosamente um encontro direto. O resultado

da mediação é posto em um acordo escrito, que contém todos os elementos

da restauração material e não-material.

O programa opera em uma relação próxima com o serviço de

promotoria e com os juízes investigativos, mas a mediação mesma é feita

independentemente do sistema judicial. Os mediadores são profissionais e seu

trabalho é organizado e supervisionado por um comitê diretor local

independente, que consiste em representantes de todas as agências parceiras.

A “mediação por reparação” é reconhecida como um dos “programas piloto

nacionais” para medidas e sanções alternativas, que implica financiamento

total pelo ministério da Justiça. O programa é dirigido pela organização não-

governamental flamenga “Suggnomè”.

O número total de casos no projeto experimental “mediação por

reparação” continua limitado: 140 casos (files) selecionados no período de

1993-1997. Este número relativamente limitado se deve ao trabalho de

mediação demorado neste tipo de caso e o pessoal restrito (dois mediadores

em tempo integral, nenhum voluntário envolvido). Ao calcular o número médio

de contatos por caso, excluindo contatos administrativos (marcar encontros,

enviar uma primeira carta informativa, localizar a pessoa), encontramos os

94

seguintes números para 1997: 6 visitas domiciliares por caso.; 1.4 encontros

no escritório de mediação; 9.2 contatos telefônicos; 6.3 contatos por carta28.

De todos os casos em “mediação por reparação”, 50% resultam em

acordos escritos. Os conteúdos destes acordos podem ser categorizados

como: informação sobre o crime, suas razões e circunstâncias; o significado

pessoal dos fatos e suas conseqüências para as vítimas, o agente e o entorno;

a percepção de atitude de cada parte em relação a outra parte, os problemas

e possibilidades de reparação ou compensação; a quantidade de restituição

financeira ou a maneira pela qual a reparação material ou simbólica deve ser

feita; a reação preferencial do sistema penal. Desculpas podem ser oferecidas

e aceitas pela outra parte. O acordo pode mencionar que a vítima está

preparada para suspender o pedido de compensação.

Entrevistas de avaliação, após um primeiro período experimental, com

vítimas e agentes envolvidos demonstram um alto grau de satisfação geral

com mediação por reparação. Este resultado é congruente com o que foi

descoberto na maioria das pesquisas avaliativas. Entretanto o programa

Leuven mostrou que mediação em crimes mais sérios pode funcionar e coloca

elementos específicos na comunicação entre vítima e agente, e também que

este tipo de mediação traduz oportunidades de implementar uma nova relação

entre a justiça penal e os cidadãos.

Aqui algumas condições do sistema belgo, sob as quais o promotor pode

propor mediação penal:

(i) reparação dos danos causados à vítima ou restituição de certos

bens: neste caso o promotor pode convocar a vítima e o agente para

uma mediação para resolver o caso:

(ii) submeter-se a tratamento médico ou terapia apropriada, se o agente

atribui o delito a uma doença ou dependência ao álcool ou às drogas;

(iii) seguir um programa de treinamento de até 120 horas;

(iv) executar serviço comunitário de até 120 horas. 28 Projecto “mediação para reparação”, experiência que teve início em l de Janeiro de 1993 e que se tornou, desde l de Janeiro de 1996, uma prática normal da justiça criminal no distrito judicial de Lovaina, na bélgica, retratadas em diversos artigos de Ivo Aerstsen e Tony Peters

95

O tempo máximo para realizar as condições propostas é de seis meses

para as medidas 2, 3 e 4, e indeterminado para a medida 1. Vale ressaltar, que

no Brasil algumas dessas condições são aplicadas em institutos diversos.

Para implementar a mediação penal, três novas proposições seriam

criadas, a partir do sistema franco-belga, todas três dentro do serviço do

Ministério Público. Em cada tribunal de primeira instância um promotor público

adjunto seria designado como corregedor para mediação penal (“mediation

magistrate”). Ele não faz o trabalho concreto de mediação, mas é responsável

pela seleção dos casos, a supervisão do trabalho de mediação e a sessão final

em seu gabinete. No serviço de procuradoria destas mesmas cortes, um ou

mais assistentes sociais funcionam como assistentes de “mediação”. Eles

fazem o trabalho prático para as quatro possíveis modalidades de mediação

penal: contatar as partes, preparar as condições, mediar nos casos em que a

vítima é envolvida e dar seqüência aos acordos.

Em cada tribunal de segunda instância, dentro do gabinete do promotor

geral, dois conselheiros de mediação são apontados para coordenar o trabalho

dos assistentes de mediação, para dar-lhes suporte e desenvolver uma política

criminal para a mediação.

Enquanto o assistente de mediação faz a maior parte do trabalho

preparatório e de mediação, o corregedor de mediação (mediation magistrate)

preside a sessão formal que conclui o procedimento. Ambos, o agente e a

vítima, têm o direito de serem assistidos por um advogado e a vítima pode ser

representada. As especificações ou condições do acordo serão registrados em

um relatório oficial (um procès-verbal). Quando o agente completa as

condições, uma segunda procès-verbal é redigido, declarando que a ação

pública está extinta. Se ele não cumpre o acordo, o corregedor de mediação

pode intimá-lo a comparecer ao tribunal, mas ele não tem obrigação legal de

fazê-lo, ou dar prosseguimento pela via jurisdicional.

96

6.9. Detenção Restaurativa: modelo belga

Desde o início de 1998 o projeto piloto belga “detenção restaurativa” tem

sido ativo em seis prisões belgas. Em 2000, mais rápido do que o esperado, os

responsáveis pelas diretrizes políticas cuidaram para que o projeto tivesse se

firmado no estabelecimento penal belga de forma global. Assim, é mister fazer

um breve esboço do começo e desenvolvimento do projeto ‘detenção

restaurativa’.

O nome do projeto por si só, “detenção restaurativa”, parece envolver

uma contradição de termos. Também fica claro que a introdução a e a visão

por trás de um projeto tão provocativo requer explicação. Isto é feito na

primeira parte. A segunda parte ajuda a compreender alguns aspectos do

propósito do plano piloto.

Este projeto está situado dentro de uma tradição de pesquisa e uma

política de criminalidade. Por um lado, o projeto representa um passo lógico no

desenvolvimento das atividades de pesquisa da Katholieke University Leuven

voltadas para mediação e justiça restaurativa. Por outro lado, influências

externas papel significativo na gênese deste projeto de pesquisa.

Reciprocidade contínua entre influências internas e externas deu ao projeto o

formato atual.

A iniciativa de detenção restaurativa veio do grupo de pesquisa de

Penologia e Vitimologia. A um tanto estranha combinação de pesquisa

direcionada à vítima e à punição é parte de uma tradição que engloba três

décadas.

No começo, o foco acadêmico do grupo de pesquisa era nos estudos do

sistema prisional, estudos de punição em geral, e também como precursor do

presente, o uso (bastante marginal) de sanções comunitárias, que foi sujeita à

reflexão crítica.

Com o estudo e análise de crimes de propriedade violentos e a

necessidade de pesquisa vitimológica, surgiu a partir de 1986, uma abordagem

que atraiu muita atenção. Tanto estudos de vitimização qualitativa quanto

quantitativa trouxeram à tona a posição problemática da vítima na

administração da justiça penal. Especialmente vítimas de crimes de

97

propriedade violentos eram foco das pesquisas. A marginalidade judicial da

vítima era um dos temas de política mais importantes.

Uma mudança na abordagem utilizada em pesquisa ocorreu por volta de

1990. Com base na experiência obtida e em descobertas em pesquisa

vitimológica, a partir dos anos 90 uma abordagem mais pró-ativa foi utilizada.

Por um lado, foi dado início ao desenvolvimento temático de novas práticas

desenhadas para atender as necessidades das vítimas. Por outro, foi feito um

exame de como a prática do processo penal pode ser influenciada e como as

respostas rotineiras à criminalidade podem ser desafiadas.

A pesquisa-ação se concentra no desenvolvimento e avaliação de

novas práticas e também foca no ajuste ou reestruturação de práticas

existentes. Isto permite aos pesquisadores abordar o sistema de justiça penal

do um ponto de vista da solução de problemas. Ao mesmo tempo, este método

também recebeu aprovação devido a seu caráter inclusivo. Essa pesquisa-

ação permite que todas as partes estejam ativamente envolvidas na busca de

uma solução para o problema. Este método foi empregado até o fim de 2000,

também no projeto de “detenção restaurativa”.

Reflexões sobre o aprisionamento levaram à descoberta de que

enquanto por muitos anos a prisão aparecia como último recurso na retórica

governamental, a prática real revelava um quadro completamente diferente. A

administração da justiça criminal na Bélgica está longe de ser imune ao uso de

privação de liberdade.

O estoque no sistema prisional belga cresceu quase 40% na última

década. Os anos 80 foram caracterizados por uma média de aproximadamente

6.000 prisioneiros. Durante os últimos dez anos este número cresceu para

aproximadamente 8.500 prisioneiros. A partir disso pode-se concluir que a

sentença média de prisão aumentou significantemente. Os suspeitos são

detidos por até 30% mais tempo, enquanto o grupo com as sentenças de

prisão mais longas (mais de três anos) cresce regularmente. Assim, de maneira

nenhuma podemos falar de prisão como último recurso.

Nos grupos de pesquisa de penologia e vitimologia, a visão

predominante é que para lidar construtivamente com a criminalidade um apelo

98

deve ser feito tanto para o agente quanto para a vítima, é que o criminológico e

o vitimológico não podem ser separados um do outro.

Para tanto, respostas na direção da justiça restaurativa constituem um

pretexto inicial para ação na reação à criminalidade. A justiça restaurativa é um

recurso para um número de falhas no sistema de justiça penal retributivo, que é

fortemente caracterizado por uma profunda dicotomia entre agente e vítima.

Esta dicotomia ainda recebe sua maior manifestação na prisão. A exclusão

social da ambos vítima e agente confirma isto.

O grupo de pesquisa então evoluiu gradualmente para uma abordagem

integral de justiça restaurativa à criminalidade. No momento, o projeto justiça

restaurativa é aqui uma ligação final. Quando o aprisionamento é inevitável,

então os meios devem ainda ser disponibilizados para a vítima, o agente

aprisionado e o amplo contexto social em que eles estão situados, para a

busca de uma abordagem construtiva de solução de problemas. Em outras

palavras, não se pode permitir que a justiça restaurativa termine com a punição

ou nos muros da prisão.

O início de um projeto em que a justiça restaurativa penetra mais fundo

no sistema de justiça penal pode ser visto como um teste definitivo para o

movimento de justiça restaurativa. Tal projeto só tem chance de sucesso se

tiver como suporte uma política de criminalidade favoravelmente disposta à

justiça restaurativa.

Em todos os níveis da máquina de justiça penal, as engrenagens estão

começando a demonstrar afinidade pelas vítimas. O artigo 46 do Ato de 5 de

agosto de 1992 sobre os Deveres da Polícia, pela primeira vez na história da

legislação de polícia belga, menciona a tarefa de assistir as vítimas de

infrações criminais. O Ato de 12 de março de 1998 melhorou a posição da

vítima em relação à investigação e ao inquérito judicial. Os Atos de 5 e 18 de

março de 1998 trouxeram uma visão da condicional mais sensível à vítima.

Como mencionado antes, a vítima deve ser informada se o agente pedir

liberdade condicional. Do mesmo modo, os comissários da condicional podem

consultar as vítimas para chegar a uma decisão sobre a concessão da

liberdade condicional.

99

Esta enumeração de mudanças na política de criminalidade fornece a

estrutura pela qual o projeto de ‘detenção restaurativa’ ficou conhecido. Ao

mesmo tempo, demonstra a montagem do projeto sob uma abordagem em

evolução da punição. Além disso, o número de iniciativas estrangeiras de

justiça restaurativa já encontrou seu caminho para a “sociedade dos cativos”.

Entre outros, a Wiedergutmachungsprogramma da Penitenciária Suíça de

Saxerriet e certos Programas de Reconciliação Vítima Agente (VORPs) no

Canadá, Inglaterra e Estados Unidos deram exemplos de uma abordagem

restaurativa que transcendeu os muros da prisão.

Antes de partir para a pesquisa-ação, a justiça restaurativa ainda precisa

de um esclarecimento conceitual. Uma definição forte vem das mãos de Tony

Marshall (1998)29: “A justiça restaurativa é um processo no qual as partes

interessadas em uma infração específica resolvem coletivamente como lidar

com as conseqüências do crime e suas implicações no futuro.” A justiça

restaurativa pode assim ser entendida como “ a interação entre agente, vítima

e a sociedade, na qual todas as partes fazem um esforço e um investimento

para chegar a um certo nível de pacificação através da comunicação.” A

comunidade local, a sociedade mais ampla e as instituições sociais (como

representantes da sociedade) podem estar construtivamente envolvidas nisto.

Um ponto central do projeto piloto “detenção restaurativa” é a busca de

uma resposta para a pergunta sobre como a punição em geral e o contexto da

prisão em particular podem contribuir para uma administração mais justa e

equilibrada da justiça penal para o agente, a vítima e a sociedade.

Esta questão central pode ser reduzida ao desafio de dar ao

aprisionamento uma orientação mais focada na vítima e de justiça restaurativa.

O projeto tomou a forma de pesquisa-ação. O ponto de partida foi sempre o

contexto específico de cada instituição penal. A pesquisa-ação foi realizada em

três prisões de língua holandesa na Bélgica. Os pesquisadores precisaram de

uma boa visão da operação de suas respectivas instituições, antes de propor

iniciativas focalizadas.

29 MARSHALL, Tony F. Restorative Justice:An Overview Home

100

Assim, cada uma das prisões de língua holandesa funcionaram como

um local experimental para iniciativas concretas de justiça restaurativa. E isto

nos traz a importância do método utilizado.

Em pesquisa-ação, as duas dimensões de ação e pesquisa estão

ligadas uma à outra como gêmeos siameses. A dimensão da ‘ação’ tem por

objetivo a implementação cíclica ou fásica da mudança. A dimensão da

pesquisa focaliza ambos os procedimentos e os resultados. A ação é

regularmente avaliada e sintonizada se necessário. Deste modo, a pesquisa-

ação possibilita reagir rapidamente a situações de mudança.

Não só a reflexão constante sobre a ação, tomada como parte integral

desta abordagem de pesquisa, mas também a interação entre teoria e prática

também contribui para um processo de formulação de teoria.

A pesquisa tem impacto direto nos atores em campo (por exemplo,

prisioneiros, vítimas e funcionários da prisão). Eles têm a oportunidade de

ganhar novas experiências de aprendizagem, que assim afetam o aspecto

pedagógico da pesquisa-ação.

Para influenciar construtivamente o contexto prisional, todos os aspectos

da comunidade prisional precisam ser tratados. É essencial uma cultura de

justiça restaurativa prisional em que não apenas algumas figuras-chaves

estejam envolvidas mas na qual a justiça restaurativa esteja apoiada por todos

os aspectos da vida na prisão.

A partir disso vem a importância das iniciativas a respeito dos

funcionários das prisões. Isto constitui o assunto de um primeiro tópico. O

corpo de funcionários dá uma grande contribuição para o sucesso ou fracasso

da “detenção restaurativa”.

Uma segunda sub-parte muda o foco para os prisioneiros. Várias

atividades preparadas para estimular responsabilidade apelam ao prisioneiro

no que diz respeito à sua (potencial) percepção e processamento da culpa. A

realização disto inclui e assegura a presença de uma dimensão da vítima na

punição.

Além disso, a justiça restaurativa não pode ser um evento isolado. Isto

implica uma ligação deliberada do projeto com a periferia da prisão, ou seja, o

mundo lá fora.

101

Um ponto de interesse final aborda um tópico específico, que são os

problemas financeiros dos prisioneiros (insolvência, empobrecimento, dívidas,

multas, custos legais, o acordo da ação civil e a falta de possíveis soluções).

Não é sem razão que este problema tem recebido muita atenção.

Para a detenção restaurativa ter alguma chance de sucesso,

funcionários de todos os departamentos da prisão devem estar pessoalmente e

construtivamente envolvidos. Durante os primeiros anos do projeto de

pesquisa-ação, muita atenção e energia foram postas na educação do corpo de

funcionários nas três prisões piloto.

Os primeiros passos do projeto podem ser reduzidos a uma introdução

ao tema “detenção restaurativa” durante a detenção. O fornecimento de

informação e a sensibilização dos funcionários aconteceram de várias formas;

nas três prisões piloto muita importância foi dada pelos trabalhadores do

projeto aos contatos informais com os funcionários das prisões. Ao mesmo

tempo, de algum modo formalmente, dias de informação foram organizados e

textos introdutórios redigidos. A informação foi disseminada através dos canais

existentes dentro do possível (por exemplo, através de jornais internos, um

grupo de estudo existente).

A demanda por mais informação sobre vitimização e justiça restaurativa

veio à tona rapidamente. Um programa educacional vítimas e justiça

restaurativa foi a resposta a isto. Este curso tinha quatro objetivos:

Primeiramente o programa deveria equipar o corpo de funcionários com

conhecimento e compreensão sobre a questão da vitimização. O

desenvolvimento da detenção restaurativa também foi explicado em termos de

visão, objetivos e métodos. Um terceiro objetivo deste programa foi fornecer

um fórum para discussão e reflexão sobre a questão discutida. Além disso, o

curso promoveu uma boa oportunidade para explorar e estimular o interesse,

abertura e disposição de agir entre o corpo de funcionários.

No que diz respeito à metodologia, a escolha foi feita de modo a fazer as

explicações teóricas tão vivas quanto possíveis. Então entre outras coisas as

vítimas vieram testemunhar.

Os formulários de avaliação que os participantes preencheram depois do

curso indicaram que foi precisamente o testemunho que causou maior

102

impressão. Ainda assim os pesquisadores escolheram mudar o curso. A

introdução unilateral de mais sensibilização sobre a vítima para o corpo de

funcionários continha um possível efeito negativo, uma atitude mais repressiva

em relação aos prisioneiros.

O Serviço psicosocial também passou por um grau de reorientação

considerando importante que além do foco na vítima, também haja um foco no

agente e que o corpo de funcionários lidem respeitosamente com os

prisioneiros. Não é fácil dentro deste mundo direcionado ao agente, obter uma

dimensão voltada para a vítima para lidar com prisioneiros individuais. Para os

pesquisadores, na verdade, é importante introduzir a dimensão da vítima sem

detrimento da confiança ou pelo menos do nível de cooperação com os

prisioneiros.

Os membros do corpo de funcionários dos serviços psicosociais nos três

locais experimentais de “detenção restaurativa” também tinham perguntas

sobre o suporte metodológico. Isto levou primeiramente ao desenvolvimento de

um programa educacional baseado na terapia contextual de Nagy30. Além disso

um treinamento sobre teoria de sistemas deu oportunidade para uma resposta

ao desafio metodológico.

Para fornecer ao corpo de funcionários um instrumento que permita

incorporar a perspectiva da vítima ao trabalhar com o agente, um apelo foi feito

para uma atitude fundamental em terapia contextual. Parcialidade multilateral

aloca a pessoa dentro de um contexto e as relações com as quais ela vive.

Esta estrutura permite que o assistente social integre posições de inclinação

para seu cliente e inclinação para as outras partes.

Um terapeuta contextual liderou um programa de treinamento de três

dias para os membros do corpo de funcionários do Serviço Psicossocial de

cada uma das três prisões. Além disso, também foi organizado um dia sobre o

tema introdução à parcialidade multilateral. Estes programas também foram

abertos a assistentes sociais do setor de assistência social do judiciário que

auxiliam os agentes e assistentes sociais que atendem às vítimas.

O pensamento sistemático forneceu outra estrutura para integrar a

recém-apresentada dimensão da vítima à atividade focada no agente os dois 30 BOSZORMENYI NAGY, I., Foundations of Contextual Therapy. Collected Papers of lvan Boszormenyi-Nagy New York, 1987

103

programas de treinamento, dados em 1999, trouxeram com eles exigências

adicionais. Ao melhorar o reconhecimento dos problemas psicológicos entre

prisioneiros, indicações puderam ser mais focadas. Mas precisamente aqui

estava a dificuldade. Os terapeutas não estavam suficientemente cientes das

ofertas terapêuticas disponíveis. Além do mais, surgiu a necessidade de

treinamento de habilidades para motivar os prisioneiros a fazer uso das ofertas

terapêuticas.

A essência do aprisionamento está no fato de que o direito básico de ir

aonde quiser e fazer parte de uma sociedade auto-selecionada é tirado das

pessoas. O aprisionamento pode então ser mais bem descrito como uma total

sanção. Uma série de processos de mortificação atacam a identidade dos

prisioneiros completamente. Seu ambiente é reduzido ao contexto imediato da

prisão.

A introdução da vítima e da comunidade abre espaço para os prisioneiros

processarem o que aconteceu e assumirem responsabilidade. Para abrir

completamente as portas para a justiça restaurativa, aspectos estruturais do

sistema prisional da Bélgica precisam ser reajustados. Isto já havia sido

moderadamente compreendido em pesquisa-ação. Algumas iniciativas já dão

oportunidade aos prisioneiros de dar um toque de justiça restaurativa a sua

punição.

No primeiro ano da pesquisa-ação, o ponto central foi a abordagem do

corpo de funcionários da prisão. Somente algumas atividades esporádicas

aconteceram com os prisioneiros.

Através do jornal da Prisão Auxiliar de Leuven e numa apresentação

para um grupo central de prisioneiros no Centro Educacional Penal de

Hoogstraten, a justiça restaurativa e o papel do trabalhador/pesquisador foram

apresentados. Ao mesmo tempo, a educação sobre vitimização e as

necessidades das vítimas foi organizada. Na Prisão Auxiliar de Leuven houve

uma noite de discussão sobre mediação por reparação. Usando jogos de

interpretação de papéis (role-playing), os 15 prisioneiros participantes

receberam uma interpretação experimental de empatia e percepção da vítima.

Outras iniciativas direcionadas ao agente envolveram uma discussão com

104

voluntários do Serviço de Apoio às Vítimas, disponibilizando horas de escritório

jurídico para prisioneiros e iniciando o curso O Retrato da Vítima.

Em 1999 e 2000, o nível de atividade com os prisioneiros aumentou.

Depois de um primeiro ano de operação, chegou o ponto de abordar os

prisioneiros de maneira mais focada.

Assim, para dar informação para tantos prisioneiros quanto possível e

para aumentar a sensibilização, a atenção foi primeiramente focada em

fornecer informação geral e específica. Pôsteres e folhetos relacionados a

“detenção restaurativa” foram disseminados em cada uma das três prisões. Isto

deu aos prisioneiros acesso imediato à informação sobre o projeto. Através de

noites informativas, informação específica foi fornecida sobre tópicos que

incluíram fundo de reparação, ação civil e mediação por reparação. Além disso,

os pesquisadores tentaram sensibilizar os prisioneiros mostrando e discutindo

filmes com temas como vitimização, as necessidades da vítima e justiça

restaurativa.

Em segundo lugar, as horas de escritório jurídico foram objeto de

continuação. Isto foi de encontro a um número de direitos básicos dos

prisioneiros, especificamente o direito à informação sobre sua situação jurídica,

ao mesmo tempo em que aconselhamento jurídico e assistência processual

também foram fornecidos.

Paralelo ao treinamento de pessoal, os prisioneiros tiveram a

oportunidade de tomar conhecimento, de maneira não-confrontante, com as

experiências das vítimas. Em 1999 o curso ainda tinha o nome vítimas e justiça restaurativa, mas no ano seguinte este programa recebeu o nome de

agentes e vítimas. Esta mudança de foco foi motivada pelo fato de que

também se desejava dar aos prisioneiros espaço para que pudessem refletir

nas suas próprias vidas e experiências e na sua própria vitimização.

A respeito do conteúdo, o curso consistia de análise e discussão de um

filme com temas em torno da questão da vitimização. Testemunho em vídeo e

a contribuição de um voluntário do Centro para Apoio às Vítimas aumentaram o

impacto do programa. Este programa foi aberto a todos os prisioneiros.

A oficina vítimas e justiça restaurativa enfatizou a importância do

diálogo entre o prisioneiro e sua vítima, ao mesmo tempo em que também

105

ressaltou a importância do diálogo entre os prisioneiros e o sistema de justiça

penal.

Um aumento de conhecimento e compreensão por um lado, e o estímulo

da habilidade de desenvolver empatia do outro, foram os objetivos primários.

Ao mesmo tempo habilidades de comunicação foram enfatizados e a oficina

tentou estimular uma mudança de atitude a respeito das vítimas e da justiça

restaurativa.

O primeiro dia da oficina incluía uma introdução, um jogo de proposição,

procurando por associações com a palavra vítima e uma reflexão sobre a

própria experiência como vítima. Durante o segundo dia, um policial explicava a

abordagem da justiça restaurativa no distrito policial e vítimas testemunhavam

sobre suas experiências e necessidades. Avaliações por parte dos prisioneiros

e vítimas participantes indicaram que as oficinas sempre aconteciam em alta

estima.

Depois focalizaram a atenção para o curso O Retrato da Vítima, um

curso que exige muito dos participantes. Ele foi organizado pela primeira vez

em 1998 no Centro Educacional Penal Hoogstraten, mas durante o ano

seguinte o curso também foi dado nas duas outras prisões do projeto.

Antes que os prisioneiros possam participar do Retrato da Vítima, há

uma entrevista admissional. Assim, cada prisioneiro é avaliado sobre sua

adequação e motivação sobre o curso que geralmente cobre sete dias.

Há fases: primeiro vem a aquisição de conhecimento e compreensão,

depois o reforço da habilidade de enfatizar. Uma terceira fase é focada em

trazer uma mudança de atitude entre os prisioneiros. A conscientização do

agente sobre os efeitos da sua infração funciona como motivo condutor por

todas as três fases do curso. Para tanto usa-se recortes de jornal, testemunhos

em vídeo, discussões em grupo, discussões com palestrantes convidados até e

incluindo a redação de uma carta para a vítima.

O projeto precisa então também se esforçar para estimular a interação

entre o ambiente da prisão e o mundo lá fora. Ao discutir a periferia da prisão,

dois componentes principais são relevantes. Por um lado, há um número de

serviços externos para serviço social forense e trabalho em educação sócio-

cultural cuja contribuição dentro da estrutura de uma detenção mais voltada à

106

justiça restaurativa pode ser significante. Por outro lado, possivelmente mais

significante, concidadãos da sociedade livre’ podem se envolver com o projeto.

Mesmo antes do projeto piloto já havia obviamente colaboração entre os

serviços psicosociais internos da prisão e serviços sociais externos. Esta

colaboração recebeu enorme aumento ao adicionar a vítima ao cenário no que

diz respeito à punição. Na verdade, até então o cuidado com a vítima e o

tratamento centrado no agente eram estranhos. Através deste projeto, os

pesquisadores ficaram responsáveis pela tarefa de encontrar iniciativas para

diminuir a distância. Esta tarefa está agora preenchida pelos consultores em

justiça restaurativa.

Durante o primeiro ano do projeto, os principais objetivos eram colocar

os assistentes sociais da prisão em contato com os de fora, informando-os

tanto quanto possível, permitindo que refletissem sobre o projeto, seu

posicionamento, os problemas e obstáculos metodológicos e deontológicos e

buscar formas plausíveis de colaboração.

Uma plataforma de consulta forneceu o espaço necessário para

sensibilizar os atores relevantes, para avaliar suas atitudes em relação à justiça

restaurativa e para alcançar formas possíveis de colaboração. Os parceiros em

comunicação ao redor desta mesa eram os Serviços Psicosociais das prisões

envolvidas, os diretores do Serviço Psicosocial ao nível da Direção Geral De

Instituições Penais, os serviços de Atenção à Vítima nos escritórios de

promotoria e os centros de Assistência à Vítima.

Assistentes sociais que lidam com vítimas e terapeutas de prisioneiros

rapidamente experimentaram a necessidade de apoio metodológico. Neste

ponto, já estava indicado que uma busca estava em andamento no campo da

terapia contextual e na teoria de sistemas. As duas abordagens foram

explicadas por organizações externas. Aqui nova referência pode ser feita ao

caráter aberto desta atividade educacional. Assim os três dias em treinamento

contextual foram seguidos por dois grupos mistos, de um lado os funcionários

do serviço psicosocial das prisões piloto e um grupo de assistentes sociais que

trabalham com agentes da comunidade e por outro lado um número de

assistentes sociais que lidam com as vítimas.

107

O reposicionamento comunicativo recíproco de agentes, vítimas e

sociedade é um objetivo que no curso do projeto se realizou através de

iniciativas concretas planejadas para colocar pessoas de fora em contato com

o mundo da prisão.

No começo do projeto, o Centro de Educação Penal de Hoogstraten foi o

sítio experimental por excelência para trazer a sociedade para dentro. O Centro

de Educação Penal tem uma forte reputação no que diz respeito ao regime e a

tradição de ajuda voluntária. A primeira iniciativa trouxe voluntários de um

Centro de apoio à vítima para o Centro de Educação Penal de Hoogstraten.

Depois disto, duas noites de discussão entre prisioneiros, funcionários da

prisão (o conselho, o Serviço psicossocial e funcionários da prisão) e visitantes.

Cada discussão foi uma janela para o mundo do outro parceiro. Ao contrário do

tão ouvido brado por punições mais severas e de reclamação sobre prisões

que são hotéis três estrelas, muitos voluntários ficaram impressionados com as

histórias dos prisioneiros. Nas avaliações destas noites, só reações positivas

foram ouvidas por todos os cantos.

O ano seguinte foi mais um passo a frente. O grupo de voluntários de

apoio à vítima foi expandido para incluir professores, pessoas de proteção a

juventude, mediadores de punição, um advogado, policiais e umas dez vítimas

diretas ou indiretas.

Uma iniciativa final que vale a pena mencionar diz respeito ao layout de

um folheto de informação sobre vários aspectos da sentença de prisão. A

inspiração para isto veio do Canadá, onde o folheto Perguntas e respostas no sistema de prisão e condicional tem sido usado desde 1993.

O folheto tem um propósito duplo: satisfazer a necessidade de

informação por parte das vítimas de crimes pelos quais o agente está atrás das

grades, sensibilizar e ampliar a perspectiva das vítimas. Um levantamento

informou aos pesquisadores sobre os temas mais importantes de interesse das

vítimas em relação à punição. Os levantamentos revelaram que as vítimas

desejam mais informações nas diferentes condições relevantes para a punição

e especialmente na decisão de soltura antecipada da prisão.

Por fim, dentro do projeto ‘detenção restaurativa’, alguns formuladores

de políticas enfatizaram que o pagamento de compensação é uma forma de

108

justiça restaurativa. Os próprios pesquisadores ressaltaram o fato de que o

pagamento de acordo de ação civil pode ser apenas uma parte da atividade de

justiça restaurativa, e a compensação implica sinal de admissão somente se

também for o resultado de compromisso da parte do prisioneiro.

Quando os pesquisadores nas três prisões envolveram a ação civil na

sua abordagem, várias obstruções foram rapidamente identificadas. Elas foram

compiladas em um memorando de estrangulamento de ação civil. O

pagamento do acordo da ação civil da prisão é problemático, se não porque os

prisioneiros são mal ou totalmente desinformados de suas sentenças civis.

Além disso, referência pode ser feita à insolvência de muitos prisioneiros, a alta

taxa de desemprego nas prisões e o baixo nível dos salários. Também,

prisioneiros freqüentemente têm outros débitos a pagar e a seus olhos o

sustento da própria família é uma prioridade maior.

Trabalho orientado para reparação dentro do contexto da prisão

significa, entre outras coisas, a criação de possibilidades para prisioneiros

assumirem suas responsabilidades.

O projeto “detenção restaurativa” estudou se não seria possível

estabelecer um fundo para os prisioneiros. Depois de uma investigação

preliminar, a organização sem fins lucrativos Welzijnszorg (Care for Welfare) se

ofereceu como patrocinador para um fundo e um comitê de fundo de reparação

foi estabelecido para lidar com os preparativos necessários para finalmente

começar um fundo de reparação.

O comitê decidiu alocar o fundo de reparação com a organização sem

fins lucrativos Suggnomè. As razões por trás disso são fáceis de entender.

Parece melhor que uma organização neutra externa decida sobre a

admissibilidade de um pedido.

O fundo foi feito para dar aos prisioneiros a possibilidade de certo grau

de conciliação com suas vítimas. A quantia que pode ser concedida se mantém

limitada a metade da quantia devida (com um teto de 1.250 EUROS). Esta

limitação está, afinal de contas, alinhadas com os princípios da justiça

restaurativa. O primeiro objetivo do fundo de reparação é a promoção da

comunicação entre prisioneiro e vítima. O limite enfatiza o significado simbólico

do reembolso, não o pagamento imediato do acordo de ação civil.

109

Se um prisioneiro deseja recorrer ao fundo, ele pode apresentar um

pedido com esta finalidade ao comitê. Quando o comitê aprova um pedido, o

prisioneiro deve desempenhar um número de horas de serviço comunitário em

troca do dinheiro.

Se o comitê dá sua benção, um mediador é apontado para apresentar a

proposta à vítima. A voz decisiva fica finalmente com a vítima e se uma for

positiva, o prisioneiro precisa fazer tudo que é solicitado para tornar o serviço

comunitário possível.

Se o prisioneiro completar o serviço comunitário com sucesso, o comitê

irá pagar a quantia acordada à vítima. Se tanto o agente quanto a vítima

quiserem um contato direto, isto pode ser organizado pelo mediador. Um

acordo extra do balanço do débito também pode ser combinado indiretamente

por um mediador.

Até então o fundo de reparação permanece estruturado em um ambiente

experimental. Uma tentativa é feita para envolver tantos prisioneiros quanto

possíveis na feitura e distribuição de folhetos, na organização das noites

informativas e na arrumação dos pôsteres. As descobertas iniciais fornecem

uma imagem completamente positiva desta iniciativa.

Na Prisão Auxiliar de Leuven havia o desejo de fazer o fardo de dívidas

administrável e incluir o acordo de ação civil na lista dos devedores. Contudo,

administrar a dívida, negociar com credores e preparar planos de pagamento

são tarefas quase impossíveis para os funcionários do Serviço Psicossocial.

Esta foi a ocasião para dar início ao projeto que foi uma ponte para o

Centro de Bem-Estar Social Público de Leuven. A intenção era descobrir se era

possível da prisão administrar a dívida, negociar com credores e preparar

planos de pagamento.

Dentro da estrutura do “projeto de acordo de débito”, o Centro de Bem-

estar Social Público realmente assume a assistência e educação a nível

individual. Além da assistência individual, há também o pacote educacional que

trata os temas ligados com orçamento. No final das contas, a intenção é

fornecer aos prisioneiros instrumentos suficientes para lidar com seu

orçamento o mais independentemente possível.

110

Neste momento os consultores de justiça restaurativa na Bélgica, já têm

amplo conhecimento da práxis da prisão. Eles têm a responsabilidade de uma

enorme tarefa da qual as expectativas são igualmente grandes: constituir “uma

nova maneira de abordar a justiça penal, que enfoca a reparação dos danos

causados às pessoas e relacionamentos, ao invés de punir os transgressores.

Seu postulado fundamental é: “o crime causa danos às pessoas e a justiça

exige que o dano seja reduzido ao mínimo possível.

111

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tradicionalmente, ante um delito que está estabelecido e codificado, há

um repertório de sanções que vão desde o pagamento de multa até a privação

da liberdade, fundamentado na prevenção geral e e em princípios gerais de

direito penal.

Essas são respostas que os cidadãos pressupõe esperada. Porém

muitas vezes não cremos que sejam sempre as respostas esperadas e

adequadas. Deve haver outras respostas não retributivas em que o olho no

olho é desejado por vítimas e ofensores.

Atualmente na América Latina os poderes do estado encarregados da

Justiça parecem estar avançando para novas definições de respostas que

tendem a reconhecer e recorrer a caminhos comunicantes que se vinculam

com movimentos participativos geradores de respostas.

Em nosso País, no entanto, o debate a respeito da Justiça Restaurativa

ainda se mostra em estado embrionário. São poucas as iniciativas nesse

sentido, a maioria promovida por juristas. Das iniciativas estatais, deve-se

apontar uma recente, cujos frutos até então não se viram, oriunda da Justiça do

Distrito Federal e Territórios (capital da República Federativa do Brasil). O

Presidente, o Vice-Presidente e o Corregedor do Tribunal de Justiça do Distrito

Federal e Territórios elaboraram um ato administrativo (Portaria conjunta n. 15,

de 21 de junho de 2004), por meio do qual foi criada uma comissão visando

estudar a “adaptabilidade da ‘Justiça Restaurativa’ à Justiça do Distrito Federal

e desenvolvimento de ações para a implantação de um projeto piloto na

comunidade do Núcleo Bandeirante.

Deve-se assinalar, de início, que não há na legislação brasileira

dispositivos com práticas totalmente restaurativas. Existem, contudo

determinados diplomas legais os quais podem ser utilizados para sua

implementação, ainda que parcial. No entanto, um programa efetivo de Justiça

Restaurativa requer que sejam estabelecidos, por via legislativa, padrões e

diretrizes legais para a elaboração dos programas restaurativos, bem como

para a qualificação, treinamento, avaliação e credenciamento de mediadores,

112

administração dos programas, níveis de competência e padrões éticos,

salvaguardas e garantias individuais

A partir dessa constatação e comparação entre Bélgica e Brasil,

passamos a sustentabilidade do paradigma restaurativo como política criminal

e de execução penal, que merece melhor avaliação, dissociada de

preconceitos, por juristas e setores diversos da sociedade brasileira.

O paradigma restaurativo desafia resistências, particularmente de

operadores jurídicos presos à idéia de um direito blindado contra mudanças,

sob o argumento – equivocado - de que ele desvia-se do devido processo

legal, das garantias constitucionais e produz uma séria erosão no Direito Penal

codificado.

Na verdade, já existem, e aflorarão ainda mais, obstáculos econômicos,

sociais, culturais e jurídicos a esse paradigma emergente, na forma de

incredulidade, desconfiança, confusão, incerteza, preconceito, etc. Mas há

também respeitáveis e consistentes questionamentos críticos nos debates

realizados a respeito do tema.

No Brasil, o programa poderia funcionar em espaços comunitários ou

centros integrados de cidadania, onde seriam instalados núcleos de justiça

restaurativa, que teriam uma coordenação e um conselho multidisciplinar, cuja

estrutura compreenderia câmaras restaurativas onde se reuniriam as partes e

os mediadores/facilitadores, com o devido apoio administrativo e de segurança.

Os núcleos de justiça restaurativa deveriam atuar em íntima conexão

com a rede social de assistência, com apoio dos órgãos governamentais, das

empresas e das organizações não governamentais, operando em rede, para

encaminhamento de vítimas e infratores aos programas indicados e as

medidas acordadas no plano traçado no acordo restaurativo.

É perfeitamente possível utilizar estruturas já existentes e consideradas

apropriadas, mas deve ser, preferencialmente, usado espaços comunitários

neutros para os encontros restaurativos e os casos indicados para uma

possível solução restaurativa; Segundo critérios estabelecidos e após parecer

favorável do Ministério Público, os casos seriam encaminhados para os

núcleos de justiça restaurativa, que os retornaria ao Ministério Público, com um

relatório e um acordo restaurativo escrito e subscrito pelos participantes

113

A Promotoria incluiria as cláusulas ali inseridas na sua proposta, para

homologação judicial, e se passaria, então, à fase executiva, com o

acompanhamento integral do cumprimento do acordo, inclusive para

monitoramento e avaliação dos projetos-piloto e, futuramente, da Justiça

Restaurativa institucionalizada como uma ferramenta disponibilizada

universalmente aos cidadãos e às comunidades.

Por outro lado, devem ser rigorosamente observados todos os direitos e

garantias fundamentais de ambas as partes, a começar pelo princípio da

dignidade humana, da razoabilidade, da proporcionalidade, da adequação e do

interesse público. Certos princípios fundamentais aplicáveis ao direito penal

formal, tais como o da legalidade, intervenção mínima, lesividade, humanidade,

culpabilidade, entre outros, devem ser levados em consideração.

Apesar das vantagens que pode ter o programa, ele deve ser

experimentado com cautela e controle, e deve estar sempre sendo monitorado

e avaliado, com rigor científico.

Cumpre reiterar que precisamos construir uma justiça restaurativa

brasileira e latino-americana, considerando que nossa criminalidade retrata

mais uma reação social, inclusive organizada a uma ordem injusta, cruel,

violenta e, por que não, também criminosa.

A justiça restaurativa procura estabelecer e consolidar a sua posição na

maior parte dos países. A sua finalidade passa por repensar a forma como

abordamos e vivenciamos o crime, bem como reorientar a forma como a

sociedade e a justiça devem lidar com este.

A mediação vítima-agressor tem vindo a adquirir uma posição de

destaque em muitas jurisdições européias. A experiência tem demonstrado que

este tipo de procedimentos pode ser benéfico para vítimas e agressores, ao

mesmo tempo que evita muitas das desvantagens dos sistemas tradicionais de

justiça criminal

O que os profissionais que trabalham na área da justiça restaurativa têm

em mente é uma resposta equilibrada às necessidades quer das vítimas, quer

dos agressores, sem negligenciar os interesses da comunidade. Na opinião

daqueles, a justiça restaurativa deve estar, sem dúvida, enraizada na

114

sociedade, mas não deve ser reduzida a uma mera alternativa aos processos

de justiça criminal.

É fundamental que os princípios da justiça restaurativa penetrem em

todos os níveis do sistema de justiça criminal. Isto pode soar demasiado

idealista, mas os mais recentes desenvolvimentos registrados em alguns

países demonstram que os princípios e objetivos da justiça restaurativa podem

intervir ativamente nas fases da determinação e da execução das sentenças.

Abordando o desenvolvimento da justiça restaurativa na Europa, ficou

evidente que o crime representa uma ferida na comunidade, uma ruptura na

cadeia de relacionamentos. De fato, relacionamentos danificados são tanto a

causa como o efeito de um crime. Muitas tradições têm ditados que expressam

que o prejuízo de um é o prejuízo de todos. Um dano como um crime provoca a

ruptura de toda a rede. Além disso, o malfeito é geralmente um sintoma de que

alguma coisa está fora do equilíbrio na rede.

Por outro lado, é indiscutível a necessidade da vítima gozar de um

verdadeiro estatuto de intervenção processual, razão pela qual, a adoção do

mecanismo processual da proteção de vítimas reforça a confiança na Justiça

Restaurativa que aproxima os cidadãos das instituições.

Acresce, ainda, a necessidade de salvaguardar o postulado basilar do

respeito pelos direitos da defesa, ou seja, não apenas pelos direitos

fundamentais e inalienáveis do homem, mas também pelos princípios

fundamentais do processo penal democrático, assegurando assim um justo

processo legal.

Desse modo, a tensão que o crime repercute na comunidade, a proteção

de vítimas e a garantia dos direitos da defesa são os elementos que

conjugados revelam a razão principal por detrás do recurso à mediação no

contexto da justiça criminal restaurativa, que ressalta o desejo e a oportunidade

de devolver o conflito às partes interessadas que estão diretamente envolvidas.

. Assim, as garantias legais e processuais são da maior importância na

justiça restaurativa. As boas práticas, assentes na formação, na supervisão e

na ética, já oferecem algumas garantias, não sendo no entanto dispensável o

suporte e orientação das necessárias normas legais, sem que tal restrinja a

natureza flexível da justiça restaurativa.

115

A lei deve assumir um papel de proteção, mas simultaneamente

facilitador, de forma a tornar a justiça restaurativa disponível para todos. É

evidente que a justiça restaurativa não deverá ser reduzida a, nem dominada

por, uma abordagem aos direitos quer das vítimas de crime, quer dos

agressores. Esta nova forma de justiça assenta mais nas necessidades

humanas do que nos direitos formais.

Por isso o objetivo primeiro do sistema de justiça restaurativa é proteger

a sociedade e dissuadir a prática de atos criminosos. O sistema deve tentar

garantir um equilíbrio entre os direitos do suspeito ou do argüido e os direitos

da vítima. Reconhece-se, porém, que esta é uma difícil tarefa e uma grave

responsabilidade para a tomada de decisão em prosseguir até à sua

implementação efetiva.

116

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120

9. ANEXOS

ANEXO A

PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA UTILIZAÇÃO DE PROGRAMAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA EM MATÉRIA CRIMINAL

37ª Sessão Plenária 24 de Julho de 2002

Resolução 2002/12 O Conselho Econômico e Social, Reportando-se à sua Resolução 1999/26, de 28 de julho de 1999, intitulada “Desenvolvimento e Implementação de Medidas de Mediação e Justiça Restaurativa na Justiça Criminal”, na qual o Conselho requisitou à Comissão de Prevenção do Crime e de Justiça Criminal que considere a desejável formulação de padrões das Nações Unidas no campo da mediação e da justiça restaurativa, Reportando-se, também, à sua resolução 2000/14, de 27 de julho de 2000, intitulada “Princípios Básicos para utilização de Programas Restaurativos em Matérias Criminais”no qual se requisitou ao Secretário-Geral que buscasse pronunciamentos dos Estados-Membros e organizações intergovernamentais e não-governamentais competentes, assim como de institutos da rede das Nações Unidas de Prevenção do Crime e de Programa de Justiça Criminal, sobre a desejabilidade e os meios para se estabelecer princípios comuns na utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal, incluindo-se a oportunidade de se desenvolver um novo instrumento com essa finalidade, Levando em conta a existência de compromissos internacionais a respeito das vítimas, particularmente a Declaração sobre Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de Crimes e Abuso de Poder, Considerando as notas das discussões sobre justiça restaurativa durante o Décimo Congresso sobre Prevenção do Crime e do Tratamento de Ofensores, na agenda intitulada “Ofensores e Vítimas – Responsabilidade e Justiça no Processo Judicial, Tomando nota da Resolução da Resolução da Assembléia-Geral n. 56/261, de 31 de janeiro de 2002, intitulada “Planejamento das Ações para a Implementação da Declaração de Viena sobre Crime e Justiça – Respondendo aos Desafios do Século Vinte e um”, particularmente as ações referentes à justiça restaurativa, de modo a se cumprir os compromissos assumidos no parágrafo 28, da Declaração de Viena, Anotando, com louvor, o trabalho do Grupo de Especialistas em Justiça Restaurativa no encontro ocorrido em Ottawa, de 29 de outubro a 1º de novembro de 2001, Registrando o relatório do Secretário-Geral sobre justiça restaurativa e o relatório do Grupo de Especialistas em Justiça Restaurativa,

121

1. Toma nota dos princípios básicos para a utilização de programas de justiça restaurativas em matéria criminal anexados à presente resolução; 2. Encoraja os Estados Membros a inspirar-se nos princípios básicos para programas de justiça restaurativa em matéria criminal no desenvolvimento e implementação de programas de justiça restaurativa na área criminal; 3. Solicita ao Secretário-Geral que assegure a mais ampla disseminação dos princípios básicos para programas de justiça restaurativa em matéria criminal entre os Estados Membros, a rede de institutos das Nações Unidas para a prevenção do crime e programas de justiça criminal e outras organizações internacionais regionais e organizações não-governamentais; 4. Concita os Estados Membros que tenham adotado práticas de justiça restaurativa que difundam informações e sobre tais práticas e as disponibilizem aos outros Estados que o requeiram; 5. Concita também os Estados Membros que se apóiem mutuamente no desenvolvimento e implementação de pesquisa, capacitação e outros programas, assim como em atividades para estimular a discussão e o intercâmbio de experiências; 6. Concita, ainda, os Estados Membros a se disporem a prover, em caráter voluntário, assistência técnica aos países em desenvolvimento e com economias em transição, se o solicitarem, para os apoiarem no desenvolvimento de programas de justiça restaurativa. Anexo Princípios Básicos para a utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal.

PREÂMBULO Considerando que tem havido um significativo aumento de iniciativas com justiça restaurativa em todo o mundo. Reconhecendo que tais iniciativas geralmente se inspiram em formas tradicionais e indígenas de justiça que vêem, fundamentalmente, o crime como danoso às pessoas, Enfatizando que a justiça restaurativa evolui como uma resposta ao crime que respeita a dignidade e a igualdade das pessoas, constrói o entendimento e promove harmonia social mediante a restauração das vítimas, ofensores e comunidades, Focando o fato de que essa abordagem permite que as pessoas afetadas pelo crime possam compartilhar abertamente seus sentimentos e experiências, bem assim seus desejos sobre como atender suas necessidades, Percebendo que essa abordagem propicia uma oportunidade para as vítimas obterem reparação, se sentirem mais seguras e poderem superar o problema, permite os ofensores compreenderem as causas e conseqüências de seu comportamento e assumir responsabilidade de forma efetiva, bem assim possibilita à comunidade a compreensão das causas subjacentes do crime, para se promover o bem estar comunitário e a prevenção da criminalidade, Observando que a justiça restaurativa enseja uma variedade de medidas flexíveis e que se adaptam aos sistemas de justiça criminal e que complementam esses sistemas, tendo em vista os contextos jurídicos, sociais e culturais respectivos,

122

Reconhecendo que a utilização da justiça restaurativa não prejudica o direito público subjetivo dos Estados de processar presumíveis ofensores I – Terminologia 1. Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos 2. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles). 3. Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo. Resultados restaurativos incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes, bem assim promover a reintegração da vítima e do ofensor. 4. Partes significa a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime que podem estar envolvidos em um processo restaurativo. 5. Facilitador significa uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e imparcial, a participação das pessoas afetadas e envolvidas num processo restaurativo. II. Utilização de Programas de Justiça Restaurativa 6. Os programas de justiça restaurativa podem ser usados em qualquer estágio do sistema de justiça criminal, de acordo com a legislação nacional 7. Processos restaurativos devem ser utilizados somente quando houver prova suficiente de autoria para denunciar o ofensor e com o consentimento livre e voluntário da vítima e do ofensor. A vítima e o ofensor devem poder revogar esse consentimento a qualquer momento, durante o processo. Os acordos só poderão ser pactuados voluntariamente e devem conter somente obrigações razoáveis e proporcionais. 8. A vítima e o ofensor devem normalmente concordar sobre os fatos essenciais do caso sendo isso um dos fundamentos do processo restaurativo. A participação do ofensor não deverá ser usada como prova de admissão de culpa em processo judicial ulterior. 9. As disparidades que impliquem em desequilíbrios, assim como as diferenças culturais entre as partes, devem ser levadas em consideração ao se derivar e conduzir um caso no processo restaurativo. 10. A segurança das partes deverá ser considerada ao se derivar qualquer caso ao processo restaurativo e durante sua condução. 11. Quando não for indicado ou possível o processo restaurativo, o caso deve ser encaminhado às autoridades do sistema de justiça criminal para a prestação jurisdicional sem delonga. Em tais casos, deverão ainda assim as autoridades estimular o ofensor a responsabilizar-se frente à vítima e à comunidade e apoiar a reintegração da vítima e do ofensor à comunidade.

123

III - Operação dos Programas Restaurativos 12. Os Estados membros devem estudar o estabelecimento de diretrizes e padrões, na legislação, quando necessário, que regulem a adoção de programas de justiça restaurativa. Tais diretrizes e padrões devem observar os princípios básicos estabelecidos no presente instrumento e devem incluir, entre outros: a) As condições para encaminhamento de casos para os programas de justiça restaurativos; b) O procedimento posterior ao processo restaurativo; c) A qualificação, o treinamento e a avaliação dos facilitadores; d) O gerenciamento dos programas de justiça restaurativa; e) Padrões de competência e códigos de conduta regulamentando a operação dos programas de justiça restaurativa. 13. As garantias processuais fundamentais que assegurem tratamento justo ao ofensor e à vítima devem ser aplicadas aos programas de justiça restaurativa e particularmente aos processos restaurativos; a) Em conformidade com o Direito nacional, a vítima e o ofensor devem ter o direito à assistência jurídica sobre o processo restaurativo e, quando necessário, tradução e/ou interpretação. Menores deverão, além disso, ter a assistência dos pais ou responsáveis legais. b) Antes de concordarem em participar do processo restaurativo, as partes deverão ser plenamente informadas sobre seus direitos, a natureza do processo e as possíveis conseqüências de sua decisão; c) Nem a vítima nem o ofensor deverão ser coagidos ou induzidos por meios ilícitos a participar do processo restaurativo ou a aceitar os resultados do processo. 14. As discussões no procedimento restaurativo não conduzidas publicamente devem ser confidenciais, e não devem ser divulgadas, exceto se consentirem as partes ou se determinado pela legislação nacional. 15. Os resultados dos acordos oriundos de programas de justiça restaurativa deverão, quando apropriado, ser judicialmente supervisionados ou incorporados às decisões ou julgamentos, de modo a que tenham o mesmo status de qualquer decisão ou julgamento judicial, precluindo ulterior ação penal em relação aos mesmos fatos. 16. Quando não houver acordo entre as partes, o caso deverá retornar ao procedimento convencional da justiça criminal e ser decidido sem delonga. O insucesso do processo restaurativo não poderá, por si, usado no processo criminal subseqüente. 17. A não implementação do acordo feito no processo restaurativo deve ensejar o retorno do caso ao programa restaurativo, ou, se assim dispuser a lei nacional, ao sistema formal de justiça criminal para que se decida, sem demora, a respeito. A não implementação de um acordo extrajudicial não deverá ser usado como justificativa para uma pena mais severa no processo criminal subseqüente. 18. Os facilitadores devem atuar de forma imparcial, com o devido respeito à dignidade das partes. Nessa função, os facilitadores devem assegurar o respeito mútuo entre as partes e capacitá-las a encontrar a solução cabível entre elas.

124

19. Os facilitadores devem ter uma boa compreensão das culturas regionais e das comunidades e, sempre que possível, serem capacitados antes de assumir a função. IV. Desenvolvimento Contínuo de Programas de Justiça Restaurativa 20. Os Estados Membros devem buscar a formulação de estratégias e políticas nacionais objetivando o desenvolvimento da justiça restaurativa e a promoção de uma cultura favorável ao uso da justiça restaurativa pelas autoridades de segurança e das autoridades judiciais e sociais, bem assim em nível das comunidades locais. 21. Deve haver consulta regular entre as autoridades do sistema de justiça criminal e administradores dos programas de justiça restaurativa para se desenvolver um entendimento comum e para ampliar a efetividade dos procedimentos e resultados restaurativos, de modo a aumentar a utilização dos programas restaurativos, bem assim para explorar os caminhos para a incorporação das práticas restaurativas na atuação da justiça criminal. 22. Os Estados Membros, em adequada cooperação com a sociedade civil, deve promover a pesquisa e a monitoração dos programas restaurativos para avaliar o alcance que eles tem em termos de resultados restaurativos, de como eles servem como um complemento ou uma alternativa ao processo criminal convencional, e se proporcionam resultados positivos para todas as partes. Os procedimentos restaurativos podem ser modificados na sua forma concreta periodicamente. Os Estados Membros devem por isso estimular avaliações e modificações de tais programas. Os resultados das pesquisas e avaliações devem orientar o aperfeiçoamento do gerenciamento e desenvolvimento dos programas. V. Cláusula de Ressalva 23. Nada que conste desses princípios básicos deverá afetar quaisquer direitos de um ofensor ou uma vítima que tenham sido estabelecidos no Direito Nacional e Internacional.

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ANEXO B

COMISSÃO DE LEGISLAAÇÃO PARTICIPATIVA SUGESTÃO Nº 99, DE 2005

Altera dispositivos no Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, do Decreto- Lei nº 3689, de 3 de outubro de 1941, e da Lei nº 9099, de 26 de setembro de 1995, para facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais. Autor: Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília. Relator:Deputado Leonardo Monteiro.

RELATÓRIO Trata-se de sugestão apresentada pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasília, que propõe alterações no Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, do Decreto-Lei nº 3689, de 3 de outubro de 1941, e da Lei nº 9099, de 26 de setembro de 1995, para facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais. Em sua justificativa, o autor afirma que a Justiça Restaurativa é um novo modelo de justiça criminal, recomendado pela ONU, diante da evidente necessidade de que a justiça ofereça a resposta mais adequada para o delito. Destaca que a justiça restaurativa lança um novo olhar sobre o crime, para vê-lo como uma violação nas relações do infrator com a vítima e com a comunidade. Implementado já em alguns países, esse novo modelo diminuiu os índices de violência e aumentou a participação da comunidade na resolução de seus próprios problemas. Assevera que esse novo modelo de justiça criminal, que já vem dando certo em alguns países, pode ser um caminho para diminuir os altos índices de violência que assolam a sociedade brasileira. É o relatório.

126

II - VOTO DO RELATOR Preliminarmente, observa-se que, de acordo com a declaração prestada pelo ilustre Secretário dessa Comissão, foram atendidos os requisitos formais previstos no artigo 20 do Regulamento Interno da Comissão de Legislação Participativa. Passo ao exame do mérito. Não é segredo que o atual modelo de justiça criminal não tem conseguido atingir de maneira eficaz seus objetivos. Não só os índices de violência aumentaram consideravelmente nos últimos anos, como também a ressocialização dos condenados pela atual justiça criminal tem se revelado uma utopia. O Brasil possui hoje uma das maiores legislações penais do mundo. Temos crime para tudo. Basta forçar um pouco que se encontra um delito ou uma contravenção. Nos anos noventa, o Congresso Nacional aprovou cerca de cem leis criminais e em boa parte das leis promulgadas tínhamos um aumento de rigor na aplicação e execução da sanção penal. Se aumentar as penas fosse a solução para o problema da criminalidade, poderíamos dizer que, hoje, o Brasil seria um paraíso de segurança e tranqüilidade. Apesar disso, quando se fala em justiça criminal, não há como negar uma forte sensação de impunidade e ineficácia. Diante dessa triste realidade, nos traz o autor da sugestão uma nova proposta para a justiça criminal, a justiça restaurativa. Pelo que já pude estudar sobre o tema, esse modelo de justiça foi criado na Nova Zelândia e já funciona também na Austrália, na Inglaterra e no Canadá. Traz, em seu cerne, técnicas especiais para a reparação de todo o dano causado pelo crime no âmbito do infrator, da vitima e da comunidade. Cuida-se da participação efetiva do Estado na tentativa de construir acordo com real capacidade para criar pacificação entre os envolvidos no cenário do delito. O modelo prevê encontro entre vítima, infrator e integrantes da comunidade da qual fazem parte. Técnicas de mediação são usadas por assistentes sociais e psicólogos para mediar a reunião. O paradigma da Justiça restaurativa tem como principio fundamental a voluntariedade: ninguém é obrigado a participar. Os assistentes sociais primeiro conversam com as partes envolvidas. Se obtiverem respostas positivas sobre o encontro, agendam a reunião longe de tribunais ou varas de Justiça, de preferência em algum local do próprio bairro. Quando há menores envolvidos, são convidados familiares. Nesse processo, o infrator ouve da vitima e da comunidade como o crime cometido por ele prejudicou a sociedade. Por sua vez, expõe as razões que o levaram a cometer o delito. Em comum acordo, vitima, infrator e comunidade delimitarão as formas de punição e reparação do delito. O resultado do encontro entre vítima e infrator é remetido ao juiz, que poderá acatar ou não a definição dos envolvidos para punição pelo crime. Se negar, terá de justificar a decisão. Segundo os defensores desse modelo, a punição do delito, obtida por meio de uma solução negociada na comunidade evita a criação de novas rixas e produz um enorme potencial de pacificação social. E um modelo muito inovador. O objetivo é diminuir a criminalidade por meio, não só da punição, mas do restabelecimento dos laços comunitários. Diante dos efeitos positivos que já obtiveram os países que aplicam esse novíssimo paradigma e do conteúdo eminentemente humanístico da proposta,

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acredito que será salutar para o País a discussão por essa Casa a respeito do tema, sempre, é claro, visando saber se modelos aplicados no exterior também dariam certo no Brasil. Diante disso, entendo que a proposta trazida pela Sugestão 099 de 2005, é extremamente pertinente e merece ser acatada para o devido trâmite legislativo. Os demais ajustes na proposta, no que se refere tanto ao mérito, quanto a técnica legislativa, serão efetivados pelas comissões competentes. Por todo exposto, meu voto é pela aprovação da Sugestão 099 de 2005 na forma do projeto de lei apresentado pelo Instituto de Direito Comparado e Internacional de Brasilia. Sala da Comissão, em de de 2006. Deputado Leonardo Monteiro Relator

PROJETO DE LEI Nº DE 2006

Propõe alterações no Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, e da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, para facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais.

Art. 1° - Esta lei regula o uso facultativo e complementar de procedimentos de justiça restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais. Art. 2° - Considera-se procedimento de justiça restaurativa o conjunto de práticas e atos conduzidos por facilitadores, compreendendo encontros entre a vítima e o autor do fato delituoso e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados, que participarão coletiva e ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime ou pela contravenção, num ambiente estruturado denominado núcleo de justiça restaurativa. Art. 3° - O acordo restaurativo estabelecerá as obrigações assumidas pelas partes, objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das pessoas envolvidas e afetadas pelo crime ou pela contravenção. Art. 4° - Quando presentes os requisitos do procedimento restaurativo, o juiz, com a anuência do Ministério Público, poderá enviar peças de informação,

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termos circunstanciados, inquéritos policiais ou autos de ação penal ao núcleo de justiça restaurativa. Art. 5° - O núcleo de justiça restaurativa funcionará em local apropriado e com estrutura adequada, contando com recursos materiais e humanos para funcionamento eficiente. Art. 6° - O núcleo de justiça restaurativa será composto por uma coordenação administrativa, uma coordenação técnica interdisciplinar e uma equipe de facilitadores, que deverão atuar de forma cooperativa e integrada. § 1º. À coordenação administrativa compete o gerenciamento do núcleo, apoiando as atividades da coordenação técnica interdisciplinar. § 2º. - À coordenação técnica interdisciplinar, que será integrada por profissionais da área de psicologia e serviço social, compete promover a seleção, a capacitação e a avaliação dos facilitadores, bem como a supervisão dos procedimentos restaurativos. § 3º – Aos facilitadores, preferencialmente profissionais das áreas de psicologia e serviço social, especialmente capacitados para essa função, cumpre preparar e conduzir o procedimento restaurativo. Art. 7º – Os atos do procedimento restaurativo compreendem: a)consultas às partes sobre se querem, voluntariamente, participar do procedimento; b)entrevistas preparatórias com as partes, separadamente; c)encontros restaurativos objetivando a resolução dos conflitos que cercam o delito. Art. 8º – O procedimento restaurativo abrange técnicas de mediação pautadas nos princípios restaurativos. Art. 9º – Nos procedimentos restaurativos deverão ser observados os princípios da voluntariedade, da dignidade humana, da imparcialidade, da razoabilidade, da proporcionalidade, da cooperação, da informalidade, da confidencialidade, da interdisciplinariedade, da responsabilidade, do mútuo respeito e da boa-fé. Parágrafo Ùnico - O princípio da confidencialidade visa proteger a intimidade e a vida privada das partes. Art. 10 – Os programas e os procedimentos restaurativos deverão constituir-se com o apoio de rede social de assistência para encaminhamento das partes, sempre que for necessário, para viabilizar a reintegração social de todos os envolvidos. Art. 11 - É acrescentado ao artigo 107, do Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, o inciso X, com a seguinte redação: X – pelo cumprimento efetivo de acordo restaurativo. Art. 12 – É acrescentado ao artigo 117, do Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, o inciso VII, com a seguinte redação: VII – pela homologação do acordo restaurativo até o seu efetivo cumprimento.

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Art. 13 - É acrescentado ao artigo 10, do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, o parágrafo quarto, com a seguinte redação: § 4º - A autoridade policial poderá sugerir, no relatório do inquérito, o encaminhamento das partes ao procedimento restaurativo. Art. 14 - São acrescentados ao artigo 24, do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, os parágrafos terceiro e quarto, com a seguinte redação: § 3º - Poderá o juiz, com a anuência do Ministério Público, encaminhar os autos de inquérito policial a núcleos de justiça restaurativa, quando vitima e infrator manifestarem, voluntariamente, a intenção de se submeterem ao procedimento restaurativo. § 4º – Poderá o Ministério Público deixar de propor ação penal enquanto estiver em curso procedimento restaurativo. Art. 15 - Fica introduzido o artigo 93 A no Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, com a seguinte redação: Art. 93 A - O curso da ação penal poderá ser também suspenso quando recomendável o uso de práticas restaurativas. Art. 16 - Fica introduzido o Capítulo VIII, com os artigos 556, 557, 558, 559, 560, 561 e 562, no Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, com a seguinte redação:

CAPÍTULO VIII

DO PROCESSO RESTAURATIVO

Art. 556 - Nos casos em que a personalidade e os antecedentes do agente, bem como as circunstâncias e conseqüências do crime ou da contravenção penal, recomendarem o uso de práticas restaurativas, poderá o juiz, com a anuência do Ministério Público, encaminhar os autos a núcleos de justiça restaurativa, para propiciar às partes a faculdade de optarem, voluntariamente, pelo procedimento restaurativo. Art. 557 – Os núcleos de justiça restaurativa serão integrados por facilitadores, incumbindo-lhes avaliar os casos, informar as partes de forma clara e precisa sobre o procedimento e utilizar as técnicas de mediação que forem necessárias para a resolução do conflito. Art. 558 - O procedimento restaurativo consiste no encontro entre a vítima e o autor do fato e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados, que participarão coletiva e ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime ou contravenção, com auxílio de facilitadores.

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Art. 559 - Havendo acordo e deliberação sobre um plano restaurativo, incumbe aos facilitadores, juntamente com os participantes, reduzi-lo a termo, fazendo dele constar as responsabilidades assumidas e os programas restaurativos, tais como reparação, restituição e prestação de serviços comunitários, objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes, especialmente a reintegração da vítima e do autor do fato. Art. 560 – Enquanto não for homologado pelo juiz o acordo restaurativo, as partes poderão desistir do processo restaurativo. Em caso de desistência ou descumprimento do acordo, o juiz julgará insubsistente o procedimento restaurativo e o acordo dele resultante, retornando o processo ao seu curso original, na forma da lei processual. Art. 561 - O facilitador poderá determinar a imediata suspensão do procedimento restaurativo quando verificada a impossibilidade de prosseguimento. Art. 562 -O acordo restaurativo deverá necessariamente servir de base para a decisão judicial final. Parágrafo Único – Poderá o Juiz deixar de homologar acordo restaurativo firmado sem a observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade ou que deixe de atender às necessidades individuais ou coletivas dos envolvidos. Art. 17 - Fica alterado o artigo 62 , da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, que passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 62 - O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando-se, sempre que possível, a conciliação, a transação e o uso de práticas restaurativas. Art. 18 – É acrescentado o parágrafo segundo ao artigo 69, da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, com a seguinte redação: § 2º – A autoridade policial poderá sugerir, no termo circunstanciado, o encaminhamento dos autos para procedimento restaurativo. Art. 19 – É acrescentado o parágrafo sétimo ao artigo 76, da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, com o seguinte teor: § 7º – Em qualquer fase do procedimento de que trata esta Lei o Ministério Público poderá oficiar pelo encaminhamento das partes ao núcleo de justiça restaurativa. Art. 20 - Esta lei entrará em vigor um ano após a sua publicação.

Deputado Leonardo Monteiro Relator

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ANEXO C

PORTARIA CONJUNTA N. 052 DE 09 DE OUTUBRO DE 2006.

O PRESIDENTE, O VICE-PRESIDENTE E O CORREGEDOR DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E DOS TERRITÓRIOS, no uso de suas atribuições legais, e

Considerando a crescente presença da abordagem multidisciplinar na legislação penal e processual penal brasileira; Considerando a ampliação dos espaços de consenso na legislação penal brasileira como ingrediente preconizado pelo modelo integrador de política criminal; Considerando que a Justiça Restaurativa, assim compreendida como a adoção de métodos de negociação e de mediação na solução de conflitos criminais, com a inclusão da vítima e da comunidade de referência no processo penal, constitui prática coincidente com esse novo paradigma criminológico integrador; Considerando ter a intervenção restaurativa caráter preventivo, no sentido de atuar nas causas subjacentes ao conflito, e se mostrar mais efetiva, no sentido de reduzir a probabilidade de recidivas; Considerando serem esses novos métodos indicados por órgãos governamentais e não-governamentais, nacionais e internacionais, como os mais adequados para a resolução efetiva de conflitos dessa natureza e para a criação de uma cultura de paz; Considerando o crescente interesse pela Justiça Restaurativa, manifestado pelo meio acadêmico, pelos operadores do sistema de justiça criminal e pelos jurisdicionados; Considerando os resultados qualitativos apresentados pelo Projeto-piloto de Justiça Restaurativa desenvolvido nos Juizados Especiais do Fórum do Núcleo Bandeirante; Considerando que as experiências nacional e internacional recomendam a vinculação dos programas de Justiça Restaurativa aos Tribunais de Justiça; Considerando, por fim, a necessidade de se dotar o Serviço de Justiça Restaurativa de recursos humanos e materiais que suportem o desenvolvimento de suas atividades;

RESOLVEM:

Art. 1º – Instituir o Programa de Justiça Restaurativa, subordinado à Presidência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios – TJDFT.

§ 1º - O Programa de Justiça Restaurativa será coordenado por um Juiz de Direito indicado conjuntamente pelo Presidente e pelo Corregedor de Justiça;

§ 2º - As orientações gerais de execução do Programa deverão ser submetidas à aprovação da Presidência do TJDFT;

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§ 3º - A coordenação do Programa deverá apresentar, à Presidência, relatórios anuais sobre as principais atividades realizadas.

Art. 2º – Criar, no âmbito da Corregedoria do TJDFT, o Serviço de Justiça Restaurativa com as atribuições de planejar, apoiar, executar e avaliar as atividades inerentes ao Programa de Justiça Restaurativa.

§ 1º - O Serviço de Justiça Restaurativa realizará, dentre outras, as seguintes ações:

I – a seleção, o recrutamento, a formação e o treinamento de facilitadores;

II – o acolhimento, a orientação e a preparação das partes e das comunidades de referência para o encontro restaurativo;

III – a ordenação das atividades dos facilitadores na condução do encontro restaurativo;

IV – a orientação das atividades dos facilitadores para a formalização do acordo restaurativo, quando alcançado;

V – o registro e a documentação dos casos enviados ao Serviço, para todos os fins que se fizerem necessários, qualquer que seja o resultado alcançado;

VI – a elaboração, o registro e a documentação de instrumentos de avaliação do Programa, conforme seja definido com instituição externa ou por equipe técnico-científica;

VII – a promoção de estudos visando ao aprimoramento do Programa;

VIII – a organização e a realização de eventos objetivando a divulgação do programa e dos seus resultados;

IX – a celebração, com os facilitadores voluntários, de Termo de Adesão ao Serviço Voluntário, dele devendo constar o objeto e as condições de seu exercício, bem como a manutenção e armazenamento de tais instrumentos;

X – o estabelecimento de relacionamento técnico e operacional com outras unidades, programas ou projetos do TJDFT e com outras instituições, visando aos objetivos do Programa;

XI – o fornecimento de apoio técnico e operacional aos Magistrados que assim o solicitarem;

XII – a manutenção de biblioteca básica de literatura nacional e estrangeira sobre Justiça Restaurativa, a fim de proporcionar a consulta dos facilitadores bem como para o treinamento dos mesmos;

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XIII – a elaboração e atualização de Manual de Justiça Restaurativa, o qual deverá contemplar a boa técnica da metodologia de mediação vítima-ofensor;

XIV – o atendimento às demandas por intervenção restaurativa originárias de qualquer circunscrição judiciária do Distrito Federal, dentro das condições que lhe permitirem os recursos humanos e materiais;

XV – o desenvolvimento de gestão com organismos nacionais e internacionais visando à captação de recursos adicionais específicos para o desenvolvimento das atividades do Programa de Justiça Restaurativa.

Art. 3º. Fica estabelecida a seguinte configuração de Funções Comissionadas para a composição do Serviço de Justiça Restaurativa, com as respectivas atribuições:

I – 01 (uma) FC-05 – Supervisor do Serviço de Justiça Restaurativa

Atribuição: Supervisão geral do Serviço de Justiça Restaurativa com a função principal de coordenação e gerenciamento dos processos de seleção, recrutamento, formação e treinamento dos facilitadores; coordenação dos processos de preparação e realização do pré-encontro e do encontro restaurativo; coordenação da elaboração, registro e documentação dos instrumentos de avaliação; coordenação da realização, em conjunto com instituições externas e/ou equipe técnica do TJDFT, de avaliação das ações do Programa.

II – 01 (uma) FC-03 – Apoio à Supervisão.

Atribuições: Responsável por dar suporte às atividades da Supervisão, bem como auxiliar no gerenciamento dos processos de seleção, recrutamento, formação e treinamento, preparação e realização do pré-encontro e do encontro restaurativo assim como nas ações de avaliação; substituir a Supervisão nas suas eventuais ausências e/ou impossibilidades.

III – 01 (uma) FC-01 – Executor.

Atribuições: comunicação dos atos processuais relativamente aos feitos remetidos ao Serviço de Justiça Restaurativa; elaboração e manutenção de estatística das atividades do Serviço de Justiça Restaurativa.

Parágrafo único - As funções comissionadas descritas neste artigo serão destinadas, posteriormente, por ato específico desse Tribunal.

Art. 4º. A intervenção restaurativa terá início a partir do encaminhamento dos processos judiciais ao Serviço de Justiça Restaurativa pelo juiz competente para o processamento e julgamento do feito.

Parágrafo Único – Poderá o Tribunal de Justiça firmar Convênio, Termo de Cooperação ou qualquer outro instrumento de parceria para a execução do

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Programa de Justiça Restaurativa com as instituições integrantes do Sistema de Justiça, e nesses, definir o procedimento operacional da intervenção restaurativa e, bem assim, instituir, com os parceiros operacionais, orientações gerais de execução do Programa, a serem submetidas à aprovação da Presidência do TJDFT.

Art. 5º – O vínculo dos facilitadores voluntários com o TJDFT é subordinado à disciplina da Lei do Voluntariado (Lei nº 9.608/98), ainda quando sejam eles integrantes dos quadros do Tribunal de Justiça ou de quaisquer das instituições parceiras.

§ 1º - O exercício das funções de facilitador voluntário, por período contínuo superior a um ano, constitui título em concurso público para o cargo de Juiz de Direito Substituto, e critério de desempate, nesse e em qualquer concurso realizado no âmbito da Justiça do Distrito Federal;

§ 2º - Poderá o TJDFT realizar treinamento e capacitação a servidores de outros órgãos e instituições, em função de Convênio, Termo de Cooperação ou qualquer outro instrumento de parceria, a ser aprovado pela Presidência.

Art. 6º - São atribuições dos facilitadores:

I – preparar e realizar o pré-encontro das partes e comunidades de referência, separadamente aquelas que estão em posição diversa no conflito;

II – abrir e conduzir o encontro restaurativo;

III – aplicar a boa técnica de mediação vítima-ofensor, sempre visando à auto-composição do conflito;

IV – redigir o Termo de Acordo, quando alcançado, ou atestar a inviabilidade do seu alcance.

§ 1º - É dever dos facilitadores manterem-se com neutralidade e imparcialidade, garantirem a voluntariedade de participação das partes na intervenção restaurativa e assegurarem a confidencialidade das informações prestadas na condução do pré-encontro e do encontro restaurativo;

§ 2º - Aplicam-se aos facilitadores os impedimentos e as suspeições previstas na legislação processual civil e penal.

§ 3º - Aos facilitadores é vedado:

I – prestar testemunho em juízo acerca das informações obtidas no âmbito da intervenção restaurativa;

II – relatar, ao Juiz, ao Promotor, aos Advogados ou a qualquer autoridade do sistema de justiça o conteúdo das declarações prestadas pelas partes em conflito ou pelas respectivas comunidades de referência, salvo ao Juiz do

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processo ou ao supervisor do serviço, aquele que revele a existência de crime perpetrado, em fase de execução ou de planejamento;

III – divulgar, para qualquer pessoa, o conteúdo das declarações prestadas pelas partes em conflito ou pelas respectivas comunidades de referência.

Art. 7º - Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Desembargador LÉCIO RESENDE DA SILVA Presidente

Desembargador EDUARDO ALBERTO DE MORAES OLIVEIRA Vice-Presidente

Desembargador JOÃO DE ASSIS MARIOSI Corregedor