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2 REVISTA ANASPRA Julho 2015
O modelo de segu-rança pública brasileiro não sofreu qualquer alte-ração em sua gênese des-de 1808, quando Dom João VI aportou no RJ e, assim sendo, requer mu-danças profundas, sem corporativismos classis-tas e que contemplem nossas necessidades enquanto trabalhadores que somos, mas também enquanto cidadãos que “pretendemos” ser, e isso nos exige uma forma de pensamento sistêmica, abrangente e inclusiva.
Vivemos uma guerra civil não declarada onde pessoas, notadamente aquelas pertencentes às classes sociais menos favorecidas, morrem diaria-mente e entre elas estamos nós, policiais e bom-beiros. Algo precisa ser feito, pois o que distingue civilização de barbárie é o empenho em produzir dispositivos que separem um de outro, e nós não podemos aceitar ou reproduzir esta lógica, pois também somos vítimas.
Neste contexto, a Anaspra, preocupada com a (in) segurança pública reinante no País, a qual faz vítimas de quase todos os lados da “barricada”, pretende discutir e contribuir com o debate e as mudanças que todos desejamos no modelo de segurança pública. Sim, somos capazes, talvez até
mais capazes do que muitos ditos especialistas e isso se dá por um fator simples: temos além do conhecimento teórico, o conhecimento empíri-co (aquele do dia-a-dia, da prática), algo que boa parte dos gestores não têm, pois ainda vige em nosso país a elitização, a fragmentação e os abu-sos nas instituições.
Assim sendo, defendemos a carreira única, pois não se concebe termos duas polícias dentro de uma.
Defendemos também o ciclo completo, aca-bando assim com a fragmentação e competição entre as instituições.
Defendemos ainda a desvinculação das insti-tuições militares estaduais do Exército, mudando assim a formação ideológica de nossos profissio-nais, aproximando-os mais da sociedade e do ci-dadão. E não se diga, neste caso, que este pleito redundará em perda de direitos, discurso recor-rente feitos pelas cúpulas e que confunde, até porque nossos parcos direitos se dão por conta da natureza da nossa atividade, não porque so-mos militares.
Defendemos ainda mudanças constitucionais que nos coloquem como trabalhadores, e não como super-heróis sem reconhecimento e sem direitos básicos como, por exemplo, a lei da jor-nada de trabalho
Desejo a todos uma excelente e profícua lei-tura, esperançoso de que os textos aqui expostos despertem uma vontade real de mudança baliza-da pelo sentimento de coletividade e de empatia que deve nos mover.
Segurança ou barbárie?
ExpedienteAssociação Nacional de Praças (Anaspra) - Fundada em 14 de setembro de 2007Presidente: Cabo Elisandro Lotin de SouzaEntidades Associadas: APEAM, ABM/RN, ASPRA/AL, APNM-BM/PM, ASPRA/PR, ASPRA/MG, ASSPMBM/RN, ASPRA/SE, APRASC, ACSPM/RN, ASPRA/SP, ASPRA/BA, ASPOM/MA, ASPRAMECE, APRA/TO , ACS/PMBM/ES, AMESE, ASIMUSEPSE, ACS/SE Tiragem: 15 mil exemplares | Distribuição dirigida e gratuita | Textos: Alexandre Brandão e Mirela Maria Vieira | IIustrações: Paulo Guilherme Horn | Ilustração capa: Alexandre Brandão | Edição: Everson Henning e Mirela Maria Vieira | Editoração eletrônica: Jucélia Fernandes | Impresso na Gráfica Rio Sul | Jornalista Responsável: Mirela Maria Vieira MTE SC 00215 JP | imprensa@aprasc.org.br
Cabo Elisandro Lotin de SouzaPresidente da Anaspra e da Aprasc
EDITORIAL
julho 2015 REVISTA ANASPRA 3
“A morte dos policiais em serviço é tão ou mais grave do que a vitimização fora dela. Parece haver na sociedade uma aceitação natural da perda da vida do policial. Um Estado onde é natural que um policial perca a vida em razão da sua profissão é um Estado que está sob a lógica da barbárie”.
Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV), no relatório do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014.
Segurança Pública no fio da navalha
Burocracia, estruturas institucio-
nais, normas e leis arcaicas, gestão
inadequada de recursos humanos,
financeiros e de equipamentos. Esta
é a síntese do atual modelo de segu-
rança pública do Brasil, onde ocor-
reu um em cada 10 assassinatos re-
gistrados no mundo em 2013.
Em média, 154 pessoas foram
mortas a cada dia de 2013, a des-
peito dos R$ 258 bilhões gastos pela
Federação - União, Estados e Mu-
nicípios - um incremento de 8,65%
sobre o ano anterior, equivalente a
5,4% do Produto Interno Bruto (PIB)
do país. Naquele ano, 490 policiais ti-
veram mortes violentas. Se contabi-
lizados os últimos cinco anos, 1.770
agentes da lei foram assassinados,
1.330 durante suas folgas, quando
faziam “bicos”. Mais da metade des-
tes eram policiais militares.
Na ponta final, o índice de solu-
ção de crimes de homicídio rasteja
entre 5% e 8%. Conforme dados do
Conselho Nacional do Ministério
Público (CNMP), 100 mil inquéritos
de homicídio aguardam solução há
mais de cinco anos e se forem inclu-
ídos todos os tipos de crimes este
número chega a 4,1 milhões.
“A frieza dos números expõe um
cenário de guerra. É preciso que a
segurança pública seja uma políti-
ca de Estado e isso só depende da
vontade política dos gestores públi-
cos, em todos os níveis federativos.
Os trabalhadores do setor estão, há
quase duas décadas, apresentando
as soluções para construir um mode-
lo eficiente. Precisamos ser ouvidos”,
afirma o presidente da Associação
Nacional de Praças (Anaspra) e da
Associação de Praças de Santa Cata-
rina (Aprasc), cabo Elisandro Lotin.
É preciso reformular normas le-
gais arcaicas, reorganizar as forças
de segurança, extirpar, de preferên-
cia, a burocracia, e valorizar os pro-
fissionais da área, garantindo-lhes
remuneração digna, condições de
trabalho e os direitos humanos e
trabalhistas conferidos a todos os
cidadãos pela Carta Magna de 1988.
“São os passos mais importantes e
isso pode ser feito já pelo Congresso
Nacional, com o envolvimento sério
e comprometido dos governos fe-
deral e estaduais, Poder Judiciário e
Ministério Público”, assinala Lotin.
4 REVISTA ANASPRA Julho 2015
A ideia é formar uma corporação de natureza ci-
vil, como acontece em praticamente todos os países.
“A mudança ajuda a humanizar a relação interna e
a humanizar também a relação com a sociedade. O
militarismo também não tem lógica em existir em
uma instituição que tem uma atividade de natureza
civil, de segurança pública, de contato com o público
na prevenção dos crimes”, defende o cabo da PMSC
e diretor da Anaspra, Everson Henning. Ele também
aponta a dupla subordinação a que as instituições
militares estaduais estão submetidas - governo do Es-
tado e Exército. “O governo estadual financia a Polícia
e o Bombeiro Militar, mas essas instituições são su-
bordinadas ao Comando do Exército. Algumas coisas,
eu diria que as essenciais, como regulamento, plano
de carreira, instrução e treinamento, o governador do
Estado não pode mudar sem autorização do Exérci-
to. Portanto, qualquer mudança significativa precisa
acontecer em Brasília, nos decretos que nos amarram
ao Exército e na Constituição, para acabar com esse
vínculo de força auxiliar”.
Um exemplo de instituição policial não militar é
a Polícia Rodoviária Federal. A PRF utiliza uniforme e
viaturas de forma ostensiva, tem hierarquia, discipli-
na, regras de conduta e atuação profissional. “Nunca
vi um policial rodoviário trabalhando sem o unifor-
me, ou com aparência desleixada. Eles usam armas,
Seis eixos para um sistema mais eficiente e humano
A Associação Nacional de Praças (Anaspra) reivindica uma reestruturação do modelo de segurança pública no país que reconheça os direitos humanos dos policiais e bombeiros militares e promova a cidadania. Para isso, defende seis eixos principais:
1Desvinculação do Exército
têm função ostensiva e não precisam de militarismo
para desempenhar suas funções”, aponta o vice-presi-
dente Regional Foz do Itajaí, sargento Luis Fernando
Soares Bittencourt. “Alguns integrantes das cúpulas
militares têm um discurso arrogante e desprovido de
argumentos que tenta fazer acreditar que hierarquia
e disciplina só existem nas instituições militares. Te-
mos vários exemplos de corporações não militares
que fazem uso de armas e funcionam muito bem.”
A desvinculação das polícias e bombeiros do
Exército não significa a perda de direitos, como, por
exemplo, se aposentar com os proventos de uma
graduação acima e a manutenção de um fundo previ-
denciário específico.
Uma das iniciativas legislativas que trata do tema
é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº
51/2013, em tramitação no Senado, e a PEC 56/2015,
na Câmara Federal, proposta pelo deputado federal
cabo Sabino.
As falácias sobre a desvinculação do Exército
Alguns integrantes das cúpulas militares, provavel-
mente com medo de perder as benesses desse siste-
ma elitista, divisionista e nada republicano herdado
das Forças Armadas, estão espalhando boatos nos
quartéis, tentando aterrorizar os praças com supostos
prejuízos da proposta de desvinculação do Exército. As
falácias mais usadas são:
1 - “Vai virar uma anarquia, vaiacabar com a hierarquia e disciplina”
Além de mentiroso, esse argumento revela uma ar-
rogância assustadora de certos setores militares: falam
com a maior naturalidade em “fim da hierarquia e dis-
ciplina”, como se esses fossem valores exclusivos das
corporações militares, ou virtudes exclusivas dos que
usam farda. Hierarquia e disciplina existem em prati-
camente todas as instituições - públicas e privadas - e
os cidadãos são acostumados com esses preceitos nas
escolas, igrejas, na família, etc. Exemplos não faltam
de instituições não militares que funcionam de forma
muito organizada.
A proposta de desvinculação apresentada no Con-
gresso também não impede que as PMs e BMs conti-
nuem com o mesmo nome, ou seja, que seus integran-
tes continuem sendo militares estaduais. A ideia chave
é dar autonomia para que os estados possam organi-
zar suas respectivas polícias, sem as amarras que hoje
impedem mudanças significativas na formação, carrei-
ra e estrutura das corporações.
2 - “Vamos perder a aposentadoria especial”O instituto da aposentadoria especial NÃO é exclu-
sividade das Forças Armadas. Esse direito diz respeito
ao tipo de atividade que determinada categoria de tra-
balhadores exerce, os riscos, a insalubridade, enfim, es-
pecificidades que justificam um tempo menor de ser-
viço. O recebimento de proventos integrais também
não está garantido pelo vínculo com o Exército. Há ca-
sos de servidores dos três poderes, em todas as esferas,
recebendo proventos integrais na aposentadoria.
73,7% dos policiais de todo o país apóiam a
desvinculação do Exército; 63,6% defendem o fim da
justiça militar.
julho 2015 REVISTA ANASPRA 5
As falácias sobre a desvinculação do Exército
Alguns integrantes das cúpulas militares, provavel-
mente com medo de perder as benesses desse siste-
ma elitista, divisionista e nada republicano herdado
das Forças Armadas, estão espalhando boatos nos
quartéis, tentando aterrorizar os praças com supostos
prejuízos da proposta de desvinculação do Exército. As
falácias mais usadas são:
1 - “Vai virar uma anarquia, vaiacabar com a hierarquia e disciplina”
Além de mentiroso, esse argumento revela uma ar-
rogância assustadora de certos setores militares: falam
com a maior naturalidade em “fim da hierarquia e dis-
ciplina”, como se esses fossem valores exclusivos das
corporações militares, ou virtudes exclusivas dos que
usam farda. Hierarquia e disciplina existem em prati-
camente todas as instituições - públicas e privadas - e
os cidadãos são acostumados com esses preceitos nas
escolas, igrejas, na família, etc. Exemplos não faltam
de instituições não militares que funcionam de forma
muito organizada.
A proposta de desvinculação apresentada no Con-
gresso também não impede que as PMs e BMs conti-
nuem com o mesmo nome, ou seja, que seus integran-
tes continuem sendo militares estaduais. A ideia chave
é dar autonomia para que os estados possam organi-
zar suas respectivas polícias, sem as amarras que hoje
impedem mudanças significativas na formação, carrei-
ra e estrutura das corporações.
2 - “Vamos perder a aposentadoria especial”O instituto da aposentadoria especial NÃO é exclu-
sividade das Forças Armadas. Esse direito diz respeito
ao tipo de atividade que determinada categoria de tra-
balhadores exerce, os riscos, a insalubridade, enfim, es-
pecificidades que justificam um tempo menor de ser-
viço. O recebimento de proventos integrais também
não está garantido pelo vínculo com o Exército. Há ca-
sos de servidores dos três poderes, em todas as esferas,
recebendo proventos integrais na aposentadoria.
2 Fim da pena de restrição
da liberdadeMesmo com a Constituição de 1988, construída
para acabar com o regime ditatorial, a cidadania está
distante das instituições militares de segurança. Com
exceção de Minas Gerais, os regulamentos disciplinares
ferem direitos fundamentais consagrados pela Carta
Magna. Nos demais estados, eles vigoram a partir de
decretos estaduais flagrantemente inconstitucionais,
que impõem punições como o encarceramento dos
trabalhadores por mera decisão administrativa de su-
periores hierárquicos.
93,7% dos militares estaduais querem a
modernização dos regimentos e códigos disciplinares de
acordo com a Constituição Federal de 1988
Continua na página 6.
6 REVISTA ANASPRA Julho 2015
3 Jornada de trabalho de
40 horas semanaisA Anaspra defende que a regulamentação da
jornada de trabalho deve ser feita por lei federal,
sem excluir a legislação estadual, e que seja limita-
da a 40 horas semanais e 160 horas mensais.
A necessidade de se regulamentar a jornada
em lei federal se explica porque os governos es-
taduais não atendem essa reivindicação da ca-
tegoria, pois não têm vontade política, avalia a
diretoria da Anaspra.
Sem regulamentação da jornada de trabalho,
policiais e bombeiros chegam a trabalhar até
240 horas/mês.
Projeto de lei que extingue a pena de prisão nas cor-
porações estaduais militares foi aprovado em abril último
na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Depu-
tados, convergindo com a recomendação do Conselho
Nacional de Segurança Pública (Conasp). Ele altera o ar-
tigo 18 do Decreto-Lei nº 667, de 1969. “O PL 7645/2014
sintetiza a opinião das entidades representativas dos mi-
litares estaduais e pretende garantir cidadania e dignida-
de aos policiais e bombeiros”, assinala o autor da matéria,
deputado federal subtenente Gonzaga (PDT/MG).
A pena de prisão prevista nos códigos submete os
militares estaduais a humilhações e condições desu-
manas. É uma excrescência num sistema democrático,
pois, por um lado, o Estado incentiva a pena alternativa
à prisão ao cidadão civil, até para crimes violentos; por
outro, não garante este direito aos militares estaduais,
contando ainda com a passividade dos governos e
cumplicidade dos comandos.
... continuação da página 5.
julho 2015 REVISTA ANASPRA 7
Com a falta de efetivo das polícias e bombeiros
militares, os governos estaduais e os comandantes
das principais unidades impõem jornadas de traba-
lho que chegam a superar as 240 horas/mês. As jor-
nadas escravizantes são impostas através de escalas
como a 24X48 e a 24X24, que submetem estes tra-
balhadores à exaustão, privando-os da convivência
social e familiar. Além disso, está comprovado por
estudos de diversos especialistas e organismos na-
cionais e internacionais, e pelo dia-a dia nas corpora-
As polícias e os bombeiros militares estão dividi-
dos, pois existem duas instituições dentro de cada
uma. Hoje, há duas portas de entrada em cada insti-
tuição, uma para o oficial e outra para praça. Os pro-
fissionais de ambas são considerados “operadores
de segurança pública”. No entanto, guardam uma
diferença essencial: uma categoria pode chegar ao
topo da instituição e outra, nunca, a não ser que co-
mece tudo de novo.
Além dessa diferença, há outra gritante: a dis-
paridade remuneratória. A tabela de subsídio das
corporações militares de Santa Catarina comprova a
tese. Enquanto um soldado entra na instituição rece-
bendo o valor de R$ 3.201,84, um coronel, em final
de carreira percebe R$ 18.834,36 - uma diferença de
quase seis vezes. A Lei da Escala Vertical, ainda em
vigor, determina que a diferença entre o menor e o
maior salário deve ser de até quatro vezes.
Se inverter os extremos da tabela, a diferença
ainda é evidente. Enquanto um subtenente recebe
R$ 9.125,23, graduação na carreira alcançada com
pelo menos 20 anos de trabalho, um aspirante a
4 Acesso único com terceiro grau 80,9% dos agentes de
segurança defendem carreira única, com acesso
através de concurso
oficial, em seu primeiro ano de efetivo trabalho na
instituição militar, percebe R$ 9.417. Em artigo cien-
tífico publicado para o Curso de Aperfeiçoamento
de Sargentos, do Paraná, os bombeiros militares Rei-
naldo Rodrigues de Oliveira e Moacir Carboni defen-
dem a reestruturação das carreiras: “Precisam de fato
adotar uma política de recursos humanos com base
numa ‘Gestão de Conhecimento’, que reorganize e
definitivamente traga solução para a situação que aí
está, e a ‘Carreira Única’ traz conhecimento, valoriza
o material humano, melhora a qualidade de serviço
prestado a sociedade, provocando aos integrantes
da instituição a motivação necessária para buscar a
excelência em suas atividades.”
ções, que a sobrecarga ou excesso de trabalho afeta
a qualidade da segurança pública negativamente,
aumentando perigosamente os níveis de estresse.
Para superar isso, é imprescindível o investimento
de cada um dos Estados em efetivo e salários.
Ainda não existe um projeto de lei tratando
deste tema no Congresso Nacional. No entanto,
deputados eleitos pela categoria estão estudando
fórmulas para construir uma proposição legislativa
livre de inconstitucionalidades.
8 REVISTA ANASPRA Julho 2015
5 Ciclo completo: só se for comcarreira única
70% dos profissionais da segurança em todo o país
querem o fim da divisão do ciclo do trabalho policial
entre militares e civisPolícias militares e civis devem ter a competência
para realizar o ciclo completo de polícia. Ou seja, o
exercício da polícia ostensiva e preventiva, investiga-
tiva, judiciária e de inteligência policial. Atualmente,
conforme prevê a Constituição Federal, as atividades
de polícia judiciária são de responsabilidade das po-
lícias civil e federal. E, de acordo com o Código de
Processo Penal, a polícia judiciária é um órgão da se-
gurança do Estado que tem como principal função
apurar as infrações penais e a autoria desses crimes.
Fruto de um processo histórico de debate entre
os próprios profissionais de segurança pública, de
diversas áreas, além de agentes políticos e socie-
dade civil organizada, a proposta da Anaspra prevê
também que a atividade investigativa, independen-
te da sua forma de instrumentalização, deverá ser
realizada em coordenação com os ministérios públi-
cos estaduais. O ciclo completo é diretriz aprovada
com estrondoso número de votos na 1ª Conferência
Nacional de Segurança Pública, realizada em 2009,
e que reuniu centenas de organizações, em âmbito
municipal, estadual e federal. O texto aprovado de-
fende: “Estruturar os órgãos policiais federais e esta-
duais para que atuem em ciclo completo de polícia,
delimitando competências para cada instituição de
acordo com a gravidade do delito sem prejuízo de
suas atribuições específicas.”
No entanto, para que o ciclo completo dê certo
e não seja mais um fator a provocar atos de autori-
tarismo dentro dos quartéis, é fundamental que os
outros eixos defendidos pela Anaspra sejam imple-
mentados concomitantemente, em especial o aces-
so único às carreiras policial e bombeiro militar, a
desvinculação do Código do Exército e a definição
em legislação federal da jornada de trabalho. “O ci-
clo completo sozinho não vai mudar a situação da
segurança pública. É preciso empoderar e valorizar
os profissionais da base e essa valorização parte das
autoridades políticas e também das autoridades
internas”, resume o presidente da Anaspra, cabo Eli-
sandro Lotin, que defendeu esta posição no Seminá-
rio Internacional de Segurança Pública sobre Perse-
cução Criminal realizado no Congresso Nacional em
maio deste ano.
No Congresso Nacional, tramitam três propostas
de emenda constitucional que convergem com o ci-
clo completo de polícia. No Senado, a PEC-102/2011
e a PEC-51/2012, e, na Câmara Federal, a PEC-
431/2014, esta última, trata mais especificamente do
assunto.
Alemanha, Estados Unidos, Reino Unido, Suíça,
Suécia, Bélgica, Rússia, Holanda, Áustria, Dinamarca,
Finlândia e países da Europa Oriental, adotam o ciclo
completo. Em Portugal e Espanha, por exemplo, o
Ministério Público define qual instituição vai promo-
ver a investigação, acompanha os procedimentos,
fiscaliza a atuação policial e intermedia os conflitos
entre as forças policiais. No Brasil, avalia a Anaspra,
se não for instituída carreira única nas corporações, a
proposta do ciclo completo se esvazia.
julho 2015 REVISTA ANASPRA 9
Para assegurar às associações dos militares es-
taduais as mesmas garantias de representação e
imunidade tributária garantidas aos sindicatos de
trabalhadores, o deputado federal subtenente Gon-
zaga (PDT-MG) protocolou, em dezembro de 2014,
a Proposta de Emenda à Constituição nº 443/2014,
também chamada de PEC das Associações.
A Constituição Federal proíbe a sindicalização
aos militares, no entanto, permite sua organização
na forma de associação. Apesar desse direito consti-
tucional, durante muitos anos os poderes Executivos
federais e estaduais tentaram limitar tais associa-
ções ao mero papel de centros recreativos, reduzin-
do suas atividades à gestão de grêmios esportivos,
6 Fortalecimento das associações
86,7% dos militares estaduais querem a
regulamentação do direito à sindicalização e à greve
organização de atividades culturais e sociais.
“Estamos buscando a legitimação das associa-
ções para exercerem sua representação perante
os poderes constituídos. O Estado precisa reco-
nhecer e legitimar o papel das associações dos
polícias e bombeiros militares na sua função de
representar os legítimos interesses destes traba-
lhadores, assim como já reconheceu dos demais”,
defende o deputado.
“Reformas” ameaçam piorar a situação
Na contramão da construção de uma política
de Estado para a segurança pública, a maioria dos
governos estaduais começou o ano de 2015 com o
anúncio de reformas na previdência e “ajustes” na
gestão administrativa para equilibrar as contas pú-
blicas. Novamente, o alvo dos “ajustes” são trabalha-
dores das três áreas essenciais: saúde, educação e
SEGURANÇA.
Em Santa Catarina, o governo Raimundo Colom-
bo (PSD) pretende elevar o percentual de contribui-
ção dos trabalhadores à previdência, acabar com a
licença especial dos policiais e bombeiros, e aumen-
tar o tempo exigido para a reserva remunerada (RR),
aumentando de 30 para 35 anos (homem) e de 25
para 30 anos (mulher). No Paraná, o governador Beto
Richa (PSDB) foi muito mais longe e num pacto com
sua “base aliada” no legislativo, se apropriou do di-
nheiro do fundo de previdência dos servidores, de
onde sacou, logo após a aprovação da lei, mais de
R$ 500 milhões, ameaçando as aposentadorias de
todos os servidores públicos paranaenses, onde se
incluem os militares da PM e do BM daquele estado.
No Rio Grande do Sul, o governo de José Ivo Sartori
(PMDB) quer reduzir valores das aposentadorias.
Continua na página 10.
10 REVISTA ANASPRA Julho 2015
São exemplos que comprovam que os
gestores públicos em geral ainda conside-
ram como gasto aquilo que foi consolidado,
na Constituição de 1988, como INVESTI-
MENTO do Estado no cumprimento de suas
obrigações fundamentais com a sociedade.
Obrigações estas resultantes dos preceitos
basilares da mesma Carta Magna, a qual es-
tabelece ainda, claramente no artigo 40, §
4º, que servidores em funções submetidas
à periculosidade têm direito à aposentado-
ria especial. Determinação que a Lei Federal
Complementar 144, sancionada em 15 de
maio de 2104 pela presidenta Dilma Roussef
(PT), ratifica, sobrepondo-se, conforme de-
terminação constitucional, às leis estaduais.
Importante salientar que, embora militares
estaduais sejam vinculados ao Código do
Exército este não está acima e não os ali-
ja dos direitos estabelecidos pela CF e leis
complementares que ditam as normas para
todos os servidores públicos.
Ademais, conforme a Organização Mun-
dial da Saúde (OMS) e a Organização Inter-
nacional do Trabalho (OIT), a profissão de
policial e bombeiro está entre as três mais
estressantes do planeta, o que transforma
estes profissionais nas maiores vítimas de
transtornos mentais e comportamentais.
Esta constatação está bem clara em estudo
feito pelo serviço de Psicologia da PM de
Santa Catarina, em 2012, que revela um qua-
dro trágico.
Afastamentos decorrentes de transtornos mentais e comportamentais na PM/SC*
» Em média, 406 policiais militares são afastados anualmente em decorrência de transtornos mentais e comportamentais; 10 deles são reformados, ou seja, não voltam mais.
» O policial militar com transtorno mental e comportamental fica afastado, em média, 38 dias por ano.
» Em 2008 e 2009, 30% dos afastamentos de policiais militares para tratamento de saúde foram motivados por transtornos mentais e comportamentais.
» 28% das reformas foram provocadas por transtornos da mesma ordem, entre os anos de 2005 e 2009.
* Estudo feito pelo Serviço de Psicologia da PM/SC em 2012, com base no levantamento patrocinado em 2010 pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, vinculada ao Ministério da Justiça.
... continuação da página 9.
julho 2015 REVISTA ANASPRA 11
Anaspra é contra o PL4330: terceirizar devasta trabalho e serviços
A Anaspra se posiciona frontalmente contra a tercei-
rização preconizada pelo Projeto de Lei 4330, de autoria
do deputado federal Sandro Mabel, do Partido Liberal de
Goiás. “Hoje, todos os estados brasileiros têm em seus
quadros da segurança, do magistério e da saúde, milha-
res de trabalhadores contratados temporariamente, sem-
pre com salários mais baixos e quase nenhum direito”, ar-
gumenta o cabo Everson Henning, tesoureiro da Anaspra.
Em Santa Catarina, por exemplo, as escolas públicas
só funcionam com o incremento de, em média, 12 mil
professores contratados temporariamente, por perío-
dos de 10 meses. Na segurança, a cada ano amplia-se a
contratação dos agentes temporários. Na PM, a seleção
destes é feita por concurso, limitada a participação a jo-
vens entre 18 e 23 anos (incompletos), que, se aprovados,
passam por um curso de sete semanas. Depois são de-
signados para trabalhar no Centro de Operações Militares
(Copom/190) e na fiscalização de vídeo monitoramento
nas Centrais Regionais de Emergências e Serviços Admi-
nistrativos. O contrato é de um ano, prorrogável por mais
um, no máximo, e o salário bruto – denominado oficial-
mente auxílio mensal de natureza indenizatória – é de R$
1.017,00 (um mil e dezessete reais).
Para o desembargador do Tribunal Regional do Traba-
lho da 10ª Região (TRT-DF/TO), Grijalbo Coutinho, autor
do livro Terceirização: a máquina de moer gente trabalha-
dora, se o projeto aprovado pela Câmara dos Deputados,
atendendo interesses de patrocinadores de campanhas,
for chancelado pelo Senado, “será a autorização para
todo tipo de exploração selvagem do trabalhador”. Cou-
tinho é uma das centenas de vozes que têm se levantado
contra a sublocação de mão de obra. Juízes, ministros do
Tribunal Superior do Trabalho e do Superior Tribunal de
Justiça, Associação de Magistrados do Trabalho, procura-
dores do Trabalho, sindicatos, centrais de trabalhadores,
estudiosos e pesquisadores são unânimes: o PL nº 4.330
consegue piorar o que, na prática, já é muito ruim para a
classe trabalhadora e para a sociedade brasileira.
O projeto do deputado liberal Sandro Mabel legitima
e legaliza a terceirização em todos os setores produti-
vos e atividades econômicas, incluindo a atividade-fim,
a ponto de autorizar o funcionamento de grandes em-
presas e conglomerados econômicos praticamente sem
empregados formais em seus quadros de pessoal. “Não
há nada de positivo na terceirização. Todos os aspectos
desse novo modo de gestão das relações de trabalho são
extremamente perversos, incluindo o acentuado rebai-
xamento salarial frente aos seus colegas empregados da
empresa principal; as jornadas intensas e extenuantes; as
cobranças mais severas pelo cumprimento de metas; as
humilhações frequentes; a invisibilidade social; a rasgada
discriminação em todos os níveis da dimensão humana”,
sentencia Coutinho.
“Em todos os lugares do mundo a terceirização é prática devastadora
de direitos sociais. A terceirização mata, mutila, escraviza e humilha
trabalhadores.” Desembargador Grijalbo Coutinho, do TRT do Distrito
Federal e Tocantis, autor do livro Terceirização: a máquina de moer gente trabalhadora
Fontes dos dados e estatísticas desta publicação: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014, elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP); Pesquisa BBC Brasil realizada em outubro/2014;Pesquisa “Opinião dos Policiais Brasileiros sobre Reformas e Modernização da Segurança Pública”, feita pela FGV Direito SP, FBSP e SNASP; e Associação Brasileira de Criminalística, em pesquisa realizada em 2011.