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Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Florianópolis, Santa Catarina
XIV SIMGeo Simpósio de Geografia da UDESC
2º SEMINÁRIO NACIONAL DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO ÁREA TEMÁTICA: DESENVOLVIMENTO SOCIOAMBIENTAL,
COOPERATIVISMO E ASSOCIATIVISMO
BASES E IMPORTÂNCIA DA AGROINDÚSTRIA FAMILIAR RURAL NO OESTE CATARINENSE
Lauri Luiz Kunzler1 Rosana Maria Badalotti2
Resumo
O presente artigo traça uma relação entre o contexto de ocupação da região oeste de Santa Catarina e o processo de transformações da agricultura até o quadro atual das agroindústrias familiares rurais. Com base em publicações de pesquisadores de referência na área, analisa-se a configuração, a importância e os principais desafios das iniciativas desenvolvidas para a agregação de valor à produção, como meios de sustentabilidade da pequena propriedade rural e de reprodução social das famílias. Revela-se evidente, ao longo do estudo, o histórico desprezo e abandono do Estado em relação aos pequenos agricultores e a importância da resistência e mobilização destes. Palavras-chaves: Oeste catarinense; agricultura familiar; agroindústria familiar rural.
Abstract
The present article draws a relationship between the context of occupation of the western region of Santa Catarina and the process of transformation of agriculture until the current framework of rural family agro-industry. Based on publications of researchers of reference in the field, is analyzed the setting, the importance and the main challenges of the initiatives developed to the added value to production, as a means of sustainability of small rural property and social reproduction of the families. Reveals itself evident, throughout the study, the contempt and neglect historical of the State in relation to small farmers and the importance of the resistance and mobilization of these.
Keywords: West of Santa Catarina; family agriculture; family rural agro-industry.
1 Administrador, mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais da Unochapecó. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Ciências Humanas, orientadora, professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais da Unochapecó. E-mail: [email protected]
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Introdução
A agricultura familiar possui importante papel no cenário econômico e social
brasileiro, especialmente em termos de produção de alimentos e ocupação de mão-de-obra.
Abrange 84% dos estabelecimentos agropecuários e 74% do total de pessoas ocupadas no
campo. Com apenas 24% da área agrícola ocupada, os agricultores familiares são
responsáveis por 38% de tudo o que é produzido no campo, sendo os principais fornecedores
dos alimentos básicos da população brasileira, vez que os empreendimentos não familiares
concentram sua produção em commodities. (IBGE, 2006; MDA, 2009; GUANZIROLI,
2012).
Os números censitários, no entanto, não traduzem satisfatoriamente as
perspectivas reais de reprodução social das famílias rurais. No interior dessa conformação
estatística, há aspectos que não são perceptíveis pela simples análise dos quantitativos de
produção e participação da agricultura familiar na economia e que denunciam situações de
grande desigualdade, pobreza e carência de alternativas para esse segmento. Dados do próprio
censo agropecuário já demonstram a injusta concentração de terras no país, já que os 15,6%
dos estabelecimentos agropecuários detém 75,68% do total das áreas agrícolas. (IBGE, 2006).
Concretamente, é difícil para uma família garantir sua subsistência em uma
pequena área de lavoura, especialmente considerando os processos de minifundização e
verticalização da produção. Em decorrência dessas características têm se observado,
principalmente a partir de meados dos anos 80, processos cada vez mais intensos de êxodo
rural, que levam pequenos agricultores a migrar para as cidades em busca de alternativas de
renda e outras ocupações. (PLEIN, 2006). Por outro lado, observa-se também que a
agricultura familiar têm se transformado, no sentido de não se configurar somente como
espaço de produção agrícola, onde diferentes alternativas de produção e renda têm
possibilitado a continuidade de famílias de agricultores familiares a permanecerem no meio
rural, através de atividades que agreguem valor à sua produção, a exemplo das agroindústrias
familiares rurais. (MIOR, 2005; PREZOTTO, 2002).
O escopo de análise deste artigo é a contextualização dos aspectos que revelam a
constituição da agricultura familiar na região oeste catarinense, destacando elementos
históricos desde o período imediatamente anterior à colonização, as transformações e
mudanças decorrentes da modernização agrícola e o consequente surgimento de alternativas
de agregação de valor à pequena produção primária. O objetivo é traçar a relação entre o
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contexto histórico de ocupação dessa região e a criação de novas estratégias produtivas para a
agricultura familiar, bem como apontar para os principais desafios de sustentabilidade dessas
iniciativas para a reprodução social das famílias de pequenos agricultores.
Metodologicamente se caracteriza como um ensaio teórico, tendo como base uma
revisão bibliográfica. Tal exercício não pretende esgotar o assunto, por não se tratar de “um
estado da arte”, tampouco pretende trazer conclusões definitivas sobre a problemática
proposta, mas de forma reflexiva elencar aspectos que possam elucidar e contribuir para
compreender uma determinada realidade de forma qualitativa, sem pretensões de
generalizações. Nesse sentido, segundo Meneghetti (2011, p. 322) “(...) o ensaio valoriza
aspectos relacionados às mudanças qualitativas que ocorrem nos objetos ou fenômenos (...)”,
e nesse exercício reflexivo e crítico “Abre-se mão das simples classificações e quantificações
que possam criar categorias generalizáveis para o entendimento humano compartilhado”.
Em um primeiro momento, a reflexão trará elementos conceituais para
compreender a categoria de agricultura familiar em seus aspectos teóricos, empíricos,
históricos e políticos. Em relação ao processo de constituição desse segmento na região Oeste,
compartilhamos em uma perspectiva crítica com autores de que a “ocupação” da região pelos
migrantes vindos principalmente do Rio Grande do Sul, a partir da iniciativa do governo,
beneficiou principalmente as empresas colonizadoras, em detrimento de diferentes grupos
étnicos que já habitavam o território colonizado. Por outro lado, esse processo de colonização
constituiu um modelo de desenvolvimento para a região, a partir dos anos 1960, voltado para
a modernização da agricultura, tendo como base econômica principalmente atividades de
transformação de bens primários através da agroindustrialização convencional, por meio da
integração verticalizada.
Do ponto de vista da lógica produtiva e econômica, uma das mais importantes
características da região oeste é a presença das agroindústrias de suínos e aves, constituindo-
se numa das maiores regiões produtoras de carnes do país. Por outro lado, e
concomitantemente a esse modelo de verticalização da produção, a região tem nas
Agroindústrias Familiares Rurais - AFR (MIOR, 2005), uma base econômica histórica
importante de resistência e estratégia de reprodução social dos agricultores familiares.
Dessa análise, ficam evidentes aspectos que foram decisivos para o predomínio de
uma determinada lógica econômica, que transformou os diferentes modos de agricultura
tradicionais existentes, praticados por vários grupos étnicos. O processo de colonização já se
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constituiu em uma forma seletiva e excludente das práticas agrícolas tradicionais de
populações indígenas e caboclas que viviam na região. Por outro, a agroindustrialização
convencional, instituída com a modernização agrícola, culminou também em um rompimento
das formas tradicionais de produção, principalmente dos camponeses familiares descendentes
de europeus que em grande número foram incorporados ao sistema de integração de suínos e
aves e que, a partir de meados dos anos 1980, passaram por um processo de seleção e
exclusão. Essa situação apontou para a luta dos agricultores marginalizados por terra, direitos,
inclusão, e os reflexos da busca por alternativas no quadro atual da região, aspectos que serão
tratados na sequência. A fim de compreender a constituição da agricultura familiar na região,
cabe inicialmente relativizar a respeito dessa categoria que tem se apresentado historicamente
e socialmente de maneira heterogênea, no que diz respeito às suas formas produtivas e
econômicas, bem como às suas ações coletivas e políticas.
Embora em nossa análise não abordemos casos específicos do ponto de vista de
uma pesquisa empírica, cabe destacar que em se tratando de um exercício de reflexão teórica,
não se pretende evidenciar a complexidade presente em uma região. Porém, para esta
reflexão, optou-se por problematizar um dos aspectos que têm caracterizado o universo da
agricultura familiar, a partir das alternativas de agregação de valor construídas em torno das
agroindústrias familiares rurais. Esse recorte remete a uma forma de pensar de que maneira
determinados atores sociais da agricultura familiar têm se organizado para se contrapor ao
modelo de desenvolvimento econômico hegemônico que se consolidou na região. Entretanto,
essa forma não esgota outros processos de dominação e de resistência vivenciados e
construídos por diferentes grupos étnico-culturais no passado e na atualidade.
De acordo com Marcon (2006), nas pesquisas regionais não podemos
desconsiderar as contradições, conflitos e a constituição das várias identidades existentes.
Nesse sentido, afirma que, “Novas pesquisas devem avançar essas discussões buscando
aprofundar os elementos próprios dos grupos e classes presentes na região, não de forma
isolada, mas no contexto das relações mais amplas com o estado e país” (Idem, p. 12),
enfatizando que,
Aprender essas tensões e contradições é possível na medida em que os referenciais teóricos conseguem dar conta das particularidades de cada cultura e de cada grupo étnico-cultural, mas também das relações que esses grupos construíram historicamente e estabelecem no contexto atual. (MARCON, 2006, p.13).
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Diante dessas reflexões, corroboramos com a ideia do autor de que ainda são
muitos os desafios e possibilidades de pesquisas sobre a região oeste de Santa Catarina que
envolvam os diferentes grupos étnicos e, mais do que isso, que envolvam os processos e
dinâmicas econômicas, sociais e culturais entre grupos, organizações sociais, empresas,
objetivando identificar não somente as relações de poder, mas também as diferentes
configurações e formas organizativas em torno do universo da agricultura familiar na
atualidade.
Agricultura familiar enquanto uma categoria de análise empírica
É importante ressaltar que a concepção de agricultura familiar não é tão recente e
que tampouco substituiu a de campesinato. De acordo com Wanderley (1999, p.25):
A agricultura camponesa tradicional vem a ser uma das formas sociais de agricultura familiar, uma vez que se funda sobre a relação entre propriedade, trabalho e família. No entanto, ela tem particularidades que a especificam no interior do conjunto maior da agricultura familiar e que dizem respeito aos objetivos da atividade econômica, às experiências de sociabilidade e à forma de sua inserção na sociedade global.
Segundo a autora, o que tem diferenciado o uso da categoria nos últimos anos no
Brasil, têm sido o significado e a abrangência que lhe estão atribuindo. Tem se falado de
agricultura familiar “como um novo personagem, diferente do camponês tradicional, que teria
assumido sua condição de produtor moderno; propõem-se políticas para estimulá-los fundadas
em tipologias que se baseiam em uma viabilidade econômica e social diferenciada”. Quando se fala em produtor moderno no âmbito da discussão da agricultura familiar é importante ressaltar que esta condição pressupõe a inserção do pequeno produtor no mercado, e não necessariamente a concordância com todas as regras impostas pelo mercado econômico convencional. Neste sentido, a noção de moderno refere-se à condição em que este produtor se encontra hoje diante do mercado e das novas tecnologias, o que não significa um rompimento total com seus valores mais tradicionais em sua condição também de camponês. (WANDERLEY, 1999, p. 24).
O uso da categoria sociológica de agricultores familiares é importante na medida
em que delimita sujeitos, famílias de agricultores e também espaços específicos de produção,
bem como universos onde se estabelecem relações com os agentes externos. Porém este uso
não impossibilita a apreensão de categorias “nativas” que envolvem representações e
identidades diversas pautadas sobre valores sociais, culturais e étnicos que extrapolam a
condição apenas econômica e produtiva. Em outros termos, a condição social e econômica
destes agricultores em muitos aspectos é pautada por universos socioculturais diferenciados e
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específicos, ao mesmo tempo que, em maior ou menor grau, compartilham como base comum
os já referidos aspectos.
Segundo Wanderley (1998) os estudos existentes a respeito da agricultura familiar
no Brasil apresentam diversas concepções sobre esse segmento social. Porém existem
questões centrais que organizam esta produção intelectual. A primeira delas é reconhecer a
existência histórica do campesinato no Brasil, constituindo-se a literatura sobre este registro,
referências clássicas para a reconstrução e análise da própria história agrária brasileira.3
Dentro desta perspectiva, existem muitas pesquisas que buscaram analisar as formas
tradicionais de produção e reprodução do campesinato brasileiro. Grande parte destas
pesquisas destacou-se até os anos 80, sendo que posteriormente novos termos e conceitos
foram sendo incorporados às discussões teóricas.
A segunda questão situa as discussões sobre a agricultura diante do intenso
processo de modernização da sociedade, de um modo geral, e do setor agrícola, em particular.
Para a autora, de certa forma em todos os países, a modernização da agricultura e do meio
rural se efetuou a partir da transformação da agricultura camponesa tradicional: a persistência
do campesinato, sua diferenciação social, suas novas sociabilidades. No Brasil, a partir da
década de 70, os trabalhos passaram a enfatizar o conceito de “pequena produção”e sua
participação na produção geral da agricultura no país. 4
Ainda de acordo com a autora, os estudos sobre agricultura familiar, a partir dos
anos 90, passaram a se ocupar da diversidade de situações empíricas e processos que
envolvem os diferentes sujeitos e grupos sociais envolvidos com a questão. A preocupação
não se centra mais somente nos modos de produção e nos aspectos que caracterizam a
organização interna das unidades familiares. A agricultura familiar passou a ser pensada em
diferentes contextos que envolvem questões referentes aos movimentos de migração, ao
crescimento do êxodo rural, à significação das fronteiras agrícolas, à ampliação das atividades
3Wanderley (1999, p.37-52) realiza algumas reflexões sobre a história do campesinato no Brasil, principalmente a partir de três pontos: as lutas por um espaço produtivo, a constituição do patrimônio familiar e pela estruturação do estabelecimento como um espaço de trabalho da família. 4José Graziano da Silva (1978) delimitou este termo a partir de uma pesquisa onde analisou a contribuição dos estabelecimentos com até 50 hectares, onde se presumia que estivesse concentrada a agricultura camponesa, que contribuia significativamente para o abastecimento interno do país, particularmente a partir de produtos alimentares. (apud, Wanderley, 1998, p. 28)
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rurais em sua relação com a produção mercantil, às motivações e estratégias dos indivíduos,
famílias e grupos sociais envolvidos com a luta pela terra e à reprodução social camponesa.
A reprodução da agricultura familiar, sobretudo num país com uma história de
conflitos como a do Brasil, sempre esteve associada às lutas dos próprios agricultores. Porém
em contextos específicos, as políticas agrícolas foram definidoras em processos de
colonização e ocupação de determinadas regiões. Neste sentido o papel do Estado, constitui
um agente de principal importância, cuja atuação se orientou ora no sentido da exclusão
econômica e social de parcelas importantes da população camponesa, ora no sentido inverso,
de inserção de outras parcelas, ora ainda com objetivos clientelísticos através de medidas
assistencialistas, em muitos casos meras reprodutoras da miséria rural e urbana.
(WANDERLEY, 1998).
Por outro lado, de acordo com Medeiros (1997, p.70), referindo-se à relação entre
agricultura familiar e organização sindical afirma:
É somente nos anos 90, no entanto que o termo “agricultura familiar” começou a ganhar terreno nos documentos sindicais e, pouco a pouco, se impôs para designar determinadas situações que recobriam o que antes aparecia como próprias ao “pequeno produtor”. É difícil, sem um aprofundamento investigativo, avaliar o peso que o debate acadêmico e as pesquisas encomendadas pela FAO (com sua legitimidade como parâmetro para as políticas públicas) tiveram nessa adoção, principalmente quando se consideram a, cada vez mais intensa, circularidade de conhecimento na sociedade e a capacidade dele intervir nos processos sociais. O termo passa a recobrir uma diversidade de novas identidades sociais e políticas que se constituíram nos últimos 15 ou 20 anos [...].
Diante desta diversidade de situações, pode-se afirmar que a agricultura familiar,
“é ampla o suficiente para incorporar as mais diversas formas de tratamento da questão
tecnológica, de relações com mercados e com as agroindústrias e de alternativas organizativas
disponíveis”. (MEDEIROS, 1997, p. 65).
Abramovay (1999) também se pergunta como caracterizar a agricultura familiar
dentro da sua própria diversidade e de um “mundo em transformação”, afirmando que ela não
é apenas um setor econômico, mas é também um valor. Sua virtude é juntar eficiência,
economia e equidade social. Para o autor, “las oportunidades de desarrollo de las familias
rurales dependen más del tipo de mercado y del ambiente institucional em que son
constituidos los mercados em que se insertan, que de los setores (agricola e servicios) em que
se basa esta insercion” (idem, p. 13).
Pensar o agricultor familiar no âmbito da dimensão familiar e das atividades
produtivas requer não somente um processo analítico, mas principalmente, uma reflexão que
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problematize aspectos que se vinculem às novas exigências da sociedade. (ABRAMOVAY,
1999). Nesse sentido, a agricultura familiar tem apresentado questões que dizem respeito à
relação da unidade familiar com vínculos externos cada vez mais presentes, seja nas relações
de trabalho, nas relações de mercado, nas formas alternativas de se organizar e se viabilizar
economicamente e socialmente – através de grupos, associações, cooperativas familiares,
delimitando com isso um espaço que tem buscado se contrapor às formas de organização da
produção centradas exclusivamente nas unidades familiares e nas técnicas com base em um
“modelo produtivista”.
Apesar da diversidade de situações que podem ser verificadas empiricamente na
agricultura familiar, segundo Lamarche (1993), uma definição que possibilita uma
aproximação entre as diferentes formas conceituais e empíricas é a de “exploração
familiar”.Conforme o autor, a exploração familiar corresponde a uma unidade de produção
agrícola onde propriedade e trabalho está intimamente ligado à família. A interdependência
desses três fatores no funcionamento da exploração engendra necessariamente noções mais
abstratas e complexas, tais como a transmissão do patrimônio e a reprodução da exploração.
Estes três aspectos inter-relacionados constituem a base da formação sócio-
econômica e cultural no universo agropecuário da região Oeste Catarinense. Embora
transformações e mudanças tenham ocorrido neste universo, grande parte da produção
econômica e da reprodução social de agricultores familiares depende significativamente da
relação entre estes fatores. Por outro lado, é possível pensá-los também em termos culturais,
levando-se em conta que, como propõe Woortmann (1990), em menor ou maior grau, esses
três aspectos (terra, trabalho e família) adquirem também uma dimensão valorativa dando
conformidade a um aproximativo “ethos camponês”, ou a certa campesinidade.
Por exemplo, a literatura regional, sob um ponto de vista histórico oficial, tem
caracterizado a região Oeste como um universo onde haveria a predominância de
descendentes de europeus, principalmente italianos e alemães. Entretanto, alguns trabalhos5,
têm procurado relativizar este ponto de vista, mostrando outras faces da história no que diz
respeito à sua diversidade social, econômica e étnica. Estes mesmos estudos buscam mostrar
os processos nos quais determinados grupos étnicos têm procurado se sobrepor a outros,
5 Trabalhos que tratam sobre os caboclos ou brasileiros em Santa Catarina e no Oeste Catarinense, Renk (1991,
2006); Poli, J (1991); Paulilo (1994); Auras (1995); Santos, S C dos (1995); Bloemer, N. (2000)
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principalmente no que diz respeito à forma como os agricultores se identificam e são
identificados. No caso da Região Oeste Catarinense, a maior parte dos agricultores familiares
é identificada pela literatura, bem como pelos “outros”, como colonos, ou seja, os
descendentes de europeus, que se contrapõem à categoria dos chamados caboclos ou
brasileiros.6
Assim, Renk (2000) demonstra não haver uma homogeneidade de designação para
o agricultor familiar, principalmente no que diz respeito ao jogo de identidades que é
estabelecido nas relações públicas com outros agentes, mesmo entre aqueles que se
denominam enquanto colonos. Entre os colonos, as suas representações apresentam várias
faces, que vão desde uma representação positiva da categoria, que seria a face pública da
história, conhecida e reconhecida enquanto história oficial e utilitária dos de origem; até uma
representação atual em uma situação onde a condição do colono é vista como subalterna,
quando pensada em relação aos outros, em relação, por exemplo, à cidade. A autora vai
demonstrar como em situações de crise e de mudanças no universo rural do Oeste Catarinense
ocorrem alterações nas percepções e representações dos colonos sobre sua própria condição.
As transformações da agricultura na Região Oeste
Há pouco mais de um século, a grande região oeste, ainda conhecida como
campos de Palmas, era considerada um vasto vazio demográfico. Semi-isolada do restante do
país, era habitada por grupos étnicos formados principalmente por caingangues e caboclos.
Isoladamente e nas pequenas povoações resultantes do tropeirismo, praticavam-se
basicamente atividades de subsistência. Nesses locais não havia grandes preocupações com
questões como títulos de propriedade das terras, ou produção de excedente para
comercialização. (RADIN, 2003; BAVARESCO, 2005; RENK, 2006).
Mudanças significativas começaram a ocorrer a partir da construção, neste
território, da ferrovia São Paulo – Rio Grande, cujo objetivo era justamente expandir o
desenvolvimento e a lógica mercantil do início da República, além de servir para o
deslocamento de tropas ao sul, em caso de necessidade. Com o acordo assinado entre o
governo brasileiro e o empresário americano Percival Farquhar, 15 quilômetros de cada lado
da ferrovia passaram a ser propriedade da construtora. Esta, logo instalou uma grande serraria
6 Esta diferenciação é tratada principalmente por Renk (1991, 2000, 2006) e por Bloemer, N (2000).
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na região e iniciou a exploração da madeira. Por não possuírem documentos que
comprovassem a propriedade das terras, milhares de posseiros camponeses foram expulsos
das áreas de onde tiravam o seu sustento. Estabeleceram-se assim as condições chave para a
eclosão de um dos maiores conflitos armados da história do Brasil, cujo nome Guerra do
Contestado é atribuído por ocorrer numa área que estava em disputa territorial entre os
estados de Santa Catarina e Paraná. (RADIN, 2003; VALENTINI, 2012).
A Guerra do Contestado representou o início do processo de instauração de um
novo modo de vida na região, baseado no sistema de acumulação de capitais e na propriedade
privada. O modelo de subsistência dos caboclos não era adequado aos ideais visionários das
oligarquias e do governo que, aproveitando-se do que regia a Lei das Terras, segundo a qual a
simples posse não significava a propriedade, promoveram uma verdadeira limpeza na região.
Conforme assevera Radin (2003, p. 29) “(...) as forças oficiais, utilizando-se de um enorme
aparato militar, promoveram uma espécie de limpeza na região dos elementos conhecidos
pejorativamente como bugres, negros, fanáticos, sertanejos, intrusos, entre outras
atribuições.”.
Após a resolução do conflito e a pactuação entre os governos sobre os limites
territoriais, coube ao estado catarinense o efetivo domínio sobre a região e a responsabilidade
pela sua ocupação definitiva, levando o “progresso” e o “desenvolvimento” em toda a sua
extensão. Nesse intento, em 1917, foram criados na região os municípios de Cruzeiro (atual
Joaçaba) e Chapecó. No entanto,
Mesmo após a emancipação político-administrativa de Chapecó e Cruzeiro (...), a Região Oeste de Santa Catarina era considerada praticamente “despovoada”, pois os indígenas e caboclos, por possuírem modos de vida diferente, não produzir excedentes para comercialização, e não possuir títulos de propriedade eram desconsiderados pelas autoridades. (PAIM, 2006, p. 125).
A estratégia adotada pelo governo para a ocupação da região, de modo a garantir a
instauração definitiva do sistema desenvolvimentista da época foi aconcessão de imensas
glebas de terra a empresas colonizadoras, a quem coube a tarefa de buscar gentes específicas,
com experiência na prática da agricultura, a maioria descendentes de italianos, alemães e
poloneses, para se instalarem nesse território. Na visão dos empreendedores das
colonizadoras, os migrantes vindos do Rio Grande do Sul para o Oeste de Santa Catarina já
tinham um acúmulo em torno de práticas agrícolas e de comercialização consideradas
superiores para o desenvolvimento econômico da região, diferentes daquelas realizadas pelos
outros grupos étnicos que habitavam esse território. (RADIN, 2003; BAVARESCO, 2005).
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Quanto aos caboclos e indígenas, nenhum direito lhes foi assegurado:
Os colonos que compravam as terras no Oeste Catarinense queriam que elas estivessem limpas, ou seja, sem moradores. Para a limpeza da terra os caboclos e os poucos indígenas que ainda viviam foram expulsos de suas terras, pois eram considerados improdutivos. Esses povos, ou foram sendo empurrados para áreas distantes nas matas, ou foram para as cidades, quando não foram literalmente eliminados. (PAIM, 2006, p. 125).
O novo sistema produtivo que se instalou a partir da colonização era baseado na
pequena propriedade. De acordo com Radin (2003), acreditava-se que os minifúndios se
constituiriam numa estratégia de maior alcance social. A mão-de-obra era essencialmente
familiar e se produziam diversos alimentos, principalmente milho e feijão. Com solos mais
férteis do que nas colônias velhas do Rio Grande do Sul, de onde vieram a grande maioria dos
colonos, os excedentes de produção que não eram comercializados motivaram a criação de
animais, especialmente suínos. No entanto, logo a produção de suínos também passou a gerar
excedente, o que estimulou, apesar das precárias e quase inexistentes estradas, sua
comercialização para regiões mais distantes, como Curitiba e São Paulo. (RADIN, 2003;
PAIM 2006).
Em meio às dificuldades encontradas pelo isolamento em relação às outras
regiões, tanto para a compra de insumos e bens de consumo como para o escoamento da
produção, e já acostumados com atividades colaborativas, os colonos desenvolviam muitas
práticas associativas, tanto nas questões comunitárias, como por exemplo a construção e
conservação da igreja, como nas atividades agrícolas, fazendo mutirões, troca de dias de
trabalho e também a troca de produtos e animais. (POLI, 2002). Viebrantz (2008, p. 143)
destaca que as trocas e a solidariedade entre vizinhos eram práticas frequentes:
Abater uma rês e distribuir a carne entre os vizinhos significava a certeza de retorno de outro pedaço de carne quando aquele matasse um animal. Ou seja, o princípio da reciprocidade supria, em parte, as carências e ausências do Estado. A vida inóspita levava à formação de comunidades, centrando esforços para superar adversidades.
O processo de colonização foi intensificado a partir de 1940, sendo vigoroso até
1970, quando o fechamento da fronteira agrícola já se tornava evidente, em decorrência do
esgotamento de novas áreas para cultivo. Além de a região possuir relevo acidentado, com
muitas áreas desfavoráveis para o cultivo, contribuíram para essa estagnação os processos
sucessórios que acarretaram a fragmentação das propriedades (SCHUBERT e NIEDERLE,
2009). A minifundização resultou em unidades com pequenos espaços agricultáveis e, em
muitos casos, insuficientes para a manutenção da família.
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Para Plein (2006), além do tamanho cada vez menor das propriedades, decorrente
do sistema de herança por partilha, o esgotamento do solo pelo modo colonial de produção
ocasionou ambiente favorável à adoção de técnicas de intensificação do uso da terra, com a
implementação do pacote tecnológico trazido pelo processo de modernização agrícola, a partir
de meados da década de 1960.
A modernização, representada na figura da Revolução Verde (1965 – 1985),
trouxe significativos avanços para a agricultura regional e também brasileira, já que foi um
processo de ordem nacional, com grande financiamento estatal e ávido investimento da
iniciativa privada. Com a proposta de aumentar a produtividade no campo, o próprio Estado
atuou fortemente na implantação de políticas conjunturais e estruturais, estimulando a adoção
de práticas agrícolas inovadoras, como o emprego intensivo de fertilizantes e defensivos e a
mecanização das lavouras. Os principais instrumentos foram (i) a pesquisa agropecuária e a
extensão rural, para criar tecnologias e leva-las até o agricultor, (ii) o crédito agrícola, para
financiar a adoção da tecnologia pelo agricultor, (iii) a política de preços mínimos, garantindo
teoricamente um preço adequado para a produção, e (iv) o seguro agrícola, para assegurar o
pagamento dos empréstimos. (PLEIN, 2006; VIEBRANTZ, 2008)
De acordo com Rover (2009), o processo de modernização da agricultura integrou
a região oeste catarinense à política desenvolvimentista nacional, período em que se
constituíram cooperativas e agroindústrias de grande porte e se disseminou um sistema capilar
de integração entre estas e agricultores familiares, com elevada dependência de crédito
subsidiado e de políticas forjadas em escala estadual e federal. O endividamento em prol da
modernização agrícola trouxe uma série de efeitos colaterais que constituíram uma profunda
crise conjuntural a partir dos anos 1980.
A agricultura na região oeste de Santa Catarina passou rapidamente do modo
colonial, em que era autônoma, para o formato de agricultura familiar dependente do
mercado. Esse processo de mercantilização foi extremamente seletivo, com maior valorização
dos produtos voltados à exportação, como as commodities. Ao mesmo tempo, as
agroindústrias instaladas na região passaram a adotar a estratégia de concentração da
produção e sua intensificação nas propriedades rurais mais estruturadas. (PLEIN, 2006).
O sistema de integração implantado pelas agroindústrias modificou rapidamente o
modo de produção de suínos e aves na região. Conforme destaca Paim (2006), nesse sistema é
realizada uma parceria entre o produtor e a agroindústria, onde o primeiro entra com as
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instalações em sua propriedade e a mão-de-obra, enquanto a agroindústria fornece os animais
(frangos ou suínos), a ração e a assistência técnica para a produção dos lotes que são abatidos
nos frigoríficos no prazo estabelecido, sendo a remuneração ao produtor calculada de acordo
com os resultados técnicos atingidos, como peso e conversão alimentar. “Através deste
modelo de produção, a empresa consegue preestabelecer os padrões na produção e ainda
manter sob o seu controle ideológico e econômico o produtor, estabelecendo uma relação de
dependência agricultor/empresa” (ALBA, 1998, p. 29).
As novas formas de produzir mudaram completamente as relações entre
produtores e agroindústrias. Os agricultores, que antes possuíam autonomia na produção de
seus animais, passaram a ter que se sujeitar às determinações da indústria: como, quando,
quantos e quais animais criar. Dentre as mudanças, ocorreu a introdução de novas raças de
suínos: Duroc Jersy, importados dos EUA e Large White e Landrassen, importados da
Europa. Comparadas às raças comuns existentes na região, as novas raças possuíam um
padrão genético mais produtivo e que melhor atendia as demandas do mercado. (PAIM,
2006).
Apesar da resistência de muitos agricultores, as agroindústrias foram impositivas
na implantação dos novos padrões de produção. O não atendimento das regras significava o
fim da parceria entre produtor e agroindústria. Se num primeiro momento a estratégia das
agroindústrias era incorporar o maior número possível de produtores autônomos ao seu
sistema integrado, de modo a assegurar o fornecimento de suínos para os seus frigoríficos, a
partir dos anos 1980 a política passou a ser a intensificação da produção. Não somente no
caso dos suinocultores, mas a agricultura familiar como um todo passou por um processo de
diminuição da diversificação produtiva, especializando-se em determinada atividade voltada
essencialmente para o mercado, dele tornando-se muito dependente.
A verticalização da produção, sua intensificação e concentração, proporcionaram
a exclusão de milhares de famílias de pequenos agricultores do sistema produtivo, o que
aumentou expressivamente a diferenciação econômica no campo. Intensificou-se o êxodo
rural e mostrou-se evidente a necessidade do desenvolvimento de novas formas de
viabilização econômica e reprodução social das famílias de pequenos agricultores na região.
(TESTA et al, 2003; PLEIN, 2006; BADALOTTI et al, 2007).
A exclusão de muitas famílias de colonos descapitalizados, junto aos já
marginalizados caboclos e indígenas, somada às impiedosas políticas e estratégias utilizadas
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pelo governo para submeter essas classes à hegemonia do sistema desenvolvimentista
imposto, levou ao surgimento dos primeiros Movimentos Sociais organizados, em pleno
regime militar. Paim (2006) destaca a criação do Movimento das Mulheres Agricultoras
(MMA) atual Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) e do Movimento do Atingidos
por Barragens (MAB), além da constituição e fortalecimento do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), com vínculos a outras regiões do Brasil, mas
organizado nessa região pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). São movimentos que surgem
em meio a um contexto de sérias crises da agricultura e que contribuem na mobilização e na
criação de alternativas de organização e de geração de renda aos pequenos agricultores e, mais
tarde, na criação de políticas públicas específicas.
A força dos movimentos sociais e das entidades criadas para a representação e
sindicalização dos agricultores surtiu efeito e o termo agricultura familiar ganhou força
enquanto uma categoria política. Em 1996 foi criado o Programa Nacional de Fortalecimento
da Agricultura Familiar (PRONAF)7, com vistas a viabilizar essa faixa de agricultores para
assegurar sua rentabilidade e o abastecimento do mercado interno com alimentos saudáveis e
baratos (BRUM, 1999). Para Schneider (2009), a criação do PRONAF representa a
legitimação da agricultura familiar no Brasil. Foi uma resposta do Estado às pressões dos
movimentos representativos, criando um programa com a finalidade de prover crédito
agrícola e apoio institucional a essa categoria de agricultores.
Na mesma época ocorreu também a criação do Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA), com a função de implementar políticas de reforma agrária e zelar pela
perenidade da agricultura familiar (FILIPPI, 2009). Todavia, logo ficou evidente a enorme
distância estratégica e socioeconômica entre os segmentos patronal (capitalista) e familiar no
setor primário brasileiro, a partir da divisão de competências e estratégias dos dois ministérios
da área agrícola: o recém-criado MDA e o tradicional Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA), que passou a se encarregar exclusivamente da promoção de políticas
de dinamização do agronegócio e do fluxo de exportações de produtos agrícolas.
A partir desse novo quadro, em que a agricultura familiar é reconhecida pelo
governo federal como um importante segmento para o desenvolvimento da nação,
7Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006. Estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais.
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especialmente em termos de produção de alimentos para o consumo dos brasileiros e de
emprego de mão-de-obra rural, começam a serem implementadas as primeiras políticas
públicas voltadas à viabilização da produção em pequena escala.
A agroindústria familiar rural
Entre tantos processos de crise, nos diversos ciclos econômicos da região Oeste de
SC, milhares de famílias de pequenos agricultores tiveram que buscar alternativas para a sua
sobrevivência. Muitos migraram para outras regiões, onde novas fronteiras agrícolas estavam
sendo exploradas. Outros saíram para tentar a vida nas cidades, em profissões diversas,
mesmo com pouco estudo. Outros, ainda, continuaram residindo e resistindo no campo.
Dentre as alternativas encontradas por estes para sua sobrevivência, destacam-se a
pluriatividade e a agregação de valor à sua produção primária.
A pluriatividade é o fenômeno através do qual um ou mais membros de uma
família que habita no meio rural optam pelo exercício de atividades não agrícolas “mantendo
a moradia no campo e uma ligação, inclusive produtiva, com a agricultura e a vida no espaço
rural” (SCHNEIDER, 2003, p 112). Já a agregação de valor à produção, por sua vez, se dá
principalmente por meio da agroindustrialização:
Uma das funções que algumas unidades desenvolveram foi a agroindustrialização da produção primária, trazendo novas características à agricultura familiar. Isso porque, os domicílios com o beneficiamento da produção para venda apontaram para uma maior diversificação das atividades, inclusive de subprodutos agroindustrializados, e a consequente diferenciação da produção através da agregação de valor às mercadorias.(WESZ-JUNIOR, 2009, p. 33).
Agroindústria familiar rural (AFR) é uma forma de organização em que a família
rural produz, processa e/ou transforma parte de sua produção visando, sobretudo, a obter
maior valor na comercialização. Mior (2005) afirma que a AFR localiza-se no meio rural,
utiliza máquinas e equipamentos de menores escalas, emprega mão-de-obra e processa
matéria prima da própria unidade ou de vizinhos, remetendo geralmente a um produto
artesanal.
A maioria das AFRs iniciam suas atividades informalmente, a partir da
necessidade de vender no mercado os produtos coloniais que seriam destinados ao
autoconsumo para, dessa forma, complementar a renda da propriedade.
Assim, na medida em que passam a ter um mercado maior para seus produtos, os agricultores aumentam a escala de produção, acompanhando a demanda e somente depois de ter o seu mercado já construído, com uma demanda suficiente para
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viabilizar o empreendimento técnica e economicamente é que fazem os investimentos necessários para se formalizar. Portanto, mesmo para aquelas iniciativas já formalizadas pode-se afirmar que, se estes agricultores não tivessem passado pelo mercado informal, a absoluta maioria deles não estaria nesta atividade. (DORIGON, 2010, p. 6-7)
A formalização dessas iniciativas, assim como o suporte e a orientação técnica
contou com o apoio de entidades criadas e conduzidas pelos próprios agricultores com o fim
de apreender e canalizar o conhecimento necessário para a viabilização dos empreendimentos.
É o caso da Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense (APACO), criada
em 1989 por pequenos agricultores da região, apoiados por diversos atores e movimentos
sociais, que é uma das referências em experiências organizativas de associativismo e
cooperativismo na agricultura familiar.
Para enquadrar-se às normas para a comercialização da produção, as associações
formaram as primeiras cooperativas alternativas de produção e comercialização de produtos
da agricultura familiar. Dessa forma, seus abatedouros, queijarias, panificadoras, moinhos,
estavam aptos a realizar a venda direta aos mercados, com emissão de nota fiscal e
contabilidade, enquanto os proprietários desses empreendimentos mantiveram a
caracterização de atividade rural, preservando a condição de segurado especial da previdência
social.
Um dos maiores desafios que está colocado frente às AFRs atualmente é ampliar o
mercado consumidor para os seus produtos. Esse desafio torna-se mais evidente ao considerar
que a região Oeste é predominantemente constituída por pequenos municípios com forte
relação entre a cidade e o campo, onde é grande a presença da agricultura familiar.
Consequentemente, há nesses municípios grande oferta de produtos coloniais para uma
limitada demanda, ficando clara a necessidade de abrir mercado em centros consumidores
maiores. Entretanto, comercializar itens produzidos em pequena quantidade para regiões
distantes pode tornar o negócio insustentável.
Para dar conta dessa necessidade, os próprios agricultores, por intermédio da
APACO e com o envolvimento de outros atores sociais, articularam-se em redes de maior
alcance e criaram a Cooperativa Central Sabor Colonial, que reúne diversas cooperativas
singulares, de vários municípios, com amplo mix de produtos da agricultura familiar, de
variadas cadeias produtivas. Essa nova organização representa a consolidação de diversas
iniciativas desenvolvidas ao longo das últimas décadas em termos de cooperação agrícola,
associativismo, economia solidária, agroecologia e comercialização regional de produtos com
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valor agregado da agricultura familiar. Seu propósito é estabelecer e coordenar meios de
organizar a produção e impulsionar a comercialização dos produtos da agricultura familiar, de
modo a assegurar a viabilidade dos empreendimentos, a sucessão e a reprodução social dos
agricultores familiares.
Considerações finais
A agroindústria familiar constitui-se numa alternativa importante para a
permanência de muitas famílias na agricultura através da sua (re)inserção no processo
produtivo de forma horizontalizada. Categorizadas como agroindústria rural de pequeno
porte e/ou artesanal emergente e/ou reconfigurada (MIOR, 2005), tais agroindústrias que em
sua estrutura social podem ser individuais ou coletivas, possuem uma trajetória advinda das
“competências artesanais da agroindústria colonial existente nas comunidades rurais” (idem,
p.262), bem como mais recentemente promovidas por políticas públicas, a exemplo do
PRONAF, agências públicas, ONGs e movimentos sociais.
Nesse sentido, constata-se uma tendência na agricultura familiar em que a
configuração das atividades produtivas mesclam atividades tradicionais e convencionais
(culturas agrícolas e integração às empresas) a atividades alternativas, como exemplo, as
agroindústrias familiares, as quais têm possibilitado intensificar o emprego da mão-de-obra
familiar e, principalmente, gerar produtos com maior valor agregado, contribuindo para a
renda da família e como forma de estímulo à permanência no meio rural, principalmente dos
mais jovens.
Por outro lado, devido ao permanente processo de intensificação e concentração
da produção, as grandes agroindústrias já não possuem a virtude de propiciar aos agricultores
familiares mais descapitalizados as condições para a sua permanência no campo. Seus
sistemas verticalizados têm levado significativo número de famílias à exclusão
socioeconômica. A essas famílias, restam poucos meios de garantir sua subsistência e
reprodução social.
Esse quadro tem sido constante na região Oeste de Santa Catarina, principalmente
a partir do contexto de modernização e mercantilização agrícola. Entretanto, outros processos
de exclusão de camponeses foram constituídos, antes e durante a colonização, onde os direitos
de posse dos caboclos e indígenas que viviam nessas terras foram totalmente ignorados pelos
coronéis e pelo próprio Estado, deixando-os à mercê das piores condições possíveis.
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O breve estudo realizado através deste ensaio buscou demonstrar que a
constituição da chamada agricultura familiar na região oeste deve ser compreendida a partir
de suas especificidades e particularidades históricas, políticas e culturais, apresentada em suas
diferentes facetas e formas de organização econômicas, políticas e sociais.
Ao buscar elementos conceituais para compreender a categoria de agricultura
familiar em seus aspectos teóricos, empíricos, históricos e políticos, partimos do pressuposto
de que o processo de constituição desse segmento na região, a partir da iniciativa do governo,
beneficiou principalmente as empresas colonizadoras, em detrimento de diferentes grupos
étnicos que já habitavam o território. Por outro lado, esse processo de colonização, constituiu
um modelo de desenvolvimento para a região a partir dos anos 60 voltado para a
modernização da agricultura, tendo como base econômica principalmente atividades de
transformação de bens primários através da agroindustrialização convencional, por meio da
integração verticalizada, a qual tem beneficiado principalmente as grandes agroindústrias, em
forma de conglomerados privados, que possuem uma trajetória histórica ligada à dinâmica dos
mercados nacional e globalizado. (MIOR, 2005)
Nesse sentido, contatamos que há nessa região uma relação histórica de
marginalização de categorias descapitalizadas, em favor de oligarquias e do setor empresarial
convencional com o apoio do Estado. Entretanto, identifica-se também, que principalmente a
partir dos anos 80, processos de resistência e organização política, gestados por movimentos
sociais e organizações da sociedade civil, constituem importantes espaços de busca de
alternativas para a viabilização e reprodução social de determinadas categorias de agricultores
familiares na região. A partir dos anos 2000, novas institucionalidades políticas e públicas
também passam a configurar o cenário do desenvolvimento rural na região a partir da
implementação de políticas públicas direcionadas à agricultura familiar, que têm possibilitado
minimamente a constituição de formas alternativas de produção e viabilização, entre as quais
buscamos destacar o papel das agroindústrias familiares rurais.
Finalmente, há que se adensar estudos e análises que possam diagnosticar e
sistematizar informações e dados a respeito dessas problemáticas na região oeste catarinense,
tendo em vista identificar as políticas e estratégias públicas e não-governamentais de
desenvolvimento rural, levando em consideração a diversidade de atores e redes, bem como
os alcances e limites desses processos.
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