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    Rastros de Maldoror no Brasil:

    Lautramont em Murilo Mendes1

    Eliane Robert Moraes | PUC-SP

    Resumo: A exemplo do que aconteceu na Frana onde Lautramont s setornou conhecido no sculo XX , no Brasil igualmente difcil falar darepercusso de sua potica antes do Modernismo. Entre os autores do movimentoque se deixaram atravessar por sua voz, ganha destaque a figura de MuriloMendes, que evoca o criador de Maldoror como o jovem sol negro / queinaugura nosso tempo. Para alm das referncias explcitas, os poemas domodernista brasileiro revelam uma afinidade de fundo com os escritos deDucasse, sobretudo quando interrogam os fundamentos da identidade. Se aobra de Lautramont deixa manifesta a inteno de apagamento do eu,abrindo espao para uma literatura feita por todos, semelhante desejo expresso por Murilo Mendes, cuja poesia insiste em afirmar as mltiplas facesde um sujeito lrico que jamais cede ao projeto de compor um retrato nico.Palavras-chave: Lautramont, Murilo Mendes, Maldoror, Ducasse,Modernismo brasileiro.

    1. Este texto retoma, com diversos acrscimos e modificaes, minha palestrano Colquio Internacional Semana Lautramont lautre de la littrature,

    realizado na Universidade Autnoma de Barcelona, Espanha, entre 20 e

    25 de Novembro de 2006. Foi publicada nos anais do evento, sob o

    ttulo chos de Maldoror au Brsil: la posie de Murilo Mendes In:

    RIPOLL. Lautramont lautre de la littrature.

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    I

    Publicado por um certo Du Boisaym, em 1811, o incgnito trabalhoacadmico intitulado De la courbe que dcrit un chien courant aprs son matre

    est na origem de uma das mais notveis imagens que o Conde de Lautramont

    prope em Les chants de Maldoror. no canto V que o poeta se vale desse

    inslito estudo para definir o estranho bufo de Virgnia, portentosa ave noturna

    que se recolhe nas reentrncias de um convento em runas depois de sangrenta

    luta nos ares com um abutre, sendo objeto da seguinte analogia: bela como uma

    dissertao sobre a curva descrita por um co correndo atrs de seu dono.2

    Imagem potente para evocar a fora dos rastros, a curva em questo

    resultado de um grande dispndio de energia. Porm, seja identificada linha

    desenhada pelo co que acompanha os passos de seu dono, seja ao rastro dos

    volteios rpidos e fugazes da grande ave, ela parece sempre aludir aos esboos

    fugidios, que no deixam qualquer vestgio palpvel. Dissertar sobre matria ao mesmo

    tempo to efmera e potente por certo supe um risco, mas tudo leva a crer que

    justamente esse risco que sustenta a beleza paradoxal das analogias de Ducasse.

    O que se deseja descrever aqui tambm o contorno de uma linha

    sinuosa. Menos paradoxal e menos potica, mas igualmente esquiva e arriscada,

    trata-se da curva formada pelos traos que um escrito imprime em outro, e assim

    por diante. Trata-se, portanto, de imaginar as possveis reverberaes de um texto,

    na tentativa de capturar aquelas impresses que, nascidas no momento fugaz da

    leitura, reaparecem com fora no tecido da escrita, mas envoltas por uma opacidade

    caracterstica dos rastros, dos vestgios, dos ecos.

    Ora, no captulo das reverberaes, a literatura de Lautramont no

    tem paralelos. Como j observaram muitos estudiosos, a pardia foi o grande

    motor da criao potica de Ducasse: no romantismo exasperado dos Cantos, cujo

    exagero macabro tem sido creditado s citaes de Sade, Poe, Eugne Sue e

    sobretudo do roman noir, so reconhecidas passagens de Homero, de Dante, de

    Goethe, do Apocalipse, alm de uma variedade de enciclopdias, almanaques,

    revistas e folhetins, entre outros. De fato, a obra ducassiana pode ser lida como

    uma imensa e notvel colagem de outros autores e textos, realizada ora por meio

    2. No original: beau comme un mmoire sur la courbe que dcrit unchien en courant aprs son matre. RIMBAUD; LAUTRAMONT;

    CORBIRE; CROS. uvres potiques compltes, p. 717. (Para a traduo

    brasileira, consultar: LAUTRAMONT. Os cantos de Maldoror, p. 223).

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    de referncias mais ou menos longnquas, ora por meio de transcries literais,

    mtodo que atinge a perfeio nas Poesias. Sabe-se que at mesmo a afirmao

    de que a poesia deve ser feita por todos, e no por um consiste em citao

    adulterada de Vauvenargues, escritor do sculo XVIII, o que s faz reiterar a frmula

    categrica do poeta: o plgio necessrio.

    No de estranhar, pois, que uma obra feita de tantos ecos tambm

    ecoe com intensidade em outros textos literrios, deixando transparecer uma espcie

    de conversa subterrnea que se trava entre vozes poticas distintas, de tempos e

    espaos igualmente diversos. Assim, para alm mesmo das relaes genticas,

    pode-se tomar a escrita de Lautramont como uma obra de referncia, tal como

    entende Roland Barthes quando define a literatura de Proust como uma forma de

    lembrana circular, como mathesis geral, ou mesmo como mandala de toda a

    cosmogonia literria.3 Imagens que por certo evocam o movimento indomvel

    do tempo, sem o qual talvez seja impossvel descrever a curva das ressonncias

    de Maldoror.

    II

    Rastros de Maldoror no Brasil: a expresso poderia sugerir um extenso

    balano da leitura de Lautramont no pas. Embora no seja o intuito deste texto,

    convm lembrar que um tal rastreamento, ainda no realizado, seria bastante

    oportuno, tanto para corroborar com os estudos ducassianos quanto para ampliar a

    compreenso da prpria literatura brasileira, qui prometendo boas surpresas.

    Apesar de haver suposies de que o autor possa ter influenciado alguns de nossos

    literatos do final do sculo XIX, o sinal mais antigo da sua presena entre ns data

    de 1901, quando teria sido feita a primeira transcrio dos Cantos, assinada por

    Saturnino Meirelles, obstinado discpulo do poeta simbolista Cruz e Souza.4

    A exemplo do que aconteceu na Frana onde Lautramont s se

    tornou realmente conhecido no sculo XX , tambm no Brasil fica difcil falar da

    repercusso de sua voz antes do Modernismo. Por isso, interrogar sua presena na

    paisagem literria nacional implicaria sobretudo a investigao das diversas formas

    de contato que se estabeleceram entre vanguardistas brasileiros e franceses a

    3. BARTHES. O prazer do texto, p. 49.

    4. Cf. LIMA. Alguns dados sobre a construo interessada de uma ausncia:a do surrealismo no Brasil ou... a cada um o seu desejo, p. 202.

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    partir da dcada de 1920, o que excede a visada deste texto.5 Vale recordar,

    contudo, que as viagens europeias de nossos modernistas, aliadas s estadias de

    escritores como Benjamin Pret e Blaise Cendrars no pas, foram decisivas para a

    ampliao do horizonte literrio dos artistas ligados ao movimento, alguns deles

    atentos leitores dos surrealistas, como o caso de Jorge de Lima, Oswald de

    Andrade, Lcio Cardoso, Cornlio Pena, Mrio Pedrosa ou Anbal Machado.6

    Entre esses autores, ganha destaque a figura do poeta Murilo Mendes,

    que qualificou sua descoberta do surrealismo como um coup de foudre, de intensa

    repercusso no s para si, como tambm para o amigo pintor Ismael Nery, que

    havia passado um longo perodo na Frana. Segundo seu entusistico registro,

    tratava-se de explorar o subconsciente; tratava-se de inventar um outro frisson

    nouveau, extrado modernidade; tudo deveria contribuir para uma viso fantstica

    do homem e suas possibilidades extremas.7 Apesar de catlico, Mendes se entregou

    a essa liberdade de esprito proposta pelo movimento, na contramo da vertente

    hegemnica do modernismo brasileiro, mais preocupada em redefinir a identidade

    nacional a partir de novos parmetros.

    5. Elementos para uma histria da presena de Lautramont no Brasil,alm do nmero da revista Organon acima indicado, podem ser

    encontrados tambm em: CNDIDO. Surrealismo no Brasil; PAES. O

    surrealismo na literatura brasileira, p. 99-114; FARIAS. O surrealismo na

    poesia de Jorge de Lima; PONGE. Surrealismo e Novo Mundo.

    6. Cf. BARROSO. A obra maldita de Lautramont, p. D4. , portanto, nocentro do Modernismo brasileiro que se encontram os primeiros

    admiradores confessos de Ducasse, os quais inauguram uma tradio de

    leitura que s fez crescer ao longo do sculo XX, com particular

    repercusso nos anos 1960-1970, quando alguns artistas da chamada

    contracultura vo manifestamente se reclamar herdeiros de Lautramont.

    Convm citar, nesse caso, os nomes dos escritores Roberto Piva e Cludio

    Willer, este ltimo tradutor da obra completa do poeta oitocentista que,

    publicada originalmente em 1970, contou com sucessivas reedies desde

    ento. No mbito literrio, cumpre assinalar ainda a iniciativa recente do

    escritor Ruy Cmara, que publicou uma biografia imaginria do criador

    de Maldoror. Em paralelo ao interesse despertado pelo poeta francs em

    escritores brasileiros, h que se referir tambm ao notvel trabalho crtico

    de Leyla Perrone-Moiss, inaugurado no incio dos anos 1970 com o

    livro Falncia da crtica e continuado em outros ensaios. Ver em especial:

    CMARA. Contos de outono; PERRONE-MOISS. A falncia da crtica; e

    PERRONE MOISS; RODRGUEZ MONEGAL. Lautramont austral.

    7. MENDES. Andr Breton, p. 1.238.

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    No surpreende portanto que, entre as obras modernistas, sejam

    seus os escritos que fazem as referncias mais explcitas figura de Ducasse, a

    quem Murilo evocou como o jovem sol negro / que inaugura nosso tempo.8 Em

    uma das prosas de Poliedro, por exemplo, o autor prope uma breve e bem

    humorada definio do Uruguai que alude diretamente ao autor:

    O Uruguai um belo pas da Amrica do Sul, limitado ao norte por

    Lautramont, ao sul por Laforgue, a leste por Supervielle.

    As principais produes do Uruguai so: Lautramont, Laforgue e

    Supervielle.

    O Uruguai conta com trs habitantes: Lautramont, Laforgue e Supervielle,

    que formam um governo colegiado. Os outros habitantes acham-se

    exilados no Brasil visto no se darem nem com Lautramont, nem com

    Laforgue, nem com Supervielle.9

    Brincadeira? Pode ser, mas por certo uma brincadeira sria e

    expressiva, expondo a situao de isolamento e incompreenso crtica que o

    surrealismo enfrentou no Brasil, com forte impacto na recepo da obra do prprio

    Murilo. Como anotaram alguns comentadores, a tendncia a minimizar a importncia

    surreal na produo do escritor impediu a crtica brasileira de perceber sua afinidade

    com a atitude rebelde e libertria do movimento capitaneado por Breton.10

    Desnecessrio dizer que tal resistncia impediu tambm a identificao de qualquer

    marca ducassiana na poesia do brasileiro, no obstante ele mesmo ter includo o

    poeta franco-uruguaio na declarao de princpios intitulada Microdefinio do

    Autor onde lista seus grandes inspiradores.11

    significativo, pois, que o pequeno texto sobre o Uruguai manifeste

    o reconhecimento de um pas vizinho ao Brasil a partir desses trs homens que,

    tendo l nascido por acaso, so clebres autores da literatura francesa. Ora, isso

    supe a afirmao de uma outra forma de vizinhana que, indiferente s

    8. MENDES. Homenagem a Jorge de Lima, p. 555.

    9. MENDES. Uruguai, p. 1.023.

    10. Ver, em especial, MERQUIOR. beira do antiuniverso debruado ouintroduo obra de Murilo Mendes; MASSI. Murilo Mendes: a obra do

    poliedro; ARRIGUCCI. Arquitetura da memria.

    11. Ver MENDES. Murilo Mendes o menino experimental.

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    contiguidades territoriais, busca estabelecer cumplicidades de pensamento. Supe

    igualmente a descoberta de uma comunidade que se situa fora de qualquer

    delimitao nacional, como evidencia tambm o retrato-relmpago que o poeta

    brasileiro dedica ao criador de Maldoror, j desde sua primeira frase: Debruado

    numa janela no de Paris nem de Montevidu, Lautramont descobre, pensa, v,

    imagina, inventa, redescobre, repensa, rev, reimagina, reinventa, coisas, objetos,

    seres e situaes intercambiveis.12

    Aqui se esboa claramente essa ideia de um lugar outro, imaginrio,

    onde tudo passvel de desdobramento uma vez que l se pode pensar e

    repensar, inventar e reinventar, ver e rever, e assim sucessivamente. Ideia reforada

    ao longo desse breve e penetrante retrato, conforme reitera a passagem que

    apresenta Ducasse como o confidente sexual da noite (...) que assiste cpula

    das irms siamesas, onde o duplo vem associar-se potncia do erotismo. Trata-

    se, pois, de realar a fora da repetio, mas no de uma repetio qualquer, fruto

    de simples mecnica sem vigor: ao contrrio, o que se supe aqui uma operao

    de desdobramento no sentido de ampliar a intensidade do ato inicial, contribuindo

    para reforar o enigma, razo primeira da poesia.13

    Assim, se a janela onde Murilo v Lautramont se debruar no se

    localiza em territrio passvel de delimitao, isso acontece porque esse lugar de

    observao puramente potico. Tudo leva a crer, portanto, que esse mundo

    duplicado onde ocorre um acrscimo de intensidade, tal como suposto pelo escritor,

    no outro seno o prprio mundo da poesia. Da que o autor dos Cantos de

    Maldoror no esteja na Frana, nem no Uruguai, nem no Brasil, ou em qualquer

    outra nao, j que ele habita um pas fictcio, fantasmtico, sem territrio ou,

    para nos valermos de um adjetivo caro aos surrealistas, um pas dpays.

    III

    Ao pas desterritorializado corresponde uma identidade igualmente

    dpayse. a ela que Murilo Mendes se refere num poema que, escrito originalmente

    em italiano, supe franca adeso aos artifcios do jovem poeta oitocentista:

    12. MENDES. Lautramont, p. 1280.

    13. MENDES. Lautramont, p. 1281.

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    Compiuti ventiquattro anni

    Cosa se potrebbe fare a Parige o altrove

    NellOttocento? Essere se stesso stanca

    Essere Isidoro Ducasse stanca

    Ti cambiasti allora in Lautramont.14

    O interesse despertado por esses versos est no fato de que, ao

    escrev-los em outra lngua, o modernista brasileiro tambm acaba duplicando sua

    prpria persona potica, como que participando do vertiginoso processo de

    desterritorializao que marca a identidade ducassiana. Escusado dizer que, nos

    Chants, impossvel discernir o criador da criatura, sendo que cada qual remete a

    uma sucesso de desdobramentos. Recorde-se que a epopeia de Maldoror s

    vezes narrada pelo suposto autor, e outras pelo prprio heri, ele mesmo

    reduplicado em uma srie de metamorfoses.

    Ora, se a figura do autor perde-se em mistrios, dado sua sumarssima

    biografia, no menos enigmtica a do Conde de Lautramont, pseudnimo

    inspirado no personagem homnimo criado por Eugne Sue em Os mistrios de

    Paris. Dessa forma, a indeterminao entre as figuras de Ducasse, Lautramont e

    Maldoror parece realizar a inteno de apagamento do eu insistentemente

    manifesta em sua obra, abrindo espao para uma poesia feita por todos.

    Semelhante desejo encontra-se expresso na lrica de Murilo Mendes,

    inclusive em versos escritos bem antes de suas menes mais explcitas obra de

    Lautramont. Vale notar que tal problemtica realmente ganha corpo nos livros

    publicados na dcada de 1930, sendo particularmente recorrente em poemas de

    O visionrio (1930-1933), A poesia em pnico (1936-1937) e As metamorfoses

    (1939-1941).

    Prova disso est na insistncia com que o poeta coloca a questo

    quem sou eu? nesses escritos, valendo-se dela para expor as mltiplas faces de

    um sujeito lrico que jamais cede pretenso de compor a unidade de um retrato.

    o que sugere, por exemplo, o poema Olhar sem tempo, de inspirao surrealista,

    ao responder: Sou um retrato de antepassado / Sou aquela camisola que vesti /

    H muitos anos atrs. / (...) / Sou uma valsa lenta / brotando nos meus ouvidos. /

    Sou um cadver, uma visagem / que alguns sujeitos rindo / Levam sem flores num

    automvel. Na mesma chave, revelando um eu poroso ao tempo e ao mundo, o

    poema Conhecimento prope uma resposta em franco tom maldororiano:

    14. MENDES. Lautramont, p. 1.529.

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    Quem sou eu? Um crebro deixado em pasto aos bichos,

    Sou a fome de mim mesmo e de todos,

    Sou o alimento dos outros,

    Sou o bem encarcerado e o mal que no germina.

    Sou a prpria esfinge que me devora.15

    promessa de composio de um retrato, o poeta prefere contrapor

    a prpria ideia de decomposio, manifesta tanto na imagem do annimo cadver

    que no inspira lgrimas nem flores aos companheiros quanto na figura de um

    dipo derrotado pela esfinge, incapaz de afirmar sua singularidade humana. Assim,

    distante do heri fundante de nossa cultura metfora do homem que toma

    conscincia de si, realizando os desgnios da clebre inscrio grega, conhece-te

    a ti mesmo , o eu lrico dos poemas de Murilo parece bem mais prximo do

    heri de Lautramont, que se indiferencia das coisas e dos seres do mundo quando

    diz: um homem ou uma pedra ou uma rvore que vai comear o quarto canto.16

    Proximidade que se revela ainda mais significativa ao percebermos

    que a afirmao de um sujeito em permanente decomposio caminha em paralelo

    a uma concepo de poesia que tambm supe um eu disperso, tal como aparece

    nessa Iniciao:

    O manto de chumbo voa:

    E eu me reconstitu.

    Poemas velozes

    Explodindo no meu corpo

    Batem as hlices

    De encontro ao espelho oblongo

    Do passado, presente e futuro.

    No por acaso, trata-se do ltimo poema do livro As metamorfoses,

    que conclui evocando um sujeito novo, reconstitudo, para quem se abre a

    possibilidade de reinventar o mundo a partir de um grau zero. Liberto do manto

    de chumbo, ele deseja atualizar um estado inaugural, quando as leis biolgicas e

    sociais ainda no pesavam sobre a vida e o universo s obedecia dinmica das

    metamorfoses. Liberto do prprio tempo fixado num espelho que encerra passado,

    15. MENDES. Olhar sem tempo; e MENDES. Conhecimento, p. 205 e 301.

    16. LAUTRAMONT. Les chants de Maldoror, p. 685.

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    presente e futuro , ele faz coincidir o momento da criao com o juzo final, para

    reconhecer as substncias do mundo e da linguagem:

    Refiz a criao,

    Os mortos me contemplam,

    Seguram de novo a cartilha.

    De agora em diante

    No tenho mais praias.

    O avio sacode as penas

    Para o juzo final,

    Novos mundos j se formam.

    Notvel afinidade com o universo dos Chants de Maldoror, a insinuar

    os traos daquela curva fugidia que deixa entrever um contato intenso entre os

    dois poetas, mas um contato paradoxal que imediatamente se dissolve no mundo,

    tal como um eco, para realizar a vertiginosa disperso potica sonhada por

    Lautramont:

    A poesia sou eu,

    A poesia Altair,

    A poesia somos ns.17

    17. MENDES. Iniciao, p. 370-371.

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    O eixo e a roda: v. 18, n. 1, 2009

    Traces of Maldoror in Brazil: Lautramont in Murilo Mendes

    Abstract: As occurred in France where Lautramont only became known inthe 20th Century , in Brazil it is also difficult to speak of the repercussions ofhis poetic prior to Modernism. Chief among the authors of the movement whowere open to his voice is Murilo Mendes, who evokes the creator of Maldoraras the young black sun / that inaugurates our time. Beyond such explicitreferences, the Brazilian modernist poet also reveals a bedrock affinity withthe writings of Ducasse, especially when they plumb the fundaments of identity.If Lautramonts work manifests a will to erase the I, opening space for aliterature made by all, a similar desire is expressed in Murilo Mendes, whosepoetry insists on the multiple faces of a lyrical self who refuses the project ofcomposing a single portrait.Keywords: Lautramont, Murilo Mendes, Maldoror, Ducasse, BrazilianModernism.

    R e f e r n c i a s

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