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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ ANA ALICE DE CARLI BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR E O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À MORADIA Rio de Janeiro 2008

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ

ANA ALICE DE CARLI

BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR E O DIREITO HUMANO

FUNDAMENTAL À MORADIA

Rio de Janeiro

2008

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ANA ALICE DE CARLI

BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR E O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À

MORADIA

Dissertação apresentada como requisito

parcial para a obtenção do título de Mestre

em Direito Público e Evolução Social, na

Linha de Pesquisa Direitos Fundamentais e

Novos Direitos, pela Universidade Estácio

de Sá.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Edson Fachin

Rio de Janeiro

2008

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VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

A Dissertação

BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR E O DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL À

MORADIA

Elaborada por

ANA ALICE DE CARLI

Aprovada por todos os membros da BANCA EXAMINADORA:

Presidente: Prof. Dr. Luiz Edson Fachin

Universidade Estácio de Sá

Profa. Dra. Maria Celina Bodin de Moraes

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC

Profa. Dra. Edna Raquel Rodrigues Santos Hogeman

Universidade Estácio de Sá

Rio de Janeiro, --------/--------/2008.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Senhor Jesus Cristo, por capacitar-me

a chegar até aqui.

Agradeço ao meu marido Leonardo, pela

compreensão e dedicação incomensuráveis.

Agradeço a querida professora Maria Teresinha

Pereira e Silva, pela enorme ajuda.

Agradeço ao ilustre professor, meu orientador, Luiz

Edson Fachin pela impagável contribuição

intelectual.

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“A pessoa prevalece sobre qualquer valor patrimonial”.

Pietro Perlingieri

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RESUMO

O presente trabalho – o qual vincula-se à Linha de Pesquisa

Direitos Fundamentais e Novos Direitos, do Curso de Mestrado em Direito

Público e Evolução Social da Universidade Estácio de Sá - objetiva demonstrar

que o bem de família do fiador proprietário de único bem imóvel não pode ser

objeto de constrição judicial, na medida em que tal significante tem como

função essencial garantir o patrimônio mínimo, o qual, por sua vez, encontra

sua ratio na dignidade da pessoa humana. Nesse contexto, sustenta-se que o

direito humano fundamental à moradia consagra mais do que o simples acesso

a um teto que sirva à habitação, pois, de fato, é pressuposto e instrumento

necessário à realização de outros valores e direitos humanos fundamentais.

Com esse fundamento, propugna-se uma nova hermenêutica, em que todas as

normas infraconstitucionais, bem como as relações jurídicas - públicas ou

privadas - sejam interpretadas e caracterizadas à luz da Constituição,

considerando, ainda, a pessoa como alguém que extrapola a condição de ser

abstrato, o que implica ser a constitucionalidade da norma inserta no inciso VII,

do art. 3º, da Lei 8.009/90, que prevê a penhora do bem de família do fiador,

condicionada à existência de outro bem, que não aquele que serve de abrigo

ao garantidor e sua família. Analisa-se, ainda, a jurisprudência dos Tribunais de

Justiça estaduais, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal

Federal no que concerne à (i)legitimidade da mencionada regra à luz da

Constituição de 1988.

PALAVRAS-CHAVE: Direito à Moradia, Bem de Família, Fiador, Patrimônio

Mínimo, Dignidade Humana.

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SUMMARY The present work, tied with the Line of Research Right Basic and

New Rights, in the Master’s degree in Public Law and Social Evolution of the

University Estácio de Sá, objectives to demonstrate that homestead of the

guarantor who owns the only one property cannot be object of judicial

constriction, in the measure where such significant and has as function

essential to guarantee the minimum patrimony, which, in turn, finds its ratio in

the dignity of the person human being. In this context, it is supported that the

basic human right to the housing more than consecrates what the simple

access to a ceiling that serves to the habitation, therefore, in fact, it is estimated

and necessary instrument to the accomplishment of other values and basic

human rights. Still, a new hermeneutics is advocated, where all the

constitutional rules, as well as the legal relationships - public or private - are

interpreted and characterized to the light of the Constitution considering the

person as somebody who surpasses the condition of being abstract. In this

context, it is important to analyze the constitutionality of the rule in the

subsection VII, of the article 3º, of the Law 8,009/90, that allows attachment the

homestead of the guarantor, since the existence of another good, not that one

that serves of shelter to the guarantor and his family. It is analyzed, yet, the

jurisprudence of the Supremo Tribunal Federal, the Superior Tribunal de Justiça

and the Regional Courts. It concerns about de legality of the mentioned rule to

the light of the Constitution of 1988.

KEYWORDS: Habitation right, Homestead, Guarantor, Minimum Patrimony,

Dignity Human being.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................ 9 TÍTULO I - A MORADIA COMO EXPRESSÃO DO SER........................................ 15

Capítulo I - DO TETO À REALIZAÇÃO DA ALMA ............................................ 15

I.1. A Questão Habitacional no Brasil.................................................................. 18 I. 2. Espaço Urbano como Locus de Exercício da Cidadania ................................ 30 I.3. Patrimônio Mínimo, garantia do mínimo existencial...................................... 42 I.4. Bem de Família e a Ressignificação do Instituto Família ............................... 51

Capítulo II - DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS ..................................... 62

II.1. Principais Aspectos...................................................................................... 62 II. 2. O Direito de Propriedade e sua dúplice dimensão: autônoma e acessória..... 72 II. 3. Da Eficácia dos Direitos Humanos Fundamentais ...................................... 89

TÍTULO II - A RESSIGNIFICAÇÃO DO TER........................................................ 100

Capítulo I – DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR .............................................. 100 I. 1. A Função Social dos Contratos................................................................... 100 I. 2. Alguns Aspectos do Contrato de Fiança ..................................................... 106 I. 3. Da Impenhorabilidade do Bem de Família.................................................. 115 I. 4. Da Constitucionalidade Condicionada do Art. 3º, inciso VII da Lei 8.009/90 – Lei do Bem de Família. ..................................................................................... 119

Capítulo II - EXAME CRÍTICO DA JURISPRUDÊNCIA ACERCA DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR...................................................................... 138

II. 1. Breves Considerações ............................................................................... 138 II. 2. Tribunais de Justiça Estaduais................................................................... 144 II. 3. Superior Tribunal de Justiça...................................................................... 152 II. 4. Supremo Tribunal Federal......................................................................... 158

CONCLUSÃO.......................................................................................................... 164 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 170

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INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, em especial nos países em

desenvolvimento, o problema do acesso à moradia tem-se agravado,

provocando intensos debates entre estudiosos de diferentes áreas, como

filósofos1, sociólogos2, arquitetos 3, antropólogos urbanistas4, geógrafos5, e

como não se pode esquecer, pensadores do Direito6. No mesmo grupo

merecem referência políticos7 e governantes8 comprometidos com a

problemática social, representantes de organizações internacionais9 e de

entidades nacionais10 criadas por diferentes segmentos da sociedade, de um

modo geral. No Brasil, como de resto em outros países, o problema do deficit

habitacional não é novidade; já no século XX a crise no setor de moradia

assumia dimensões muito elevadas: calcula-se que, atualmente, cerca de 51

milhões de pessoas vivem em favelas11 no território brasileiro, sem falar na

população de rua, os denominados sem-teto.

De fato, o germe do problema da habitação no Brasil já podia ser

detectado no final do século XIX e início do século XX, se agravando a partir da

década de 40, período em que era evidente o acentuado descontrole do

espaço urbano, com crescente número de cortiços e outras habitações 1 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução Regina Lyra. Nova edição. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2004. 2 CORDEIRO, Simone Lucena. Moradia Popular na Cidade de São Paulo: (1930-1940) – Projetos e Ambições. São Paulo: disponível em: < http. www.historica.arquivoestado.sp.gov.br>. Pesquisa realizada em 10/05/2007. 3 BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil: Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difusão da Casa Própria. 3. ed. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2002. 4 DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução Beatriz Medina. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006 5 RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas Cidades Brasileiras: Habitação e Especulação, o Direito à Moradia, os Movimentos Populares. São Paulo: Editora Contexto, 2001. 6 LIRA, Ricardo Pereira. Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi ( coordenadores ). Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris. 2007; AINA, Eliane M. Barreiros. O Fiador e o Direito à Moradia: Direito Fundamental à Moradia frente à situação do fiador proprietário de bem de família. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2004; SAULE JUNIOR, Nelson. A Proteção Jurídica da Moradia nos Assentamentos Irregulares. Porto Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris, 2004 etc. 7 ARRUDA, Inácio. A Questão Urbana e o Futuro das Cidades: rumo à nova cidade. Brasília: Disponível em: <http://www.camara.gov.br?inacioarruda>. Pesquisa realizada em 10/05/2007.

8 BRASIL. Ministério das Cidades. Site < http://www.cidades.gov.br> Ver ainda, FINEP. Programa de Tecnologia de Habitação. Rio de Janeiro: Site < http://www.finep.gov.br/programas/habitare.asp> Pesquisa realizada em 10/05/2007. 9 ORGANIZAÇÀO DAS NAÇÕES UNIDAS – UNHABITAT. Site <http://www.unhabitat.org>

10ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL MORADIA E CIDADANIA. Brasília: Site: http://www.moradiaecidadania.org.br/missão.php. 11 DAVIS. Op. Cit. p.34.

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coletivas, onde as pessoas viviam sem estrutura adequada, sem privacidade, e

expostas a todo tipo de perigo de ordem física ou moral. Diante de tal dilema, a

possibilidade de acesso `a moradia passou a ser tratada pelo Poder Público

não apenas como concretização do direito de habitação, mas, sobretudo, como

forma de garantir a ordem, a moral e os bons costumes, pontua Nabil

Bonduki12. Vale dizer que, por muito tempo, a moradia não era considerada

matéria de interesse público, sendo a intervenção do Estado nesse setor

despicienda, conforme será explicitado no item 1, do capítulo I, do Título I,

deste trabalho.

A essencialidade do direito à moradia para o desenvolvimento

humano não pode ser rechaçada em função de divergências doutrinárias13 e

até jurisprudenciais14 quanto à sua natureza jurídica - se integra ou não o rol de

direitos fundamentais -, porquanto tal direito é pressuposto para a realização de

outros valores fundamentais, tais como: a vida, a privacidade, a saúde, o

acesso a oportunidades de trabalho e ao exercício da cidadania. Nessa linha

de pensamento, Marcio Cammarosano15 assevera que “(...) falar em habitação,

moradia, casa, lar, é falar em necessidade vital básica do ser humano”, e

Eliane Maria Barreiros Aina16, por sua vez, apregoa que “a moradia é uma

necessidade premente de todo o ser humano. Todos precisamos de um local

12 BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil – Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difusão da Casa Própria. 3. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 70-75. 13 Para Ricardo Pereira Lira o direito `a moradia consubstancia um direito fundamental, ver LIRA, Ricardo Pereira. Direito Urbanístico, Estatuto da Cidade e Regularização Fundiária. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi (coordenadores). Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 13. Ricardo Lobo Torres, a seu turno, preleciona que os direitos sociais e econômicos “extremam-se da problemática dos direitos fundamentais porque dependem da concessão do legislador (...). Revestem eles, na Constituição, a forma de princípios de justiça, de norma programáticas”. Ensina, ainda, o autor, que a Suprema Corte dos Estados Unidos só reconhece a fundamentalidade dos referidos direitos no que toca ao mínimo existencial. Ver TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 154-156. 14 Conforme se depreende de algumas decisões, como por exemplo, a exarada em sede de recurso de Agravo de instrumento, em que o 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, ao tratar da possibilidade ou não da penhora do bem do fiador, em contrato de locação, defendeu a validade da norma do art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, que prevê a penhora do referido bem, por entender que o direito à moradia, previsto no art. 6º da Carta de 1988, é norma meramente programática ( In: AgI. 870.236/00/3 – Rel. Juiz Carlos Giarusso Santos). Frise-se, entretanto, que a norma programática, malgrado ser um comando para o Poder Público, quando traz ínsito um direito fundamental, como a moradia, ela deve ser bússola para os órgãos do Estado e para os particulares, no sentido de que suas ações não podem violá-lo. 15 CAMMAROSANO, Márcio. Fundamentos Constitucionais do Estatuto da Cidade ( arts. 182 e 183 da Constituição Federal ). In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 25. 16AINA, Eliane Maria Barreiros. O Fiador e o Direito à Moradia: Direito Fundamental à Moradia Frente à Situação do Fiador proprietário de Bem de Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 86-87.

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para nos abrigarmos das intempéries, descansarmos de nossa labuta,

abrigarmos nossa família (...)”.

Interessante observar que, quando se pensa em direito à moradia,

é comum fazer-se uma conexão com o direito de propriedade, posto ser este,

sob o aspecto instrumental, o meio de se atingir a plenitude do direito à

moradia, conquanto existam outros institutos que também viabilizam o acesso

à habitação, como por exemplo, o comodato, a concessão de direito real de

uso, a posse e a locação.

Nesse contexto, encaixa-se o objeto do presente trabalho, o qual

tem como escopo a defesa do bem de família do fiador, proprietário de único

bem imóvel que, num ato de liberalidade ( generosidade ) assume o encargo

de garantidor em contrato de locação. Em conseqüência, não raro, se vê

muitas vezes envolvido em processo de execução, por meio do qual seu abrigo

seguro e sagrado é objeto de constrição judicial para pagamento de débitos de

aluguéis não quitados pelo seu afiançado ( o locatário ).

Nessa perspectiva, não se pode esquecer que, atualmente, o bem

de família possui íntima conexão com a idéia de patrimônio mínimo e com o

direito humano fundamental `a moradia, ambos corolários da dignidade da

pessoa humana. De modo que, propugna-se uma nova interpretação da norma

inserta no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, que admite a penhora do único

bem do fiador, para que a mesma possa ser válida e legítima à luz da Carta de

1988.

Para realizar tal mister adotar-se-á o método de pesquisa crítico-

dialético. Como fontes de pesquisa, merecem relevo: a normativa constitucional

( consubstanciada na Constituição Federal de 1988 ) e a infraconstitucional, a

doutrina multidisciplinar nacional e estrangeira, e, basicamente, a jurisprudência

dos Tribunais de Justiça brasileiros: o Supremo Tribunal Federal, o Superior

Tribunal de Justiça, e os Tribunais Estaduais.

Quanto à relevância do tema, é indiscutível a sua importância,

tanto do ponto de vista jurídico quanto econômico-sociológico, porquanto o

acesso à moradia é um problema real e constante no cotidiano brasileiro, o que

torna imperioso o desenvolvimento de trabalhos acadêmicos com o objetivo de

estudar caminhos viáveis para dar concretude ao direito humano fundamental

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ao teto. No caso presente, considera-se crucial problematizar a questão da

penhora do bem de família do fiador, proprietário de único bem imóvel.

Nessa ordem de raciocínio, o trabalho será dividido em dois

títulos, seguidos, cada qual, por 2 capítulos e algumas seções, que variam em

número, de acordo com o tema em tela.

Ab initio, objetiva-se estudar no Título I, “A moradia como

expressão do ser”, nos capítulos, “Do teto à realização da alma”, e “Direitos

humanos fundamentais”, alguns aspectos relevantes da questão habitacional

no Brasil e sua imbricação com o espaço urbano, o mínimo existencial e a

garantia do patrimônio mínimo, este consubstanciado no bem de família. Visa-

se, ainda, a examinar alguns pontos importantes dos direitos humanos

fundamentais, entre eles, a sua real aplicação nos planos social e jurídico, bem

como introduzir a idéia da dúplice face do direito de propriedade, o qual se

subdivide em direito humano fundamental autônomo e direito fundamental

acessório.

Frise-se que o direito de propriedade acessória contempla a via

instrumental de concretização do direito humano fundamental à moradia, o qual

corporifica mais do que o adjetivo de direito social, visto que é pressuposto

para a efetividade de outros valores essenciais, que norteiam o universo do

homem como ser-pessoa e ser-cidadão.

Nesse cenário, tem-se como norte a doutrina da

constitucionalização do Direito, a qual proporciona novo olhar para as normas

jurídicas a partir dos valores insculpidos na Constituição, como por exemplo, os

direitos humanos fundamentais, os quais impõem mudanças paradigmáticas,

como a encampada pela idéia de “repersonalização” do Direito Privado, que, no

dizer de Luiz Edson Fachin17, “a pessoa e suas necessidades fundamentais,

tais como a habitação minimamente digna” ocupam o epicentro das relações

sociais. Essa tendência do direito contemporâneo encontra guarida na

Constituição, que, por sua vez, é a fonte de legitimação de todos os sistemas18.

É cediço que não dá mais para olhar as diferentes realidades e tentar

17 FACHIIN, ( 2003). Op. Cit. p. 78. 18 Cf. SCHUARTZ, Luis Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2005. Ao desenvolver seu estudo sobre a Teoria dos Sistemas Sociais, de Niklas Luhmann, o autor menciona que para Luhmann, o processo autopoiético dos sistemas precisa do apoio do ambiente, sob pena de fracassar a reprodução. p.89.

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amalgamá-las ao ordenamento jurídico posto, sem dar relevo à existência de

mudanças conceituais nas relações contratuais, patrimoniais, e familiares19.

No Título II, “A ressignificação do ter”, a seu turno, pretende-se,

sempre com amparo na idéia de constitucionalização do Direito, discorrer

acerca da funcionalização dos contratos como premissa para a abordagem de

alguns aspectos do contrato de fiança em locação, bem como elucidar o tema

da impenhorabilidade do bem de família, com a defesa da constitucionalidade

condicionada à existência de outro bem de propriedade do garantidor ( além do

seu bem de família ), do art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90 ( Lei do bem de

família ), introduzido pela Lei 8.245/91 ( Lei do inquilinato ), que prevê a

penhora do bem de família do fiador. Na seqüência analisa-se a jurisprudência

dos Tribunais brasileiros no que pertine à (im)possibilidade da penhora do

único bem do fiador.

Cumpre realçar que o caminho aqui escolhido, isto é, os temas

apontados servem de respaldo à análise e à defesa que se perseguirá no

desenvolver deste trabalho, que é o caráter fundamental e meta-jurídico do

direito à moradia, como pressuposto para defesa da legitimidade da

interpretação que afasta a norma que permite a penhora do único bem do

fiador, em sede de locação, tendo como norma-fundamento a dignidade da

pessoa humana.

Nessa toada, visa-se, nos capítulos, “Do bem de família do fiador”

e do “Exame crítico da Jurisprudência acerca da penhora do único bem do

fiador”, a demonstrar que, na atualidade, não cabe mais interpretar o Direito à

luz da normativa-positivista clássica, calcada em máximas como a pacta sunt

servanda20 e a plena autonomia da vontade21, tendo em vista os novos padrões

19 FACHIN, ( 2003 ). Op. Cit. p. 227. O autor menciona, a título de ilustração, a união estável ( não-matrimonial ), que se impôs perante a jurisprudência, a lei e a regra, acabando por sensibilizar o constituinte, consoante ao disposto no art. 226, par. 3º, que prevê a união estável como entidade familiar. Ver também do autor, a obra “Virada de Copérnico: um convite `a reflexão sobre o Direito Civil brasileiro contemporâneo”. In: FACHIN, Luiz Edson ( coordenador ). Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000. Vaticina o autor que a releitura dos pilares do Direito Privado ( o contrato, o patrimônio e família ) é essencial para que se possa superar o sistema clássico individualista. 20 Preleciona Sylvio Capanema de Souza que tal máxima está subsumida no princípio da força obrigatória dos contratos, também denominado de Princípio da imutabilidade dos contratos, segundo o qual as partes, uma vez terem pactuado, tal avença se torna “lei” entre elas. In: SOUZA, Capanema. Contratos- Estudo das Principais Alterações Introduzidas pelo Novo Código Civil. Coletânea de Textos Cepad. Rio de Janeiro: Editora Espaço Jurídico, 2005.

21 Cf. lições de Caio Mário da Silva Pereira, o principio da autonomia da vontade se revela como “a faculdade que têm as pessoas de concluir livremente os seus contratos”, mas, adverte o autor, que tal princípio deve ser relativizado diante de premissas de ordem pública. Ainda, vale trazer à lume a

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de valores consagrados na Carta de 1988, como a função social dos contratos,

incorporada pelo Código Civil de 2002, consoante o art. 42122; a dignidade da

pessoa humana, alçada, pelo Constituinte de 1988, a princípio norteador de

todo o sistema normativo; e os limites impostos pelos direitos humanos

fundamentais.

Nessa linha de pensamento, a regra, segundo a qual o único bem

do garantidor, em contrato de locação, pode ser objeto de penhora, somente

merece acolhida pela Carta de 1988 se interpretada conforme os ditames das

normas constitucionais e dos direitos humanos fundamentais.

Sem o propósito de esgotar todas as questões que envolvem o

dilema da penhora do bem do fiador, objetiva-se, ainda, no capítulo II, analisar

a jurisprudência dos Tribunais brasileiros, bem como - embora pareça

ambicioso -, a) revigorar, sob o ponto de vista científico, a tese da

fundamentalidade do direito à moradia e da garantia do patrimônio mínimo; b)

sustentar a tese da instrumentalidade do direito de propriedade23 quando dá

concretude ao direito à moradia; c) buscar fundamentos legais e doutrinários

para viabilizar o direito à moradia como desdobramento do direito ao mínimo

existencial; e d) defender a tese da constitucionalidade condicionada da norma

insculpida no art. 3°, inciso VII, da Lei 8.009/90, que prevê a penhora do bem

do fiador, em contrato de locação, rechaçando o argumento conseqüencialista

econômico de que tal restrição visa a garantir o acesso à locação, e por

conseguinte, o direito à moradia.

concepção do autor para normas de ordem pública, as quais seriam “as regras que o legislador erige e cânones basilares as estrutura social, política e econômica da Nação”. In: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. III. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 9-11. 22 Art. 421. “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. 23 A tese ora sustentada, a qual se pretende desenvolver de forma plena em estudo futuro, é resultante da combinação: 1) da tese do patrimônio mínimo, capitaneada por Luiz Edson Fachin; 2) da ratio subjacente ao voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 407.688/SP, julgado em 02/02/2006, que analisou a constitucionalidade da norma inserta no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90; e 3) da contraposição aos argumentos apresentados pelo também Ministro da Suprema Corte brasileira Cezar Peluso no julgamento supra mencionado.

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TÍTULO I - A MORADIA COMO EXPRESSÃO DO SER

Capítulo I - DO TETO À REALIZAÇÃO DA ALMA

“Eu quero uma casa para poder viver!”. Este foi o desabafo em

forma de apelo de moradora de uma favela carioca, após ver sua casa

totalmente destruída, por conta de confronto entre a polícia civil e alguns

traficantes24.

De fato, não há como dissociar a moradia da personalidade do

indivíduo, pois, além de servir de abrigo, a ela estão atrelados outros

significantes, como a vida e a dignidade humana. Nesse sentido, Michelle

Perrot, citada por Luiz Edson Fachin, professa que “a casa é, cada vez mais, o

centro da existência. O lar oferece, num mundo duro, um abrigo, uma proteção,

um pouco de calor humano”25.

Sonhar com uma casa equipada com o essencial e um espaço

razoável para que os ocupantes exerçam o direito à privacidade e um mínimo

de conforto, à primeira vista parece óbvio. Ocorre que a realidade concreta

confirmada por eloqüentes dados estatísticos têm demonstrado significativo

abismo entre o ideal platônico26 de casa e o que o mundo da vida apresenta.

Estima-se que, só no Brasil, o deficit habitacional chega a oito milhões, com

maior concentração nas regiões sudeste e nordeste do país, superando os

70% do total, conforme se infere do gráfico elaborado pela Fundação João

Pinheiro27:

24 TV GLOBO. Reportagem sobre o confronto entre policiais civis e traficantes no Morro da Coréia no Rio de Janeiro. Programa FANTÁSTICO, exibido em 24.out.2007. 25 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à Luz do Novo Código Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. p. 267. 26 WERLANG, Sérgio Ribeiro da Costa. Descoberta da Liberdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p. 69-70. Para Platão “assim como os substantivos comuns concretos, como cavalo, mesa etc., também os substantivos comuns abstratos, como as noções éticas e morais, teriam sua existência no plano ideal”. 27 FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit Habitacional no Brasil. Disponível em: < www.fjp.gov.br>. Pesquisa realizada em 12/11/2007.

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A solução do problema do deficit habitacional no Brasil requer

estudo multidisciplinar, com a união de esforços de vários segmentos da

sociedade: do governo, abrangendo os três Poderes, Executivo, Legislativo e

Judiciário; e da iniciativa privada, envolvendo arquitetos, urbanistas,

engenheiros, advogados, economistas28, professores, donas-de-casa e

trabalhadores em geral.

A despeito de pensamentos contrários29, o direito à moradia

enfeixa mais do que um direito social, posto ser pressuposto para a realização

de vários outros valores, tais como: a vida, a segurança, a saúde ( física e

mental ), o trabalho, a educação, o pleno desenvolvimento e a cidadania, além

de constituir um dos corolários da dignidade da pessoa humana, esta como

28 GRAGNANI, José Antonio. A jóia da Coroa: o Brasil precisa atingir um patamar de evolução favorável no mercado imobiliário. Jornal O VALOR, São Paulo, 19. jul. 2007. p. A18. Segundo estudos desenvolvidos pelo economista, o mercado de financiamento imobiliário no Brasil, apesar de recente evolução, ainda é muito pequeno, correspondendo a 2% do PIB, enquanto países como: o Chile ( o setor é responsável por 17% do PIB ) o México ( 11 % ), a Argentina ( 4% ), sem considerar a grande potência americana, cujo porcentual de investimento imobiliário chega a 79%. Sabe-se, entretanto, que os Estados Unidos estão tendo problemas nesse segmento, mas, apesar de instigante a abordagem do tema, não há espaço neste trabalho para desenvolver tal estudo. 29Cf. Jorge Miranda, “a efetivação do direito à educação e à cultura destina-se a fazer que todos passem a usufruir da liberdade de criação e fruição cultural e da liberdade de aprender e ensinar, em igualdade”. In: MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 3. ed. rev. e atual. Portugal: Editora Coimbra, 2000. p. 433. Ainda, como aluna da disciplina Teoria da Constituição, ministrada pelo mestre português, no Curso de Mestrado em Direito Público e Evolução Social da Universidade Estácio de Sá/RJ, em 23/10/2007, ao me posicionar no sentido de que o direito à moradia seria pressuposto para a concretização de todos os demais direitos, considerando que é no seio da família e no conforto do lar que as pessoas têm condições adequadas para se desenvolver, indaguei ao professor qual era a sua opinião a respeito desse posicionamento. O eminente professor sustentou ser o direito à educação pressuposto para a realização dos demais direitos.

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norma propulsora de todos os sistemas sociais30 ( normativo, econômico,

social).

Nesse diapasão, posicionaram-se os autores da proposta que

culminou com a edição da Emenda Constitucional nº 26 de 2000, que

consagrou no art. 6º, da Carta de 1988, o direito humano fundamental à

moradia. Para ilustrar, vale transcrever parte da Justificativa da referida

proposta, publicada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Redação31:

A questão do direito à moradia tem sido objeto de aceso e polarizado debate social, tanto em nível nacional como internacional. Fóruns, entidades de classe, entidades governamentais e não-governamentais têm-se reunido nesses dois últimos anos com vistas ao maior encontro de todos os tempos sobre a terra: a Conferência Habitat II, convocada pela Organização das Nações Unidas (ONU) (...). As atuais condições de moradia de milhões de brasileiros chegam a ser deprimentes e configuram verdadeira ‘chaga social’ para grande parte das metrópoles do país. Faz-se, portanto, urgente que se dê início a um processo de reconhecimento da moradia como célula básica, a partir da qual se desenvolvem os demais direitos do cidadão, já reconhecidos por nossa Carta Magna: a saúde, o trabalho, a segurança, o lazer, entre outros. Sem a moradia o indivíduo perde a identidade indispensável ao desenvolvimento de suas atividades, enquanto ente social e produtivo se empobrece e se marginaliza. Com ele se empobrece, invariavelmente a Nação. ( grifo nosso )

Nesse contexto, a moradia, embora seja comumente alçada ao

patamar de direito social, na verdade, consubstancia atributo essencial da

personalidade, pois é no locus doméstico que as pessoas desenvolvem seu

caráter, dão seus primeiros passos rumo ao processo de crescimento

espiritual, físico e intelectual. Enfim, é, primeiramente, no espaço do lar,

concretizado num teto com paredes, portas, janelas e banheiro, que o indivíduo

se sente protegido e seguro para iniciar o aprendizado da vida em relação. Em

30 SCHUARTS, Luis Fernando. Norma, Contingência e Racionalidade: Estudos Preparatórios para uma Teoria da Decisão Jurídica. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2005. p. 109-110. Colhendo as lições de Niklas Luhmann, o autor ensina que para o referido pensador “consciências e sociedades são tipos inconfundíveis de sistemas autopoiéticos, o que significa que um só pode ser concebido como ambiente do outro e vice-versa”. 31 BRASIL. Poder Legislativo. Comissão de Constituição e Justiça e de Redação. Diário da Câmara dos Deputados, Brasília, DF., 15/12/98, p. 29022/29023. Disponível em < www.senado.gov.br>. Pesquisa realizada em 09/11/2007. Vale dizer, à época da apresentação da proposta da referida emenda constitucional, o Brasil havia sido convidado para a relatoria da Agenda Habitat, no grupo de trabalho sobre habitação, na Conferência Habitat II, organizada pela Organização das Nações Unidas ( ONU ).

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síntese, a capacidade de enfrentar o “mundo da vida”32 com segurança,

autoconfiança e dignidade, pressupõe a existência de uma moradia com

qualidade33.

A moradia, apesar de atrelar-se naturalmente ao processo de

desenvolvimento do ser humano, por muito tempo no território brasileiro foi

tratada como coisa de “outra ordem”34, situando-se fora do espectro de

proteção estatal. Essa lacuna contribuiu para deflagrar e agravar o problema

da habitação, já perceptível no século XIX por meio do descompasso entre a

necessidade de moradia e o acesso a ela. Até meados do referido período, o

Estado se abstinha de intervir no setor, por considerar a matéria de interesse

meramente privado. Dessa forma, o direito humano fundamental à moradia foi

duplamente violado: de um lado, pelo próprio Poder Público, ao não

desenvolver políticas referentes ao setor, tampouco envidando esforços para

controlá-lo; e de outro lado, pelos particulares, especialmente, os proprietários

de imóveis para locação, que no afã de auferir vantagens pecuniárias, não se

preocupavam em construir ou manter de forma adequada os seus imóveis.

I.1. A Questão Habitacional no Brasil Como se apresentará ao longo da presente seção, o período

compreendido entre o final do século XIX e início do século XX marca o

incremento do problema da habitação no Brasil, por conta de diversos fatores,

em particular35: o grande número de estrangeiros que chegavam ao país, em

função das conseqüências da segunda guerra mundial; o intenso e

desordenado crescimento das cidades, resultante do êxodo rural para os

centros urbanos, onde os trabalhadores buscavam oportunidades de trabalho,

estimulados pelo início do processo de industrialização e expansão do

32 A expressão “mundo da vida” empregada no texto, com inspiração em Jürgen Habermas, tem o sentido de “fatos reais da vida”. Ver HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos. 2 ed. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 2002. p. 88- 100. Para o filósofo, “o mundo da vida estrutura-se através das tradições culturais, de ordens institucionais e de identidades criadas através de processo de socialização”. 33 Entende-se por moradia com qualidade aquela em que há espaço adequado para seus ocupantes, ventilação, estrutura básica de saneamento de água e esgoto e com acesso fácil aos meios de transporte. 34 FACHIN ( 2003 ). p. 89. Professa o autor: “O sujeito não ‘é’ em si, mas ‘tem’ para si titularidades. É menos pessoa real e concreta ( cujas necessidades fundamentais como moradia, educação e alimentação não se reputam direitos subjetivos porque são demandas de ‘outra ordem’ ), e é mais um ‘indivíduo patrimonial’”. 35 BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil – Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difusão da Casa Própria. 3. ed. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2002. p. 17-27.

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comércio. Também merece registro a escassez e o alto custo do material de

construção, em paralelo à presença mínima do Estado neste setor, entregue “à

mão invisível” do mercado36.

O Estado passou verdadeiramente a tratar da questão da

moradia, como problema de interesse público, quando, em decorrência das

péssimas condições de habitação, vieram à lume os problemas de saúde

pública, demandando medidas urgentes37, o que ocorreu timidamente, com a

realização de obras de saneamento, e depois, com a edição do Decreto nº

4.403/1921, que disciplinou as relações jurídicas locatícias.

Devido à insuficiência dessas medidas, alguns segmentos da

sociedade defendiam a intervenção do Poder Público, não somente para cuidar

da questão da higiene sanitária, mas também como forma de facilitar o acesso

à moradia. A partir de 1930, o acesso à casa própria transformou-se num

objetivo do Estado. Neste período promoveram-se inúmeros seminários para

analisar o problema do deficit habitacional: “possibilitar a aquisição da casa

própria pelos trabalhadores tornou-se, então, uma obsessão para quase todos

que debatiam o assunto”, esclarece Nabil Bonduki38.

Clélio Campolina Diniz39 contribui para elucidar a compreensão

do problema em tela, quando expõe dados significativos acerca da densidade

demográfica no Brasil e acrescenta que o crescimento da população ocorreu

de várias maneiras, diferenciando-se de região para região, especialmente em

razão do fenômeno migratório. A economia nos estados de São Paulo e Rio de

36 VASCONCELLOS, Marco A. S. e GARCIA, Manuel E. Fundamentos de Economia. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva. 2006. Os autores mencionam Adam Smith, segundo o qual o mercado deve ser conduzido pelos fatores econômicos, e o Estado deve se abster de interferir na economia, deixando que “a mão invisível” do mercado se encarregue de harmonizar as relações econômicas. Ele defendia a livre iniciativa. p. 17. 37 BONDUKI. Op. Cit. “(...) a despeito dos discursos higienistas contra a precariedade das moradias associando-se aos surtos epidêmicos, o Estado limitou-se `a propositura de medidas de caráter legislativo e, no âmbito da polícia sanitária, a reprimir as situações mais calamitosas.” p. 77. 38 Idem. Ibidem. Segundo o autor, em 1931,o Instituto de Engenharia organizou o primeiro Congresso de Habitação. Já em 1941, o Instituto de Organização Racional do Trabalho passou a realizar as denominadas “Jornadas de Habitação Econômica”, as quais eram prestigiadas por profissionais de diversas áreas como: advogados, urbanistas, sociólogos, engenheiros, empresários etc. p. 73 et seq.

39 DINIZ, Clélio Campolina. A Nova Geografia Econômica do Brasil: Condicionantes e Implicações. Resultado do trabalho de pesquisa desenvolvido pelo Centro de Desenvolvimento Regional, da UFMG/Faculdade de Ciências Econômicas, com o apoio do Ministério da integração Social, do PRONEX e da FINEP. Cf. o autor: a)” entre 1940 e 1996 o grau de urbanização ( percentual de pessoas vivendo nas cidades ) subiu de 31% para 78%, variando entre os estados, sendo que em alguns o grau de urbanização superava 90% ( 95% para São Paulo e 93% para o Rio de Janeiro), enquanto em outros estados o percentual variava em torno de 50%);b) entre 1960 e 1996, o número de municípios dobrou, subindo de 2.766 para 5.509.”

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Janeiro, por exemplo, evoluiu significativamente, em particular, a partir do

século XIX, aumentando ainda mais o grau das desigualdades econômicas e

sociais em relação aos outros estados. Somente a partir do final dos anos 60,

iniciou-se um processo de desconcentração industrial dos referidos estados

para as demais regiões do país; no entanto, este movimento não foi suficiente

para o desenvolvimento das áreas mais pobres, pois as indústrias de grande

porte permaneceram no Sul e Sudeste do país. Para o Nordeste, transferiram-

se apenas as indústrias têxteis e de calçados40.

Ainda segundo interpretação do mencionado pesquisador,

somente com políticas sérias como: “adaptação da tecnologia de acordo com

as características e potencialidades de cada região, e definição de uma política

urbana e sua articulação com os demais instrumentos existentes” pode-se

pensar em desenvolvimento sustentável e justo. Nesse ponto, é inegável a

importância do papel do Estado na concretização de uma sociedade justa e

solidária, como proclama o art.3°, inciso I, da Carta Constitucional de 198841.

A despeito de algumas iniciativas no sentido de amenizar o

problema da moradia, a crise acentuou-se no decorrer do século XX,

porquanto persistiram os mesmos fatores que desencadearam a situação de

caos, somados a outros tantos, tais como: baixo incentivo e financiamento da

casa própria; a pobreza somada aos baixos salários dos trabalhadores; o

crescimento desenfreado e desestruturado das cidades; a péssima estrutura

das habitações e a exploração imobiliária, cujo objetivo de tal segmento era

essencialmente auferir lucro, construindo casas precárias, com material barato

e de qualidade duvidosa.

Diante dessa realidade, alguns investidores passaram a aplicar

seus recursos no setor imobiliário, que propiciava a realização de lucros

significativos, uma vez que a demanda por moradia era intensa e constante.

Desta forma, surgiram inicialmente as chamadas casas de cômodos42, logo

depois os cortiços-pátio, os quais eram, em regra, construídos precariamente

40 Em que pese tais pólos industriais não terem vantagem comparativa em relação às indústrias de grande porte, elas contribuíram, ainda que pouco, para o desenvolvimento econômico do nordeste, haja vista o crescimento das grandes metrópoles nessa região como Recife e Fortaleza. 41 Com efeito, no Brasil adotou-se a federação como forma de Estado, composta pela União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, consoante o disposto no art. 18 da Carta Política vigente, sendo todos autônomos , independentes, e responsáveis pela construção de uma sociedade justa e solidária. 42 BONDUKI. Op. Cit. p. 23. Decorriam da transformação de antigos sobrados em cortiços, de forma muito precária, para alojar várias famílias.

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em um quintal, ou em prédio já edificado onde funcionava algum tipo de

comércio43.

Nesse triste cenário, em que a grande massa trabalhadora e suas

famílias viviam de forma degradante, em condições insalubres, sem estrutura

básica, o Estado passou a se preocupar, vez que o problema não se restringia

apenas à falta de moradia - que era considerada fora da esfera da ação

estatal -, mas se refletia também nas questões problemáticas na área da saúde

pública. Vale dizer que o medo de possíveis surtos epidêmicos e seus

respectivos reflexos na economia levou o Poder Público a preocupar-se com o

controle do espaço urbano.

Conforme lição ilustrativa de Nabil Bonduki44, isso ocorreu

basicamente de três formas: “controle sanitário das habitações; edição de

legislação e códigos de posturas; e a participação direta em obras de

saneamento das baixadas, urbanização da área central e implantação de água

e esgoto”. Tais iniciativas eram vistas pelo administrador público como garantia

de se manter a ordem e o equilíbrio social.

Ainda consoante análise do referido autor45, não obstante a

posição dos higienistas de combater as habitações coletivas, sob o argumento

de que a “superlotação, o uso comum de sanitários e a ausência de

saneamento criavam condições para a propagação de doenças contagiosas”,

tais imóveis não podiam ser destruídos, pois isso geraria um problema ainda

maior: deixar ao desabrigo numeroso grupo de trabalhadores de baixa renda.

Nesse paradoxo entre norma e contingência, os proprietários-locadores se

aproveitavam da situação e continuavam construindo casas de baixo custo e

desprovidas de infra-estrutura básica: de fato havia dois cenários distintos; de

43 Idem. Ibidem. p. 23-25. Segundo o autor, tal modalidade de moradia, se é que se pode chamar de moradia, era construída “quase sempre em um quintal e em um prédio onde há estabelecida uma venda ou tasca qualquer. Um portão lateral da entrada por estreito e comprido corredor para um pátio com 3 a 4 metros de largo nos casos mais favorecidos. Para este pátio, ou área livre, se abrem as portas e janelas de pequenas casas enfileiradas, com o mesmo aspecto, a mesma construção(...). Raramente cada casinha tem mais de 3 metros de largura, 5 a 6 metros de fundo e altura de 3 metros a 3, 5 metros, com capacidade para quatro pessoas(...) O cômodo de dormir, aposento que ocupa o centro da construção, não tem luz nem ventilação nem capacidade para a gente que o ocupa à noite(...) São estas casinhas, em geral, assoalhadas”. 44 BONDUKI. Op. Cit. p. 28-29. Assevera o autor que “no que diz respeito ao controle sanitário, essas medidas foram marcadas por uma concepção que identificava na cidade e nas moradias as causas das doenças, as quais seriam extirpadas por meio da regulamentação do espaço urbano e do comportamento de seus moradores”. 45 Idem. Ibidem. p. 39. Diz o pesquisador que, “embora existam inúmeras referências `a demolição de habitações tidas como insalubres, nunca o poder público pôde levar a lei ao pé da letra pois isto significaria deixar ao desabrigo parte dos trabalhadores urbanos”.

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um lado, o homem com poucos recursos que ansiava por um teto para morar, e

de outro, o capitalista que buscava precipuamente auferir lucro com o

empreendimento imobiliário, sem se preocupar com possíveis seqüelas

decorrentes das más construções.

A fiscalização sanitária manteve-se ativa até meados de 1920,

criando óbices às construções que fugiam aos padrões estabelecidos; porém

sem força para erradicar o problema das construções precárias. Nesse

período, a aquisição da casa própria pelos trabalhadores era um sonho de

difícil concretização, porquanto o Estado – repise-se - se mostrava ausente no

tocante ao setor, controlado pelo mercado de investidores imobiliários. De

parte do ente governamental, não havia financiamento ou outra forma de

incentivo à construção de casas pelos próprios trabalhadores (fenômeno

chamado de autoconstrução, que foi amplamente difundido na década de

40 )46.

Na década de 1930 o país foi submetido à ditadura de Getulio

Vargas, período marcado, entre outros fatores de cunho sócio-políticos, pela

expansão de loteamentos clandestinos. O tema “moradia” exsurgiu como

preocupação de interesse público, não apenas no tocante ao aspecto sanitário,

mas também com o intuito ideológico de promover melhores condições de vida

aos trabalhadores, que vivendo bem produziriam melhor. A habitação - não

definida como objeto de cunho social, mas econômico – representava “um

elemento na formação ideológica, política e moral do trabalhador, e, portanto,

decisiva na criação do ‘homem-novo’ e do trabalhador-padrão que o regime

(ditadorial) queria forjar como principal base de sustentação política”, como

elucida Nabil Bonduki.47. O pensamento dominante era o de que o trabalhador,

ao ter acesso à própria casa, se sentiria progredindo e, por conseqüência, teria

maior estímulo para o trabalho.

Nesse contexto, começaram os debates multidisciplinares, com a

participação de diversos atores da sociedade, como advogados, urbanistas,

sociólogos, economistas, demógrafos, empresários, geógrafos e intelectuais da

literatura, que procuravam medidas para resolver o problema da habitação, que

se agrava progressivamente. Em 1931, ocorreu o primeiro Congresso de

46 BONDUKI. Op. Cit. p. 39-40. 47 Idem. Ibidem. p. 73-74.

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Habitação, organizado pelo Instituto de Engenharia, seguido pelas

denominadas “Jornadas de Habitação Econômica”. Nesse período,

profissionais da arquitetura e engenharia, inspirados nos debates ocorridos no

segundo Congresso Internacional de Arquitetos Modernos, realizado em

Frankfurt, em 1929, passaram a pesquisar maneiras de baratear a construção

de casas populares, para os trabalhadores de baixa renda. Entre as principais

idéias estava a propositura de possíveis alterações na legislação edilícia,

porquanto as regras vigentes dificultavam a produção em massa dessas

casas48.

No que se refere ao incentivo à construção da casa própria,

merecem destaque os Institutos de Aposentadoria e Pensões, que, malgrado

terem financiado apenas a construção das casas de seus associados, foram os

precursores da iniciativa de minorar a crise da habitação, seguidos pela

Fundação Casa Popular, instituída no governo Dutra, em 1º de maio de 194649.

Ressalte-se que, entre 1937 a 1964, as referidas entidades deram conta de

construir e financiar aproximadamente 143 mil unidades habitacionais

populares50, as quais, em termos proporcionais à demanda, não representaram

significativo avanço, embora não se possa ignorar o esforço empregado.

A moradia era reconhecida como o locus privado e seguro das

pessoas, em prol do bom desenvolvimento familiar; instituição a quem se

atribuía a função de “reproduzir a ordem e a moral estabelecidas (pelo regime

vigente)”51, significando a célula estruturante do indivíduo52. Desta forma, o

acesso à habitação passou a ser peça de oratória recorrente no Estado Novo:

o discurso da valorização do trabalhador era bandeira para veicular suposta

política de proteção às pessoas. Dentre as políticas públicas desenvolvidas por

Getúlio Vargas para amenizar o problema da habitação, destaca-se a

48 BONDUKI. Op. Cit. p. 73-75. 49 Idem. Ibidem. p. 122-127. Segundo o autor, cabia à Fundação Casa Popular financiar a infra-estrutura básica de água e esgoto; as construções de casas para trabalhadores de baixa renda; estudar métodos para baratear a construção etc. Aponta , ainda, o autor que, embora criada para resolver a questão habitacional, a referida fundação “transformou-se num órgão dominado por práticas venais e pressões políticas rasteiras”. 50 RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas Cidades Brasileiras: habitação e especulação, o direito à moradia, os movimentos populares. São Paulo: Editora Contexto, 2001. p. 56. 51 BONDUKI. Op. Cit. p. 82-84. 52 É de se verificar que a Carta de 1937 dedicava especial atenção à família, conforme se depreende do art. 124, in verbis: “ a família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídos compensações na proporção de seus encargos”. A despeito de tal previsão constitucional, a realidade concreta era bem diferente.

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denominada Lei do Inquilinato (Decreto-Lei nº 4.598/42), que determinou o

congelamento dos aluguéis, impediu a cobrança de qualquer tributo ou luvas

do locatário em relação aos imóveis locados, e previa, ainda, o crime contra a

economia popular, na hipótese de inobservância das referidas regras53.

Todavia, a Lei do Inquilinato, que, supostamente, pretendia tutelar

os interesses dos locatários, provocou outras graves seqüelas, como os

despejos em massa54. Os locadores, inconformados com o congelamento dos

aluguéis, ao vencer o contrato de locação, solicitavam o imóvel, para depois

locá-lo a outra pessoa, por valor maior.

Frente ao dilema, o então Presidente Eurico Gaspar Dutra decidiu

modificar o diploma normativo sobre locação, para tanto, quis ouvir a

sociedade, que, nesse mister, contribuiu com mais de mil sugestões, desde a

possibilidade de revogação das regras em vigor, até a drástica medida de

seqüestro dos imóveis desocupados por período superior a 60 dias55. Nessa

batalha, apesar de, aparentemente, ter como prejudicados apenas os menos

capacitados economicamente, os problemas sociais decorrentes do deficit

habitacional geravam, ainda que por via oblíqua, prejuízos para todo o corpo

social, pois a miséria, a exclusão social, a insegurança e a violência, somados

às questões urbanísticas, atingiam todas as esferas sociais, ou seja, a crise

habitacional tinha conseqüências de diversas ordens, atingindo pobres e ricos.

53 BONDUKI. Op. Cit. p. 83; 209; 214-216. Cumpre frisar que, até 1940, a exploração imobiliária era muito forte, a maioria das pessoas pagava aluguel e os proprietários dos imóveis visavam, essencialmente, a auferir os rendimentos oriundos dos contratos de locação; não se preocupando com a manutenção das moradias. Estima-se que, só em São Paulo, cerca de 70 % das moradias eram para aluguel. Tal situação exigiu a intervenção do Estado, que, na gestão do ex-presidente Getúlio Vargas, assumiu feição de caráter social, pois envolvia o bem estar do trabalhador. Preleciona o autor que, “ até a década de 30, era raro que operários e trabalhadores de baixa renda fossem donos de suas moradias – e mesmo grande parte da classe média ocupava casas de aluguel. Como o Estado não se imiscuía na provisão de moradias subsidiadas, não havendo linhas de financiamento nem esquemas que facilitassem a construção de casas na periferia dos núcleos urbanos pelos próprios trabalhadores ( ... ), era muito difícil para qualquer assalariado adquirir um bem cujo valor absoluto ultrapassava em muito seus rendimentos mensais e sua capacidade de poupança.” 54 Idem. Ibidem. p.259-264. Os trabalhadores e suas famílias, por conta dos despejos em massa, encontraram nas favelas e nos loteamentos clandestinos uma saída para o seu problema de moradia. 55 Idem. Ibidem. p. 254-264. Aponta Nabil Bonduki que “sem poder aumentar o aluguel legalmente do inquilino, os locadores tentavam usar violência ou coerção para, numa nova locação, se beneficiar de um mercado desfavorável para os inquilinos. Os locadores passaram a cobrar luvas para alugar imóveis residenciais, uma prática até então restrita aos aluguéis comerciais (...). Somente quem tivesse alguma capacidade de poupança conseguia alugar um imóvel, o que excluía trabalhadores pauperizados e migrantes recentes”.

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Depois de constantes alterações, o Decreto-Lei 4.598/4256 foi

revogado pelo Decreto-Lei 9.669/46, o qual passou a regular a matéria de

forma totalmente inovadora. Entre as novas regras, cumpre, de pronto,

destacar, por exemplo: a admissão de aumento dos aluguéis em percentuais

que variavam de 15 a 20%; a extensão da possibilidade de requerimento de

despejo ao locador, vez que, no diploma anterior, somente o proprietário tinha

legitimidade para fazê-lo; e o afastamento da regra que tratava como crime

contra a economia popular57 violação às normas locatícias.

As sucessivas mudanças normativas seguiram-se, até chegar a

atual Lei 8.245/91, a qual prevê, entre as garantias do contrato de locação, a

fiança, que será objeto de estudo no Título II, deste trabalho.

Apesar das medidas adotadas pelo governo federal, a década de

40 foi marcada pelo aumento da complexa crise habitacional, causada por

diversos fatores, tais como: os nefastos efeitos da Segunda Guerra Mundial; a

escassez e o alto preço de mercadorias; e o elevado contingente de imigrantes

estrangeiros que desembarcavam no território brasileiro, à procura de um “novo

mundo” para viver, trabalhar e se desenvolver.

Seguramente, diante da exacerbada demanda por um teto e da

sua pouca oferta, o acesso à moradia tornou-se um desafio a ser enfrentado

por significativo número de pessoas. Na ânsia de encontrar um lugar para

morar, o trabalhador procurou o caminho dos lotes irregulares e, de forma

autônoma, passou ele próprio, com a ajuda da família e de amigos, a construir

a sua casa - era o fenômeno da auto-construção surgindo de forma acentuada

– método, aliás, ainda muito utilizado na atualidade.

Ao analisar o problema, Nabil Bonduki58 explicita que:

56 No período de 1943 a 1945 vários diplomas normativos modificaram o Decreto- Lei 4.598/42: 1) Decreto-Lei 1.593/43 estendeu as regras vigentes a todos tipo de locação, antes somente para locação residencial, e definiu os casos de despejo ( dentre eles,a possibilidade de o locador solicitar o bem para realizar obra de proporções maiores); 2) Decreto-Lei 6.739/44 limitou os aluguéis de móveis a 30% do valor total da locação e permitia a avaliação periódica do imóvel para fins de redução do aluguel e limitava o prazo de desocupação dos imóveis para locação por período superior a 60 dias; e 3) Decreto-Lei 7.466/45 não trouxe significativas alterações. 57 BONDUKI. Op. Cit. p. 214-215. Segundo o autor, logo após a edição do Decreto-Lei 9.666/46, o governo publicou o Decreto-Lei 9.840/46 prevendo as hipóteses de crime contra a economia popular, dentre as quais estavam as regras de locação. Ressalte-se, entretanto, que “esse enquadramento mostrou-se inócuo, porque as penas frente aos delitos cometidos eram de tal gravidade que os Tribunais foram levados a surpreendentes absolvições”. 58 Idem. Ibidem. p.288-289.

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a omissão do Poder Público na expansão dos loteamentos clandestinos fazia parte de uma estratégia para facilitar a construção da casa pelo próprio morador que, embora não tivesse sido planejada, foi se definindo na prática como um modo de viabilizar uma solução habitacional ‘popular’, barata, segregada, compatível com a baixa remuneração dos trabalhadores e que, ainda, lhes desse a sensação, falsa ou verdadeira, de realizar o sonho de se tornarem proprietários(...).

À época, os loteadores, investidores no mercado imobiliário,

descontentes com as regras de locação, resolveram apostar na venda de lotes

de baixo custo na periferia, para pagamento em prestações, amparados na

legislação federal, o Decreto-Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, que, em

muitos aspectos foi omisso, especialmente ao não prever qualquer instrumento

de controle de ordem urbana, ou sanção na hipótese de descumprimento de

alguma formalidade exigida no diploma legal. Nesse sentido, preleciona, ainda,

o mencionado autor59:

Admitir a clandestinidade como regra significava dar total liberdade ao loteador, que agia apenas em função do mercado, ou seja, do preço adequado à sua clientela. O padrão dos loteamentos, portanto, variava bastante. O certo é que, para os trabalhadores de baixa renda, sempre haveria um grande estoque de terrenos em loteamentos nos quais pouco ou nada fora investido.

Havia, na realidade em tela, um quadro com duas paisagens

distintas: de um lado, a cidade formal e legal, para aqueles que detinham poder

de compra para adquirir bens imóveis em áreas consideradas nobres, com total

infra-estrutura de água, esgoto, vias públicas e transporte; de outro lado, a

cidade informal, ilegal, criada por aqueles que pouco ou nada tinham, como

ensina Luiz Edson Fachin60.

Apesar dos percalços encontrados ao longo do difícil caminho

percorrido pela população em termos de enfrentamento da questão

habitacional no Brasil, é possível encontrar sementes positivas, como, as já

mencionadas, construções realizadas pelos Institutos de Aposentadoria e 59 BONDUKI. Op. Cit. p. 288-290. 60FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006. p. 278.

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Pensão ( IAPS ) e pela Fundação Casa Popular, nas décadas de 1930 e 1940.

É oportuno, destacar, entrementes, que as soluções encontradas não têm sido

eficientes para sanar o problema: o panorama é o de cidades excludentes e

meio-ambiente em processo constante de deterioração, em particular, pela

ausência de políticas de ordenação urbana e de adoção de regras edilícias

específicas para moradores de baixa renda.

Nessa trilha, em 1964, o governo federal criou o Banco Nacional

da Habitação, por meio da Lei 4.380/64, a qual instituiu o Sistema Financeiro

da Habitação, com vistas a fomentar o acesso à casa própria e possibilitar que

as classes economicamente marginalizadas tivessem acesso a financiamentos

com juros mais baixos.61 Tal diploma legal sofreu diversas alterações e,

atualmente, no Brasil, existem vários sistemas de financiamento imobiliário, o

Sistema Financeiro de Habitação, que passou a ser administrado pela Caixa

Econômica Federal, empresa pública federal, após a extinção do Banco

Nacional de Habitação; o Sistema Financeiro Imobiliário, criado pela Lei

9.514/97, que prevê a alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel,

podendo ser contratada por pessoa física ou jurídica;62 o Sistema de

Arrendamento Residencial, Lei 10.188/2001, alterada pela Medida Provisória n°

350 de 22 de janeiro de 200763, que acrescentou mais uma modalidade de

arrendamento; e o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social64,

61 SOUZA. Op. Cit. pp.53-54 62 GODOY, Luciano de Souza. O Direito à Moradia e o Contrato de Mútuo Imobiliário. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006.pp.138-141. 63Ver Medida Provisória n° 350/2007, “ art. 1°. Fica instituído o Programa de Arrendamento Residencial para atendimento da necessidade de moradia da população de baixa renda, nas seguintes modalidades: I. arrendamento residencial com opção de compra; II. alienação”. 64Cf. OSÓRIO, Letícia. Texto elaborado por delegação do Fórum Nacional de Reforma Urbana. Disponível em: <www.fna.org.br/textos>. Pesquisa realizada em 12/12/2007. “Em maio de 2002 foi instituído o Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social, com o objetivo de complementar, no ato da contratação, a capacidade financeira do proponente para pagamento do preço do imóvel ou o valor necessário para assegurar o equilíbrio econômico-financeiro das operações realizadas por instituições financeiras (relativas às despesas de contratação, administração e cobrança e aos custos de alocação, remuneração ou perda de capital). Os recursos são oriundos do Tesouro Nacional e o empréstimo deverá comprometer até 20% da renda familiar bruta do beneficiário, com taxas de juros de 6% ao ano. O programa prevê a complementação da capacidade financeira do proponente que recebe renda mensal máxima de R$ 580,00. Apesar de ser um programa importante para garantir moradia às famílias de baixa renda, os seus resultados ainda não podem ser avaliados porque recém foi iniciada a habilitação dos agentes financeiros aos recursos disponíveis”. Com efeito, de acordo com dados do Ministério das Cidades, no estado do Rio de Janeiro, 46 municípios já aderiram ao Programa Nacional de Habitação de Interesse Social, instituído pela Lei 11.124/2005, entre eles estão os municípios de: Mesquita 24/11/2006; Niterói 27/11/2006; Petrópolis 29/11/2006; Nova Friburgo 20/11/2006; Nova Iguaçu 23/1/2007; Porto Real 18/12/2006; Rio das Ostras 26/1/2007.

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previsto no diploma legal 11.124/200565, cujo principal objetivo “é viabilizar à

população de baixa renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e

sustentável”, nos termos do art. 2° da referida lei.

Atualmente, primeira década do século XXI, o governo federal

tem-se empenhado para, se não erradicar, pelo menos amenizar o dilema do

deficit habitacional. Para tanto, o Ministério das Cidades, por meio da

Secretaria Nacional de Habitação, promove a Campanha “Direito à Moradia”, com vistas a incentivar os governos estaduais e municipais, bem como as

organizações da sociedade civil para o incremento e a estruturação do Sistema

Nacional de Habitação de Interesse Social - SNHIS e do Fundo Nacional de

Habitação de Interesse Social – FNHIS66.

Cumpre destacar que a iniciativa privada também tem se

mobilizado para incentivar o acesso à moradia, não obstante o móvel, na

maioria dos casos, ser basicamente a busca de novos investimentos67, sem a

preocupação de dar vida à função social do contrato e da apropriação.

Ressalte-se, todavia, que o incremento do crédito para a compra da tão

sonhada casa própria constitui estímulo para que se caminhe em direção ao

final da crise habitacional, o que propiciará a realização do direito humano

fundamental à moradia e de outros valores a ele correlacionados, como a

dignidade humana.

Nesse contexto, importante realçar que o direito à moradia, no

âmbito internacional, já há muito foi alçado ao status de direito humano, natural

65 A Lei nº 11.124/05 é uma conquista da cidadania popular, pois, trata-se do primeiro projeto de lei de iniciativa popular aprovado no Congresso Nacional. O grande desafio posto pelo novel está na determinação de que estados e municípios criem os fundos de habitação de interesse social e seus conselhos gestores participativos, além de elaborarem os planos de habitação de interesse social.

66BRASIL. Poder Executivo. Ministério das Cidades. Disponível em: < www.cidades.gov.br>. Pesquisa realizada em 30/09/2007. 67 DURÃO, Vera Saavedra. Segmentos de pessoa física e habitação devem elevar o volume para 40,7% do PIB no final de 2009: Crédito continuará em alta, diz BNDES. Jornal O VALOR, São Paulo, 28/29/30 set.2007. p. C1. Conforme relata a jornalista, um estudo desenvolvido pelo BNDES, estima um acentuado aumento da procura pelo crédito imobiliário nos próximos dois anos, elevando o PIB de 33% para 40,7% até o final de 2009. No mesmo sentido, CARVALHO, Maria Christina; TRAVAGLINI, Fernando. Financiamento Imobiliário, instituições adotam modelo inovador, inspirados no crédito consignado: bancos pequenos acirram competição. Jornal O VALOR. São Paulo, 27, set. 2007, p. C1. Segundo apontam os jornalistas, as instituições financeiras buscam a garantia de seu crédito utilizando o sistema de alienação fiduciária, regulada pela Lei 9.514/97, e não o regime de hipoteca. A vantagem da alienação fiduciária em relação `a hipoteca é que, aquela, por ser proprietário ( propriedade resolúvel ) do bem o credor, a retomada, na hipótese de inadimplemento do devedor, se dá por meio de ação possessória. Ao passo que, com relação à hipoteca, o credor terá que deflagrar um processo de execução, uma vez não paga a dívida, o bem irá à hasta pública.

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e decorrente da dignidade da pessoa, como se depreende, por exemplo, da

Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que em seu inciso

XXV, item I, assim dispõe: “Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz

de assegurar a si e a sua família saúde, bem estar, (...) habitação.”

No território brasileiro, a Constituição “cidadã” de 1988, como a

denominou o ex-deputado Ulisses Guimarães (Presidente da Assembléia

Nacional Constituinte), a despeito de ser um marco no constitucionalismo

brasileiro no tocante aos direitos humanos fundamentais, somente agasalhou,

de forma expressa e autônoma, o direito à moradia após doze anos de sua

edição,68 em 2000, por meio da Emenda Constitucional número 26: malgrado,

já era possível enxergá-lo no texto constitucional vigente no art. 7°, inciso IV,

que trata do salário-mínimo, como fator necessário para atender às

necessidades básicas do trabalhador, entre elas a moradia; no art. 183, que

prevê o usucapião urbano, hoje regulamentado pela Lei 10.257/2001- Estatuto

da Cidade; e no art. 191, que consagra o usucapião rural.

Não obstante a Carta de 1988 inserir o direito humano

fundamental à moradia no rol dos direitos sociais, defende-se, neste trabalho, a

tese de que tal direito não se subsume, exclusivamente, a essa espécie, tendo

em vista ser pressuposto para a realização de muitos outros direitos e valores,

como, à guisa de exemplo, pode-se destacar: a dignidade da pessoa humana,

esta elevada à condição de diretriz de todos os sistemas sociais (normativo,

econômico, social entre outros); a vida69; a segurança; a saúde; a educação; a

cidadania; o lazer e o pleno desenvolvimento. Nesse sentido, conforme já

mencionado na parte introdutória deste capítulo, se posicionaram os autores da

proposta de emenda constitucional que culminou com a edição da já referida

Emenda Constitucional nº 26 de 2000, a qual consagrou no art. 6º da Carta de

1988, o direito humano fundamental à moradia70. Não resta dúvida que tal valor

68 Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o direito à moradia está previsto no capítulo II, destinado aos Direitos Sociais, dentro do Título II referente aos Direitos e Garantias Fundamentais. 69 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006. p. 1. No tocante à existência plena, o ser humano, além dos direitos inerentes à sua condição, deve ter direito a um patrimônio mínimo “mensurado consoante parâmetros elementares de uma vida digna e do qual não pode ser expropriado ou desapossado”, ensina o autor. 70 SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. pp.159-163. Para o autor, há distinção entre moradia e habitação, pois, enquanto a moradia consiste em um bem irrenunciável da pessoa natural; a habitação, por sua vez, seria o exercício efetivo da moradia. Embora respeitável tal posição, esta não encontra eco na doutrina pátria e nem nos documentos estrangeiros, que, normalmente, se referem à habitação como sinônimo de moradia. No Brasil, a título de exemplo, vale mencionar Silvio de Salvo Venosa. In: Direito Civil: Parte Geral. Vol. 1.

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é, ao mesmo tempo, direito e garantia, visto que, o indivíduo, além de ter o

direito subjetivo à moradia, ele deve ter a garantia de poder exercer tal direito,

sob pena de violação de outros valores, consoante já por diversas vezes aqui

esposado.

Na realidade, ao se sustentar a fundamentalidade do direito à

moradia como requisito necessário à realização de outros valores se está a

defender uma vida digna em uma cidade sustentável, razão pela qual no

próximo tópico analisar-se-á o espaço urbano, tendo em vista a conexão do

mesmo com o tema da habitação.

I. 2. Espaço Urbano como Locus de Exercício da Cidadania A complexidade tem sido a tônica norteadora das sociedades em

geral e, por conseguinte, das relações interpessoais, o que, por si, demanda

análise multidisciplinar das questões sociais. Nesse contexto, o espaço urbano

é um dos elementos que compõem o conjunto de complexidades,

ultrapassando o mero limite geográfico, alcançando indubitavelmente o

desenvolvimento sócio-econômico-cultural de uma comunidade. A

complexidade, portanto, é dado de realidade que caracteriza as sociedades

modernas, o que exige, cada vez mais, a presença de regras, com padrões

pré-estabelecidos pela própria coletividade, a fim de garantir um razoável bem-

estar para todos, e é nesse ponto que o direito à liberdade no espaço urbano

encontra seus limites.

Ao pensar em liberdade, torna-se imperioso trazer à luz a

contribuição filosófica de John Locke, cujas idéias influenciaram

significativamente as revoluções americana e francesa, as quais também foram

inspiradas pelo pensamento dos filósofos iluministas Voltaire e Montesquieu.

Para John Locke71 “o objetivo capital e principal da união dos homens em

comunidades sociais e de sua submissão a governos é a preservação de sua

São Paulo: Editora Atlas, 2001, p. 187 et seq.; no direito comparado, pode-se citar a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver de 1976, adotada pela primeira Conferência das Nações Unidas sobre assentamentos humanos. Entende-se também que a distinção proposta pelo autor não tem relevância, especialmente pelo fato de que moradia e habitação não se dissociam, por isso, usar-se-á neste trabalho as duas palavras como sinônimas. 71 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos. Tradução Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. p. 156 et seq. Para este pensador, os homens necessitavam de leis para disciplinar suas condutas e de juizes imparciais para dirimir possíveis conflitos.

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propriedade” que, para ele, abrange a vida, a liberdade e os bens do indivíduo.

Nesse diapasão, Ricardo Lobo Torres72 esclarece que a liberdade representa

um “valor fundamental da pessoa humana e um dado existencial”, e está

intimamente ligado aos direitos naturais, que são, além de inalienáveis, como

afirmou John Locke, imprescritíveis, permanentes, preexistentes à Carta

Constitucional, e oponíveis a todos.

Com viés econômico, e partindo da idéia de desenvolvimento,

Amartya Sen73 aborda a liberdade sob variadas perspectivas, que denomina de

“liberdades instrumentais”, quais sejam: “as liberdades políticas”,

consubstanciadas nos direitos civis e políticos; isto é, no efetivo exercício de

cidadania; “as facilidades econômicas”, configuradas nas possibilidades

econômicas das pessoas; “as oportunidades sociais” vinculadas ao ideal de

vida digna; “as garantias de transparência”, vinculadas ao princípio da

confiança e da boa-fé; e “a segurança”, cuja ratio subjacente é proteger as

pessoas da “miséria abjeta”, ensina o mencionado autor.

Por seu turno, José Afonso da Silva74, ao discorrer sobre o tema,

preleciona que a liberdade pode ser analisada sob dois aspectos: o subjetivo,

que seria a liberdade interna, relacionada à manifestação intrínseca de vontade

da pessoa; isto é, o livre arbítrio; e o aspecto objetivo, consistente na liberdade

de exteriorização da vontade para o mundo real, o que, por sua vez, é

compatível com a idéia de liberdade para fazer o que se quer. É nesse ponto

que repousam os limites normativos à liberdade, a fim de garantir a harmonia

social.

Como visto, a liberdade está longe de ser um conceito unívoco e

estático; primeiramente, por seu escopo histórico, que varia no tempo e no

espaço, e depois, porque o próprio processo hermenêutico permite diferentes

concepções de liberdade: todavia, um elemento comum une as diversas

72 TORRES, Ricardo Lobo. A Metamorfose dos Direitos Sociais em Mínimo Existencial. In: SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado.” Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 01-38. 73 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica Ricardo Doninelli Mendes. 6ª reimpressão. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2007. p.18-31. 74 SILVA, José Afonsa da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros, 1999. p.234 et seq.

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proposições: a conexão com os direitos humanos fundamentais. Nessa linha

argumentativa, John Rawls75 ensina que:

First of all, it is important to recognize that the basic liberties must be assessed as whole, as one system. That is, the worth of one liberty normally depends upon the specification of other liberties, and this must taken into account in framing a constitution and in legislation generally76.

É notável a defesa do autor, no sentido de que o papel da

liberdade, dentro de um sistema, deve respeitar os limites delineados pela

Constituição e pelas normas infraconstitucionais em geral. Tais limites, no

entanto, devem estar em sintonia com os direitos humanos fundamentais e

com o princípio da dignidade da pessoa humana, pois, do contrário, admitir-se-

ia um estado de direito que privilegia a lei, independentemente de seu

conteúdo.

Na concepção de liberdade, expressão natural do ser humano,

encontra respaldo a noção de desenvolvimento urbano que, se não gerenciado

pelo Poder Público, pode trazer conseqüências prejudiciais para a sociedade.

Aliás, tais conseqüências já são claramente observáveis no cotidiano do

homem urbano, como por exemplo: falta de estrutura básica de água e esgoto,

especialmente nas áreas em que residem comunidades de baixa renda;

ausência de regras específicas para facilitar a construção de casas para a

população pobre; o uso descontrolado do espaço urbano; e a deficiência nos

serviços de transporte coletivo. Nessa toada, Amartya Sen77 anuncia:

o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos (...). Às vezes a ausência de liberdades substantivas relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se

75 RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1971. p.203. 76 Tradução livre: “Inicialmente, é importante reconhecer que as liberdades essenciais devem ser analisadas a partir do sistema normativo como um todo. Isto é, o valor de uma liberdade depende, em regra, da análise de outras liberdades, considerando a normativa constitucional e infraconstitucional”. 77 SEN. Op. Cit. p. 18.

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ou morar de modo apropriado, de ter acesso a água tratada ou saneamento básico.

Na linha de raciocínio do mencionado economista constata-se

que a cidade informal resulta de vários fatores, dentre os quais destacam-se, a

miséria, que dilacera a dignidade das pessoas, e o conjunto de normas

restritivas impostas pelo Poder Público municipal para a construção de

moradias.

Não se está, obviamente, advogando a ausência de regras

edilícias; sobretudo, porque elas são necessárias para uma cidade sustentável;

o que se defende, na verdade, é a criação de normas mais acessíveis para o

cidadão de baixa renda, que não tem condições de preencher as exigências

da lei municipal, vez que é comum, como já dito, a autoconstrução78; ou seja, a

própria pessoa constrói a sua casa, o que, normalmente, ocorre nos fins de

semana, com a ajuda da família, de parentes e amigos, em terrenos que,

muitas vezes, não há título de propriedade reconhecido, embora, não raro, já

exista o direito subjetivo à propriedade, por conta do usucapião.

Sem dúvidas, o regramento, a despeito de ser condição sine qua

non para a manutenção da ordem urbana e para a construção de uma cidade

sustentável, não pode servir de instrumento de exclusão social, afastando o

direito à cidade formal àqueles que não têm condições de preencher o que

exige a lei municipal.

É cediço que a vida urbana socialmente aceita; isto é, aquela em

que existe um consenso quanto ao respeito às regras impostas, implica certas

restrições ao direito de liberdade dos cidadãos, disso todos têm consciência, ou

pelo menos, supõe-se que tenham. A despeito dessa premissa, muitas vezes

as regras impostas são inobservadas, como é o caso das construções

irregulares, incluindo aí, as favelas, mas não podem ser refutados fatores

sociais e fundamentais, como: a sobrevivência, a segurança e a vida digna,

que se impõem diante da abstração da lei. Afinal, um teto para servir de abrigo

78 BONDUKI. Op.Cit. O autor relata que na década de 40, o auto-empreendimento, isto é, a construção da casa pelo próprio trabalhador, decorreu especialmente em razão de alguns fatores: 1) o problema do déficit habitacional somado às péssimas condições dos cortiços oferecidos para locação; 2) grande oferta de lotes baratos, malgrado distantes do ambiente laboral, e sem uma infra-estrutura urbana básica; 3) o pagamento era feito em diversas parcelas; e 4) não havia fiscalização municipal, logo não havia exigência de projeto de construção, de planta etc. p. 287.

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é necessidade natural do ser humano, além de ser pressuposto para o seu

pleno desenvolvimento.

Nesse diapasão, segue o pensamento de Ricardo Pereira Lira79,

que, há muito, estuda as questões urbanísticas, merecendo destaque sua

contribuição, no período da elaboração da Constituição de 1988, com a

apresentação de algumas sugestões, entre elas:

a) a idéia de que o direito de propriedade deve ser garantido pela Constituição, mas seu conteúdo limitado pela justiça social; e b) a inclusão do direito à moradia digna no rol dos direitos individuais ou entre os direitos sociais.

Segundo entendimento do mencionado pensador80, a propriedade

urbanística deve ser analisada a partir da imbricação com o espaço urbano,

partindo-se do pressuposto de que o “urbanismo é uma função pública e não

um conjunto de faculdades privadas”. Ele sugere ainda a criação de novos

institutos jurídicos, a fim de que seja possível desvincular o direito de

propriedade do direito de construir; proibir a especulação imobiliária; e viabilizar

a titulação e urbanização de favelas e loteamentos irregulares.

De fato, o tema “espaço urbano” tem mobilizado diversos

segmentos da sociedade brasileira e, à guisa de exemplo, vale mencionar os

cursos de pós-graduação em Direito da Cidade, promovidos pela Universidade

Estadual do Estado do Rio de Janeiro81, e o Programa de Gestão Urbana,

desenvolvido pelo Banco Mundial desde 199682 o qual representa passo

importante no sentido de colaborar com os países em desenvolvimento, a fim

de buscar soluções para combater a pobreza.

79 LIRA, Ricardo Pereira. O Uso Social da Terra, Sugestões à Constituinte. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado. Rio de Janeiro, n. 38, p. 6-12, 1986. 80 LIRA. Op. Cit. ( 1986 ). Na época da elaboração da Constituição, o autor constatou que a Itália tinha a legislação mais avançada sobre o uso do espaço urbano. Consoante o disposto na Lei 10/77, o direito de parcelar e construir na Itália “deixou de ser um direito subjetivo do dono do solo ao qual corresponde um dever jurídico da Administração Municipal. O direito de parcelar e construir não existe mais endogenamente posto dentro da senhoria, inerente ao direito de propriedade, como simples manifestação do exercício deste. Ele surge exogenamente, de fora para dentro, separado do direito de propriedade, como concessão da municipalidade”. Ainda, segundo Achille Cutrera, citado pelo autor, “a possibilidade de fruir o terreno para fins edilícios é atribuída ao proprietário da área por ato administrativo”. p. 7. 81 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ( UERJ ). Departamento de Pós-graduação. Disponível em: < http://www.uerj.br> . Pesquisa realizada em 13/05/2007. 82BANCO MUNDIAL. Opciones para políticas y programas de reducción de la pobreza urbana. Washington.DC.U.S.A. Editora Cpyright Clearance Center, Suite 910, Massachutts, 1923.

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Vale ressaltar que o referido programa visa a elaborar e promover

políticas e instrumentos eficazes, como garantir a função social da terra; criar

infra-estrutura básica de água e esgoto; garantir um meio ambiente saudável;

além de fazer parcerias com organismos nacionais, regionais e internacionais,

para que haja troca de informações e experiências. O documento em exame

serve como referência aos municípios, na busca de soluções próprias no

combate e controle da pobreza urbana83. É fato, entretanto, que a execução de

programas desse tipo exige do governo local a superação de alguns

obstáculos, como: falta de vontade política; inexistência de projetos sobre

habitação e saneamento, bem como a carência de pessoal tecnicamente

preparado para elaborar os referidos projetos84. Não resta dúvida de que, para

desenvolver programas de habitação e infra-estrutura de saneamento básico, é

essencial a presença de profissionais qualificados. Na realidade, para

desempenhar de forma eficiente seu papel, o governo municipal precisa da

cooperação dos demais entes políticos e da participação da sociedade85,

concretizando, assim, o princípio da solidariedade.

Por falar em solidariedade, é imperioso reconhecer que, à época

da preparação da Carta Constitucional de 1988, a sociedade, mobilizada com

as questões urbanísticas e habitacionais, encaminhou uma série de sugestões

à Constituinte. Nesse diapasão, Miguel Lanzelloti Baldez86, na defesa da união

de forças como energia vital na luta pela reforma urbana, argumentava que os

trabalhadores, unidos por meio de associações de moradores, deveriam

participar “permanentemente das discussões e decisões relativas à definição e

construção da cidade”. Ainda, durante o processo de elaboração da

Constituição, o mencionado autor propugnava a soberania popular87 em

83 Os destinatários do programa são: os governantes, as sedes regionais do Programa de Gestão Urbana e os organismos nacionais, regionais e internacionais. 84 DOCA, Geraldo. Procuram-se Projetos. Jornal O GLOBO, Rio de Janeiro: Tiragem de 11 de fevereiro de 2007. O artigo traz dados preocupantes, como a falta de projetos na área de habitação e saneamento básico, e aponta, consoante informações do Ministério do Planejamento, “dos cerca de 5.600 municípios brasileiros, apenas 300 já apresentaram projetos ao governo federal para obter financiamento na área da habitação e saneamento(... )”. p.33. 85 WERNECK, Augusto. Função Social da Cidade. Plano Diretor e Favela. A Regulação Setorial nas Comunidades Populares e a Gestão Democrática das Cidades. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. ( Coordenadores ). Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007. 86 BALDEZ, Miguel Lanzelloti. Solo Urbano; reforma, propostas para a Constituinte. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado. Rio de Janeiro, n. 38, p. 104-115. 1986. 87 Idem. Ibidem. Para o autor a soberania popular consagra a idéia de conjunto de mecanismos idôneos a garantir a participação direta e permanente das organizações populares em todos os âmbitos do Estado. p. 116.

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substituição à soberania nacional, a instituição do usucapião especial urbano e

o reconhecimento da legitimação das associações para representarem em

juízo os interesses das comunidades.

Segundo alguns autores88, a Constituição de 1988 simboliza o

marco do Direito Urbanístico e Ambiental, porquanto estabelece um rol de

princípios e diretrizes que orientam os entes federados e a sociedade em geral,

no sentido de proteger o espaço urbano e o meio ambiente. Foi também a

Carta Maior que elevou os Municípios à categoria de entes da federação, ao

lado dos Estados e do Distrito Federal, alargando o rol de competências

materiais daqueles entes, razão suficiente para justificar o papel dos governos

municipais à frente dos programas sociais. Em primeiro lugar, porque o

governo municipal está mais próximo do povo, podendo, por meio de

plebiscitos e referendos, ouvir os seus outorgantes ( os cidadãos ) sobre os

assuntos de interesse comum ligados à comunidade; em segundo lugar, é na

cidade que ocorrem as prestações cotidianas de serviços, como a manutenção

das vias públicas, dos parques, o provimento de serviços de água e esgoto, de

saúde, educação, ordenamento de trânsito, segurança e assistência social.

A esse respeito, não há dúvida de que o governo municipal está

mais próximo da população, o que facilita sobremaneira diagnosticar e resolver

os problemas sociais89.

Outro objeto de preocupação da sociedade e das autoridades

públicas diz respeito à questão da violência urbana, e a indagação que surge é

acerca dos motivos pelos quais, no Brasil, a segurança pública é da

competência da União e dos Estados-membros, restando às municipalidades

apenas a proteção de seus bens, consoante o disposto no art. 144, par. 8°, da

Carta Constitucional de 1988. Ora, o combate e o controle da violência deveria

88JARDIM, Zélia Leocádia da Trindade. Regulamentação da Política Urbana e Garantia do Direito à Cidade. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Riio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007.

89GOMES, ALINE ; AMATO, GIAN. Baderna Permitida. Revista Zona Sul. Rio de Janeiro: Editora O GLOBO, 24/08/2006. p. 21-24. O artigo, que parece servir também como um desabafo dos autores, aponta as irregularidades cometidas, ou seja, abissais violações ao direito de liberdade no espaço urbano. “A certeza da impunidade permite que cerca de 30 mil vans e kombis ilegais circulem pela cidade”, asseveram os autores. Não se pode, todavia, olvidar que a oferta de trabalho no mercado formal está cada vez mais escassa, o que tem obrigado as pessoas a procurar o trabalho autônomo, como o serviço de transporte coletivo, mas o que a sociedade não pode aceitar é o exercício irregular e irresponsável de tal oficio. Deve o Poder Público Municipal coibir situações como a mencionada, exercer o seu poder de polícia, por meio de suas normas jurídicas. Afinal, o direito à liberdade no espaço urbano deve ter como parâmetro as regras impostas a todos, sob pena de se voltar ao estado de natureza.

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ser um poder-dever de todos os entes da federação e, no que toca ao espaço

urbano, a presença dos Municípios, em termos de segurança, deveria ser mais

incisiva.

Aliás, a questão da segurança poderia ser elevada a uma das

prioridades estratégicas do governo local, com a colaboração dos governos

regional e federal. Poder-se-ia pensar, inclusive, na viabilização de

desenvolvimento de um sistema integrado de combate à violência, associando-

se vários municípios pequenos de determinada região, irmanados na busca de

determinado conjunto de metas de interesse social.

Nesse sentido, cabe avaliar a possibilidade de alinhar novas

funções às já existentes do governo local, como: prover policiamento visível,

que ofereça não apenas a sensação de segurança à população, mas,

efetivamente, garantir a segurança de todos; regularização fundiária dos

assentamentos informais, com adesão de regras edilícias e urbanísticas

especiais90, somada a políticas efetivas de infra-estrutura de água, esgoto e

transporte. Na realidade, a regularização constitui passo decisivo na inclusão

da cidade informal à cidade formal, reconhecendo aos cidadãos de baixa (ou

nenhuma) renda o direito à cidade e à moradia segura e digna.

A questão do saneamento básico de água e esgoto merece

algumas considerações, a começar pela antiga e constante discussão acerca

de quem detém (no Brasil) a competência para prestar os referidos serviços91.

Vale a pena refletir sobre o entendimento de Diogo de Figueiredo Moreira

Neto92 que, com base no texto constitucional vigente, preleciona:

90 BRASIL. Lei 10.257 de 10 de julho de 2001. Estatuto da Cidade. Diário Oficial da União de 11. jul. 2001. Cumpre destacar o art. 2º do referido estatuto, o qual dispõe acerca das diretrizes gerais da política urbana e, no inciso XV, assim prescreve: “simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais”. 91 Em recente trabalho legislativo perdeu-se a oportunidade de extirpar as dúvidas e as controvérsias acerca da competência dos serviços de saneamento básico, a Lei 11.445, de 05 de janeiro de 2007, estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, mas silencia quanto à competência, referindo-se apenas, em seu artigo 8° “ aos titulares dos serviços públicos de saneamento básico”, não os discrimina, todavia. 92 DE FIGUEIREDO, Diogo Moreira Neto. Mutações do Direito Administrativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001; p. 241-246. Para o autor, a distinção entre o que vem a ser de interesse local e de interesse comum não é fácil de se desenhar, gerando um problema que atinge o próprio pacto federativo, pois a repartição de competência no tocante ao abastecimento de água, e mesmo o serviço de esgoto não está clara na Carta Política de 1988. Com efeito, em sua obra, o doutrinador, com base no trabalho de Hely Lopes Meirelles, traz contribuições de outros administrativistas, no sentido de caracterizar o interesse local, verbi gratia: ‘Para o clássico Black, o interesse local se refere aos negócios internos das cidades e vilas ( internal affairs osf towns and counties ); para Bonnard, o peculiar interesse é o que se pode isolar, individualizar-se e diferençar-se dos de outras localidades; para Borsi, é o que não transcende os limites territoriais do Município; e para Jellinek é o interesse próprio da localidade, oriundo

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Enquanto elemento primário do saneamento básico, a Constituição: a) atribui competência à União para estabelecer diretrizes em âmbito nacional (art. 21, XX); b) atribui implicitamente competência aos Municípios para prestar serviços de água onde prevaleça o interesse local (art. 30, V ); e c) atribui competência aos Estados para definir regiões metropolitanas, as aglomerações urbanas e as microrregiões, nas quais deva prevalecer o interesse comum sobre o local ( art. 25, § 3° ).

Nessa linha de pensamento, é importante a noção de que os

Municípios dispõem de melhores condições para prestar determinados

serviços, vez que sua máquina administrativa, além de estar mais próxima do

cidadão, é menor, em comparação à estrutura dos Estados ou da União. Não

é redundante assinalar a necessidade de modificar o quadro centralizador que

emoldura a sociedade brasileira, eis que é preciso olhar para os Municípios

como verdadeiros entes da federação, afinal não é esta a forma de Estado

criada pelo Constituinte originário? Não se pode mais tratá-los como simples

apêndice do Estado-membro; há, obviamente, modificações importantes a

serem feitas, a começar pelas regras que disciplinam a criação de um

Município, porquanto os critérios vigentes não são suficientes para determinar

a autonomia de um novo ente municipal que, não raro, já nasce dependendo,

quase que totalmente, do Estado-membro ao qual está vinculado, e da União,

pois a receita própria é ínfima.

É certo que a conscientização dos cidadãos - como membros da

estrutura social- de que o Estado só existe em razão deles e que a efetividade de suas relações de vizinhança.’ No tocante ao interesse comum, assevera Diogo de Figueiredo: “ o interesse comum é aquele que transcende o município e passa a ser considerado estadual, e deve apresentar aspectos antípodas ( opostos ) em relação ao interesse local, exempli gratia: a) apresenta predominância regional; b) se externaliza às cidades; c) não está territorialmente limitado ao município; d) transcende as relações de vizinhança; e) é simultaneamente oposto a local e nacional;f)está estabilizado por uma definição legal específica. Esta última característica marca positivamente a distinção: se, de um lado, o interesse local vem a ser uma cláusula geral, sujeita à dinâmica dos fatos, por outro lado, o interesse comum se apresenta estabilizado por uma cláusula legal específica que o define (as leis complementares instituidoras das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões)”.

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dos direitos humanos fundamentais depende da sua participação nos atos de

gestão da coisa pública, é vital para se buscar a desejada paz e justiça social.

Cumpre lembrar, ainda, que a cidadania - que não se resume ao direito de

votar e de ser eleito - precisa ser exercitada de forma concreta e real; com esse

intuito, a Constituição Federal de 1988 prevê alguns instrumentos aos quais a

sociedade pode lançar mão, tais como: o direito de representação, consistente

no “direito-dever” dos cidadãos de comunicar ao Poder Público qualquer

irregularidade de que tenham conhecimento, nos termos do art. 74, § 2°; a

ação popular, prevista no art. 5°, inciso LXXIII; 3) a ação civil pública,

proclamada no art. 129, inciso III; o direito de petição, de que trata o art. 5°,

inciso XXIV, alínea a; e o mandado de segurança, insculpido no art. 5°, inciso

LXX.

Além dos referidos mecanismos de tutela, incontestavelmente,

merece menção o Estatuto da Cidade, consubstanciado na Lei 10.257/2001, o

qual consagra outros importantes instrumentos para a realização de uma

política urbana, bem como para a efetividade do direito humano fundamental à

moradia. A título de ilustração, merecem relevo: a gestão democrática da

cidade93; o direito de superfície94; o direito de preempção95; a outorga onerosa

do direito de construir96, também denominado de solo criado; a operação

urbana consorciada97; o estudo de impacto de vizinhança98; a transferência do

direito de construir99; a utilização compulsória da propriedade100; a usucapião

especial101 e a desapropriação por interesse social102.

93 BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão Democrática da Cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p.335 et seq. 94 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 172-191. 95 GASPARINI, Diógenes. Direito de Preempção. In; DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 192-221. 96 MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Outorga Onerosa do Direito de Construir. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 222 et seq. 97 LOMAR, Paulo José Villela. Operação Urbana Consorciada. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 247-288. 98 SOARES, Lucéia Martins. Estudo de Impacto de Vizinhança. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 300-316. 99 MONTEIRO, Yara Darcy Police; SILVEIRA, Egle Monteiro da. Transferência do Direito de Construir. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. Segundo os autores, o referido instituto está intrinsecamente relacionado a outro instituto, o solo criado ( este concebido em razão da

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Maria Sylvia Zanella Di Pietro103 acrescenta a concessão de uso

especial para fins de moradia que, não obstante constar do Projeto de Lei do

Estatuto da Cidade, a mesma foi objeto de veto pelo chefe do Poder Executivo.

Somente mais tarde, por meio da Medida Provisória 2.220, de 4 de setembro

de 2001, o governo federal reconheceu a importância do instituto como mais

um instrumento idôneo à disposição do Poder Público para resolver o problema

de moradores de favelas e de loteamentos clandestinos.

Vale destacar que a referida “Lei da Cidade” é fruto de muitos

debates e discussões, com a colaboração do mundo acadêmico e da

população; e, indubitavelmente, uma conquista da sociedade, que se

empenhou para torná-lo uma realidade. Nesse sentido, assevera Mariana

Moreira104: “caberá, entretanto, aos Municípios a imensa tarefa de tornar

realidade os postulados inscritos no Estatuto da Cidade, a fim de que todos

tenham direito às cidades com qualidade de vida”.

A Constituição republicana de 1988 contempla, no título da

Ordem Econômica e Financeira, um capítulo para a Política Urbana e aponta o

necessidade de racionalizar o espaço urbano e o uso do solo, bem como em decorrência do surgimento do modelo de construção vertical, os edifícios com várias unidades autônomas) .p. 289-297. 100BOQUIMPANI, Eduardo Gonçalves. Utilização Compulsória da Propriedade Urbana. In: COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. Direito da Cidade: Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. Riio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007. p. 179-228. 101 FERRAZ, Sérgio. Usucapião Especial. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 138-148. 102 BEZNOS, Clóvis. Desapropriação em Nome da Política Urbana. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. Conforme se infere do art. 8º do Estatuto da Cidade, a desapropriação por descumprimento da função social tem natureza de sanção. p. 118-128. 103 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia ( Medida Provisória 2.220 de 4.9.2001). In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 150-171. Vale destacar que, entre as razões do veto estava a de que o projeto não ressalvou os imóveis públicos afetados ao uso comum do povo; as áreas de interesse da defesa nacional; de preservação ambiental; e as destinadas às obras públicas; que não poderiam ser objeto do referido instituto. A autora conceitua o instituto como “ato administrativo vinculado pelo qual o Poder Publico reconhece, gratuitamente, o direito real de uso de imóvel público de até duzentos e cinqüenta metros quadrados àquele que, em 30.6.2001, o possuía por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, para sua moradia ou de sua família”. 104 MOREIRA, Mariana. A História do Estatuto da Cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 36-43. A autora faz um breve histórico acerca do caminho trilhado para se chegar à Lei 10.257/2001, e preleciona que, inicialmente, fora elaborado o Projeto de Lei 775/1983, de iniciativa do Poder Executivo federal, no qual se buscou conceituar a função social da propriedade e dispunha sobre normas de política urbana. Com o advento da Constituição Federal de 1988, o referido projeto não seguiu em frente, tendo sido retirado pelo Poder Executivo em 1995. Ressalte-se que no interstício entre 1989 e 1990 ( PL. 2.191/89 e PL. 5.788/90 ), outros dois projetos foram apresentados para tratar da mesma matéria ( política urbana). Somente depois de uma década e de inúmeros substitutivos, o Projeto de Lei 5.788/1990 foi aprovado em 2001 e transformado na Lei 10.257/2001- o denominado Estatuto da Cidade.

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Plano Diretor, como pressuposto necessário para o planejamento do espaço

urbano e caracterizador da função social da propriedade. Nesses termos,

ensina Jacintho Arruda Câmara105:

o Estatuto da Cidade, ao definir as regras gerais de utilização de vários outros instrumentos de implementação de uma política urbana (...) vinculou a aplicação destes à existência de um plano diretor. Isto pode ser notado nos diversos dispositivos que mencionaram o plano diretor como uma espécie de ato-condição para a implementação dos referidos instrumentos.

No contexto do direito contemporâneo brasileiro, em que a

Constituição é o ápice valorativo de todo o ordenamento jurídico, o referido

diploma legal representa “um dos pilares do direito urbanístico”106; bem como

desempenha as relevantes funções de regulamentar o capítulo constitucional

que consagra a política urbana107; e a de delinear firmes ações para melhoria

do espaço urbano, com vistas a alcançar a cidade sustentável e a justiça

social108. Nesse sentido, não é demais ressaltar que os referidos instrumentos

políticos e jurídicos, albergados no Estatuto da Cidade, somente deixarão de

ser simples previsões legislativas, quando implementados por meio de políticas

sérias, e, a reboque disso, acrescente-se o fato de que tais institutos são

mecanismos úteis para a efetivação do direito humano fundamental à moradia.

Com a concretização dos ideais de política urbana e de inclusão

social, previstos na “Lei da Cidade”, é possível sonhar com uma nova

configuração do quadro das grandes cidades brasileiras. Nesse sonho, que se

almeja se torne realidade, enxerga-se várias vias de acesso à moradia digna,

como a realização do mínimo existencial do ser humano.

105 CÂMARA, Jacintho Arruda. Plano Diretor. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p.323. 106 LIRA. ( 2007 ). p. 6. 107 JARDIM. ( 2007 ). p. 99. 108 SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas Diretrizes Gerais. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p.52-54.

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I.3. Patrimônio Mínimo, garantia do mínimo existencial

Cabe, inicialmente, discorrer, ainda que de forma sintética, acerca

do instituto do patrimônio, que impregna decisivamente a noção de patrimônio

mínimo como garantia fundamental. Nesse sentido, Luiz Edson Fachin109

preleciona que a idéia de patrimônio, preconizada no século XIX, visava a

proteger o indivíduo em relação ao Estado, “afirmando-se que toda pessoa tem

patrimônio e que este estaria submetido à sua vontade”. Tal idéia, entretanto,

perdeu espaço e, em razão do desenvolvimento econômico, o instituto do

patrimônio passou a ser também forma de garantia de dívidas, em favor de

credores.

Como quase tudo em Direito, a noção de patrimônio não tem

sentido unívoco, sendo claras as divergências doutrinárias quanto à sua

concepção e aos elementos que a integram. Francisco Amaral110, por exemplo,

define o patrimônio, como uma universalidade de direito, que não se confunde

com “os objetos dos direitos, as prestações, e os bens. Entram, apenas, os

respectivos direitos”. O autor em tela assegura, ainda, que a relevância do

patrimônio encontra amparo em dois aspectos: a) constitui a garantia dos

credores; e b) fixa a universalidade, o conjunto de direitos de uma pessoa no

momento de sua morte, quando se transmite aos respectivos herdeiros.

Além dos referidos aspectos, pode-se acrescentar ao patrimônio

a especial função de assegurar o mínimo existencial de uma pessoa, para que

ela possa desenvolver-se com dignidade e segurança.

Orlando Gomes111, por sua vez, refuta a idéia de patrimônio uno e

indivisível, assim como não o atrela à personalidade do indivíduo. Admite o

autor a existência de pluralidade de patrimônios, com características distintas;

isto é, existiria um patrimônio geral, os patrimônios autônomos e os especiais

109 FACHIN ( 2006 ). p. 42-43. 110 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Renovar, 2000. p.59-60;330. O autor apresenta duas teorias as quais tentam justificar juridicamente o patrimônio:1. TEORIA CLÁSSICA OU SUBJETIVA: o patrimônio é uma universalidade de direito, um conjunto unitário de bens e obrigações, que se apresenta como projeção e continuação da personalidade individual. Sua marca dominante seria a vinculação subjetiva com a personalidade; e 2. TEORIA MODERNA OU REALISTA: critica o patrimônio como universalidade, o patrimônio seria apenas ativo, deixando fora as dívidas. Também não seria unitário e indivisível, mas formado de vários núcleos separados, conjuntos de bens destinados a fins específicos ( Teoria da Afetação ). 111 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 16. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000. p. 247.

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ou separados112. Já o jurista italiano Pietro Perlingieri113 utiliza a expressão

“situações patrimoniais”, para designar as relações de natureza real e as de

caráter obrigacional, apontando, ainda, para “situações mistas”, que abarcam

aquelas que pressupõem a existência de direito real e de direito obrigacional e

traz como exemplos o arrendamento rural e a locação imobiliária.

É fato que o contínuo devir dos fatos sociais exige do Direito uma

constante releitura dos conceitos estabelecidos para os institutos existentes; no

caso do patrimônio, as divergências semânticas e de conteúdo são

decorrências naturais do processo hermenêutico. Nesse sentido, entende-se

que o significante patrimônio compreende um conjunto de prerrogativas que

integram o locus privado de cada pessoa, podendo tais prerrogativas sofrer

alterações no tempo e no espaço.

Nessa perspectiva, é preciso amoldar a estrutura do Direito a

partir de uma visão antropocêntrica; ou seja, interpretá-lo e aplicá-lo tendo em

conta a figura do homem de carne e osso114 e não apenas mais um dos

elementos essenciais das relações jurídicas. Diante dessa premissa, antes de

adentrar no estudo da natureza jurídica e da importância do patrimônio mínimo

em sede dos direitos humanos fundamentais, impõe-se analisar a pessoa

humana e seu substrato intrínseco, a dignidade.

Nesse sentido, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald115

destacam que a dignidade humana é “o mais precioso valor da ordem jurídica

brasileira, erigido como fundamental pela Constituição de 1988”, e

complementam: “as normas são feitas para a pessoa e para a sua realização

existencial, devendo garantir um mínimo de direitos fundamentais que sejam

vocacionados, para lhe proporcionar vida com dignidade”.

112 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 41-42. Ensina Luiz Edson Fachin que: “é possível distinguir patrimônio de destinação, patrimônio autônomo e patrimônio separado: no primeiro, uma parte das relações atinentes a uma pessoa constitui uma distinta unidade jurídica com vistas a uma finalidade específica; no segundo, estar-se-ia diante de patrimônio pertencente a uma pluralidade de pessoas, em uma organização coletiva, que poderá ou não constituir pessoa jurídica; o último, diria respeito à herança, que permanece distinta do patrimônio geral do herdeiro até a apuração dos débitos”. 113 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3.ed. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 201-202. 114 BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Presentación Mariano Maresca. Traducción Jesús Ernesto García Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1996, p.17 115 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007. p. 98.

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Nesse diapasão, Carlos Ayres Britto professa116: “Sem exagero, o

que se transluz da redação inicial da nossa Lex Legum é o decidido empenho

de, nas suas linhas gerais(...) tornar o Direito maior do que a Lei (...)”, ou seja,

dar concretude ao princípio da igualdade substancial, em que, num critério de

silogismo, a premissa maior é o homem concreto e com necessidades

específicas.

Diante de princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa

humana, o princípio da solidariedade e a função social da propriedade e dos

contratos, não há mais espaço para a noção clássica de relação jurídica, na

qual a pessoa é tratada de forma genérica e abstrata; ou seja, mais um de seus

elementos, consubstanciando, desta forma, a idéia de “coisificação” do homem,

incansavelmente combatida por Luiz Edson Fachin117.

Essencialmente, quatro princípios são afetos à dignidade humana:

a igualdade118, em seu duplo aspecto formal e material; a liberdade119,

ajustado à idéia de liberdade com justiça social; a solidariedade, que resume o

novo paradigma do direito contemporâneo, a existência humana digna120; e o

princípio do respeito à integridade psicofísica da pessoa121.

Sobre o tema, é igualmente oportuno refletir sobre o

entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Ferreira

Mendes122 que, no seu ofício de julgador, assim se pronunciou acerca do

princípio da dignidade humana:

este princípio proíbe a utilização ou transformação do ser humano em objeto de degradação dos processos e ações

116 BRITTO, Carlos Ayres. A Constituição e o Monitoramento de suas Emendas. Revista Eletrônica do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 1, janeiro, 2004. Disponível em <http://www.direitodoestado.com.br>. Pesquisa realizada em 28/11/2007. 117 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à Luz do Novo Código Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.p.89. 118 SOUZA SANTOS 2001 apud MORAES, Maria Celina, 2003, p. 92. No dizer de Boaventura de Souza Santos “as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferente quando a igualdade os descaracteriza”. 119 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. p. 85;102-103. Diz a autora: “liberdade e autonomia privada foram, durante muito tempo consideradas, do ponto de vista do Direito Civil, como conceitos sinônimos (...). Com efeito, ao protagonista do Código Civil, sujeitos de direito e proprietário, cabia somente velar por seus familiares e por seus bens, apresentando-se desvinculado do tecido social que o envolvia”. 120Idem. Ibidem. p. 114. Ensina a autora que “o princípio constitucional da solidariedade identifica-se, assim, com o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados”. 121 Idem. Ibidem. p. 85. 122BRASIL. Poder Judiciário. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 82.969-4/PR, publicado em 30.09.2003. Disponível em: <http.www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 14.07.2007.

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estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas e humilhações.

Contumaz defensor dos direitos humanos e do princípio da

dignidade humana, Ingo Wolfgang Sarlet123 professa:

onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem assegurados, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade ( em direitos e dignidade ) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta ( a pessoa ), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças.

Como um grito de alerta, as palavras do mencionado autor124

precisam reverberar, não somente num determinado segmento da sociedade,

como na seara jurídica, mas em todo o corpo social, para que se concretize a

tese de que o respeito à dignidade humana constitui pressuposto para a

efetividade dos direitos humanos fundamentais. Com efeito, Béatrice Maurer125

alerta: “é perigoso enclausurar a reflexão sobre a dignidade na busca de uma

simples definição”.

123SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: SARLET, Ingo Wolfgang ( organizador ). Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005. p. 13 et seq. Para o autor, a dignidade manifesta-se de duas formas: como expressão da conduta voluntária da pessoa, que se atrela à concepção de autodeterminação; e como princípio de proteção ( de assistência por parte da sociedade e do Estado ), quando inexiste a aptidão de manifestação voluntária. E propõe a seguinte conceituação: “qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”. SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 3ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2003. 124 SARLET ( 2005 ). p. 28-34. Esclarece o autor que o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha já se manifestou no sentido de que a dignidade da pessoa humana é reconhecida, levando-se em conta os diferentes contextos. A seu turno, o Tribunal Constitucional da Espanha enxerga a dignidade como “valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais”. 125MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana…ou pequena fuga incomplete em torno de um tema central. Tradução de Rita Dostal Zanini. In: SARLET, Ingo Wolfgang ( organizador ). Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005.

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Traçadas essas breves linhas acerca do instituto do patrimônio e

da dignidade da pessoa humana, pretende-se agora correlacionar os referidos

significantes com o patrimônio mínimo – este verdadeiro instrumento de

garantia para viabilização do mínimo existencial e pressuposto de efetividade

do direito humano fundamental à habitação.

O presente tema encontra embasamento teórico, em especial, na

obra de Luiz Edson Fachin 126, quando trata do Estatuto Jurídico do Patrimônio

Mínimo, na qual o autor defende a tese de que toda a pessoa humana precisa

e deve ser dotada de um mínimo existencial, sendo-lhe garantido um

patrimônio mínimo, “mensurado consoante parâmetros elementares de uma

vida digna e do qual não pode ser expropriada ou desapossada”. Por força

deste princípio, afirma o autor: “sustenta-se existir essa imunidade

juridicamente inata ao ser humano, superior aos interesses dos credores”.

Embora possam ser consideradas expressões sinônimas - o

patrimônio mínimo e o mínimo existencial -, considera-se oportuno traçar

considerações sobre a tênue diferença; ou seja, o mínimo existencial

caracteriza direito fundamental a uma vida digna; enquanto o patrimônio

mínimo configura garantia fundamental daquele. Dito de outra forma, o

patrimônio mínimo representa a efetividade do mencionado mínimo existencial,

que, por sua vez, reúne um conjunto de direitos fundamentais como: direito à

vida, ao desenvolvimento pleno, à saúde, à educação e à moradia digna.

Nesse contexto, o patrimônio mínimo tem como função essencial

garantir, de certa forma, a igualdade material para aqueles que pouco ou nada

têm127. Nessa perspectiva, vale a máxima de que o tratamento dispensado

deve ser adequado à medida das desigualdades para se chegar, pelo menos,

perto da igualdade substancial.

Nessa ordem de idéias, cumpre esclarecer que a Carta

Constitucional de 1988, embora não consagre de forma explícita o direito ao

mínimo existencial, é possível extraí-lo de vários artigos, a começar pelo artigo

3°, que trata dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,

como a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das

126FACHIN ( 2006 ). p. 278/289. O autor assevera que, a despeito de inexistir uma definição para o que seja o patrimônio mínimo, este não está limitado`a existência de um único bem, mas sim de quantos forem necessários para que a pessoa tenha uma vida digna e segura. 127 Idem. Ibidem. p. 278.

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desigualdades sociais. Também se pode visualizar tal direito no art. 7º, inciso

IV, que contempla o salário mínimo; nas imunidades tributárias, consoante o

disposto nos artigos 5°, incisos LXXIII, LXXIV; 153, par. 4°, inciso II; e art. 195,

inciso II128 entre outros.

Em sede internacional, o direito ao mínimo existencial encontra-

se consagrado nas declarações internacionais sobre Direitos Humanos, verbi

gratia, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, que proclama,

em seu artigo 25: “Toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para

assegurar a sua saúde, o seu bem estar e o de sua família, especialmente para

a alimentação, o vestuário, a moradia, a assistência médica e para os serviços

sociais necessários”.

Nessa trilha, Luiz Edson Fachin129 vaticina:

As conseqüências advindas da proteção inexpugnável ao patrimônio mínimo não conduzem, por via oblíqua, a um estatuto da desigualdade por vantagem exagerada em favor de uma das partes da relação jurídica. Antes, parte da igualdade ( em sentido substancial ) para enfrentar, no reconhecimento material das desigualdades, o respeito `a diferença sem deixar de alavancar mecanismos protetivos dos que são injustamente ‘menos iguais’. (...) Contudo, a tutela de um patrimônio mínimo nucleado na dignidade da pessoa humana, parece-nos bem representar o novo sentido a ser dado ao patrimônio na perspectiva de um direito civil repersonalizado – o qual tão-só se legitima a partir do momento em que observam os valores existenciais e primordiais da pessoa, que hoje estão em sede constitucional.

Do excerto acima transcrito, é possível extrair algumas assertivas,

como por exemplo: a) o patrimônio mínimo é garantia fundamental ao exercício

da cidadania; b) o patrimônio mínimo dá concretude à igualdade material; c) o

patrimônio em geral deve servir ao seu titular, desde que não reduza à

miserabilidade outrem; e d) no impasse entre um direito de crédito, de natureza

128 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000. 141-142. O direito ao mínimo existencial também não encontra amparo expresso nas constituições estrangeiras, com exceção da Carta canadense e da japonesa, onde se infere a presença de tal direito, explica o autor: “ o art. 36, da Constituição do Canadá, estabelece que o Parlamento deverá adotar medidas para a) promover a igualdade de chances de todos os canadenses na procura do seu bem-estar; b) favorecer o desenvolvimento econômico para reduzir a desigualdade de chances;” e o art. 25, da Carta Política japonesa, dispõe: “ Todos terão direito à manutenção de padrão mínimo de subsistência cultural e de saúde.” 129 FACHIN ( 2006 ). p. 251.

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essencialmente patrimonial e o direito à moradia, deve, indubitavelmente,

prosperar este.

Diante dessas premissas, conclui-se que não há mais espaço

para a análise dos interesses particulares descolada do aspecto social: a

complexidade das sociedades do mundo globalizado exige um comportamento

social e solidário das pessoas em geral, pois, do contrário, os danos acabarão

atingindo a todos. Nesse passo, professa Luiz Edson Fachin130: “a pessoa tem

o dever social de colaborar com o bem do qual também participa; ou seja, deve

colaborar com a realização dos demais integrantes da comunidade”.

Ainda, no tocante ao mínimo existencial, merece relevo o

entendimento de Ricardo Lobo Torres131, para quem:

a igualdade de chances ou de oportunidades, que é igualdade na liberdade, informa a idéia de mínimo existencial, que visa a garantir as condições iniciais da liberdade. Pela igualdade de chances garantem-se as condições mínimas para o florescimento da igualdade social.

Segundo o mencionado autor, em algumas situações, a

intervenção do Estado não é só bem-vinda, como extremamente necessária, a

exemplo do compromisso de eliminar as diferenças decorrentes da

concentração de renda que, no outro pólo, resulta na pobreza, que aflige

milhares de pessoas ao redor do mundo. E descreve o mínimo existencial da

seguinte forma132 :

o mínimo existencial exibe características básicas dos direitos da liberdade: é pré-constitucional, vez que inerente `a pessoa humana; constitui direito público subjetivo do cidadão, não sendo outorgado pela ordem jurídica, mas condicionando-a, tem validade erga omnes, aproximando-se do conceito e das conseqüências do estado de necessidade; não se esgota no elenco do art. 5º da Constituição, nem em catálogo preexistente;

130 FACHIN ( 2006 ). p. 47. 131TORRES, Ricardo Lobo. A Metamorfose dos Direitos Sociais em Mínimo Existencial. In: SARLET, Ingo Wolfgang ( organizador ). Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado. Rio de Janeiro. Ed. Renovar, 2003. p. 01-46. 132 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000. p. 144-146. Para o autor “a proteção do mínimo existencial no plano tributário, sendo pré-constitucional como toda e qualquer imunidade, está ancorada na ética e se fundamenta na liberdade, ou melhor, nas condições iniciais para o exercício da liberdade, na idéia de felicidade, nos direitos humanos e no princípio da igualdade”.

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é dotado de historicidade, variando de acordo com o contexto social.

Da concepção de mínimo existencial proposta pelo mencionado

pensador pode-se extrair vários elementos que fundamentam a tese esposada

no presente trabalho, que é a defesa do patrimônio mínimo como pressuposto

de efetividade do direito humano fundamental à moradia, inferindo-se que:

1. A primeira frase do fragmento textual transcrito caracteriza o

mínimo existencial como direito humano fundamental e, como tal, deve-se lutar

por sua efetividade, tanto no plano de políticas públicas, quanto por meio das

atividades legislativa e jurisdicional. Nesse sentido, merece relevo a

contribuição do sociólogo Celso Fernandes Campilongo133, quando afirma que,

“cabe ao Judiciário controlar a constitucionalidade e o caráter democrático das

regulações sociais”, além de outras funções que estimulem o “processo de

afirmação da cidadania e da justiça substantiva”.

2. O segundo elemento apresentado pelo autor, refere-se ao

mínimo existencial como algo ínsito ao ser humano, de onde se pode inferir

que qualquer ato público ou privado, tendente a violar tal direito, deve ser

obstado por meio de medidas administrativas ( no caso do Estado ) ou judiciais,

na hipótese de ambos ( público ou privado ).

3. A idéia de direito público subjetivo é capaz de opor resistência

a qualquer manifestação contrária ao direito ao mínimo existencial, como

também exigir condutas positivas, no sentido de garantir tal direito.

Analogamente ao que ocorre com o mínimo existencial, a garantia

do patrimônio mínimo também não tem previsão expressa no ordenamento

pátrio, conquanto seja possível visualizá-la na Constituição de 1988, quando

consagra como objetivo da República brasileira, a dignidade da pessoa

humana que, no dizer de Daniel Sarmento134, representa o “epicentro

axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o

ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também

133 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico”. In: FARIA, José Eduardo ( coordenador ). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Editora Malheiros, 2005. p.49. 134 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 3ª tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003. p. 59-60.

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toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade

civil e do mercado”.

Ainda, sem embargo de outras fontes, é possível entrever a

garantia do patrimônio mínimo no art. 548 do Código Civil de 2002, que prevê

norma proibitiva de doação de todos os bens. Esta norma protetiva tem como

ratio essendi a proteção do doador, que, num momento de liberalidade, põe em

risco a própria sobrevivência, ao provocar a situação de miserabilidade 135.

Outro exemplo é o instituto do bem de família136que, aparentemente, pode

gerar a falsa idéia de que o legislador está a proteger o direito de propriedade,

mas, na realidade, a tutela é do direito humano fundamental à moradia,

porquanto a propriedade, neste caso, constitui via instrumental para a

efetividade daquele direito.

A rigor, cumpre reconhecer a imbricação da propriedade,

consubstanciada no bem de família, com a garantia de um patrimônio mínimo e

com o direito à habitação. Nesse passo, Luiz Edson Fachin137 esclarece que

“obter a guarida do patrimônio mínimo em favor dos valores fundamentais da

pessoa é uma maneira de instituir um novo lugar jurídico, espaço de luta

constante entre interesses e pretensões”. Corrobora, ainda, o mencionado

civilista que:

não há, pois, defesa da ilegitimidade do crédito em si mesmo. Cogita-se, tão-somente, do estabelecimento de limites à pretensão creditícia e não sua impugnação ontológica. E diante de um dano injusto, cuja reparação busca o credor em face do autor do ato, a tutela patrimonial buscará equilíbrio no juízo da proporcionalidade entre os interesses envolvidos.

Nessa linha de idéias, é preciso repensar não somente a

arquitetura civilística, mas, sobretudo, a forma como as pessoas se relacionam

umas com as outras, especialmente na seara negocial, evitando, com isso,

pretensões desproporcionais. Afinal, quer-se caminhar para um novo tipo de

135 FACHIN ( 2006 ). p. 2 136 Previsto no CC/02 e na Lei 8.009/90, o qual será melhor esmiuçado em outra seção, ainda neste capítulo. 137 FACHIN ( 2006 ). p. 220.

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Estado, o Estado Constitucional Humanitário de Direito, conforme lições de

Luiz Flavio Gomes138.

I.4. Bem de Família e a Ressignificação do Instituto Família Conforme já mencionado no tópico anterior, o bem de família é,

indubitavelmente, um dos instrumentos eficazes utilizados para se garantir o

patrimônio mínimo de uma pessoa. Nesse contexto, sua aplicação prática deve

levar em consideração todas as pessoas indistintamente, invalidando desta

forma qualquer regra que preveja alguma discriminação.

Para melhor entendimento acerca da relevância do mencionado

instituto, cabe analisar alguns aspectos que o norteiam. A começar pela sua

origem.

O instituto do bem de família ( homestead ) surgiu nos Estados

Unidos, especificamente no Estado do Texas, por meio da Lei 26, de 1839,

como forma de incrementar a colonização e garantir o mínimo existencial às

famílias que se arvorassem a ir para lá desenvolver a agricultura, tornando a

terra produtiva139. A propriedade era utilizada como instrumento para a

concretização do direito humano fundamental à moradia e como forma de

subsistência, não podendo ser objeto de qualquer constrição, sendo, portanto,

imune ao instituto da penhora.

Não demorou muito, para que outros países passassem a adotar

institutos semelhantes. O Canadá, por exemplo, em 1878 editou uma lei que

isentava de execuções por dívidas imóveis de valor até dois mil dólares, não

exigindo que o titular do bem fosse chefe de família – tendência, aliás, seguida

atualmente no Brasil, conforme se depreende da ementa de decisão proferida

pelo Superior Tribunal de Justiça140: “ Execução. Bem de Família. Ao imóvel

que serve de morada às embargantes, irmãs e solteiras, estende-se a

impenhorabilidade de que trata a Lei 8.009/90”.

138 GOMES, Luiz Flávio. O Valor Jurídico dos Tratados de Direitos Humanos. São Paulo: Disponível em: <http://www.blogdolf.com.br.18julho.2007. Pesquisa realizada em 14/09/2007. 139 FACHIN. ( 2006 ). p. 155-156. 140 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Bem de Família. Indicação penhora. Recurso Especial nº 57606/MG. Relator Ministro Fontes de Alencar. Distrito Federal. Julgado em 11 de abril de 1995. Disponível em <www.stj.gov.br>. Pesquisa realizada em 25/04/2007.

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Ainda, no direito comparado, é possível verificar o significante

bem de família, a despeito de suas diferentes características, em países como:

Alemanha, Inglaterra, Suíça, Itália, França, Espanha e Portugal.

Como ensina Luiz Edson Fachin141, a Inglaterra, embora não

tenha editado norma específica prevendo o bem de família, criou dois institutos

que traziam em sua essência a garantia de um mínimo existencial, como se

pode depreender de suas palavras textuais, transcritas a seguir:

os allotments ( que consistiam na concessão de terras de no máximo um acre de terra arável, por meio de um aluguel perpétuo) e os small-holdings ( os quais correspondiam à concessão de pequenas propriedades de um a cinqüenta acres)(...). O que se pretendia era a proteção da pequena propriedade, fazendo cessar a despopulação nos campos e nunca a da família.

Na Alemanha, apesar de várias tentativas para adoção do

referido instituto, somente após a Constituição de Weimar, de 1919, que

propugnava a proteção da propriedade familiar, tendo como corolário a garantia

de habitação a todos os alemães, o legislador infraconstitucional, em 1920,

editou uma lei prevendo o denominado Heimstättenrecht, o qual podia ser

constituído por diversas formas, como por exemplo: sobre imóveis concedidos

pelo Estado; por associações de natureza pública; e por ato de vontade do

proprietário.

A Suíça, por sua vez, prevê três institutos que tutelam a família,

os quais consubstanciam a garantia do patrimônio mínimo dos seus membros,

como explicita Luiz Edson Fachin142:

O primeiro deles, a fundação familiar, consiste na vinculação de determinados bens a uma finalidade especial, é um patrimônio destinado a fazer face a despesas com educação, estabelecimento ou manutenção dos integrantes da família. O segundo, a comunidade familial, é um patrimônio adquirido por herança que forma uma comunidade mediante contrato, por escritura pública, assinado por todos os membros interessados, que administram com iguais direitos o patrimônio. Não são, porém, impenhoráveis os bens que integram a comunidade. O asilo ou abrigo de família, por sua vez, instituído pela vontade

141 FACHIN ( 2006 ). p. 154-161. 142 Idem. Ibidem. p. 158-159.

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unilateral de seu proprietário sobre bem imóvel destinado a uma exploração agrícola ou industrial, devendo a família explorá-lo, ou servir de habitação, devendo a família, neste caso habitá-lo. Após convocação oficial dos credores, não havendo nenhuma impugnação de terceiros, há inscrição no Livro de Imóveis, tornando-se o bem impenhorável. ( grifo nosso ).

A Itália reconheceu o bem de família em 1942, em seu Código

Civil, contemplando-o como patrimônio familiar143. Desta forma, alguns bens

imóveis e títulos de crédito tinham como função específica preservar a família.

A França, já em 1909, previa o referido significante, estando o mesmo afastado

da incidência de penhora. A Espanha, a seu turno, protege o patrimônio

mínimo da família por meio de diversos diplomas legais. Por fim, sem querer

esgotar o tema, cabe fazer menção ao instituto português “casal de família”

instituído em 1920, o qual pode ser constituído por qualquer cidadão português,

independentemente de seu estado civil, que tenha sob seu teto pessoas por ele

mantidas, tais como descendentes, irmãos ou descendentes destes: após a

constituição do bem, o mesmo se torna indivisível e inalienável.

No direito pátrio, o instituto do bem de família surgiu inicialmente

em 1893, no projeto de Código Civil idealizado por Coelho Rodrigues, sendo

denominado de ‘lar de família’, ensina Luiz Edson Fachin144. Embora não tenha

sido o mesmo previamente reconhecido no projeto de Clóvis Beviláqua, foi

incluído posteriormente, em 1912, por meio de uma emenda145. Preleciona,

ainda, o mencionado autor que o bem de família tem como corolário “garantir

um abrigo habitável para a família de forma a ficar isento de execução por

dívidas”. Com efeito, o espectro de proteção abrange todos os bens móveis e

equipamentos que abastecem a casa, inclusive os de uso profissional, bem

como as plantações e benfeitorias realizadas.

A inserção do significante em tela, no sistema normativo civilista

brasileiro ocorreu no Código Civil, de 1916, sendo, aprioristicamente, instituído

143 FACHIN ( 2006 ). p. 159-160. 144 Idem. Ibidem. p. 132-174. 145 Ressalta Luiz Edson Fachin que, de início, o bem de família foi inserido no Livro das Pessoas, posição topográfica que ensejou críticas, provocando o seu deslocamento para o Livro que tratava dos bens, mantendo-se neste espaço até no novo Código Civil. Para alguns autores, como por exemplo, Orlando Gomes, o bem de família deveria estar inserido no capítulo que cuida do direito de família, vide FACHIN ( 2006 ). p. 133.

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pela vontade das partes e denominado bem de família convencional. No

Código vigente146, o referido instituto está previsto nos arts. 1.711 usquê 1.722.

Posteriormente, já na década de 1990, o legislador

infraconstitucional editou a Lei 8.009/90, que estabeleceu o bem de família

legal, passando a conviver ao lado do convencional. Ressalte-se, todavia, que

o mencionado diploma legal trouxe algumas exceções à regra da

impenhorabilidade, quase todas de constitucionalidade questionável.

Conquanto seja pertinente a análise de cada uma delas, no presente trabalho,

por conta do tempo e do espaço aqui delimitado, estudar-se-á tão-somente, a

hipótese inserida no art.3º, inciso VII, introduzida pela Lei 8.245/91147, que trata

da penhorabilidade do bem do fiador, decorrente de contrato de locação,

conforme será examinado no Título II, capítulo I, deste trabalho.

Cabe esclarecer que não há consenso doutrinário acerca da

natureza jurídica do bem de família, como pontua Álvaro Villaça de Azevedo148:

a idéia central é a de proteção do ente familiar com o reconhecimento do valor moradia familiar ( ligado à noção de lar, proteção de prole, segurança familiar etc.) como sobreposto e mais relevante aos eventuais interesses de credores consistente na função de garantia do patrimônio.

Nessa linha de entendimento, assenta-se a idéia de que a família

contemporânea desempenha função estruturante, protetora e unificadora; ou

seja, sua relevância encontra amparo na tese de que constitui mais uma função

social do que uma instituição149. Acrescenta o mencionado autor que o escopo

do bem de família está atrelado à segurança da família, consubstanciada na

proteção de um imóvel, o que, por sua vez, não assegura o teto de todas as

146 O Código Civil brasileiro de 2002 ampliou o rol de legitimados para instituir o bem de família, que no velho Codex estava restrito ao chefe de família. Avançou o legislador neste sentido, ao permitir a destinação de parte do patrimônio para instituição de bem de família pelos cônjuges, pelos companheiros (entidade familiar), pelo separado judicialmente que ficar com a guarda dos filhos, e por terceiro, nos termos do artigo 1.711 do referido diploma de 2002. O terceiro, a que se refere o parágrafo único do mencionado dispositivo, poderá instituir o bem de família, por meio de testamento ou doação, para beneficiar pessoas ligadas pelo vínculo do matrimônio ou por união estável. 147 “Art. 82. O art. 3º da Lei 8.009, de 29 de março de 1990, passa a vigorar acrescido do seguinte inciso VII. por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”. 148 AZEVEDO, Alvaro Villaça de. Bem de Família. 4 ed. São Paulo: RT, 1999. p. 127 et seq.

149 FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. a. p. 4; 327-329.

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famílias, mas somente daqueles que possuem um imóvel. Concorda-se com o

autor que o manto de proteção do bem de família não agasalha os que não

possuem qualquer bem imóvel, porquanto não é esta a sua ratio, vez que o

referido instituto tem como função garantir o teto daqueles que já conseguiram

conquistar o perseguido sonho da casa própria. Não há como negar,

entretanto, que muitas pessoas ainda estão distantes da concretização do

direito humano fundamental à moradia, por meio da casa própria.

Nessa toada, cabe ressaltar que, embora as diversas formas de

acesso à habitação extrapolem o foco da presente pesquisa, reconhece-se que

o acesso a um teto digno pode ser conquistado por meio de outros

instrumentos, como a locação com regras justas150, a concessão real de uso, o

direito de superfície, o comodato, a posse entre outros. A despeito disso, o que

se advoga é a plenitude do exercício do direito humano fundamental à moradia,

concretizado no direito de propriedade instrumental, consoante será esmiuçado

no capítulo seguinte.

Considerando o exposto, cumpre, ainda que brevemente, tecer

algumas considerações acerca do significante família. Cabe, ab initio, com

amparo na doutrina de Friedrich Engels151, assinalar que a família, assim como

os demais institutos que integram a ordem social, opera com dinamismo -

150 Entende-se como regras justas, aquelas em que há equilíbrio nas obrigações assumidas pelas partes ( locador e locatário ), bem como se coadunam com os diversos contextos em que se inserem. 151 ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 3. ed. Tradução Ruth M. Klaus. São Paulo: Editora Centauro, 2006. Embora não se pretenda aqui delinear de forma mais esmiuçada a origem da família, até porque tal estudo demandaria significativo tempo, entende-se pertinente destacar alguns aspectos do instituto trazidos por Friedrich Engels que, em sua obra, retrata o trabalho cognitivo sobre o tema de Lewis Henry Morgan, o qual viveu grande parte de sua vida entre os iroqueses, estabelecidos no estado de Nova York. No mencionado trabalho, o autor apresenta três tipos de família: a primeira noção consubstanciava-se na consangüínidade; exemplo de tal tipo de família “seriam descendentes de um casal, em cada uma de cujas gerações sucessivas todos fossem entre si irmãos e irmãs e, por isso mesmo, maridos e mulheres uns dos outros”. Na fase mencionada, irmãos e irmãos podiam ter relações carnais, proibindo-se, entretanto, tal feito entre pais e filhos. Já na segunda fase, denominada de punaluana, tais relações entre irmãos tornaram-se proibidas; começa-se a definir-se os graus de parentesco. A terceira fase da família, trazida por Lewis Henry Morgan, denomina-se família sindiásmica, afastava-se do regime de patrimônio por grupos, isto é, “o homem tinha uma mulher entre suas numerosas esposas, e era para ela o esposo principal entre todos os outros”. Com a família sindiásmica, o homem passa a viver com uma única mulher. Ressalte-se, entretanto, que, enquanto para o homem permaneceu o direito a exercer a poligamia e a infidelidade, para a mulher passou-se a exigir a fidelidade; sendo o adultério punido com rigor. E, por fim, a quarta forma de família, a monogâmica, embora semelhante à família sindiásmica, ela se diferencia no tocante à solidez dos laços conjugais, que, na família monogâmica, são mais rígidos, cabendo somente ao homem o direito de rompê-los. A monogamia “não aparece na história, portanto, absolutamente, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravidão de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, na pré-história”, argumenta Friedrich Engels. p. 33-85.

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estando sempre sujeita às alterações conceituais e de conteúdo - a fim de se

coadunar com a constante evolução do homem.

Partindo dessa premissa, preceitua Arnoldo Wald152 que a

concepção de família tem sido redesenhada ao longo dos tempos. O autor

exemplifica que, no direito romano a família compreendia “o conjunto de

pessoas que estavam sob a patria potestas do ascendente comum vivo mais

velho”, ou seja, a consangüinidade não era o único elemento caracterizador. O

instituto também era concebido como “uma unidade econômica, religiosa153,

política154 e jurisdicional155”.

Com o tempo, no entanto, o poder do pater foi relativizado, por

conta, em grande parte, da autonomia conferida à mulher e aos filhos e das

limitações impostas pelo Estado. O direito sobre a vida e a morte que o pater

exercia sobre os filhos e a mulher foi extinto e, na hipótese de abuso de poder

do patriarca, os descendentes (alienis juris ) podiam recorrer ao juiz156.

No Direito Canônico157, a família era sacralizada e constituída por

meio do matrimônio indissolúvel, vínculo que unia o homem e a mulher de

forma definitiva. Tal posicionamento não era pacífico no seio da própria Igreja,

malgrado predominante. A influência do catolicismo no tocante ao tema família-

casamento era muito forte e, durante o período da Idade Média, as regras que

disciplinavam as relações familiares eram exclusivamente as do Direito

Canônico, sendo que, no interregno entre o século X ao século XV

predominava o casamento religioso158.

No final desse período, entretanto, começaram a surgir embates

entre os tribunais civis e religiosos, que divergiam quanto “a certos aspectos

patrimoniais do direito de família e, em seguida, em relação aos seus efeitos”,

assevera Arnoldo Wald. Os protestantes159, a seu turno, não concordavam com

152 WALD, Arnoldo. O Novo Direito de Família. 14. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2002. Com efeito, a família brasileira recebeu influência de três ordens: do direito romano, canônico e do germânico. p. 3-33. 153 WALD. Op. Cit. p. 9-10. Diz o autor: “era uma unidade religiosa, pois tinha uma religião própria, a religião doméstica dos antepassados falecidos”. 154 Idem. Ibidem. Ensina ainda o estudioso: “na primeira fase do Direito Romano, a família era uma unidade política, constituindo-se o Senado pela reunião dos chefes de família”. p. 9-10. 155 Idem. Ibidem. Vigia a regra que os pais podiam julgar os atos dos seus “protegidos”, decidindo pela vida ou pela morte dos mesmos. p. 11. 156 Idem. Ibidem. p. 11. 157 Idem. Ibidem. p. 12-15. 158 Idem. Ibidem. p. 13-15. 159 Idem. Ibidem. p. 15. Os protestantes representavam uma nova vertente religiosa, dissidente da religião católica.

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a idéia de natureza sagrada do casamento, porquanto o consideravam “um

simples ato da vida civil, um contrato natural”, sendo, desta forma, passível de

dissolução por parte dos cônjuges. Defendiam ainda que o direito de família

deveria ser regulado pelo Estado.

Entrementes, o Direito Canônico regulava plenamente as

relações matrimoniais e, por reflexo, as relações de família. Em algumas

hipóteses era admissível a separação de corpos, desde que previamente

autorizadas pela autoridade eclesiástica e comprovada a ocorrência de uma

das causas previstas, como o adultério e a heresia. Somente a partir do século

XV, a Igreja passou a aceitar a separação consensual, extinguindo o dever de

coabitação, embora mantivesse os deveres de fidelidade e de prestar

assistência.

Em meados do século XVI, a Igreja Católica editou o Concílio de

Trento, com vigência no período de 1542 a 1563, no qual estabeleceu “a

competência exclusiva da Igreja e das autoridades eclesiásticas em tudo que

se relacionasse com o casamento, sua celebração e a declaração de

nulidade”160, reassentando a posição de que o matrimônio tinha caráter

sagrado.

Assim como em muitos contextos, o referido documento

influenciou o direito de família no Brasil, tendo sido adotado por força de lei

publicada em 1603, que determinava sua observância no território pátrio e em

Portugal. Posteriormente, por meio de Decreto, publicado em 3 de novembro

de 1827, ratificou-se a aplicabilidade do Concílio Tridentino em todas as

dioceses no Brasil, seguido pela Consolidação das Leis Civis de Teixeira de

Freitas, a qual se referia ao documento canônico e determinava sanções aos

“casamentos clandestinos”161.

Diante de tal sistema normativo, as pessoas não católicas, que

discordavam das normas impostas, formavam o grupo dos excluídos; problema

somente solucionado com a edição da Lei 1.144, de 1861, que “deu efeitos

civis aos casamentos religiosos realizados pelos não católicos, desde que

estivessem devidamente registrados”.

160 WALD. Op. Cit. p. 15-16. Ensina o autor que o referido documento contribuiu sobremaneira para o desenvolvimento do direito de família nos países católicos. 161 Idem. Ibidem. p.17-20.

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Com a Proclamação da República do Brasil, o Estado demarcou

sua área de atuação e afastou da jurisdição eclesiástica162 a disciplina do

casamento, cujas regras passaram a ter natureza estatal. Com efeito, a

primeira Constituição da República163 proclamou, em seu art. 72, par. 4º, que o

casamento reconhecidamente aceito era o realizado sob a égide das normas

civilistas vigentes.

O Código Civil pátrio de 1916, embora idealizado para regular as

relações sociais existentes na sociedade brasileira, manteve as idéias

conservadoras das Ordenações Filipinas no que diz respeito ao casamento,

adotou as regras canônicas referentes “aos impedimentos dirimentes e

impedientes, às nulidades, e considerou indissolúvel o vínculo matrimonial”164.

A família, como unidade econômica, era protegida pelo regime da comunhão

universal de bens; ou seja, ao casal, conjuntamente, pertenciam todos os bens

que formavam o patrimônio da família, não podendo nenhum deles, por

exemplo, vender bem imóvel sem a autorização do outro.

Como destaca o Deputado Ricardo Fiúza165, enquanto o Código

Civil brasileiro de 1916 - criado num contexto social em que predominava a

atividade agrária e o pensamento patriarcal - contemplava o Direito de Família

no primeiro livro da parte especial; o novo Codex de 2002 - idealizado numa

época de intenso desenvolvimento das atividades econômicas e tecnológicas -

dedicou o primeiro livro, que no velho Código era da Família, para o Direito das

Obrigações. Acrescenta, ainda,166 que:

a formulação jurídica da família em sua estrutura e perspectiva institucional, a contemplar as atuais realidades axiológicas, coloca-se contemporânea de novos significantes sociais que a torna melhor ponderada pelos seus elementos psicológicos e afetivos. Essa valoração prestigia as relações familiares,

162 Idem. Ibidem. p. 20. “O Decreto 181 de 24.1.1890, de autoria de Rui Barbosa, em virtude do qual ficou abolida a jurisdição eclesiástica, considerando-se como único casamento válido o realizado perante as autoridades civis”. 163 CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as Constituições Brasileiras. Ed. com. e atual. Campinas: Editora Bookseller, 2001. “Art. 72. par. 4º : “A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”. p.71. 164 WALD. Op. Cit. p. 21. 165 ALVES. Op. Cit. p. 67-68. O Deputado Ricardo Fiúza foi relator-geral, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei n 634, que deu origem ao novo Código Civil. Em seu relato afirma que a matéria pertinente ao direito de família foi objeto de 138 emendas aprovadas, de um total de 332, o que representa um percentual de 42% das emendas.

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oriundas não apenas do casamento, antes havido como sua base instituidora, mas, igualmente, de outros modelos estruturais, seja o decorrente da união estável entre homem e mulher (art. 226, par. 3º, CF), seja o originário de comunidade monoparental, formada por qualquer dos pais e seus ascendentes ( art. 226, par. 4 º ), ambos reconhecidos como entidades familiares.

Como é cediço, o dinamismo da realidade social rompe barreiras,

contribui para a mudança de paradigmas e acrescenta novos valores, o que

exige dos profissionais do Direito elevada dose de sensibilidade para tratar

adequadamente as questões que circundam as relações sociais e jurídicas,

sem esquecer que o homem, titular de tais relações, é de carne e osso167, e

assim deve ser considerado. Nesse sentido, Pietro Barcellona168 pontua que:

El giro que había que provocar, la ruptura con el pasado, consistía en llegar a pensar todo el problema de la existencia social a partir del individuo; pensar el individuo y el orden en una contextualizad, en una relación de reciprocidad; asumir una antropología individualista para poner en marcha una nueva constitución social (…). El sujeto que, partiendo de una antropología individualista, debe construir el nuevo orden, el artificio que conserva la vida, debe ser pensado como un a priori respecto a la individualidad empírica, respecto a la reacción vital naturalista del hombre sujeto de necesidad visto como cuerpo, naturaleza, instinto (…). (…) pero la individualidad singular debe ser mediada con la instancia de la generalidad universal, que es la única que puede producir por si misma un orden general.

Das lições do mencionado pensador italiano extrai-se que o

homem abstrato serve como parâmetro para se chegar ao homem empírico;

isto é, ao analisar determinada situação, o aplicador do Direito deve partir do

ideal do homem abstrato, sem esquecer de chegar ao concreto,

contextualizado. Nessa perspectiva, insere-se a análise da família como um

instituto que ultrapassa a idéia clássica de sua composição por pai, mãe e

filhos, para alcançar, também, o indivíduo que vive só.

No contexto contemporâneo, em que se evidenciam valores como

a dignidade humana e a solidariedade, é preciso olhar para a família não

167 BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Presentación Mariano Maresca. Traducción Jesús Ernesto García Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1996. p.17. 168 Idem. Ibidem. p. 43-45.

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apenas como instituto, regido por regras e princípios próprios, mas, sobretudo,

como uma função, qual seja a de célula de proteção de pessoas que, num

mesmo habitat, dividem anseios, sonhos e necessidades, ou daquela que, por

circunstâncias várias, vive só. Cabe ressaltar, ainda, que a família também é

decorrência dos fatos sociais, e como tais se modificam de acordo com o

tempo.

Assim considerada a realidade, merece particular realce a

Constituição de 1988, como marco de nova concepção de família, guiada pelo

afeto e pela solidariedade, obtendo, inclusive, capítulo próprio e regras novas,

tais como: o reconhecimento da união estável como entidade familiar, a

igualdade entre os cônjuges; a isonomia entre os filhos havidos dentro ou fora

do casamento; a obrigação dos filhos maiores de amparar os pais nos

momentos necessários, como na velhice e similares.

Nesse processo evolutivo, a família ultrapassou o estágio

hierarquizado do sistema patriarcal, focada no casamento, “nasce a família

constitucional, com a progressiva eliminação da hierarquia, emergindo irrestrita

liberdade de escolha; o casamento fica dissociado da legitimidade dos filhos”,

ensina Luiz Edson Fachin169, que defende a nova face da família, marcada por

valores como a igualdade e o afeto. Aduz, ainda, o pensador mencionado:

sob as relações de afeto, de uma principiologia constitucional fundada na solidariedade e na cooperação, proclama-se, com mais assento, a concepção eudemonista da família: não é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o casamento existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua aspiração à felicidade.

Não há como refutar que, nos tempos atuais, o significante família

está umbilicalmente vinculado ao pleno desenvolvimento de seus membros,

devendo, portanto, cumprir função eminentemente social. Acrescente-se a

importância do Estado, e por conseqüência, do Direito, no sentido de

harmonizar os ditames legais de amplitude genérica e abstrata à realidade

concreta e real.

169 FACHIN, Luiz Edson. Princípios Constitucionais e Relações Privadas: Questões de Efetividade no Tríplice Vértice entre o Texto e Contexto. ( no prelo ), 2008. p. 9.

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Nesse cenário, torna-se ainda mais evidente a premência do

reconhecimento do Direito à Moradia como direito humano fundamental e

essencial à preservação do bem-estar da família e do patrimônio mínimo como

condição necessária para que seus membros possam desfrutar de uma vida

digna.

No capítulo seguinte, no âmbito da análise de alguns aspectos

dos direitos humanos fundamentais, buscar-se-á demonstrar a dupla face do

direito de propriedade, e sua imbricação com o direito humano fundamental `a

moradia.

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Capítulo II - DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

II.1. Principais Aspectos

“A base antropológica dos direitos fundamentais não é apenas o

‘homem individual’, mas também o homem inserido em relações sócio-políticas

e sócio-econômicas e em grupos de vária natureza, com funções sociais

diferenciadas”, professa José Joaquim Gomes Canotilho170.

Com fundamento na lição do pensador português e, considerando

os objetivos da pesquisa, neste capítulo, a ênfase recai, em termos gerais, nos

Direitos Humanos Fundamentais, vez que um dos maiores desafios da

sociedade contemporânea é coadunar tais direitos com os interesses público e

privado.

De início, cumpre registrar que, embora pouco se mencione

acerca da Idade Antiga quando se aborda o tema dos direitos humanos

fundamentais, é possível, no entanto, verificar o reconhecimento de alguns

desses direitos nesta fase. A esse respeito é muito elucidativa a análise de

Ingo Wolfgang Sarlet171, quando aponta que tal período, especialmente por

influência da religião e do pensamento filosófico, deu conta de alimentar idéias

que, posteriormente, serviram de base para o jusnaturalismo.

À guisa de ilustração, o referido doutrinador assinala que o Antigo

Testamento, no livro de Gênesis, faz referência ao homem como a imagem de

Deus, de onde se pode extrair a “idéia de que o ser humano representa o ponto

culminante da criação divina”. Ainda, no referido livro sacro, é possível

perceber o direito à vida digna, quando Deus se refere aos recursos naturais

como meio de subsistência do homem172.

170 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 4 ed. Coimbra: Livraria Almeida, 1986. p. 447. 171 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado. 2007. p. 45. 172 BIBLIA SAGRADA. Livro de Gênesis. Tradução João Ferreira de Almeida. Brasília: Sociedade Bíblica do Brasil. 1990. p. 2. Conforme Gênesis, cap. 1, versículo 29, in verbis: “E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dá semente, que está sobre a terra; e toda a árvore, em que há fruto de árvore que dá semente, ser-vos-á para mantimento”.

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A rigor, o pensamento jusnatural obteve fôlego a partir do período

medieval. Nesse sentido, Santo Tomás de Aquino, propugnando o ideal de

justiça como princípio da igualdade, defendia a existência de duas formas de

manifestação do Direito: uma de caráter naturalístico (expressão da natureza

racional do homem) e outra, decorrente do positivismo (qualquer violação ao

direito natural por parte dos governantes gerava o direito de o agredido opôr

resistência)173. Nessa linha de argumentação, louvável foi a contribuição do

Cristianismo, consubstanciada na defesa da igualdade, da fraternidade e da

dignidade humana174.

A travessia da fase medieval para a Idade Moderna ocorreu por

meio de um processo de transformações sócio-econômicas e culturais, sob a

influência de fatores como o acelerado crescimento do comércio marítimo,

seguido pelo desenvolvimento da burguesia e pela reforma protestante. A nova

realidade fez ecoar novos pensamentos, tanto no campo científico quanto no

filosófico, os quais alçaram o homem para o centro das discussões. Nesse

contexto, Almir de Oliveira175 aponta que:

O humanismo renascentista procurou compreendê-lo (o homem) como um ser dotado de liberdade e dignidade próprias, finito e histórico, integrado na natureza e na sociedade, apto a conhecer o universo mediante a observação e a pesquisa, bem como a transformar o mundo. O racionalismo, a começar de Descartes, acentuou a valorização do indivíduo, afirmando a sua independência em relação à autoridade científica e à filosofia, pela ênfase que deu à investigação e à meditação.

A Idade Moderna foi marcada por notável ascendência do

pensamento jusnatural176, fonte inspiradora do Movimento Iluminista. Conforme

esclarecimento de Manoel Gonçalves Ferreira Filho177, a laicização do direito

173 SARLET ( 2007.a ). p. 45-46. 174OLIVEIRA, Almir de. Curso de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000. p. 107-108. Nesta época, a dignidade humana ganhou destaque em detrimento da regra segundo a qual o Direito era “ uma dádiva do rei ou do Estado”. Os princípios cristãos de igualdade, fraternidade e solidariedade se entrelaçavam, formando um imperativo normativo de respeito mútuo entre os homens. 175 Idem. Ibidem. p.111-112. A referida travessia da Idade Média para a Idade Moderna pode ser demarcada por dois marcos: no período medieval vigia o pensamento teocêntrico, ou seja, as normas vinham do “Divino”, já a fase moderna consagra a visão antropocêntrica, isto é, o indivíduo exsurge “como a firmação de suas liberdades e de seus direitos”, afirma o autor. 176 SARLET ( 2007.a ). p. 47. Defensores da tese dos direitos naturais inalienáveis do homem, além de Hugo Grócio, destacam-se Samuel Pufendorf, John Milton e Thomas Hobbes, aponta o autor. 177 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2007.

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natural é contribuição de Hugo Grócio, para quem certos direitos eram

inerentes à pessoa humana, independentemente de seu reconhecimento legal.

Em sentido um pouco diverso, Thomas Hobbes, malgrado defendesse a

existência dos referidos direitos, entendia que sua titularidade só encontrava

legitimidade no estado de natureza. A partir do momento em que o homem

resolveu abandonar tal estágio e optou por submeter-se a entidade estatal, tais

direitos deveriam ser disciplinados pelo soberano178.

No final do século XVIII, com a eclosão da Revolução Francesa,

escreveu-se nova página da história, materializando-se um processo moldado

por movimentos como o Iluminismo e o Renascentismo, sem esquecer a

insatisfação do povo francês com o sistema feudal. Para alguns autores179, tal

revolução representa o início da Idade Contemporânea; para outros180, no

entanto, tal fase tem como marco o período pós-primeira guerra mundial, a

partir do século XIX.

Divergências à parte, a verdade é que os séculos XVIII e XIX

foram marcados pelo individualismo, corolário do pensamento liberal, defendido

por pensadores como John Locke e Immanuel Kant, para os quais os direitos

naturais assumiam feições diversas: enquanto para John Locke181, a vida, a

liberdade e a propriedade compreendiam espécies, do gênero direitos naturais,

para Immanuel Kant182, o direito de liberdade consubstanciava um direito

natural que abarcava todos os demais direitos.

Aos poucos, no entanto, verificou-se que o individualismo per se

já não dava conta de manter o equilíbrio social, pois as desigualdades

materiais eram evidentes, especialmente após a I Guerra Mundial. Esse

processo agravou-se com o surgimento da Revolução Industrial, que ensejou o

aparecimento de situações de conflito, marcadamente pela desarmonia entre

178 SARLET ( 2007.a ). p. 47. 179 COSTA, Cássia Celina Paulo Moreira da. A Constitucionalização do Direito de Propriedade Privada. Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2003. p. 38. 180 Ver OLIVEIRA, Almir de. Ob. Cit. p.120. 181 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos. Tradução Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. p. 69. 182KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas: Edson Bini. São Paulo: Editora Edipro, 2003, p. 40. Ensina o filósofo: “a liberdade ( a independência de ser constrangido pela escolha alheia ), na medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo com uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes”.

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as demandas dos trabalhadores por seus direitos e os interesses

capitalistas183.

O século XX, em particular, foi marcado por “um construir” e,

paradoxalmente, por “um desconstruir”; isto é, ao mesmo tempo em que

emergiram novos significantes, como o trabalho industrial e o avanço

tecnológico, tornaram-se mais claras as desigualdades materiais, a pobreza e a

exclusão social - fenômenos que, além de vilipendiar a dignidade humana,

violavam os direitos básicos à vida digna, à segurança, à liberdade, ao bem

estar e o direito de sonhar e ser feliz.

Na seara da promoção e positivação dos direitos humanos, pode-

se apontar como marco histórico, a Carta Magna inglesa184, de 1215, a qual

consagrou alguns direitos-garantias como o habeas corpus, o devido processo

legal, a propriedade privada e o princípio da legalidade. Não obstante, a

questionável legitimidade da referida Constituição - pois, na verdade,

consubstanciou apenas a concretização dos interesses da burguesia -, ela

representa um capítulo da história do constitucionalismo inglês.

Outro documento que merece referência é o Código sueco

Magnus Erikson, de 1350, que limitava a conduta do rei, no sentido de que ele

não poderia obstar o livre exercício dos direitos do homem, sem prévio

processo legal, nem permitir a perda dos bens dos cidadãos em desacordo

com o Direito185. Vale mencionar, ainda, a Petition of Rights inglesa, de 1628, e

o Bill of Rights inglês, de1689186.

No século XVIII, três paradigmáticos documentos marcaram a era

dos direitos humanos: a Declaração da Independência dos Estados Unidos da

América, de 1776, que afirmava os ideais de democracia, calcados na vontade

do povo, bem como a natureza inalienável dos direitos humanos; a Declaração

de Direitos de Virgínia, de 1776, que proclamava o direito à liberdade e à

existência de direitos natos; e a Declaração dos Direitos do Homem e do

Cidadão francesa, de 1789, que consagrava a liberdade, a igualdade e a

183 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 119. 184 Ver SARLET, Ingo Wolfgang ( 2007.a ), para quem a Magna Carta de 1215, embora seja considerada “o mais importante documento da época”, a mesma não foi o primeiro diploma a disciplinar a matéria, pois, já nos séculos XII e XIII existiram “as Cartas de Franquia e os Forais outorgados pelos reis portugueses e espanhóis”. 185 OLIVEIRA. Ob. Cit. p. 111. 186 FERREIRA FILHO. Op. Cit. p. 12-13. Seguidos pelo Rule of Law , o qual, de certa forma, sintetiza os textos dos referidos documentos e das decisões dos Tribunais ingleses.

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preservação de certos direitos naturais como: “liberdade, propriedade,

segurança e resistência à opressão etc187”.

Na seqüência, no século XIX, merece destaque a evolução dos

direitos humanos a partir da Constituição mexicana, de 1917 e da Constituição

alemã de Weimar, de 1919, visto que ambas consagraram um capítulo para

agasalhar tais direitos.

A iniciativa foi seguida por diversos Estados. Nesse passo, cabe,

ainda, realçar a importância, em termos de promoção universal188 dos direitos

humanos, a Declaração Universal de Direitos do Homem da ONU, de 1948; a

Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, de 1948 (OEA); a

Convenção Européia de Direitos do Homem, de 1950; o Pacto Internacional de

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional de Direitos

Civis e Políticos ( ONU, ambos de 1966 ).

Outro ponto referente aos direitos humanos fundamentais

relaciona-se às suas diversas nomenclaturas ( apresentadas neste trabalho de

forma exemplificativa ), vez que a doutrina é dissonante não somente quanto

aos termos, mas também no tocante ao seu conteúdo. Embora, em regra, a

designação de um instituto não tenha muita importância para demonstrar seu

conteúdo, no que toca aos referidos direitos, os estudiosos do tema têm

apontado nuances que justificam as diferentes expressões propostas189.

Nessa linha de pensamento, cumpre sublinhar a análise de Almir

de Oliveira190, ao ressaltar que a denominação “Direitos do Homem” é a mais

remota, com fundamento na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

francesa, de 1789, como documento propagador. O referido doutrinador

acrescenta que tal expressão é criticada por alguns estudiosos191, que a

187 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 117-118. 188Cumpre de pronto destacar que, embora não se objetive, neste trabalho, abordar a discussão acerca da idéia de universalização dos direitos humanos fundamentais, cabe menção à obra de RUBIO, David Sánches. Repensar Derechos Humanos: De la anesthesia a la sinestesia. Sevilla. Espanha: Editora Mad, S.L. 2007, p. 84-100, na qual o autor espanhol aborda o tema a partir de três perspectivas: o poder e o aparente duplo interesse; a globalização e a universalidade; e a inversão ideológica e negação de direitos. 189 No presente estudo, optou-se pela expressão “Direitos Humanos Fundamentais”, inspirada na doutrina de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a qual consubstancia as idéias de direitos inerentes ao ser humano, e a sua fundamentalidade corolário da dignidade da pessoa humana. Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p.20. 190 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 48. 191 Nesse sentido ver PECES-BARBA e TOBEÑAS 1970 apud OLIVEIRA., 2000. p. 48.

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consideram redundante, na medida em que todos os direitos são, ainda que

indiretamente, dirigidos ao homem.

Sob esse enfoque, é pertinente frisar que a Declaração francesa

dos Direitos do Homem e do Cidadão distingue os direitos do homem dos

direitos do cidadão: quando se fala em cidadão, identifica-se aquele sujeito que

faz parte da sociedade, cujas regras norteiam seu comportamento, ao passo

que, quando se faz referência ao homem, confere-se relevo ao indivíduo que

preexiste à sociedade. Com viés jusnaturalista, tal concepção consagra os

direitos do homem como naturais e inalienáveis e os direitos do cidadão como

positivados e garantidos pelo ordenamento jurídico.

“Direitos Humanos” é outra expressão comumente adotada por

vários autores192, bem como pela Declaração Universal dos Direitos Humanos,

de 1948, da ONU. O Constituinte de 1988, a despeito de utilizar a expressão

Direitos e Garantias Fundamentais, no Título II, também emprega o termo

direitos humanos em mais de um momento, conforme se depreende dos

artigos 4º, inciso II, 5º, par. 3º, e 109, inciso V.

José Joaquim Gomes Canotilho193, Ingo Wolfgang Sarlet194 e

Daniel Sarmento195 manifestam preferência pela expressão “Direitos

Fundamentais” em comparação com qualquer outra, pois reconhecem que a

fundamentalidade, não apenas adjetiva o substantivo “direito”, mas também

sinaliza maior grau de compromisso por parte do Estado que o positivou.

Vicente de Paulo Barreto196 também adota tal expressão e a desdobra em duas

acepções: “ uma para designar certos direitos que reconhecem e garantem a

192 A título de exemplo tem-se PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. São Paulo: Editora Saraiva, 2006. p. 7. e NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Política Criminal e Direitos Humanos: Papel da Acusação Pública no Processo Penal Democrático. ( no prelo ). O autor define os direitos humanos como “um conjunto de direitos e garantias atribuíveis à generalidade das pessoas, pela sua condição humana”. 193CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 4. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1986. p. 438-439. 194 SARLET ( 2007. a ). p. 33 et seq. O autor conceitua Direitos Fundamentais como “todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância ( fundamentalidade em sentido material ), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituído ( fundamentalidade formal ), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal ( aqui considerada a abertura material do catálogo )”. O art. 5º, par. 2 º da CR/88, revela a amplitude material dos direitos humanos fundamentais, agasalhando direitos não positivados, bem como os direitos espalhados pelo corpo do texto da Constituição e nos Tratados Internacionais. 195 SARMENTO ( 2006 ). p. 3 et seq. 196 BARRETO, Vicente de Paulo. Reflexões Sobre os Direitos Sociais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. p. 123.

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qualidade de pessoa ao ser humano. É o sentido filosófico da expressão.” A

segunda acepção "corresponde aos direitos humanos positivados”. Numa

análise crítica ao termo, Almir de Oliveira197 assevera que o mesmo não é

capaz de refletir a realidade, pois o homem não seria o único destinatário de

tais direitos, vez que o Estado também pode ser titular de direitos

fundamentais. De fato, parte respeitável da doutrina constitucionalista198

entende que os direitos fundamentais abarcam os direitos humanos positivados

nas Constituições dos Estados, ao passo que a expressão direitos humanos é

amplamente reconhecida na sociedade internacional.

Segundo o entendimento de Ricardo Lobo Torres199, as

expressões “direitos humanos”, “direitos naturais”, “direitos da liberdade” e

“direitos fundamentais” se equiparam, ainda que seja possível vislumbrar

algumas peculiaridades que as distinguem; o certo é que se referem a direitos

inerentes à essência humana. Argumenta, ainda, o pesquisador em tela, que

os direitos econômicos e sociais não configuram direitos humanos, pois

dependem de prestações positivas do Estado e da vontade do legislador, o que

lhes retira o “traço fundamental dos direitos humanos, que é o valer

independentemente da lei ordinária”.

A Constituição de 1988, malgrado nomear o Título II de “Direitos e

Garantias Fundamentais”, conforme exposto anteriormente, utiliza

nomenclaturas variadas ao longo do corpo textual, ao se referir a tais direitos,

conforme se depreende do art. 4º, inciso II; do art. 5º, incisos XLI e LXXI, e par.

3º; art. 7º do ADCT; do art. 34, inciso VII, alínea b; do art. 60, par.4º, inciso IV;

e do art. 109, inciso V200. Segundo lições de Ingo Wolfgang Sarlet201, a

197 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 52-53. Pontua, ainda, o autor que existe, desde 1949, na ONU, um projeto de Declaração de Direitos dos Estados, entre os quais estão: “independência, igualdade jurídica, jurisdição sobre o seu territótio e legítima defesa”. 198SARLET ( 2007.a ). p. 38. Nesse sentido, aponta o autor, ressaltando a doutrina de Otfried Höffe, que a diferença básica entre direitos humanos e direitos fundamentais repousa no fato de que aqueles, apesar de ínsitos às pessoas, antes de positivados representam ‘apenas uma espécie de moral jurídica universal’. Os direitos fundamentais, a seu turno, uma vez açambarcados pelo ordenamento jurídico, passam a integrar a seara jurídica dos membros dos respectivos Estados. 199TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Vol. III. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000. p. 9-11. Ensina o autor que os direitos individuais, expressão consagrada na França e nos Estados Unidos, pode ser traduzida em direitos humanos ou fundamentais ( esta comumente usada pelos doutrinadores alemães ), bem como em direitos da liberdade. 200 Para ilustrar: O art. 4º, inciso II, contempla o termo “direitos humanos” como um dos princípios que norteiam as relações do Brasil com a sociedade internacional; o art. 5º, inciso LXXI, ao tratar do Mandado de Injunção denomina os direitos humanos fundamentais de “direitos e liberdades constitucionais”; o art. 34, inciso VII, alínea b, ao discriminar os denominados princípios constitucionais sensíveis, utiliza a expressão “direitos da pessoa humana”; o art. 60, par. 4º, inciso IV, ao cuidar das cláusulas pétreas, os denomina de “direitos e garantias individuais”; e o art. 109, inciso V-A, ao tratar da competência dos juizes

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expressão “Direitos e Garantias Fundamentais”, insculpida no Título II, da Carta

de 1988, abarca todas as espécies de direitos fundamentais, desde os

individuais até os sociais e coletivos.

Cabe, ainda, trazer à lume os chamados estágios que os direitos

humanos fundamentais têm percorrido ao longo do seu processo evolutivo,

como ocorre na vida em relação.Tal processo202 deu margem ao surgimento da

construção doutrinária que classifica os direitos em dimensões (ou gerações

para alguns doutrinadores)203.

Classicamente, adotaram-se três dimensões de direitos humanos

fundamentais204, não obstante, alguns doutrinadores205 defenderem maior

número.

A primeira corresponde aos direitos civis e políticos, os quais

surgiram no século XVIII, como direitos de defesa do indivíduo em face do

Estado: os indivíduos exigiam, na verdade, comportamento “negativo” da

autoridade pública.

A segunda geração compreende os direitos econômicos, sociais e

culturais e alcançaram espaço especialmente no século XIX, em particular,

como conseqüência do desenvolvimento industrial e de suas graves mazelas,

advindas das constantes violações aos direitos humanos fundamentais e das

desigualdades sociais.

Nesse contexto, muitos movimentos sociais propugnavam que os

direitos à liberdade e à igualdade, em seu sentido meramente formal, não eram

mais suficientes para garantir a concretização desses e de outros direitos.

Desta forma, passou-se a exigir conduta ativa do Estado; ou seja, o ente

público precisava desenvolver políticas para, senão erradicar, pelo menos

amenizar as injustiças sociais. Abordando o tema, Ingo Wolfgang Sarlet206

federais para processar e julgar as causas que envolvem violação a tais direitos, se refere ao termo “direitos humanos”. 201 SARLET ( 2007 ). p. 38. 202 Idem. Ibidem. p. 54. O autor critica a expressão “gerações”, pois, segundo ele, dá a equivocada idéia de que os direitos humanos fundamentais se substituem ao longo do tempo. Face a isso opta pela denominação “dimensões”, vez que esta dá a idéia de complementariedade, ao revés de substituição, como a primeira denota. 203 Ver MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2005. p. 26. 204 SARLET ( 2007.a ). p. 58-60. 205LIMA NETO, Francisco Vieira. Direitos Humanos de 4ª Geração. Disponível em: < www.dhnet.org.br>. Pesquisa realizada em 09/09/2007. Segundo o autor, tal geração compreenderia os direitos ligados ao patrimônio genético. 206SARLET ( 2007.a ). p. 58.

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esclarece que “não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o

Estado, e sim liberdade por intermédio do Estado”. Saliente-se que os

chamados direitos de segunda dimensão (econômicos, sociais e culturais) não

se circunscrevem às prestações positivas, mas alcançam igualmente as

“liberdades sociais”, como o direito de greve, a liberdade sindical, assevera o

mencionado autor. Segundo suas palavras: “os Direitos Sociais podem ser

considerados uma densificação do princípio da justiça social, além de

corresponderem à reivindicação das classes menos favorecidas”. Argumenta,

ainda, o pensador pátrio207:

Os direitos fundamentais podem ser considerados simultaneamente pressuposto, garantia e instrumento do princípio democrático da autodeterminação do povo por intermédio de cada indivíduo, mediante o reconhecimento do direito de igualdade ( perante a lei e de oportunidades ), de um espaço de liberdade real, bem como por meio da outorga do direito à participação ( com liberdade e igualdade ), na conformação da comunidade e do processo político (...). A liberdade de participação política do cidadão, como possibilidade de intervenção no processo decisório e, em decorrência, do exercício de efetivas atribuições inerentes à soberania ( direito de voto, igual acesso aos cargos públicos etc ), constitui, a toda evidência, complemento indispensável das demais liberdades.

Diante dos esclarecimentos do referido autor, é possível concluir

que a democracia participativa, escorada nos Direitos Humanos Fundamentais,

pode ser um próspero caminho no sentido de garantir “voz ativa” não somente

àqueles que já conhecem os meios disponíveis para fazer valer seus direitos,

mas também àquela parcela da população considerada minoria. No entanto,

para que tal assertiva ascenda ao mundo fático requer, além de um Estado

com governantes sérios, a conscientização dos cidadãos de que os Direitos

Humanos Fundamentais não são apenas elucubrações teóricas, mas valores

que dependem, para sua efetividade, da existência de uma sociedade forte,

madura e participativa.

207 SARLET ( 2007.a ). p. 72-73.

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Daniel Sarmento208 aponta para outra perspectiva dos direitos

humanos fundamentais, quando faz referência a sua dimensão objetiva, no

sentido de ampliar os efeitos dos mesmos. O mencionado autor elucida que:

A dimensão objetiva liga-se a uma perspectiva comunitária dos direitos humanos, que nos incita a agir em sua defesa, não só através dos instrumentos processuais pertinentes, mas também no espaço público, através de mobilizações sociais (...). Afirma-se que a dimensão objetiva expande os direitos fundamentais para o âmbito das relações privadas, permitindo que estes transcendam o domínio das relações entre cidadão e Estado.

A dimensão objetiva dos direitos humanos fundamentais, a que

alude o mencionado autor, está intrinsecamente ligada ao tipo de Estado que a

sociedade delineia e, por conseguinte, à forma como tais direitos são

efetivamente respeitados e concretizados no plano da realidade. No Estado

liberal, por exemplo, privilegiava-se a liberdade individual; havia uma distância

entre Estado e sociedade209, ao passo que, no Estado Social, com influência da

doutrina social da Igreja Católica, passou-se a admitir a participação do Poder

Público nas “causas privadas”, com o objetivo de amenizar as desigualdades

materiais.

Nesse sentido, vale repisar a importância e o papel impositivo da

Constituição Federal de 1988, uma vez que suas normas devem incidir sobre

todas as demais de caráter infraconstitucional, porquanto, como preleciona

Daniel Sarmento210, “a Constituição representa um limite para o legislador

privado, o que importa na inconstitucionalidade das normas editadas em

contrariedade a ela”, e os direitos humanos fundamentais representam o

balizamento das condutas do Estado e dos particulares.

Nesse contexto, torna-se necessário analisar melhor certas

normas que, diretamente, violam valores e direitos humanos fundamentais,

como é o caso da regra prevista no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, que

admite a penhora do bem de família do fiador, afrontando o direito humano

fundamental à moradia, dentre outros valores, conforme será demonstrado no

Título II, capítulo I, deste trabalho.

208 SARMENTO ( 2006 ) p. 105-140. 209 Idem. Ibidem. p. 3-17. 210 Idem. Ibidem. p. 77-78.

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Feitas essas breves considerações acerca da teoria dos direitos

humanos fundamentais, analisar-se-á, no próximo tópico, o direito humano

fundamental de propriedade imóvel a partir de sua dupla face.

II. 2. O Direito de Propriedade e sua dúplice dimensão: autônoma e acessória

Neste tópico objetiva-se analisar alguns aspectos do direito de

propriedade, a fim de compreender a sua dinâmica e a sua inter-relação com o

direito humano fundamental à moradia e com a garantia do patrimônio mínimo,

consubstanciado no bem de família legal.

Para melhor compreensão do instituto da propriedade, far-se-á

rápida incursão no direito romano antigo, nas Idades Média e Moderna, até

chegar a atual fase contemporânea, a qual culmina com a Revolução Francesa

de 1789211.

Cássia Celina Paulo Moreira da Costa212 discorre sobre o tema e

esclarece que a propriedade, no direito romano antigo, se desdobrava em

quatro espécies, num contexto histórico, dividido basicamente em três fases

distintas, assim resumidas:

A primeira compreende o denominado direito antigo ou pré-

clássico, situado nos anos de 754 a.C., aproximadamente, a 149 e 126 a.C.

Nessa etapa, a única espécie de propriedade de que se tem notícia é a

quiritária213, que abarcava tanto o bem móvel, quanto o imóvel. A tutela do

Estado a esta espécie abrangia, inclusive, a imunidade tributária, pois, qualquer

tributo que incidisse sobre ela poderia prejudicar o pater familiae.

A segunda fase do período histórico do direito romano antigo

caracteriza-se como direito clássico e compreende o final da fase

anteriormente mencionada até o ano 305 d.C. Nesse período, além da

211 COSTA, Cássia Celina Paulo Moreira da. A Constitucionalização do Direito de Propriedade Privada. Rio de Janeiro: Editora América Jurídica, 2003. p. 29. 212 Idem. Ibidem. p. 5 et seq. 213 Idem. Ibidem. Segundo a autora, a propriedade quiritária decorria do status civitatis, o titular era um cidadão romano, um pater familiae ( somente os patrícios eram cidadãos romanos). “A aquisição da propriedade quiritária imóvel ocorreu inicialmente por volta de 500 a.C., por meio da concessão, de caráter precário, pelo Estado romano, do ager publicus ( terras públicas ).”. Depois dessa concessão, a transferência só ocorria por herança, não era admitida a convenção. p. 5-6.

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propriedade quiritária, surgiram três espécies do instituto: a propriedade

bonitária ( também denominada de pretoriana ); a provincial; e a peregrina214.

Por fim, a terceira fase do referido período antigo romano é

denominada de pós-clássica ou romano helênico e é marcada pela unificação

de todas as espécies do instituto, resultando numa única categoria de

propriedade privada, cuja transferência se dava pela traditio e se sujeitava à

cobrança de tributos que sobre ela incidiam, além de algumas restrições

impostas pelo poder público.

Nesse passo, chega-se à Idade Média, período no qual o conceito

de propriedade começou a ser desenhado pelos estudiosos do Direito, com a

Escola dos Glosadores que, malgrado não conseguirem definir a propriedade,

desenvolveram a distinção entre, o que chamavam, dominium proprietatis

(domínio dos proprietários ) e dominium imperii (domínio do príncipe). Ainda, a

idéia de domínio direto e domínio útil surgiu a partir da contribuição dos

pensadores desta escola215.

Na verdade, a primeira definição de propriedade surgiu com a

Escola dos Comentaristas, que influenciou todo o direito do ocidente, como

assevera San Tiago Dantas216, quando aponta o conceito do instituto proposto

por Bártolo: “dominium est ius de re corporalis perfecta disponendi nisi lex

prohibeatur”; isto é, “domínio é o direito de dispor de um modo completo das

coisas corpóreas, salvo naquilo que for proibido por lei”.

Com a superação do modelo medieval e conseqüente influxo do

movimento renascentista ( entre os séculos XV e XVI ), surgiu a Escola do

214 COSTA. Op. Cit. p. 8-9. Diz a autora, “a propriedade bonitária ou pretoriana surgiu quando o pretor passou a intervir, garantindo proteção àquele que adquiria uma res mancipi, recebendo-a do vendedor sem o formalismo necessário, mas, tão-somente, por meio da traditio, tradição ( entrega do bem sem formalidades )”. A provincial, por sua vez, era adstrtita aos bens imóveis localizados nas províncias romanas, cujo proprietário do solo era o Estado romano. Os particulares, a seu turno, utilizavam a terra para o plantio, não tendo o domínio sobre ela. Informa a autora, que a situação desses particulares era a de possuidores. Ainda, a terceira espécie de propriedade exsurgente no período do direito clássico foi a peregrina, com fulcro no ius gentium, passível de ser adquirida por estrangeiro livre. 215 Idem. Ibidem. p. 104-105 . Ensina a autora que: O domínio direto “ é aquele em que o proprietário não reconhece um direito acima do seu. Já o domínio útil “é de todo aquele que tem um direito real amplo, contanto que, acima dele, exista um outro titular, ao qual rende uma vassalagem qualquer”. 216 DANTAS. Op. Cit. p. 109-109. O autor chama a atenção para os elementos que compõem a definição proposta por Bártolo: “ O primeiro: a coisa corpórea, como objeto necessário do domínio. E essa foi uma idéia que se estabeleceu definitivamente na doutrina do direito das coisas, só vindo a sofrer contestação quando, pela concepção da chamada propriedade intelectual; o segundo elemento: é a expressão ius disponendi, empregada de forma bastante ampla, abrangendo não só os atos que hoje se chamam atos de disposição, atos que põem fim ao direito, como abrangendo também os atos de simples utilização, o uso e o gozo. Ele exprimia com ius disponendi toda a senhoria sobre a coisa; e o terceiro elemento: compreende a expressão nisi lex prohibeatur, que retrata a idéia de que a essência da propriedade não se compromete com as limitações criadas por lei”.

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Direito Natural, que absorveu o conceito de propriedade proposto por Bártolo,

incluindo elementos novos, como o poder de reivindicar a coisa. Com efeito, os

pensadores desta escola ( dentre eles está Grotius ) defendiam a idéia de que

a limitação da propriedade não seria de ordem legal, mas de cunho racional,

isto é, “em lugar das limitações legais, para as quais acenava o jurisconsulto

medieval, surge, agora, uma limitação de ordem racionalista: os limites que a

própria razão jurídica impõe àquela faculdade”, leciona San Tiago Dantas217.

Na Idade Moderna, inaugurou-se novo momento, o capitalismo

aflorou com o desenvolvimento industrial e com o surgimento “de impérios

financeiros”218. A época foi marcada também pelo movimento denominado de

Iluminismo, capitaneado por pensadores como o inglês John Locke e o francês

François Marie Voltaire, que defendiam os ideais do individualismo, a

propriedade como direito natural e a liberdade como um atributo da pessoa.

Segundo John Locke219, a noção de propriedade era vista sob

duas perspectivas: na primeira, o instituto consubstanciava-se na vida, na

liberdade e em tudo aquilo que o homem adquirisse com seu trabalho; na

segunda perspectiva, a propriedade consistia em forma de garantia da

liberdade.

Ainda nesse período, merece destaque o pensamento do alemão

Immanuel Kant220que, ao discorrer sobre a propriedade, defendia a idéia de

que a aquisição de um bem no estado de natureza era provisória, somente

adquirindo o caráter da definitividade com a lei, criada pelo Estado. Cumpre

ressaltar que, como John Locke e François M. Voltaire, o mencionado autor

também alçava a propriedade à espécie de direito natural, conquanto

discordava da teoria do trabalho, eis que defendia a idéia de que o referido

instituto dependia do reconhecimento normativo do Estado.

Nessa trilha, chega-se à última parte do marco proposto para o

presente estudo, a Revolução Francesa de 1789, cujos efeitos se espraiaram

217 DANTAS. Op. Cit. p. 110-111. Aponta o autor que a época era do individualismo jurídico, em que a autonomia da vontade imperava, e o sujeito titular do direito de propriedade era o único competente para determinar a limitação sobre a coisa, por meio do critério da racionalidade. 218COSTA. Op. Cit. p. 21-22. 219 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos. Tradução Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2001. p.96.

220KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas Edson Bini. São Paulo: Editora Edipro, 2003. p. 109-115.

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para além do território francês, influenciando muitos ordenamentos jurídicos e

diversos segmentos da sociedade, alcançando, inclusive, o instituto da

propriedade, que passou a ter caráter absoluto e sacramental,221 além dos

atributos de inviolabilidade, exclusividade e perpetuidade, conforme se

depreende da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,

seguida pelo Código Civil de Napoleão, de 1804.

Silvio Rodrigues222 elucida que a Revolução Francesa deu novo

sentido à propriedade, desgarrando-se “da concepção medieval, dentro da qual

o domínio se encontrava repartido entre várias pessoas, sob o nome de

domínio iminente do Estado, domínio direto do senhor e domínio útil do

vassalo”; adotando a idéia unitária de propriedade, mais ajustada à concepção

romana, “em que o proprietário é considerado senhor único e exclusivo de sua

terra”.

Algumas teorias tentam explicar a natureza do direito de

propriedade. Cássia Celina Paulo Moreira da Costa223 aponta as principais

abordagens teóricas, como se explicita a seguir:

Teoria da Ocupação, sustentada por Grócio, é a que defende o modo de aquisição do domínio ser sempre originário, por conceber que a legitimidade do domínio estaria sempre nas mãos daquele que, em primeiro lugar ocupasse materialmente o bem(...); Teoria do Trabalho, defendida por John Locke: (...) não se justifica o domínio dos bens pelo homem em razão da sua simples apropriação, mas pelo exercício da transformação ou elaboração da matéria bruta; Teoria da Especificação, muitas vezes tratada pelos doutrinadores civilistas como sinônima da do trabalho, a propriedade se justifica na obtenção de espécie nova pelo especificador, quando em utilização de matéria-prima alheia; Teoria da Natureza Humana, propagada por Planiol, Ripert, e Gustavo Tepedino, (...) embasa-se na defesa de ser a propriedade característica natural do homem, a tal ponto que vem a ser supedâneo a sua existência e, ainda, pressuposto de sua liberdade;

221 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito de Superfície. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. O móvel dos cidadãos franceses era a garantia da liberdade e da igualdade dos homens, e para isso era necessário que a propriedade assumisse feições extremadas. p. 172 et seq. 222RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Direito das Coisas. Vol. 5. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. p.79-80. 223 COSTA. Op. Cit. p.60-62.

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Teoria Individualista ou da Personalidade, estatui a necessidade da constante utilização da propriedade (...). Para mantença da propriedade, tal teoria impunha a necessidade do estabelecimento dum estado de espírito, o que os romanos denominavam affectio ou projeção da extensão da personalidade do proprietário no bem de sua propriedade; Teoria Positivista ou da Lei, promovida por Montesquieu, Hobbes, Mirabeau, Benjamin Constant e Bentham, alicerça-se no entendimento de que a lei é o direito legislado, o fundamento de existência da propriedade; e a Teoria da Função Social, defendida por Josserand, Duguit, Proudhon e outros, posiciona-se no sentido de que a propriedade não é um direito, mas sim uma função voltada a atender aos anseios públicos e coletivos.

É louvável a contribuição de cada uma das mencionadas escolas,

dentro de seu contexto. Entretanto, o direito contemporâneo, alicerçado na

visão constitucionalista, que, entre outros princípios preconiza a dignidade da

pessoa humana, apóia-se na Teoria da Função Social, como justificação e

limite para a propriedade privada. Segundo essa orientação, o caráter absoluto

da propriedade, como decorrência do individualismo extremado, aos poucos,

foi relativizado, especialmente, a partir da Constituição alemã de Weimar, de

1919, a qual passou a proclamar uma ordem econômica e social, que atrelava

a propriedade à finalidade social224.

Na verdade, o conceito de propriedade225 vem se transmudando

ao longo do tempo, e de acordo com o espaço, influenciado por fatores de

diversas ordens226, tais como: a filosófica, a econômica, a sociológica227, a

224 FACHIN, Luiz Edson. A Função Social da Posse e a Propriedade Contemporânea: uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris, 1988. p. 14-20. 225 TORRES, Marcos A. de Azevedo. A Propriedade e a Posse: um confronto em torno da Função Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Na perspectiva da pluralidade das formas de propriedade, argumenta o autor: “para bem compreender a questão relativa à funcionalização do direito de propriedade, deve ser considerado como premissa metodológica que não se pode mais ter como paradigma um conceito unitário que regule o direito de propriedade sobre os diversos bens que lhe servem de objeto”. De fato, a multiplicidade de institutos proprietários decorre da própria dinâmica do instituto, levando a considerar a variedade de bens disponíveis, com pluralidade de fins, tais como: a propriedade intelectual; a propriedade imóvel; os bens móveis consumíveis; e a propriedade industrial. Face a essa realidade, a propriedade precisa ser analisada em consonância com sua finalidade e o contexto no qual está inserida. 226 BEZNOS, Clóvis. Desapropriação em Nome da Política Urbana. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257/2001. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006. p. 118. 227CONSTRUTORA NORBERTO ODEBRECT. As interconexões bioceânicas da integração regional. Revista DEP. Brasilia: nº 5, p. 193-198, jan. a mar. 2007. No ano de 2000 reuniram-se em Brasília alguns chefes de Estado, com o propósito de desenvolver projetos de infra-estrutura regional Sul-americana. Nesta época, a construtora brasileira Odebrecht passou a desenvolver três dos projetos apresentados. Entre eles, estava a construção de moderna rodovia no território peruano próximo a divisa

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política e até a religiosa. É nesse complexo contexto que a teoria da função

social da propriedade exsurge como novo paradigma à concepção tradicional

de propriedade, calcada no ideário individualista e absoluto. Luiz Edson

Fachin228 trata do tema e assinala que “o grau de complexidade hoje alcançado

pelo instituto da propriedade deriva indisfarçavelmente do grau de

complexidade das relações sociais”.

Nessa ordem de valores, exige-se da propriedade contemporânea

uma utilidade a partir de seu significado, seja como direito instrumental para

garantir a efetividade do direito humano fundamental à moradia, seja como

função social, norma diretriz da conduta de seus titulares. Dito de outra forma,

a propriedade deve, sempre, visar aos fins sociais, tanto do titular, quanto da

coletividade, naquilo que lhe for cabível. Nesse diapasão, José Afonso da

Silva229 ensina que “a função social é elemento da estrutura e do regime

jurídico da propriedade; é, pois, princípio ordenador da propriedade privada;

incide no conteúdo do direito de propriedade; impõe-lhe novo conceito” e

acrescenta que a “função social da propriedade não se confunde com os

sistemas de limitação da propriedade”, na medida em que as limitações são

externas e decorrem do próprio exercício do instituto.

É interessante ressaltar que a concepção de função social

atrelada ao direito de propriedade não é tão nova como pode parecer. Lèon

Duguit230, influenciado pelas idéias de Augusto Comte, já em 1850 propugnava

a propriedade não como direito, mas como função social, conforme se

depreende do fragmento textual abaixo transcrito:

Pero la propriedad no es un derecho; es una función social. El proprietario, es decir, el poseedor de una riqueza, tiene, por el hecho de poseer esta riqueza, una función social que cumplir; mientras cumple esta misión sus actos de proprietario están protegidos. Si no la cumple o la cumple mal, si por ejemplo no

com o Brasil ( Rodovia Inter-oceânica Sul ) . Obras deste tipo sempre enfrentam desafios e obstáculos de diversas ordens. No caso em tela não foi diferente, a começar por peculiar questão, envolvendo o direito de propriedade. Conforme se extrai de excerto do artigo aqui mencionado: “ (...) Ali ( Ccatca e Ocongate ) vivem comunidades que cultivam hábitos, tradições e rituais anteriores à chegada dos colonizadores espanhóis. Falam o quíchua, a língua geral do antigo império inca, e acreditam, como seus ancestrais, que não é a terra que pertence ao morador, e, sim, o contrário- por isso, julgam necessário fazer-lhe oferendas para retribuir o que lhes concede. Montanhas, por exemplo, são sagradas, e escavá-las para tirar pedras que se destinem à obra pode ser interpretado como a invasão de uma catedral”. 228 FACHIN. ( 1988 ). p.18. 229 SILVA. Op. Cit. p. 276-285. 230 DUGUIT, Lèon. Las Transformaciones Generales del Derecho Privado, desde el Código de Napoleón. 2. ed. Tradução Carlos G. Posada. Espanha: Livraria Espanola y Estranjera, 1920. p. 35-40.

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cultiva su tierra o deja arruinarse su casa, la intervención de los gobernantes es legítima para obligarle a cumprir su función social de proprietario, que consiste en assegurar el empleo de las riquezas que posee conforme a su destino.

No entendimento do referido pensador, a propriedade, em si, não

traduz direito subjetivo; na verdade, constitui função-dever, o que exige do

proprietário o cumprimento de certos deveres, no sentido de dar ao bem

finalidade compatível com o princípio do desenvolvimento econômico-social.

Nessa linha de preleção, merece ainda relevo a contribuição bem

mais recente de Eros Roberto Grau231, que distingue a propriedade com

conteúdo de função social, da propriedade dotada de função individual. Nessa

linha de compreensão, a propriedade prevista no art. 5°, inciso XXII, da Carta

Magna de 1988, tem status de direito individual e seu conteúdo é de função

individual, ao passo que a propriedade de que trata o inciso subseqüente do

artigo supracitado, não se confunde com a anterior, vez que, nesse caso, o

constituinte lhe confere função social, da mesma forma que o faz no art. 170,

inciso III, quando erige a propriedade à condição de princípio da ordem

econômica. Conforme palavras textuais do magistrado: “o princípio da função

social impõe ao proprietário – ou a quem detém o poder de controle, na

empresa – o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não, apenas, de não

exercer em prejuízo de outrem”232, e acrescenta:

enquanto instrumento a garantir a subsistência individual e familiar – a dignidade da pessoa humana, pois- a propriedade consiste em um direito individual e, iniludivelmente, cumpre função individual (...). A essa propriedade não é imputável função social; apenas os abusos cometidos no seu exercício encontram limitação, adequada, nas disposições que implementam o chamado poder de polícia estatal.

Das lições do mencionado jurista, é possível enxergar com

bastante nitidez a propriedade a partir de duas perspectivas: da função social;

isto é, quando o titular a utiliza em seu benefício e no da coletividade, para fins,

portanto, não egoísticos; por outro lado, com caráter individual, quando serve

231 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 8. ed. rev. atual. São Paulo: Editora Malheiros, 2003. p. 209-211. 232 Idem. Ibidem. Cumpre destacar, ainda, que para Eros Roberto Grau, a função social da propriedade se desdobra em obrigação de fazer e de não fazer. p. 213.

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de base para suprir as necessidades essenciais do titular e de sua família,

como o bem imóvel ( consubstanciado no bem de família ), que lhes servirá de

habitação.

Pietro Perlingieri233, a seu turno, defende a função social da

propriedade como fundamento para a elaboração de normas restritivas a seu

uso, conforme se extrai de sua doutrina:

em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa, o conteúdo da função social assume um papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento.

Nesse universo de considerações, destaca-se o princípio da

função social como vetor axiológico do regime patrimonial e,

concomitantemente, como regra direcionadora para os proprietários e para o

poder público. Desta feita, aos titulares do direito de propriedade cabe o dever

de exercê-lo sem abusos e visando ao bem coletivo. O Estado, a seu turno,

deve utilizar a referida norma-princípio como meio de controle do espaço

urbano e como diretriz para imposições de limites de seu uso.

Nessa toada, Francisco Amaral234 aponta que, na sociedade

contemporânea - onde o “social” ganha espaço em detrimento do

individualismo, e o Estado intervém de maneira mais acentuada na economia,

como meio de garantir certo equilíbrio nas relações sociais - expressões como

a “função social da propriedade” e o “abuso de direito”235 caracterizam a ponte

que separa o Estado Liberal do Estado Social. Na verdade, a noção de direito

de propriedade, com amparo na Revolução Francesa, de 1789, e sedimentada

na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e no Código

Civil francês, de 1804 ( o qual influenciou muitos ordenamentos jurídicos,

233PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3.ed. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007. p. 226-230. Segundo o autor, a função social da propriedade também se realiza na “casa de habitação e nos bens que ela contém, na oficina artesã e na propriedade do pequeno produtor”. 234 AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Renovar, 2000. p. 144-145. 235 AMARAL. Op. Cit. . 140. Diz o autor: “o abuso de direito resulta da concepção segundo a qual os direitos subjetivos não podem ser exercidos de modo a prejudicar terceiros”. Tal teoria aplica-se tanto aos direitos patrimoniais quanto aos extrapatrimoniais. O autor exemplifica estes últimos, com o exercício do poder familiar.

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inclusive o brasileiro), está perdendo lastro para uma nova concepção de

direito de propriedade, calcado na função social.

Nesse contexto, cumpre ainda acentuar que a Constituição

Federal de 1988 reconhece como direito humano fundamental, tanto o direito

de propriedade quanto o direito à moradia: o primeiro previsto no art. 5º e no

art. 170, enquanto o segundo está, expressamente, consagrado no art. 6º. No

que toca à dimensão materialmente constitucional do direito de propriedade,

algumas considerações merecem ser tecidas.

Vale repisar que a propriedade contemporânea traz em seu

conteúdo a função social, o que a distancia da idéia clássica de propriedade

como instrumento de realização exclusiva do seu titular. Novos paradigmas,

como a dignidade da pessoa humana, a repersonalização do Direito (não

apenas do Direito Civil, mas de todo o sistema jurídico) e o princípio da

solidariedade, demarcam o referido direito, não apenas como privilégio de o

proprietário usar, gozar e dispor do bem, da maneira que lhe aprouver; ou seja,

tal instituto, hoje, deve, além de atender às necessidades de seu titular,

observar os interesses da coletividade. É preciso, de pronto, reconhecer a

necessidade de, num processo contínuo de hermenêutica, interpretar os

institutos jurídicos a partir da análise da realidade fática, sob pena de se criar

um hiato entre o Direito e a Justiça236.

Nessa linha de intelecção defende-se que a propriedade imóvel

exsurge como direito humano materialmente constitucional, quando preenche

alguns pressupostos, tais como: 1. cumpre a sua função social, consoante já

dito; e 2. serve como instrumento de concretização do direito humano

fundamental à moradia. É sobre este segundo aspecto que se dedica atenção

na análise a seguir.

Primeiramente, cabem algumas linhas acerca da ponderação de

interesses, ou harmonização de aparente conflito entre direitos, bem como da

idéia de fundamentalidade, a partir de seus diversos graus. Como ensina

236NASCIMENTO, Rogério José Bento Soares do. Notas de aula. Disciplina Teoria da Constituição do Curso de Mestrado de Direito Público e Evolução Social. Dia 20/04/2007. UNESA. O professor aponta que a justiça pode ser vista sob vários aspectos: 1. absoluto; 2. relativo; 3. material ( intrínseco ); e 4) procedimental ( extrínseco ). Ele coloca a seguinte questão: O que se entende por justiça? Seria um atributo da pessoa, ou existe fora da pessoa? No Ocidente predomina a idéia de justiça como um atributo( ligado à virtude ) da pessoa, trata-se da “disposição de fazer o bem”. Ressalte-se, entretanto, que a expressão “ injustiças sociais “está atrelada à idéia de desigualdade material.

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Robert Alexy237 a compreensão do método de ponderação exige análise em

três planos distintos, que o autor denomina de “estágios”:

O primeiro estágio envolve estabelecer o grau de não-satisfação de, ou interferência em, um primeiro princípio. Esse estágio é seguido por um segundo em que é estabelecida a importância de se satisfazer o princípio concorrente. Finalmente, no terceiro estágio é estabelecido se a importância de se satisfazer o último princípio justifica a interferência ou não-satisfação do primeiro.

Nessa linha de pensamento, o mencionado autor238 apresenta

como exemplo um caso decidido na Corte Constitucional Federal alemã, no

qual se considerou que:

a obrigação dos produtores de tabaco de colocar, na embalagem dos seus produtos, alertas de saúde a respeito dos perigos de fumar como uma interferência relativamente leve ou reduzida na liberdade de exercício de profissão. Em contrapartida, uma total proibição de todos os produtos seria considerada uma interferência séria em tal liberdade.

Essa decisão sugere analogia com o problema do fiador que,

diante da inadimplência do locatário, se vê ameaçado de perder o único imóvel

que serve de abrigo para si e sua família. Neste caso, é de se questionar, até

que ponto a interferência do direito de crédito do locador no direito humano

fundamental à moradia é aceitável e razoável, vez que se trata, como se

posicionou a Suprema Corte alemã, de interferência séria, a ponto de deixar ao

desabrigo aquele que, num ato de solidariedade assumiu a posição de garante

de uma locação. Nesse contexto, é inegável que a propriedade imóvel,

subsumida no bem de família do fiador, não é direito fundamental autônomo,

mas direito acessório, que viabiliza direito fundamental e essencial para o ser

humano, que é o direito a um teto.

Desta forma, não é o direito de propriedade de per se que está

sendo imunizado da penhora, mas o direito de propriedade instrumental que 237 ALEXY, Robert. Ponderação, Jurisdição Constitucional e Representação Popular. Tradução Thomas da Rosa de Bustamante. In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e SARMENTO, Daniel ( coordenadores ). A Constitucionalização do Direito; Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lúmen, 2007. p. 295-304. Contrariando a visão de Jürgen Habermas, citado pelo autor, para quem a ponderação não tem fundamento racional objetivo, apenas leva a um resultado sem elementos justificadores. 238 ALEXY. Op. Cit. p. 297.

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concretiza o direito humano fundamental à moradia. Nessa toada, professa o

Ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Brito239, em sede de

Recurso Extraordinário: “entendo que aquele que conseguiu realizar o sonho

da casa própria, esse anseio profundo de conseguir o seu pedaço de chão no

mundo, que é a casa própria, não pode decair nem por vontade própria”. Para

o mencionado julgador, a moradia, como meio de suprir necessidade essencial,

é indisponível, não podendo sofrer restrição judicial em razão de contrato de

fiança.

A princípio, quando se enfrenta o problema da fiança em locação,

a prática tem demonstrado que a discussão gira em torno do direito de crédito

do locador e do direito de propriedade do fiador, o que parece um equívoco,

pois a propriedade, neste caso, é mero instrumento de realização do direito à

moradia, natural emanação do direito da personalidade. O conflito de

interesses revela valores axiologicamente distintos: de um lado, tem-se o

direito de crédito, que pode ser cobrado por meios diversos; de outro, situa-se

o direito essencial para a efetivação de outros valores, que é o direito humano

fundamental à moradia. Diante dessa situação, idôneo parece ser o método de

ponderação, tal como defendido por Robert Alexy240, para se analisar o grau de

essencialidade de cada interesse em jogo.

Nesse contexto, sem a pretensão de esquadrinhar o tema da

fundamentalidade, cuidar-se-á de estudá-la para melhor cotejá-la com o

fenômeno da essencialidade em sede de direitos humanos fundamentais. Ingo

Wolfgang Sarlet241 preleciona que a fundamentalidade se subdivide em formal

e material. A primeira está diretamente relacionada com o direito constitucional

positivo, seguida por algumas premissas, tais como: a) os direitos humanos

fundamentais ocupam o cume do sistema normativo – são o que alguns

autores denominam de direitos supralegais; b) tais direitos são prescrições que

demandam limitações de ordem formal e material no tocante às reformas

constitucionais; e c) os direitos humanos fundamentais consubstanciam normas

239 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 407.688-8-SP. Diário da Justiça de 06 out. 2006. Fiador. Locação. Ação de Despejo. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 27/03/ 2007. 240 ALEXY. Op. Cit. p.295-310. 241 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007.a. p. 88-89.

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de aplicação imediata e vinculativa, conforme se depreende do art. 5º, par. 1º,

da Carta de 1988.

A fundamentalidade sob o aspecto material, a seu turno, “decorre

da circunstância de serem os direitos fundamentais elemento constitutivo da

Constituição material, contendo decisões fundamentais sobre a estrutura

básica do Estado e da sociedade”, preleciona Ingo Wolfgang Sarlet242. Nesta

seara, seguindo as lições do mencionado autor gaúcho, visualiza-se, por força

do art. 5º, par. 2º, da CR/88, duas vertentes de direitos fundamentais: “a)

direitos formal e materialmente fundamentais (ancorados na Constituição

formal); e b) direitos materialmente fundamentais (sem assento no texto

constitucional)”.

Marcelo Leonardo Tavares243 pontua que, enquanto a teoria

liberal244 vê os direitos fundamentais “como direitos de liberdade do indivíduo

em face do Estado”, a teoria de direitos fundamentais do Estado Social

“pretende superar o conceito de liberdade meramente formal para alcançar a

liberdade real e os direitos fundamentais deixam de ter caráter meramente

negativo para passarem a ser integrados por pretensões positivas a

prestações”.

Para este autor, os direitos fundamentais sociais comportam duas

vertentes: os direitos sociais materialmente fundamentais e os direitos sociais

não dotados de fundamentalidade, consoante suas palavras245:

242 SARLET ( 2007.a ). p. 88-98. Ensina o autor que a fundamentalidade pode variar de Estado para Estado, isto é, o que é fundamental para uma Organização Política pode não sê-lo para outra. Defende, no entanto, a existência de valores universais, como a vida, a liberdade, a igualdade e a dignidade humana; os quais ainda podem ser axiologicamente ponderados de forma distinta, dependendo do espaço cultural e temporal. 243 TAVARES, Marcelo Leonardo. A Constitucionalização do Direito Previdenciário. In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira; Daniel Sarmento ( coordenadores ) A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 946-947. 244RAMOS, Carmem Lúcia Silveira. A Constitucionalização do Direito Privado e a Sociedade sem Fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson ( coordenador ). Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Renovar. 2. ed. 2000. Para a autora, a Teoria Liberal baseia-se na idéia de igualdade fundada na pessoa em abstrato, “partindo de um elemento meramente formal, baseado na autonomia da vontade e na iniciativa privada”, e acrescenta “ (...) o Estado de Direito Liberal ignorou as desigualdades econômicas e sociais, considerando todos os indivíduos formalmente iguais perante a lei, parificação esta que só acentuou a concentração do poder econômico capitalista, aumentando o desnível social cada vez mais, na esteira do desenvolvimento tecnológico e produtivo”. p. 5-6. Vale ainda destacar que o Código Civil pátrio de 1916 adotou a referida teoria, que também não foi afastada pelo novo Codex, malgrado este ter absorvido alguns valores constitucionais, como a função social da propriedade e do contrato, os princípios da boa-fé e da probidade. 245 TAVARES. Op. Cit. p. 952-953.

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Quando os direitos sociais são necessários para uma existência digna do homem, acabam por assumir uma função fundamental e passam a ser intitulados direitos sociais ao mínimo existencial246, enquanto para além deles há os direitos sociais formais. Com isso, está-se a afirmar que existem direitos sociais fundamentais, intimamente vinculados ao valor da dignidade, porquanto não pode haver liberdade e dignidade na miséria e na ignorância, e outros direitos sociais, não dotados de fundamentalidade, que devem ser providos pelo Estado na medida do possível. Os direitos sociais materialmente fundamentais devem ser incluídos na leitura que resulta da interpretação do dispositivo constitucional, para que possam merecer proteção como cláusula pétrea ou de imutabilidade constitucional.

Em que pese a respeitável visão do mencionado autor, ousa-se

discordar em parte, pois o caráter fundamental é atributo de todos os direitos

humanos, além de, no caso do sistema brasileiro, o Constituinte de 1988 não

ter feito qualquer distinção, consagrando todos os direitos (inclusive os sociais)

como direitos fundamentais, consoante o título II, “Dos Direitos e Garantias

Fundamentais”.

Ressalte-se, entretanto, que alguns direitos são mais essenciais

do que outros, por exemplo: há de se considerar que, sem alimento, não se

tem saúde e a vida é curta; sem educação, nos dias atuais, não se consegue

trabalho, não se alcança um desenvolvimento digno e a auto-estima tende a

desaparecer; e sem um teto para morar, a pessoa pode sofrer abalos na sua

estrutura psíquica, em seu paradigma de valores, além da tendência de ser

tratada socialmente como marginal. Não obstante, o Código Civil brasileiro

reconhecer como domicílio onde quer que a pessoa se encontre, tal norma não

reflete os fatos reais da vida, vez que uma pessoa sem moradia é, muitas

vezes, tratada como “ninguém” pela sociedade, além de ter sua dignidade

vilipendiada por conta disso.

Nesse contexto, é imperioso cotejar o fenômeno da

fundamentalidade com o aspecto da essencialidade. Para tal mister, cumpre 246SARLET, Ingo Wolfgang. Mínimo Existencial e Direito Privado: Apontamentos sobre Algumas Dimensões da Possível Eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais das Relações Jurídico-Privadas. In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e Daniel Sarmento. A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2007. p. 336-337. Preleciona o autor que, a despeito de inexistir norma constitucional expressa contemplando o direito ao mínimo existencial “os próprios direitos sociais específicos ( como a assistência social, a saúde, a moradia, a previdência social, o salário mínimo dos trabalhadores, entre outros ) acabaram por alcançar algumas dimensões do mínimo existencial (...)”.

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ressaltar que a análise da essencialidade pressupõe a existência de um caso

concreto. Imagine-se, por exemplo, um conflito entre dois interesses: de um

lado, está em jogo o direito humano fundamental à moradia, e de outro, o

direito humano fundamental de propriedade, consubstanciado num crédito.

Percebe-se, de antemão, tratar-se de dois direitos reconhecidos pela Carta de

1988 como fundamentais- pelo menos sob o aspecto formal -, pois, como já

visto alhures, para ser materialmente constitucional o direito de propriedade

precisa observar alguns pressupostos como a sua função social e seu caráter

instrumental.

A solução da questão em tela depende necessariamente da

análise do elemento da essencialidade, cabendo ao aplicador do Direito, fazer

a seguinte indagação: se algum dos direitos em jogo sofrer intervenção séria,

qual deles trará mais danos à vida e à dignidade do indivíduo? Dependendo do

tipo de Estado ou de sociedade que se tem, ter-se-á uma escolha, que poderá

ser justa ou injusta. Se for um Estado Social, que visa à tutela da dignidade da

pessoa e à preservação do mínimo existencial, dar-se-á prevalência ao direito

humano fundamental à moradia - vez tratar-se de direito vital para a efetividade

de outros direitos, como a vida digna, a educação, a saúde, o pleno

desenvolvimento entre outros. Por outro lado, se for um Estado liberal,

individualista, de cunho primordialmente patrimonial, privilegiar-se-á o direito de

crédito - que poderia ser cobrado por outros meios -, em detrimento do direito

ao teto.

Na realidade, a essencialidade serve como parâmetro de

mensuração da fundamentalidade a partir da análise de um caso concreto.

Posto de outra forma, quando estiverem em colisão dois direitos materialmente

fundamentais, dever-se-á considerar as circunstâncias da situação, as pessoas

envolvidas, bem como o grau de interferência no núcleo de cada interesse em

jogo. Trata-se da eficácia dos direitos humanos fundamentais, tanto no plano

vertical, quanto no horizontal, tema que será objeto do próximo tópico.

Nesse passo, cabe agora analisar o direito de propriedade a partir

de sua dúplice face; isto é, de um lado tem-se o direito de propriedade

autônomo, e de outro, afigura-se o direito de propriedade

instrumental/acessório, o qual consubstancia o instrumento por meio do qual se

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concretiza de forma plena o direito humano fundamental à moradia247. No

tocante a este aspecto, para melhor esclarecer o que se sustenta utilizar-se-á

como técnica didática os seguintes exemplos hipotéticos:

Caso 1. João é proprietário de único bem em que habita com

sua família e foi fiador de um amigo, num contrato de locação;

Caso 2. Pedro tem dois imóveis, em um ele reside com a família

e o outro é apenas acervo do seu patrimônio.

Diante das referidas proposições, privilegia-se a seguinte linha de

raciocínio: no primeiro caso, em que o indivíduo possui apenas um imóvel -

este consubstanciado em bem de família - o direito de propriedade se subsume

no direito humano fundamental à moradia; isto é, não é o direito de propriedade

de per se que prepondera em relação a um possível direito de crédito, pois

neste caso, o direito de propriedade constitui mero instrumento para dar

efetividade ao direito fundamental de habitação. Desta feita, o direito de

propriedade, neste primeiro exemplo, tem caráter meramente instrumental248,

não podendo ser objeto de constrição em razão de obrigação decorrente de

fiação. Tal assertiva encontra fundamento, tanto no próprio direito humano

fundamental à moradia, quanto na garantia do patrimônio mínimo249, porquanto

a propriedade nessa hipótese está dando vida, tornando real e concreto o

sonho da casa própria; ela está servindo de ferramenta para se atingir o que

Amartya Sen250 denomina de “segurança protetora”, tipo de liberdade

instrumental, por meio da qual as pessoas contam com mecanismos de tutela

contra a miséria e outras formas de injustiça social. Em síntese, a propriedade,

247 Conforme já mencionado no capítulo introdutório, a tese da instrumentalidade do direito de propriedade, a qual neste trabalho serve de base argumentativa, será melhor esmiuçada em trabalho acadêmico futuro. 248 O Ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso que, nos debates em sede de Recurso Extraordinário nº 407.688-8, no qual discutia-se a possibilidade ou não de penhora do bem de família do fiador, criticou a posição dos Ministros Eros Grau e Carlos Ayres Britto, que sustentavam a impenhorabilidade do referido bem, sob o argumento de mera prevalência do direito de propriedade, não identificou ou não conferiu a devida relevância ao que ora se sustenta, como o caráter instrumental do direito de propriedade: isto é, não se sustenta que o direito de propriedade deve prevalecer diante do direito de crédito, mas sim que o direito de propriedade, nesta hipótese, é apenas um veículo para a efetividade do direito humano fundamental à moradia. A análise da jurisprudência dos Tribunais brasileiros será enfrentada no Título II, do Capítulo II, deste trabalho. 249FACHIN. (2006). p. 114. 250 SEN. Op. Cit. p. 56-58.

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neste caso, é a ponte que liga o bem material (o imóvel) ao bem imaterial (o

direito humano fundamental `a moradia).

Por outro lado, no tocante à segunda hipótese, em que a pessoa

é proprietária de dois imóveis, tem-se a seguinte situação: a) um bem garante o

seu patrimônio existencial; isto é, está coberto pelo instituto do bem de família,

dá concretude ao direito humano fundamental à moradia, não podendo, assim

como no primeiro caso, ser objeto de constrição judicial por dívida civil ou por

cumprimento de obrigação decorrente de fiança, e b) o outro bem, por seu

turno, corresponde ao seu patrimônio exógeno; isto é, está fora da esfera

mínima da existência digna, não está sob o manto da proteção do bem de

família, podendo, portanto, ser objeto de penhora.

Como se verifica, neste segundo exemplo, há duas situações

distintas: na primeira, em que o imóvel serve de abrigo ao proprietário e sua

família - consagrando o bem de família - inadmissível será qualquer forma de

constrição, em particular, quando resultar de obrigação decorrente de contrato

de fiança, em relação locatícia, porquanto o bem em questão, além de

consagrar de forma absoluta o direito humano fundamental à moradia, constitui

direito fundamental, axiologicamente superior ao direito de crédito, o qual pode

ser garantido por outros meios legais. Cumpre repisar que, neste caso a

propriedade é via instrumental para a concretização de direito imanente à

personalidade da pessoa, que é o direito à habitação, não podendo ser objeto

de execução e nem se comparar de forma isonômica ao direito de crédito. Já

na segunda situação, o imóvel não utilizado para moradia do proprietário

constitui o seu patrimônio excedente, podendo ser objeto de penhora sem

qualquer problema, tendo em vista não traduzir, nem consubstanciar, o direito

humano fundamental à moradia.

De fato, a realidade contemporânea exige da propriedade privada

a observância da sua função social, a fim de que sua utilidade e finalidade

vinculem-se ao interesse do particular, mas também com o propósito de

atender ao bem comum. É nesse sentido que se interpreta o disposto no par.

1º, do art. 1.228, do Código Civil pátrio de 2002251, o qual delineia o regime

251 BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF., 11 de janeiro de 2002. Assim dispõe o par. 1º, do art. 1.228, in verbis: “ o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei

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jurídico da propriedade imobiliária com valores constitucionais condicionadores

do instituto ao bem estar coletivo.

Ainda, nessa toada, Amartya Sen252 alerta para os desafios que o

capitalismo precisa enfrentar e esclarece:

(...). Conceber o capitalismo como um sistema de pura maximização de lucros baseado na propriedade individual de capital é deixar de fora boa parte do que permitiu tamanho sucesso do sistema no aumento da produção e geração de renda (...). (...)Temos de entender que o sistema ético subjacente ao capitalismo envolve muito mais do que santificar a ganância e admirar a cupidez.

O mencionado autor, a despeito de reconhecer os méritos do

capitalismo, admite que a ética desse modelo econômico não conseguiu

harmonizar a busca do lucro com questões sociais como: a pobreza

(decorrente de vários fatores, dentre eles, a desigualdade econômica ) e a

proteção do meio ambiente. No estado de natureza, em que a noção de

capitalismo ainda estava longe de ser caracterizada como o é hoje, o homem

buscava na floresta bens para a sua subsistência e vivia basicamente do que

plantava e da caça e pesca. Ainda na perspectiva capitalista ortodoxa, John

Locke253 defendia ser a propriedade direito natural que prescinde de qualquer

previsão legislativa, com base no seguinte argumento:

Quando Deus deu o mundo em comum a toda a humanidade, também ordenou que o homem trabalhasse (...). Deus e sua razão ordenaram-lhe que submetesse a terra, isto é, que a melhorasse para beneficiar sua vida, e, assim fazendo, ele estava investindo em uma coisa que lhe pertencia: seu trabalho. Aquele que, em obediência a este comando divino se tornava senhor de uma parcela de terra, a cultivava e a semeava, acrescentava-lhe algo que era sua propriedade, que ninguém podia reivindicar nem tomar dele sem injustiça.

Do pensamento do referido filósofo, pode-se extrair elementos

que, muito mais tarde, evoluíram significativamente e embasaram o usucapião

especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”. 252 SEN. Op. Cit. p. 302-305. 253 LOCKE. Op. Cit. p. 101.

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pro labore, previsto nos arts. 191 da Carta Constitucional brasileira de 1988;

1.239 do Código Civil pátrio de 2002, e 9 do Estatuto da Cidade. Sobre esse

tema, merece reflexão a doutrina de Sérgio Ferraz254, que destaca a iniciativa

do constituinte originário no sentido de estender o instituto do usucapião

especial rural para a cidade.

Nesse contexto, cumpre realçar que, viver consubstancia-se em

um conjunto de verbos como: amar, odiar, crescer, caminhar, sonhar, comer,

desenvolver, trabalhar e, dentre tantos outros, ter aptidão para adquirir bens. É

neste aspecto que a propriedade adquire relevo; afinal, o homem necessita de

alguns bens essenciais para sobreviver, como o alimento e um teto para morar.

O bem de família surgiu como um dos meios de garantir que a propriedade seja

mais do que um direito fundamental individual, para, sobretudo, transformar-se

em instrumento de efetividade ao pleno exercício do direito humano

fundamental à moradia do titular e de sua família.

II. 3. Da Eficácia dos Direitos Humanos Fundamentais “Tan grande es el abismo entre lo que se dice y lo que se hace

sobre derechos humanos que, cuando ambos van caminando por la calle y se

cruzan en una esquina, pasan de largo sin saludarse porque no se conocen”.

Com estas palavras, inspirado nas lições de Eduardo Galeano, o filósofo

espanhol David Sánchez Rubio255 inicia sua obra crítica sobre a Teoria dos

Direitos Humanos, na qual chama a atenção para o paradoxo que existe entre

o discurso e o que se realiza em termos de proteção aos referidos direitos.

Para o autor, difundir uma cultura de consciência no sentido de proteger os

direitos humanos fundamentais é deveras importante, mas não é, entretanto,

suficiente; é preciso despertar na sociedade a idéia de que tais direitos fazem

parte da realidade concreta de cada membro, que não são meras elucubrações

teóricas, pois, conclui: “cuanto mayor sea esa cultura sobre derechos humanos,

menores serán lãs demandas que tengan que pasar por los tribunales”.

254 FERRAZ. Op. Cit. 140-141. 255 RUBIO, David Sánches. Repensar Derechos Humanos: De la anesthesia a la sinestesia. Sevilla. Espanha: Editora Mad, S.L. 2007. p. 11-16.

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Nesse contexto, é inquestionável que um dos maiores desafios da

Teoria dos Direitos Humanos Fundamentais está no aspecto de sua

efetividade256, alguns mais outros menos, mas todos carecem de

concretização. Assim, reconhece-se que a proteção e a implementação dos

mesmos não é tarefa fácil, nem simples, em particular, de boa parte dos

direitos humanos fundamentais de segunda e terceira dimensões; o que exige

do Estado e dos cidadãos esforço contínuo nesse sentido257, conforme elucida

Ingo Wolfgang Sarlet258:

cremos que o mais importante segue sendo a adoção de uma postura ativa e responsável, governantes e governados, no que concerne à afirmação e à efetivação dos direitos fundamentais de todas as dimensões, numa ambiência necessariamente heterogênea e multicultural, pois apenas assim estar-se-ía dando os passos indispensáveis à afirmação de um direito constitucional genuinamente ‘altruísta’ e ‘fraterno’”.

A idéia de democracia associada aos direitos humanos

fundamentais, apregoada pelo mencionado autor, também é defendida Norberto

Bobbio259, que professa: “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos não

há democracia; sem democracia não existem condições mínimas para a solução

pacífica de conflitos”. Para este pensador, o problema central não está mais na

fundamentação dos direitos do homem, mas em sua tutela; a questão é de

natureza jurídico-política e não filosófica, e complementa260:

256 Embora não seja o objetivo deste trabalho descer a minúcias a discussão em torno dos termos eficácia e efetividade, cabem algumas considerações acerca do tema, considerando sua relevância, especialmente, no presente tópico. Nesse sentido, louvável é a contribuição de José Afonso da Silva que, com base nas lições de Hans Kelsen, coloca em planos distintos a vigência e a eficácia das normas. A vigência correlaciona-se com a existência da norma no mundo jurídico, por meio da promulgação e publicação. A eficácia a seu turno, se subdivide em eficácia jurídica e eficácia social, esta, para alguns autores, como Luis Roberto Barros, seria também denominada de efetividade, e corresponde à sua real aptidão de produzir seus efeitos no mundo dos fatos, concreto, ou seja, segundo Hans Kelsen, a norma vincula-se à idéia do “ser”. Por outro lado, a eficácia jurídica resulta da aptidão da norma de produzir seus efeitos no mundo jurídico, isto é, pertence à seara do “dever-ser”. Ver: SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2003 e BARROSO, Luis Roberto, O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 6 ed. atual. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002. 257 SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. In: SARLET, Ingo Wolfgang ( organizador ). O Direito Público em Tempos de Crise: Estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 1999. p. 129-173. Diz o autor: “o problema da eficácia engloba a eficácia jurídica ( e, portanto, a aplicabilidade ) e a eficácia social. Ambas, inobstante situadas em planos distintos ( o dever ser e o do ser ), servem à realização integral do Direito, e nesta linha de raciocínio, dos direitos fundamentais”. 258 SARLET ( 2007.a ). p. 68. 259 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução: Regina Lyra. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2004. p. 21-45. 260 Idem. Ibidem. 22-45.

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não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza jurídica e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.

Seguindo essa linha de raciocínio, o referido autor italiano ensina

que os organismos internacionais têm a função de apresentar diretrizes aos

Estados: o que ele chama de vis directiva, mas não possuem o poder de

imposição, a vis coactiva. Em sua análise, ressalta que tais diretrizes só serão

eficazes; isto é, só atingirão suas finalidades quando houver verdadeiramente

interesse por parte dos Estados no sentido de proteger os direitos humanos

fundamentais e alerta:

o desprezo pelos direitos do homem no plano interno e o escasso respeito à autoridade internacional no plano externo marcham juntos. Quanto mais um governo for autoritário em relação à liberdade de seus cidadãos, tanto mais será libertário em face da autoridade internacional.

A despeito das limitações do poder de atuação dos organismos

internacionais, cumpre reconhecer que eles têm sido importantes atores na

defesa e proteção dos direitos humanos fundamentais, especialmente no que

toca à promoção, ao controle e à garantia261. Ocorre que, como assinalado

por Norberto Bobbio, tais entidades carecem de poder imperativo, atuando

mais na seara moral.

De fato, a efetividade dos direitos humanos fundamentais

encontra óbices de variada natureza, a “incredulidade” é um exemplo deles,

porque muitas pessoas já não têm mais esperança de ver seus direitos

reconhecidos; não confiam na tutela do Estado. Nesse sentido, David Sánchez

Rubio262 argumenta:

261 BOBBIO. Op. Cit. p.58-59. A promoção consubstancia-se nas cartas de direitos; o controle compreende os relatórios que os Estados-membros assumem apresentar, no qual apontam as medidas adotadas no tocante à proteção dos direitos humanos fundamentais e; por fim, a garantia seria o meio pelo qual a Comunidade Internacional vai tutelar os direitos, trata-se de uma tutela de natureza jurisdicional de âmbito internacional. Aduz o autor: “só é possível falar legitimamente de tutela internacional dos direitos do homem quando uma jurisdição internacional conseguir impor-se e superpor-se às jurisdições nacionais”. 262 RUBIO. Op. Cit. p. 12-16.

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(...) mucha gente desenganada que, com toda razón del mundo, no tiene ninguna esperanza de que lês sean reconocidos sus derechos. Por experiencia, no confian en la autoridad, ni en los estados (…). En definitiva, parece como si existiera una cultura de impotencia y excesivamente conformista que, bajo la excusa de ese abismo entre lo dicho y lo echo, adopta la actitud de seguir dejando las cosas como están.

O referido filósofo defende a idéia de se mudar a concepção de

que os direitos humanos fundamentais são tutelados apenas pela esfera

jurídica, posto ser possível buscar também a sua efetividade no âmbito

doméstico, no mercado de trabalho e nos demais segmentos da sociedade263.

Há certo dogma de que cabe aos profissionais do Direito, - incluindo aí,

legisladores, magistrados, advogados e administradores públicos-, afirmar os

direitos humanos fundamentais, revelando uma “cultura simplista, deficiente,

insuficiente e estreita dos direitos humanos”, vaticina o mencionado autor.

Vale realçar que o homem é um ser social por natureza, nesse

diapasão são as lições de Almir de Oliveira264:

Não se pode viver senão em sociedade, o que implica a existência de uma organização em que ocorrem direitos, cujo acatamento se impõe como condição da harmonia entre os seus membros e como imperativo da sobrevivência do corpo social.

Tal linha de pensamento implica reconhecer a relevante função

do Direito, como conjunto de normas disciplinadoras das relações sociais, o

qual é de vital importância para dar sustentação à sociedade, desde que tais

normas estejam em sintonia com os valores apregoados no contexto histórico

em que elas incidem265. Ainda, com base nessa premissa, constata-se que há

muitos desafios a superar até que se chegue ao outro lado da travessia. A

chegada representa a conscientização, tanto por parte do Estado quanto por

263 RUBIO. Op. Cit. p. 15. Professa o pensador: “resulta decisivo descubrir que, realmente, son nuestras relaciones y práticas o tramas sociales tanto jurídicas como no jurídicas las que, en cada momento y en todo lugar, nos dan la justa medida de si hacemos o no hacemos derechos humanos, de si estamos construyendo procesos de relaciones bajo dinámicas de reconocimiento, respeto e inclusión o bajo dinámicas de imperio, dominación y exclusión”. 264 OLIVEIRA. Op. Cit. p. 1-2. 265 FACHIN, Luiz Edson. Princípios Constitucionais e Relações Privadas: Questões de Efetividade no Tríplice Vértice entre o Texto e Contexto. 2088.b. ( no prelo ). p. 10. Segundo o autor, existe um abismo entre o sujeito abstrato, idealizado pela ordem jurídica, e o “sujeito-cidadão”, de carne e osso, consciente de seus direitos, e respeitado como pessoa humana. Aduz, ainda, o autor: “O contraste entre a racionalidade da codificação, fundada na abstração, e os direitos fundamentais, que podem permitir uma abertura para valores não sistêmicos, se reflete na aplicação do direito às situações concretas”.

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todos os segmentos da sociedade, de que os direitos humanos fundamentais,

para que exsurjam ao mundo real, precisam ser vistos como pressupostos para

a realização de valores como a liberdade, a igualdade substancial e a

erradicação da pobreza e da discriminação racial e sócio-econômica. Desta

forma, é possível sonhar com uma vida digna, segura e feliz. Nesse sentido,

vale trazer à luz o pensamento de Clèmerson Merlin Clève266:

não basta afirmar juridicamente a liberdade. A sua concretização pressupõe a capacidade de fruí-la. O direito de livre expressão pressupõe a capacidade de exteriorização e de organização dos recursos intelectuais; o direito à inviolabilidade de domicílio pressupõe a prévia existência de uma casa, de uma morada, de um domicílio. O direito à educação desafia a existência de determinados meios ( alimentação, transporte ) sem os quais, ainda que oferecidos gratuitamente pelo Estado, pouco significará.

Nesse contexto, merece destaque a doutrina da

constitucionalização do direito privado267, a qual busca problematizar a questão

da efetividade dos direitos humanos fundamentais nas relações interprivadas.

No Brasil, a Carta de 1988 marca, de forma inequívoca, a passagem de

simples Estado de Direito para a categoria de Estado Constitucional

Democrático de Direito. Nesse cenário, Daniel Sarmento aponta que a

Constituição de 1988268:

266 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 267Esse processo de constitucionalização do sistema normativo, amparado, em particular, nos direitos humanos fundamentais, é o que a doutrina chama de filtragem constitucional. Nesse sentido, ver BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 340. Das lições do referido autor, contempla-se a concepção de que filtragem constitucional “consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. A constitucionalização do direito infraconstitucional não identifica apenas a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional”. Ver, ainda, FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à Luz do Novo Código Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar. 2003; TEPEDINO, Gustavo. “Crise de Fontes Normativas e Técnica Legislativa na Parte Geral do Código Civil de 2002”. In: TEPEDINO, Gustavo( coordenador ). A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil- Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Renovar. 2. ed. 2003. p.XV; e BARROSO, Luis Roberto. “Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito ( O Triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil )”. In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e Daniel Sarmento ( coordenadores ) A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. 268 SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 124-125.

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(...) conferiu absoluta centralidade e primazia aos direitos fundamentais e está fortemente impregnada por valores solidarísticos, de marcada inspiração humanitária. Assim, toda a legislação infraconstitucional ( civil, penal, processual, econômica etc. ), muitas vezes editada em contexto axiológico diverso, mais individualista ou mais totalitário, terá de ser revisitada pelo operador do direito, a partir de uma nova perspectiva, centrada na Constituição e em especial nos direitos fundamentais que esta consagra.

Nessa toada, defende-se que a Constituição se faça Constituição

no seio da sociedade; ou seja, que haja “vontade de Constituição”, como

ensina Konrad Hesse269. Tal documento deve ser a norma-diretriz para todas

as relações jurídicas privadas e públicas, bem como um veículo de promoção e

garantia de efetividade dos direitos humanos fundamentais. Desta forma, a

erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais serão mais do

que meras proposições constitucionais de caráter formal, consubstanciando-se,

sobretudo, realizações possíveis no mundo real.

Caminhar com a Constituição significa avançar para concretizar

valores nela consagrados, buscando no seu texto a garantia de um ideal de

justiça e solidariedade. Nesse passo, Luiz Edson Fachin270 aponta para a

importância do aspecto prospectivo da Constituição, consistente num ato

contínuo de “ressignificar os sentidos dos diversos significantes que compõem

o discurso jurídico normativo, doutrinário e jurisprudencial, especialmente no

que concerne à tríplice base fundante do governo jurídico das relações sociais,

isto é, propriedade, contrato e família”.

É cediço, entretanto, que esse caminhar exige superar óbices de

variadas naturezas. Nesse sentido, o referido autor271apresenta um rol de

obstáculos a serem enfrentados pelo Direito Civil brasileiro contemporâneo.

Apenas a título de ilustração, destacam-se: 1. sair do enclausuramento do

Código272, com a aceitação de outras fontes reguladoras (como a

269HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 19. Para o autor: “A Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder ( wille zur macht ), mas também a vontade de Constituição ( wille zur verfassung )”.

270 FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.a. p. 7-8. 271 Idem. Ibidem. p.12-14. 272 Cabe frisar, todavia, que, assim como o autor, não se ignora a utilidade do sistema de codificação como um fato histórico, e como forma de organização das normas. O que a contemporaneidade do Direito exige é uma releitura de seu escopo normativo, interpretativo e de aplicação.

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jurisprudência e a doutrina); 2. olhar para o Direito como fenômeno em

constante movimento; 3. interpretar o novo Código Civil brasileiro a partir dos

valores insculpidos na Carta de 1988; 4. abrir mão do silogismo prático, onde

só cabe a técnica pura e simples da subsunção do fato à norma; 5. buscar

desatar os nós da complexidade a partir de uma hermenêutica baseada na

realidade concreta; e 6. enxergar o fenômeno da Constitucionalização do

Direito para além do aspecto meramente formal, isto é, olhar para a

Constituição como instrumento concreto para a efetividade dos direitos

humanos fundamentais273.

Cabe realçar que a construção teórica da constitucionalização do

Direito é decorrência de um processo gradual de maturação de idéias

divergentes que convergem quanto à sua importância, fundada na força

normativa das normas constitucionais; força esta que veio, ao longo do século

XX, sendo arregimentada com o surgimento de instrumentos de controle de

constitucionalidade.

De fato, a Constituição contemporânea contempla mais do que

uma carta de normas de organização do Estado e de alguns direitos

individuais, ela representa a fonte de validade de todo o ordenamento jurídico

de uma Nação. Impõe-se, com isso, a necessidade de se interpretar as normas

de Direito - de natureza pública ou privada - à luz do seu texto, afastando de

imediato qualquer regra que viole os direitos humanos fundamentais, em

particular, aqueles essenciais à realização de uma vida digna e com qualidade,

como o direito humano fundamental à moradia.

Nesse contexto, Daniel Sarmento274 argumenta que a

Constituição incide sobre as normas de direito privado a partir de variadas

formas, como por exemplo:

a Constituição representa um limite para o legislador privado, o que importa na inconstitucionalidade das normas editadas em contrariedade a ela (...);

273SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2006. p. 50-51. Ensina o constitucionalista que, por muito tempo, os direitos humanos, contemplados nas Cartas Constitucionais, eram considerados apenas sob o aspecto moral; ou seja, não tinham força normativa para impor limites subjetivos: a eficácia jurídica se perfazia quando tais direitos eram contemplados em leis infraconstitucionais. 274 Idem. Ibidem. p. 56-57.

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(...) diante da crise do Estado Social e do retorno aos valores individualistas de antanho, propugnado pelo pensamento neo-liberal hoje hegemônico, há o risco de retrocessos na legislação privada, em contrariedade à dimensão social e solidária da Carta de 88. Em ambas as hipóteses, o papel da Constituição como limite ao legislador será vital para num caso afirmar, e no outro preservar, os avanços proporcionados pela ordem constitucional na disciplina das relações privadas.

A Constituição também projeta relevantes efeitos

hermenêuticos, pois condiciona e inspira a exegese das normas privadas, que deve orientar-se para a proteção e promoção dos valores constitucionais centrados na dignidade da pessoa humana.

A partir dessas premissas, verifica-se que o Direito

contemporâneo exige dos profissionais do Direito permanente exercício de

hermenêutica, não somente no tocante à legislação infraconstitucional, mas

também das próprias normas constitucionais, a fim de harmonizá-las com as

constantes mudanças sócio-culturais e econômicas.

Ainda, seguindo a linha de preleção de Daniel Sarmento275,

assenta-se a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, a qual na

verdade, segundo o autor, não traz novidade, visto que nos séculos XVII e

XVIII - período do apregoado contratualismo de vertente naturalista -, defendia-

se a posição de que a ratio da fundação do Estado276 relacionava-se à idéia da

necessidade de o homem ter seus direitos tutelados em face de seus próprios

semelhantes, vez que o estado de natureza não lhe conferia esta segurança.

Tal concepção, no entanto, transmudou-se ao longo dos séculos

XIX e XX, com o surgimento de novas idéias, calcadas no individualismo

extremado e nos direitos de liberdade, os quais exigiam a abstenção do Poder

Público nos assuntos privados: nascia o Estado Liberal clássico, decorrência

275 SARMENTO ( 2006 ). p. 129. 276 RIBEIRO, Renato Janine. O Medo e a Esperança. 13. ed. In: WEFFORT, Francisco C. ( organizador ). Os Clássicos da Política. São Paulo: Editora Ática, 2000. pp. 57-59. Conforme já defendia Thomas Hobbes, os homens estavam sempre em estado de guerra, sendo a figura do Estado fundamental para controlar e coibir tal situação. Ao contrário de Aristóteles, que sustentava a idéia de que o homem é um animal social, Hobbes defendia a posição de que o homem, por viver em constante guerra, necessita de regras que o discipline, sob pena de destruir a si próprio e os outros. O filósofo parecia não ter ilusão de que o estado de natureza em que se encontrava o homem lhe permitia tudo, conforme se depreende de parte do texto, do capítulo XIV, do Leviatã: “o direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqüentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim”.

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da Revolução Francesa, de 1789, que passou a privilegiar os direitos civis dos

cidadãos, alçando como norma-governo das relações privadas, o Código Civil

de Napoleão, de 1804: este simbolizou o início do movimento da codificação. O

qual assentava-se na racionalidade defendida pelo Iluminismo. Nesse contexto,

ensina Daniel Sarmento277:

A consagração política do princípio da igualdade, com a abolição dos privilégios estamentais, exigia a existência de um direito único para todas as pessoas, que deveria primar pela generalidade e abstração, e regular, de modo completo e exaustivo, as relações sociais. (...) Os Códigos encampavam assim os interesses da burguesia, protegendo a propriedade e a autonomia contratual, e conferindo segurança ao tráfico jurídico, essencial para o desenvolvimento do capitalismo.

Os Códigos, na verdade, representavam um quadro do mundo

cotidiano, no qual se pretendia emoldurar “todos os aspectos da vida humana,

do nascimento ao óbito”, revela o mencionado constitucionalista278. Segundo

tal concepção, o que não estivesse contemplado no diploma legal não era

reconhecido pelo Direito. A suposta vontade do legislador afastava qualquer

possibilidade do exercício de interpretação e de aplicação de princípios.

Vale lembrar, ainda, que no Estado Liberal era cristalina a

separação entre o Direito Público e o Direito Privado. Desse modo, a

Constituição consubstanciava a normativa que disciplinava a conduta dos

cidadãos perante o Estado; ou seja, concretizava normas de Direito Público.

Por outro lado, o Código Civil era responsável pela regulação das relações

privadas, em que imperava a autonomia da vontade e privilegiava a

titularidade, em detrimento de valores como a solidariedade e a igualdade

material.

Nesse constante devir dos fatos sociais, o século XX marcou a

passagem do Estado Liberal para o Estado Social, por meio do qual buscou-se

aproximar o Direito da realidade concreta, crivada pelas desigualdades que

aumentavam. Diante desse processo de transformações, a Constituição

277 SARMENTO ( 2006 ). p. 67-69. Na fase do Estado Liberal, vivia-se uma “‘sociedade de Direito Privado’, na qual cabia ao Código delimitar a esfera da liberdade privada dos indivíduos, nas relações que estes mantinham no mercado”, ensina o autor. 278 Idem. Ibidem. p. 75.

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passou a ocupar significativo espaço no sistema normativo, regulando as

relações de caráter econômico e privado, “convertendo-se em centro unificador

do ordenamento civil”, professa Daniel Sarmento279.

Nessa toada, as normas constitucionais passaram a

desempenhar importantes papéis, tais como: limitar o exercício da atividade

legislativa privada, revelando a inconstitucionalidade das regras editadas em

desarmonia com elas; e condicionar a interpretação das normas de caráter

privado, as quais deviam guiar-se no sentido da realização e tutela da

dignidade da pessoa humana280. Para corroborar, cumpre trazer à baila as

lições de José Afonso da Silva281 para quem “todas as normas constitucionais

são dotadas de eficácia jurídica e imediatamente aplicáveis nos limites dessa

eficácia”.

Embora muito se discuta sobre a constitucionalização do Direito,

a realidade tem demonstrado que há, ainda, longo caminho a ser trilhado no

sentido de alcançar a efetiva observância das normas constitucionais, em

especial àquelas que consagram direitos humanos fundamentais. Nesse

sentido, Ingo Wolfgang Sarlet282 leciona que tais direitos se fundam a partir de

dúplice perspectiva283: subjetiva e objetiva. O aspecto subjetivo284 relaciona-se

à idéia de efetividade desses direitos em sede judicial.

No tocante ao prisma objetivo dos direitos humanos

fundamentais, malgrado já ser possível encontrar estudos em torno do assunto

no “primeiro pós-guerra”, somente a partir da Constituição alemã, de 1949, tal

perspectiva superou a indiferença e exsurgiu no mundo jurídico. Para ilustrar o

tema, Ingo Wolfgang Sarlet285 aponta o caso Lüth - decidido pela Corte Federal

Constitucional Alemã, em 1958 -, no qual se defendeu a tese de que os direitos

279SARMENTO ( 2006 ). p. 71. 280 Idem. Ibidem. p.75-78. 281 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6. ed. 2ª tiragem. São Paulo: Editora Malheiros, 2003. p. 262. 282 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007.a. p.180. 283 Alguns autores preferem a expressão dimensão ao invés de perspectiva. Cf. SARMENTO, Daniel ( 2006 ). Para este autor "a dimensão objetiva liga-se a uma perspectiva comunitária dos direitos humanos, que nos incita a agir em sua defesa, não só através dos instrumentos processuais pertinentes, mas também no espaço público, através de mobilizações sociais (...)”. p. 107-108; 123-124. 284 Cumpre, de pronto, ressaltar que, a despeito das diversas concepções existentes de direito subjetivo, no presente trabalho, a perspectiva adotada vincula-se à idéia de “poder de exigir ou pretender comportamentos ou de produzir autonomamente efeitos jurídicos”, conforme preleciona José Carlos Vieira de Andrade. In: ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina, 1987. p. 163. 285 SARLET ( 2007.a ). p. 168

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humanos fundamentais enfeixavam um rol de valores básicos,

consubstanciando “fins diretivos de ação positiva dos poderes públicos, e não

apenas garantias negativas dos interesses individuais”, conclui o mencionado

autor.

Nessa linha de preleção, Daniel Sarmento286expõe que:

a dimensão objetiva dos direitos fundamentais prende-se ao reconhecimento de que neles estão contidos os valores mais importantes de uma comunidade política. Estes valores, através dos princípios constitucionais que os consagram, penetram por todo ordenamento jurídico, modelando suas normas e institutos, e impondo ao Estado deveres de proteção. Assim, não basta que o Estado se abstenha de violar os direitos humanos. É preciso que ele aja concretamente para protegê-los de agressões e ameaças de terceiros, inclusive daquelas provenientes dos atores privados.

Nesse contexto, nunca é demais ressaltar que a Constituição

brasileira de 1988 traz em seu bojo um pacto de proteção dos direitos humanos

fundamentais, porquanto além de promovê-los e dar-lhes dimensão

fundamental, garante a sua aplicabilidade imediata, consoante a regra

esculpida no art. 5 , par. 1, do referido diploma. Ainda, prevê, de forma

expressa, alguns instrumentos que podem garantir a efetividade dos mesmos.

Como ilustração, pode-se destacar: o mandado de segurança (individual e

coletivo); o mandado de injunção; o habeas corpus; o habeas data; e a ação

popular. Ressalte-se, entretanto, que, a despeito da relevância dos

mencionados remédios constitucionais, eles de per se não são suficientes para

impedir os abusos e as violações dos direitos humanos fundamentais, é

preciso, como já dito alhures, que todo o corpo social se motive acerca da

importância de se garantir tais direitos. Cumpre repisar que os direitos

humanos fundamentais não estão dissociados do cotidiano das pessoas, ao

contrário, eles integram a personalidade; a vida delas.

286 SARMENTO ( 2006 ). p. 140.

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TÍTULO II - A RESSIGNIFICAÇÃO DO TER

Capítulo I – DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR

I. 1. A Função Social dos Contratos

O Estado Social e a idéia de desigualdade material, ao passo do

século XX, abalaram as velhas estruturas do sistema clássico privado,

exsurgindo novo horizonte. Nesse sentido, ensina Luís Roberto Barroso287:

O direito civil começa a superar o individualismo exarcerbado, deixando de ser o reino soberano da autonomia da vontade. Em nome da solidariedade social e da função social de instituições como a propriedade e o contrato. O Estado começa a interferir nas relações entre particulares, mediante a introdução de normas de ordem pública (…). É a fase do dirigismo contratual que consolida a publicização do direito privado.

Tratando do assunto, Luiz Edson Fachin288 argumenta: “quem

contrata, não contrata mais apenas com quem contrata, e quem contrata não

contrata mais apenas o que contrata; há uma transformação subjetiva e

objetiva nos negócios jurídicos”289. Qualquer interpretação das normas jurídicas

deve levar em conta a realidade concreta, no sentido de harmonizar o “dever-

ser” da norma com o “ser-real” da vida: “uma lei se faz código no cotidiano

concreto da força construtiva dos fatos, à luz de uma interpretação conforme os

princípios, ética e valores constitucionais”, apregoa o civilista290.

Nessa linha de intelecção, Joaquim Falcão291professa:

287 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito ( O Triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil ). In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e Daniel Sarmento ( coordenadores ). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lúmen, 2007. p. 231. 288FACHIN ( 2008.a). p. 3. 289Idem Ibidem. p. 3. 290 Idem Ibidem. p. 4. 291 FALCÃO, Joaquim. Amostragem e leis experimentais. Revista Conjuntura Econômica. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas. Vol. 61, nº 09, set. 2007. p. 41.

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(...) em vários países da Europa, por exemplo, o próprio Poder Legislativo utiliza técnicas de avaliação ex post da efetividade e da eficiência da legislação, isto é, métodos de análise das repercussões jurídicas e sociais das leis em vigor, a fim de detectar necessidades de ajustes e mudanças.

Nesse contexto, a autonomia privada que, por muito tempo, foi

alçada ao patamar de princípio regedor das relações privadas, só merece

proteção se estiver envolvida sob o manto de “um valor constitucional”,

assevera Gustavo Tepedino292, apontando, ainda, que os institutos basilares do

Direito Privado: o contrato, a propriedade e a família, face ao processo de

constitucionalização das normas, estão recebendo nova carga valorativa como:

irradiação dos princípios constitucionais nos espaços de liberdade individual (...). Afinal, o Código Civil é o que a ordem pública constitucional permite que possa sê-lo. E a solução interpretativa do caso concreto só se afigura legítima se compatível com a legalidade constitucional.

Nessa linha de pensamento, Renan Lotufo293 preleciona:

com o advento da nossa Constituição de 1988, ocorreu um choque de perplexidade na doutrina e na jurisprudência, por passar a mesma a disciplinar diretamente matérias que até então eram de exclusivo tratamento pela lei ordinária, muito particularmente por tratar de matéria, até então, objeto de regulação exclusiva do Código Civil.

Por seu turno, Luis Renato Ferreira da Silva294 afirma que a

constitucionalização do Direito Civil deve ser analisada sob duas perspectivas:

a formal e a material. A primeira relaciona-se com o fato de que a Constituição

passou a tratar de temas que antes eram da órbita privada; a segunda

292 TEPEDINO. Op. Cit. p.309-311. Diz, ainda, o autor: “a noção de autonomia da vontade, como concebida nas codificações do século XIX, dá lugar à autonomia privada alterada substancialmente nos aspectos subjetivo ( pessoa concreta), objetivo ( novos interesses existenciais se sobrepõem aos interesses patrimoniais que caracterizavam os bens jurídicos no passado), e formal ( relacionado à prática dos atos)”. 293 LOTUFO, Renan. Da Oportunidade da Codificação Civil e a Constituição. In: SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). O Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 24. É possível destacar como exemplo de matérias, que antes eram afetas à seara privada, o direito de família, hoje, consagrado no art. 226 da Carta Constitucional de 1988. 294 SILVA, Luis Renato Ferreira da. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil de 2002. In: SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). O Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006. p. 147-148.

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perspectiva, a material, vincula-se à idéia de que a Carta Constitucional é o

vértice legitimador de todas as regras de Direito Civil.

Nessa ordem de idéias, Maria Cristina Cereser Pezzella295

assinala:

a reflexão que se constrói ao pensar e repensar o direito exige, dos que a ele se dedicam, um esforço contínuo e constante. Seu nascimento e renascimento é um fruto que só pode ser colhido quando os fatos sociais incidem sobre a relação jurídica, e, assim, comportam um nexo indissociado com a realidade e os conceitos jurídicos abstratamente construídos pela mente atenta aos fatos da vida.

A visão clássica de Direito Civil, como conjunto de normas

privadas criadas para disciplinar as relações particulares, está passando por

um processo de superação, que, à luz da Constituição de 1988, dá lugar à

interpenetração do direito público no direito privado,296 desafiando a tese

dicotômica direito público-direito privado.

Com efeito, Luiz Edson Fachin297 critica o sistema privado

clássico, o qual privilegia aquele “que tem bens, patrimônio sob si, compra,

vende, pode testar, e até contrai núpcias”, enquanto o outro que nada possui

(de cunho econômico) não é visto pelo sistema, que é montado para

resguardar o “sujeito dos bens”. Aduz ainda que “a reelaboração de uma teoria

do Direito Civil há de ter como ponto de partida mais que sua utilidade e, como

perspectiva, a reordenação dos fundamentos do sistema jurídico à luz de outro

projeto sócio-econômico e político”. Nesse diapasão, Eduardo Kraemer298

argumenta que a interpretação e aplicação do Código Civil, sob a ótica

constitucional, representa significativo avanço para a efetivação do exercício da

cidadania, e elucida que “não mais se mostra possível que a apropriação seja

concebida meramente como instrumento individualista”.

295 PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. Código Civil em Perspectiva Histórica. In: SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). O Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006. p.45. 296 FACHIN ( 2003 ). p. 25 et seq. 297 Idem. Ibidem. p. 216. 298 KRAEMER, Eduardo. Algumas anotações sobre os Direitos Reais no novo Código Civil. In: SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). O Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006. p. 219-223. Diz o autor: “a propriedade e a posse, na nova codificação, estão funcionalizadas. O exercício de ambas deve expressar e concretizar valores sociais”. Ensina ainda o autor; “ não há condições de interpretar os direitos reais com o conteúdo absoluto como qual foi concebido quando da entrada em vigor do Código de Clóvis”.

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Nesse viés humanista do Direito, Jones Figueiredo Alves e Mário

Luiz Delgado299defendem que, além da função social, outros princípios

norteiam a nova ordem jurídica civilista, e destacam: o princípio da eticidade,

que visa a corrigir o caráter individualista do atual Código; o princípio da

socialidade300, segundo o qual o interesse privado deve se coadunar com o

interesse social; o princípio do equilíbrio econômico dos contratos, que dá

embasamento aos institutos da lesão, do estado de perigo e a resolução por

onerosidade excessiva; e por fim, o princípio judicialista, que resume a idéia de

que a atuação do juiz deve adequar-se ao ordenamento jurídico e aos valores

sociais.

Nesse cenário, preleciona Pietro Perlingieri301: “quanto mais o

dado normativo souber se adequar à realidade social, tanto mais a realidade se

apresentará de forma homogênea e unitária”. A reboque do pensamento do

mencionado autor italiano, cabe refletir acerca da necessidade de harmonizar

as regras contratuais que disciplinam as relações locatícias e as acessórias

destas, as de garantia, no sentido de se evitar discrepâncias como as que dão

prevalência ao direito de crédito, em detrimento do direito de moradia da

pessoa que serviu de garante de uma locação.

Vale repisar que a idéia de “coisificação” do homem tem sido

combatida por alguns autores, dentre eles Luiz Edson Fachin302, que vaticina:

“não raro, nos elementos da relação jurídica coloca-se o sujeito, e aí se revela

claramente que a pessoa não precede ao conceito jurídico de si próprio, ou

seja, só é pessoa quem o Direito define como tal”. Conforme preceitua o

mencionado civilista, a tendência contemporânea é no sentido de afastar as

concepções abstratas e genéricas, não somente no tocante aos titulares de

direitos, mas também no que pertine aos objetos303 que integram as relações

jurídicas. O elemento diferenciador desses vínculos jurídicos passa a ser a

299 ALVES, Jones Figueiredo; DELGADO, Mário Luiz. Novo Código Civil Confrontado com o Código Civil de 1916. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Editora Método, 2002. p. 46-49. 300 Idem. Ibidem. p. 48. Os autores ilustram o ideal deste princípio com a previsão do desapossamento social, previsto no art. 1.228, par. 4 do CC/02. 301 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007. p. 31. O autor critica a idéia de propriedade meramente formal e diz: “a propriedade privada não pode ser esvaziada de qualquer conteúdo e reduzida à categoria de propriedade formal, como um título de nobreza”. 302 FACHIN ( 2003 ). p. 89. 303 Idem. Ibidem. p. 94 . Elucida o autor: “o objeto não é mais algo em si; passa a ter função”.

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conduta dos envolvidos; isto é, a forma de agir baseada em valores como a

boa-fé, a confiança, e a solidariedade.

Nessa perspectiva, a funcionalização dos contratos impõe às

relações jurídicas limites norteados pelos direitos humanos fundamentais.

Afinal, não se pode esquecer que tais relações decorrem da convivência mútua

dos homens, e do espírito de cooperação que deve existir entre eles. Diante

de tal afirmação, é possível reconhecer que a noção clássica de relação

jurídica - na qual o homem é visto a partir de sua existência genérica e

abstrata, e não como um ser humano com carências e necessidades

específicas, sem maiores considerações de ordem social, cultural ou

econômica -, passa por um processo de releitura constitucional.

As mudanças de paradigmas requerem paciência e vontade por

parte daqueles que aplicam o Direito, porquanto se desvencilhar de um sistema

que prevaleceu por muito tempo não é tarefa simples. É cediço que, no Estado

liberal clássico, fruto da Revolução Francesa de 1789, a autonomia da vontade,

consubstanciada no contrato, imperava soberana, sendo um dos pilares do

direito privado. Nessa ordem, Sylvio Capanema de Souza304preleciona:

Para fortalecer o contrato, libertando-o da interferência do Estado, a doutrina francesa criou dois grandes pilares de sustentação da Teoria Geral dos Contratos. O primeiro deles, o princípio da autonomia da vontade ou princípio da liberdade de contratar. A função do Estado seria a de garantir que as partes fossem livres para contratar (...). O outro pilar de sustentação (...) era o princípio da força obrigatória dos contratos, também conhecido como princípio da imutabilidade dos contratos.

Alinhados ao individualismo exacerbado do século XIX, os

referidos princípios foram, no entanto, aos poucos sendo relativizados diante

da constatação de que eles, de per se, não garantiam a igualdade dos

contratantes, a qual não se consubstanciava apenas no fator econômico, mas

304 SOUZA, Capanema. Contratos- Estudo das Principais Alterações Introduzidas pelo Novo Código Civil. Coletânea de Textos Cepad. Rio de Janeiro: Editora Espaço Jurídico, 2005. p. 7-12. O autor chama a atenção para a pertinente distinção entre liberdade de contratar e de liberdade contratual. Aquela diz respeito à liberdade de celebrar ou não um contrato. Enquanto a liberdade contratual refere-se à liberdade de praticar atos negociais nos limites legais e de acordo com a função social do contrato. Ensina, ainda, no que toca ao princípio da imutabilidade dos contratos, que o mesmo consagra a máxima romana pacta sunt servanda.

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também em premissas de natureza técnica, cultural e intelectual, ensina o

mencionado autor305.

Diante dessa realidade, o Estado passou a intervir na seara

privada, com o objetivo de buscar a igualdade material. Desta feita, o princípio

da autonomia da vontade encontrou limites306 no denominado dirigismo

contratual307.

Ressalta, ainda, Sylvio Capanema de Souza 308 que a máxima

romana pacta sunt servanda - por muito tempo utilizada no direito brasileiro -

também teve sua força atenuada diante do surgimento de institutos como o da

lesão, do estado de perigo e da resolução do contrato por onerosidade

excessiva309, todos previstos no Novo Código Civil, e corolários dos princípios

da função social do contrato e da dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, cabe frisar que, numa relação contratual,

subsumida num tipo de contrato, deve-se primar pela justiça, consubstanciada

na máxima de agir conforme os ditames da lealdade, da eticidade, da

probidade, da solidariedade e da igualdade substancial. Desta forma, a relação

jurídico-contratual não só estará cumprindo a sua função social310, como

também colocando o homem de carne e osso no centro desta relação: trata-se

da consagração da dignidade humana.

305 SOUZA, Capanema. Op. Cit. p. 9. 306 À guisa de exemplo, cumpre destacar as restrições impostas às possíveis cláusulas tendentes a beneficiar exageradamente uma das partes da relação contratual em detrimento da outra, mais fraca ou menos experiente. Desta forma, a visão egoísta e individualista que permeava as relações privadas do século XIX tem sido contestada diante dos novos paradigmas construídos pela própria sociedade, trazidos pela Constituição de 1988, e desenvolvidos pela doutrina e jurisprudência, que buscam humanizar o Direito. 307 SOUZA, Capanema. Ob. Cit. p. 10-11. 308 Idem. Ibidem. p. 9-11. Destaca o autor que, já em 1940, Caio Mário da Silva Pereira escreveu um livro sobre a lesão em sede de direito civil, no qual criticava a ausência do instituto no Código Civil de 1916. 309 NEVARES, Ana Luiza Maia. O Erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no Código Civil de 2002. In: TEPEDINO, Gustavo. A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. O instituto da lesão, previsto no art. 157, CC/02, vincula-se à idéia de eqüidade e de justiça contratual. O estado de perigo, embora também vincule-se à idéia de justiça, está umbilicalmente atrelado à proteção daquele que, num momento trágico precisa tomar uma decisão que poderá prejudicá-lo mais tarde. p. 280-298. No tocante à resolução por excessiva onerosidade, Caio Mário da Silva Pereira. In: Instituições de Direito Civil. Vol. III. 10. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 98, preleciona que “ultrapassado um grau de razoabilidade, que o jogo da concorrência livre tolera, e, é atingido o plano de desequilíbrio, não pode omitir-se o homem do direito, e deixar que em nome da ordem jurídica e por amor ao princípio da obrigatoriedade do contrato um dos contratantes leve o outro à ruína completa”. 310SILVA, Luis Renato Ferreira da. A Função Social do Contrato no Novo Código Civil de 2002. In: SARLET, Ingo Wolfgang (organizador). O Novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 156. Apregoa o autor que “(...) o contrato atende o interesse dos contratantes, mas extrapola a esses interesses na medida em que atinge toda a cadeia econômica em que se insere”.

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Na esteira desse entendimento, reconhece-se que, na hipótese

de conflito entre o direito humano fundamental à moradia do fiador e o direito

de crédito do locador – por exemplo, é indiscutível que deve preponderar

aquele, visto garantir, não apenas o teto do fiador e de sua família – que já

seria motivo suficiente para prevalecer face ao direito de crédito – mas

preserva outros valores como a dignidade humana. Nesse sentido, preceitua

Sylvio Capanema de Souza311 que a função social do contrato, sob a ótica

sociológica, consiste “em colocar o contrato a serviço da construção da

dignidade do homem, da eliminação da miséria, das desigualdades sociais, e

da melhor distribuição de renda”.

Na verdade, as idéias de humanização do Direito, embora ainda

distantes da realidade fática, mas insistentemente defendidas no plano ideal,

por doutrinadores312 que colocam o ser humano no centro das relações

jurídicas, têm contribuído, sobremaneira, para a evolução das regras civilistas,

bem como para a positivação infraconstitucional de princípios como a função

social dos contratos e a boa-fé objetiva313.

Nesse contexto, insere-se o contrato de fiança, sobre o qual

deitar-se-á algumas considerações, levando-se em conta a sua origem,

natureza jurídica e utilidade na perspectiva sócio-jurídica.

I. 2. Alguns Aspectos do Contrato de Fiança

“Quem fica por fiador certamente sofrerá, mas o que aborrece a

fiança estará seguro”, com estas palavras, o Rei Salomão instruiu seus súditos

acerca da fiança. Conforme se extrai das Escrituras Sagradas, no Livro de

Provérbios314, já era possível visualizar o instituto da fiança na Antigüidade,

tendo como referência, inclusive, a Bíblia Sagrada.

311 SOUZA, Capanema. p. 13. 312 Nesse sentido, ver FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à Luz do Novo Código Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003; TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direito Civil na Construção Unitária do Ordenamento. In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e Daniel Sarmento ( coordenadores ). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007; e MEIRELLES, Jussara. O Ser e o Ter na Codificação Civil brasileira: sujeito virtual à clausura patrimonial. In: FACHIN, Luiz Edson ( coordenador ). Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000. pp.89-92. 313SOUZA, Capanema. Op. Cit. p. 15. Segundo o autor, o CDC ( Código de Defesa do Consumidor ) contempla o princípio da boa-fé objetiva nas quatro fases negociais: nas tratativas; na conclusão; na execução; e por fim, após o cumprimento do contrato. 314BÍBLIA SAGRADA. Português. Livro de Provérbios. Tradução: João Ferreira de Almeida. São Paulo: Editora Impres. 1999. p. 551-553. Cf. Prov. 6,1. “Filho meu, se ficaste por fiador do teu

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Também as escritas romanas, consubstanciadas na Lei das Doze

Tábuas, no ano 450 a.C., na Tábua VII estabelecia: “o rico será fiador do rico,

para o pobre qualquer um poderá servir de fiador”. Segundo esclarecimentos

de Gildo dos Santos315, no Direito Romano, a expressão cautio significava

todas as garantias que o devedor podia dispor; quais eram: sponsio, fidejussio,

fidepromissio, mandatum, pecuniae, credentiae, as quais se subsumiram no

instituto da fiança que, naquele tempo era constituída verbalmente, ao contrário

do que ocorre hoje, em grande parte dos ordenamentos jurídicos, em que se

exige a forma escrita.

No Direito Germânico, uma das formas de fiança era a dação de

refém, “em que alguém assumia a responsabilidade por dívida de terceiro,

quando um homem livre era entregue ao credor”, que o mantinha até que a

obrigação fosse adimplida; se não o fosse, o refém perdia sua liberdade e o

direito de viver ou morrer passava ao domínio do credor, assevera Gildo dos

Santos316.

No sistema normativo brasileiro, as garantias se subdividem em

reais e pessoais. Têm-se como exemplos das primeiras: a hipoteca, o penhor

e a anticrese e, quanto às garantias fidejussórias, destaca-se a fiança,

consubstanciada num contrato unilateral317 (na sua execução), acessório e, em

regra, gratuito318, por meio do qual uma pessoa assume perante um credor a

obrigação de pagar a dívida de um terceiro, se este não o fizer: ou seja, o

fiador, normalmente cedendo a pressão de ordem sentimental, pois, em regra,

tem um laço de amizade ou parentesco com o afiançado, assume perante o

credor a posição de garante daquele.

companheiro, se deste a tua mão ao estranho, se te enredaste com as palavras dos teus lábios ( ...)”. Prov. 20, 16. “Ficando alguém por fiador de um estranho, tome-se-lhe a roupa: e por penhor àquele que se obriga pela mulher estranha”. 315 SANTOS, Gildo dos. Fiança. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 22 316 Idem. Ibidem. p. 22-23. 317 GOMES, Orlando. CONTRATOS. 12. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1992. p.492-495. Conforme lições do autor, alguns estudiosos defendem a característica da bilateralidade do contrato de fiança, sob o fundamento de que há um dever de diligência por parte do credor, que teria a obrigação de cobrar do devedor principal. Maria Helena Diniz defende que o contrato de fiança é bilateral na sua formação e unilateral na sua execução, vez que tal ajuste só gera obrigação para o fiador. In: DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos. Vol. 5. 4. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 5-10. 318 Idem. Ibidem. p. 493. Ensina Orlando Gomes que a característica da gratuidade não afasta a possibilidade de o fiador auferir vantagens pecuniárias para compensar os riscos decorrentes da obrigação que do contrato decorre.

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Orlando Gomes319 aponta que a garantia pessoal decorrente da

fiança traz algumas conseqüências, tais como: “a obrigação fidejussória não

sobrevive à obrigação principal; e a obrigação fidejussória tem a mesma

natureza e extensão da obrigação principal”. O mencionado civilista acrescenta

que o instituto em tela é um contrato de caráter subsidiário; pode ser prestado

para “o cumprimento de obrigação futura ou condicional”; admite como objeto

outra fiança (denominada de subfiança); deve ser, necessariamente, acordado

por escrito; permite o benefício de ordem ou de excussão320; a obrigação

assumida pelo garantidor pode ser inferior à obrigação principal; garante a sub-

rogação do devedor em todos os direitos do credor em face do devedor; pode

ter duração limitada ou ilimitada de tempo, cabendo ao fiador o direito de

exonerar-se da obrigação assumida.

A propósito, a questão da exoneração do fiador ainda acirra os

ânimos dos doutrinadores e acentua o dissenso da jurisprudência, vez que,

para alguns321, há conflito entre a regra insculpida no art. 39, da lei do

inquilinato322 e o art. 835, do Código Civil de 2002323, devendo aquela

prevalecer, por força do art. 2.036324, do referido novel civilista, e do princípio

da especialidade.

Em sentido contrário, ao lado de Gildo dos Santos325, entende-se

que a disciplina geral do instituto da fiança está sob o jugo do Código Civil,

cabendo a aplicação da lei especial naquilo que não contrariar as normas

previstas naquele diploma legal.

319 GOMES. Op. cit. p. 493-496. Aponta o autor que “embora a fiança seja um contrato intuito personae em relação ao fiador, suas obrigações transmitem-se mortis causa, desde que nascida antes da abertura da sucessão”. 320 Cf. ensina Fabrício Zamprogna Mattielo, o benefício de ordem consubstancia “a prerrogativa que tem o fiador de exigir, ao ser demandado, a execução dos bens do devedor antes de serem executados os seus”. In: MATTIELO, Fabrício Zamprogna. Código Civil Comentado. São Paulo: LTR, 2003. p. 517. 321 Nesse sentido ver GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – Contratos e Atos Unilaterais. Vol. III. São Paulo: Editora Saraiva, 2004 322 BRASIL. Poder Legislativo. Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991. Dispõe sobre as locações urbanas e os procedimentos a elas pertinentes. Brasília: Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1991. “Art. 39. Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel”. 323 BRASIL. Poder Legislativo. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília: Diário Oficial da União de 11 de janeiro de 2002. “Art. 835. O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança, durante 60 ( sessenta ) dias após a notificação”. Diferente era a regra do Código Civil de 1916, que em seu art. 1.500, admitia a exoneração do fiador apenas com a anuência do locador ou por decisão judicial. Com o novel civilista, no entanto, basta apenas a notificação do fiador ao credor, conforme o artigo supracitado. 324 “Art. 2.036. A locação de prédio urbano, que esteja sujeita à lei especial, por esta continua a ser regida”. 325 SANTOS, Gildo ( 2006 ). p. 96.

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O objeto imediato do contrato de fiança é a “dívida que se quer

garantir”, ensinam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho326, os quais

apontam, ainda, as formas de extinção do referido ajuste expressas no Código

Civil de 2002, a partir do art. 835 o qual prevê a possibilidade de exoneração

do fiador e, por conseguinte, a extinção do contrato em relação a ele; depois

vêm os art.s 838 e 839, que cuidam dos diversos meios de desobrigação da

avença de garantia, entre elas estão: a concessão de moratória feita pelo

credor sem o consentimento do fiador; a impossibilidade de sub-rogação nos

direitos do credor, por culpa deste; a aceitação do credor de objeto diverso do

que estava ajustado; e a utilização do benefício de ordem pelo fiador que, ao

indicar bens do devedor principal, e este não realizar a execução na época

propícia e sobrevindo a sua insolvência, poderá aquele eximir-se da função de

garantidor, mediante comprovação de que havia bens do devedor principal

suficientes antes da insolvência327.

Nessa trilha, afigura-se a fiança 328uma das espécies do gênero

garantia ou caução e, no que toca ao seu objeto, funde-se em diferentes

modalidades, quais sejam: a fiança de natureza civil; de caráter comercial329;

criminal330; e por fim, a fiança bancária. Quanto à forma, o referido instituto

pode ser contratual (convencional), legal ou judicial331.

A fiança civil, segundo lições de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo

Pamplona Filho332, cuida de “uma relação jurídica contratual, estabelecida entre

o credor de uma obrigação e um sujeito garantidor, com seu patrimônio

pessoal, para eventual hipótese de descumprimento de uma prestação

principal, pelo efetivo devedor”. Na realidade, o contrato de fiança, sob a

326 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, RODOLFO. Novo Curso de Direito Civil. Contratos. Tomo 2. Volume IV. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 597-623. 327 Idem. Ibidem. p.620-623. 328 Nesse sentido, ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Borsói, 1972, Tomo XLIV. p. 100-101. A palavra fiança encontra sua origem remota, no verbo fiar, no sentido de confiar, abonar, afiançar. 329 GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Op. Cit. p. 599. Para os autores, considerando a unificação das obrigações civis e comerciais, a distinção entre fiança civil e comercial não faz mais sentido. 330 Idem. Ibidem. p. 599. Ensinam os autores, que a fiança criminal tem por escopo garantir o direito à liberdade do acusado, “na efetivação da presunção de inocência até o trânsito em julgado do processo penal correspondente”. Gilson dos Santos, a seu turno, argumenta que a fiança criminal, malgrado assim ser denominada, não configura tecnicamente uma fiança, e sim uma caução real, visto que seu objeto é a entrega de uma quantia em dinheiro; ver SANTOS, Gilson, op. cit. p. 82. 331 SANTOS, Gildo ( 2006 ). p. 22-46. 332 GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Op. Cit. p. 599.

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perspectiva econômica, consubstancia um “contrato de prevenção de riscos”,

professam os mencionados autores.

É cediço que a fiança tem sido, de há muito, utilizada de forma

significativa no mercado de locação, como instrumento de garantia. Nesse

sentido, a Lei 8.245/91, a chamada lei de locação ou do inquilinato, em seu art.

37, prevê três espécies de garantia, que são: a caução, o seguro de fiança

locatícia, e a fiança na locação. A caução é de difícil utilização, basicamente

por duas razões: 1. pelo prisma do locador, a própria lei limita o depósito em

dinheiro no valor máximo de três aluguéis; e 2. pela perspectiva do locatário, na

maioria da vezes, ele não dispõe dessa quantia para o depósito caução.

A segunda modalidade de garantia de contrato de locação é o

seguro fiança333, também, no dia a dia, de difícil viabilidade para o locatário,

pois as instituições financeiras, sempre preocupadas com os riscos do mercado

creditício, criam inúmeros óbices de ordem burocrática que a tornam

inexeqüível, malgrado a existência de regras que vinculam a garantia

decorrente da fiança bancária à vigência do contrato de locação, e a

prorrogação contratual à anuência do segurador, conforme se verifica no art.

12, da Circular SUSEP nº 347, de 27 de junho de 2007:

o prazo de vigência do contrato de seguro fiança locatícia é o mesmo do respectivo contrato de locação. Par. 1º. Na hipótese de prorrogação do contrato por prazo indeterminado, ou por força de ato normativo, a cobertura do seguro somente persistirá mediante aceitação de nova proposta por parte da sociedade seguradora.

De pronto, já é possível visualizar, a partir da norma supracitada,

a quebra de isonomia que existe entre a modalidade de garantia seguro fiança

e a fiança pessoal. Aquela, por meio de ato normativo, determina que a

responsabilidade da seguradora estende-se até o termo final do contrato; e na

hipótese de se tornar o contrato por prazo indeterminado, a referida garantia só

persistirá mediante nova proposta devidamente aceita. Já no contrato de fiança

locatícia, o qual, normalmente, vem atrelado ao contrato de locação, estipula-

se a responsabilidade do fiador até a entrega das chaves, o que já caracteriza

333 BRASIL. Poder Executivo. Ministério da Fazenda. SUSEP. Circular que dispõe regras de seguro fiança locatícia. Brasília, DF. Disponível em: < www.susep>. gov.br >. Pesquisa realizada em 13/11/2007.

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cláusula leonina, pois o fiador poderá ter que responder por obrigações que

excedem o prazo inicial do contrato, a que anuiu expressamente.

Nesse contexto, Genacéia da Silva Alberton334 aponta para a

realidade do mundo da vida, onde, em regra, “supõe-se que o fiador, ao aceitar

ser fiador do locatário tem ciência de que seu único imóvel está sujeito à

execução por eventual inadimplemento”, o que, assevera a autora, é “mera

suposição, porque raramente no contrato está expressa a indicação do imóvel

como garantia”. É fato que, na maioria das vezes, o fiador sequer tem

consciência das conseqüências jurídicas de seu ato, as quais repercutirão

diretamente em sua vida concreta.

De fato, a defesa da fiança como forma de facilitar a locação e,

por conseguinte, o acesso à habitação, não pode prejudicar diretamente aquele

que, “a duras penas” conseguiu alcançar o sonho da casa própria, e que, da

noite para o dia, se vê desalojado, por que o legislador decidiu fazer política

habitacional questionável utilizando como instrumento seu ato de liberalidade,

sem levar em consideração que, na maioria das vezes, o mesmo assume

posição de garante sem saber que seu único bem imóvel poderá ser objeto de

penhora, na hipótese de inadimplência do locatário, em contrato de locação no

qual foi fiador.

No que pertine ao benefício de ordem, Pablo Stolze Gagliano e

Rodolfo Pamplona Filho335 com fulcro no art. 828, do Código Civil de 2002,

aduzem que o mesmo poderá ser afastado quando o fiador: 1. o renunciar

expressamente; 2. se obrigar como principal pagador ou como devedor

solidário; e 3. na hipótese de insolvência ou falência do devedor.

Defende-se, no entanto, entendimento contrário ao aqui

esposado pelos referidos estudiosos, por duas razões bastante relevantes: a

primeira, refere-se ao fato de que o dispositivo 828, utilizado como fundamento,

não está em perfeita harmonia com a Carta de 1988, quando o interesse em

jogo é o patrimônio mínimo do fiador; e 2. porque, em se tratando de ato de

liberalidade, em regra, sem qualquer vantagem pecuniária, o contrato de fiança

dever ser interpretado restritivamente, bem como conter cláusulas objetivas

334 ALBERTON, Genacéia da Silva. Impenhorabilidade de Bem Imóvel Residencial do Fiador. In: TUCCI, José Rogério Cruz e.( coordenador ). A Penhora e o Bem de Família do Fiador da Locação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 119. 335 GAGLIANO; PAMPLONA FILHO. Op. Cit. p. 599-600.

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que deixem claro as possíveis conseqüências decorrentes da assinatura do

referido ajuste, como a possibilidade de seu único imóvel residencial responder

pela dívida do devedor-locatário, bem como prever normas que disciplinem

expressamente a comunicação ao fiador do inadimplemento do devedor

principal. Nesse diapasão, aponta Genacéia da Silva Alberton336 que:

os contratos de locação são efetivos contratos por adesão, com termos já impressos, padronizados, onde o fiador assina, abre mão do direito de ordem, assume obrigação de forma solidária e não tem expressa a advertência de que o seu imóvel residencial está sujeito à garantia de dívida que eventualmente ocorra por inadimplemento do afiançado. ( grifo nosso ).

Com amparo no pensamento da mencionada autora, afirma-se

que a violação ao princípio da igualdade é evidente na relação jurídica locatícia

envolvendo fiança pessoal. Basta examinar a posição do locatário, devedor da

obrigação decorrente do contrato de locação e do fiador que, num ato de

liberalidade, imbuído de sentimento de solidariedade, assume a posição de

garantidor do referido contrato. O absurdo jurídico ocorre quando da

inadimplência do devedor, o bem do fiador torna-se objeto de penhora, e,

posteriormente, objeto de execução, enquanto eventual bem do locatário, se

este for também proprietário, não será objeto de constrição, pois é protegido

pela Lei 8.009/90, imune à penhora por dívida de natureza civil, salvo, as

decorrentes do próprio imóvel, como IPTU, condomínio, taxa de incêndio etc.

Ainda, o locador, ou investidor do ramo imobiliário, por sua vez, continuará

morando em sua confortável casa, e seu imóvel, objeto de locação também

continuará em seu acervo patrimonial, sendo novamente locado; enquanto o

fiador e sua família estarão à mercê da sorte e de suas possibilidades

financeiras.

Nesse contexto, Eliana Maria Barreiros Aina337 professa que no

contrato de fiança locatícia não há o pleno exercício da autonomia da vontade

por parte do fiador que, sem possibilidade de discutir as cláusulas do contrato,

o assina sem saber que, ao celebrar tal negócio jurídico, está assumindo uma 336 ALBERTON. Op. Cit. p. 105-133. 337AINA, Eliane Maria Barreiros. O Fiador e o Direito à Moradia: Direito Fundamental à Moradia Frente à Situação do Fiador proprietário de Bem de Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2004. p. 37.

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posição desvantajosa e excessivamente onerosa: trata-se “de um flagrante

desequilíbrio contratual”, complementa a autora, vez que:

com indiscutível regularidade, os termos contratuais envolvem a renúncia por parte do fiador de diversas condições que lhe são favoráveis, tais como o benefício de ordem, resilição unilateral do contrato e outros, sendo que, por outro lado, assume obrigações inadmissíveis, tais como a responsabilidade até a entrega das chaves, mesmo que isso signifique comprometer-se por períodos de muitos anos, além de não ter idéia do quantum está comprometendo de seu patrimônio, pois a expressão ‘até a entrega das chaves’ não estabelece um limite temporal nem monetário.

A pensadora em tela338 defende que o fiador deve ser informado,

de forma expressa, que seu único imóvel será a garantia patrimonial da

obrigação assumida pelo locatário, bem como ser avisado, dentro do prazo de

noventa dias sobre a ocorrência de inadimplemento por parte do devedor-

locatário.

Pode, entretanto, acontecer que aqueles ainda presos ao

positivismo clássico e ao legalismo, ao lançarem mão do disposto no art. 3º da

Lei de Introdução ao Código Civil339- que prevê a regra segundo a qual

ninguém pode “se escusar de cumprir a lei, alegando que não a conhece”-,

argumentar que o fiador deveria estar ciente de que o seu imóvel poderia ser

objeto de execução, na hipótese de inadimplemento do fiador, porquanto há

previsão legal, insculpida no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90. Tal fundamento,

todavia, não se sustenta diante da realidade dos fatos neste país, na qual mais

de 11% da população é analfabeta, e 26% são considerados analfabetos

funcionais340. Nesse sentido, merece destaque o pensamento do

338 ALBERTON. Op. Cit. p. 120-129. 339 BRASIL. Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro. Diário da República Federativa do Brasil, de 09 de set. 1942.

340Conforme a UNESCO “analfabetos funcionais são as pessoas com menos de quatro anos de estudo “. Para a organização, o fato de essas pessoas saberem ler e escrever não significa que seu conhecimento seja suficiente para suprir as suas necessidades diárias quanto aos aspectos pessoais e profissionais. Segundo dados do IBGE, em 2002, o Brasil tinha 32,1 milhões de analfabetos funcionais, ou seja, 26% da população de 15 anos ou mais de idade.

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Desembargador Benedicto Abicair, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de

Janeiro341:

(...) convém esclarecer que num país onde a miserabilidade cresce acentuadamente, naturalmente nutrida pela falta de uma educação que permita a população ter pleno conhecimento do que lê e ouve todos os dias, aliado ao fato de ter-se uma infinidade de leis e correlatos que confundem, até mesmo, os mais operantes profissionais do direito, é impossível pretender-se que aquela afirmativa de que a ninguém é permitido alegar o desconhecimento da lei, seja encarada como absoluta.

Ora, ante tal realidade, exigir do fiador a plena consciência de que

seu bem de família poderá ser objeto de penhora na hipótese de

inadimplemento de seu afiançado, em contrato de locação, porque assim

dispõe a lei, e ele deveria saber, significa interpretar a sistemática normativa de

forma extremante abstrata e desconectada do mundo real.

Além do mais, não é possível, por tudo que já foi exposto sobre o

direito humano fundamental à habitação, colocar no mesmo patamar o referido

direito e o direito de crédito, posto estar-se sopesando valores axiologicamente

distintos; sem falar no fato de que o direito de crédito pode ser cobrado por

outros meios legais. Desta feita, qualquer obrigação a que tenha se vinculado o

fiador só poderá alcançar – repise-se - seu patrimônio excedente, ou seja,

aquele que está fora da esfera da garantia do mínimo existencial, não podendo

atingir, portanto, o bem de família, em que mora com sua família.

Com inspiração nas idéias de Enzo Roppo342, depreende-se que

o contrato de fiança, assim como os demais institutos jurídicos, devem ser

interpretados à luz da realidade em que estão inseridos, considerando-se,

sempre, as peculiaridades de cada situação e o homem a partir de suas

necessidades essenciais, no dizer de Pietro Barcellona343. Cabe lembrar e

realçar, sempre, que os contratos são regidos por uma premissa fundamental,

a sua função social, que configura preceito de ordem pública, “inválido, por

341 Ver Apelação Cível nº 2007.001.033337, da Sexta Câmara Cível, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. 342 ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Editora Almedina, 1988. p. 24-25. 343BARCELLONA, Pietro. El individualismo proprietário. Presentación Mariano Maresca. Traducción Jesús Ernesto García Rodríguez. Madrid: Editorial Trotta, S.A., 1996. p. 44.

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isso, pode ser considerado qualquer negócio ou ato jurídico que contrariar essa

disposição”, vaticina Luiz Edson Fachin344.

Nessa trilha, buscar-se-á, no próximo tópico, demonstrar que o

instituto da impenhorabilidade do bem de família em geral, e, em especial, do

fiador, desempenha importantes funções, tais como: garantir um patrimônio

mínimo para uma existência digna; servir de instrumento de proteção do direito

humano fundamental à moradia; e tutelar o princípio-base da Constituição, a

dignidade da pessoa humana.

I. 3. Da Impenhorabilidade do Bem de Família

“Dentre o conjunto de bens que integram o patrimônio da família,

é o imóvel residencial que deve ser protegido, diante dos seus múltiplos

reflexos”, apregoa Antônio de Pádua Ferraz Nogueira345.

No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa346, a

impenhorabilidade está descrita como “qualidade do que é impenhorável;

característica dos bens que, por determinação legal ou testamentária ou

mesmo por ato voluntário, não podem ser objeto de penhora”, ou seja, a lei

afasta do campo da execução certos bens que servem de suporte para a

pessoa desenvolver-se, ter uma vida digna.

Cumpre, de pronto, reconhecer o caráter protetivo do instituto da

impenhorabilidade, somado à sua função de garantir um patrimônio mínimo ao

indivíduo que, no mundo do “ter”, pouco ou nada tem, professa Luiz Edson

Fachin347, defendendo que:

(...) a garantia de um patrimônio mínimo, a exemplo do que ocorre com o denominado ‘bem de família’, não afeta direta e necessariamente o direito material de crédito propriamente dito, mas sim retira bem ( ou bens ) da órbita da executoriedade. Trata-se, por assim dizer, de uma causa elisiva, que não

344FACHIN, Luiz Edson. Questões do Direito Civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2008. p. 23. Tal premissa está fundamentada no art. 2.035, do Código Civil brasileiro de 2002. 345 NOGUEIRA, Antônio de Pádua Ferraz. Fundamentos sócio-jurídicos do bem de família (Lei 8.009/90). In: Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 691. p. 7-12, maio, 1993. 346 DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA 2.0. 347 FACHIN ( 2006 ). p. 67; 140 -286. Nesse sentido, professa o autor: “obter a guarida do patrimônio mínimo em favor dos valores fundamentais da pessoa é uma maneira de instituir um novo lugar jurídico, espaço de luta constante entre interesses e pretensões”.

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impugna a regra segundo a qual o patrimônio ( leia-se, pois, o patrimônio disponível ) do devedor é a garantia do credor.

No caso do fiador, proprietário de um único bem (o bem de

família) advoga-se que a impenhorabilidade, como garantia do mínimo

existencial, e, por conseguinte, da dignidade humana, não deslegitima o direito

de crédito (uma das múltiplas dimensões do direito de propriedade), mas

apenas lhe impõe limites, porquanto há que se ponderar os interesses em jogo:

de um lado, um direito de crédito e, de outro, um bem imóvel que serve de

abrigo ao ser humano concreto.

Nesse diapasão, Antonio de Pádua Ferraz Nogueira348 denuncia:

“infeliz a família que nos dias atuais venha perder a sua residência, pois só

remotamente poderá adquirir outra, em face do alto custo da construção e da

desproporção dos valores das prestações de compra com os dos salários”.

Vale repisar que o bem de família, assegurado legalmente ou por

meio de ato de vontade, consubstancia efetivo instrumento de realização do

direito humano fundamental à moradia. De fato, sua ratio está calcada

substancialmente na dignidade da pessoa humana e em seu pleno

desenvolvimento. A propriedade defendida, no caso do bem de família, não

consubstancia direito fundamental autônomo, mas uma via instrumental para a

realização do direito humano fundamental à habitação. Sobre o tema, cabe

ressaltar a contribuição de Ingo Wolfgang Sarlet349:

A propriedade encerra muitas vezes, notadamente em cumprindo a sua função social, um conteúdo existencial e vinculado diretamente à própria dignidade da pessoa, como ocorre por exemplo com o imóvel que serve de moradia ao titular do domínio.

De fato, a imunidade da penhora tutela o patrimônio mínimo da

pessoa, de tal sorte que, “a execução não pode levar o executado a uma

situação incompatível com a dignidade da vida humana”, afirma Luiz Edson

348 NOGUEIRA. Op. Cit. p. 7-12. 349 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 7. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007.a. p. 90.

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Fachin350. Ainda, na direção desse entendimento, Melhim Namem Chalhub351

ilustra:

A estrutura do direito de propriedade reflete a realidade econômica, política e social de cada época, de modo que sua concepção é fruto de contínua adaptação de acordo com as transformações por que passa a organização social.

A propriedade, conforme já dito alhures, abarca um arsenal de

concepções, nuances e características, que vão se transmudando de acordo

com os fatos da vida, revelando, desta forma, o que o mencionado autor

chamou de “contínua adaptação”. Trata-se, na realidade, de um processo

permanente de transformação pelo qual a propriedade, inevitavelmente, passa.

No caso do bem de família, o referido significante consubstancia um

instrumento por meio do qual o direito humano fundamental à moradia se

perfaz, se materializa, se amolda, se concretiza. A sua impenhorabilidade, no

dizer de Eliana Maria Barreiros Aina352 ӎ uma forma de garantir a moradia de

quem já a possui, e, enquanto perdurar enorme índice de deficit habitacional,

deve estender o seu alcance e não restringir como fez em relação ao fiador de

relação locatícia”.

Cabe realçar a iniciativa federal que, por meio da Lei 8.009/90,

precedida pela Medida Provisória nº 143, de 8 de março de 1990, afastou do

campo da incidência da execução civil, comercial, fiscal e previdenciária, o bem

de família e os objetos que lhe servem de guarnição. Com entendimento um

pouco diverso, Gildo dos Santos353 assevera que, não obstante a ratio do

referido diploma visar à proteção do teto do proprietário e de sua família, a

iniciativa legislativa culminou em um novo óbice para se locar um imóvel.

Diante da perspectiva de não poder penhorar o único bem do fiador, os

locadores, seja diretamente, ou por meio de empresas administradoras de

imóveis, passaram a exigir dos locatários, fiadores proprietários de mais de um

350FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006. p. 206-230. 351 CHALHUB, Melhin Namem. Propriedade Imobiliária: Função Social e Outros Aspectos. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2000. p. 1. 352 AINA. Op. Cit. p. 119. 353 SANTOS, Gilson. Locação e Despejo. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 122-125.

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bem imóvel, inibindo, desta forma, o mercado de aluguéis: pois ficou difícil

encontrar um garantidor titular de mais de um imóvel.

Com o objetivo de resolver o apontado problema, o Estado, mais

uma vez, veio, por meio de política legislativa, tentar solucionar a questão que,

aparentemente, parecia ter desencadeado uma crise no setor de locação,

prejudicando, com isso, o acesso à habitação. Desta forma, editou-se a Lei

8.245, de 18 de outubro de 1991 ( a denominada lei do inquilinato ) a qual

trouxe ao mundo jurídico e dos fatos uma nova exceção à impenhorabilidade

do bem de família, acrescentando o inciso VII ao art. 3º, da Lei 8.009/90, em

que prevê, expressamente, a possibilidade de restrição judicial do bem do

fiador de fiança locatícia.

Após a edição do referido diploma regulador do mercado de

locação, alguns doutrinadores, como Gildo dos Santos354, e parte da

jurisprudência ( sobre a qual se deitará análise minuciosa no capítulo II, deste

título ) passaram a admitir a penhora do bem de família do fiador mesmo para

os contratos firmados anteriormente à previsão legal. O mencionado autor

baseia seu entendimento na lei processual a qual no art. 591355 prevê que o

devedor responde por todos os seus bens presentes e futuros, para o

cumprimento das obrigações por ele assumidas.

Discorda-se, todavia, desta posição, porquanto é inadmissível

que uma lei posterior ( Lei 8.245/91, art. 82 c/c Lei 8.009/90, art. 3º, inciso VII )

venha alterar ato jurídico perfeito. Afinal, o contrato de fiança celebrado pelo

fiador para garantir uma obrigação decorrente de relação jurídica locatícia se

perfêz no momento de sua manifestação de vontade, sendo regido, portanto,

pelas regras à época estabelecidas. Não se pode confundir os efeitos

contínuos decorrentes da garantia, com o dies a quo do nascimento da relação

de garantia. Além disso, cumpre destacar que o contrato de fiança locatícia, por

consubstanciar, em regra, um ato de liberalidade do fiador, deve ser

354 SANTOS, Gildo ( 2006 ). p. 100 et seq. 355 Não se está aqui a questionar a constitucionalidade do art. 591, do Código de Processo Civil, o que se defende, entretanto, é a sua interpretação conforme à Constituição no sentido de afastar a referida norma do patrimônio que garante o mínimo existencial da pessoa e de sua família, no caso o cognominado bem de família.

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interpretado restritivamente, conforme determina o art. 114, do Código Civil de

2002356.

Sem inclinar para o antropocentrismo do século XIX, em que

imperava os interesses basicamente individuais, sustenta Luiz Edson Fachin357

que:

a pessoa pode ser, à luz do Direito Civil Contemporâneo, dotada de uma garantia patrimonial que integra sua esfera jurídica. Trata-se de um patrimônio mínimo mensurado parâmetros elementares de uma vida digna e do qual não pode ser expropriado ou desapossado. Por força desse princípio, independente de previsão legislativa específica instituidora dessa figura jurídica, e, para além de mera impenhorabilidade como abonação, ou inalienabilidade como gravame, sustenta-se existir imunidade juridicamente inata ao ser humano, superior aos interesses dos credores.

Na linha de intelecção do mencionado jurista contemporâneo,

cabe trazer à lume o questionamento do filósofo Immanuel Kant358: “até que

ponto se deveria despender os próprios recursos na prática da beneficência?”

respondendo a sua própria indagação: “Certamente não ao ponto do benfeitor

ele mesmo finalmente chegar a necessitar da beneficência de outros”.

Nesse contexto, pretende-se, no próximo tópico, defender a

constitucionalidade condicionada da exceção prevista no inciso VII, art. 3º, da

Lei 8009/90, à luz da Constituição Federal de 1988, ou seja, somente é

constitucional a indigitada norma se interpretada conforme os preceitos

contemplados no texto constitucional, como o mínimo existencial.

I. 4. Da Constitucionalidade Condicionada do Art. 3º, inciso VII da Lei 8.009/90 – Lei do Bem de Família.

A análise crítica do art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90 – Lei do

Bem de Família, permeia necessariamente a doutrina do controle de

constitucionalidade a qual, a despeito de sua importância, será apenas

356 BRASIL. Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário Oficial da União, Poder Executivo. “Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente”. 357 FACHIN ( 2006 ). p.1.

358 KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Tradução, textos adicionais e notas Edson Bini. São Paulo: Editora Edipro, 2003. p. 297.

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abordada incidentalmente, considerando a delimitação contextual do trabalho

em tela.

Nesse contexto, elucida Luís Roberto Barroso359, inspirado nas

lições de Claus-Wilhelm Canaris:

O ordenamento jurídico é um sistema. Um sistema pressupõe ordem e unidade, devendo suas partes conviver de maneira harmoniosa. A quebra dessa harmonia deverá deflagrar mecanismos de correção destinados a restabelecê-la. O controle de constitucionalidade é um desses mecanismos, provavelmente o mais importante, consistindo na compatibilidade entre uma lei ou qualquer ato normativo infraconstitucional e a Constituição.

Na mesma trilha do constitucionalista brasileiro, parece caminhar

o italiano Riccardo Guastini360 que afirma a importância do processo de

constitucionalização do Direito, o qual se projeta a partir de certos

pressupostos, como por exemplo: 1. a existência de uma Constituição rígida361;

2. a garantia jurisdicional da Constituição, consubstanciada na idéia de controle

das normas infraconstitucionais, das quais se exige conformidade com as

regras e os princípios constitucionais362; 3. a força vinculante da Constituição,

no sentido de que “cada norma constitucional – independentemente da sua

estrutura ou do seu conteúdo normativo – seja uma norma jurídica genuína,

vinculante e suscetível de produzir efeitos jurídicos”, explica o mencionado

jurista italiano; 4. a sobre-interpretação da Constituição, consistente em “um

movimento interpretativo que tende a desconsiderar que o Direito

359BARROSO, Luis Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. p. 1. 360 GUASTINI, Riccardo. A ‘Constitucionalização` do Ordenamento Jurídico e a Experiência Italiana. In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e Daniel Sarmento. A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lúmen, 2007. p. 273. 361 Idem. Ibidem. Tipo de Constituição que exige complexo processo legislativo para a sua alteração. Segundo o autor, “uma Constituição é rígida se e somente se: em primeiro lugar, é escrita: e, em segundo lugar, é protegida ( ou garantida ) contra a legislação ‘ordinária’, no sentido de que as normas constitucionais não podem ser derrogadas, modificadas ou ab-rogadas, salvo por meio de um procedimento especial de revisão constitucional ( mais complexo que o procedimento de formação das leis ). 362Idem. Ibidem. p. 274. Conforme ensina o jurista, existem diversos sistemas de controle, dentre eles destacam-se: 1. o modelo americano, controle a posteriori, por via de exceção, exercido in concreto pelos juizes; o modelo francês, controle a priori, por via de ação, in abstracto, exercido, em regra, por um Tribunal Constitucional; e o modelo adotado em países como Alemanha, Itália, Espanha etc., assim como o modelo americano, o controle é a posteriori, por via de exceção, in concreto, porém exercido por um Tribunal Constitucional. No Brasil, como é cediço, adota-se um sistema misto, o qual mescla o sistema americano e o sistema europeu, porquanto tem-se o controle por via de ação e por via incidental. Nesse sentido ver Guilherme Pena de Moraes, in: DE MORAES, Guilherme Pena. Direito Constitucional: Teoria da Constituição. 3. ed. rev.. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2006, p. 146-147.

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Constitucional seja lacunoso”363; 5. a aplicação direta das normas

constitucionais, as quais podem produzir efeitos imediatos e diretos, bem como

ser aplicadas por todos os magistrados diante de um caso concreto364; e 6. a

interpretação adequada das leis, isto é, as leis devem ser interpretadas

conforme a Constituição. É preciso ponderar que, em regra, as normas têm

sentido multívoco – e muitas vezes algum ou alguns desses sentidos não se

coadunam com a Carta Maior - exigindo do intérprete que escolha aquele (es )

que se harmoniza com a Constituição365. Na realidade, o que se busca com a

técnica da interpretação conforme à Constituição é salvar um dos sentidos da

norma, garantindo, desta forma, a sua validade e, por conseguinte, a sua

aplicabilidade no mundo da vida.

Nessa toada, Riccardo Guastini366 relata a experiência

constitucional italiana e destaca que a interpretação das leis conforme a

Constituição – também denominada de interpretação “adequadora” ou

“harmonizante”- é realizada pela Corte Constitucional, bem como pelos juizes

de primeiro grau367. Ressalte-se que o manejo da referida técnica de

363 Idem. Ibidem. p. 276. Assevera o jurista que a sobre-interpretação pressupõe a existência de dois aspectos: o primeiro diz respeito à “recusa da interpretação literal e do conexo argumento a contrario senso, que geralmente trazem à lume lacunas ( embora o argumento a contrario senso também possa ser usado para preenchê-las)”; e o segundo refere-se à “ construção de normas implícitas, idôneas para completar lacunas enquanto não sejam evitáveis”. 364 Idem. Ibidem. p. 277. Professa o autor que no liberalismo clássico do século XVIII, a função da Constituição era a de limitar o poder estatal. Deste modo, as normas constitucionais não regulavam de forma alguma as relações entre os particulares, cuja disciplina decorria da legislação ordinária ( em especial o Código Civil ). Já o Constitucionalismo contemporâneo alça as normas constitucionais a um patamar axiologicamente superior às normas infraconstitucionais, exigindo destas observância aos ditames daquelas. Sem esquecer que nessa seara, os direitos humanos fundamentais e a dignidade da pessoa humana servem de bússola para todo o sistema jurídico. 365GUASTINI. Op. Cit. p. 278. No dizer do pensador: “a interpretação conforme é, em suma, aquela que adequa/harmoniza a lei à Constituição ( previamente interpretada, entende-se ), escolhendo – diante de uma dúplice possibilidade interpretativa – o significado ( ou seja, a norma ) que evita toda contradição existente entre lei e Constituição”. Vale destacar, ainda, outro aspecto do processo de constitucionalização do Direito que o autor traz à baila, trata-se “da influência das normas constitucionais sobre as relações políticas”. Afirma, entretanto, ser tal perspectiva de difícil assimilação, porquanto depende de outros variados fatores, tais como; o escopo da Constituição e a visão dos magistrados, dos agentes políticos e dos órgãos constitucionais. 366 Idem. Ibidem.p. 284-287. 367 No Brasil, o controle de constitucionalidade pelos juizes de primeiro grau, como é cediço, se dá no sistema difuso, isto é, no bojo de uma ação em curso. Ensina Luis Roberto Barroso: “Na instância ordinária, tanto em primeiro como em segundo grau de jurisdição, pode o órgão judicial suscitar a inconstitucionalidade de norma aplicável à hipótese, não se operando a respeito a preclusão”. In: BARROSO, Luis Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2004. p. 72. Para Lenio Luiz Streck “o juiz singular não declara a inconstitucionalidade de uma lei; apenas deixa de aplicá-la “. Ver STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 360-365. Este, no entanto, não é o entendimento da doutrina majoritária, que reputa competente o juiz singular para declarar o texto normativo inconstitucional, nesse sentido ver: DE MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2005. p. 635. Para este constitucionalista, o controle difuso ou aberto “caracteriza-se pela permissão a todo e qualquer juiz ou tribunal realizar no caso concreto a análise sobre a compatibilidade do ordenamento jurídico com a Constituição Federal”. O autor cita a decisão proferida em sede de

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hermenêutica pela Corte constitucional italiana é feito de diversas formas, tais

como:

1. Decisões “interpretativas” em sentido estrito. Fala-se de ‘sentenças interpretativas’ para se fazer referência a toda decisão da Corte que não verse diretamente sobre uma disposição legislativa, ou seja, sobre o texto da lei enquanto tal, mas, ao invés, sobre uma – apenas uma – das normas expressas pelo texto e, portanto, sobre uma das suas possíveis interpretações (...). (...) Elas se manifestam por meio de dois tipos principais: a) as decisões que ‘rejeitam’ a dúvida de legitimidade constitucional, declarando-a infundada; e b) as decisões que ‘acolhem’ a dúvida de legitimidade constitucional, declarando-a fundada, cujo efeito consiste na anulação da norma em questão. 2. Decisões ‘manipuladoras’. Chamam-se de ‘manipuladoras’ (ou, ainda, ‘normativas’) aquelas sentenças de acolhimento em que a Corte Constitucional não se limita a declarar a ilegitimidade constitucional das normas que lhe são submetidas para apreciação, mas – comportando-se como um verdadeiro legislador positivo – modifica diretamente o ordenamento com o escopo de harmonizá-lo com a Constituição. Existem dois tipos fundamentais de sentenças manipuladoras: a) sentenças ‘aditivas’. As sentenças que se costuma chamar

de ‘aditivas’ são aquelas em que a Corte declara a ilegitimidade constitucional de uma dada disposição na parte em que não expressa uma certa norma (que deveria expressar para ser conforme a Constituição)368;

b) sentenças ‘substitutivas’. Denominam-se ‘substitutivas’

aquelas sentenças em que a Corte declara a ilegitimidade constitucional de uma dada disposição na parte em que expressa uma certa norma ao invés de outra: uma norma distinta, que ela deveria expressar para ser caracterizada conforme a Constituição369.

No sistema constitucional brasileiro, encontram-se exemplos de

sentenças substitutivas, consoante se verifica na decisão proferida pelo

Recurso Extraordinário ( nº 117.805/ 93-PR ), da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence, na qual admitiu-se a competência do juiz de primeira instância realizar o controle difuso de constitucionalidade. 368 GUASTINI. Op. Cit. p. 285. Explica o autor que tais sentenças têm como fundamento o princípio da igualdade. 369 Idem. Ibidem. p. 278. A título de exemplo, aponta o autor a seguinte hipótese: “um dispositivo confere um certo poder a um certo órgão estatal ( 01 ), enquanto que, segundo a Constituição ( da forma como é interpretada pela Corte ), tal poder deveria ser conferido a um outro órgão (02 ). Por conseguinte, o dispositivo é inconstitucional e, portanto, deveria ser anulado”.

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Plenário do Supremo Tribunal Federal370, na qual, utilizando como fundamento

a doutrina européia da inconstitucionalidade progressiva, reconheceu que a

norma insculpida no art. 68, do Código de Processo Penal, o qual prevê a

legitimidade do Ministério Público para propor ação ex delicto na hipótese de a

vítima ser economicamente hipossuficiente, está em gradual processo de

inconstitucionalidade, considerando a mutação natural dos fatos.

Ainda, no tocante às formas de interpretação adotada pela Corte

Constitucional italiana, merece destaque as chamadas “decisões

interpretativas”, vez que, por meio delas é possível expurgar do cenário jurídico

qualquer sentido da norma que viole a Constituição e os direitos humanos

fundamentais, sem, necessariamente, alterar o texto legal. Nesse passo tem

caminhado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, consoante se

depreende da ementa371 a seguir aduzida:

EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. ESTABELECIMENTOS DE ENSINO. TRANSFERÊNCIA OBRIGATÓRIA. LEI 9.536/1997. CONGENERIDADE DA NATUREZA JURÍDICA DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO ENVOLVIDAS. PRECEDENTE: ADI 3.324. Em 16.12.2004, o Plenário desta Corte julgou procedente, em parte, a ADI 3.324 (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 02.02.2005), declarando a inconstitucionalidade, sem redução de texto, do art. 1º da Lei 9.536/1997, para assentar que a transferência de militar e seus dependentes somente é de ser permitida entre

370BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 135328 / SP. Julgamento: 29/06/1994. LEGITIMIDADE - AÇÃO "EX DELICTO" - MINISTÉRIO PÚBLICO - DEFENSORIA PÚBLICA - ARTIGO 68 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL - CARTA DA REPÚBLICA DE 1988. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 30/01/2008. Conforme se depreende da ementa: “A teor do disposto no artigo 134 da Constituição Federal, cabe à Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a orientação e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV, da Carta, estando restrita a atuação do Ministério Público, no campo dos interesses sociais e individuais, àqueles indisponíveis (parte final do artigo 127 da Constituição Federal). INCONSTITUCIONALIDADE PROGRESSIVA - VIABILIZAÇÃO DO EXERCÍCIO DE DIREITO ASSEGURADO CONSTITUCIONALMENTE - ASSISTÊNCIA JURÍDICA E JUDICIÁRIA DOS NECESSITADOS - SUBSISTÊNCIA TEMPORÁRIA DA LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ao Estado, no que assegurado constitucionalmente certo direito, cumpre viabilizar o respectivo exercício. Enquanto não criada por lei, organizada - e, portanto, preenchidos os cargos próprios, na unidade da Federação - a Defensoria Pública, permanece em vigor o artigo 68 do Código de Processo Penal, estando o Ministério Público legitimado para a ação de ressarcimento nele prevista. Irrelevância de a assistência vir sendo prestada por órgão da Procuradoria Geral do Estado, em face de não lhe competir, constitucionalmente, a defesa daqueles que não possam demandar, contratando diretamente profissional da advocacia, sem prejuízo do próprio sustento”.

371 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL nº 541533/PR. Diário de Justiça de Justiça de 29-06-2007 PP-00139. ESTABELECIMENTOS DE ENSINO. TRANSFERÊNCIA OBRIGATÓRIA. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 30/01/2008.

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instituições de mesma espécie, em respeito ao princípio da isonomia. Em síntese, dar-se-á a matrícula, segundo o art. 1º da Lei 9.536/1997, em instituição privada se assim o for a de origem, e em pública se o servidor ou o dependente for egresso de instituição pública. Agravo regimental a que se nega provimento ( grifo nosso ).

Na mesma linha de argumentação, Luis Roberto Barroso372

professa que o método interpretativo clássico - calcado no ideário de que o

Direito está delimitado abstratamente na norma e que, ao magistrado cabe o

exercício da subsunção do fato ao dispositivo legal - está ultrapassado pela

concepção contemporânea do direito constitucional, que redesenha o papel da

norma e do julgador. No tocante ao papel daquela, complementa o autor373

verificou-se que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz do problema, dos fatos relevantes, analisados topicamente.

No que diz respeito ao juiz, sua função não é mais apenas

cognitiva, porquanto ele passou a ser partícipe “do processo de criação do

Direito”, ensina, ainda, o constitucionalista pátrio. Dessa forma, é imperioso

reconhecer a relevância de significantes como as cláusulas gerais374, os

princípios375, as colisões de normas constitucionais, o critério da ponderação, e

372 BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito ( O Triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil ). In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e SARMENTO, Daniel (coordenadores). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lúmen, 2007. p. 203-249. 373 BARROSO ( 2007 ). Assevera o autor que ao juiz cabe a tarefa de completar “o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis. 373 As cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados, segundo Luis Roberto Barroso, “contêm termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de significação a ser complementado pelo intérprete, levando-se em conta as circunstâncias do caso concreto”. Ver DE SOUZA NETO. Op. Cit. p. 214. 374 As cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados, segundo Luis Roberto Barroso, “contêm termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de significação a ser complementado pelo intérprete, levando-se em conta as circunstâncias do caso concreto”. Ver DE SOUZA NETO. Op. Cit. p. 214. 375 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2. ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2003. p. 119. Para o autor, os princípios “são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção”. Já Luis Roberto Barroso concebe os princípios como “normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios”. In: DE SOUZA NETO. Op. Cit. p. 214.

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a argumentação376, esta consubstanciada na idéia de racionalidade: todos

representam instrumentos que auxiliam o processo hermenêutico.

A jurisdição constitucional é outro ponto relevante para o estudo

aqui delimitado. De pronto, cabe trazer à lume a contribuição de Robert

Alexy377, o qual concebe a jurisdição constitucional como “ uma expressão da

prioridade ou superioridade dos direitos fundamentais sobre e contra a

legislação parlamentar”, e complementa: “a jurisdição constitucional representa

um exercício da atividade estatal”. Indaga, entretanto, o pensador alemão se

haveria compatibilidade entre democracia (esta vista sob a perspectiva da

vontade do povo, como voz ativa ) e a atividade de jurisdição constitucional

exercida pelos magistrados, os quais não são eleitos pelo povo, como o são os

parlamentares? O próprio autor busca a resposta, embasando a legitimidade

dos juizes da Corte Constitucional com a tese da representação argumentativa,

e assevera:

É necessário não apenas que a Corte sustente que seus argumentos são argumentos do povo; um número suficiente de pessoas deve, pelo menos na média, aceitar esses argumentos como razões de correção. Somente pessoas racionais são capazes de aceitar um argumento sob o fundamento de que ele é correto ou plausível.

Nesse passo, Jürgen Habermas378 desenvolve a teoria

procedimental e discursiva da democracia, tendo por escopo os direitos

humanos fundamentais, os quais resultam de escolhas feitas pelos membros

da sociedade, que admitem como legítima a normatividade positiva. A força

argumentativa do discurso, por sua vez, seria a alavanca do processo

376Cf. Luis Roberto Barroso, 376 A colisão de normas é natural num mundo globalizado inserido no contexto contemporâneo de Constituições de conteúdo dialético. Diante de tal situação, isto é, na hipótese de colisão de normas, em abstrato, de mesmo valor hierárquico, deve-se adotar o método da ponderação. No tocante ao critério da ponderação, preleciona o autor: “a ponderação de normas, bens ou valores é a técnica a ser utilizada pelo intérprete, por via da qual ele fará concessões recíprocas, procurando preservar o máximo possível de cada um dos interesses em disputa (...)”. Por fim, a argumentação vincula-se “à razão prática, ao controle da racionalidade das decisões proferidas, mediante ponderação, nos casos difíceis, que são aqueles que comportam mais de uma solução possível e razoável”, ensina o constitucionalista. In: DE SOUZA NETO. Op. Cit. p. 215-216. 377 ALEXY, Robert. Ponderação, Jurisdição Constitucional e Representação Popular. Tradução Thomas da Rosa de Bustamante. In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e SARMENTO, Daniel ( coordenadores ). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lúmen, 2007. p. 300-301. 378HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Faticidade e Validade. Tradução Flavio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1997. p. 15.

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deliberativo. O filósofo observa, ainda, que os direitos humanos fundamentais

são pilares necessários para a construção de um legítimo processo

democrático. Nesse sentido, assevera Gustavo Binenbojm379, amparado na

doutrina do mencionado pensador:

sendo condições necessárias do processo democrático, os direitos fundamentais devem ficar imunes à vontade da maioria legislativa; com efeito, a maioria democraticamente eleita não tem a prerrogativa de inviabilizar o próprio procedimento democrático. Aqui se situa o locus de atuação legítima da jurisdição constitucional: a proteção do sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e política dos cidadãos, condição da gênese democrática das leis.

Entende-se, na realidade, que a Constituição de 1988, elaborada

por uma Assembléia Constituinte, composta por representantes do povo, ao

prever a competência da Corte Constitucional para julgar a validade da

normativa infraconstitucional em face de suas normas, já está,

automaticamente, legitimando os julgadores no exercício da jurisdição

constitucional, sem esquecer que tal mister tem como premissa elementar a

tutela dos direitos e garantias fundamentais.

Nessa ordem de idéias, reconhece-se a importância do estudo

sobre o controle da constitucionalidade das normas de um sistema jurídico,

sobretudo, num Estado Constitucional Democrático de Direito. Não há,

todavia, a pretensão de se estender para além das breves linhas aqui traçadas,

considerando o objetivo central deste tópico, que se limita a analisar a (in)

constitucionalidade, ou a constitucionalidade condicionada da norma inscrita no

art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, a qual prevê a penhora do bem de família do

fiador em contrato de locação.

Antes, porém, de se deitar sobre o controvertido inciso VII, cabe,

de imediato, destacar que há divergência doutrinária acerca da

constitucionalidade do mencionado diploma legal. Uma primeira corrente 379BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira: Legitimidade democrática e instrumentos de realização. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 110-113. Cf. explica o autor: “a pretensão de Habermas é, assim, substituir os fundamentos moral ou transcendental dos direitos do homem, próprios da tradição liberal, por um fundamento procedimental, extraído de sua teoria democrática. O princípio do discurso, elevado à condição de idéia-força da democracia, pressupõe uma igualitarização de fundamento comunicacional entre os indivíduos, pedra angular de um novo contrato social”.

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(minoritária), capitaneada por Carlos Callage380, defende a tese da

inconstitucionalidade da Lei 8.009/90, por entender que tal previsão normativa

prejudica o sistema econômico, enfraquecendo o “princípio universal da

sujeição do patrimônio às dívidas”. O mencionado jurista busca fundamento

para sua posição no direito de propriedade, argumentando que o direito de

crédito se subsume naquele, merecendo, portanto, a proteção da

fundamentalidade.

Não se tem dúvida de que a Carta de 1988 consagra o direito de

propriedade como um valor fundamental, mas o próprio texto constitucional

ressalva a observância de sua função social, conforme já abordado. Desta

forma, tal posição, com a devida vênia, não encontra guarida no direito

contemporâneo - amparado na idéia de que o homem existencial, de carne e

osso, prevalece em detrimento do ser em abstrato-, tampouco tem acolhida na

Constituição de 1988, que alça ao patamar de princípios fundamentais da

República brasileira, a solidariedade e a dignidade humana.

Em sentido contrário, segue a outra corrente doutrinária

(majoritária)381, que advoga a constitucionalidade do referido diploma legal,

reconhecendo a relevância social da instituição do bem de família legal. Nesse

contexto, aponta Andréa Farias Guedes382 “que o fiador e sua família, ao

utilizar o bem de família para morar estarão respeitando o princípio da função

social da propriedade”. Na mesma linha de pensamento, Maria Celina Bodin de

Moraes383 professa:

(...) despropositada parece a permissão legal para a execução do bem de família (...) para pagamento de obrigação assumida,

380 CALLAGE, Carlos. Inconstitucionalidade da Lei 8.009, de 29 de março de 1990 ( impenhorabilidade do imóvel residencial ). São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 662, dez./1990. p. 23-24. 381 Encampam tal corrente, apenas a título de exemplo: Luiz Edson Fachin. In: FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006; Eliane Maria Barreiros Aina. In: AINA, Eliane Maria Barreiros. O Fiador e o Direito à Moradia: Direito Fundamental à Moradia Frente à Situação do Fiador proprietário de Bem de Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2004; Genacéia da Silva Alberton. In: ALBERTON, Genacéia da Silva. Impenhorabilidade de Bem Imóvel Residencial do Fiador. In: TUCCI, José Rogério Cruz e. (coordenador). A Penhora e o Bem de Família do Fiador da Locação. São Paulo; Editora Revista dos Tribunais, 2003; e Maria Celina Bodin de Moraes. Comentários às Disposições Gerais. Arts. 27 a 45. In: BITTAR, Carlos Alberto ( organizador ). Lei do Inquilinato Anotada e Comentada. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. 382 GUEDES, Andrea Farias. O direito constitucional à moradia do fiador nos contratos de locação de imóveis. Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/>. p. 7. Pesquisa realizada em 02/02/2008. 383 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Comentários às Disposições Gerais. Arts. 27 a 45. In: BITTAR, Carlos Alberto ( organizador ). Lei do Inquilinato Anotada e Comentada. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense. p. 48-49.

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no mais das vezes, por amizade e gratuitamente. Procurar resolver um problema prático desconsiderando a sistemática do ordenamento e os valores existenciais que estão em posição hierarquicamente superior é atuar emergencialmente. E o legislador de emergência, como se sabe, é um mau legislador.

De fato, não se pode negar o direito de crédito do credor; o que

se questiona é a política legislativa que dá prevalência ao “ter” do credor em

detrimento do “viver sob um teto do fiador”. Em defesa da humanização do

Direito a partir interpretação das normas e da construção jurisprudencial,

pondera Luiz Edson Fachin384: “entre a garantia creditícia e a dignidade

pessoal, opta-se por esta que deve propiciar a manutenção dos meios

indispensáveis à sobrevivência”. Deste modo, admitir que um direito de crédito,

decorrente de obrigação assumida em contrato de fiança, por conta de garantia

em contrato de locação, tenha força de, numa execução, excutir o único bem

do fiador, é fazer letra morta da Constituição e desconsiderar a essencialidade

do direito humano fundamental `a moradia.

Nesse passo, Eliane Maria Barreiros Aina385 vaticina: “o valor

moradia é uma necessidade existencial da pessoa humana antes mesmo de

agrupada em um núcleo familiar”. Ademais, reforça Flavio Murilo Tartuce

Silva386 que “o direito constitucional à moradia acaba limitando a autonomia

privada”. Para embasar sua posição, o mencionado jurista traz à baila o

Enunciado nº 24, editado pelo Conselho da Justiça Federal, por ocasião da

realização da I Jornada de Direito Civil:

a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo a dignidade da pessoa humana.

384 FACHIN ( 2006 ). p. 173. Aduz, ainda, o mencionado autor: “humanismo e solidariedade constituem, quando menos, duas ferramentas para compreender esse desafio que bate às portas do terceiro milênio com mais intensidade. Reacender o significado de projeto de vida em comum é uma tarefa que incumbe a todos, num processo sacudido pelos fatos e pela velocidade das transformações”. 385 AINA. Op. Cit. p. 45. 386 SILVA, Flávio Murilo Tartuce . A inconstitucionalidade da previsão do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90. Disponível em: <http://www.juristas.com.br/>.Pesquisa realizada em: 4/2/2008.

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Nessa seara, ensina Daniel Sarmento387:

A constitucionalização do Direito Privado não se resume ao acolhimento, em sede constitucional, de normas pertinentes, às relações privadas. Ela traduz fenômeno mais profundo, que impõe uma releitura de todos os institutos e conceitos do Direito Privado a partir da axiologia constitucional (...).

Genacéia da Silva Alberton388, por seu turno, ressalta que a

denominada lei do bem de família, ao estabelecer mais uma forma de proteção

ao bem que serve de abrigo à família - além daquela prevista no Código Civil -,

“trouxe em si matizes axiológicos de conteúdo constitucional atendendo um dos

princípios fundamentais da Carta Magna, isto é, promover a dignidade da

pessoa humana”.

Há que se considerar que, a norma inserta no art. 3º, inciso VII,

da Lei 8.009/90389, que afasta o véu da imunidade (da impenhorabilidade) do

bem de família do fiador, viola a Constituição Federal de 1988, sob vários

aspectos: 1. viola o princípio da dignidade da pessoa humana; 2. contraria o

princípio da igualdade, vez que dá tratamento desigual ao locatário em

detrimento do fiador; 3. afronta o princípio da proibição do retrocesso; e, por

fim, 4. viola outros valores fundamentais como: a vida, o desenvolvimento

humano e o mínimo existencial.

Sobre o primeiro aspecto mencionado, Maria Celina Bodin de

Moraes390 reitera que, no Brasil, a dignidade humana, por força da Carta de

1988, verteu-se numa premissa com força normativa, apoiada “no imperativo

categórico kantiano”391. Desta feita, a proteção do bem de família ultrapassa a

fronteira patrimonial, porquanto visa à tutela da família e, sobretudo, da

dignidade dos seus membros. Vale realçar que a Constituição de 1988 garante

387 SARMENTO, DANIEL. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2006. p. 324-325. 388ALBERTON, Genacéia da Silva. Impenhorabilidade de Bem Imóvel Residencial do Fiador. In: TUCCI, José Rogério Cruz e.( coordenador ). A Penhora e o Bem de Família do Fiador da Locação. São Paulo; Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 118-119. 389 “Art. 3º. A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de qualquer natureza, salvo se movido: VII. por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação ( grifo nosso )”. 390 MORAIS, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana: Uma leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2003. p. 82. 391 Cf. lições de Immanuel Kant, “os imperativos têm um valor objetivo”, in: KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Tradução Rodolfo Schaefer. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006. p. 28.

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proteção à família, conforme expressa o art. 226, in verbis: “A família, base da

sociedade, tem especial proteção do Estado”. Não se admite, portanto, que o

próprio Ente Público, por meio de sua função legiferante, crie óbices ao pleno

desenvolvimento familiar.

No que se refere ao princípio da igualdade, merece relevo a

doutrina de Pietro Perlingieri392que associa a igualdade a paridade de

tratamento, mas alerta: A paridade de tratamento exaure-se no princípio retributivo. O princípio da igualdade supera a posição formal da paridade para realizar a igualdade substancial: quando existe desigualdade de fato, não existe espaço para o princípio da paridade de tratamento.

Conforme entendimento do referido jurista italiano, a igualdade

material exprime a idéia de justiça social e, citando a Constituição italiana,

afirma que:

o valor da justiça social, expresso no Texto fundamental (...), há de incidir no direito civil, contribuindo, em sede interpretativa, para individuar o conteúdo específico que, concretamente, devem assumir as cláusulas gerais das quais é cravejada a legislação: da eqüidade à lealdade ( correttezza ), do estado de necessidade à lesão (...).

Trazendo para a realidade brasileira as lições de Pietro

Perlingieri, verifica-se a quebra de isonomia substancial existente entre o

locatário e o fiador. Conforme se extrai da inteligência do texto da Lei 8.009/00,

o bem de família do locatário estará a salvo de suas dívidas civis; isto é, o

crédito do locador não poderá ser satisfeito com possível penhora de seu único

bem imóvel, pois este está protegido pelo véu da impenhorabilidade; por outro

lado, o fiador que nada deve, apenas assumiu a posição de garantidor, no caso

de inadimplemento do seu afiançado, terá sua casa penhorada para pagar as

dívidas daquele, vez que a lei afastou da proteção o seu bem de família.

392 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007. p. 44-51.

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Ora, tal situação chega ao extremo do absurdo, pois, como muito

bem argumentou Genacéia da Silva Alberton393, ao se referir à hipótese de

exceção à impenhorabilidade do bem de família introduzida pela Lei do

inquilinato:

é difícil, efetivamente, admitir que, nós operadores do Direito, não percebamos, pela mera leitura do texto legal, que há uma flagrante injustiça e a inobservância de princípio constitucional da isonomia que lhe retira a validez. (...) Se há uma desigualdade de tratamento entre devedor principal e fiador, não aplicar o art. 82 da Lei 8.245 ( tal dispositivo prevê a inserção do inciso VII ao art. 3º, da lei do bem de família, o qual afasta a impenhorabilidade do bem do fiador em contrato de locação ) não é negar-lhe vigência, mas afirmar a sua invalidade por trazer como conseqüência a inobservância do princípio constitucional da isonomia previsto no caput do art. 5º da CF.

É bastante discutível o argumento econômico conseqüencialista

adotado por parte da doutrina394 e da jurisprudência395 que admitem a

possibilidade de penhora do bem do fiador como forma de incentivar o mercado

imobiliário e, por conseguinte, o acesso à habitação. Em que pese a locação

também ser uma das formas de tal acesso – fato que não se discute -

questiona-se, por outro lado a superficialidade do discurso, considerando que,

na realidade, o que se está a prestigiar é a segurança do direito de crédito do

locador em detrimento da dignidade da pessoa humana (do fiador e de sua

família), do direito humano fundamental à moradia.

Na seara do discurso conseqüencialista econômico, Sérgio

Iglesias Nunes de Souza396 defende a constitucionalidade do inciso VII

argumentando:

393 ALBERTON. Op. Cit. p. 122-125.. 394 Nesse sentido ver TUCCI, José Rogério Cruz e. Penhora sobre o Bem do Fiador de Locação. p. 15; SICA, Heitor Vitor Mendonça. Questões Polêmicas e Atuais acerca da Fiança Locatícia. p. 49. In: TUCCI, José Rogério Cruz e.( coordenador ). A Penhora e o Bem de Família do Fiador da Locação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003; e SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 273. 395 Consoante será explicitado no cap.II, do Título II, do presente trabalho. 396 SOUZA, Sérgio Iglesias Nunes de. Direito à Moradia e de Habitação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p.272-274. O autor faz distinção, conforme já destacou-se anteriormente, entre direito à moradia e direito de habitação. Ao primeiro ele reconhece o caráter de direito humano fundamental. No que toca ao segundo, o de habitação, o autor o reputa como a forma de exercício daquele. Não se dota, no entanto tal distinção, ao cabo do que faz a ordem internacional.

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Na realidade, a lei visou a proteger e estimular o mercado imobiliário e facilitar a realização dos contratos locatícios. (...) Com a referida norma facilita-se o direito à moradia não só do locatário, mas da coletividade, pois se propicia com ela o aumento de moradas para a população, sem a necessidade de aquisição de um imóvel. Assim, poder-se-ia falar em recepcionalidade da norma legal se fosse estabelecida a penhorabilidade do imóvel residencial do fiador – ainda que seu único imóvel -, para contratos de locação de caráter exclusivamente residencial.

Seguir o raciocínio do mencionado autor implica aceitar a

validade da regra da penhora do bem do fiador quando se tratar de locação

eminentemente residencial e rejeitá-la na hipótese de locação de natureza

mercantil. Ocorre que a tutela do bem de família do garantidor ultrapassa o

aspecto meramente jurídico, porquanto envolve a proteção de uma série de

valores (como já incansavelmente apregoado neste trabalho), a começar pela

dignidade da pessoa humana, que não se modifica em razão da natureza

jurídica de um contrato. Em outras palavras, a moradia do fiador deve ser

protegida independentemente de se tratar de locação residencial ou não, visto

que a tutela em questão abrange outros significantes diretamente vinculados

ao direito à vida digna.

De fato, a defesa da fiança como forma de facilitar a locação e,

por conseguinte, o acesso à habitação, não pode prejudicar diretamente aquele

que já conseguiu alcançar o sonho da casa própria, e que, da noite para o dia,

se vê desalojado, por que o legislador decidiu fazer política habitacional

questionável utilizando como instrumento seu ato de liberalidade; sem levar em

consideração que, na maioria das vezes, o mesmo assume posição de garante

sem saber que seu único bem imóvel poderá ser objeto de penhora, na

hipótese de inadimplência do locatário, em contrato de locação no qual foi

fiador. Importante repisar que a hermenêutica do Direito deve considerar,

necessariamente, o contexto social e cultural ao aplicar determinada norma

jurídica a um caso concreto.

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O Princípio da Proibição do Retrocesso também é violado pela

norma inserta no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90. A respeito de tal norma

principiológica, Luciano de Souza Godoy397leciona:

se uma lei trouxe um benefício, um determinado proveito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da sociedade. Lei posterior não pode suprir um direito social ou uma garantia social sob pena de promover um retrocesso, violando igualmente um princípio constitucional.

Ingo Wolfgang Sarlet398 professa que o princípio da proibição do

retrocesso está implicitamente contemplado no sistema normativo-

constitucional brasileiro, conforme se depreende de alguns fundamentos, tais

como:

1. Do princípio do Estado democrático e social de Direito, que impõe um patamar mínimo de segurança jurídica, o qual necessariamente abrange a proteção de confiança e a manutenção de um nível mínimo de continuidade da ordem jurídica, além de uma segurança contra medidas retroativas e, pelo menos em certa medida, atos de cunho retrocessivo de um modo geral; 2. Do princípio da dignidade da pessoa humana que, exigindo a satisfação – por meio de prestações positivas ( e, portanto, de direitos fundamentais sociais ) – de uma existência condigna para todos, tem como efeito, na sua perspectiva negativa, a inviabilidade de medidas que fiquem aquém deste patamar; e 3. Do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, contido no artigo 5º, § 1º, e que necessariamente abrange também a maximização da proteção dos direitos fundamentais. Com efeito, a indispensável otimização da eficácia e efetividade do direito à segurança jurídica ( e, portanto, sempre também do princípio da segurança jurídica ) reclama que se dê ao mesmo a maior proteção possível, o que, por seu turno, exige uma proteção também contra medidas de caráter retrocessivo, inclusive na acepção aqui desenvolvida399.

397 GODOY, Luciano de Souza. O Direito à Moradia e o Contrato de Mútuo Imobiliário. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2006. p. 187. 398 SARLET ( 2007.a ). p. 454-457. 399 Idem. Ibidem. p.457. O autor aponta, ainda, outros fundamentos: “a) As manifestações específicas e expressamente previstas na Constituição, no que diz com a proteção contra medidas de cunho retroativo ( na qual se enquadra a proteção dos direitos adquiridos, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito ) não dão conta do universo de situações que integram a noção mais ampla de segurança jurídica, que, de resto, encontra fundamento direto no artigo 5º, caput, da nossa Lei Fundamental e no princípio do Estado social e democrático de Direito; b) O princípio da proteção da confiança, na condição de elemento nuclear do Estado de Direito ( além da sua íntima conexão com a própria segurança jurídica ) impõe ao poder público – inclusive ( mas não exclusivamente ) como exigência de boa-fé nas relações com os

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Consoante as lições do mencionado autor, o princípio da

proibição do retrocesso tem como escopo inibir a atuação do Poder Público,

em todas as suas esferas, no sentido de evitar violação frontal aos direitos

humanos fundamentais e às demais normas constitucionais. Tal princípio pode

ser invocado para afastar a norma inserta no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90,

inserida pela Lei 8.245/91, que prevê a regra da impenhorabilidade do bem de

família do fiador.

Por fim, cabe ainda salientar que a referida exceção normativa,

que levanta o véu da imunidade executória do bem de família do fiador,

desrespeita outros valores fundamentais, por diversas vezes repisados neste

trabalho, dentre eles estão a vida, o desenvolvimento humano e o mínimo

existencial. Vale lembrar que, na atualidade, a noção de vida, quando e como

surge, tem sido objeto de acirrados debates envolvendo cientistas, teólogos,

filósofos e operadores do Direito400; não se quer, entretanto, entrar nessa

complexa seara. Visa-se, tão-somente, a analisá-la no presente contexto, em

que se discute a fundamentalidade do bem de família do fiador. Para ilustrar,

José Afonso da Silva401 professa:

A vida constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos.

Assumindo posicionamento análogo, Michael Kloepfer402 pontua:

“o direito à vida é o direito de viver. Ele abrange a existência corporal, a

existência biológica e física, que é pressuposto vital para a utilização de todos

particulares – o respeito pela confiança depositada pelos indivíduos em relação a uma certa estabilidade e continuidade da ordem jurídica como um todo e das relações jurídicas especificamente consideradas; e c) Os órgãos estatais (...) encontram-se vinculados não apenas às imposições constitucionais no âmbito da sua concretização no plano infraconstitucional, mas estão sujeitos a uma certa auto-vinculação em relação aos atos anteriores (...)”. 400 KLEVENHUSEN, Renata Braga. Projeto Parental e o Estatuto Jurídico do Embrião Humano: Limites e Possibilidades das Técnicas de Reprodução Assistida. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga ( coordenadora ). Direitos Fundamentais e Novos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. p. 105-131. Segundo a autora o o fenômeno da vida exsurge com a concepção. 401 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros, 1999. p. 200-201. 402 KLOEPFER, Michael. Vida e dignidade da pessoa humana. In: SARLET, Ingo Wolfgang ( organizador ). Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005. p. 153-184.

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os direitos fundamentais”. Nesse contexto exsurge o direito à saúde como

decorrência do valor “vida”. Pietro Perlingieri403, ao comentar a Constituição

italiana, preleciona: “a saúde, ainda que prevista autonomamente em nível

constitucional ( art. 32 ), deve ser considerada juntamente à norma que, como

cláusula geral, reconhece e garante os direitos do homem (...)”.

Guardando coerência com os mencionados valores, vida e saúde,

aparecem os direitos ao mínimo existencial e ao desenvolvimento humano,

todos, indubitavelmente, interligados. Nesse cenário, reconhece-se que a

existência humana, consusbtanciada no fenômeno “vida”, está diretamente

relacionada com a saúde da pessoa404. Nesse diapasão, Amartya Sen405, ao

abordar o problema da pobreza e da desigualdade material, a partir de uma

visão econômica, aponta:

(...) o desemprego não é meramente uma deficiência de renda que pode ser compensada por transferências do Estado (...); é também uma fonte de efeitos debilitadores muito abrangentes sobre a liberdade, a iniciativa e as habilidades dos indivíduos. Entre seus múltiplos efeitos, o desemprego contribui para a ‘exclusão social‘ de alguns grupos e acarreta a perda de autonomia, de auto-confiança e de saúde física e psicológica. ( grifo nosso )

Ainda, como pressuposto de efetividade do direito à vida,

entabula o direito ao mínimo existencial o requisito da essencialidade de um

patromônio mínimo que garanta a subsistência digna da pessoa. Nesse

sentido, Michael Kloepfer406discorre que: A garantia jurídico-objetiva de um mínimo existencial material não exige, em todos os casos, prestações materiais no reconhecimento de direitos jurídico-subjetivos, mas que esta já pode ser concretizada, antes e em importantes âmbitos, no sentido jurídico-defensivo, por meio da proibição de intervenção no mínimo existencial.

403 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 3. ed. Tradução Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007. p. 158-159. 404 Idem. Ibidem. p. 158. A pessoa deve ser visualizada a partir de suas particularidades, professa o autor. 405 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. Tradução Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica Ricardo Doniselli Mendes. 6ª reimpressão. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2007. p. 35-36. 406 KLOEPFER. Op. Cit. p. 170.

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Como ressaltado pelo referido jurista, a garantia do patrimônio

mínimo, como pressuposto de efetividade do direito ao mínimo existencial não

está jungido apenas a prestações positivas do Estado, mas também por meio

de atos de caráter administrativo, legislativo e judicial. Dessa forma, inaceitável

é a regra que permite a penhora do único bem do fiador, em contrato de

locação, porquanto, está o Poder Público, neste caso, por meio de política

legislativa, intervindo na esfera do mínimo existencial do garantidor e de sua

família.

A preservação do único bem do garantidor é decorrência natural

da tutela do mínimo existencial, e se harmoniza com a normativa constitucional,

que alça a princípio norteador da República brasileira, a dignidade da pessoa

humana e consagra a moradia como direito humano fundamental. Afinal, a

moradia, afirma Pietro Perlingieri407, deve ser concebida “como um aspecto de

um unitário valor normativo que é a tutela da pessoa.

Em consonância com tudo que foi exposto, entende-se que a

regra insculpida no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, introduzida pela Lei

8.245/91, da forma como tem sido interpretada, inclusive pelo Supremo

Tribunal Federal, viola frontalmente o direito humano fundamental à moradia e

o princípio da igualdade material. Além de causar prejuízos a outros valores,

conforme já explicitado. É possível, no entanto, encontrar validade à regra de

exceção à penhora do bem do fiador, afastando, inicialmente, qualquer

interpretação literal do referido dispositivo.

Primeiramente, é preciso olhar para a norma inserta no art. 3º,

inciso VII, da Lei 8.009/90, a partir de uma nova concepção de Direito,

amparada na idéia antropológica, em que o homem é um ser individualizado,

com particularidades que os distingue dos demais. Ainda, faz-se necessário

uma releitura da relação jurídica clássica, calcada no direito civil do século XIX,

em que a pessoa é apenas mais um de seus elementos. Nesse sentido, Luiz

Edson Fachin408 adverte:

(...) há determinadas relações das quais emergem efeitos jurídicos, e que não correspondem a um dado paradigma que foi tipificado ou codificado ao final desse processo de refinamento que a codificação opera (...). A análise do contrato, ao final do

407 PERLINGIERI. Op. Cit. p. 198. 408 FACHIN ( 2003 ). p. 201-202.

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século XX, permite a leitura de que o modelo se reconhece com todas as letras na decadência do voluntarismo, e no conjunto de teorias que procuram explicar como o Estado ( Estado-juiz ) intervém na economia do contrato. Há não só a intervenção do Estado-juiz, como também práticas contratuais muito distantes da autonomia privada tradicional, especialmente nos contratos de ( e por ) adesão.

Nesse contexto, defende-se que a regra esculpida no art. 3º,

inciso VII, da Lei 8.009/90, introduzida pela Lei 8.245/91, que permite a

penhora do bem de família do fiador, para ser constitucional, deve ser

interpretada da seguinte forma:

1. na hipótese de ser o fiador proprietário de um único imóvel,

este não poderá ser objeto de penhora, pois, assim como o bem do locatário,

está agasalhado com o manto da imunidade executória.

2. por outro lado, o fiador é proprietário de mais de um imóvel;

neste caso reconhece-se a existência de duas situações distintas: na primeira

tem-se o bem que lhe serve de moradia, o qual se subsume no bem de família.

A segunda situação diz respeito ao bem exógeno do fiador, isto é, aquele que

está fora da esfera de proteção da lei do bem de família, podendo, portanto,

sobre ele incidir a regra prevista no inciso VII, do art. 3º, da Lei 8.009/90. Não

há que se falar, nesta hipótese, em inconstitucionalidade da referida norma, em

relação ao seu bem excedente.

Em síntese, o art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, tem validade

constitucional condicionada, isto é, será constitucional desde que incida

somente sobre o bem excedente do fiador e jamais sobre aquele que lhe serve

de abrigo.

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Capítulo II - EXAME CRÍTICO DA JURISPRUDÊNCIA ACERCA DA

PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR

II. 1. Breves Considerações O Direito contemporâneo pós-positivismo não despreza as

normas jurídicas que compõem o sistema normativo; ao contrário, busca

aprimorá-las e interpretá-las à luz de critérios de justiça, amparados em valores

supra-legais, como a dignidade humana e a solidariedade. Visa-se, nesse novo

cenário que vem aos poucos sendo perfilhado, a reconhecer a força normativa

dos princípios (ao lado das regras), bem como de uma teoria de direitos

humanos fundamentais, como limite à atuação do Estado e dos atos privados.

Conforme entendimento de Luis Roberto Barroso409 “a superação histórica do

jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um

conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função

social e sua interpretação”.

Esse processo de transformações expande a atuação do Estado-

juiz e, por conseguinte, o papel da jurisprudência. Aliás, como muito bem

pontua Celso Fernandes Campilongo410, ao juiz cabe “uma função ativa no

processo de afirmação da cidadania e da justiça substantiva”, porquanto ele 409BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito ( O Triunfo tardio do Direito Constitucional do Brasil ). In: DE SOUZA NETO, Cláudio Pereira e SARMENTO, Daniel (coordenadores). A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Editora Lúmen, 2007. p.203-249. Nesse sentido, Luis Roberto Barroso ensina que, a partir da metade do século XX, as Constituições normativas consagram “uma nova formatação estatal”, consubstanciada, basicamente, em três modelos de Estado, conforme esclarece o mencionado constitucionalista: 1. O Estado pré-moderno caracterizava-se pela pluralidade de fontes normativas, pela tradição romanística de produção jurídica e pela natureza jusnaturalista de sua fundamentação. Doutrina e jurisprudência desempenhavam um papel criativo do Direito e, como conseqüência, também normativo ( o autor complementa, em nota de rodapé, que, no Estado denominado pré-moderno, a formação do Direito não era legislativa, mas jurisprudencial e doutrinária ); 2. O Estado legislativo de direito, por sua vez, assentou-se sobre o monopólio estatal da produção jurídica e sobre o princípio da legalidade (...). A norma legislada se converte em fator de unidade e estabilidade do Direito, cuja justificação passa a ser de natureza positivista; e 3. O Estado constitucional de direito desenvolve-se a partir do término da 2ª Guerra Mundial e se aprofunda no último quarto do século XX, tendo por característica central a subordinação da legalidade a uma Constituição rígida. A validade das leis já não depende apenas da forma de sua produção, mas também da compatibilidade de seu conteúdo com as normas constitucionais”. Complementa, ainda, o autor que o referido Estado Constitucional de Direito, na atualidade, impõe à jurisprudência importante e delicada função de controlar a validade dos atos sejam de natureza legislativa, sejam de caráter administrativo. 410 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico”. In: FARIA, José Eduardo ( coordenador ). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Editora Malheiros, 2005. p. 30-51.

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deixou de ser mero aplicador e intérprete da lei ao caso concreto e passou a

ser mais um ator na relação-jurídico-processual411. Na mesma linha de

argumentação, Fátima Nancy Andrighi412 alerta para o papel do juiz

contemporâneo, o qual deve estar sempre atento para não se deixar enganar

pelas armadilhas da onipotência, que o impede de enxergar o sujeito do

processo, o ser humano que está diante de si, ansioso por seu veredicto de

justiça. Defende, ainda, a jurista413, uma face mais humana para o Poder

Judiciário, ao destacar:

sei que não é suave o jugo na busca do Direito mais humano em cada enredo, em seguir trajetória pautada no bom senso e na conduta de irretocável padrão ético, jamais perdendo de vista as pessoas simples, cujas almas calejadas pela trabalhosa seara da vida não mais necessitem se quedar silentes no clamor mudo pela verdadeira justiça.

Na linha de intelecção da mencionada estudiosa, observa-se que

a complexidade da vida contemporânea exige mudanças de caráter

multidisciplinar, refletindo diretamente na atuação do juiz, cuja responsabilidade

social alargou-se substancialmente ao longo dos últimos dois séculos. Nesse

passo, seu papel social ultrapassa o limite cognitivo da lei, posto ser o

magistrado personagem chave na consecução do processo democrático e na

efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Como aponta Sergio Coelho

Junior414, a superação da visão clássica positivista abre espaço para um

“sistema aberto de valores, princípios e regras”, os quais se complementam.

Nesse contexto, a jurisprudência ocupa lugar de destaque, não apenas como

mais uma forma de interpretar o Direito, eis que constitui caminho de se fazer

411 Com efeito, apenas a título de ilustração, cabe destacar que a tese de que o juiz pode harmonizar a lei ao caso posto, isto é, adaptá-la a uma dada situação não prevista na paisagem do quadro normativo, foi, inicialmente, encampada pelo filósofo Aristóteles, cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973, l. V, 10 ( Os Pensadores ). p. 335-337. 412ANDRIGUI, Fátima Nancy. Painel de Palestras. In: I Fórum Nacional de Debates sobre o Poder Judiciário. 1997, Superior Tribunal de Justiça. O Juiz no Mundo Contemporâneo. Brasília: Disponível em < http://bdjur.stj.gov.br >. Pesquisa realizada em 28/02/2008. Cf. aponta a autora: “está comprovado por estudos médicos que a existência de pendenga judicial pode provocar enfermidade psicossomática”, nas partes ( sujeito ativo e sujeito passivo da relação processual ). 413ANDRIGUI, Fátima Nancy. Um Judiciário mais Humano: artigo em homenagem ao Ministro Edson Vidigal. Justiça e Cidadania, edição especial, p. 20, 2004. Disponível em < http://bdjur.stj.gov.br >. Pesquisa realizada em 28/02/2008. 414 COELHO JUNIOR. Sergio. Reflexões sobre o Direito, o juiz e a função de julgar. Jus Navigandi. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto> Pesquisa realizada em 28/02/2008.

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justiça, a partir de uma visão humanista, onde o homem tem alegrias, tristezas,

anseios e objetivos próprios; ou seja, é um ser concreto.

Sem querer adentrar na complexa seara doutrinária415 que

diverge quanto à idéia de que a jurisprudência é uma das fontes416 do Direito,

defende-se, de pronto, tal status a ela, considerando seu relevante papel na

construção de um novo Direito, amparado em paradigmas como a dignidade

humana, a solidariedade, a boa-fé e a função social da propriedade e dos

contratos.

Nesse sentido, assevera Pietro Perlingieri417 “que a eficácia

normativa do precedente reside na eficácia normativa das regras e dos

princípios de direito positivo, interpretados e aplicados pela jurisprudência”,

cujo fundamento, complementa o autor, “está na aplicação e na interpretação

de normas e princípios que não são próprios, mas que, ao contrário, pertencem

ao sistema das fontes normativas primárias, sem as quais seriam ‘flores

jurídicas sem caule’”.

Sem dúvida, na contemporaneidade, o papel da jurisprudência

assume significativo espaço no cenário jurídico, social e econômico, desde

que, ao interpretar e aplicar o Direito em um caso concreto, considere

premissas fundamentais como a dignidade da pessoa humana, as

circunstâncias e as peculiaridades inerentes à situação, bem como, e,

sobretudo, o homem concreto com necessidades específicas. Se assim não o

for, a jurisprudência deixará de ser meio de se buscar a justiça, para se tornar

415 Cf. San Tiago Dantas “a jurisprudência não é fonte do Direito, do mesmo modo que não o são o princípio geral e a doutrina. Para o mencionado civilista, somente a lei e os costumes são fontes do Direito. Ver. DANTAS, San Tiago. Clássicos da Literatura Jurídica. Programa de Direito Civil – Parte Geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1984. p. 82-83. Caio Mário da Silva Pereira, a seu turno, apesar de negar à jurisprudência a categoria de fonte do Direito, a reconhece como fonte de informação ou intelectual. Ver. PEREIRA,Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. I. 20. ed. Revista e Atualizada por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p.8-9. Em sentido contrário, aos mencionados autores, se posiciona Francisco Amaral, posição que seguimos, para quem as fontes do Direito “são, basicamente, o Código Civil e a legislação complementar, os negócios jurídicos, as decisões que formam a jurisprudência uniforme, expressa nas súmulas, e os costumes”. Acrescenta-se, no topo da lista do mencionado civilista, a Constituição, esta, como diz o autor “passou a ser a fonte suprema do processo de criação e de cognição jurídica”. Ver AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Renovar, 2000. p. 78. 416 Cf. DE FARIAS, Cristiano Chaves. Direito Civil. Teoria Geral. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2005. “A expressão fontes do Direito pertine ao seu nascedouro, à sua origem, ao lugar de onde emana”. 417 PERLINGIERI. Op. Cit. p. 20.

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mais uma forma de aplicar a neutralidade e a cientificidade que marcaram o

Direito do século XIX418.

Nesse cenário, o princípio da proibição do excesso - o qual no

Brasil recebe o nome de princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade419 -

merece particular atenção. Com efeito, em que pese a discussão doutrinária420

em torno da possível diferença semântica entre os referidos termos, adota-se a

tese que os assume como expressões sinônimas.

Conforme lições de José Joaquim Gomes Canotilho421, o princípio

da proibição do excesso, ou da razoabilidade ou da proporcionalidade (termos

que serão utilizados aleatoriamente como sinônimos), tem como ratio essendi a

imposição de limitação a leis ou atos que restrinjam direitos e garantias

fundamentais. Na mesma direção, Luis Roberto Barroso422 pontua:

o princípio da razoabilidade é um mecanismo de controle da discricionariedade legislativa e administrativa. Ele permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou atos administrativos quando: a) não haja relação de adequação entre o fim visado e o meio empregado; b) a medida não seja exigível423 ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual; c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha.

418 FACHIN (2003). p. 59-60. Aponta o civilista que “a pretensão de cientificidade, como a de neutralidade, exige certo distanciamento da realidade social. E é por isso que o Direito cada vez mais se afastou da sua noção de arte e se aproximou desta pretensão pseudo-cientificidade, mediante a qual os conceitos buscavam aprisionar os fatos da vida até que as águas desses diques represados acabavam rompendo as comportas para que os fatos se impusessem”. 419 Sobre o tema merece relevo a obra BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. p. 218-245. Segundo se infere da doutrina do constitucionalista, as duas expressões são sinônimas, não merecendo tratamento diferente. 420 Cf. lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da razoabilidade está, basicamente, vinculado à idéia de racionalidade baseada na coerência, na prudência e na disposição de observar os ditames e finalidades da lei, enquanto o princípio da proporcionalidade é uma faceta daquele, consubstanciado no ideal de que “as medidas desproporcionais ao resultado legitimamente alvejável são, desde logo, condutas ilógicas, incongruentes”, conclui o autor. In: DE MELLO, Celso Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 17. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Malheiros, 2004. p.99-101. 421CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 4 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1986. p. 487-489. Tal princípio encontra-se, expressamente, consagrado na Constituição portuguesa, de 1976, no art. 18. 422 BARROSO ( 2003 ). p. 218-245. 423 Idem. Ibidem. p. 227-228. A expressão “exigível”, preleciona o autor, foi utilizada pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, que, numa decisão, se pronunciou acerca do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade e argumentou que “o meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado (...); ele é exigível quando o legislador não poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que seria um meio não-prejudicial ou portador de uma limitação menos perceptível a direito fundamental”.

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Os aspectos do princípio da razoabilidade apresentados pelo

constitucionalista brasileiro podem ser desdobrados em premissas para a

análise da (in)constitucionalidade do art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, que

permite a penhora do bem de família do fiador, bem como das decisões dos

Tribunais brasileiros, os quais, na função jurisdicional que lhes diz respeito,

optam por decidir favoravelmente à penhora do referido bem, minimizando ou

desconsiderando o papel das normas constitucionais, em especial, os

princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da erradicação da

pobreza, dos direitos humanos fundamentais ( em particular, o direito à vida

digna e o direito à moradia ).

Nesse passo, consoante destacado anteriormente, o princípio da

razoabilidade exige dos atos legislativos e administrativos adequação entre os

fins almejados e os meios utilizados. Trazendo tal premissa para o texto da lei

do bem de família, o qual prevê a penhora do único bem do fiador, verifica-se,

de pronto, que o legislador não foi razoável - porquanto, utilizando-se de

argumento conseqüencialista econômico424, no sentido de que a referida

medida legislativa resolveria o problema do acesso à locação, e, por

conseguinte, à moradia – menosprezou o sujeito de carne osso e

desconsiderou seu patrimônio mínimo: consubstanciado na garantia de um

mínimo existencial e na realização do direito humano fundamental à moradia.

Somente, por este aspecto, já se poderia sustentar, por meio da aplicação do

princípio da proporcionalidade, a invalidação e a ineficácia da norma de

exceção, prevista na Lei 8.009/90.

Ainda, fica evidente que o legislador, ao editar a indigitada norma

de exceção, seguiu em direção diametralmente oposta ao primado defendido

por Immanuel Kant425 de que “na ordem dos fins, o homem seja um fim em si

mesmo; isto é, não possa nunca ser utilizado por alguém (nem mesmo por

Deus) apenas como meio, sem ao mesmo tempo ser um fim”.

Outra premissa extraída do princípio da razoabilidade diz respeito

à premente análise da necessidade de se praticar determinado ato,

424 Ainda que fosse, integralmente, verdadeiro tal argumento não poderia jamais ser o único a nortear as decisões judiciais tendo em vista a necessidade de se considerar outros aspectos relevantes como a dignidade da pessoa humana e o contexto social em que estão inseridos os destinatários da norma. 425 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Tradução Rodolfo Schaefer. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006. p. 141-142.

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considerando a existência de outros meios menos lesivos aos direitos humanos

fundamentais. Ora, no tocante à exceção da penhora do bem do fiador, fica

claro que não houve tal preocupação, posto existirem (conforme mencionado

no capítulo I, seção II, do Título II, deste trabalho) outros meios menos

prejudiciais, como a caução e o seguro fiança, que não a fiança pessoal, a qual

pode ter como conseqüência nefasta levar à bancarrota o patrimônio mínimo

do garantidor.

Por fim, o último aspecto do princípio da proporcionalidade

relaciona-se com a idéia de justiça fundada na proibição do excesso, da

proporcionalidade em sentido estrito; isto é, mister se faz avaliar se “o que se

perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha”, no dizer

de Luis Roberto Barroso426. Mais uma vez, verifica-se que a exceção contida

no art.3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, que levanta o véu da imunidade

executória do bem de família do fiador, não só ultrapassa os limites da

razoabilidade, como viola frontalmente o princípio da função social do contrato

e da propriedade, porquanto dá prevalência, na relação contratual locatícia

cumulada com fiança, ao direito de crédito do locador em detrimento do

patrimônio mínimo do fiador, consusbtanciado no bem de família.

Desta feita, aceitar qualquer argumento justificador da medida

legislativa, que admite a penhora do único bem do fiador, não é somente

desarrazoado como também revela uma face cruel, injusta e desumana do

Direito, em contraposição ao que a Carta de 1988 proclama, em especial, nos

art. 1º, inciso III, que contempla, como princípio fundamental da República

brasileira, a dignidade humana; e o art. 3º, incisos I e III, que exprimem

objetivos a serem alcançados pela sociedade brasileira, como a construção de

uma sociedade justa e solidária e a erradicação da pobreza. Ora, sustentar a

validade da norma inserta no art. 3º, inciso VII, da lei do bem família, que

admite a penhora do único bem do fiador, é fazer da Constituição mero

“pedaço de papel”, no dizer de Ferdinand Lassalle, citado por Konrad Hesse427.

426 BARROSO ( 2007 ). p. 245. 427 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Tradução Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris, 1991. p.9.

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Nessa trilha, buscar-se-á analisar a seguir a jurisprudência dos

tribunais brasileiros acerca da (in)admissibilidade da penhora do bem de família

do fiador para cumprir obrigação decorrente de fiança em contrato de locação.

A metodologia de pesquisa adotada tem como marco a Lei

8.009/90, e os espaços cognitivos perquiridos serão, primeiramente, os

Tribunais Estaduais, os quais serão selecionados de acordo com o êxito da

pesquisa, sem preferência de qualquer região, em seguida, o Superior Tribunal

de Justiça e, por fim, o Supremo Tribunal Federal.

II. 2. Tribunais de Justiça Estaduais

Conforme se extrai do Direito Constitucional, uma das funções da

Lei Maior é dispor acerca da organização do Poder Judiciário; isto é, delimitar a

atuação dos órgãos que o compreendem. No tocante à Justiça Estadual, a

Carta Constitucional de 1988 outorga aos Estados-membros a tarefa de

organizá-la, respeitadas, obviamente, as normas gerais esculpidas na Carta

Maior.

Em síntese, a Justiça Estadual compreende duas instâncias: a

primeira é composta por juizes singulares e a segunda por órgãos colegiados,

formados por desembargadores. Dentre as funções dos órgãos colegiados da

segunda instância da Justiça está a de julgar os recursos oriundos das

decisões proferidas pelos juizes singulares: pode-se dizer que se trata da

razoável aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição ou do duplo exame,

conforme lições de Sérgio Bermudes428:

A revisão de um ato decisório diminui a possibilidade de erro judicial ( error in procedendo, erro de procedimento, se o juiz viola norma da qual ele é destinatário; error in judicando, erro de julgamento, se o juiz não aplica, de modo correto, a norma disciplinadora da relação jurídica levada ao seu julgamento ). Além disso, a revisão satisfaz a índole humana, pois aos homens não acontece aceitarem uma decisão adversa, principalmente quando única.

428 BERMUDES, Sérgio. Introdução ao Processo Civil. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002. p. 161-163.

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Nesse contexto, começa-se a delinear a jurisprudência dos

Tribunais locais, que, em regra, é contestada, por via recursal, nos Tribunais

Superiores, os quais poderão seguir o mesmo entendimento do Tribunal a quo,

ou, diversamente, adotar outra posição.

Entrementes destacam-se algumas decisões colhidas das Cortes

de Justiça estaduais: TJ - Rio de Janeiro - 1998.001.03558 – AP. CÍVEL - DES. ADEMIR PIMENTEL - Julgamento: 12/08/1998 - DECIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL -CIVIL. EMBARGOS DO DEVEDOR. IMPENHORABILIDADE DE BENS. FIANÇA. EXONERAÇÃO. DESPROVIMENTO DO RECURSO. I - Efetivada a penhora do bem de família na plena vigência do inc. VII do art. 3º da Lei 8.009/90, acrescido pelo art. 82 da Lei 8.245/91, não há o que se falar em impenhorabilidade ou violação a ato jurídico perfeito, ainda que o pacto tenha sido firmado anteriormente a esse diploma legal, II - Para obter exoneração de fiança, tem o fiador a sua disposição ação declaratória, sendo inábil a tal objetivo simples notificação do locador, III - Inexiste novação se a afiançada, simplesmente, em ação de despejo por falta de pagamento, limita-se a efetuar o pagamento do débito cobrado, sem qualquer acordo ou estabelecimento de cláusulas não integrantes do contrato locatício; IV - Constitui-se título líquido, certo e exigível o contrato de locação, se o fiador não comprova, de forma cabal, a cobrança indevida, ou a quitação por parte do afiançado, responde, em execução, pelo valor locativo; V - Desprovimento do recurso. TJ - Rio de Janeiro - 2007.001.33716 - APELAÇÃO CÍVEL - DES. LETICIA SARDAS - Julgamento: 05/07/2007 - VIGÉSIMA CÂMARA CIVEL - EMBARGOS À EXECUÇÃO. PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DOS FIADORES. VERBETE 63 DA SÚMULA DE JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE DO TJ/RJ. UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. PRECEDENTES.1. A impenhorabilidade do bem de família é regra, somente sendo cabível nas estritas exceções legalmente previstas. A Lei nº 8.009/90, em seu art. 3º, inciso VII, com a redação dada pelo art. 82, da Lei nº 8.245/91, tornou possível a penhora de bem de família dado em garantia de obrigação decorrente de fiança pactuada em contrato de locação. 2. Precedentes. RE nº 407.688, Pleno do STF, julgado em 8.2.2006, maioria, noticiado no Informativo nº 416 e publicado, recentemente, em 06/10/2006.3. Nos termos do verbete n.º 63 da Súmula de Jurisprudência predominante do TJ/RJ, cabe a incidência da penhora sobre o imóvel único do fiador de contrato de locação.4. Uniformização de Jurisprudência n.º 05/2001. Relator Desembargador PAULO VENTURA. 5. Decisão proferida pelo órgão fracionário do Tribunal, na forma expressamente autorizada pelo art. 557 do Código de Processo Civil.6. Provimento do recurso na forma autorizada pelo §1º-A do artigo 557 do CPC. TJ – Paraná - ÓRGÃO JULGADOR: SEXTA CÂMARA CÍVEL (EXTINTO TA)- COMARCA:CURITIBA - PROCESSO: 0080065-5 -Recurso:Apelação Cível -Relator: Antonio Prado Filho - Revisor:Hélio Cesar Engelhardt - Parecer: Por unanimidade de votos, negaram provimento - Julgamento: 28/08/1995 -Ementa: embargos a execução - titulo extrajudicial - locação - fiador - índice opcional do locador - taxa de conservação - pacta sunt servanda - bem indicado para penhora

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sem registro - impossibilidade - bem de familia - impenhorabilidade - exceção prevista no artigo 3o., vii, da lei no. 8.009/90. Apelação desprovida. Necessário se faz o respeito ao princípio da força obrigatória dos contratos. Foi deixado ao alvedrio do locador, a instituição do índice para correção e taxa de manutenção, embora sua cobrança não restasse comprovada. A impenhorabilidade do bem de família, não se sustenta, em virtude de exceção prevista em lei. Apelação desprovida. Legislação: L. 8009/90 - art 3, VII.

TJ- Rio Grande do Sul - AI. 194133799 - Relator: Alcindo Gomes Bittencourt - Ementa: Agravo de Instrumento. A Lei N. 8009/90, em seu artigo 3, inc. VII, permite a penhora do imóvel residencial do fiador, mas o inquilino, frente ao locador, tem seu imóvel residencial excluído de qualquer execução por dívida, na forma do art. 1, do mesmo texto legal. Recurso Improvido.... Data De Julgamento: 06/12/1994 TJ- Rio Grande do Sul - Apelação Cível 194210175 - Relator: Leonello Pedro Paludo - Ementa: Fiança. Penhorabilidade do imóvel residencial do Fiador. Constitucionalidade. Após o advento da Lei 8.245/91, que acresceu o inciso VII, ao artigo 3 da Lei 8.009/90, o imóvel residencial do fiador é penhorável na execução dos valores afiançados, não se vislumbrando em tal dispositivo legal qualquer ofensa a Constituição Federal. Recurso Improvido. Data de Julgamento: 30/11/1994 TJ –Tribunal de Alçada Civil de São Paulo ( atualmente constitui-se em Câmaras de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo ). Execução – Penhora – Bem de Família – Fiador – Cabimento – Aplicação da Lei 8.245/91. Quanto à impenhorabilidade do bem, de conformidade com o art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, trata-se da excepcionalidade prevista legalmente, uma vez ser resultado de dívidas contraídas por força de fiança prestada em contrato locatício. 7ª Câm., Ap. c/ Rev . 617.242-00/8, rel. Juiz Américo Angélico, j. 13.11. 2001.

TJ –Tribunal de Alçada Civil de São Paulo - AI. – Locação de Imóveis – Embargos à Execução – Isonomia – Fiador e Locatário – Contratos distintos – Direito de moradia – EC n. 26/2000 – Norma programática – Regulamentação – Ausência – Penhorabilidade mantida. O contrato de locação e o de fiança são distintos, de modo que, em se tratando de situações jurídicas distintas, não há se falar em isonomia. O direito constitucional de moradia, previsto no art. 6º da CF, possui natureza programática que carece de regulamentação, de modo que a penhorabilidade do imóvel de família fica mantida. 3ª Câm., AI 870.236/00/3, rel. Juiz Carlos Giarusso Santos, j. 14.12.2004429. ( grifo nosso ).

Conforme se pode observar, todas as mencionadas decisões,

sem exceção, buscam fundamento, em grande medida, na letra fria e isolada

do dispositivo legal, evidenciando a defesa da supremacia da legalidade formal,

em detrimento da normativa material constitucional. Com a devida vênia,

429SANTOS, Gildo dos. Fiança. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 191.

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parece sobremaneira desarrazoado admitir como legítima a penhora do único

bem do fiador, em contrato de locação, pelo simples fato de que a lei

infraconstitucional assim determina. Ademais, privilegiar o direito de crédito em

prejuízo de valores fundamentais como a dignidade da pessoa humana e o

direito à habitação parece transgredir toda a sistemática de valores apregoados

na Carta Constitucional de 1988.

De fato, a partir dos fundamentos adotados pela mencionada

jurisprudência das Cortes de Justiça estaduais, constata-se que, infelizmente, o

exercício da atividade jurisdicional no século XXI ainda está amarrado ao

dogma normativo-positivista clássico do século XIX, em que a análise do caso

concreto parte de premissas calcadas em pseudo-cientificismo e inalcançável

neutralismo, os quais, por muito tempo, serviram de parâmetro para o direito

privado.

Conforme expressado no tópico I deste capítulo, espera-se do

órgão julgador mais do que a mera aplicação do critério da subsunção da

norma à situação fática, amparado no princípio da legalidade estrita430.

Nessa toada, consoante se verifica dentre os argumentos

apresentados nas mencionadas decisões, está o de que o direito à moradia é

uma norma programática – dependente de regulamentação -, não cabendo,

portanto, conforme o entendimento jurisprudencial, sustentar que a norma que

afasta o véu da impenhorabilidade do bem do fiador violaria o art. 6º, da

Constituição. Indaga-se, todavia, se há realmente consistência entre a

premissa sobre a qual o argumento é construído (“o direito à moradia seria

direito social programático”) e a conclusão a que chegaram os julgadores (“não

haveria incompatibilidade entre a exceção prevista no inciso VII, do art. 3º, da

Lei 8.009/90 e o art. 6º da CR/88”)? Ainda que fosse possível partir da

premissa de que o direito à moradia consubstancia tão-somente um direito

social – tese que já foi descartada quando se abordou a natureza jurídica do

referido direito, posto se advogar neste trabalho que o mesmo é pressuposto

de efetividade de diversos outros valores (vide Título I, Capítulo II, seção II) –,

tal entendimento estaria equivocado, tendo em vista que a norma

430 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: Um Enquadramento Teórico”. In: FARIA, José Eduardo ( coordenador ). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Editora Malheiros, 2005. p. 30-51.

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programática431 se dirige não ao cidadão, mas ao Estado, a quem seria exigível

a realização de prestações positivas e negativas (p.ex., financiamentos para

aquisição de moradia e legislação que não viole o direito à moradia daqueles

que, por meio da casa própria, já exerceram tal direito). Assim, não há

correlação lógica entre a premissa utilizada e a conclusão a que chegaram os

Tribunais para sustentar a penhora do bem de família do fiador.

Nesse contexto, a despeito de possível pessimismo que pode

assombrar aqueles que propugnam a constitucionalização do Direito a partir de

um viés humanista, deve-se ter em mente que as mudanças de paradigmas

exigem tempo e determinação, e acima de tudo, esperança. Nesse sentido,

cabe trazer à baila julgados que contrariam aqueles anteriormente aludidos.

Nestes, os magistrados buscam a justiça não unicamente na aplicação da letra

fria da lei, mas adotando como critério hermenêutico fundamental a

ponderação de todos os valores contemplados no sistema jurídico:

TJ-SERGIPE 432– Ap. Cível – Execução – Fiador em contrato de locação – Bem de família – Impenhorabilidade – Recurso improvido – Decisão Unânime. Mesmo tratando-se de fiança decorrente de contrato de locação, o bem imóvel do garantidor, recebendo o nomen juris de bem de família, não pode ser objeto de constrição judicial ( Câm. Civ. I. Ap.Civ. 1997203458 – Rel. Des. Fernando Ribeiro Franco. J. 10.08.1999. TJ- DISTRITO FEDERAL433 - Processual Civil – Civil – Constitucional – Ação de execução – Penhora- Fiador – Desconstituição da constrição judicial dos bens – Impenhorabilidade do bem de família – Exceção prevista no art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, acrescido pelo art. 82 da Lei 8.245/91 – Norma não recepcionada pela EC 26/2000 – Elevação da moradia como direito social – Agravo improvido – Maioria. A nova ordem constitucional, emanada pela Emenda 26/2000, merece reflexão (...). Brasília. 4ª T. Cível . AI. 2000.00.2.003053-2-DF – Rel. Des. Lecir Manoel da Luz. J. 13.11.2000.

431 No dizer de Maria Helena Diniz, as normas programáticas têm como função precípua delinear preceitos a serem cumpridos pelo Estado, como “programas das respectivas atividades, pretendendo unicamente a consecução dos fins sociais pelo Estado”. In: DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus efeitos. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1992. p. 104. Convém ressaltar, ainda, ( conforme já perfilhado no Titulo I, capítulo I, seção IV, deste trabalho ) que o Poder Público deve estar comprometido com a máxima estabelecida pelo princípio da proibição do retrocesso, segunda a qual a conduta do Estado, em todas as suas esferas, deve estar pautada nos limites impostos pelos direitos humanos fundamentais e demais valores consagrados no texto constitucional, isto significa que uma norma infraconstitucional não pode alcançar direito humano fundamental já realizado, como a casa própria do fiador. 432BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. Jurisprudência. Disponível em < www.tj.se.gov.br>. Pesquisa realizada em 29/10/2007. 433 FORNACIARI JÚNIOR, Clito. O Bem de Família na Execução da Fiança. In: TUCCI, José Rogério Cruz e.(coordenador). A Penhora e o Bem de Família do Fiador da Locação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 102

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TJ- RIO GRANDE DO SUL434 – LOCAÇÃO – EXECUÇÃO -FUNDADA EM CREDITO LOCATICIO. IMPENHORABILIDADE DO IMOVEL RESIDENCIAL DO FIADOR. Em se tratando de bem imóvel, sendo o mesmo residência da família, a ele se estende o principio excepcional da impenhorabilidade do único bem imóvel que sirva de residência familiar, porque o art. 82 da Lei 8.245 que acrescentou o inc. vii ao art. 3º da Lei 8.009 afronta o princípio da isonomia constitucional e o direito social à moradia (art. 1º, inc. iii, art. 5º, caput, e art. 6º, da Constituição federal, com a redação dada pela Emenda nº 26/00). Apelo provido, por maioria. Inversão dos ônus da sucumbência. (Apelação Cível Nº 70001903590, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Genacéia da Silva Alberton, Julgado em 15/08/2001). TJ – RIO GRANDE DO SUL - EMBARGOS À EXECUÇÃO . LOCAÇÃO. Impenhorabilidade do único bem imóvel dos fiadores. exegese do art. 6º da Constituição federal, com redação dada pela Ementa Constitucional nº 26/2000, que dispõe sobre ao direitos sociais APELAÇÃO PROVIDA. Voto vencido (Apelação Cível Nº 70003296738, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Augusto Monte Lopes, julgado em 19/12/2001). Dispõe em seu voto o relator: “ Por fim, registra-se que a declaração de impenhorabilidade do único bem imóvel do fiador não significa simplesmente isentá-lo do compromisso assumido perante o credor do afiançado, cujo débito poderá ser satisfeito de outras formas435. TJ – RIO GRANDE DO SUL - APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÀO . LOCAÇÀO. FIANÇA. Penhora do único imóvel que serve de residência do fiador. Impossibilidade. Pagamentos parciais. Ausência de ressalva do exeqüente. Má-fé comprovada. Penalidade aplicada. Sucumbência adequada. (...) São garantias constitucionais fundamentais do cidadão e de sua família o direito de propriedade (CF/88, art. 5º, XXII) e o direito à moradia (CF/88, art. 6º, caput, na redação da EC 26/00), sendo que a Constituição, em sua axiologia, prestigia como valor fundamental a moradia dos cidadãos e de sua família, tanto que no art. 183 concede o usucapião para quem detenha imóvel urbano nas condições que menciona. A lei deve ser interpretada e aplicada atendendo aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (LICC, art. 5º), o que certamente não estará sendo atendido se o fiador perder sua residência para atender débitos de aluguéis do afiançado em benefício do credor que explora economicamente a propriedade imobiliária. Outra deve ser a solução para a viabilização do mercado de locação seja pelos cuidados do locador ao aceitar o fiador com patrimônio suficiente para a garantia, seja pela definitiva implementação do seguro-fiança. O credor ou locador, ao contratar, deve examinar a situação patrimonial do fiador, pois seu é o risco. Demonstrada a má-fé do exeqüente em não ressalvar quantia já recebida por conta do título exeqüendo, cabível a aplicação da pena do

434 BRASIL. Poder Judiciário. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em < www.tj.rs.gov.br>. Pesquisa realizada em 06/03/2008. 435 Convém ressaltar que a Súmula n° 6 editada pelo Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, hoje incorporado ao Tribunal de Justiça daquele Estado, dispõe: “Fiança. Exoneração. O fiador, uma vez prorrogada a locação residencial por força de lei, pode exonerar-se da fiança, embora tenha renunciado, quando a prestou, ao exercício da faculdade do art. 155 do Código Civil”. In: SANTOS, Gildo dos. Fiança. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p.202.

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art. 1.531 do CCB/1916, cumulável, ademais, com a pena do art. 18 do CPC. Precedentes do STJ. Sucumbência redimensionada. APELO DO EMBARGADO DESPROVIDO. PROVIDO PARCIALMENTE O RECURSO DOS EMBARGANTES. (Apelação Cível Nº 70002872240, Primeira Câmara Especial Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, Julgado em 08/09/2003).

TJ/MINAS GERAIS436 - AGRAVO N° 1.0024.05.813335-6/001 - COMARCA DE BELO HORIZONTE - RELATOR: DES. D. VIÇOSO RODRIGUES. Agravo de instrumento interposto contra decisão proferida pelo Juízo da 23ª Vara Cível da comarca de Belo Horizonte que, nos autos da Ação de Despejo c/c cobrança de aluguéis, em fase de execução de sentença, acolheu a impugnação apresentada pelo executado para desconstituir a PENHORA do imóvel residencial do fiador. “Conquanto o próprio STF tenha decidido, conforme já ressaltado, pela aplicação do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, penso que a solução deva se dar em sentido oposto. Em primeiro lugar, verifica-se que a Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, incluiu a moradia entre os direitos sociais previstos no art. 6º da CF/88, o qual constitui norma de ordem pública. Ora, ao proceder de tal maneira, o constituinte nada mais fez do que reconhecer o óbvio: a moradia como direito fundamental da pessoa humana para uma vida digna em sociedade. Com espeque na alteração realizada pela Emenda Constitucional nº 26 e no próprio escopo da Lei 8.009/90, resta claro que as exceções previstas no art. 3º dessa lei não podem ser tidas como irrefutáveis, sob pena de dar cabo, em alguns casos, à função social que exerce o BEM de família, o que não pode ser admitido. ACÓRDÃO: Vistos etc., acorda, em Turma, a 18ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas, à unanimidade de votos, EM NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO. Data do Julgamento: 27/03/2007.

TJ/RIO DE JANEIRO437 - 2007.001.03337 - APELAÇÃO CIVEL - FIADOR - LOCAÇÃO - BEM DE FAMILIA - IMPENHORABILIDADE - ART. 6 - CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 - DES. BENEDICTO ABICAIR - Julgamento: 12/09/2007 - SEXTA CAMARA CIVEL - Embargos à execução. Bem de família. Contrato de fiança. Recurso provido. 1. A jurisprudência é remansosa no sentido de considerar que o fiador que oferece o único imóvel de sua propriedade para garantir contrato de locação de terceiro pode ter o bem penhorado em caso de descumprimento da obrigação principal do locatário. 2. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3., inc. VIII, da Lei n. 8.009/1990, entretanto, fere o art. 6. da CF/88, principalmente diante das peculiaridades, dentre elas quando envolve aspectos de ordem social e desigualdade entre um dos contratantes. Recurso provido.

As recentes decisões supramencionadas - decididas por

unanimidade pelos desembargadores que compõem as respectivas Câmaras

Cíveis - não somente dão sinais de que a matéria ainda não está pacificada

436 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Jurisprudência. Disponível em < www.tj.mg.gov.br>. Pesquisa realizada em 26/03/2008. 437 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Jurisprudência. Disponível em < www.tj.rj.gov.br>. Pesquisa realizada em 29/10/2007.

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nos Tribunais, como acenam no sentido de uma nova hermenêutica com viés

antropológico, em que o homem é visto a partir de suas peculiaridades. No

tocante à decisão proferida pelo órgão da Corte de Justiça fluminense, merece

realce as palavras do Desembargador Benedito Abicair, relator do acórdão em

tela, que, ao estudar o caso, verificou tratar-se a apelante de pessoa com

poucos recursos, tanto na seara patrimonial, quanto de conhecimento da lei.

Nesse contexto, refletiu o magistrado:

(...) A sentença, ora atacada, à letra fria da lei, julgou improcedente o pedido, por entender que a impenhorabilidade do bem de família não é oponível quando se tratar de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação. (...) Em que pesem a lei específica e parte da jurisprudência e doutrina, que embasam a sentença, entendo que a matéria não pode ser dada como pacificada em nossos Tribunais, merecendo tratamento mais acurado.

É oportuno destacar que a decisão ora mencionada possui

sentido diverso daquele consignado na Súmula 63, do próprio Tribunal

fluminense, aprovada por maioria de votos438 e editada em 24 de junho de

2002, com o seguinte teor: "Cabe a incidência de penhora sobre imóvel único

do fiador de contrato de locação, Lei nº 8.009/90 (art. 3º, VII) e Lei nº.

8.245/91". Observa-se pelo texto do acórdão que aprovou a referida súmula,

que os argumentos utilizados ( conseqüencialistas de cunho econômico de

difícil aferição prática ) parecem levar mais em consideração o crédito do

locador do que o direito à moradia do fiador e de sua família, conforme se

depreende de excerto do texto do relator desembargador Paulo Ventura, que

assevera:

Quando do advento da Lei 8.009/90, tornando impenhorável o único imóvel residencial do devedor, os locadores com razão, não mais aceitaram como fiador, quem fosse proprietário de um único bem imóvel, o que tornaria inócua a garantia fidejussória (...). A ratio essendi do dispositivo da lei do inquilinato foi a de facilitar a obtenção da locação, já que os locadores voltaram a aceitar fiadores que ostentassem um só imóvel.

438 Vale ressaltar que, por ocasião do julgamento da mencionada súmula, divergiram da maioria os desembargadores Mariana Gonçalves e Jorge Uchoa de Mendonça, que não concordaram com a redação, e o desembargador José Pimentel Marques que discordou de seu inteiro teor.

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De fato, a locação, como referido, é uma das formas de exercício

do direito à moradia. Quanto a isso, acredita-se, não paira dúvida alguma; o

que se questiona, entretanto, é a forma simplista e até irresponsável do

legislador de depositar nas costas do fiador o pesado fardo da garantia

pessoal, em que até mesmo seu único bem, asilo sagrado do lar, poderá ser

utilizado para pagar dívida de outrem. Ora, isso, indiscutivelmente, ultrapassa

as raias do absurdo. Indaga-se, ainda, por que o Estado-legislador não

incentiva a fiança bancária, como forma de garantia para promover o acesso à

moradia, por meio da locação? Estaria o Estado dando prevalência aos

interesses das instituições financeiras em detrimento dos direitos do cidadão

que, com sacrifício realizou plenamente seu direito à moradia, por meio da

aquisição da casa própria? São questionamentos que sugerem maior reflexão

sobre o tema.

Na seqüência, busca-se analisar a jurisprudência do Superior

Tribunal de Justiça, no que concerne ao complicado problema da penhora do

único bem do garantidor, em contrato de locação.

II. 3. Superior Tribunal de Justiça O Superior Tribunal de Justiça é fruto da Constituição de 1888 e

nasceu com a função precípua de tutelar as normas infraconstitucionais, “é o

guardião do ordenamento jurídico federal”, no dizer de Alexandre de Moraes439.

Nesse mister já teve a Corte Superior oportunidade, por diversas vezes, de

enfrentar questões envolvendo os contratos de fiança e de locação e seus

consectários, como a possibilidade de restrição do bem do fiador para suprir

débitos do afiançado, o locatário.

Nesse contexto, cabe analisar a jurisprudência da Corte Especial

a partir dos excertos a seguir transcritos:

1. Quanto aos limites da responsabilidade do fiador: A. CIVIL. LOCAÇÃO. FIANÇA. I. O art. 1.483 do Código Civil dispõe expressamente que a fiança deve se dar por escrito e não admite interpretação extensiva. Assim sendo, se houve o ajustamento do

439 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2005. p. 512.

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valor da locação maior do que estipulado no contrato, com a transigência da locatária, os fiadores não estarão obrigados a responder pelo débito cobrado, não havendo que se falar em “assentimento tácito”. SEXTA TURMA, Resp. 34981-SP (1993/0013173-7), Rel. Min. Pedro Acioli . Julgamento. 03.12.1994. B.LOCAÇÃO.FIANÇA. RESPONSABILIDADE DO FIADOR. ENTREGA DAS CHAVES. LIMITES. Nos contratos de locação prorrogados por prazo indeterminado, a responsabilidade do fiador não se estende ao aditamento ou prorrogação contratual a que não anuiu, em face da não admissão da interpretação extensiva de contratos dessa natureza. Resp. 171880 –MG. Rel. Min. Hamilton Carvalhido . D.J. 05.06.2000. C. LOCAÇÃO. FIANÇA. DESONERAÇÃO. LEI 8.245/91, ART. 39. CÓDIGO CIVIL, AT. 1.500. PRORROGAÇÃO DO CONTRATO DE LOCAÇÀO. Não pode a norma da Lei 8.245/91, art. 39, que determina a perpetuação da obrigação de garantia até a devolução do imóvel, ser interpretada em dissonância da regra contida no CC, art. 1.500. Não se pode querer ver o fiador responsabilizado indefinidamente, sem sua anuência, por acordo privativo do locador e locatário, pelo qual entendem de prorrogar o contrato de locação sem prazo determinado. Assim sendo, conforme entendimento desta Corte, ‘não é compatível a coexistência da cláusula de responsabilidade até a entrega das chaves, com o intuito da prorrogação contratual indefinida’, só podendo vigorar tal disposição durante a vigência do contrato ao qual o fiador se vinculou. Resp. 246809- PR. Rel. Min. Edson Vidigal. D.J. 19.06.2000. D. LOCAÇÃO. PROCESSUAL CIVIL. FIANÇA. ENTREGA DAS CHAVES. PENHORA. LEI 8.245/91 - BEM DE FAMÍLIA. I - É assente neste Tribunal o entendimento de que o instituto da fiança não comporta interpretação extensiva, obedecendo, assim, disposição expressa do artigo 1.483 do Código Civil. Na fiança, o garante só pode ser responsabilizado pelos valores previstos no contrato a que se vinculou, sendo irrelevante, na hipótese, para se delimitar a duração da garantia, cláusula contratual prevendo a obrigação do fiador até a entrega das chaves. II - Sendo proposta a ação na vigência da Lei n° 8.245/91, válida é a penhora que obedece seus termos, excluindo o fiador em contrato locatício da impenhorabilidade do bem de família. Precedentes. Recurso parcialmente provido. REsp 306163 / MG -2001/0023037-7 - Rel. Ministro FELIX FISCHER -JULGAMENTO: 10/04/2001. E. CIVIL. LOCAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. CONTRATO DE LOCAÇÃO POR TEMPO DETERMINADO. PRORROGAÇÃO LEGAL POR PRAZO INDETERMINADO. EXONERAÇÃO DA FIANÇA. IMPOSSIBILIDADE.DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL.INEXISTÊNCIA. SÚMULA 83/STJ. MORATÓRIA. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356/STF. COMPENSAÇÃO DE VALORES. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DO DISPOSITIVO INFRACONSTITUCIONAL TIDO POR VIOLADO. DEFICIÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. SÚMULA 284/STF. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do EREsp 566.633/CE, firmou o entendimento de que, havendo, como no caso vertente, cláusula expressa no contrato de aluguel de que a responsabilidade dos fiadores perdurará até a efetiva entrega das chaves do imóvel objeto da locação, não há falar em desobrigação destes, ainda que o

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contrato tenha se prorrogado por prazo indeterminado. REsp 827047 / SP RECURSO ESPECIAL 2006/0054652-2 – Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA - JULGAMENTO: 06/03/2007. ( grifo nosso ).

Há que se reconhecer a elogiável posição da Corte Especial, no

tocante à ponderação que fazia na hipótese de responsabilidade ad eternum do

fiador. Parecia caminhar bem o Tribunal, no sentido de enxergar vidas nas

demandas que chegavam à sua avaliação. Conforme se depreende da

pesquisa realizada, desde 1993, era forte o entendimento de que a

responsabilidade do fiador estava adstrita ao prazo do contrato, sendo suas

cláusulas de interpretação restritiva. Nesse sentido, cabe trazer à baila as

palavras do Ministro Edson Vidigal, em sede de Recurso Especial440:

(...) esta Corte em diversas oportunidades já proclamou o entendimento, segundo o qual o contrato de fiança, por ser uma liberalidade, não aceita interpretação extensiva e que, em assim sendo, somente subsistirá a garantia prestada na prorrogação do contrato de locação se for dada anuência expressa do fiador. Desta forma, não tem eficácia a cláusula contratual que prevê a obrigação fidejussória até a entrega das chaves. Pois, sendo a prorrogação do contrato uma permissão da lei aos contratantes, se o fiador não se vincular expressamente a este, que é, na verdade, novo contrato, não podem fazê-lo os contratantes, pois não se pode obrigar terceiros sem sua anuência. Incidência da Súmula 2 l4/STJ441. Ademais, a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de não se reconhecer a prorrogação tácita da fiança, e que só pode a cláusula de responsabilidade até a entrega das chaves ser aplicada na vigência do contrato original, nunca em prorrogação posterior da qual não anuiu o fiador.

Ocorre que, em novembro de 2006, a Terceira Turma do Superior

Tribunal de Justiça, no âmbito do julgamento de um Recurso de Embargos de

Divergência442, fixou entendimento no sentido de admitir como legítima e

idônea a cláusula limitativa de responsabilidade do fiador até a entrega das

440 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2006/0054652-2. Julgado em 06/03/2007. Diário de Justiça de 19/03/2007, p. 389. Disponível em < www.stj.gov.br>. Pesquisa realizada em 05/03/2008. 441 Assim dispõe o enunciado da Súmula 214: “o fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu”. 442 Conforme ensina Alexandre Freitas Câmara, os Embargos de Divergência consistem “num mecanismo destinado a compor dissídios jurisprudenciais internos de um dado tribunal, tendo, pois, função equivalente ao do incidente de uniformização de jurisprudência”. In: CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol. II. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002, p. 46-47. Com efeito, o recurso em tela está disciplinado no art. 555, par. 1º, do Código de Processo Civil brasileiro.

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chaves, se assim estiver expresso no contrato, conforme se extrai da ementa

da decisão em tela: EResp. 566.633-CE443. Locação. Fiança. Prorrogação. Cláusula de garantia até a efetiva entrega das chaves. Continuam os fiadores responsáveis pelos débitos locatícios posteriores à prorrogação legal do contrato se anuíram expressamente a essa possibilidade e não se exoneraram nas formas dos artigos 1.500 do CC/16 ou do 835 do CC/02, a depender da época que firmaram a avença. Embargos de divergência que se dá provimento.

Conforme já se teve oportunidade de assinalar no capítulo I, na

seção II, do presente título, defende-se que a responsabilidade do fiador, em

contrato de locação, deve estar adstrita ao prazo estipulado no ajuste444, posto

ser um disparate privilegiar a segurança do crédito do locador, mantendo a

responsabilidade do fiador até a entrega das chaves. Ademais, a realidade que

se constata no mundo dos fatos, em que, de modo geral, o garantidor não é

comunicado do inadimplemento do locatário, terá o fiador, ao assinar o contrato

de fiança, colocado ante a sua cabeça uma verdadeira espada de Dâmocles445.

De fato, não parece haver harmonia entre o atual pensamento da

Corte Especial de Justiça (de que a responsabilidade do fiador se estende até

a efetiva entrega das chaves) e a sua autodenominação de Tribunal da

Cidadania, dado que tal adjetivação carrega valores que se espera amparados

e defendidos por meio da função jurisdicional. Desta forma, verifica-se um

paradoxo entre as decisões do Tribunal que admitem a responsabilidade do

fiador até a entrega das chaves e a idéia de justiça subjacente do substantivo

cidadania. Nesse diapasão, são oportunas as palavras de Marcos Silvio de

Santana446: A história da cidadania mostra bem como esse valor encontra-se em permanente construção. A cidadania constrói-se e conquista-se. É objetivo perseguido por aqueles que anseiam por

443 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial. Locação. Julgado em 22.11.2006. Diário de Justiça de 12.03.2008. Disponível em < www.stj.gov.br >. Pesquisa realizada em 12/03/2008. 444 Oportuno repisar que a responsabilidade do fiador até a entrega das chaves caracteriza cláusula leonina, injusta e contrária à ordem constitucional brasileira. 445 NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1999. p.809. Segundo o referido dicionário, a expressão “espada de dâmocles” significa “perigo sempre iminente.” 446 SANTANA, Marcos Silvio de. O que é Cidadania. Disponível em < www.advogado.adv.br >. Pesquisa realizada em 15/03/2008.

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liberdade, mais direitos, melhores garantias individuais e coletivas frente ao poder e a arrogância do Estado. A sociedade ocidental nos últimos séculos andou a passos largos no sentido das conquistas de direitos de que hoje as gerações do presente desfrutam. O exercício da cidadania plena pressupõe ter direitos civis, políticos e sociais e estes, se já presentes, são fruto de um longo processo histórico que demandou lágrimas, sangue e sonhos daqueles que ficaram pelo caminho, mas não tombados, e sim, conhecidos ou anônimos no tempo, vivos no presente de cada cidadão do mundo, através do seu “ir e vir”, do seu livre arbítrio e de todas as conquistas que, embora incipientes, abrem caminhos para se chegar a uma humanidade mais decente, livre e justa a cada dia.

Nesse contexto, cumpre agora trazer à baila alguns julgados do

Tribunal Especial que admitem a penhora do bem de família do fiador em

contrato de locação.

2. Quanto à possibilidade de penhora do bem de família do

fiador:

a. FIANÇA EM CONTRATO DE LOCAÇÃO – EXECUÇÃO – PENHORA EM IMÓVEL – Art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90. Determinando a Lei 8.009/90, no art. 3º, inciso VII, a exclusão do regime da impenhorabilidade de bem no caso de processo de execução por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação, a aplicação é imediata, sem se poder cogitar, na espécie, de situação pré-constituída ou direito adquirido. Recurso não conhecido. Resp. 60.824/SP. Rel. Ministro José Arnaldo da Fonseca. Julgamento em 15.10.1996.

b. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. PENHORA. BEM DE FAMÍLIA. FIADOR. OBRIGAÇÃO RESULTANTE DE FIANÇA. LEI 8.245/91. É válida a penhora do único bem do garantidor do contrato de locação posto que realizada na vigência da Lei 8.245/91, que introduziu, no seu art. 82, um novo caso de exclusão de impenhorabilidade do bem destinado à moradia da família, ainda sim quando a fiança fora prestada na vigência da Lei 8009/90. 3. Recurso provido- REsp 196452 / SP - 1998/0087783-5 – Rel. Ministro EDSON VIDIGAL - DJ 19.06.2000 p. 167.

c. LOCAÇÃO – FIANÇA – PENHORA – BEM DE FAMÍLIA. Sendo

proposta a ação na vigência da Lei 8.245/91, válida é a penhora que obedece seus termos, excluindo o fiador em contrato locatício da impenhorabilidade do bem de família. Recurso provido. Resp. 299.663/RJ . Rel. Min. Félix Fischer. Julgamento 15.03.2001.

d. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.

LOCAÇÃO. FIANÇA. PENHORA. BEM DE FAMÍLIA. POSSIBILIDADE. É possível a penhora do único bem imóvel do fiador do contrato de locação, em virtude da exceção legal do artigo 3º da Lei 8.009/90. (Precedente: RE nº 407.688, Pleno do STF, julgado em 8.2.2006, maioria, noticiado no informativo nº 416). Recurso ordinário

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desprovido. RMS 21265 / RSRECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA 2005/0211861-8 – Rel. Ministro FELIX FISCHER -JULGAMENTO: 23/05/2006

Observa-se, na referida jurisprudência447 que, apesar dos avanços

da doutrina da constitucionalização do Direito, amparada nas regras e

princípios constitucionais, as raízes do positivismo clássico ainda se mantêm

firmes e servindo de base para que se aplique o método de subsunção formal

da regra abstrata e genérica ao caso concreto. Parece que a referida Corte de

Justiça privilegia a obrigação decorrente de fiança em contrato de locação, ao

conferir prevalência ao crédito do locador em detrimento de valores

fundamentais como a dignidade humana, a função social nas relações jurídicas

e a solidariedade.

É indiscutível que a posição majoritariamente adotada pelo

Tribunal da Cidadania se distancia dos mencionados valores, assim como do

ideal consubstanciado na doutrina da constitucionalização do Direito, na qual

se privilegiam os direitos humanos fundamentais. Ainda, vale realçar que o que

se espera do juiz contemporâneo vai além do mero conhecimento da lei posta:

visto que a ele está reservada a importante função de fazer justiça social, a

partir da análise das peculiaridades do caso concreto, tendo sempre como

base o ser individualizado e não apenas premissas formais, genéricas e

abstratas previstas no texto legal.

Na verdade, espera-se, efetivamente, que o Superior Tribunal de

Justiça reveja seus posicionamentos, em especial, no que toca à possibilidade

de restrição judicial do único bem do fiador. Vale ressaltar que não se

questiona o instituto da penhora, que pode, perfeitamente, incidir sobre um

bem do fiador, conquanto se trate de bem excedente; ou seja, que não

constitua seu bem de família. Aí sim, poder-se-á considerá-lo um legítimo

Tribunal da Cidadania.

A seguir, busca-se analisar a jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal, no que diz respeito à possibilidade de penhora do bem de família do

fiador que, em sede de Recurso Extraordinário, ou seja, na esfera do controle

447 Em sentido contrário à penhora do bem do fiador, ver REsp nº 84511 / SP – Rel. Ministro José Dantas.

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incidental de constitucionalidade, se manifestou acerca da validade da norma

ínsita no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, acrescentada pela Lei 8.245/91.

II. 4. Supremo Tribunal Federal Hodiernamente, conforme explicitado no capítulo I, na seção IV, do

presente título II, o Direito tem sido redesenhado com as cores da Constituição

e arquitetado com premissas antropológicas, como a dignidade humana e a

solidariedade. Com esse fundamento, as normas constitucionais necessitam de

mecanismos que as preservem de possíveis violações, e neste aspecto, a

jurisdição constitucional ascende como instrumento viabilizador da mencionada

proteção.

No Brasil, cabe repisar, adota-se um sistema misto de controle

das normas constitucionais, posto mesclar-se o sistema norte-americano

(controle por via incidental, concreto, difuso) com o sistema austríaco (controle

em abstrato, concentrado). Com efeito, a Carta de 1988 determina em seu art.

102, que é do Supremo Tribunal Federal a competência para julgar, no controle

em abstrato, as ações diretas de constitucionalidade de lei ou ato normativo

federal ou estadual448, bem como, no controle difuso, as ações incidentais, por

meio do recurso extraordinário.

Nesse contexto, assume relevância a interpretação que o

Supremo Tribunal Federal dá às normas constitucionais. Ocorre que nem

sempre a exegese escolhida pela mencionada Corte de Justiça, efetivamente,

se harmoniza com a própria sistemática da Constituição, consoante será

demonstrado no que toca à recente posição adotada, em sede de recurso

extraordinário449 - no qual foi argüida a inconstitucionalidade da regra inserta no

inciso VII, do art. 3º, da Lei 8.009/90, que prevê a penhora do bem de família

do fiador -, em que o Plenário, por maioria, decidiu pela validade do referido

dispositivo.

448 Cumpre ressaltar que a análise pelo STF das normas municipais em face da Constituição Federal ocorre no controle concentrado por via da ação de descumprimento de preceito fundamental, art. 103, par. 1º, e no controle difuso, por meio de recurso extraordinário, art. 102, inciso III, da CR/88. 449 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 407.688-8-SP. Diário da Justiça de 06 out. 2006. Fiador. Locação. Ação de Despejo. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acesso em 27/03/ 2007.

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Ab initio, é oportuno destacar uma das decisões450proferidas pelo

Ministro Carlos Velloso, o qual, como relator de Recurso Extraordinário451,

considerou não-recepcionada a regra legal que prevê a penhora do bem de

família do fiador, em contrato de locação, nos termos da ementa a seguir

transcrita:

RE 449657 / SP - Relator(a) Min. CARLOS VELLOSO – Julgamento - 27/05/2005 - EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora "por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação": sua não- recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. (...) Autos conclusos em 20.4.2005. Decido. Ao julgar o RE 352.940/SP, em 26.4.2005, escrevi: "EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora 'por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação': sua não- recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido. (...) A Lei 8.009, de 1990, art. 1º, estabelece a impenhorabilidade do imóvel residencial do casal ou da entidade familiar e determina que não responde o referido imóvel por qualquer tipo de dívida, salvo nas hipóteses previstas na mesma lei, art. 3º, inciso I a VI. Acontece que a Lei 8.245, de 18.10.91, acrescentou o inciso VII, a ressalvar a penhora 'por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.' É dizer, o bem de família de um fiador em contrato de locação teria sido excluído da impenhorabilidade. Acontece que o art. 6º da C.F., com a redação da EC nº 26, de 2000, ficou assim redigido: 'Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.' Em trabalho doutrinário que escrevi 'Dos Direitos Sociais na Constituição do Brasil' (...) registrei que o direito à moradia, estabelecido no art. 6º, C.F., é um direito fundamental de 2ª geração, direito social que veio a ser reconhecido pela EC 26, de 2000. O bem de família, a moradia do homem e sua família justifica a existência de sua impenhorabilidade: Lei 8.009/90, art. 1º. Essa impenhorabilidade decorre de constituir a moradia um direito fundamental. Posto isso, veja-se a contradição: a

450 Ver outras decisões monocráticas do Ministro Carlos Velloso, nas quais considera não-recepcionada pela ordem constitucional, o inciso VII, do art. 3º, da Lei 8009/90, que prevê a penhora do bem de família do fiador, tais como: RE 415563 / SP; RE 349370 / SP; RE 415626 / SP; RE 352940 / SP; e RE 165571 / RS. 451BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 449657-SP. Constitucional. Civil. Fiador: Bem de Família: Imóvel residencial do casal ou de entidade familiar: Impenhorabilidade. Julgamento 27/05/2005. Diário de Justiça de 09.05.2006. Disponível em < www.stf.gov.br>. Pesquisa realizada em 22/11/2007.

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Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do art. 3º feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais (...). Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26, de 2000. Essa não recepção mais se acentua diante do fato de a EC 26, de 2000, ter estampado, expressamente, no art. 6º, C.F., o direito à moradia como direito fundamental de 2ª geração, direito social. Ora, o bem de família, Lei 8.009/90, art. 1º encontra justificativa, foi dito linha atrás, no constituir o direito à moradia um direito fundamental que deve ser protegido e por isso mesmo encontra garantia na Constituição. Em síntese, o inciso VII do art. 3º da Lei 8.009, de 1990, introduzido pela Lei 8.245, de 1991, não foi recebido pela CF, art. 6º, redação da EC 26/2000. Do exposto, conheço do recurso e dou-lhe provimento, Publique-se. Brasília, 27 de abril de 2005.( grifo nosso ).

Pode-se dizer que a referida decisão, como outras que vieram a

reboque, deu ensejo para que o Plenário do Supremo Tribunal Federal

avaliasse a norma jurídica questionada, o que ocorreu em sede de Recurso

Extraordinário452. É interessante observar que a maioria dos Ministros453 da

Suprema Corte brasileira, ao enfrentar a questão em tela, utilizou,

predominantemente, base argumentativa fundada em elementos econômicos,

conforme se extrai de trecho do voto do Ministro Cezar Peluso:

(...) a expropriabilidade do bem do fiador tende, posto que por via oblíqua, também proteger o direito social de moradia, protegendo direito inerente à condição de locador, não um qualquer direito de crédito. (...) castrar essa técnica legislativa (refere-se a previsão da fiança em locação), que não pré-exclui ações estatais concorrentes de outra ordem, romperia equilíbrio do mercado, despertando exigência sistemática de garantias mais custosas para as locações residenciais, com conseqüente desfalque do campo de abrangência do próprio direito constitucional à moradia.

Em que pese o enorme respeito que merece o Ministro Cezar

Peluso, a imagem que de imediato surge ao ler o seu voto é a de alguém que

452BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 407.688/SP. Julgado em 02.02.2006. Brasília. Diário de Justiça de 06.10.2006. Disponível em www.stf.gov.br. Pesquisa realizada em 27/03/2007. 453 Vale dizer que a decisão em tela não foi ratificada pelos Ministros Eros Grau, Carlos Ayres Brito e Celso de Mello, que se posicionaram no sentido da prevalência do direito humano fundamental à moradia.

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para sustentar e privilegiar uma tese em abstrato (econômica e

conseqüencialista) de difícil mensuração, aniquila um direito humano

fundamental e concreto de um ser de carne e osso; isto é, para vestir uma tese

incerta e uma pessoa abstrata, desnuda outra de carne e osso.

Em sede de debates, o Ministro Eros Grau, Carlos Ayres Britto e

Celso de Mello defenderam a impenhorabilidade do bem de família do fiador,

conforme se depreende de fragmentos de seus votos. No dizer do Ministro

Celso de Mello, a essencialidade do direito à moradia impõe o cumprimento de

dois princípios fundamentais: o patrimônio mínimo e a dignidade humana,

sobre este, preleciona o magistrado:

Esse princípio fundamental, valorizado pela fiel observância da exigência ético-jurídica da solidariedade social – que traduz um dos objetivos fundamentais do Estado Social de Direito ( CF, art. 3º, I ) – permite legitimar interpretações que objetivem destacar, em referido contexto, o necessário respeito ao indivíduo, superando-se, desse modo, em prol da subsistência digna das pessoas, restrições que possam injustamente frustrar a eficácia de um direito tão essencial, como o da intangibilidade do espaço doméstico em que o ser humano vive com a sua família ( grifo do autor ).

Nesse passo, o Ministro Carlos Ayres Brito, em seu voto, ao

defender a imunidade do bem de família do fiador, apresentou o direito à

moradia a partir de três perspectivas:

A Constituição usa o substantivo ‘moradia’ em três oportunidades: a primeira, no artigo. 6º, para dizer que a moradia é um direito social; a segunda, no inciso IV, do artigo 7º, para dizer, em alto e bom som, que a moradia se inclui entre as ‘necessidades vitais básicas’do trabalhador e da sua família; e, na terceira vez, a Constituição usa o termo ‘moradia’como política pública, inserindo-a no rol de competências materiais concomitantes dos Estados, da União, do Distrito Federal e dos Municípios ( artigo 23, inciso IX ). A partir dessas qualificações constitucionais, sobretudo aquela que faz da moradia uma necessidade essencial, vital básica do trabalhador e de sua família, entendo que esse direito à moradia se torna indisponível, é não-potestativo, não pode sofrer penhora por efeito de um contrato de fiação. Ele não pode, mediante um contrato de fiação, decair ( grifo nosso ).

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Por fim, em seu voto, o Ministro Eros Grau, ao defender que “a

impenhorabilidade do imóvel residencial instrumenta a proteção do indivíduo e

sua família quanto às necessidades materiais, de sorte a prover a sua

subsistência”, travou um verdadeiro diálogo-duelo com o relator do recurso, o

Ministro Cezar Peluso, o qual questionou de forma veemente os argumentos

apresentados por ele. Sem se abater, mas convencido de sua posição, o

Ministro Eros Grau refutou o argumento conseqüencialista454 trazido pelo

colega, - de que possível afastamento da regra que excepciona da

impenhorabilidade o bem de família do fiador causaria forte impacto no

mercado das locações imobiliárias – e defendeu os preceitos constitucionais,

afirmando que “não hão de faltar políticas públicas, adequadas à fluência desse

mercado, sem comprometimento do direito social e da garantia constitucional”.

Nesse duelo de idéias, o Ministro Cezar Peluso, a despeito de

partir de premissas verdadeiras, parece ter chegado, com a devida vênia, a

uma conclusão equivocada. Veja-se: o primeiro aspecto apontado pelo julgador

refere-se à existência de contingente de pessoas sem titularidade proprietária

significativamente superior aos que possuem uma propriedade imóvel; e o

segundo vincula-se à idéia de que o acesso à locação é um meio fácil para as

pessoas sem condições financeiras exercerem o direito à moradia. Realmente,

conforme referido, o deficit habitacional no Brasil chega ao patamar de oito

milhões de pessoas (ver disposição gráfica no capítulo I, do Título I), não há

como fugir da realidade apontada pelos números, mas o que se questiona é a

conclusão a que chegou o respeitável magistrado, consoante suas palavras:

(...) aos poucos e aos pouquíssimos proprietários que voluntariamente acedem em ser fiadores nos contratos, o Estado deu uma opção, que a meu ver, está dentro da norma constitucional do direito de moradia. O que está em jogo aí são – como sempre – dois interesses relevantes, mas, neste caso, parece-me que a norma, abrindo a exceção à inexpropriabilidade do bem de família, é uma das

454 GALVÃO, Pedro. A Teoria Utilitarista de J. S. Mill: Uma Caracterização. Disponível em: <www.spfil.pt/trol-galvao.htm>. Pesquisa feita em 25/04/2007). Segundo o autor, “ o consequencialismo é uma perspectiva sobre a correcção moral (ou obrigação moral) — uma perspectiva sobre o que é moralmente certo ou errado fazer. Nas suas versões mais directas, aplica-se primariamente a ações, mas há teorias consequencialistas que se aplicam primariamente a regras, práticas ou motivos, determinando só derivadamente a correcção moral das ações”.

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modalidades de conformação do direito de moradia por via normativa, porque permite que uma grande classe de pessoas tenha acesso à locação.

Parece despida de fundamentação incólume à crítica a linha de

intelecção do mencionado julgador, precisamente por duas razões distintas: no

tocante à primeira delas, fica claro que o magistrado não faz qualquer distinção

entre o direito de propriedade autônomo e o direito de propriedade

acessória/instrumental ( conforme defendido no capítulo I, seção IV, do Título

I ). A dimensão instrumental do mencionado direito tem basicamente duas

funções: 1. dar plenitude ao direito humano fundamental à moradia; e 2. servir

como garantia do patrimônio mínimo. Já o direito de propriedade autônoma,

desvinculado do bem de família, além de cumprir a função social que lhe é

afeta, pode estar no âmbito de interesses disponíveis, porquanto não está

servindo de pressuposto de efetividade ao direito de habitação.

A segunda razão, por sua vez, relaciona-se com o argumento

defendido pelo Ministro Cezar Peluso, segundo o qual a opção normativa que

prevê a penhora do bem de família do fiador tem como ratio subjacente o

incentivo ao acesso à moradia, por meio da locação. Embora não desprovido

de razão tal argumento, padece de razoabilidade, na medida em que, sob a

alegação de que se está a facilitar a moradia daquele que pouco ou nada tem,

retira-se daquele que, com muito esforço, conseguiu concretizar de forma plena

o seu direito à moradia, por meio da casa própria. Tal vertente de pensamento

parece contradizer, não somente, a essência da própria Constituição de 1988,

mas, sobretudo, conduz ao retrocesso, uma das facetas da injustiça, posto

admitir que se retire do fiador o exercício pleno e consumado do direito à

moradia, concretizado na sua casa própria, no seu bem de família.

Nesse passo, defende-se que a norma inserta no art. 3º, inciso

VII, da Lei 8.009/90, que prevê a penhora do único bem do fiador, somente

será válida se interpretada conforme a Constituição, isto é, somente será

constitucional se condicionada à existência de um bem exógeno: ou seja,

situado fora do espectro de proteção do patrimônio mínimo, subsumido no bem

de família do fiador.

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CONCLUSÃO

O trabalho em tela, conforme teve seu objeto delimitado no

capítulo introdutório - qual seja, a (im)possibilidade de penhora do único bem

do fiador em contrato de fiança – apoiou-se em premissas de cunho teórico,

filosófico, sociológico e jurídico.

A primeira e fundamental premissa é a tutela da dignidade da

pessoa humana, corolário para a defesa de outros valores fundamentais ao

pleno desenvolvimento humano.

Com amparo nas teses da constitucionalização e

repersonalização do Direito, defendidas pela doutrina civil-constitucionalista

nacional e estrangeira, sustentou-se outra importante premissa, a qual vincula-

se à defesa do caráter metajurídico do direito humano fundamental à moradia:

pressuposto necessário à realização de outros direitos fundamentais, além de

servir de base para a defesa do patrimônio mínimo, consubstanciado no bem

de família.

Além das mencionadas premissas, outro aspecto relevante que

fundamentou os argumentos sustentados no presente trabalho, diz respeito à

defesa do caráter instrumental do direito de propriedade, partindo-se do fato de

que tal instituto biparte-se em direito fundamental autônomo e direito

fundamental acessório/instrumental. O primeiro, de acordo com a Carta de

1988, cumpre sua função social ao observar princípios como o da dignidade

humana e o da solidariedade. Já o direito de propriedade acessória está

atrelado ao direito humano fundamental à moradia, posto servir de instrumento

para o efetivo exercício deste; ou seja, o direito de propriedade acessória não

vale de per se, não pode ser equiparado, por exemplo, ao direito de crédito do

locador, na medida em que traduz valores axiologicamente diferentes.

Indiscutivelmente, a abordagem do tema, em decorrência da sua

complexidade, exigiu uma análise a partir de marcos teóricos multidisciplinares,

razão pela qual, na primeira parte do trabalho, apontou-se alguns aspectos que

contribuíram para a deflagração da crise da habitação no Brasil, a partir do

século XIX, além dos problemas que vieram a reboque, como o crescimento

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desordenado do espaço urbano, a exclusão sócio-econômica e violações de

direitos humanos fundamentais.

Nesse contexto, é inquestionável a correlação do bem de família

com a concretização do direito humano fundamental à moradia, de tal sorte que

o estudo acerca da eficácia jurídica e social dos direitos humanos, bem como

dos seus elementos intrínsecos - fundamentalidade e essencialidade – tornou-

se necessário para analisar situações que envolvem dois direitos fundamentais,

como é o caso da questão nuclear deste trabalho.

De fato, tem-se de um lado o direito de crédito do locador, e de

outro o direito à moradia. Segundo a CR/88, ambos são direitos humanos

fundamentais, se o entendimento é no sentido de que o direito de crédito

subsume-se no direito de propriedade. Como resolver, então, esse conflito

entre dois direitos fundamentais? O critério da ponderação, nesta situação

pode ser uma saída viável. Deve-se, avaliar a essencialidade de cada direito

em jogo, e o grau de interferência admissível no núcleo fundamental de cada

um. Desta forma, deve-se ponderar o seguinte: 1. O que acontecerá se o

locador não puder obter seu crédito com o bem de família do fiador? 2. Por

outro lado, o que acontecerá se o bem de família do fiador for excutido em

processo de execução para suprir o crédito do locador?

Ao se ponderar as questões colocadas, deve-se, primeiramente,

levar em consideração valores fundamentais, como a dignidade humana, a

família, e o mínimo existencial, bem como o contexto social nacional, no qual

11% da população é analfabeta, sem esquecer dos analfabetos funcionais, que

atingem o patamar de 26% dos habitantes, os quais conseguem ler, mas não

têm a compreensão necessária do que lêem.

Nesse cenário, é possível visualizar o seguinte quadro: de um

lado o locador e seu direito de crédito, o qual pode ser suprido por outras

formas, além de poder novamente colocar para locação o seu bem imóvel. De

outro lado, tem-se o fiador e o seu bem de família, que se vier a perdê-lo terá

que se submeter às regras do mercado de locação, inclusive amargar com a

possível dificuldade em arrumar alguém disposto a colocar-se na posição de

seu garantidor; verá vilipendiada a sua dignidade e de sua família; sentirá,

ainda, sua saúde física e mental sofrer os nefastos efeitos do processo que

culminou com a perda da sua casa própria, entre outros prejuízos.

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Nesse passo, ao enfrentar a questão da penhora do único bem do

fiador, prevista no art. 3º, inciso VII, da Lei 8.009/90, à luz da Constituição

Federal de 1988, analisou-se a jurisprudência das Cortes de Justiça brasileiras,

no tocante à (im)possibilidade da penhora do único bem do fiador.

A despeito da constatação de que a maioria das decisões dos

Tribunais de Justiça dos Estados, do Superior Tribunal de Justiça e do

Supremo Tribunal Federal, ser no sentido da possibilidade da penhora do único

bem do fiador, tendo como fundamento a letra fria da lei, não se perde a

esperança de alcançar o ideal perseguido pelos defensores das teorias da

constitucionalização e repersonalização do Direito, que é o estudo do caso

concreto a partir da análise das peculiaridades que envolvem o homem de

carne e osso. Ressalte-se, enquanto houver esperança haverá força para se

caminhar rumo ao Estado Democrático Constitucional e Humanitário de Direito.

Nesse contexto, ao se afirmar que a pessoa humana é o centro

de onde irradiam todos os direitos, sendo, portanto, a sua dignidade vetor

delimitador de todas as normas jurídicas, sustenta-se a constitucionalidade

condicionada do inciso VII, do art. 3°, da Lei 8.009/90, à existência de um bem

exógeno do fiador; ou seja, de um bem que esteja fora da esfera do seu

patrimônio mínimo.

Desta feita, por tudo o que foi esposado neste trabalho, diante das

premissas apresentadas e dos argumentos defendidos conclui-se que a

decisão do STF, a qual analisou, em sede de controle concreto, a referida

norma - que prevê a penhora do bem de família do fiador - não se sustenta

filosófica, sociológica e juridicamente.

A uma, porque dá prevalência ao crédito em detrimento da

dignidade da pessoa do fiador e de sua família.

A duas, porquanto tal decisão não ponderou o contexto social em

que a norma está inserida, no qual a maioria das pessoas que assumem a

posição de garantidor, em contrato de locação, não tem a correta noção das

conseqüências práticas de seu ato, e em regra, são proprietárias de um único

imóvel.

A três, a decisão do STF não se sustenta juridicamente, por duas

razões distintas: 1. não considerou a violação ao princípio da igualdade existente

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no inciso VII, do art. 3º da Lei 8.009/90, eis que o mencionado diploma legal

protege o bem do locatário, caso este o tenha, porém afasta o manto da

impenhorabilidade daquele que foi fiador. Cabe frisar, sempre, que a ratio

essendi do bem de família é garantir o patrimônio mínimo de todos aqueles que

a “duras penas” já o conquistaram, seja o locatário, seja o fiador; e 2. a segunda

razão, em função da qual não merece prosperar a referida decisão do STF, diz

respeito ao fato de que a propriedade consubstanciada no bem de família não

vale de per se, posto ser mero instrumento para a concretização do direito

humano fundamental à moradia, e este, por sua vez, entende-se ser requisito

essencial à efetividade de outros valores fundamentais como a vida, a educação,

a saúde, a cidadania e o acesso às oportunidades de crescimento profissional.

No cenário em que o direito constitucional humanitário

contemporâneo vem se delineando não há mais espaço para a mera aplicação

da letra fria da lei ao caso concreto. As relações jurídicas - nas quais o homem

está inserido apenas como mais um de seus elementos essenciais - necessitam

de uma releitura a partir de uma visão antropocêntica, amparada na dignidade

humana. De tal sorte que o homem deve ser analisado a partir de suas

especificidades e necessidades particulares, e não mais como um ser genérico e

abstrato, conforme acentua Luiz Edson Fachin455: “sujeito concreto e cidadania

não se assentam na razão de uma compreensão exclusivamente abstrata do

sujeito: passa a ter sentido o plano do seu conteúdo, bem como suas projeções

concretas”.

Nesse contexto, devem o Código Civil e demais leis esparsas se

coadunar com as normas constitucionais, em especial, aquelas que consagram

direitos humanos fundamentais, sendo inadmissível que um diploma legal venha

a restringir um direito fundamental, como o direito à moradia, em benefício de um

direito de crédito, que pode ser exigido por outros instrumentos menos gravosos.

As normas civilistas existem para servir e ordenar as relações sociais, não para

violar valores fundamentais do homem. .

Cumpre destacar, ainda, que as garantias contratuais, em

particular, do contrato de locação, não podem reduzir à miserabilidade aquele

que, num ato de liberalidade ( generosidade ), assumiu a obrigação de

455 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil à Luz do Novo Código Civil Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 189.

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garantidor. Desta forma, entende-se que o Estado deve incentivar outras

formas de garantia que não ponham em risco a dignidade, a segurança e o

desenvolvimento daquele que já conseguiu a sua tão sonhada casa própria,

concretizando, com isso, o pleno exercício do direito humano fundamental à

moradia.

No caso brasileiro, em que a crise da habitação assume

proporções sérias, causando prejuízos de diversas ordens - tanto de caráter

sócio-econômico quanto psicológico e cultural - o sonho da casa própria deve

ser tratado como objetivo a ser alcançado a partir de esforços compartilhados

entre cidadãos, Poder Público e sociedade ( esta como um conjunto de atores

diversos ), visto que somente assim será possível realizar a travessia da

situação de deficit habitacional para uma cidade sustentável, onde todos

possam ter acesso à moradia digna.

Saliente-se que, atentar para a ratio da lei do bem de família, que

é a de garantir o patrimônio mínimo do indivíduo e de sua família, deve ser

premissa inafastável tanto na formação das relações jurídicas como na análise

do caso concreto em sede judicial.

Repise-se, no tocante à propriedade, deve-se ter sempre em

mente que tal instituto como função social assume dupla dimensão: de direito

autônomo e de direito acessório, sendo certo que a propriedade acessória está

diretamente vinculada ao pleno exercício do direito à habitação.

Nessa toada, comungando da visão humanista e solidária da

doutrina que embasou as idéias defendidas neste trabalho, espera-se que num

futuro próximo o legislador reveja a norma inserta no inciso VII, do art. 3º, da

Lei 8.009/90, que admite a penhora do bem de família, expurgando-a do

ordenamento jurídico456. E, se assim não o fizer o legislador, deposita-se a

esperança na Suprema Corte Constitucional brasileira, para que reveja sua

posição, no sentido de dar interpretação conforme a CR/88, condicionando a

validade da referida regra à existência de um bem excedente do fiador, isto é,

456 Cumpre mencionar o Projeto de Lei nº 4.728/1998, de autoria do Deputado Federal José Machado, do Partido dos Trabalhadores-SP, o qual busca vedar que se ofereça o único imóvel da família como garantia locatícia. Ressalte-se, ainda, que apensados a este projeto, existem outros projetos visando à alteração da lei do bem de família: ( PL 562/99; pl 895/99; PL1.683/99; PL 4.923/01; PL 1.458/03; e PL 2.666/03 ).

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um bem que esteja fora do espectro de seu patrimônio mínimo, um bem que

não lhe sirva de abrigo, como é o caso do bem de família legal.

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