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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES
CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO
THAZIO SILVA BEZERRA DE MENEZES
“PROCESSO TEMPO”: A IMPORTÂNCIA DO ÓCIO CRIATIVO NO TRABALHO
DE COMPOSIÇÃO DO ATOR.
NATAL/RN - 2020
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THAZIO SILVA BEZERRA DE MENEZES
“PROCESSO TEMPO”: A IMPORTÂNCIA DO ÓCIO CRIATIVO NO TRABALHO
DE COMPOSIÇÃO DO ATOR.
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Universidade Federal do Rio Grande do Norte como
requisito parcial para obtenção de título de Licenciado
em Teatro.
Orientador: Robson Carlos Haderchpek
NATAL/RN - 2020
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FICHA CATALOGRÁFICA
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART
Menezes, Thazio Silva Bezerra de.
"Processo tempo" : a importância do ócio criativo no trabalho
de composição do ator / Thazio Silva Bezerra de Menezes. - 2020.
50 f.: il.
Monografia (licenciatura) - Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.
Licenciatura em Teatro, Natal, 2020.
Orientador: Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek.
1. Epistemologias do sul. 2. Teatro ritual. 3. Poética dos
elementos. 4. Ócio criativo. 5. Arkhétypos Grupo de Teatro. I.
Haderchpek, Robson Carlos. II. Título.
RN/UF/BS-DEART CDU 792
Elaborado por Thazio Silva Bezerra de Menezes - CRB-X
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES
FOLHA DE APROVAÇÃO
O Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Processo Tempo”: A Importância do Ócio
Criativo no Trabalho de Composição do Ator apresentado por Thazio Silva Bezerra de
Menezes contou com a participação da seguinte banca examinadora:
______________________________________
Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek
(ORIENTADOR - DEART/UFRN)
______________________________________
Profª. Drª Karyne Dias Coutinho
(Professora convidada – DPEC/UFRN)
______________________________________
Profº Dr. Leônidas de Oliveira Neto
(Professor convidado - DEART/UFRN)
Natal, 19 de Junho de 2020.
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DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a todos aqueles que
acreditam que a vida é pra ser vivida em paz,
com prazer, de forma intensa, mas envolta em
respiros e suspiros profundos!
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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a mim mesmo, por toda a paciência e superação no ato de pensar,
fazer e refletir sobre Arte, que é a paixão de minha vida.
Agradeço amorosamente aos meus pais, Alfredo e Almerinda, “painho” e “mainha”, ou Júnior
e Linda, que me ajudam e me acolhem nesse caminhar entre pedras e flores.
Agradeço à Universidade Federal do Rio Grande do Norte que me deu mais uma
oportunidade para me reencontrar com o trabalho e o estudo no campo artístico.
Agradeço ao meu amigo, orientador e professor Robson Haderchpek pelos anos de
cumplicidade, de amor, de cuidado! Desde o primeiro semestre eu sentia que podia confiar em
você para estar junto e você não me decepcionou em nada minhas expectativas.
Agradeço aos meus amores e colegas de sala, da turma 2016.1 de Teatro (L), que foram
excelentes, unidos, agindo com empenho e companheirismo me ajudando a cumprir mais
levemente essa passagem pelo curso. Em especial aos “Nóis 5 é Nóis 6”: Alessandra Augusta
(o coração), Ana Clara (minha gêmea), David Dallas (meu riso), Jéssica Agna (minha
admiração), Roberta Alves (a força); amigos/artistas que carregarei para toda a vida.
Agradeço aos professores e professoras deste curso que me olharam com atenção a cada dia.
Em especial a: Melissa Lopes, com sua justeza, seu talento, sua inteligência viva e sua
confiança e carinho animados para comigo; a Mayra Montenegro, que me emociona com sua
vida e arte; a Deyze, Karyne e Monize, que me fizeram enlouquecer e revirar sobre mim
mesmo ao assistir e participar de suas aulas, inspirando-me ao observar nelas, de forma
cristalina, a potência e o amor pela arte docente; e a Makarios, por me apontar caminhos da
encenação, no teatro e na vida, com muito graça e paixão.
Agradeço a Karyne, novamente, e ao professor Leônidas Marrocos por aceitarem estar
comigo nessa etapa tão essencial de finalização do curso, compondo a banca avaliativa e
compartilhando seus tempos e saberes para comigo e minha pesquisa.
Agradeço ao Grupo Arkhétypos que me oportunizou no meu crescimento enquanto professor,
artista e humano.
Agradeço, também, a José de Medeiros, que tem compartilhado amor comigo e me nutrido
emocionalmente e poeticamente em meus momentos de ócio, prazer e vida.
E agradeço, por fim, a todos os meus amigos e pessoas queridas que de uma forma ou outra
me alimentaram e desanuviaram o coração e pensamento deste ser irrequieto que sou.
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RESUMO
Essa monografia é decorrente da pesquisa de iniciação cientifica realizada na Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) intitulada “A Poética dos Elementos e as
Epistemologias do Sul”, e tem como foco uma investigação acerca das epistemologias do sul
na sua relação com a cena e os saberes interculturais oriundos da prática metodológica
desenvolvida pelo Arkhétypos Grupo de Teatro da UFRN. Propondo um recorte no tema
central o presente trabalho busca investigar como a relação entre o ócio e o prazer pode
marcar a construção de um processo criativo. À luz da Poética dos Elementos e da
“Dramaturgia dos Encontros” (HADERCHPEK, 2016) – procedimentos de criação cênica do
Arkhétypos Grupo de Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte –, e tomando
como referência os escritos sobre os elementais de Gaston Bachelard (2013), as
Epistemologias do Sul, base de estudo de Boaventura de Sousa Santos (2009), e o conceito de
Ócio Criativo de Domenico de Masi (2000), o processo “Tempo” emerge como resultado
prático desta pesquisa.
Palavras-chave: Epistemologias do Sul, Teatro Ritual, Poética dos Elementos, Ócio Criativo,
Arkhétypos Grupo de Teatro.
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ABSTRACT
This monograph is a result of scientific initiation research held at the Federal University of
Rio Grande do Norte (UFRN) entitled “The Poetic of the Elements and the Epistemologies of
the South”, and focuses on an investigation of epistemologies of the south in their relationship
with a scene and with intercultural knowledges from the methodological practice developed
by the UFRN Arkhétypos Theater Group. Proposing a cut in central theme the present work
seeks to investigate how the relationship between leisure and pleasure can mark the
construction of a creative process. In the light of the Poetics of the Elements and the
“Dramaturgy of Encounters” (HADERCHPEK, 2016) – artistic creation procedures of the
Arkhétypos Theater Group at the Federal University of Rio Grande do Norte –, and taken as a
written reference of the elements of Gaston Bachelard (2013), the Epistemologies of the
South, the basis of study by Boaventura de Sousa Santos (2009), and the concept of Creative
Leisure by Domenico de Masi (2000), the “Tempo” process emerges as a practical result of
this research.
Key-words: Epistemologies of the South, Ritual Theater, Poetics of the Elements, Creative
Leisure, Arkhétypos Theater Group.
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ÍNDICE DE FIGURAS
Fig. 1 – Componentes do processo “Tempo” ......................................................................... 27
Fig. 2 – Laboratório de criação do processo “Tempo”: Morte do Ritmo/Tempo (Hairton) ... 29
Fig. 3 – Laboratório de criação do processo “Tempo”: Menina/Medo (Ana Clara) atormentada
pelo Silêncio (José Ricardo) e Finitude (Malu), enquanto a Felicidade (Helton) protege a
Menina/Medo .......................................................................................................................... 29
Fig. 4 – Cena 1. Apresentação do processo “Tempo” no Museu Câmara Cascudo ............... 38
Fig. 5 – Cena 3. Nascimento da Criança/Medo ...................................................................... 40
Fig. 6 – Cena 3. Apresentação do processo “Tempo” no Museu Câmara Cascudo ............... 41
Fig. 7 – Cena 4. Apresentação do processo “Tempo” no Museu Câmara Cascudo ............... 42
Fig. 8 – Cena 5. Apresentação do processo “Tempo” no Museu Câmara Cascudo ............... 43
Fig. 9 - Cena 5. Apresentação do processo “Tempo” no Museu Câmara Cascudo ................ 43
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
REFLEXÕES SOBRE O ÓCIO E O PRAZER ...................................................................... 13
A RELAÇÃO ENTRE O ÓCIO E AS EPISTEMOLOGIAS DO SUL ................................. 17
PRÁTICA LABORATORIAL DO ARKHÉTYPOS: PROCESSO TEMPO ........................ 21
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................. 45
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 47
ANEXO.................................................................................................................................... 49
10
INTRODUÇÃO
O presente trabalho decorre da pesquisa de iniciação científica realizada na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), intitulada “A Poética dos Elementos e
as Epistemologias do Sul”, e tem como foco uma investigação acerca das epistemologias do
sul na sua relação com a cena e os saberes interculturais oriundos da prática metodológica
desenvolvida pelo Arkhétypos Grupo de Teatro da UFRN. Este projeto de pesquisa do qual
sou bolsista foi aprovado por meio do Edital nº 01/2019 da UFRN com financiamento do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), com período de
validade de 1º de agosto de 2019 a 31 de julho de 2020.
No decorrer da referida pesquisa, refletindo sobre como este tema me atravessa, e
respeitando as minhas necessidades, no momento atual, de dar vazão às minhas inquietudes
pessoais enquanto sujeito, humano e pesquisador das artes cênicas, escolhi fazer uma
investigação a respeito da importância do ócio para o homem e a mulher nos dias de hoje, à
luz da Poética dos Elementos - procedimento de criação cênica do Arkhétypos Grupo de
Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte -, e tomando como referência os
escritos sobre os elementais de Gaston Bachelard (2013) e das Epistemologias do Sul, base de
estudo de Boaventura de Sousa Santos (2009).
Mas, por que o ócio? Bem... como geminiano que sou, ávido a encontrar sempre novas
possibilidades de conhecer e de ser e estar no mundo, queria problematizar e experimentar
outras dinâmicas de produzir arte, mais especificamente a teatral, e de produzir novos
significados e aprendizados à minha existência por uma perspectiva que não é tão bem vista
dentro desse modus operandi “corrida maluca” que a nossa sociedade enfrenta atualmente.
Então, queria colocar como ponto de partida, tanto em minha vida como no processo de
investigação criativo, um estado de espírito e de sentimento de calma, que promovesse um
respiro maior, por um viés que não fosse o fazer exaustivo, que traz consigo o estresse, a
fadiga e o cansaço.
Como sinônimos para o ócio evoco o “descanso”, a “pausa”, o “repouso”. O ócio, da
forma como eu o percebo e o insiro no meu cotidiano, não é colocado como um tempo
estagnado ou improdutivo. Mas sim, como um tempo que despendemos para o próprio
cuidado de si, revelando-se altamente produtivo e saudável para nossas vidas. Por exemplo,
quando fazemos meditação, quando damos uma entrevista, quando assistimos a um filme ou
discutimos animadamente com os amigos, quando damos uma caminhada na praia sentindo o
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vai e vem das ondas nos pés, quando “maratonamos” uma série no Netflix. Ou, também,
quando simplesmente deitamos em nossas camas, ou sentamos num banco de uma praça e
ficamos a observar as nuvens passarem no céu, a escutar os pássaros a cantar, os transeuntes a
passear e, de alguma forma, refletimos sobre gostos, lembranças, momentos tristes e felizes,
ou podemos igualmente celebrar um esvaziamento de nossas mentes.
É justamente desse tipo de ócio que trato neste artigo, o que também o sociólogo
italiano Domenico de Masi (2000) vai descrever, em um de seus livros que carrega esta
acepção, chamando-o de “ócio criativo”. Em cada uma dessas situações deverá sempre existir
a criação de um valor, de um significado e, junto com isso, divertimento e formação.
O interesse de estudar essa temática começou num dos primeiros dias de práticas
corporais do Grupo Arkhétypos, no início do segundo semestre 2019. Neste dia eu fiz a
condução do trabalho e procurei trazer exercícios que se voltassem para o ócio, para um
“fazer descansado”. Minha proposta foi experimentar com os praticantes deste dia de
treinamento um exercício meditativo. Ao final da atividade, surgiu com frequência nas falas
dos alunos a necessidade e a vontade de parar, bem como a temática do ócio. E isso foi muito
significativo para mim pois era a partir dessas sensações do repouso, do não-fazer, do relaxar,
que eu queria dar prosseguimento às minhas investigações. Sobre esse processo irei discorrer
mais detalhadamente à frente.
Não tão imediatamente, mas como resposta à experiência dessa “imobilidade”, desse
“não fazer”, me veio o questionamento sobre quais elementos possivelmente trabalhariam
esses momentos: tempos de pausa, de descanso. De pronto me veio o elemento Terra.
Ressalto desde já que, esse exercício de associar símbolos, imaginações, práticas
corporais a elementos da natureza, quais sejam, terra, fogo, ar e água, inspirando o imaginário
criativo, chama-se Poética dos Elementos. Esta poética, inspirada no trabalho de Gaston
Bachelard (2013) e que se traduz na prática do Grupo Arkhétypos, traz em sua concepção a
classificação de nossas imaginações materiais conforme elas se associem à tetralogia dos
elementos. Tais elementos materiais aliados ao processo criativo têm a força de alimentar
fortemente as almas poéticas dos atores e atrizes. Esse procedimento foi utilizado na
condução dos laboratórios práticos em alguns momentos do processo “Tempo”.
A terra simboliza o corpo físico, a afinidade com o mundo das sensações físicas e
formas materiais. Sua polaridade é negativa, daí a disposição para receber, reter e
realizar. Como agente estruturador, simboliza a resistência, a praticidade, o método,
a concentração. (HARRISONx; LI, 2010, p. 89)
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Quando penso no elemento terra, adjetivo-o sem muita reflexão como o mais rígido
dentre os quatro elementais (terra, fogo, ar e água). Automaticamente me vem a rigidez, a
solidez, a facilidade de dar forma às coisas. Sei que, não necessariamente a terra precisa ser
sempre associada à rudeza e ao bruto, pois também há qualidades de terra que nos acolhem,
como pode ser observado com a mãe natureza. Que nela há também as sutilezas materiais da
flor, da árvore, e daquelas pequenas raízes que como as trepadeiras se aventuram de forma
aérea pelo espaço.
Adentrando um pouco mais nas significações deste elemento, trago à luz Gaston
Bachelard (2003), que escreveu um livro chamado A Terra e os devaneios do repouso. Neste,
ele caracteriza a terra como nosso canto de descanso. Voltemos à raiz!
A terra, da mesma forma que é um elemento que oculta as coisas que lhe são
confiadas, ela também tem o poder de manifestá-las. Entendo, assim, que as imobilidades, o
voltar-se para dentro, o enraizar-se, que são próprios deste elemental, fazem com que
descubramos dentro de nós nossas vontades e desejos e, ao tino do sonhar com essas
vontades, nos colocamos um futuro às nossas ações. Ou seja, gera-se movimento.
Ao se voltar para dentro, ao perceber e sonhar com a sua própria intimidade, segundo
Bachelard (2003, p. 4), é “que se sonha com o repouso do ser, com um sonho enraizado, com
um repouso enraizado, um repouso que tem intensidade e que não é apenas essa imobilidade
inteiramente externa reinante entre as coisas inertes”. Declarado isto, pude perceber que,
durante os momentos de apreciação do meu eu, seja nas experiências meditativas, em casa
deitado em minha cama a pensar sobre a vida ou até nas práticas corporais do Arkhétypos,
como também nas conversas despojadas e tranquilas com colegas de estudo e trabalho,
familiares e amigxs, meu íntimo busca prazer nas ações que promovo, eu busco ter tempo
livre para fazer o que gosto.
Após esta breve apresentação do meu tema, divido este trabalho da seguinte forma. No
tópico “Reflexões sobre o Ócio e o Prazer” falo sobre como o tempo livre pode ser utilizado
na criação de significados. O tempo ocioso ao ser preenchido com cultura, de forma a
enriquecer os significados, dando sentido às coisas, torna-se saudável. Em seguida no tópico
“A Relação entre o Ócio e as Epistemologias do Sul” abordo a questão do ócio criativo
estabelecendo um diálogo com as Epistemologias do Sul e propondo uma análise crítica da
sociedade frente ao fator tempo. Ainda neste tópico discorro sobre o massacre e as bonanças
ditados ao tempo livre, que é percebido no mundo infantil bem como no teatro ritual, onde ele
acontece de forma dilatada. E finalizo com o tópico “Prática Laboratorial do Arkhétypos:
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Processo Tempo” falando sobre o processo de criação “tempo” e os desdobramentos gerados
com este estudo.
REFLEXÕES SOBRE O ÓCIO E O PRAZER
O prazer é algo que pulsa vivamente em mim. E que está implícito (e explicitamente)
também na arte teatral que faço, já que a base do teatro é o jogo, e no jogo se tem o
divertimento e o prazer, como afirma Huizinga (2010):
Os animais brincam tal como os homens. Bastará que observemos os cachorrinhos
para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-se presentes todos os
elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar
mediante um certo ritual de atitudes e gestos. Respeitam a regra que os proíbe
morderem, ou pelo menos, com violência, a orelha do próximo. Fingem ficar
zangados e, o que é mais importante, eles, em tudo isto, experimentam
evidentemente imenso prazer e divertimento. (HUIZINGA, 2010, p. 5)
Essa sensação prazerosa em fazer algo foi libertador em minha vida. Eu passei por
uma experiência singular, no tocante a esse sentimento, no primeiro semestre de 2011, e este
foi certamente um dos momentos mais cruciais e mais importantes pelos quais já passei, era
quando eu ainda atuava em outra área, na Contabilidade.
Terminei minha graduação em Contábeis na UFRN em 2008, e em 2010.2, ingressei
no Programa de Pós-Graduação em Ciências Contábeis também na UFRN. A princípio foi um
momento de grande satisfação, pois representava para mim uma alavancada na minha vida
profissional. Quando iniciaram as aulas no mestrado, eu já estava lecionando já há quase dois
anos como professor substituto a disciplina de Matemática Financeira pelo Departamento de
Contabilidade na própria UFRN. Essa minha breve experiência na área docente, sendo bem
quisto e bem visto pelxs professorxs e coordenadorxs dentro daquele Departamento, aliada a
uma “promessa” de futuro por ter uma pós-graduação na área, deram-me motivos suficientes
para ingressar na carreira acadêmica.
Um semestre se passou a muito custo, mas também com muito estudo e muito
aprendizado. Além de estar atolado nos livros como exigência do próprio mestrado e outros
eventos corriqueiros, eu conciliava tudo com um namoro à distância; com as aulas que
lecionava na universidade, sem falar nas orientações de monografias dos alunos; e mantive
minhas atividades extracurriculares como a dança e o canto lírico, este com o qual me
envolvo desde 2002, antes mesmo de ingressar pela primeira vez numa universidade.
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Ao término do primeiro semestre da pós me sentia cansado mas, ao mesmo tempo,
feliz por estar evoluindo profissionalmente e pessoalmente. É bem verdade que por vezes me
sentia até desanimado pela carga que tinha que dar conta, porém percebia que esse sentimento
era compartilhado também com meus colegas de curso. Então achava que fosse “normal”.
As férias foram chegando ao fim e o semestre 2011.1 estava por vir. Cada vez mais
sentia pesar em voltar a estudar. E dessa vez foi bem diferente, pois eu já não estava mais
sobrecarregado de atividades com as quais estava acostumado a ter. Não estava mais
lecionando na UFRN e isso já fazia grande diferença. As únicas coisas que me acompanharam
até ali foram o canto e a dança, e mais recentemente o teatro.
E engraçado que mesmo sem receber quase nada por isso, em termos financeiros,
estava praticamente todos os dias (quando não estava nas aulas de mestrado) em sala de aula
ensaiando exaustivas 6 horas diárias. Dedicava-me por inteiro. Daí comecei a achar que tinha
algo errado comigo. Eu estava começando a ter preferência pelas artes do que a própria
carreira acadêmica e promissora traçada tempos atrás.
Foi então que descobri o prazer. O prazer em trabalhar naquilo que se gosta. E isso eu
descobri no canto, na dança e no teatro. Atividades que desenvolvo com dedicação e que me
sinto reconhecido tanto no meio artístico local como em âmbito nacional e internacional.
Então diante de todos esses aspectos decidi que não poderia mais “perder” tempo. Eu deveria
me dedicar àquilo que me desse prazer em trabalhar e teria que ser algo com que eu me
identificasse. E sobre essa questão me vem logo à mente as palavras do antigo filósofo chinês
Confúcio, repetidas amplamente no discurso popular: “Trabalhe com aquilo que gosta e não
terá que trabalhar um dia sequer na vida”.
Tentei encontrar algo que me mantivesse, que me desse alguma razão para continuar
no mestrado. Conversei com minha mãe e meu pai, com amigxs, com xs colegas de turma,
com o coordenador local da pós-graduação, e nenhum deles conseguiu me convencer ou me
dar uma esperança, uma luz que fosse, para que eu decidisse permanecer no mestrado. E essa
encruzilhada começou a pesar dentro de mim, e confesso até ter começado a adoecer, por me
sentir enclausurado, sufocado, em estar em um lugar desconfortável para mim. Como um
pássaro que precisa voar, mas que está preso em uma gaiola. Não tinha forças, nem firmeza
suficiente para tomar decisão tão desafiadora assim. Foi quando comecei a faltar a algumas
aulas no início do segundo semestre do mestrado, pois não me sentia mais pertencer àquele
lugar.
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Vendo-me nesta situação, percebi que precisava tomar uma decisão muito séria em
minha vida. Sempre fui bom aluno por me dedicar verdadeiramente aos estudos, tirar notas
boas nas disciplinas, não faltar às aulas, atender aos prazos de entrega de trabalhos. Poder
estudar para mim é um presente, pois muitos não têm essa oportunidade. O que me moveu
então nesta desistência não foi simplesmente abandonar os estudos, mas sim me adequar aos
meus anseios.
Essa decisão não foi impensada, muito pelo contrário. Levei vários meses e tive várias
conversas, como disse antes, para dar o arremate final. Pesei a balança para o lado negativo e
positivo e decidi, assim, dar a mim mesmo a oportunidade de fazer o que realmente me apraz,
o que faço e faço bem e com paixão. Aproveitei que estava cheio de vida e pronto para
recomeçar, porque sim, isso é um recomeço, é uma descoberta (ou redescoberta), e resolvi me
dedicar com muito suor naquilo que escolhi para mim: ser artista. E dessa junção, a qual
passaria a viver: o trabalho (dança, teatro e canto), o estudo e o jogo (que as artes cênicas
promovem) e o prazer, chego ao conceito do “ócio criativo”, tal como elucidado por
Domenico de Masi:
Quando trabalho, estudo e jogo coincidem, estamos diante daquela síntese exaltante
que eu chamo de “ócio criativo”. Assim sendo, acredito que o foco desta nossa
conversa deva ser este tríplice passagem da espécie humana: da atividade física para
a intelectual, da atividade intelectual de tipo repetitivo à atividade intelectual
criativa, do trabalho-labuta nitidamente separado do tempo livre e do estudo ao
“ócio criativo”, no qual estudo, trabalho e jogo acabam coincidindo cada vez mais.
(DE MASI, 2000, p. 16)
O ócio, como dito por Domenico de Masi (2000), está ligado a 3 grandes pilares: o
tempo, o prazer e o silêncio. Pode-se gerar conhecimento e podemos ter devaneios criativos
pelo ócio e pelo prazer, se enxergarmos este ócio não pela estagnação, não pelo não fazer,
mas pelo ócio criador que traz o prazer, que alimenta e não que exaure.
Refletindo sobre essa questão, e tomando como base as epistemologias do sul,
podemos associar a este ócio uma brecha para o massacre, pois de acordo com nosso
pensamento colonizador e a nossa sociedade capitalista atual, há pecado quando existe prazer
em nosso trabalho diário. E se esse prazer está associado ao ócio, pior ainda!
Xs indígenas brasileirxs, por exemplo, de um modo geral, ainda são tidxs como “bons,
inocentes, mas ao mesmo tempo preguiçosos e violentos, especialmente quando são
apresentados como obstáculo ao progresso e ao desenvolvimento do país.” (LAMAS,
VICENTE; MAYRINK, 2016, p. 125). A estigmatização desses povos está condicionada aos
interesses do colonizador/conquistador, mantidos não somente pelos meios comunicacionais,
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mas também pelas escolas e obras didáticas. Então, se aqueles ocupam terras que poderiam
ser utilizadas para a pecuária ou para a construção de estradas e hidrelétricas, a ideologia
dominante escrita pelo colonizador acaba deturpando, para o bem ou para o mal, a imagem do
indígena. Por isso, “x índix é aquele vagabundo preguiçoso, que só faz as coisas no tempo
dele.”, como dizem ainda alguns muitos. Termos preconceituosos que referendam uma
prevalência cultural dentre outra(s). Mas entendamos que a utilização dos tempos (seja de
trabalho ou de descanso) é feita de maneiras distintas. E sob a ótica da antropologia, não se
pode hierarquizá-las como piores ou melhores, ou superiores ou inferiores.
A sua forma de descansar é própria e decorrente de um processo cultural, como
podemos observar em outros povos e religiões. No cristianismo, por exemplo, o descanso é
dominical, dia reservado à espiritualidade, momento de consagração a Deus por sua obra. No
judaísmo o descanso é no sétimo dia, após os seis dias de criação. Assim o sábado, na religião
judaica, é utilizado para relaxar, ler, fazer caminhadas, dar um passeio tranquilo, com uma
pessoa especial, rezar e se reunir com a família para uma refeição calma. Já para os povos
xamãs, de acordo com a antropóloga e pesquisadora dos povos indígenas Carmen Junqueira,
ela fala que pesquisas realizadas em diversas partes do mundo indígena revelaram que poucas
horas são gastas para assegurar a alimentação e, parte do tempo, é despendida em conversas,
banhos de rio, passeios, e várias horas são reservadas para o descanso (apud DERZETT,
2016, p. 24-25).
“Otium é um vocábulo latino e que tem no termo grego skholé, sua sinonímia. O termo
skholé, adaptado ao latim originou o termo schola e todos os termos que conhecemos por
escola ou school, em inglês.” (WOGEL, 2013, p. 5). Nesse sentido, o ócio para os gregos se
traduz como um sinônimo para escola, que designa um modo de vivenciar o tempo livre. O
ócio é escola. E nesse tempo livre, o cidadão grego poderia realizar atividades que lhe fossem
prazerosas, que trouxessem o desenvolvimento de sua pessoa, bem como a busca pela
verdade, pela beleza, pelo bem. Nos dias de hoje, entretanto, tem-se valorizado muito mais o
tempo de trabalho do que o tempo do ócio. Somos convidados a todo tempo a estar
desempenhando funções e tarefas, ocupando-nos de variadas formas. Inclusive a escola virou
negócio, ou seja, a negação do ócio. Ao tomar como referência os povos gregos em relação
aos dias atuais, o aprendizado escolar não advém mais da experimentação do tempo livre, mas
sim de sua negação. O ócio passou a ser um “desvalor”.
Refletindo sobre esses outros tempos que se configuram, questiono-me: Onde está o
erro no descanso? Com que autoridade se estabelecem as regras que dizem que no repousar,
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no silenciar-se, não há o crescimento? Não há alimentação em nosso conhecimento nestes
momentos? Por que conhecer não pode ser prazeroso? Essas são perguntas que sempre me fiz
quando encostava (repousava) minha cabeça no travesseiro antes de pegar no sono à noite. E
que tanto me faz bem! Sendo assim, que nome dou a esse saber que me ensina na calada da
noite antes de dormir? Esse saber que me ensinou a filosofar e a refletir o meu lugar no
mundo e a questionar minhas ações durante meu cotidiano, e planejar também passos
adiantes. Toda a minha vida fiz esse exercício, mas quem me ensinou? Seria a Intuição? Sexto
sentido?
A RELAÇÃO ENTRE O ÓCIO E AS EPISTEMOLOGIAS DO SUL
Creio ser importante nesta investigação, refletir sobre a relação de nossa sociedade
com o tempo. Como temos gastado nosso tempo? Como temos matado nosso tempo?
Perguntas que nos deparamos quase todo dia. Pois parece que as 24 horas do dia já não são
mais suficientes, e muitas vezes dizemos que não temos tempo para mais nada. Como, então,
aproveitar nossos momentos de descanso, de lazer, de ócio, frente a uma sociedade pós-
industrial e capitalista que nos cobra a todo momento “fazer, fazer e fazer”, e não parar para
apreciar, contemplar, parar para respirar ou, simplesmente, PARAR?
O ócio é um capítulo importante nisso tudo, mas para nós é um conceito que tem um
sentido sobretudo negativo. Em síntese, o ócio pode ser muito bom, mas somente se
nos colocamos de acordo com o sentido da palavra. Para os gregos, por exemplo,
tinha uma constatação estritamente física; „trabalho‟ era tudo aquilo que fazia suar,
com exceção do esporte. Quem trabalhava, isto é, suava, ou era um escravo ou era
um cidadão de segunda classe. As atividades não-físicas (a política, o estudo, a
poesia, a filosofia) eram „ociosas‟, em suma, expressões mentais, dignas somente
dos cidadãos de primeira classe. (...) A sociedade industrial permitiu que milhões de
pessoas agissem somente com o corpo, mas não lhes deixou a liberdade para
expressar-se com a mente. Na linha de montagem, os operários movimentavam
mãos e pés, mas não usavam a cabeça. A sociedade pós-industrial oferece uma nova
liberdade: depois do corpo, liberta a alma. (DE MASI, 2000, p. 17-18)
Decerto, xs indígenas que se encontravam em maioria nos solos brasileiros antes da
colonização portuguesa entendiam bem da importância deste repouso. Pois esse outro ritmo
de vida fazia parte de sua cultura, que não foi muito bem recebida pelos estrangeiros que aqui
aportaram nos anos de 1.500 d.C.. Em decorrência desse não entendimento, assustadoramente,
ocorreu uma supressão de muitas formas de saber dxs colonizadxs e/ou a subalternização de
outras formas impostas pelos colonizadores. Muitos saberes foram relegados e até renegados.
18
“Não é do trabalho que nasce a civilização: ela nasce do tempo livre e do jogo.” Esta
frase de Alexandre Koyré, filósofo francês de origem russa que escreveu sobre história e
filosofia da ciência do século XX, alerta-nos para a mudança (e supremacia) de paradigmas
culturais referente ao tempo livre. Podemos, também, analisar de uma forma crítica a raiz
desse tipo de pensamento hegemônico nos estudos e pesquisas do professor português
Boaventura de Sousa Santos.
Santos (2009) fala de um campo de desafios epistêmicos que procuram ganhar voz
diante dos danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo. Esse campo, as
Epistemologias do Sul como os autores descrevem:
Trata-se do conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão
dos saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica
dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes
têm produzido e investigam as condições de um diálogo entre conhecimentos.
(SANTOS; MENESES, 2009, p. 7)
A dita “missão colonizadora” ocorrida em vários lugares do mundo, procurou
homogeneizar o mundo, jogando fora as diferenças culturais existentes. Hoje, o fim da
política colonizadora deu independência institucional aos colonizados, mas não significou o
término das relações extremamente desiguais que foram geradas. “O colonialismo continuou
sobre a forma de colonialidade de poder e de saber (...).” (SANTOS; MENESES, 2009, p.
12).
O Sul localizado neste conceito de Santos, muitas vezes coincide com o sul geográfico
- América do Sul, América Latina, África, sul da Ásia - que são partes continentais que não
atingiram níveis de desenvolvimento econômico semelhantes ao Norte Global (América do
Norte e Europa). Digo, “muitas vezes”, por excluir desse sul geográfico a Austrália e Nova
Zelândia. Dessa forma, esse Sul surge como metáfora para revelar o lado dos oprimidos pelas
diferentes formas de dominação colonial e capitalista.
E mais, criou-se uma linha abissal entre os saberes do norte e do sul. Os do norte
considerados como saberes úteis inteligíveis, visíveis. E os saberes do sul como inúteis,
perigosos, ininteligíveis, objetos de supressão ou esquecimento. E é neste último que recai os
saberes milenares de nossos índios, de nossos antepassados. Para combater esse processo de
apagamento, Santos propõe uma iniciativa epistemológica que se assente na ecologia dos
saberes, promovendo o diálogo e o reconhecimento entre os diferentes saberes (norte e sul,
tradicionais e modernos, científicos e não científicos) e na tradução intercultural.
Na nossa sociedade atual, que sofre dos impactos do insano frenesi do ritmo pós-
industrial capitalista, muito se tem relatado sobre o estresse e outros adoecimentos psíquicos
19
oriundos do excesso de trabalho e consequente falta de tempo para atividades mais
prazerosas. Muitos são designados a terem uma rotina extenuante de afazeres, e por vezes
obrigados a fazer o que não gostam, e isso tem provocado o adoecimento de seus corpos, de
suas mentes e do seu coração. Problemas de ansiedade, stress e depressão, estão cada vez
mais comuns. Cronos, o Deus-Tempo, que comanda nossos relógios, não para.
Segundo Franco, Druck e Seligmann-Silva, muitos dos regimes de trabalho atuais
estão em contradição com os biorritmos dos indivíduos, principalmente no que se
refere às cargas e ritmos de trabalho, resultando em adoecimentos. De fato, a fase da
acumulação flexível coloca exigências ao nexo biopsíquico geradoras de níveis de
desgaste que superam significativamente sua capacidade de reprodução. Se em
momentos pretéritos, como os séculos XVIII e XIX, a disparidade entre desgaste e
reprodução tinha como consequência a alta mortalidade e baixa expectativa de vida
da classe trabalhadora, nos dias atuais, esse contraste se expressa de forma distinta.
Reduz-se a mortalidade e prolonga-se a vida. Entretanto, uma vida sofrida,
agonizante, permeada por profundos sinais de desgaste, expressos nas diversas
formas de sofrimento crônico. (VIAPIANA; GOMES; ALBUQUERQUE, 2018, p.
183-184)
É necessário que tenhamos nossos tempos para desejar, planejar e correr atrás de
nossos objetivos. A pausa e a necessidade de se fazer presente também é urgente e
imprescindível - contra estar perambulando entre pensamentos que não cessam e um corpo
cansado entre ansiedade, agonia e ressentimento.
A autora Miila Derzett traz em seu livro Superdescanso um olhar sobre a necessidade
da pausa. Ela se indaga por que nós, adultxs, temos cada vez mais perdido o espaço natural
sobre o descanso. Para xs mais jovens (crianças e adolescentes), o tempo ocioso caminha
junto no percorrer do desenvolvimento físico e cognitivo. Passada essa fase, o habitual virou
uma vida na busca e no querer de infindos estímulos e entretenimentos. “Uma vez, em um
encontro, Judith Hanson Lasater perguntou: - Será que não estamos confundindo uma vida
com significado com uma vida cheia de compromissos?” (DERZETT, 2016, p. 14).
Essa correria no dia a dia, aos poucos, vem me gerando grandes insatisfações. E
grandes olheiras também! Correndo de um lado para o outro, dividindo a vida entre trabalho,
estudo, atenção a familiares e amigxs, e nas horas vagas que surgem, preciso planejar e dar
conta de novas demandas que parecem nunca cessar. Como faço para ter tempo para tudo isso
e ainda poder descansar? Gostaria de ter poder de parar o tempo e me dar o tempo necessário
para fazer, pensar e planejar, e também PARAR, DESCANSAR, PAUSAR!
O tempo de descanso para mim sempre me foi caro. E a cada ano que envelheço ele se
torna mais caro e raro. Nos tempos livres, eu tenho folga para olhar com mais calma para mim
mesmo, para preencher meus momentos livres, principalmente, com cultura. Esta é quem dá
sentido às coisas, como afirma Domenico (2019) em entrevista a Pedro Bial. Ele diz, ainda,
20
que considera a sociedade atual perdida, pois ela não possui referências como as anteriores
(somos uma sociedade pós-industrial). O ócio traria essa religação com nossas referências. A
cultura torna o Ser Humano CONSCIENTE-SENSÍVEL-CULTURAL.
Entendendo da cultura eu passo a gostar dos livros, da comida, das pessoas, pois
começo a dar-lhes um maior significado, enriquece-os! A cultura que enriquece os
significados torna o tempo livre agradável porque: faz a personalidade crescer; faz
crescer o indivíduo; faz crescer a subjetividade; cresce a dimensão civil; cresce a
dimensão social. Portanto, faz tudo muito melhor! (DE MASI, 2019)
De que maneiras poderíamos, então, gerar um lapso de tempo parado, em que
pudéssemos viver sem medida o tempo presente? Sabe-se que todo processo ritualístico
prescinde uma suspensão do tempo. Este fato é percebido, inclusive, no jogo ritual
experimentado nas práticas teatrais do Grupo Arkhétypos.
(...) a entrega à improvisação cênica no teatro ritual parece desafiar o tempo do
relógio, numa tentativa de subvertê-lo: o tempo se vai lentamente no decorrer do
jogo, com tamanha intensidade que às vezes, por exemplo, três horas de duração
podem ser experimentadas como se fossem apenas uns quinze ou vinte minutos (...).
(COUTINHO; HADERCHPEK, 2019, p.09)
O tempo Aión aqui se destaca, não mais o C . Como afirma Kohan (2004) apud
Coutinho e Haderchpek (2019, p.09), Aión é o tempo presente, ou como diria Heráclito, é
como o tempo da criança que brinca. Nesse novo tempo que se cria no jogo ritual, nessa
suspensão do tempo em que viveríamos, poderíamos finalmente gozar de um tempo mais
dilatado, sem pressa, onde o tique-taque do relógio não condicionasse o nosso ritmo.
Poderíamos, então, relaxar!
Dentro do círculo do jogo, as leis e costumes da vida quotidiana perdem a validade.
Somos diferentes e fazemos coisas diferentes. Esta supressão temporária do mundo
habitual é inteiramente manifesta no mundo infantil, mas não é menos evidente nos
grandes jogos rituais dos povos primitivos. (HUIZINGA, 2010, p. 15-16).
Como citado acima, o tempo no jogo ritual e o manifesto no mundo infantil opera
semelhantemente no que tange à supressão habitual do mundo, gerando como consequência a
percepção de um tempo dilatado. E é essa dilatação do tempo que buscamos, pois com ela se
poderia, então, experimentar um tempo expandido com o intuito de olhar para si, significando
prestar uma maior atenção à própria intimidade, resultando num processo de
autoconhecimento, ou melhor, um sinal de empoderamento contra a produção colonizadora e
capitalista vigente. Como disse Foucault (2010, p. 446 apud COUTINHO; HADERCHPEK,
2019, p.7): “ocupar-se consigo não é uma simples preparação momentânea para a vida; é uma
forma de vida.”
21
Nesse sentido, o teatro ritual experimentado no Arkhétypos traz consigo a
possibilidade de aprendizado sobre si mesmo, que é o que nos conta o conceito da “Pedagogia
de Si” descrito por Coutinho e Haderchpek (2019). A autora e o autor descrevem como o jogo
no teatro ritual do Arkhétypos tem o poder de proporcionar nos jogadores desdobramentos em
cima deles mesmos, fazendo com que se conheça a multiplicidade de seres que podem habitá-
los e, especialmente, como gerenciar cada múltiplo neles, constituindo-se, assim, uma poética
do aprender, um aprender de si.
MECÂNICO SENSÍVEL
DESINTEGRAÇÃO DO SER X SER INTEGRADO
DESUMANIZAÇÃO EMPODERAMENTO
Como sugere o esquema acima, através desse conhecimento em si podemos sair da
lógica reprodutivista e mecânica atual, que não considera a holística do ser e nos mantém
afastados de nosso íntimo, de nossa natureza, dando um salto para o oposto disso:
percebermo-nos integrados ao todo, aos múltiplos que somos em nós e entre nós, de uma
forma mais sensível em relação a nós mesmos e ao outro, seguros em nossos pensamentos e
vontades.
PRÁTICA LABORATORIAL DO ARKHÉTYPOS: PROCESSO TEMPO
Pensando em tirar esse tempo para si, esse tempo de descanso, levei esta proposta para
a condução dos treinamentos do Arkhétypos. A partir da segunda metade do semestre de 2019,
eu e Ana Clara1 começamos a liderar os treinamentos do Arkhétypos, que acontecem toda
quinta-feira, das 14h às 16h nas dependências do prédio anexo do Departamento de Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Minha primeira condução frente ao grupo aconteceu no dia 15 de agosto de 2019 e
realizei, de forma adaptada, uma cerimônia do chá japonês2. O intuito desse processo
1 Ana Clara é graduanda do curso de Licenciatura em Teatro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Também membro do Arkhétypos Grupo de Teatro e bolsista de Iniciação Científica. 2 Experimentei a dinâmica dessa cerimônia pela primeira vez num ensaio do Grupo Arkhétypos durante o
segundo semestre de 2018. Ressalto que, na ocasião, escrevi uma carta para mim mesmo dialogando com meu
próprio eu, ressaltando minhas qualidades e defeitos, refletindo e poetizando recomendações para continuar a
viver uma vida saudável e próspera.
22
ritualístico foi de acalmar um pouco o frenesi que é o nosso cotidiano, trabalhando princípios
como a harmonia, a pureza, o respeito e a tranquilidade. A cerimônia consiste em 4 etapas.
A primeira com a Observação e Contemplação: o grupo pacientemente mirou a
organização do espaço onde seria celebrado o ritual, bem como a colocação de todos os
utensílios a serem utilizados. Expliquei ao grupo toda a simbologia daquela ocasião. Ao final
deste primeiro momento, fomos nos servindo uns aos outros.
Após todos terem sido servidos, tomamos o chá juntos e entramos para a segunda
etapa: a Meditação. Durante essa meditação foi pedido que todxs esvaziassem suas mentes,
para que assim pudessem de fato relaxar, viver aquele momento presente, e se dar de presente
um momento tranquilo e de paz.
Terminada esta etapa, com todos com os ânimos calmos, demos início à terceira,
descrita como Reflexão, onde distribui para todxs uma folha de papel e uma caneta, para que
elxs escrevessem uma carta para si mesmos. Ali poderiam escrever o que eles quisessem.
Ainda dei algumas dicas para nortear suas escritas, como por exemplo: “O que você deseja
para si?”; “O que você admira em si mesmo, ou o que você gostaria de mudar?”; “Quais suas
inquietações?”; “Quais são os seus planos?”.
No quarto momento abrimos uma roda de compartilhamento dos escritos das cartas e
também das impressões e sentidos sobre o que foi vivido. Foi aí que senti junto a elxs que não
estava só quanto à minha percepção fugidia de tempo. Parecia que todxs nós estávamos
precisando de momentos como aquele para parar! E, claro, pensar mais em nós. Nos
voltarmos para dentro, para nossas intimidades, nossos desejos, anseios e prazeres.
E daí, foi que surgiu a grande temática de Tempo! O Tempo que conduziria, a partir
de então, nossa investigação.
“(...) a teoria de De Masi: o futuro pertence a quem souber libertar-se da ideia
tradicional do trabalho como obrigação ou dever e for capaz de apostar num sistema
de atividades, onde o trabalho se confundirá com o tempo livre, com o estudo e com
o jogo, enfim, com o „ócio criativo‟, (...)” (PALIERI, 2000 apud DE MASI, 2000, p.
10).
É com base nessa assertiva que pontuamos nossa relação de trabalho nessa
investigação criativa a respeito do tempo. Passaríamos a encarar este processo de construção e
criação artística de modo tranquilo, para que não houvesse pesos. Que déssemos a nós
mesmos o tempo necessário a trabalhar com as inquietações que estavam surgindo. O nosso
espaço/tempo de trabalho seria marcado por tranquilidade e prazer.
23
Em 22 de agosto, Ana Clara assumiu a condução da vivência. Apoiando-se na poética
dos elementos, com ênfase no elemento terra, e partindo do treinamento energético3, que tem
como base os elementos pré-expressivos (BARBA, 2012), os atores e atrizes em situação de
jogo trabalharam de forma livre seus corpos na sala de trabalho, tendo como etapas 5
verbos/substantivos: TRANSE, TRANSCENDER, BATALHAR, ENTERRAR, e
RELAXAR. Neste dia de laboratório eu não estive presente, mas segundo o relato de Ana
Clara, um dos momentos mais significativos desse dia foi quando elxs realizaram um ritual de
enterro, onde os atores e atrizes puderam encenar o desapego de sentimentos e objetos que
eles não queriam mais carregar em suas vidas. Este desapego foi lido como uma espécie de
morte. Deixar morrer algo neles que pudessem-nos fazer seguir adiante.
Pensando nessas novas pistas que surgiam, propus no dia 29 de agosto um laboratório
prático de investigação a partir do texto “A Morte, o Tempo e o Velho” de Mia Couto (vide
ANEXO A)4. O procedimento de criação deste dia se iniciou com todos deitados de costas
para o chão, espalhados pelo espaço. Pedi a todos que fechassem os olhos e se concentrassem
apenas em suas respirações. Realizadas umas 10 respirações profundas, pedi que elxs, ainda
de olhos fechados e corpos deitados, escutassem atentamente à minha leitura do conto, e que
em suas cabeças fossem imaginando as espacialidades, as roupas dos personagens, como eles
se portavam, dentre outras coisas que eles pudessem achar necessárias imaginar.
Passada essa primeira parte meditativa, conduzi o laboratório pautado no treinamento
energético para que eles destravassem os corpos e daí começassem a jogar. Pela primeira vez
surgiram personagens como: a Bruxa, a Hiena, o Velho, o Jovem; e uma ideia de
espacialidade, uma Casa de Barro.
3 Trata-se de um treinamento físico intenso e ininterrupto, e extremamente dinâmico, que visa trabalhar com
energias potenciais do ator. “Quando o ator atinge o estado de esgotamento, ele conseguiu, por assim dizer,
„limpar‟ seu corpo de uma série de energias „parasitas‟, e se vê no ponto de encontrar um novo fluxo energético
mais „fresco‟ e mais „orgânico‟ que o precedente” (Burnier, 1985:31). Ao confrontar e ultrapassar os limites de
seu esgotamento físico, provoca-se um “expurgo” de suas energias primeiras, físicas, psíquicas e intelectuais,
ocasionando o seu encontro com novas fontes de energias, mais profundas e orgânicas. „Uma vez ultrapassada
esta fase (do esgotamento físico), ele (o ator) estará em condições de reencontrar um novo fluxo energético, uma
organicidade rítmica própria a seu corpo e à sua pessoa, diminuindo o lapso de tempo entre o impulso e ação.
Trata-se, portanto, de deixar os impulsos „tomarem corpo‟. Se eles existem em seu interior, devem agora, ser
dinamizados, a fim de assumirem uma forma que modele o corpo e seus movimentos para estabelecer um novo
tipo de comunicação‟(...).” (Burnier, 1985:35, In Burnier,1994:33 apud FERRACINI, 2012, p. 95-96). Não
existem movimentos específicos no exercício desse tipo de treinamento. O ator deve estar preparado para
trabalhar com diferentes dinâmicas, níveis, intensidades, a fim de colocar o corpo em movimento até a exaustão.
A regra é: não parar! 4 COUTO, Mia. 28 mai. 2015. Disponível em: <https://www.miacouto.org/a-morte-o-tempo-e-o-velho/>.
Acesso em 15 ago. 2019.
24
No encontro seguinte, no dia 10 de setembro, trabalhamos a partir do mito de
Prometeu5, de origem grega. Dias antes, avaliando as atividades passadas para pensar o que
trabalhar nas vindouras e avançando a leitura em DE MASI (2000), pensei em trabalhar com
este mito, pois ele faz uma ponte interessante com nossa atual sociedade. Depois que x
homem/mulher/Prometeu é libertadx de seus afazeres, primeiramente graças às máquinas da
sociedade industrial (no mito simbolizado pelo centauro Quíron), tenta-se conceder a elx uma
segunda liberação, a dos membros que carregam o tempo/corpo-alma/conhecimento,
simbolizada no mito pelo fogo. É neste momento em que o homem/mulher/Prometeu torna-se
livre para expressar-se em toda a sua plenitude.
Há pouco tempo, a sociedade industrial permitiu que milhões de pessoas agissem
somente com partes de seu corpo, e não lhes deixou a liberdade para expressarem-se em sua
totalidade. Na linha de montagem, xs operárixs movimentavam mãos e pés, mas não usavam a
cabeça, sua racionalidade sensível, sua criatividade. A sociedade pós-industrial, a que
vivemos hoje, a que tentamos construir agora, no momento presente, oferece uma nova
liberdade: a do corpo-alma (DE MASI, 2000, p. 18).
Voltando à prática laboratorial, com os olhos fechados e corpos deitados na sala de
trabalho, através do trabalho de meditação os atores e atrizes voltaram-se para dentro de si
com respirações profundas e imaginando escadas que os levassem a andares mais profundos,
sendo conduzidos por mim, dentro de uma narrativa previamente traçada, a mergulharem em
si mesmos. Ao chegar no fundo dessas escadas, pedi que eles enxergassem uma janela, a qual
eles teriam que atravessar. E ao passar por ela, elxs viam um sol brilhante, com um jardim
lindo e muitas flores e árvores. No cume de uma montanha próxima, não tão alta, alertei-xs
que lá se encontrava uma criatura gigante. Pedi que elxs se aproximassem dela, e assim
perceberiam que se tratava da figura do titã Prometeu.
5 Prometeu, segundo a mitologia grega, é um Titã, um deus gigante, filho de Jápeto e Ásia, e irmão de Atlas,
Epimeteu e Menoécio. Seu nome, no idioma grego, significa “premeditação”, ou seja, o que pensa antes. Ele foi
responsável, de acordo com o mito grego, pela criação da espécie humana. Prometeu, por ter uma relação muito
próxima com o homem, ensinou aos homens vários ofícios, tal como o ofício da carpintaria, garantindo que eles
tivessem tudo o que fosse necessário para sobreviver. Percebendo que lhes faltava algo, Prometeu ofereceu-lhes
o fogo - símbolo do conhecimento intuitivo. A intuição que é base para todo o processo criativo. O fato é que o
domínio do lume era fundamental para garantir uma melhor qualidade de vida aos nossos ancestrais. O mito de
Prometeu nos conta que ao entregar o fogo ao homem, que só era disponível aos deuses, ele entrega também a
sua liberdade. Zeus, irado com a evolução da criação da humanidade, planejou se vingar tanto dos homens como
de Prometeu. Aos homens, enviou Pandora - e com ela, todas as desgraças que existem no mundo - enquanto que
Prometeu foi acorrentado no monte Cáucaso por 30 mil anos. E dia após dia, uma águia bicava o seu fígado a
fim de se alimentar. Ao anoitecer, sua ferida voltava ao normal, pois se regenerava, por ser também um deus
imortal. Hércules, um semideus, ao concluir suas tarefas (Os doze trabalhos de Hércules) pôs fim ao castigo do
titã. Colocou o centauro Quíron em seu lugar para que Prometeu fosse livre.
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O mito deste titã se atenta ao surgimento da intelectualidade, o que é representado pela
busca do fogo que ilumina as pessoas, no sentido de torná-las conscientes ou esclarecidas,
constituindo-se, também, como uma baliza do tempo que assinala o exato momento em que a
humanidade apropria-se do conhecimento (intelectual, sensível, racional, imaginativo).
Percebemos, aqui, a introdução de mais um elemento na construção poética: o fogo!
Diante desse conjunto de informações e reflexões colocadas para os atores e atrizes no
momento de meditação guiada por mim como parte do trabalho neste dia, perguntei-lhes: Por
que e por quem nós, enquanto humanos, somos ainda punidos com a caixa de Pandora6 que
traz consigo todas as mazelas deste mundo? Por tentarmos acessar o nosso fogo que queima e
nos traz a intuição, e com isso o ato criativo? Por que fazer acessar o nosso fogo, símbolo do
conhecimento, nos torna tão perigosos? O que representa a águia que faz x
homem/mulher/Prometeu sofrer diariamente? Que correntes nos aprisionam neste tempo de
hoje para que não desfrutemos de nossas liberdades e de nosso conhecimento?
Diante dessas provocações, e terminada a atividade meditativa, nos prestamos a
conversar sobre a experiência. Um dos atores, José Ricardo, em depoimento falou sobre o
sentimento de dilatação do tempo durante a meditação. “Na minha cabeça a história da
humanidade se passou em 1 minuto”, disse. E refletiu também sobre a falta de questão de
alteridade, de que o humano ainda não consegue pensar seus semelhantes (e diferentes) numa
perspectiva horizontal. “O humano não é melhor que o outro.”
Já outra atriz se perguntou: “Onde está o meu tempo?”. Pois, o ato de respirar a fez se
conectar com seu próprio tempo. E observou que estávamos conectados com o fato de não
conseguirmos nos conectar. Como se vivêssemos em gaiolas. Outro ator falou: “tudo fica
mais claro quando encontro paz dentro de mim mesmo”.
Com os depoimentos que se seguiram fui anotando elementos-símbolos que surgiram
em suas mentes/corpos: lamento, caos, relógio, morte e vida. E para finalizar, recebi uma
grande surpresa, um texto escrito pela atriz Valéria Chaves, que aqui transcrevo:
Por que o tempo corre? Porque corremos! Por que não vemos? Porque esquecemos. Por que não nos vemos mais? Porque o que não foi visto, desapercebidamente, já ficou lá para trás.
6 Na mitologia grega, Pandora ("a que possui todos os dons", ou "a que é o dom de todos os deuses") foi a
primeira mulher criada por Zeus como punição aos homens pela ousadia do titã Prometeu em roubar dos céus o
segredo do fogo. Ela carrega consigo um artefato: a Caixa de Pandora. A "caixa" era na verdade um grande jarro
dado a Pandora, que continha todos os males do mundo. Pandora abre o Jarro, deixando escapar todos os males
do mundo, menos a "esperança".
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-Que tempo é o seu tempo? -Qual é o tempo que você gostaria de ter? -Que tempo tem o tempo? -Será que sabemos quanto tempo o tempo pode durar?
O tempo está cada vez mais curto. O tempo está acabando e, quando ele acabar de
vez, como ficaremos? Acabaremos também?
-Somos escravos do tempo? -O tempo dos esquecidos. (Produzido por Valéria Chaves)
A percepção de todxs os que estavam participando dos laboratórios de criação era que
o tempo era fugidio. Que era ligeiro. Que corria. Já que o tempo a todo tempo se vai, ou
simplesmente já não existe perante o caos moderno, por isso, tínhamos que encontrar um
tempo em que todxs nós pudéssemos habitar. Então foi lançada a proposta: “Criar nosso
próprio tempo!”. Mas para isso, precisaríamos entender o conceito de tempo e em qual
espaço-tempo cada um se imaginava frente a todas as investigações feitas até ali, e encontrar
um oásis, um quartel, uma estação para aportar no meio desse caos temporal.
No encontro da outra semana, em 19 de setembro de 2019, Ana Clara iniciou o
laboratório fazendo uma pergunta direta a cada um dos atores e atrizes que se encontravam
em roda no meio da sala de trabalho, para que respondessem sem muito elaborar. A primeira
coisa que lhe viesse à cabeça sobre “O que é o Tempo pra você?
No trabalho éramos 12 pessoas: 1 diretor e 1 diretora e 10 atores/atrizes. A resposta de
cada um quanto ao tempo foi: Felicidade (Helton), Dádiva (Rhávilla), Finitude (Malu), Medo
(Ana Clara), Sol (Vanilson), Memória (Thazio), Paciência (Pedro Silvan), Espera (Valéria),
Morte (Marcely), Energia (Patrícia), Ritmo (Hairton). Na ocasião o ator José Ricardo estava
ausente.
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Fig. 1 – Componentes do processo “Tempo”. Fonte: Pedro Silvan.
Em cima, da esquerda para direita: Participante do Treinamento, Vanilson, Patrícia, Rhávilla, Marcely e Thazio.
Embaixo, da esquerda para direita: Valéria, Hairton, Ana Clara, Malu. Pedro Silvan à frente. Ausentes na foto
Helton e José Ricardo.
Pedro Silvan e Helton, em sequência, conduziram o aquecimento, e Ana Clara instigou
nos corpos dos atores e atrizes sensações e movimentos que a palavra individualmente elegida
por elxs provocavam. A sala de trabalho estava repleta de objetos espalhados pelo espaço,
como elástico, garrafas de vidro, pedras, panos, guarda-chuva, instrumentos musicais, etc.,
objetos que foram previamente selecionados para auxiliar na investigação das corporeidades.
Estes aliados às ações criadas, foram moldando figuras/personas que surgiam nos corpos dos
atores, promovendo encontros novos e outros que se repetiram em relação aos dias anteriores.
No dia 26 de setembro, sentamos para refletir as conquistas nos trabalhos feitos até ali.
E nos valíamos de um procedimento chamado por Haderchpek (2016) de “dramaturgia dos
encontros”, na tentativa de tornar claro para nós um ou alguns caminhos que fossem
compartilhados por todos, para possibilitar cada vez mais o estreitamento dessa dramaturgia.
Para tanto, realizamos uma roda de conversas:
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A “roda de conversas” é um procedimento que integra o processo de criação a partir
do “jogo ritual”. Após a realização dos laboratórios, os atores sentam-se numa roda
e partilham suas experiências fazendo relação com as experiências do outro. É neste
momento que registramos o que aconteceu de mais importante dentro do laboratório,
é daí que nasce a “dramaturgia dos encontros”. (HADERCHPEK, 2016, p. 50)
Avaliação feita, levantamos algumas espacialidades possíveis para o enredo como:
floresta fechada, terra árida com chão batido, limbo, lixão. Era como se em todos esses locais
estivesse incluso o fator: mundo abandonado, mundo perdido! Foi quando surgiu o local
“Atlântida”. O mundo antigo e perdido de Atlântida. Local objeto de investigações de
diversos historiadores. Lendário. Lá, todos seus habitantes, segundo a lenda, eram prósperos.
Viviam numa sociedade muito bem articulada que era tida como exemplo de perfeição. Só
que houve uma grande tragédia que fez dizimar a terra Atlântida. Uma das teorias é que a
água do mar engoliu Atlântida num episódio catastrófico, e os atlantis bem preparados como
eram, conseguiram prever a tragédia e tiveram tempo hábil para deixá-la, para habitar novos
lugares pelo mundo. A partir daí, os “atlantis” passaram a vagar como nômades e a habitar
novas terras, enquanto sua terra natal tinha sido deixada e esquecida pelo tempo.
Percebo, neste momento, a água surgindo como um terceiro elemento dentro do
processo. A mitologia de Atlântida, que carrega a história de um povo descendente do deus do
mar Poseidon, está relacionada às mitologias da água. A água é a linguagem contínua e fluida,
é o símbolo universal da vida de fecundidade e fertilidade, geralmente associada ao lado
feminino. “Uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e dissolver a noite. Para
sonhar o poder, necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade. A água assim
dinamizada é um embrião; dá à vida um impulso inesgotável.” (BACHELARD, 2013, p. 10).
Porém, quando o elemento água assume o papel da destruição, da inundação, da cólera, como
aparece na história de Atlântida que afundou no oceano em um único dia e noite de infortúnio,
ele assume um papel masculino. “Por isso, a água violenta é logo em seguida a água que
violentamos. Um duelo de maldade tem início entre os homens e as ondas. A água assume um
rancor, muda de sexo. Tornando-se má, torna-se masculina.” (BACHELARD, 2013, p. 16).
Conseguimos pré-definir, após discutir em grupo, que a nossa história consistiria em 3
espaços-tempos: o momento antes da tragédia, a tragédia, e o pós tragédia. A ordem do
acontecimento deles no tempo ainda não sabíamos dizer. Neste dia, decidimos também que
durante o próximo encontro escreveríamos todas as cenas já levantadas e faríamos uma
primeira tentativa de encaixá-las/roteirizá-las nesses 3 espaços-tempos.
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Fig. 2 – Laboratório de criação do processo “Tempo”: Morte do Ritmo/Tempo (Hairton).
Fonte: Thazio Menezes
Fig. 3 – Laboratório de criação do processo “Tempo”: Menina/Medo (Ana Clara) atormentada pelo Silêncio
(José Ricardo) e Finitude (Malu), enquanto a Felicidade (Helton) protege a Menina/Medo.
Fonte: Thazio Menezes
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Chegada quinta-feira, no dia 17 de outubro, sentamo-nos e relembramos as cenas e
jogos que estavam montados e que se mostravam mais relevantes para a dramaturgia:
1 – José Ricardo (Silêncio) causou transtorno em tudo. Ele hipnotizou o Ritmo (Hairton) e o
matou. Não era uma morte de verdade, mas é como se ele tivesse entrado em uma espécie de
coma. Elegemos este jogo como o ápice da história: a luta entre José Ricardo e Tom (Silêncio
e Ritmo, respectivamente). Essa seria a grande “Tragédia”! Após esse jogo, sentíamos que o
tempo morria, mas ao mesmo tempo renascia (a questão da DUALIDADE estava muito
presente durante todo o processo). [Tempo = Deus? Ele estava presente mas ao mesmo tempo
ausente fisicamente.]
2 – Ana Clara (Medo), Helton (Felicidade) e Pedro Silvan (Paciência) trocam pedras no
centro do espaço como se realizassem um ritual. Ana Clara perde uma de suas pedras. Ana
Clara se desfez apressadamente das pedras, mas por quê? Havia um som de pedras rolando no
chão muito bonito, bem como quando ela as colocava dentro de um pote de vidro.
3 – Patrícia (Energia) está ao redor deles três enquanto o Ritmo fala 3 vezes “Pausa”. A cada
pausa todo mundo para. Patrícia coloca fogo em todos.
4 – Patrícia (Energia) produziu um texto lindo durante os laboratórios. Poderia funcionar
como prólogo.
5 – Uma criança que tem Medo (Ana Clara). “De novo isso? De novo isso? Não. Não.”
6 – A Paciência (Pedro Silvan) assessora a criança (Ana Clara – Medo) o tempo todo,
antevendo as coisas que irão acontecer. Ela cria símbolos no chão com pedras.
7 – Felicidade (Helton) e Sol (Vanilson), figuras Xamânicas? Guias? Propagavam felicidade e
raiva com o ritual. Em que momentos vêm cada um desses sentimentos? Descobrir o que
causa isso. O nome da pedra que a Felicidade (Helton) procura é “Margarida” e ele usa um
instrumento musical, o maracá. Para Vanilson (Sol) o tempo estava parado desde o início. É
um Sol que é Sombra. A felicidade dele foi ver o Ritmo (Hairton) sendo morto. Que tipo de
Guias são eles? De Direção? O Sol (Vanilson) carregava uma garrafa e mexia nas pedras
também.
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8 – A Finitude (Malu) veio com qualidade de pressa. Ela se escondia para não ver passar o
tempo.
Relembradas e devidamente anotadas as cenas levantadas até ali, e ainda não sabendo
ao certo que momentos seriam pré e pós tragédia, sentimos a necessidade de investigar mais
sobre essas histórias no laboratório prático de cena:
1) RITUAL DE MORTE – O QUE VOU ENTERRAR? Precisaríamos relembrar o
laboratório de ritual de morte do dia 22 de agosto para quem fez! E quem não fez,
realizar o processo.
Este ritual vai marcar o pós-morte do Ritmo!
2) TEMPO DOS ESQUECIDOS – O QUE FAÇO NESSE TEMPO EM QUE O
TEMPO/RITMO MORRE?
Este momento ocorrerá após o ritual de morte.
3) COMO REESTABELEÇO O TEMPO? ATÉ QUE O TEMPO MORRA DE
NOVO!(?)
Nos dias 31 de outubro e 7 de novembro (duas quintas-feiras), trabalhamos em cima
dessas e de algumas outras demandas a fim de amarrar cada vez mais a dramaturgia. Estava
claro até ali que queríamos trabalhar com a desconstrução do tempo: “Parar com o tempo para
dar tempo para nós mesmos”. “Cuidado conosco!”. E mais... Como diretor, eu queria trazer
para a encenação um subtexto que dialogasse com os momentos vividos em nosso cotidiano
sócio-político. À época, sentíamos (e ainda sentimos) muito receio a respeito do que
estávamos vivendo no Brasil. Pós-impeachment de Dilma Rousseff, o vice Michel Temer
assumia a presidência adotando posturas altamente neoliberais que cerceavam direitos
adquiridos da população, como os trabalhistas, previdenciários etc. Além disso, víamos, ao
final de 2018, o Brasil elegendo como presidente um ex-militar, Jair Bolsonaro, um candidato
sem propostas claras de plano de governo, com declarações abertamente discriminatórias a
pobres, pretos, LGBTQIA+, e ao movimento de esquerda. Eleito com 57% dos votos ele
assumiu a presidência no dia 1º de janeiro de 2019.
Em meio a esse caos político, havia e ainda há o medo de uma volta à ditadura, o
medo de cessar nossas liberdades, de perdermos nossos direitos e conquistas, por conta de
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uma bancada evangélica que se fortalecia junto a um presidente que faz declarações
afrontosas de apologia aos tempos da ditadura no Brasil, sem falar na diversa precarização em
vários setores de nosso social, como corte de verbas na educação, na saúde, desmatamento
crescendo vertiginosamente, invasões e mortes em comunidades indígenas, a comunidade
científica sendo desprestigiada, tudo isso para favorecer a uma elite empresarial do Brasil,
permitindo assim que a maioria da população brasileira fique exposta a severas fragilidades.
Além desse pano de fundo como crítica, pensávamos nessa história a contar como uma
passagem temporal cíclica, como o Sol que nasce e morre todos os dias no horizonte. O tempo
diário que se termina com as 24 horas e volta a renascer, como uma história que não teria um
possível fim... A fábula, então, passaria como num sonho. Dentro do sonho o tempo se dilata,
e isso nos faria questionar: “Será que estamos vivendo de verdade?”. A cada dia que passa a
hora de dormir chega, e precisamos passar por esta hora: a hora sagrada do sono, do sonho,
onde o mundo real e a fantasia se encontram nesse tempo adormecido, onde as horas passam e
não passam, onde o passado/presente/futuro se misturam, onde os mais belos sonhos podem
acabar virando monstruosos pesadelos.
TEMPO DOS SONHOS!... Era o nosso universo. Foi daí que conseguimos encontrar
o ponto de partida para contar a nossa história. E agora tínhamos melhores condições de
sequenciar as ações cênicas de início, meio e fim. Com esse amadurecimento no trabalho,
seguimos experimentando e fazendo amarras mais justas em nosso roteiro dramatúrgico,
chegando à última versão no dia 20 de novembro, o qual exponho a seguir.
DRAMATURGIA/ROTEIRO DE AÇÕES “PROCESSO TEMPO”:
*CENA 1 - Escuridão. Todas as figuras estão em círculo, imóveis, como móveis do quarto da
Menina (Ana Clara): mesa, mesa de cabeceira, 2 bichos de pelúcia, abajur, cabideiro. Os
personagens Mãe (Rhávilla) e Menina são os únicos que se movem e fazem uma cena em que
a Mãe coloca à força a Menina para dormir. A Menina resiste.
Silêncio (José Ricardo) começa a tocar a cítara. A Menina aos poucos adormece,
assim como a Mãe, embaladas pelo som melódico da cítara. As figuras vão começando a se
mexer lentamente, ganhando, aos poucos, vida.
[A Morte (Marcely) está controlando a Finitude (Malu), não deixando que ela se vá]
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*CENA 2 - O personagem da Bruxa/Energia (Patrícia) acorda e começa a tocar e a realizar
seu ritual de enterro/morte, enterrando sua botija mágica no meio da cena, onde se encontram
Mãe e Menina dormindo. Ela não sai de seu espaço, a não ser que seja para passar a energia
sonora a um outro. A Energia fala o prólogo de abertura enquanto ritualiza, tocando diversos
instrumentos:
1º Maracá. “Não, tempo perdido! Tempo que não existe.”
2º Baquetas. “O feitiço é o antídoto do tempo que vive perdido. Tempo da vida.
Tempo da morte.”
3º Ganzá. “Tempo da vida e profana hora. Tempo é risco e Ritmo é paciência. Tempo
tem hora. Essa é nossa existência. História.”
4º Panderola. “Tomei o feitiço como antídoto, E jogada no espaço fui explosão,
Causando discórdia e confusão, Medo de tudo, uma paixão. A paixão que jamais é cantada,
Uma canção.”
2.1 Os Guias – Paciência (Pedro Silvan) e o Sol (Vanilson) – vão colocando símbolos
e formações com as pedras que eles possuem, indicando para onde os perdidos poderiam ir...
Texto balbuciado pelos Guias: “O passado choraria se pudesse ver a nossa
decadência.” MOTE: [“Se estes forasteiros puderem descobrir os segredos do nosso passado,
talvez possamos salvar o nosso futuro.”]
2.2 A Espera (Valéria) rasteja até encontrar a Paciência (Pedro Silvan), que guia a
Espera com as pedras...
2.3 O Ritmo (Hairton) caminha a passos lentos, marcando compasso junto com a
Espera. Dá uma volta completa no espaço até encontrar a Morte (Marcely). Quando ele a
encontra, a Morte libera a Boneca/Finitude (Malu).
2.4 O Silêncio (José Ricardo) continua a tocar sua cítara...
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*CENA 37 – A Bruxa/Energia encontra seu último elemento sonoro: o Atabaque!
5º Atabaque. “Energia!”
3.1 Nessa tocada, o personagem da Dádiva/Mãe entra em trabalho de parto: gera o
Medo (Menina)!
3.2 A Morte encontra o Ritmo e o segue. A Boneca/Finitude vai atrás da Menina, mas
esta não a reconhece mais, não a quer.
3.3 O Silêncio com sua cítara enfeitiça a Boneca/Finitude, que o segue.
*CENA 4 – A filha da Dádiva/Mãe compartilha seus medos com sua mãe, e também as
pedras que marcam o tempo. O guia do Medo/Menina e da Dádiva/Mãe, que são elementos
presentes, é a Paciência. Esta se junta com as duas e forma-se um ritual de pedras entre
Dádiva/Mãe, Medo/Menina e Paciência. Tem-se a Bruxa/Energia e a Felicidade que os
circundam celebrando esse encontro.
*CENA 5 – A Espera foi, enquanto isso, ao futuro e deparou-se com a Morte, e resolveu
retornar para o passado até encontrar o momento presente. Ela se cansa de esperar e resolve
agir. “Ah, Ah...”. Ela vai juntando todas as pedras que a Paciência havia deixado no caminho
e as joga, ao som de um grito, dentro do ritual entre Dádiva/Mãe, Medo/Menina, Paciência,
Bruxa/Energia e Felicidade. Com isso, o Medo/Menina se assusta e sai a correr por aí...
Texto Medo: “De novo isso? De novo isso? Não. Não.”
Texto entre Espera, Paciência e Dádiva/Mãe: [eles jogam com as falas] [Talvez as
perguntas venham da Paciência e da Dádiva/Mãe, já que a Espera sabe o que lhe espera]: “Por
que o tempo corre? Porque corremos! Por que não vemos? Porque esquecemos. Por que não
nos vemos mais? Porque o que não foi visto, desapercebidamente, já ficou lá para trás. – Que
tempo é o seu tempo? – Qual é o tempo que você gostaria de ter? – Que tempo tem o tempo?
– Será que sabemos quanto tempo o tempo pode durar? O tempo está cada vez mais curto. O
tempo está acabando e, quando ele acabar de vez, como ficaremos? Acabaremos também? Faz
7A partir deste momento, para enfatizar as metáforas da dramaturgia, optamos por suprimir os nomes dos atores
e atrizes do roteiro de ações.
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tanto tempo que perdi o Tempo, dizem que o Tempo resolve tudo, quanto tempo tem o
Tempo? – Somos escravos do tempo? – O tempo dos esquecidos.”
Há uma briga entre esse caldeirão de pedras. Paciência, Dádiva e Espera criam um
conflito por ele. As pedras se esparramam pelo chão e a Bruxa/Energia vai atrás de assustar
mais ainda o Medo/Menina, que é ao mesmo tempo protegida pela Felicidade.
*CENA 6 – A Felicidade não sabendo conter a Bruxa/Energia, faz com que o Ritmo surja e
intervenha! Ele controla a Bruxa/Energia. Também há um conflito entre os dois. [Retomar o
laboratório da disputa com o elástico] Aqui também chega o Silêncio, assessorado pela
Boneca/Finitude.
*CENA 7 – O tempo, a partir daqui, começa a querer acabar de novo. O Silêncio vai
causando transtorno em tudo. O Silêncio hipnotiza a Bruxa/Energia e diz a ela que “Conduza
a Criatura” para o local de sua morte.
Texto Silêncio: “É preciso voltar; É preciso que sopre o caminho; É chegada a hora;
Eu não vou voltar para casa do senhor; Às sete horas da manhã bateu o sino; Olha o que eu
trouxe para você; Na casa do senhor; Olhe para os meus olhos! Conduza a criatura!”
7.1 O Silêncio hipnotizou o Ritmo.
Texto Ritmo: “Eu não consigo mais enxergar. Num compasso disritmado eu não sei
que tempo é esse. Pausa. Pausa. Pausa. Por que riem de uma criança do tempo perdido?”
Texto Paciência: “Não é uma boa escolha!”
Texto Bruxa/Energia: “Zero horas e zero minutos.” “Tempo não existe aqui.”
Texto Medo/Menina: “Pare com isso! É mentira! De novo, não!”
7.2 O Silêncio luta com o Ritmo. De longe, a Espera observa com sua garrafa aquilo
acontecer, apoiada no Sol.
7.3 O Silêncio mata o Ritmo, mas não é uma morte mesmo, é como se ele tivesse
entrado em coma.
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Texto [a ver quem diz essas frases]: “- Se não tem tempo, não tem morte. – E nem
vida. – Nada. – A guerra do tempo perdido. – O tempo está perdido. – O tempo está
dormindo. – O tempo está rindo do tempo. – Tempo? O que é tempo? – Não tem nada aqui. –
Não pode matar o silêncio. – Você sabe o que você fez? – Ele morreu de que horas? – Não
existe tempo. – Não existe vida. – Não existe nada. – O tempo é algo visível ou invisível no
espaço. – Ele está em coma sonhando, tendo pesadelos. Sonhos nunca antes sonhados.”
Há a “morte” do Ritmo. A Morte é quem dá a tocada final na alfaia indicando o
momento. Suspensão/Pausa.
7.4 A Boneca/Finitude ri!
7.5 O sepultamento do Ritmo acontece com a ajuda do Medo/Menina, Dádiva/Mãe,
Paciência. Ritual de Morte! Quando eles terminam de colocar as pedras sobre o Ritmo, ele
mesmo se levanta e se junta à Morte.
A Morte estava sob a cabeça do Ritmo. O Sol passou as vestes para a Felicidade
durante o sepultamento, e a Felicidade passa essas vestes para a Morte e a adorna com 1 de
seus maracás.
*CENA 8 – Com a morte do Tempo/Ritmo, o que fazer?
Aparece a figura do Silêncio (José Ricardo)... feito um velho, e indaga para a Morte
quem tem o poder de matar. O Silêncio faz todos acreditarem que foi a Menina/Medo. Todos
vão encurralá-la!
8.1 Quando a figura do Silêncio aparece, a Boneca/Finitude volta ser o que era.
8.2 A Dádiva/Mãe ajuda a Menina/Medo!
8.3 Todos os personagens vão voltando às suas posições iniciais com o tocar da cítara
do Silêncio. Tudo volta! Cíclico. Voltar para a cena inicial! A Menina/Medo acorda de seu
pesadelo.
FIM.
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Percebo que em diversos momentos, ao finalizar o roteiro dramatúrgico, as cenas deste
processo foram delineadas como numa partitura musical. Cada estímulo sonoro, inclusive a
ausência dele, direcionava o percurso, dando a tônica dos corpos, das falas, e das transições de
ações. Talvez esta forma de estruturar a cena seja decorrente de minha relação com a música e
com a dança, que me permite visualizar com mais facilidade a cena que se desdobra em suas
dinâmicas, intensidades, cores (timbres) e alturas. As duas artes, dança e música tem uma
forte ligação com o tempo. A música está relacionada ao quarto elemento: o Ar.
Com base nessa configuração, nós fizemos nossa primeira apresentação do processo
Tempo dentro do “I Seminário Internacional de pesquisa do Grupo Arkhétypos”, que
aconteceu nos dias 21 a 24 de novembro de 2019, nas dependências do Departamento de
Artes da UFRN e também nas do Museu Câmara Cascudo. Idealizado pela integrante Nadja
Rossana e pelo professor e coordenador do Grupo Arkhétypos Robson Haderchpek, este
seminário buscou dar visibilidade às práticas, pensamentos, produções, pedagogias,
dramaturgias do Arkhétypos Grupo de Teatro.
Apresentamos todo o extrato cênico no último dia de seminário, no dia 24 de
novembro, num domingo à tarde, no Museu Câmara Cascudo. A temática desse momento
dentro da programação era “Debates Decoloniais”, onde junto a Ana Clara (também
integrante do Arkhétypos e do processo Tempo) e do pesquisador Saulo Vinícius do Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo (PPGAC - ECA/USP) falamos sobre as nossas perspectivas e produções de
pesquisa nesse campo.
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Fig. 4 – Cena 1. Apresentação do processo “Tempo” no Museu Câmara Cascudo. Fonte: Robson Haderchpek.
Fazendo uma análise desta encenação, a cena 1 traz como ambiente o quarto de uma
menina. Ela, ainda querendo estar acordada e brincar, é impelida pela mãe a se deitar e a
dormir. A menina fica muito desgostosa, raivosa, pois ela desejava aproveitar o seu momento
livre, seu momento de brincadeira. Mas, enquanto ainda criança, esta vive de acordo com o
que o pai/mãe ou a autoridade dita sobre ela, dizendo como ela deve se portar, seus horários a
cumprir. É uma espécie de escravidão. Pode parecer um pouco dura a comparação, mas veja
que a criança tal como o escravo/cativo, sujeita-se a, submete-se, ou seja, é dominada pelos
comandos de quem está sob sua responsabilidade, sem poder fazer diferente.
A menina agitada é acalmada pela mãe que a recolhe em seus braços, e a coloca para
dormir. E nessa repressão sofrida pela personagem, obedecendo ao que foi ordenado pela
mãe, sem poder escolher, ela acaba adormecendo junto à mãe. E, assim, mergulha no
fantástico mundo/tempo dos sonhos. Embalada pelo som da cítara, seu sono vai ficando cada
vez mais pesado, e é o start para que os móveis de seu quarto sob o som melódico ganhem
vida, como criaturas a espreitar esse novo tempo que surge.
A Bruxa/Energia vai apimentando a chegada desse novo tempo pouco a pouco. Com
os dizeres do seu prólogo e a utilização dos instrumentos musicais com batidas cada vez mais
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fortes e rápidas, ela vai ditando as nuances desse novo tempo que chega, culminado com o
nascimento dessa menina – a criança reprimida – no mundo dos sonhos.
A menina, na presença de sua Mãe/Dádiva, vem a este tempo dos sonhos com Medo.
Assim é, pois a Criança/Medo não consegue ainda entender o funcionamento daquele outro
tempo, um tempo que está suspenso, um tempo em que se pode sonhar, um tempo que abriga
tempo! Ali tudo é possível de acontecer, como as criaturas que se movem neste espaço, que
são objetos metamorfoseados de seu quarto. Um abajur e um vaso transformados em Sol e
Paciência, respectivamente, tentam guiar com símbolos de pedras formados no chão a
Menina/Medo, nessa estadia/passagem no novo espaço/tempo. Uma de suas bonecas vira a
Felicidade neste tempo de sonho, e passa também a acompanhar proximamente a
Criança/Medo.
A Bruxa/Energia fornece todo o vapor a essa construção dramática. Ela, com suas
batidas frenéticas dos instrumentos musicais, com seus gritos alarmantes, vai gerando o
movimento e a pulsação rítmica da cena. A Felicidade tenta apaziguar a excitação que a
Bruxa/Energia causa na Menina/Medo, mas não consegue. E vai pedir ajuda ao Ritmo.
Daí surge um embate entre o Ritmo e a Bruxa/Energia. Ela, esperta e dinâmica, é
quem causa o movimento, mas causa também a falta dele quando se encontra aliada ao
Silêncio. O Silêncio se junta sorrateiramente nessa batalha à Bruxa/Energia, como a sombra
que invade pouco a pouco a claridade do dia. O Silêncio mata o Ritmo. O Silêncio se instaura.
O tempo parece que começa a morrer, com toda a finitude que ele possui dentro de sua
infinitude.
A figura do Silêncio então aparece. Ela culpa a própria Criança/Medo pela morte do
Ritmo, quer dizer, pela morte da pulsação que gerava divertimento e alegria em sua vida.
Assim como é na vida. A Energia gerada é tão grande em nosso dia-a-dia, que passamos cada
vez mais a pulsar descontroladamente, desritmadamente, criando uma desarmonia
ensurdecedora.
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Fig. 6 – Cena 3. Apresentação do processo “Tempo” no Museu Câmara Cascudo.
Fonte: Helena Saltoris.
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Fig. 7 – Cena 4. Apresentação do processo “Tempo” no Museu Câmara Cascudo.
Fonte: Helena Saltoris.
Perdidos nesse caos que ensurdece, nós matamos nosso tempo do prazer, do brincar,
do sonhar, da ociosidade e, com isso, passamos a ficar eternamente DESritmados. Por isso, o
Silêncio é cada vez mais constante. E essa Criança ainda leva a culpa por sonhar! Mas ela já
não sabe mais sonhar. Ela já não sabe ser tranquila. Ela não sabe descansar e controlar suas
energias. O tempo do sonho virou pesadelo. E o silêncio é cada vez mais constante... e as
criaturas vão voltando aos seus espaços/tempos iniciais... o tempo dos sonhos vai acabando...
E a Menina/Medo volta a acordar.
Reflexões sobre a encenação feitas, afirmo que, como a proposta de apresentação teve
mais um caráter de ensaio aberto, pois a estrutura do espetáculo como um todo ainda não
estava finalizada, optamos por improvisar com os figurinos, cenário e maquiagem.
Escolhemos peças de figurino de nosso próprio guarda-roupa que possibilitassem a
movimentação fluida dos atores e atrizes, e optamos por tonalidades mais sóbrias, passeando
pelo preto, branco e tons pasteis e terrosos. Quanto ao cenário, brincamos de compô-lo com
os próprios elementos cênicos. A maquiagem foi utilizada somente nxs personagens não-
humanxs (todos exclusive a Dádiva/Mãe e Menina/Medo), para acentuar suas caricaturas.
Pensamos, futuramente, em trabalhar com próteses também.
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Fig. 8 – Cena 5. Apresentação do processo “Tempo” no Museu Câmara Cascudo.
Fonte: Robson Haderchpek.
Fig. 9 – Cena 5. Apresentação do processo “Tempo” no Museu Câmara Cascudo.
Fonte: Robson Haderchpek.
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Após a apresentação, fiz a leitura de um pequeno texto produzido pela atriz Rhávilla
que serviria muito bem como sinopse do trabalho e que poeticamente descreve a encenação
do processo Tempo.
TEMPO
O Tempo Tudo sabe
Tudo vê
Tudo toca
Tudo transforma
Tudo sente
Tudo muda
O tempo serve pra tudo
E quase não serve de nada.
O tempo é a maior dádiva que temos,
Então com medo mesmo, vai
No seu ritmo, mas aproveita
Porque entre o tempo e o seu fim
A felicidade corre solta, “cê” só tem que encontrar.
A espera nos faz perder tempo,
E ao mesmo tempo ganhar o que ele nos tem para dar.
E todas as energias trabalham em prol do tempo, afinal
O que seria dos corpos e das almas sem o tempo?
Quem seríamos nós em um tempo que não existe? Ou,
Que existe e simplesmente passa…
Afinal, o tempo é finito, assim como o período de 24 horas que a Terra leva para
girar em torno do Sol,
passa correndo…
e logo encontra a morte.
E isso é bom ou ruim…!?
O Tempo é quem vai dizer.
Então,
Paciência.
Lido, partimos direto para a discussão da mesa temática, não tendo muito espaço de
imediato para conversar sobre as impressões e retornos a respeito da encenação. Porém,
passado o Seminário, em outro dia de reunião dos integrantes do “Processo Tempo”, pudemos
conversar melhor sobre os feedbacks da apresentação. Notou-se que o trabalho estava bastante
musical, e que precisaríamos nos dedicar melhor a ele, trabalhando mais momentos de pausa e
silêncio durante a encenação. E, claro, amadurecer todo material cênico até ali já conquistado.
Com base nos feedbacks, creio que conseguimos passar a mensagem dessa
Criança/Medo que habita dentro de nós e que quer sonhar, quer se ver livre, que quer ter
tempo para brincar e viver a vida prazerosamente. Mas quando essas asas da liberdade são
cortadas, pelo modo de vida que temos hoje, na história representada pela Mãe castradora, que
sujeita a nossa Criança aos seus domínios, passamos a viver um tempo enlouquecedor.
E é interessante perceber, neste momento de reflexão sobre o trabalho, como partes de
meu inconsciente vieram à tona no processo “Tempo”. Resgato, por exemplo, a minha
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trajetória pessoal até me encontrar nas Artes. Lembro-me o quanto o medo, a tristeza, o
desajuste em minha vida se faziam presentes, a ponto de eu sentir realmente o meu corpo
adoecer... como relatado nas páginas iniciais dessa monografia. E somente o encontro com
aquilo que me dava realmente prazer, o encontro com o fazer teatral, com meu modo de agir
perante o mundo, é que me deu as forças e a saúde para superar aqueles tempos de pesadelo,
e assim ter uma chance de poder viver, novamente, num tempo de sonhos!
Iríamos dar continuidade ao trabalho no primeiro semestre deste ano de 2020, porém o
tempo nos fez parar, e com a pandemia do Corona Vírus, tivemos que suspender todas as
atividades acadêmicas. Parece que o nosso processo teve um tom premonitório. E é, no
mínimo, curioso como essa necessidade em fazer o tempo parar de correr foi atendida. Foi
como se nós, atores, atrizes, encenadorxs do processo “Tempo”, nos tornássemos verdadeiros
canais, a partir da metodologia do teatro ritual, permitindo que o inconsciente coletivo8 se
manifestasse através de personagens arquetípicos que colapsaram em nossos corpos, mentes,
caminhos e histórias contados (HADERCHPEK, 2015). Estamos agora em quarentena,
passando por quase 3 meses de isolamento social. Entretanto, isso traz uma mensagem
poderosa para todos nós: SE VOCÊ NÃO PODE IR LÁ FORA, VÁ PARA DENTRO. É o
que tenho buscado ao viver meus momentos de ócio!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ócio vai exercitar o músculo do desejo. “O que é que nós desejamos?” Ao pararmos
para refletir sobre essa questão, ao nos proporcionar tempo para entender o que pulsa em
nosso íntimo, nós crescemos. Descanso e tempo de sobra estão presentes desde o início de
nossas vidas, ajudando-nos em nosso desenvolvimento físico e cognitivo.
O afinco e a perseguição de conquistar os nossos desejos íntimos fazem com que
deixemos de lado os nossos medos e passemos a caçar, como uma flecha certeira, o alvo que
nos fará felizes. A gente não ter tempo para nós mesmos, para nos dedicarmos a nós, resulta
num processo de adoecimento, como no pesadelo vivido pela Menina do “Processo Tempo”.
8 Segundo Jung: “O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente
pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição
pessoal.” (2012, p.51). E Jung completa: “Não é o mundo tal como o conhecemos que fala a partir do seu
inconsciente, mas o mundo desconhecido da pisque, do qual sabemos que reflete apenas em parte o nosso mundo
empírico, e que, por outro lado, molda este último de acordo com o pressuposto psíquico” (2012, p.155).
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Sem tempo de brincar, ela vive com medo, correndo em meio a seus momentos difíceis, como
nos pesadelos, sem degustar os momentos de prazer e alegria que ela poderia criar e sentir.
Precisamos de tempo ocioso para nos conhecermos e sabermos como enfrentar os
nossos medos. Precisamos dar uma pausa nessa “corrida maluca” que é a vida pós-moderna
capitalista de hoje, e, com mais regularidade, gozar com o que nos faz bem! E não é ninguém
que vai dizer a nós o que nos faz feliz. Pois, para ter uma consciência maior sobre o que pode
me fazer bem, eu preciso parar. Eu preciso pensar. Eu preciso me dar o tempo necessário! Eu
preciso ter momentos de ócio.
A pauta é: brincar e o tempo livre, contudo, ainda não gozamos de liberdade. O tempo
corrido nos dias de hoje nos acorrenta como a Prometeu, deixando que as águias dos atropelos
e do cansaço nos façam feridas, que apesar de cicatrizáveis, nos machucam a cada dia.
Intermitentemente dia após dia. Num verdadeiro pesadelo sem fim!
Acredito que o ócio criativo experimentado nesse processo de criação fez com que
seguíssemos uma perspectiva de trabalho saudável, menos estressante. Acho que esse tempo
dilatado para a construção dessa poética nos fez revisitar intimamente a nossa forma de
trabalhar criativamente e de entender de forma profunda quais questões e inquietações dentro
de nós, artistas e pesquisadorxs, queríamos comunicar, com este trabalho, ao mundo. Senti-
me muito à vontade em conduzir o processo dessa forma, pois eu pude planejar e executar
com paciência e calma os passos dessa jornada criativa. E isso é importante demais para mim,
pois sou daqueles que precisa de muita confiança e muito entendimento para poder externar
minhas colocações e pontos de vista. Não sou tão imediatista. Gosto de refletir com esmero a
mensagem que pretendo criar para que ela venha com a maior clareza e maior potência
possível quando externada. “Exercite a auto percepção, é através dela que passamos a nos
perceber e consequentemente ocasionar mudanças, que podem melhorar as nossas relações e
nossa forma de se enxergar e ser no mundo”9.
Sei que nem todos os processos criativos podem ter esse lapso temporal estendido na
elaboração do produto cênico, mas aqui, neste trabalho, deixo registrada essa possibilidade,
com suas eficácias e importâncias.
9 Pensamento da psicóloga e amiga Jéssica Agna, disponível no perfil do Instagram @psi.jessicaagna, com a
qual compactuo e que me soou muito bem vindo neste relato acadêmico.
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REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São
Paulo: Martins Fontes, 2013.
___________________. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da
intimidade. Tradução Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: Dicionário de
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ANEXO
CONTO “A MORTE, O TEMPO E O VELHO”, DE MIA COUTO
A Morte, o Tempo e o Velho
28 de maio de 2015/em Moçambique em Prosa e Verso /por Nara Rubia Ribeiro
O homem se via envelhecer, sem protesto contra o tempo. Ansiava, sim, que a morte
chegasse. Que chegasse tão sorrateira e morna como lhe surgiram as mulheres da sua vida.
Nessa espera não havia amargura. Ele se perguntava: de que valia ter vivido tão bons
momentos se já não se lembrava deles, nem a memória de sua existência lhe pertencia? Em
hora de balanço: nunca tivera nada de que fosse dono, nunca houve de quem fosse cativo. Só
ele teve o que não tinha posse: saudade, fome, amores.
Como a morte tardasse, decidiu meter-se na estrada e caminhar ao seu encontro. Tomou a
direção do oeste. Na sombra desse ponto cardeal, todos sabemos se encontra a moradia da
morte.
Iniciou a sua excursão rumo ao poente sem que de ninguém se despedisse. Os adeuses são
assunto dos vivos e ele se queria já na outra vertente do tempo. Caminhava há semanas
quando avistou um homem alto, um rosto de enevoados traços. Trazia pela trela um bicho
estranho, entre cão e hiena. Animal mal-aparentado, com ar maleitoso.
– Esta é a morte – disse o homem apontando o cão. E acrescentou – Sou eu que a passeio pelo
mundo.
– E você quem é?
– Eu sou o Tempo.
E explicou que caminhavam assim, atrelados um ao outro, desde sempre. Ultimamente,
porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada. Razão de que, entre os vivantes, se
desfalecia agora a molhos vistos, por dá cá nenhuma palha. Morria-se mesmo sem intervenção
dela, da Morte.
O velho, desiludido, explicou ao Tempo a razão da sua viagem. Ele vinha ao encontro da
Morte:
– Eu queria que ela me levasse para o sem retorno.
– Vai ser difícil.
– Lhe imploro: fiz todo este caminho para ela me levar.
– Veja como ela anda: desmotivada, focinho pelo chão.
– Mas eu queria tanto terminar-me!
Impossível, insistiu o Tempo. E para comprovar, soltou o animal. O bicho se afastou,
arrastado e agónico, para o fundo de uma valeta. Ali se enroscou decadente como um pano
gasto. O velho se condoeu e perguntou ao bicho:
– O que posso fazer por si?
50
– Eu só quero beber.
Não era de água a sua sede. Queria palavras. Não dessas de uso e abuso nas palavras tenras
como o capim depois da chuva. Essas de reacender crenças. O velho prometeu garimpar entre
todos os seus vocabulários e encontrar lá os materiais de reacender o mais perdido fôlego.
Urdia, seu secreto plano: iria ao sonho e de lá retiraria uma paixão de palavras.
Na manhã seguinte, foi de encontro à besta moribunda. O bicho estava agora mais hiena que
cão. Uma baba amarela lhe escorria pelo focinho. Apenas revirou os olhos quando sentiu o
homem se aproximar.
– Trouxe?
E ele lhe entregou o sonho, as palavras, mais seu inebriamento. O animal sugou tudo aquilo
com voracidade. Seus olhos eram os de uma criança sorvendo estória antes do sono.
E assim se seguiram durante umas manhãs. Em cada uma, o velho se anichava e confiava seus
elixires. De cada vez, o bicho se animava mais um pouco. No final, a Morte se recompôs com
tais pujanças que o velho ganhou coragem e lhe apresentou o pedido, seu anseio de que o
mundo se lhe fechasse. A Morte escutou o pedido de olhos fechados.
– Amanhã vou cumprir o meu mandato – anunciou ela.
Nessa noite, o velho nem dormiu, posto perante a sua última noite. Sentindo-se derradeiras,
passou em revista a sua vida. Nos últimos anos, ele tinha perdido a inteira memória. Mas
agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de felicidade, toda a sua existência se lhe
desfilou. e sentiu saudade, melancolia por não poder revisitar amigos, terras e mulheres. até
lhe assaltou a ideia de escapar dali e reganhar aventuras no caminho da vida. Para não ser
atacado por mais recordações – com o risco do arrependimento – ele foi ao rio e caminhou ao
sabor da corrente. Andar no sentido da água é o modo melhor para nos lavarmos das
lembranças.
No dia seguinte, o velho foi à valeta onde encontrou a Morte. Ela estava cansada, respiração
ofegante. E disse:
– Já matei.
– Matou? Matou quem?
– Matei o Tempo!
E apontou o corpo desfalecido do homem alto. A hiena, então, estendeu a trela ao velho e lhe
ordenou:
– Agora leva-me tu a passear!
Conto extraído do livro “Na berma de nenhuma Estrada”, da Editorial Caminho.