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PARTE 01 JOEL SILVEIRA A milésima segunda noite da avenida Paulista e outras reportagens Posfácio Fernando Morais COMPANHIA DAS LETRAS Copyright @ 2003 by Joel Silveira Copyright do posfácio @ 2003 by Femando Morais Indicação editorial Flávio Pinheiro Ricardo A. Setti Capa João Baptista da Costa Aguiar Preparação Eugenio Vnci de Moraes Índice remissivo Todos os esforços foram feitos para determinar a origem das imagens reproduzidas neste livro. Nem sempre isso foi possível. Teremos prazer em creditar as fontes, caso se manifestem. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, sP, Brasil Silveira, Joel A milésima segunda noite da Avenida Paulista Joel Silveira; posfácio Fernando Morais. -São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ISBN 85-359-0405-0 1. Crônicas brasileiras 2. Jornalismo e literatura Repórteres e reportagens. I. Título. Literatura brasileira 869 93

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PARTE 01 JOEL SILVEIRA

A milésima segunda noite da avenida Paulista e outras reportagens

Posfácio Fernando Morais COMPANHIA DAS LETRAS

Copyright @ 2003 by Joel Silveira Copyright do posfácio @ 2003 by Femando Morais Indicação editorial

Flávio Pinheiro Ricardo A. Setti Capa João Baptista da Costa Aguiar

Preparação Eugenio Vnci de Moraes Índice remissivo

Todos os esforços foram feitos para determinar a origem das imagens reproduzidas neste livro. Nem sempre isso foi possível. Teremos prazer

em creditar as fontes, caso se manifestem.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Câmara Brasileira do Livro, sP, Brasil Silveira, Joel

A milésima segunda noite da Avenida Paulista Joel Silveira; posfácio Fernando Morais. -São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

ISBN 85-359-0405-0

1. Crônicas brasileiras 2. Jornalismo e literatura

Repórteres e reportagens. I. Título.

Literatura brasileira 869 93

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[2003] Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA

Telefone (11) 3707-3500 Fax (11) 3707-3501 www.companhiadasletras.com.br .

Sumário 1943: Eram assim os grã-finos em São Paulo 7 A milésima segunda noite da avenida Paulista 29 Agripino Grieco, 1943: "Vi Mussolini de perto, conversei com ele. Um palhaço' 39 Dezoito poetisas contra o mundo em chamas 51 Encontro com Chatô 59 As muitas guerras de Monteiro Lobato 75 Conversa franca com os bandidos de Lampião 89 Vida, prisões, glória e morte de Graciliano 99 Manuel Bandeira, 13 de março de 1966, em Teresópolis:

"Venham ver! A vaca está comendo as flores do Rodriguinho. Não vai sobrar uma. Que beleza!" 113 Nássara: a ciência de ser carioca 116 Portinari: "Sou o sujeito mais triste do universo:' 122 Dois instantes de João Cabral de MeIo Neto 131 Di Cavalcanti, pintor, poeta e mágico, pouco antes do fim 145 Paulo Mendes Campos: um erudito sem erudição 161

Gilberto Freyre: confissões em Apipucos 170 O anjo torto e o poeta radical 189 Posfácio A V1Dora está viva -Fernando Morais 197 lndice remissivo 207 1943: Eram assim os grã-finos em São Paulo Durante uma semana, fiquei atordoado com a vida elegante de São Paulo. Haviam me levado para algumas festas; primeiro um aperitivo, colorido e com pedaços de fruta dentro, depois uma carreira rápida de automóvel. Estive em jantares fascinantes. As mulheres, muito belas e perfumadas. Particularmente aquelas que puxam os cabelos para cima, num jeito que abandona aos nossos olhos as lindas nucas nuas. Durante uma tarde inteira, fiquei semideitado numa poltrona de um apartamento chique, no Centro da cidade. O dono era um rapaz que eu não conhecia e que possivelmente talvez ainda não saiba quem sou e o que fui lá fazer. Fui de mistura com outros, como penetra. Os rapazes se vestem muito bem e

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telefonam. Telefonam de cinco em cinco minutos e conversam com Lili, com Fifi, com Lelé. Recebem também telefonemas de Fifi, de Lili e de Lelé. Conversei longamente com um rapaz, inteligente e vivo, que eu conhecera de caminhadas pela Lapa e discussões de madrugada, aqui no Rio de Janeiro. Está irreconhecível. Fez roupas novas (o feitio de cada, me garantiu, não custa menos de um conto e duzentos), adquiriu novos hábitos. Um dos hábitos: conversar sobre os feitos da noite anterior na pista do Jequiti.

São Paulo sempre teve seu mundo de luxo, um mundo essencialmente grã-fino. É coisa que acontece com todas as cidades que enriquecem. A riqueza paulista, é sabido, vem de suas fábricas. Agora as fábricas estão trabalhando ainda mais, porque a guerra é exigente. Dia e noite, os motores não param. Há uma turma de operários que passa o dia inteiro diante dos motores. Quando chega a noite, a turma vai embora, muito cansada, e chega outra que se cansará até de madrugada.

A ÓPERA

Então, as cifras vão crescendo. A gente lê os relatórios, tão frios, conversa com homens ricos, olha para as vitrines onde as peles e os brilhantes são cada vez mais caros -e tudo isso nos está dizendo que São Paulo está cada vez mais rico. As mulheres compram as peles, compram os brilhantes, os homens jogam na Bolsa pequenas fortunas, jogam no Automóvel Club o dinheiro que ganharam hoje, que ganharão amanhã.

O dinheiro torna tudo belo: o mundo elegante de São Paulo, neste ano de 1943, está num dos seus momentos de maior esplendor. Há uma atmosfera de conforto em tudo: as mulheres, como as orquídeas que nascem de dezenas de enxertos, não poderão ser mais requintadas e preciosas. É como se fosse uma apoteose. Nas óperas a gente vê coisas mais ou menos semelhantes: o libreto vai, vai e, perto do fim, tudo se torna grande e maravilhoso. Depois a ópera acaba. O MAIOR DA AMÉRICA DO SUL

Um dia desses um rapaz paulista, faminto e desempregado, resolveu se matar. Subiu até o último andar do edifício Martinelli -pularia lá de cima. Mas a altura era enorme e o rapaz vacilou. Lá embaixo, impaciente e aflita, a multidão esperava que o rapaz se decidisse. Mas o rapaz resolveu não se matar. Os jornais anunciaram, se o rapaz pulasse, aquele seria o mais sensacional suicídio da América do Sul. O edifício de onde o rapaz ia saltar é o maior da América do Sul. Mas não o será dentro em breve: ao seu lado já está crescendo outro, que será maior do que o maior da América do Sul.

Há coisas muito estranhas em São Paulo: os cafés não têm cadeiras nem mesinhas, dessas onde a gente costuma sentar e conversar. O trânsito das ruas é dirigido por guardas rigorosos, como nas outras cidades importantes. E nas salas do Automóvel Club homens muito ricos jogam razoáveis fortunas, em alegres jogos de carta. Um financista de São Paulo, dono de várias fábricas e várias empresas, é

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homem sensível e inteligente, muito culto, que adora livros e faz versos. Seu rosto é cor-de-rosa, como o rosto das crianças. Seus cabelos estão alvos, porque a vida cheia de trabalho do milionário os fez assim. Mas não existe ódio nem raiva na voz do financista: ele conversa sobre livros, lê suas traduções de poemas clássicos e sua voz é suave e absorvente, como uma esponja. A FLOR

Mas os milionários são muitos. Raros são os milionários poetas em São Paulo, mas há muitos outros que não fazem ver- sos. Uma noite, no Jequiti-Bar, conheci alguns deles: o milionário Lafer, o milionário Pignatari, o milionário Matarazzo, o milionário Crespi. Era uma festa somente para milionários, e sobre todos aqueles sobrenomes repousava a força paulista de hoje. Por detrás dos sobrenomes, há um mundo incrível: centenas de fábricas, milhares de chaminés, milhares de motores, milhares de operários. Era um grupo terrível, avassalador. Com um gesto de mão, qualquer um deles poderia me aniquilar, me tanger longe, lá na rua. Mas os milionários apenas sorriam. Sorriam e bailavam com as mulheres, todas muito belas. Alguns daqueles homens, os pais de quase todos eles, haviam chegado pobres ao Brasil. Mas São Paulo os estava esperando, e hoje eles são donos das fábricas, das indústrias e dos lucros paulistas.

É noite e São Paulo rico está resumido ali na pista do Jequiti-Bar. Durante o dia, as mulheres fizeram coisas inúteis: acordaram tarde, almoçaram em bloco, jogaram pife-pafe, compraram a revista Sombra, tomaram chá na Livraria Jaraguá, jantaram na Papote e falaram das amigas.

Os homens ganharam dinheiro. Alguns não fizeram muito esforço para isso: apenas assinaram alguns papéis. Outros estiveram nas fábricas, conversaram com o gerente, telefonaram para o Rio. À tarde foram ao Automóvel Club, um lugar triste como um cemitério. Perderam algum dinheiro em jogos inocentes; mas o que perderam nem chega a representar uma humilde fração dos lucros que conquistaram durante o dia.

O Jequiti é o mar noturno onde todos se encontram. Um mar de felicidade onde todas as possíveis tristezas e decepções se diluem e se inutilizam. O "COIN DES BOUQUINS"

o chá na Jaraguá faz parte do ritual grã-fino. Lili não o dispensa. Zezé e Lelé fazem tudo, adiam tudo, mas não podem perder o chá na Jaraguá. O leitor, geralmente desprevenido, estará pensando, sem dúvida, que a Jaraguá é apenas uma casa de chá. Não. A Jaraguá também é livraria.

Um dos seus freqüentadores, aliás, me corrigiu: -A Jaraguá é uma livraria. Apenas nos fundos existe um lugar onde se pode tomar chá

e conversar sobre livros e quadros. A intenção -intenção de alguns artistas e escritores -era muito boa. Mas me parece

que o grã-finismo está estragando o plano. A verdade é que a Jaraguá, que os seus idealizadores planejavam tornar imprescindível no mundo artístico e cultural de São

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Paulo, é hoje, apenas, mais um ponto de reunião do grãfinismo, um ponto onde Fifi marca encontro com Lelé para falar mal de Zuzu.

Um dos autores do plano da Jaraguá me explicou: -Nós fizemos aqui o que existe na Inglaterra. Você sabe [eu não sabia] que em

Londres e outras cidades inglesas, principalmente Cambridge e Oxford, há o que se chama a "livraria com sala de chá". O objetivo dos ingleses, em Paris também existem muitas livrarias idênticas, é criar um ponto de reunião de artistas e intelectuais, enfim, um coin des bouquins, você sabe.

-O quê? -Um coin des bouquins como aquele de que fala Anatole France no M. Bergeret, que

encontrava os companheiros de prosa "chez M. Paillor, libraire, à enseigne de St. Margueritte". Outro objetivo da livraria é o de vender bons livros antigos e modernos, livros de arte, boas edições e encadernações. Depois o Léo Vaz, sempre cheio de idéias, sugeriu a Bolsa do Livro.

Em poucas palavras, a Bolsa do Livro é um pedaço de cartolina pregado numa parede da livraria. Um cavalheiro que tenha um livro raro para vender escreve o nome do livro e o preço na cartolina. Outro cavalheiro, que deseje adquirir uma raridade, faz a mesma coisa. Na tarde em que estive na Jaraguá, visitei a cartolina: o lado das preciosidades ofertadas estava repleto.

o SOBRENOME

Além do "quarto grupo" grã-fino, o grupo de Alfredo Mesquita e Roberto Moreira, existem outros três grupos, cada qual com suas características próprias. O primeiro grupo é formado pelos grã-finos de pedigree, os tais paulistas de quatrocentos anos, e representa o pináculo do grã-finismo. São criaturas repletas de antepassados, aqueles senhores heróicos e sem muitos escrúpulos que rasgaram as matas de São Paulo, vadearam os rios, descobriram as montanhas e fizeram as primeiras cidades. Morreram todos, estão enterrados na história, mas deixaram aos seus descendentes um presente régio: deixaram um cartão de visita, espécie de permanente com o qual um Prado, um Leme e um Alves Lima podem entrar em tudo sem pagar nada.

Podemos citar alguns nomes femininos, os mais requintados e sugestivos, que formam a geléia grã-fina paulista: as Alves Lima, sras. Nélia, Bebé, Vera e Stela, e as sras. Fifi Assunção, Iolanda Penteado, Carminha da Silva Teles, Marjorie da Silva Prado, Belinha Sodré, Alice Mendonça e muitas outras. Em qualquer festa de importância, podemos encontrar todas elas, um grupo à parte, impermeáveis como se estivessem enroladas em papel celofane.

Cintilantes de jóias, as senhoras do segundo grupo, o grupo "reserva", têm olhos derramados sobre a gente de pedi- gree. É o grupo das filhas dos italianos ricos, o grupo de d. Odete Matarazzo, d. Débora Zampari, d. Rose Frontini, d. Irene Crespi, d. Mimosa Pignatari, d. Helena Noquosi. O pai

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de d. Odete, por exemplo, veio ver o que havia por aqui, e por aqui havia muito. D. Odete casou-se com um homem muito rico. O que é mais: tem um sobrenome, e

os sobrenomes, quatro ou cinco deles, são os donos de São Paulo. D. Odete tem atrás de si fábricas e exércitos de operários. É uma senhora muito poderosa.

DINHEIRO

D. Fifi Assunção e d. Iolanda Penteado são muito mais paulistas do que d. Irene Crespi. São paulistas de quatrocentos anos. Vocês, que apenas são capixabas do princípio do século, não sabem o que significa, em São Paulo, ser um paulista de quatrocentos anos. É mais importante do que ter uma estátua em praça pública. O poeta Olegário Mariano tem uma estátua em praça pública e passa despercebido na rua do Ouvidor. Um paulista de quatrocentos anos jamais será confundido na multidão da rua Direita.

Apesar de tudo, é d. Irene Crespi quem tem o dinheiro. As qualidades genealógicas de d. Iolanda e de d. Marjorie não podem ver com bons

olhos o passado um tanto rústico dos maridos da turma do segundo grupo. Mas o dinheiro está no segundo grupo, e o dinheiro tem voz eloqüente e poderosa. O dinheiro é a grande arma do segundo grupo: a arma que dá qualidade ao trabalho dos esforçados italianos, que os credencia na sociedade, que lhes abre e às suas cintilantes esposas as inacessíveis portas dos solares de Piratininga. O dinheiro atrai o primeiro grupo, e os quatrocentos anos de qualquer Prado ou Leme se derretem nos milhões do conde Matarazzo como manteiga em cima de uma chapa quente.

o "ESTRIBO" E O "PENACHO"

Mas há o terceiro grupo, um grupo lamentável e melancólico. É uma gente que não vem lá de longe. Uma gente que nasceu por aí, de família recente, de médicos de Barretos ou comerciantes de Bauru. Uma gente que não tem dinheiro. Os homens vivem dos seus pequenos ganchos e comissões. Alguns escrevem em jornais uma literatura precária. Mas a serpente do grã-finismo tomou conta de todos, dos homens e das mulheres. As mulheres sacrificam os maridos, fazem milagres no orçamento mensalcontanto que se tornem dignas do Roof ou do Jequiti. É o grupo do "estribo" e o grupo do "penacho". Os homens se dependuram na vida mundana de São Paulo como se estivessem num bonde cheio. As mulheres usam terríveis penachos, porque acreditam ser essa a característica principal da grã-fina, como o dente de ouro é característico em todo turco.

E fazem coisas terríveis: quando, por exemplo, a turma do primeiro grupo telefona, princípio da noite, para o Jequiti, pedindo mesa, o gerente é infalível na resposta:

-Não é mais possível, cavalheiro. Todas as mesas de pista estão tomadas. É que o grupo do "penacho" foi na frente e, com uma diligência típica, recrutou para

seus prazeres o que havia de melhor na boate. Por isso, leitor amigo, nunca se iluda: se você quer conhecer a grã-finagem paulista e for uma noite ao Jequiti ou ao Roof, não se

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deixe levar pelos arrogantes e coloridos penachos, nem pelos envernizados cavalheiros das primeiras mesas. Eles não são os tais. Os tais estão atrás, possivelmente nos piores lugares.

o grupo do "estribo" se orgulha muito de suas relações com a gente chique. Diz sempre: "Ontem almocei com Sicrana. Hoje à tarde tomarei chá com Fifi. Lelé me telefonou. Oh!, diabo, esqueci de telefonar para Zuzu". Vivem disso, boiando num falso mar de grandeza.

JERRY, O ORÁCULO

Quando um ilustre casal paulista dá uma recepção em sua casa, já sabe para quem deve mandar os primeiros convites: para os maiorais do grã-finismo, os tais de quatrocentos anos, e para os dois cronistas sociais mais importantes de São Paulo: Jerry e Bilm.

O verdadeiro nome de Jerry é Cornélio Procópio. É um rapazinho risonho, larga fronte brilhante, com um bigode reto e fino. Usa ótima dentadura e ótimo sorriso. Diariamente, na Folha da Manhã, Jerry aparece através de sua literatura cor-derosa. Se Jerry, na noite passada, esteve numa festa elegante, descreve como foi a festa, fala dos vestidos que viu, aplica adjetivos próprios aos melhores encantos femininos e masculinos, pulveriza inocentes ironiazinhas sobre tudo aquilo que não lhe agradou ao olfato e à vista. Um grã-fino me disse:

-Para que uma festa não seja um fracasso, tem que contar com a presença de duas pessoas: do Jerry e da Stela Alves Lima.

Jerry tem algumas credenciais importantes: possui a tal história dos quatrocentos anos, e sua família, ainda hoje, é dona de alguns recursos. Sua conversa é macia, sem espinhos. Os problemas do mundo não chegam até ele, e se chegassem Cornélio saberia como enfrentá-los: faria um muxoxo e telefonaria para Fifi, Fifi sem problemas nem angústias. No mundo elegante de São Paulo, Jerry é mais importante do que d. Odete Matarazzo ou d. Irene Crespi. D. Odete tem fábrica, d. Irene tem dinheiro. Mas Jerry tem uma coluna diária na Folha da Manhã que é o oráculo da elegância paulista. A coluna de Jerry consagra ou põe abaixo qualquer pretensão grã-fina. Mas sua linguagem é sempre amena, porque um grã-fino nunca se compromete. O estilo de Jerry é como sua dentadura: uma coisa certa e limpa. Impossível é, porém, alguém saber se Jerry nasceu assim, com bons dentes, ou se o seu sorriso é realização de algum odontólogo caro. Aí embaixo vai uma amostra do estilo de Jerry. Trata-se de uma crônica que ele publicou há pouco no seu jornal sob o título de "Guarujá". Diz assim:

O tempo não quis fazer um papelão. Não quis também que todos ficassem desapontados. A princípio relutou com ameaças bruscas de nuvens baixas e acinzentadas. Pingos grossos de chuva chegaram mesmo a cair. Depois, de repente, num abrir e fechar de olhos, um sol de ouro resolveu assumir a supremacia naquele céu sereno e azul cor de turquesa. E o Guarujá viveu seus momentos de grande

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animação. A praia encheu, o cassino ferveu. Um movimento intenso reinou naquele ambiente simpático, cheio de sol, de vivacidade, de alegria e de espontâneo entusiasmo.

Os casais Fábio da Silva Prado, Edgard Conceição, Alberto Bianchi, Evaldo Foz, Vítor Meireles, Francisco de Sousa Dantas, Vítor e Eduardo Simonsen, Remo Prada, Roberto Ferreira, Luís Campeio, os condes Sílvio Penteado e Raul Crespi...

Deslizava pela superfície azulada de um mar muito calmo e muito manso a silhueta alvíssima do Albacora, o iate bonito do casal Jorge da Silva Prado, que carregava amigos para as delícias calmas de longo cruzeiro.

Foi para que as tonalidades combinassem numa perfeita harmonia de cores que a sra. Horácio Lafer trazia um elegantíssimo slack em albene branco, d. Marjorie da Silva Prado, em amarelo e

azul pálido, a sra. Evaristo Almeida ainda de branco e vermelho vivo... A silhueta esguia dos coqueiros desgrenhados, ao longo das praias alvas, parecia

inclinar-se à beira d'água para melhor ouvir o murmúrio suave das ondas esverdeadas que na areia vinham morrer...

Debaixo de amendoeiras frondosas, indiretamente iluminadas, em mesinhas de quatro, no ambiente simpático daquela casa normanda, o sr. e a sra. Francisco Ramos de Azevedo conversam com os amigos num finissimo jantar que a um grupo grande de pessoas tiveram a amabilidade de oferecer.

Os casais Armando Penteado, Eurico Sodré, Mariano Procópio, Evaristo de Almeida, Jorge da Silva Prado...

O vinho corria louro e generoso como a alegria franca da reunião, como as chamas ainda mais louras daquelas pequeninas velas que iluminavam as mesas, como a amabilidade cativante de d. Zuleika, que, elegante num slack marrom e rubi, a todos distribufa atenções e incalculáveis gentilezas.

BILM

Bilm, a outra cronista mundana, é muito diferente de Jerry. Seu verdadeiro nome é Irene de Bojano. Jerry escreve pela manhã, Bilm escreve à tarde, na edição vespertina da Folha. Bilm é muito mais seca do que Jerry. E também mais literata. Seu estilo, uma coleção de lugares-comuns regados a adjetivos próprios, prefere cuidar das coisas do espírito: versos, teatro, música. Constantemente Bilm cita poemas dos seus poetas prediletos, nacionais e estrangeiros. E suas preferências são muito instáveis. Bilm já gostou muito de Alberto de Oliveira. Hoje prefere Vinicius de Moraes.

Façamos uma demonstração prática: há uma festa em São Paulo, uma festa numa casa particular, música, champanha e comidas. É prato para Jerry. No outro dia, acontece qualquer coisa supergrã-fina no Theatro Municipal, como uma apresentação do grupo Cega-Rega ou o concerto de um pianista célebre: é prato para Bilm. Tal distinção faz com

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que Jerry nunca entre em atrito com Bilm. Cornélio e Irene são bons amigos, com raios de ação delimitados. Jerry conhece todas as cores do batom. Bilm está perfeitamente a par de todas as prenderes de sucesso na Broadway.

LITERATOS DA FINESSE

O grã-finismo também tem os seus "intelectuais", os seus literatos. Para qualquer grã-fino paulista, por exemplo, o maior escritor de São Paulo é o sr. René Thiollier. René Thiollier já é um cidadão bastante velho. Mas continua rico e elegante. Sua residência é muito famosa: chama-se Vila Fortunata e possui, entre outras surpresas, uma torre fina como um minarete. É lá em cima da torre, num pequeno gabinete, que Thiollier faz sua literatura, uma mistura de versos acomodados e ensaios históricos sem grandes ousadias. Um dos cargos de René: o de secretário perpétuo da Academia Paulista de Letras.

Literato grã-fino é Guilherme de Almeida. Atualmente, apesar de uma seção meio mundana que mantém na Folha da Manhã, Guilherme anda meio político com o grã-finismo paulista. É que ele cometeu o bruto erro de afirmar, numa reunião elegante, que estava se inclinando para o socialismo. Houve um espanto geral e Guilherme perdeu alguns por cento de seu cartaz. De qualquer maneira, suas crônicas diárias não são melhores nem piores do que as do Jerry. As vezes são piores. Guilherme veste-se como um grã-fino do tempo em que Oswald de Andrade era grã-fino: polainas, pó-de-arroz no rosto e olhar vago.

Outro literato do grã-finismo é o nosso já conhecido Roberto Moreira, que fez, há vinte anos passados, uma conferência sobre Bilac. De lá para cá, em centenas de oportunidades mundanas, tem repetido a conferência para algumas gerações grãfinas de São Paulo. Ainda não tive oportunidade de ouvir uma palestra do dr. Roberto. Mas um amigo me garantiu que na mesma existe mais recitativo do que na Biblioteca do ar do sr. César Ladeira.

A especialidade de Paulo Assunção, outro "intelectual" da haute gomme, são os brindes. Ninguém faz um brinde melhor do que ele, particularmente os brindes de aniversário. O grã -finismo paulista tem seu historiador oficial: é o "es~ritor" Yan de Almeida Prado. Um dos seus poetas preferidos é o constante jovem Oliveira Ribeiro Neto, cuja árvore genealógica, no entanto, nasce em comprometedor solo sergipano.

Outro literato da finesse: Eurico Sodré. Eurico é sonetista e diretor da Light. Em 1912 publicou o seu primeiro e último livro de sonetos. Mas foi o bastante, pois que nessas coisas literárias o grã-finismo não é muito exigente.

Figura ímpar na elegância dourada de Piratininga é o dr. Roberto Simonsen, proprietário de algumas das mais robustas cifras nacionais. Nas horas vagas, o sr. Simonsen escreve livros, artigos e discursos sobre a "promissora situação financeira do Brasil", da qual ele é um dos sustentáculos. O sr. Simonsen é também conhecido e admirado pelo seu amor ao vernáculo. Seus discursos e livros são primores de correção gramatical. É verdade que o milionário Simonsen, tão cheio de afazeres lucrativos, não tem tempo para perder com as vírgulas e pronomes. Simonsen possui um gramático especial e particular, o sr. Marques da Cruz, que recebe mensalmente um ordenado convidativo apenas

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para pôr em alto estilo as considerações do seu patrão e espartilhar nas leis de Cândido de Figueiredo possíveis liberalidades lingüísticas do financista.

Oswald de Andrade também já pertenceu à nata elegante de São Paulo. Mas foi expulso da finesse quando perdeu sua primeira fortuna. Depois disso, o finalmente romancista de Marco Zero surgiu como dono de várias outras fortunas. Mas o grã-finismo não pode receber em seu seio um cavalheiro que vive assim em altos e baixos econômicos. O que caracteriza um grã-fino do primeiro e segundo grupos é a sua posição econômica absolutamente estável. Durante muito tempo, Oswald de Andrade fez uma bruta força para voltar ao seio da haute gomme. Mas foi impossível. Hoje sua posição é a de um cidadão amargurado e revoltado com os seus antigos colegas de vida mundana. O que não quer dizer que, de vez em quando e a pedido das circunstâncias, o inquieto humorista não corteje alguns dos poderosos sobrenomes paulistas.

Menotti deI Picchia também pertenceu ao grã-finismo. Mas hoje os grã-finos não o suportam. Naturalmente, Menotti, que tanta coisa já fez contra tantos, deve ter feito também algo contra os grã-finos.

O grã-finismo paulista não perdoa a Semana de Arte Moderna, que lhe roubou alguns dos seus elementos mais brilhantes. Antes da Semana, a vida social de São Paulo era muito acomodada. A Semana, idéia do grã-fino Graça Aranha, trouxe os primeiros desentendimentos e os primeiros atritos. O único elemento da Semana que a haute gomme militante de São Paulo não perdeu foi Guilherme de Almeida. Mas a verdade é que Guilherme entrou na revolução modernista pensando que se tratava apenas de um outro chá das cinco. Recuou a tempo. O desenhista Belmonte conseguiu introduzir algumas cunhas na finesse. É quase sempre convidado para as festas e os chás. Dá-se perfeita- mente bem com o pedigree e os sobrenomes. Suas charges, sempre bem-comportadas e geralmente a favor dos mais fortes, têmno ajudado muito na sua carreira vitoriosa. Creio que Belmonte é o único caricaturista (?) no Brasil que conseguiu juntar dinheiro com sua arte.

o COLAR DA PRINCESA

Mas nem sempre a vida de um grã-fino é plácida e rósea. De vez em quando acontecem tormentas e pequenas tempestades. Recentemente, por exemplo, o grã-finismo paulista sofreu um bruto golpe. Foi o caso do colar da princesa. A história pode ser contada em rápidas palavras: quando d. Duarte Nuno veio fazer a América aqui no Brasil, e resolveu casar com a melancólica princesa brasileira d. Maria Francisca, com o objetivo de consolidar as questões monárquicas entre Portugal e Brasil, o grãfinismo paulista saudou o acontecimento com entusiasmo e alegria. Afinal de contas, teríamos em Petrópolis o momento mais alto da elegância nacional. Um príncipe de verdade, embora cabeçudo e meio falido, iria casar com uma princesa à moda da casa. Imediatamente uma lista começou a correr os meios da finessede São Paulo: os grã-finos resolveram dar um rico presente aos nubentes, um precioso colar de diamantes, e a lista pedia donativos.

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Houve grã-finos bem estabelecidos na praça que não pestanejaram: com uma penada rápida assinaram dez e vinte contos. Outros assinaram apenas cinco. Outros ainda, um tanto encabulados, só puderam dar três. O colar foi comprado: parece que custou a razoável quantia de trezentos contos (foi antes dos cruzeiros).

Depois fizeram-se os preparativos para o casamento. Os grã-finos mandaram fazer casacas especiais, compraram novos pares de sapatos de verniz ou polainas, e as mulheres gastaram fortunas em vestidos e enfeites. Um carro especial da Central, com lavatório completo, levaria a finesse até o Rio de Janeiro. Poucos dias antes do casamento miguelista, os grã-finos já estavam todos prontos. Esperavam apenas os convites individuais. Mas aí aconteceu a tragédia. Os convites chegaram um dia, mas não chegaram para todos. Chegaram apenas para os que haviam assinado quantia mais grossa: a gente dos dez e vinte contos. Foi uma decepção geral! Senhoras sensíveis tiveram ruidosos ataques de choro. Uma senhora criou olheiras. Um rapaz, visivelmente abatido, retirou-se durante meses para uma fazenda do interior.

Antes do caso do colar, a monarquia gozava de real prestígio no seio da finesse paulista. Mas parece que d. Duarte não é bom político. Com a sua falta de atenção tão lusitana, o príncipe de testa olímpica bombardeou seu prestígio entre os elegantes de São Paulo. Os monarquistas formam hoje uma minoria insignificante. Quando esteve em São Paulo, d. Duarte foi tratado muito friamente. Em companhia do pintor Di Cavalcanti, o jovem nobre visitou vários lugares históricos: o Museu do Ipiranga e os andaimes da Sé. No museu aconteceu um detalhe pitoresco: é que os funcionários da casa tomaram o pintor Di Cavalcanti pelo príncipe, prodigalizando-lhe atenções e reverências. O príncipe, um tanto amuado, foi esquecido entre as relíquias históricas e os apetrechos indígenas. Nem chegou a visitar o Jaú.

E por falar no pintor Di Cavalcanti, definamo-lo como um dos casos mais esquisitos do grã-finismo paulista. O casal Di Cavalcanti, Di propriamente dito e a esplêndida pintora Noêmia, são queridíssimos nas rodas elegantes de São Paulo. O apartamento de Di, no Centro da cidade, está sempre povoado da melhor fauna local. Di recebe telefonemas e convites para as melhores festas e as mais disputadas reuniões. Todo grã-fino e grã-finapaulistas anseiam ser pintados pela Noêmia. É a mesma coisa que almoçar na Pipote. É coqueluche, como eles dizem. No entanto, apesar de perfeitamente acomodados na finesse, os dois não perderam nenhuma de suas qualidades. Noêmia é uma das pessoas mais vivas que eu conheço. E Di, no fundo, é quem mais se diverte com aquilo tudo e de vez em quando consegue vender uma tela sua a algum grã-fino. Não se trata, portanto, de um diletante.

AS CONSIDERAÇÕES DE POLICARPO

Quase todos os cavalheiros da haute gomme paulista são donos de fábricas ou vice-presidentes de empresas importantes. Ser vice-presidente de qualquer coisa é uma das principais condições para o livre ingresso no perfumado mundo social de São Paulo. Existe

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até o caso de um escritor, dominado nestes dois últimos anos pelo grã-finismo, que fez uma bruta força, há pouco tempo, para ser eleito vice-presidente da Sociedade de Escritores Paulistas. Um título assim, num cartão de visita, teria algum efeito.

Os grã-finos paulistas não suportam o Rio de Janeiro. Têm um ar de absoluto desprezo para tudo que é carioca. Quando acontece aqui qualquer coisa elegante e fora do comum, eles ficam lá em polvorosa e providenciam logo uma função idêntica em Piratininga, com mais lantejoulas e mais esplendor. Todo artista célebre e elegante que desembarca no Rio é imediatamente convidado a ir a São Paulo. Quando havia transporte fácil e o mundo estava melhor do que hoje, os donos das fábricas e as senhoras ricas pouco ligavam ao Rio: tomavam os transatlânticos e iam para a França ou para a Itália. Os Matarazzo, por exemplo, no tempo em que a escola era risonha e franca, nunca passaram um ano sem uma regular dose de luar de Verona e pombos na praça de São Marcos. A Itália e o fascismo estavam no seu sangue. O último desespero da finesse paulista foi o Cega-Rega, que algumas senhoras jeitosas realizaram aqui no Rio. O povo carioca já está acostumado com esses desperdícios e não liga muito para os diletantes do Municipal. O carioca pega a coisa no ar, faz um trocadilho irônico, e esquece. Mesmo porque a finesse daqui é finesse de praia. De calção de banho é impossível a gente distinguir quem é o milionário Carlos Guinle ou o bookmaker da avenida. Ambos possuem o mesmo físico e a mesma lábia.

Mas a haute gomme paulista é maciça como um bloco bem unido: seus assuntos são seus assuntos, e é preciso atenção e carinho para eles. Quando tivemos aqui o Joujoux e Balangandãs, os paulistas bateram com o pé e disseram que também queriam. Então os balangandãs foram para lá. Agora, com o Cega-Rega, aconteceu a mesma coisa. A hora em que estamos dedilhando essas considerações, chega-nos o eco dos primeiros sucessos dos grã-finos da praia no planalto. Os cronistas mundanos estão vivendo grandes dias. Jerry se derrete num mar de gozo. Bilm tem feito um tremendo uso da sua cultura.

Mas houve também vozes discordantes. Uma delas foi a do jornalista Policarpo Conceição, um pseudônimo, é lógico, no Diário de S. Paulo, que teceu alguns comentários pouco alegres sobre a farra grã-fina. Policarpo é de opinião, logo de início, que o Cega-Rega não tem motivo de ser. Diz ele que no instante preciso em que as classes média e proletária sofrem na pele as conseqüências da guerra (não há açúcar, não há carne e os gêneros estão cada vez mais caros), não é direito que as senhoras pouco compreensivas gastem quantias fabulosas em vestidos de seda e veludo para satisfazerem pequenas veleidades artísticas. Policarpo diz mais: se o objetivo filantrópico do Cega-Rega é auxiliar a Cruz Vermelha, por quê, em vez de representação no palco das grã-finas bem-vestidas, não se entregou àquela instituição o que seria gasto com as sedas e os veludos? Não há razão para ostentação e para luxos descabidos, futilidades ostensivas que devem contrariar muito os que, como os operários das fábricas paulistas, estão suando em bicas nas indústrias de guerra do país. As considerações de Policarpo, apesar de um tanto grises, como diria Jerry, são bastante lógicas.

Mas as considerações de Policarpo não chegaram ao mundo cor-de-rosa do grã-finismo paulista.

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O Cega-Rega teve lá uma brilhante estréia. É o que nos dizem os cronistas sociais cariocas, que também fizeram parte do elegante cortejo ferroviário que, nestes bicudos tempos de guerra, foram a Piratininga mostrar suas brilhantes inutilidades. Um repórter bem informado nos declarou há poucos dias que a viagem daqui para lá, no comboio da alegria, foi uma verdadeira sucessão de prazeres e encantos. As senhoritas recitaram, os rapazes cantaram coisas formosas, e houve até ligeiros ensaios o trem varava a noite, apitava nas curvas, furava túneis e cá dentro era um mundo de coisas cheirosas e gostosas.

Em São Paulo, a turma do Cega-Rega desembarcou como um batalhão de heróis. A grã-finagem paulista estava toda na estação. Jerry, algo nervoso, o passinho curto multiplicando suas parcas possibilidades de pedestre, contava com a pontinha do indicador as figuras que iam descendo: se alguma houvesse faltado por motivos reumáticos ou gripais, aquilo seria uma punhalada no frágil coração de Jerry.

Mas ninguém faltou. Gripes e reumatismos foram adiados. Quando o palco do Municipal se abriu, de noite, qualquer reformador simplista poderia perfeitamente, com uma simples bomba, colher uma esplêndida e completa safra: ali dentro havia material suficiente para satisfazer a um batalhão de terroristas. Ali estava a condessa Amália Matarazzo, debaixo de uma chuva de cintilações; ali estava d. Ernestina Alves de Almeida, ali estava d. Maria Helena Ramos. E mais uma porção: d. Julieta Alves Lima, a condessa Mariângela Matarazzo, d. Mimi Lafer, d. Renata Crespi Prado. A comissão de recepção não podia ser mais legal: d. Albertina Spengler, d. Belinha Sodré, d. Carmem da Silva Teles, d. Ana Alves Lima, d. Ester Cardoso de Almeida, d. Fifi Assunção, d. Raquel

Simonsen e d. Iolanda Penteado. E por detrás de tais poderosas casamatas, todo um batalhão de inquietos e encadernados jovens.

No dia seguinte, a mesma fauna estava toda reunida no palacete (palacete vírgula, palácio) dos condes Matarazzo, na avenida Paulista (a avenida Paulista também pertence aos condes); Henrique Liberal & Cia, na sua melhor maneira rococó, transformara os salões carcamanos dos condes em "oásis edênicos", como afirmou, num repente de entusiasmo, um cronista carioca. O cronista afirmou também que, naquela noite, "a residência dos condes Matarazzo honrava qualquer capital civilizada)~ e nos deixou de água na boca quando se referiu aos ((candelabros raros e aos quadros de valor inestimável".

VERBAS PARA o GRÃ-FINISMO

Comento, com Fifi, a vida mundana de São Paulo, e ela me diz na sua vozinha: -Está adorável! Nunca tivemos uma vida social tão in-

tensa. É que os motores das fábricas estão trabalhando muito. Já não há horas vagas nos

domínios dos Matarazzo e dos Crespi. Os enormes portões da Mooca não se fecham: expulsam, de manhã cedo, uma turma de gente cansada e cinzenta, engolem mais gente que se cansará durante o dia. Os relatórios, sempre exatos, nos contam coisas muito importantes. Dizem, por exemplo, que os lucros de Matarazzo no ano passado foram de 700 milhões de cruzeiros. É muito

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dinheiro e com ele os Matarazzo podem fazer grandes e belas coisas. Algum dia (quem sabe?), Matarazzo fará um refeitório ventilado e claro para seus operários. Fará também uma maternidade para as mulheres dos operários, não uma maternidade elegante e cara, a melhor da América do Sul, como a que ele ergueu lá para os lados da avenida Nove de Julho; apenas uma maternidade sóbria, mas que seja de graça. O Cotonifício Rodolfo Crespi S.A. teve, em 1942, um lucro sobre o capital de mais de 56%. A Nitro Química, em 1942, teve um lucro de Cr$ 28330000,00 e alguns centavos. Em 1940 e 1941, os principais bancos reunidos somaram um lucro de Cr$ 123263456,00. E os bancos pertencem aos homens que são donos das fábricas e das indústrias. A Fiação, Tecelagem e Estamparia Jafet fez bons negócios em 1940, 1941 e 1942; a Jafet deu um balanço e seus donos foram presenteados com um esplêndido resultado: um lucro de Cr$ 16297000,00, 181% sobre o capital. A Pirelli S.A. ganhou, em 1942, perto de 22 milhões de cruzeiros, 72,5% sobre o capital. A S.A. Moinho Santista ganhou, no mesmo ano, perto de 39 milhões de cruzeiros, 53,5% sobre o capital.

Sobre números assim, tão eloqüentes, é que repousa o esplendor da haute gomme paulista. O Brasil está vivendo uma era de fartura. Uma fartura que, na verdade, não chega para todos. Mas chega para Fifi, para Lelé e para Mimi, orquídeas raras. De noite, quando se acendem as luzes de São Paulo, a cidade fica ainda mais imponente. Os anúncios luminosos rasgam o céu: são anúncios das melhores e mais poderosas coisas da América do Sul. Há centenas de indústrias em São Paulo. Cada anúncio luminoso, um anúncio alegre. Cada indústria pede centenas de motores, cada motor pede dezenas de operários. Dia e noite os operários manejam os motores. Os motores fazem dinheiro. Os olhos e o sorriso de Jerry se derramaram satisfeitos sobre Fifi, como se Fifi fosse uma criação da sua coluna mundana na Folha da Manhã. Amanhã ele escreverá:

Na boiserie alta e clara, de carvalho natural, da sua sala de jantar, a sra. Stela Penteado Maurel sempre gostou de enfeitar as rendas creme da sua toalha de mesa com o colorido quente de rosas cor de rubi. Cinco candelabros antigos de prata acariciavam a suavidade do ambiente estilizado com a luz fosca das suas chamas pequeninas. Cupidos brancos de Saxe ofereciam flores por entre os personagens medievais de uma tapeçaria de Aubusson, e os sorrisos amáveis de todos os convidados.

Todos estão muito elegantes e adoráveis. E Jerry já sabe o que dirá, amanhã, de cada um:

A sra. Maria Penteado de Camargo pensava em reabrir aquele salão moderno de d. Olivia, escondido entre as sombras e folhagens escuras. Guilherme de Almeida recordava a sua recente viagem a Ouro Preto; os srs. Lavanchy e Henry Gueyrand falavam da Suíça; o casal Jacques Pilon, de uma fazenda em Campinas... As sras. Maria Furtado Alves e Lima e Bebé Nogueira sorriam por entre as espirais azuladas de seus perfumadíssimos Luckies... A noite úmida de fora escoava-se serena, por entre as luzes mortiças dos salões franceses. Como seria bom se pudessem eternizar momentos assim...

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É, Jerry, seria muito bom. Seria adorável. Mas eu acredito não ser possível.

A milésima segunda noite da avenida Paulista

Confesso que, durante toda uma semana, em São Paulo, andei esfaimado atrás de um convite para o casamento da filha do conde Francisco Matarazzo Júnior com o "pracinha" João Lage. Dois ou três elementos da finesse, mesmo cônscios da traição que iriam praticar, me prometeram o ingresso disputadíssimo, mas falharam completamente. Um deles, visivelmente encabulado, me procurou no domingo, véspera da fase mais importante do acontecimento, e tentou suavizar meu desespero com a seguinte promessa:

-Não se aborreça. Você não vai, mas eu vou e lhe conto tudo. A bem da verdade, digamos que o grã-fino cumpriu com sua palavra: a

descrição da festa que me desfiou, na terça-feira, foi a mais completa e detalhada possível. Sem surpresas, porém. É que a imaginação do repórter, mais ou menos a par dos arrebatamentos da fortuna, já havia criado, para uso próprio, uma versão antecipada daquela milésima segunda noite da avenida Paulista. Houve apenas um ou outro incidente não previsto, como o leve atrito entre o dr. Marques dos Reis e um conviva, por motivos desconhecidos, e a acalorada discussão política entre o falangista Garcia Conde, representante de Franco no Brasil, e um progressista big shot de nossas indústrias. No mais, o meu amigo me confessou que voltou da lantejoulante noitada um tanto indignado com o comportamento e ação dos quinhentos "tiras" (na realidade, cem) contratados pelo conde para o policiamento do casório.

-A gente não podia dar um passo, que não sentisse uma porção de olhos espetados em nossas costas. Quando a gente se aproximava, então, de um objeto de valor, era uma coisa afrontosa: um rapaz elegante e bem penteado logo se aproximava e ficava disfarçando. Horroroso.

Talvez tenha sido afrontoso, mas foi prático. Na noite do dia 10 último, ao contrário do que vinha acontecendo em anteriores festejos organizados pelo conde, nenhuma jóia desapareceu no palácio, nem ao menos um par de talheres de suas baixelas. O que os convivas trouxeram de lá (canetas-tinteiro de ouro, broches de brilhantes, cotillons prateados e dourados, mil ricas lembranças outras) foram dádivas friamente distribuídas pelo conde e perfeitamente enquadradas nas possibilidades, quase ilimitadas, dos seus lucros extraordinários.

Como teria nascido a idéia da "mais brilhante festa já realizada no Brasil"? Dizem-me que foi de uma conversa, no Rio de Janeiro, entre o conde e elementos da sociedade carioca. Os referidos elementos haviam chamado a atenção do conde para a necessidade de uma "festa brasileira, uma festa que deixasse seu brilho nos anais dos nossos

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acontecimentos". Particularmente, qualquer coisa que deslustrasse, com suas luzes, o feérico acontecimento que foram os esponsais do cabeçudo d. Nuno com a melancólica d. Teresa. E quem, no Brasil, poderia ser o organizador de tal empreitada? Somente o conde Francisco Matarazzo JÚnior, feliz arrecadador de lucros avaliados em 400 milhões de cruzeiros anuais. O conde teria retrucado não ter jeito para aquilo, no que foi respondido que onde há dinheiro não é preciso jeito. E que motivo melhor para a "bela festa" do que o próximo casamento de sua filha Filly? O tema Filly foi habilmente desenvolvido pelos referidos elementos (a maioria deles tinha interesses particulares na festa: interesses profissionais e comerciais, principalmente) e os músculos sentimentais do conde acabaram por relaxar. Naquela noite, quando o conde garantiu que seria realizada "a mais bela festa do Brasil", uma fada mágica bateu com sua pródiga varinha na cabeça de vários cavalheiros nacionais. Houve telefonemas na madrugada, houve consultas e intrigas, e dez ou vinte senhores adormeceram, os que conseguiram, certos de que seus capitais, por magia do conde, iriam ser aumentados, e que ótimos negócios encerrariam as atividades deste ano de 1945. De resto, o ano da Vitória.

"A mais bela festa do Brasil" não foi, contudo, apenas um espetáculo. Mais do que isso, foi uma sucessão de espetáculos e acontecimentos mundanos. Nenhum paulista poderá esquecer aquela semana, um desfilar ininterrupto de recepções, jantares, ceias, bailes e festas. O Jequiti e o Roof foram tomados de assalto, o Esplanada viveu os seus dias mais intensos e brilhantes, nunca havia lugar para nós (falo dos mortais comuns) no Papote ou no Spadoni. Era, a bem dizer, o congresso da grã-finagem nacional, antes tão dispersa nos seus movimentos e que, agora, atraída pela força magnética do conde Matarazzo, se confundia num bloco interestadual, poderoso e aurifulgente. "Os próprios cronistas sociais se acharam numa trapalhada louca para identificar os granfas", me informou um rapaz paulista, e eu mesmo tive ocasião de ver, numa das fases preparatórias do casório, como o mundaníssimo sr. Gilberto Trompowsky se emaranhava, o lapisinho nervoso sobre o caderno de notas, no meio da complicada floresta de elegância.

Um balanço honesto, pacientemente colecionado durante a semana dourada, nos diz, então, que antes, e à margem do casamento, mas a ele ligado, houve o seguinte: 26 jantares em residências particulares; oito recepções; dezesseis ceias no Jequiti e sete no Roof, não falando de uma série de pequenos incidentes mundanos: coquetéis, chás com torradas, encontros fortuitos, coisas assim. Somem-se a isso os tremendos quarenta dias que antecederam o enlace, com aquele desespero aflito tomando conta dos cavalheiros e das senhoras, com as mil consultas a alfaiates, chapeleiros, modistas etc., e a uma conclusão lógica se chegará: a de que nunca, em nenhum tempo, a elegância nacional viveu instantes tão absolutos. "Trabalhei mais nestes últimos trinta dias do que em dez anos de minha vida", teria confessado o sr. Henrique Liberal a um amigo. E não era outra coisa o que dizia sua fisionomia naquela noite em que o fui surpreender no Spadoni, ao lado dos noivos ilustres, nas vésperas do acontecimento. Eu havia perguntado ao garçom por que razão o conde estava ali com sua filha, seu futuro genro e mais alguns convivas almoçando num restaurante, quando poderia ter ficado no seu palacete, onde naturalmente os cardápios são melhores. O garçom me informou que "o palácio da avenida Paulista já estava todo arrumado e que, por causa disso, o pessoal de lá tinha que fazer as refeições nos restaurantes". Disseme mais: "Ontem eles comeram no Papote, hoje almoçaram e jantaram aqui. Tem que ser assim até o dia do casamento". Outro detalhe era aquele braço esquerdo do sr. Liberal metido numa tipóia, como se o famoso decorador tivesse saído, mutilado mas vitorioso, de uma cruenta batalha. "Parece que ele caiu de uma escada,

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quando pregava umas cortinas", foi o que me informaram numa redação. Quanto ao noivo, o antigo pracinha João Lage, era, ali no Spadoni, a segunda ou

terceira vez que eu o via. A primeira fora naquela tremenda PorretaTerme,* no Norte italiano, no frígido janeiro. Alguém me apresentara ao pracinha-milionário, e creio que conversamos quatro ou cinco minutos sobre coisas gerais: naturalmente sobre a neve, o Brasil e os alemães. Vi-o novamente, em Florença, no hotel dos nossos soldados. E o via novamente ali, no restaurante de luxo, o cabelo bem penteado, o olhar alto, o terno bem cortado e a gravata discreta. Lá no front, o pracinha Lage se dissolvia e se inutilizava entre os seus outros 20 mil companheiros de luta; mas nestes dias de agora, seu vulto comprido e moço jamais poderá ser confundido com o de qualquer outro rapaz brasileiro. Dissertei esta filosofia para o meu companheiro de mesa, que concordou com gravidade.

-É isso mesmo. Nuvem pesada e negra, ameaçando um desastre total, foi aquela que caiu dez dias

antes das festas, sobre o mundanismo paulista: em forma de boato terrorista, a nuvem informava que a srta. Filly Matarazzo havia sido mordida por um cachorrinho de raça, e suspeitava-se de que o cachorrinho estava doente. Diziase mais: que a noiva fora entregue aos cuidados de todo um corpo clínico, que lhe vinha ministrando injeções especiais e exigentes. Em suma: talvez o casamento tivesse que ser adiado.

"O casamento seria adiado!" Como a mais potente das bombas atômicas, a notícia desesperada pôs-se a estremecer os alicerces da Nagasaki mundana de São Paulo e do Rio de Janeiro. Os jornais telefonaram aflitos para os médicos conhecidos e alguns repórteres, mais ingênuos, tentaram chegar ao mundo proibido do palácio da avenida Paulista. Mas, de positivo, nada se soube. A notícia transformou-se, dias depois, numa revelação

* PorretaTerrne era um quartel-general avançado na Itália, do qual o Exército brasileiro partiu para a conquista de Monte Castelo, em 22 de fevereiro de 1945. (N. E.) mais alentadora: de fato, a noiva havia sido mordida, mas de qualquer maneira o casamento seria realizado. Depois, então, se cuidaria do resto. Eu estava no Jequiti uma noite, quando a nuvem negra e pesada se transformou num puro e leve floco de algodão, nuvem de anjo. Um cavalheiro entrou esbaforido na boate, sentou-se numa mesa do primeiro plano, segredou qualquer coisa para o cavalheiro vizinho. O cavalheiro vizinho passou a notícia para a senhora ao lado, a senhora para o outro cavalheiro, e assim por diante. Quatro ou seis minutos depois, a nuvenzinha branca, talvez cor-de-rosa, chegava até mim:

-Não será adiado! A coisa me pegou de surpresa. Deixei de mastigar o amendoim, perguntei: -Adiado o quê? O pleito eleitoral? -Não. O casamento! Não será adiado! E lá se foi a nuvenzinha, de ouvido em ouvido, tangida pela brisa mais feliz e mais

amiga. Passou a nuvem pesada, realizou-se o casamento, os noivos estão agora na mais confortável das luasde-mel, mas um enigma perdura: o mistério do cachorrinho doente. A noiva teria ou não sido mordida? O cachorro estava ou não doente? Ou, como me disse um

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amigo, o termo "mordido" se referia apenas a uma ação simbólica? Espesso mistério. "A mais bela festa do Brasil", propriamente dita, durou precisamente dois dias, três

noites e três madrugadas. Começou precisamente no sábado, 8, às nove e meia da noite, quando foram realizadas as bodas civis, com apenas dez convidados, a gente mais eleita. Lá estava a família Martinez de Hoz, lá estava o barão de Saavedra, além de um redator especial de conhecida agência telegráfica estrangeira. Depois da cerimônia, foi o baile. À meia-noite, os noivos dançaram a primeira valsa. "O conde tinha um sorriso de pomba nos lábios", informou um cronista. O palácio resplandecia, mil luzes, mil reflexos, as fontes luminosas lá fora, o povaréu, anônimo e friorento, se acumulando paciente no sereno. Depois, as Sílfides. Gentis e airosas, as bailarinas do Municipal, sob o compasso de uma orquestra de cem músicos, amaciaram e encantaram os privilegiados corações presentes com a música chopiniana. Jacinto de Thormes, que sabe ser comedido, escreveu que nunca viu uma coisa tão impressionante. O próprio conde, que nunca ligou muito para a música, ficou embevecido no seu lugar, mergulhado noutro mundo. Seiscentos mil cruzeiros havia custado aquela formosura: 200 mil cruzeiros para a orquestra, trazida especialmente do Rio, e outros 400 mil para d. Maria Olenewa, as bailarinas e a apresentação do espetáculo.

Nessa noite, antes de se retirarem, os convidados (oitocentos, precisamente) deixaram suas assinaturas no mais esplendoroso "livro de ponto" já conhecido: capa folheada a ouro e papel da qualidade mais difícil. Antes e depois das Silfides (a que o dr. Marques dos Reis não assistiu), foram as danças, que começaram às onze da noite e terminaram nas últimas horas da madrugada do dia 10. Houve um intervalo nos festejos, entre a primeira fase da dança e o começo do balé, para que o conde, irresistivelmente pródigo, distribuísse entre os convidados ricos cotillons. Peguei num deles: uma caneta-tinteiro de ouro com o nome do agraciado gravado -aquilo não devia ter custado menos de 4 mil cruzeiros. Oitocentos convidados, oitocentos cotillons. A nota mais colorida da noite do dia 10 foi, no entanto, a chuva pirotécnica que caiu sobre os jardins do palácio Matarazzo, precisamente quando o balé (antes somente representado para o sr. Getulio Vargas) ia na sua metade. "O conde gastou, só em fogos de artifício, trezentos mil cruzeiros", é o que me revela figura insuspeita e bem informada.

O casamento religioso foi na segunda-feira (o domingo constituiu uma meia trégua, com uma pequena recepção e outro baile à noite), e de uma certa maneira seu brilhantismo, com a igreja toda ornamentada, deixou na sombra os festejos com que os paulistas, naqueles dias, costumam agraciar o imaculado Coração de Maria. D. Aloísio Masela foi levado do Rio para a igreja Nossa Senhora do Carmo, na capital paulista, onde já se encontravam três bispos. Quando, depois de tudo acabado, os noivos seguiram, na terça-feira, para a sua lua-de-mel, e o dr. Pranchini Neto, exausto, recolheu-se à sua residência (ele foi o mestre-de-cerimônias de todo o esplendor, para o que, dizem, recebeu 300 mil cruzeiros), o conde havia despendido pouco mais de 6 milhões de cruzeiros. Não falando, é lógico, nas dádivas especiais que ofertou à sua filha e ao seu genro. Somente um colar de pedras, tremeluzindo no colo de d. Pilly, custou 3,5 milhões de cruzeiros.

Duas orquestras num total de perto de 150 músicos; caças raras mandadas vir de matas do Paraná; cozinheiros caríssimos (inclusive o mestre-cuca do Automóvel Club); fogos de artifício especiais; o penteador Gervais, que andou distribuindo suas mãos mágicas pelas enternecedoras cabecinhas paulistas (o penteado que ele construiu para a noiva custou 2300 cruzeiros); litros de champanha, uísque, mil bebidas outras; cem tiras da Ordem Social e smokings alugados para os mesmos; mobilização da Polícia do Trânsito;

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quatrocentos apartamentos alugados nos mais importantes hotéis da capital; 200 mil cruzeiros de vestidos; todo o melhor conjunto coreográfico do país para uma exibição de pouco menos de duas horas; o dr. Pranchini, com suas maneiras; perto de 500 mil cruzeiros em decorações realizadas pelo gênio inventivo, agora um tanto gasto e repetido, do sr. Liberal; 80 milhões de cruzeiros de dote; 200 mil cruzeiros por um souvenir oferecido à noiva pelos diretores do grupo Matarazzo; um núncio e três bispos; coral com a melhor música sacra de Palestrina -tanta coisa mais, meu Deus, que teria acontecido com o conde Francisco Matarazzo Júnior? Que teria acontecido? Antes tão pacato, metido lá com os seus negócios, de casa para suas fábricas, das fábricas para o maciço arranha-céu vizinho ao viaduto do Chá e, de repente, por artes diabólicas, o demônio da ostentação toma conta do seu espírito e o obriga àquele espalhafato todo.

"Não sei não, meu senhor, mas acho que o conde Chiquinho está gastando dinheiro demais", foi o que me disse, na redação do Diário de S. Paulo, d. alivia Figueira Ramos, mãe de uma outra noiva, imensamente mais modesta. Ela fora ali, atraída pela publicidade que o jornal vinha dando ao imponente casório, e nos aparecia armada de uma lógica ingênua e simples. Disse:

-Leio todos os dias notícias do casamento da filha do conde e pensei que os senhores podiam publicar uma notinha qualquer sobre o noivado de minha filha. Ela se casa sábado.

Como d. alivia chegara num momento bastante oportuno, teve mais do que "uma notinha'; teve toda uma reportagem. Em companhia de Maurício Loureiro Gama, estive na humilde casa da Vila Romana, onde se realizou o matrimônio da moça Nadir Figueira Ramos, operária de uma das fábricas Matarazzo, com o rapaz José Todeschi, torneiro-mecânico. Quando voltaram da igreja, na cidade, ela de azul, ele de marrom, encontraram o seu pequeno lar enfeitado com algumas flores de papel crepom e outras naturais; duas cortinas brancas na janela, pão doce, goiabada, refresco de laranja, quatro ou cinco garrafas de cerveja e algum guaraná. as móveis eram rústicos, e ainda não estão pagos. E depois do casamento, no dia seguinte, Nadir voltou para sua fábrica e José para sua oficina. Lua-de-mel, sim, mas depois das poderosas chaminés da Matarazw gritarem o fim do segundo expediente do dia.

"Moço, será que só a filha do Matarazzo tem o direito de ver ,o seu

casamento noticiado pelos jornais? Gente pobre também não casa?", perguntou d. Olívia ao repórter. E lá fomos nós para o casamento de sua filha. Era, afinal, uma compensação, um tanto melancólica, para quem não pôde romper a terrível e impraticável parede que separa o mundo dourado do palácio da avenida Paulista e o mundo prosaico da rua, o nosso mundo. E de tais compensações vivem os repórteres otimistas.

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Agripino Grieco, 1943: Vi Mussolini de perto, conversei com ele. Um palhaço." Após umas duas horas de movimentada e incandescente conversa, na qual pulava de

um assunto a outro, Agripino levantou-se: -Vamos lá dentro ver minha livralhada. São mais de 40 mil livros enchendo até o forro duas salas dos fundos da casa

número 86, na rua Aristides Caire, no Méier. -Há uns trinta anos coleciono livros. Aqui você encontra de tudo. Desde

Homero até a História do café, de Taunay. Antes, " era quase tudo brochura. Mas resolvi encadernar o que merece

ser encadernado, cuidar melhor de quem merece ser cuidado. Creio que em matéria de livro sou um milionário! É um legado que pretendo deixar para os meus filhos, já que não posso lhes deixar propriedades nem poços de petróleo.

Segundo contas que mentalmente faço ali mesmo, a conclusão é que Grieco deve ter gasto uma fortuna para encadernar aqueles milhares de volumes. Não esquecendo ainda que a maioria das encadernações é de bom gosto, cheirando à arte do encadernador Valele. -De fato, me custou um dinheirão. Meti aqui uma boa parte dos lucros das minhas

conferências. Alguém já havia me dito que Agripino Grieco já havia ganho mais de quinhentos

contos com as conferências que vem pronunciando pelo Brasil, sobre os mais vários temas literários -particularmente sobre a vida e a obra de Castro Alves, seu carro-chefe. Pergunto se isso é verdade:

-Mais de quinhentos contos? Um sorriso um tanto malandro: -Mais, meu caro ToeI, muito mais. Você nem pode calcular o negoção que é fazer

conferência no Brasil de hoje. Sempre que eu quero ajudar algum intelectual mais jovem, aconselho: "Façam conferências, sobre qualquer coisa. É uma indústria". Numa só conferência eu ganho o que toda a edição de um livro não me dá. Por aí você vê. É uma coisa formidável. Quinhentos contos! Mais, muito mais!

-Quanto, então? -Ah! Isso não digo. É segredo profissional. E tem o imposto de renda a querer sempre

levar mais.

A ARTE DA CONFERÊNCIA

Agripino Grieco tem suas idéias próprias a respeito da arte de fazer conferências. Diz ele:

-Uma conferência deve ser como uma ópera. O conferencista é o tenor. Mas uma ópera brejeira, um tanto bufa, assim como O barbeiro de Sevilha, por exemplo. Ora, toda ópera tem suas árias preferidas. Pois então é martelar nessas árias! O tenor, isto é, o conferencista, não precisa andar de um lugar para outro carregando na pasta quilos e quilos de parti-

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turas diferentes. Duas óperas, quero dizer, duas conferências bem improvisadas e bem decoradas, nada mais salutar e previdente do que um improviso bem improvisado, são o suficiente para toda uma turnê pelo Brasil inteiro. Ou quase inteiro. Com uma palestra cuidadosamente preparada sobre Castro Alves e outra sobre a poesia portuguesa, com muito recitativo de Camões, eu posso correr cinco estados. Ambas causam sempre grande efeito. Além disso, não esqueça, uma conferência não exige despesas com orquestra, coro, figurantes e cenário. Sou eu somente, e mais alguém para cuidar da publicidade, da venda dos ingressos, da visita antecipada aos jornais, da escolha do local onde a coisa irá acontecer. E para isso tenho o Salomão Jorge, uma fera que defende com olhos e dentes os quarenta por cento que lhe pago. Não pode haver negócio mais seguro.

Tudo isso, contado assim com o jeito de Grieco conversar, aos brados e em grandes gestos, é um encanto. Para cada pergunta, mesmo a mais inconveniente, ele tem uma resposta pronta, quase sempre irônica ou sarcástica. Quando, por exemplo, lhe pergunto quais os requisitos necessários a um conferencista, ele não hesita:

-Primeiro, talento. Segundo, contar com graça o que está contando. Ter cultura. E, principalmente, não ser chato. Veja o caso do Pedro Calmon, que é doido para falar em público. Mas como é enervante. Já dormi várias vezes em conferências dele. Numa delas, cheguei a roncar. Outro exemplo de mau conferencista: o adiposo senhor Filinto de Almeida, outro teimoso falastrão. Mas, quando abre a boca, dela não sai nada que valha a pena ser ouvido. "UM CONFERENCISTA NÃO DEVE DEMORAR MAIS DE DOIS DIAS NUMA CIDADE

Grieco me revela como teve inicio a sua fase de conferencista: -Anos atrás o Assis Chateaubriand me pediu que eu escrevesse qualquer coisa para

comemorar o aniversário da morte de Martins Fontes. Depois resolveu que em vez de um artigo eu fizesse uma conferência sobre o poeta santista, conferência que seria pronunciada lá mesmo, em Santos. Concordei. Fui para Santos e fiz a conferência. Durante o transcorrer da palestra, notei que um certo senhor, postado numa cadeira da frente, não tirava os olhos de mim, todo atento, como que pesando e medindo as minhas palavras. Ao terminar a conferência, fui procurado por ele. Tratava-se do poeta Salomão Jorge, autor de poemas "orientais". Me abraçou forte e foi logo me dizendo: "O senhor, seu Grieco, é dono de um rico dom. Precisamos os dois explorar esse dom!". E sugeriu que eu fizesse uma turnê de conferências de inicio por Minas e São Paulo, em seguida por outros estados, tudo com entrada paga. Ele, Salomão, me acompanharia: venderia os bilhetes, conversaria com o prefeito, cuidaria de arranjar local. Levaria uma comissão, é claro. A principio, confesso, achei que não ia dar certo. Mas Salomão é um exímio homem de negócios, entende de dinheiro como mais ninguém. E tudo deu certo. Ganhamos os dois, com as conferências, andando ai pelo Brasil das capitais e do interior, muito dinheiro. Até hoje costumo dizer que eu sou "as minas do Salomão':

Uma pausa, Grieco esfrega as mãos, prossegue: -Já lhe disse que o segredo da coisa é a gente virar tenor. Mas há outro segredo: um

conferencista não deve demorar mais que dois dias numa cidade. É a tal história: a

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intimidade acaba com a auréola. Vá embolsando o dinheiro e dando o fora. É o que sempre faço, ou fazia, e isso também por conselho do Salomão, que nunca erra. Em resumo, as conferências itinerantes resolveram meu problema financeiro. E principalmente os do Salomão. O desgraçado está mais rico do que eu! Rico, eu? Dinheiro quem tem é ele.

"MUSSOLINI VAI ACABAR COM A ITÁLIA"

Na Itália, o pai de Agripino Grieco era um admirador fervoroso de Garibaldi e Mazzini, o que dele fez um ardente maçom e mais ardente ainda republicano. No início do fascismo, quando Mussolini mandou fechar a maçonaria e passou a perseguir sem pena os maçons, o tintureiro Pascoal Grieco enfureceu-se e não cansava de dizer, em discursos-relâmpago ou lá na sua tinturaria, ao atônito pessoal de Paraiba do Sul, para onde emigrou, correndo do fascismo, e onde nasceu seu filho Agripino:

-Mussolini vai acabar com a Itália! Vai matar a Itália! É um estúpido, um fanfarrão! Agripino, o filho mais velho do tintureiro Pascoal Grieco, assim define Paraiba do Sul,

sua terra natal: -Uma cidadezinha pobre, sem indústria, sem nada a não ser a fonte de água mineral

Salutaris. Mas a Salutaris não dá nada à cidade: é um tesouro explorado por senhores riquíssimos aqui do Rio que nunca aparecem por lá. Mas o povo de Paraíba do Sul, que não é tolo, sabe como se vingar: só bebe água Caxambu ou São Lourenço.

E mais: -Hoje, Paralôa do Sul é um lugar de espíritas e de funcionários públicos aposentados.

Mas não foi assim no passado. No tempo do Império, Paraíba era um formigueiro de revolucionários exaltadíssimos, e aí você vê que meu pai, ao deixar a Itália, não a escolheu em vão para sua nova moradia. Revolução ou "revolução" rebentava lá como tufo de capim numa rua de Botafogo, dessas onde o asfalto ainda não chegou. Basta dizer que certa vez Paraíba chegou a ser capital da província. A coisa demorou somente um dia, de forma que quando vários cidadãos irredentistas vieram à nova capital, para festejar a vitória, tiveram que voltar às pressas, antes que a polícia lhes deitasse a mão: a capital não era mais capital. Mas o fato é que a Paraíba do Sul de hoje, apesar de tanto espírita e tanto aposentado, continua a ser uma cidadezinha cheia de malícia e um tanto belicosa. Creio que este meu temperamento extrovertido, essa minha língua solta que incomoda tanta gente, eu herdei da gente de lá e não da minha família "carcamana". Meu pai nasceu na Basilicata, no sul da Itália, uma região agreste e fechada, célebre apenas pelos seus bandoleiros.

DE TINTUREIRO A TELEGRAFISTA DA CENTRAL

A infância de Agripino Grieco, em Paraíba do Sul, não foi das mais risonhas. Ainda bem moço, dele apoderou-se uma insaciável sede de leitura, o que o levava a enfurnar-se horas inteiras na biblioteca da Câmara Municipal, a devorar tudo o que lhe aparecia pela frente, de Júlio Verne a Paulo de Kock. O pai queria que ele fosse bacharel, "só para contrariar os ricos da cidade". Mas o fato é que Grieco não teve outra instrução além da

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primária, a que se seguiu um curso de telegrafia. Em Paraíba, quando ele não estava ajudando o pai na tinturaria (lavava os panos, junto com os outros empregados, nas águas do Paraíba), ia para a biblioteca ou ficava em casa escrevendo. Iniciou vários romances, enchendo páginas e mais páginas de velhos livros de escrituração mercantil. Eram histórias nas quais os personagens cen- trais eram bandidos terríveis que, na imaginação do romancista adolescente, inquietavam e aterrorizavam a pacata vidinha de Paraíba do Sul, "uma cidade onde só existem mesmo, além dos espíritas e aposentados, mosquitos e muita pedra".

Foi em 1906, aos dezoito anos, que Grieco resolveu mudar de vida: inscreveu-se no concurso para telegrafista da Central do Brasil. Foi classificado e veio para o Rio. Guardadas as distâncias, sua vida no Rio não mudou muito. Trabalhava e lia. A biblioteca que freqüentava era agora mais dotada ("ficava no largo da Lapa, creio que não existe mais"). Lá se metia Grieco, quando das horas vagas, e mergulhado nos livros ia varando a noite, até que o funcionário do turno da noite anunciava, a voz grossa e pesada "Vai fechar!".

LAUDELINO FREIRE FOI O SUJEITO MAIS BURRO QUE CONHECI EM MINHA

VIDA"

Em 1910, Grieco publica seu primeiro livro, Ânforas, versos ainda escritos em sua quase totalidade em Paraíba do Sul.

-A princípio -me diz Grieco -tentei publicar o livro numa tipografia de Barra do Piraí, mas o dono da tipografia pediu um adiantamento de 200 mil-réis, dinheiro que eu não tinha. Acabei imprimindo-o aqui no Rio, numa edição de mil exemplares, que pretendia vender aos amigos. Se a luta para vender foi uma dureza, calcule o que não foi para cobrar os que ficaram devendo, a maioria deles. Não consegui passar mais de uns trezentos exemplares. O resto ficou encalhado lá em casa, embora o livro não fosse de todo ruim, tanto assim que mereceu elogios de Raimundo Correia e José Verissimo.

O segundo livro -Estátuas mutiladas -é de 1913, uma coletânea de contos: -A maioria das histórias do livro se passa em Florença, e noutras cidades italianas que

eu jamais vira e que só iria conhecer muitos anos depois, já bem maduro. Mas a imaginação não tem fronteiras. E também pouco ou nada entende de geografia.

Confessa-me Grieco que, publicado seu segundo livro, sentiu-se como se não tivesse nada mais a escrever. "É como se tudo dentro de mim estivesse vazio."

"Eu não seria mais, para o resto da vida, senão um burocrati', pensava comigo mesmo. Então me mudei para uma casinha em Terra Nova, um subúrbio bem distante [ainda hoje é], da Linha Auxiliar, levei comigo meus livros, que então já eram centenas, e até 1920 fui levando aquela vidinha: da casa para o trabalho, do trabalho para casa. Mas jamais perdi o contato com os livros. E também com as livrarias, que sempre visitava. Passava na Schettino, batia um papo com um e outro literatos, depois dava um pulo até a Quaresma, ia até a Garnier, e isso quase que diariamente. Depois, casa. E mergulho sem pausa na leitura, até dez, onze, meia-noite. Não lia até mais tarde porque tinha que acordar cedo: o emprego na Central começava às oito horas e Terra Nova fica nos cafundós.

Mas estava escrito que Agripino Grieco não seria apenas um burocrata. Todos os dias ele se encontrava com Lima Barreto na Livraria Schettino, que ficava na rua Sachet, mais tarde travessa do Ouvidor.

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-Lima Barreto -me diz -andava sempre encharcado de cerveja, mas jamais perdia a lucidez.

Outro amigo da época, também freqüentador da Schettino, foi Coelho Cavalcanti, a cujo "imenso talento" Grieco refere-se com entusiasmo.

Com Coelho Cavalcanti, Grieco dirigiu um panfleto -A Pua -, que não passou do primeiro número. Logo depois, os dois fizeram um outro semanário, que também não foi além do número um.

-De um certo modo, sou um especialista em primeiros números. O fato, porém, é que os dois panfletos haviam revelado um Grieco até então

desconhecido: um Grieco definitivamente desligado dos seus compromissos dannunzianos, dono agora de uma prosa corrente. E, principalmente, um Grieco irreverente que logo depois se mostraria, por inteiro, no ABC, recentemente fundado por Fernando Borla.

-Entre 1913 e 1920 eu tinha lido muito, desordenadamente, tinha lido tudo. Era também de descarregar tudo o que havia lido e aprendido. Particularmente, era tempo de separar o joio do trigo, dizer do que gostava e do que não gostava. E isso sem meias palavras. Comecei a malhar os medalhões. E o primeiro deles foi o Laudelino Freire. Sei, Joel, que Laudelino é sergipano, como você. Mas que besta! Pode escrever aí, com todas as letras: Laudelino Freire foi o sujeito mais burro que conheci em minha vida!

PACIÊNCIA COM OS NOVOS

Quando Tristão de Ataíde deixou o rodapé de crítica literária que assinava em O jornal indicou Grieco para substituí-lo. E esse rodapé é que iria consagrar de vez Agripino Grieco. O seu jeito ferino, sarcástico, impiedoso com os medalhões e paciente com os novos deu-lhe fama imediata.

Sente-se que Grieco tem uma visceral ojeriza pelos velhos, particularmente os velhos medíocres. "Todo medalhão é medíocre. Quem tem talento nunca vira medalhão:'

-Nunca ataquei um novo, um principiante. Para os que estréiam deve-se proceder como os bancos fazem com um cliente faltoso: dar um prazo para que se reabilitem, paguem seu débito. Se depois do primeiro livro de versos, do primeiro romance, o rapaz voltar com um segundo pior que o primeiro, então, sim, lenha nele. É assim que procedo, e creio que estou certo. Como também creio estar certo quando me volto, e com toda fúria, contra os julgamentos aparentemente cristalizados. Para escândalo de muitos, fui o primeiro a dizer que Lima Barreto é o maior de todos os nossos romancistas. E quando Raul de Leoni apareceu, fiz um bruto barulho em torno dele.

Grieco senta num degrau da escada movediça, encostada num dos cantos de sua enorme biblioteca, diz:

-Não sei bajular ninguém. Se não fosse assim, há muito tempo que estaria na Academia. Convite é que não tem me faltado. Mas sei por que me querem lá; apenas para que eu segure a minha língua, comece a falar bem dos que me elegeram, o que seria para mim pior que a própria morte. Você já calculou eu escrevendo um artigo de elogio aos poemas do seráfico senhor Aloísio de Castro? A elogiar o Cláudio de Sousa, o Osvaldo Orico, o Filinto de Almeida?

Segundo Grieco, "ou a Academia se renova, ou morre de vez". -Quem devia estar lá, numa nova Academia, era o Alvaro Moreyra, o Marques

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Rebelo, o José Lins do Rego, o Graciliano Ramos, o Jorge Amado, a RacheI de Queiroz.* Eles deviam invadir numa tarde de quinta-feira aquilo lá e botar para fora, a chicote, aquela velharia toda, e passar a ocupar as cadeiras vazias. Que vazias já estão mesmo quando ocupadas pelos seus medíocres ocupantes atuais. Não é uma idéia?

* Todos esses autores acabariam sendo eleitos para a Academia, com exceção de Graciliano Ramos. (N. E.) MUSSOLINI: UM PALHAÇO

Em 1936, o governo fascista de Mussolini andou recrutando escritores brasileiros para uma viagem à Itália. Grieco foi um dos convidados. "Claro que aceitei sem vacilar. Você já calculou uma viagem à Itália, terra do meu pai, com tudo pago?"

Com ele seguiram Henrique Pongetti, Jorge Maia, Licurgo Costa, Abner Mourão, outros mais.

-O embaixador italiano nos reuniu aqui no Rio em torno de um monumental espaguete. Mas a massa estava ruim, insossa, e de comida italiana eu entendo. Pensei comigo mesmo: "Macarrão sem gosto e malfeito na própria embaixada da Itália é mau sinal: o tal do fascismo não podia ser lá grande coisa". Bem, lá fomos, mas para mim, como já previa, a viagem foi uma decepção. Fui lá para ver Florença, Veneza, Nápoles, e acabei não vendo nada disso. Só máquinas, canhões, colheita de trigo, e discursos e mais discursos, e "Viva il Ducef', e a inflada cara dele pregada em tudo que era muro, em tudo que era parede. Certo dia, acompanhados por Alfieri, um dos gerarcas* fascistas, fomos finalmente à presença do "grande homem", lá no Palazzo Venelia. Atravessamos salas e mais salas: aqui, uma repleta de livros; mais adiante, outra pejada de quadros. Na última, quase do tamanho do largo da Carioca, lá estava ele, Il Duce, em pé por detrás de uma mesa sem tamanho, os braços cruzados, todo empertigado. Ao nos ter mais próximos, gritou, isso mesmo: gritou!, para Alfieri: "Já mostrou tudo? Já deu aos nossos visitantes uma idéia da grandeza do fa:scismo?". Ah, ia esquecendo. Antes dessa interpelação, ele havia soltado outro berro: "Quem são? Que querem?", como se o truão não soubesse quem éramos e o que ali estávamos fazendo. Um tanto trêmulo, Alfieri entregou ao chefe um papel com a programação de nossa visita. Entre-

* Gerarca: nome dado aos dirigentes fascistas na Itália. (N. E.) gou é uma maneira de dizer. Na verdade, Mussolini arrancou, num safanão, o papel da mão de Alfieri, passou os olhos rapidamente para o que nele estava escrito, gritou mais uma vez: " Benissimo.r: E voltou a berrar: "Não deixem de ir a Herculanum.* Têm que ir! Em nenhum lugar da Itália se encontram traços tão profundos de romanidade". Depois começou a falar do Brasil, de Matarazzo, dos portugueses, do seu amigo Salazar, da raça latina, da tal de romanidade, e de canhões, aviões, cada vez mais berrante. E foi só, a coisa toda não demorou mais que dez minutos, talvez menos. De repente, deu-nos as costas e foi postar-se diante do janelão atrás dele e dali ficou a olhar a praça lá embaixo. Era como se não existíssemos. Com um gesto, Alfieri sugeriu que era hora de darmos o fora. E lá fomos

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nós, o Alfieri quase na ponta dos pés. Esse o Mussolini que vi de perto: que grande palhaço! Aliás, o fascismo inteiro, com aquelas fardas de ópera, aquelas encenações de papelão, aqueles pobres balillas** com suas espingardinhas, aquele conde Ciano, tão enfatuado quanto o próprio Mussolini, seu sogro, tudo não passava de uma grande palhaçada! Ao voltar ao Brasil, logo na primeira escala, em Recife, ao ser procurado pelos jornalistas locais, fui categórico: "Fui à Itália e não conheci a Itália. Mas pretendo juntar dinheiro e voltar lá, depois da queda do fascismo. Pois vocês não tenham dúvida: aquilo não vai demorar muito". E então, ao chegarmos ao Rio, o embaixador italiano ofereceu um grande almoço a todos que estavam voltando de sua terra. Todos, menos eu. Em suma, ToeI, meu pai tinha razão: o fascismo vai acabar matando a Itália. A não ser que a Itália, a verdadeira, a dos museus, a dos pintores e escultores, acorde e mate o fascismo.

* Região do sul da Itália, em Nápoles, que junto com Pompéia foi soterrada pelas lavas do Vesúvio. (N. E.) ** Balilla: na Itália durante o fascismo, rapaz entre oito e catorze anos que pertencia a organizações fascistas de caráter paramilitar. (N. E.) Dezoito poetisas contra o mundo em chamas Rio de Janeiro, junho de 1944.

Ao meu lado, no largo salão do Liceu Literário Português, está um cavalheiro magro e inquieto, embrulhos domésticos equilibrados sobre as pernas. Seu entusiasmo, diante do interminável recitativo, vai num decrescendo: ele teve palmas calorosas para o primeiro discurso de d. Iveta Ribeiro, para as senhoras e os senhores que passaram a ocupar lugares na mesa de honra, para as mensagens lidas pela cantora dublê de poetisa Maria Silva Pinto. Mas agora suas palmas são quase flácidas, a festa literária já lhe trouxe dois bocejos, e ele não pode esconder sua contrariedade quando o pequeno embrulho de manteiga escorrega e vai se esborrachar no chão. Vira-se para mim e diz:

-Em que diabo eu vim me meter! Cheguei aqui para esperar a hora do ônibus, pois à tarde é impossível a gente pegar lugar. Mas estas moças não param de falar e não sei como sair.

Puxa o relógio do bolsinho da calça (um relógio grosso e azinhavrado), suspira: -Vou chegar em casa à meia-noite! É um homem tímido; sugiro-lhe que deslize até a porta de saída, ganhe a rua livre. Ele

relanceia os olhos em derredor, sente-se derrotado: -Como é que posso fazer isto com tanta gente assim? Arruma novamente os pequenos embrulhos, passa o lenço

pela testa suada, acomoda-se dentro de sua paciência e de sua timidez: -Vou esperar. Estas madames não vão ficar aqui a vida inteira.

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PARTE 02 A MILÉSIMA SEGUNDA NOITE DA AVENIDA PAULISTA

D. IVETA SOFRE DERROTAS

E aqui estão, no grande salão, um repórter encolhido, um cavalheiro tímido que sofre, e senhoras, dezenas delas, que recitam, cantam e discursam. É uma tarde de quinta-feira, calor de fim de inverno, e d. Iveta Ribeiro, fundadora proprietária, coordenadora e incentivadora do Clube das Vitórias-Régias, vive um dos seus grandes dias. Ou talvez seja exagero nosso, pois é muito possível que, nesta tarde de quinta-feira, a antiga diretora do Brasil-Feminino esteja sofrendo uma de suas derrotas mais sérias. Os jornais haviam me informado que naquela tarde e naquele salão as senhoras do famoso clube se reuniriam em grande estilo, para uma homenagem à poetisa Gabriela Mistral e ao embaixador do Chile. Mas d. Iveta (ela está afogada num luminoso vestido preto, continhas brilhantes sobre o colo maciço), uma peninha vermelha e comprida fugindo do chapéu quase microscópico, abre a sessão e revela duas grandes melancolias:

-Minhas senhoras e meus senhores, gentis "Vitórias", uma notícia triste: a poetisa Gabriela Mistral não pôde comparecer, por motivo de saúde. Mandou-nos, no entanto, uma mensagem que a poetisa Georgina Abrán, sua representante, nos lerá no correr da sessão.

Entrevejo alguns rostos decepcionados, e uma senhora que está à minha frente resmunga para o marido, um senhor de calva cor-de-rosa:

-Motivo de saúde! Pois sim. Eu bem sabia que a Gabriela não viria. A outra, melancólica: -Também o senhor embaixador do Chile não pôde comparecer. Tem um encontro

marcado precisamente para esta hora, é o que acaba de nos informar o seu secretário, que assumirá a presidência da sessão..

E o secretário é nada mais, nada menos, que o meu amigo Rodrigo González Allende, indubitavelmente um mártir da diplomacia. Jogam-no em cima de uma alta e larga cadeira, sobre o estrado central. D. Iveta, diligente e desembaraçada, cochicha alguma coisa no ouvido do secretário, passa-lhe um papel datilografado. Dentro de mais alguns segundos, a dona do clube, primeira oradora inscrita, levanta-se do seu lugar e diz ir explicar os motivos daquela reunião.

o OÁSIS E O MATERIALISMO

Então, o salão já está repleto. Vejo caras conhecidas, os mesmos penachos, os mesmos tremendos chapéus com montanhas de fitas, flores e plumas, os olhos lânguidos da poetisa Maria Sabina, os mesmos "lagos" encadernados nas suas roupas graves, o olhar embaciado do poeta Murilo Araújo, sólidas coleções de anos se escondendo, em vão, sob as

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deficientes possibilidades do batom e do pó-de-arroz. Uma fauna conhecida e gasta, desco- bertos astros do velho sistema planetário que, há anos, d. Iveta vem comandando como o sol de todos os dias. As senhoras são minhas antigas conhecidas, mas serei sincero dizendo que nestes últimos quatro anos nenhuma delas mudou muito: a velhice cristalizou-se em quase todas, e possivelmente daqui a vinte ou trinta anos d. Maria Sabina terá os mesmos olhos amassados e as mesmas olheiras castigadas. Estará mais gorda d. Iveta? Não saberei dizer, mas o lorgnon, equilibrado no nariz grosso, certamente será o mesmo. A voz também (uma voz gutural e meio fanhosa que me ficou para sempre na lembrança depois de um discurso integralista na rua Sachet), e também a peroração que em suas linhas gerais é a repetição dos velhos slogans de antes de 1938.

Cochicha a senhora ao meu lado, novamente debruçada sobre o cavalheiro de calva rósea:

-A Iveta não faz um discurso sem falar em materialismo. É que o materialismo tem sido o inimigo cotidiano de d. Iveta,

e para ela "materialista" é todo aquele ou tudo aquilo que condena suas artimanhas políticas ou não leva a sério seus recitativos semanais. Mas a persistência é a sua grande arma, e aqui está ela a repetir o que vem dizendo sempre em comícios, em quadrinhas e em chás beneficentes:

-Esta festa é um oásis dentro do materialismo em que se afoga o mundo.. A guerra está rebentando lá fora, mas nós, as "Vitórias-Régias", não nos deixamos dominar pelos maus instintos. O mundo bárbaro não nos contaminará, porque nossa poesia é mais forte que as espadas dos homens. Nesta solenidade de hoje, um mar de rosas sobre a cabeça da poetisa Gabriela Mistral, nós afirmaremos mais uma vez, através de nossos versos, que não nos deixaremos matar pelo materialismo.

O magnésio do meu companheiro Celso Moniz rebenta bem em cima da oratória de d. Iveta, mas ela não se altera. Estira os braços, numa típica posição de ginástica pelo rádio, e termina:

-Esta, portanto, gentis "Vitórias", é a nossa missão: ficarmos sempre ao largo das baixezas e das brutalidades do mundo, guardadas dentro do cofre dos nossos versos.

O escritor Silvio Júlio aplaude com veemência, diz qualquer coisa ao ouvido da senhora argentina (ou peruana, ou chilena, ou paraguaia). A senhora sorri e responde:

-Oh! Silvio, usted es incansable. O fim do discurso de d. Iveta é apenas uma ligeira trégua: ela se senta, mas o meu

amigo Allende lhe dá novamente a palavra, e agorad. Iveta se derrama numa saudação em versos. A saudação é para Gabriela Mistral, que as "Vitórias" acreditam presente em espírito, e os versos são maus. Quadrinhas rurais, cívicas e campestres, um amontoado de fáceis rimas em im, ão e ante. As rimas batidas servem de patins poéticos, e armada deles a musa de d. Iveta, durante dez minutos, escorrega tranqüila sobre uma límpida e glacial superfície de lugares-comuns. Guardo dois ou três versos: "Boninas do campo", "Gentis jasmins", "Nosso Brasil verde-amarelo", "Salve mestra das mestras".

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AO ÊXTASE SUCEDE O RECITATIVO

Mas a propósito de d. Maria Sabina, só me lembro de uma fogueira que ela trazia à cabeça, à maneira de chapéu, e do seu olhar estático (um misto de resignação e sofrimento, como o olhar de certas mulheres que encontramos nas filas da carne e do leite), solidamente derramado sobre a assistência. Ela permanece assim contemplativa durante alguns minutos, as mãos caídas ao comprido, e estou me recordando agora de uma lição sua, em 1941, quando, numa entrevista, lhe fiz qualquer per- gunta sobre a arte de dizer: "Ao êxtase sucede o recitativo, nunca antes".

A voz de d. Maria Sabina tem a força penetrante das coisas finas: enche a sala em linhas retas, atravessa as bambinelas, grita aos ouvidos do poeta Camões que faz pontaria no fundo do salão, naturalmente deve estar sendo escutada lá fora, no mundo em chamas dos jornaleiros e das manchetes. Mas se trata de uma voz inútil, como a dos camelôs: d. Maria Sabina fala de um riacho tranqüilo, bordado de nenúfares, de um céu azul "como não há outro igual no mundo", de bosques encantadores. A poetisa se esforça para nos convencer de que tudo é bonito e feliz, mas os maiores inimigos de sua convicção são os seus próprios olhos amarrotados.

UMA SENHORA DO CONTRA

As palmas desabam sobre um cândido e modesto sorriso de d. Maria Sabina, e ainda dentro delas ergue-se a cantora Maria Silva Pinto, a conhecida virtuose dos gorjeios e chilreios. Lembro-me do programa de estúdio da pesada emissora, e tremo: não, não, d. Maria não nos fará isto! De fato não nos fará -lerá apenas, a pedido de d. Iveta, algumas mensagens chegadas à reunião, e a maioria delas são de "Vitórias" que por motivo de saúde não puderam comparecer. São os tais achaques do outono. Aqui está um gentil cartão da poetisa Matilde de Almeida, aqui está um longo memorial da "intelectualidade feminina do estado do Rio" que não pôde chegar a tempo em vista do novo horário da barca Terceira. As escritoras paranaenses mandam, em duas robustas folhas datilografadas, elogios para a homenageada e para d. Iveta, e para elas d. Iveta (vem na mensagem) é uma "frondosa árvore sempre dadivosa".

Novamente as poetisas se sucedem sobre o estrado mas agora pouco posso divisá-Ias, já que o fotógrafo Celso Moniz, com o seu magnésio (há falta de lâmpadas no mercado), transformou o salão num retalho do mundo em chamas que está lá fora. A densa fumaça se esparrama, joga uma nuvem grossa de encontro ao teto, e as senhoras e cavalheiros estão discretamente levantando os lenços à boca. Escuto, por detrás da fumaceira, a voz da representante do Pará, que balbucia a sua "Terra amazonense": "Que linda paisagem!/ Que lindo arrebol!".

Escuto, graciosa, a vozinha da poetisa lná Secundino: "Sou um pássaro". Mais fortes, rompem a trincheira de fumaça os versos da poetisa baiana, escondida

atrás de uma surpreendente indumentária verde e cor de abóbora: "Trabalhai, trabalhai,/

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Quem trabalha vive feliz". Conselhos, de resto, que não encontrarão acolhida ou refúgio nos pontos de vista

daquelas senhoras, inimigas declaradas do tricô e do ferro de passar. Este é o meu pensamento, e também assim deve pensar a senhora à minha frente -mais uma vez ela encosta os lábios untados de batom no ouvido do marido, e murmura num timbre acessível:

-Trabalhar! E por que ela não fica em casa tomando conta dos netos?

A FUGA

A reunião possivelmente se estenderá por mais de uma hora ou duas, pois consulto o programa e vejo que ainda não se fizeram ouvir nove ou dez musas estaduais. Mas Celso Moniz, do lado de fora, me acena com o tripé: está satisfeito e vai dar o fora. Levanto-me com cuidado, e já era tempo: meu amigo Rodrigo González Allende acabava de convidar d. Maria Silva Pinto para um número de canto. Saio na ponta dos pés e levo comigo o homem que veio esperar a hora do ônibus. Na porta, afogado no mar de embrulhos, ele desabotoa o colarinho, afrouxa a gravata e me diz:

-Nunca mais eu caio noutra! Encontro com Chatô Foi na segunda semana de julho de 1944. Com a sua desenvoltura aristocrática, de quem estava acostumado a andar, Virgílio de MeIo Franco abriu decidido a porta da sala, no quarto andar do velho edifício da rua Sacadura Cabral, no Rio, e já no interior do amplo gabinete foi me empurrando com as pontas dos dedos da mão direita, até me levar à mesa, lá nos fundos, atrás da qual um senhor um tanto grisalho enchia velozmente, escrevendo a lápis, laudas de papel de jornal.

Virgílio interrompeu-o: -Assis, aqui está o Joel, a víbora que você tanto queria. Faça dele bom proveito, e

espero que os dois se dêem bem. Despediu-se rápido: -Não posso demorar, Assis, estou cheio de trabalho. Nos encontraremos no Jóquei. Quando Assis Chateaubriand, em cujos jornais eu iria trabalhar, ergueu-se e me

estirou a mão, pensei comigo mesmo: "É mais baixo do que eu imaginava". Surpreendeu-me igualmente o tamanho do nariz, grande

demais para o corpo pequeno; a testa larga contrastava com a quase ausência do pescoço. Mas a voz, com o carregado sotaque nordestino, em nada me surpreendeu. Ao contrário, era a voz que eu esperava ser a dele, a que melhor se ajustava ao aspecto físico do nordestino atarracado.

-Seu Silveira, finalmente cá está o senhor. Demorou mas veio. Pois bem, seu Silveira, faça desta casa seu serpentário.

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Estirou-me mais uma vez a mão, que logo recolheu; e em seguida, num tom imperativo, me deu a primeira ordem:

-Procure o senhor Carlos Lacerda, aí no segundo andar. a senhor ficará às suas ordens, ele lhe dirá o que fazer.

E já sentado, novamente de lápis em punho: -E só, seu Silveira. Vá, seu Silveira. Temos muito trabalho! Muito trabalho!

Sentado atrás da mesa entulhada de papéis, Carlos Lacerda me explicou: -A partir de hoje você é funcionário, ou seja, repórter, da Agência Meridional, da qual

sou diretor. É de mim que você receberá ordens, mas não se limite a esperar por elas. Você já deve ter algumas idéias para reportagens. Sente ali na máquina e bote tudo no papel, faça uma lista de assuntos. Depois veremos.

Eu tinha algumas idéias, de forma que não custei em entregar a Carlos as minhas sugestões. Ele foi lendo, fazia um ou outro comentário, vez por outra resmungava:

-Bom, muito bom. Mas esta aqui, não sei não... Talvez dê galho. De qualquer maneira, meta os peitos. Terça-feira (estávamos na sexta) me traga a primeira reportagem. Suas matérias serão publicadas, aqui no Rio, na última página de O Jornal (capitânia dos Associados, com sede e máquinas ali mesmo, no casarão da Sacadura Cabral). Em São Paulo, saem no mesmo dia, quinta-feira, no Diário de S. Paulo e também na última página do jornal.

Despedimo-nos amáveis, risonhos -e fui à luta.

O substantivo (mais adjetivo que substantivo) "víbora", com que Virgílio de MeIo Franco me havia apresentado a Chatô, quando daquele nosso primeiro encontro, não me causou surpresas. Eu já sabia, porque o dr. Virgilio, como eu o chamava, já havia me contado mais de uma vez que era assim que Chateaubriand se referia a mim desde que havia lido uma reportagem que eu fizera sobre a grã-finagem paulista e que Diretrizes, o semanário de Samuel Wainer, onde eu trabalhava, havia publicado numa de suas edições de março ou abril de 1944. Vez por outra, ele, Chatô, insistia com o amigo Virgílio:

-E a víbora, seu Virgilio, vem ou não vem? Traga-me a víbora, seu Virgilio. Preciso da víbora, seu Virgilio.

E o dr. Virgilio dizia isto imitando com perfeição o modo de falar do poderoso chefe dos Diários Associados. Eu ria, desconversava. De fato, como podia eu, que vinha trabalhando em Diretrizes desde quase sua fundação, abandoná-Ia assim, de repente? E, mais ainda, afastar-me dos amigos que tinha lá? Além disso, ~odos nós, esquerdões e esquerdinhas, inocentes e inúteis do Partidão, centralizávamos na figura de Assis Chateaubriand o que a imprensa tinha de mais nefasto, de mais abominável.

Virgílio de MeIo Franco não concordava: -Não concordo. Chatô é um grande brasileiro e jornalista. E está no "nosso" lado. E acrescentava: -Mas já sabe. A hora que quiser, levo-o ao homem.

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No tempo em que Diretrizes era apenas uma publicação mensal franzina e de

poucos leitores, o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), o órgão criado pelo Estado Novo de Getulio para controlar a imprensa, pouco se importava com ela. A partir de 1942, no entanto, Diretrizes deu um pulo e passou a semanário de sucesso, o que foi possível com a ajuda de empresários "progressistas': aliciados por Maurício Goulart, e de políticos paulistas e mineiros que a ditadura havia levado ao ostracismo, todos radicalmente contrários a Getulio e seu regime, que copiava sem disfarçar, despudoradamente, o Estado Fascista de Mussolini. Virgílio de MeIo Franco era um desses políticos, e duvido que na época. existisse neste país quem mais odiasse Getulio do que ele. Freqüentador e mesmo colaborador da nova Diretrizes, muitas vezes ouvimo-lo dizer lá na redação, que visitava com freqüência:

-Não basta derrubar Getulio e sua corja. É preciso fuzilar todos, sem piedade! Destacado por Samuel Wainer para ser o contato entre Diretrizes e Virgílio de

MeIo Franco, toda segunda-feira eu ia ao seu escritório, no Centro do Rio, apanhar sua colaboração. Acabamos ficando amigos.

O sucesso de Diretrizes, cuja tiragem aumentava de mês para mês, ou mesmo de semana para semana, despertou a atenção e a ira do governo. O que mais irritava o regime era o fato de Diretrizes apoiar abertamente a causa dos países Aliados, que sob a liderança dos Estados Unidos e da Inglaterra, ou melhor, de Roosevelt e Churchill, estavam lutando na Europa e no Pacífico contra o totalitarismo alemão, italiano e japonês. A cada edição de Diretrizes, que toda quinta-feira logo cedo mandava apanhar na banca de jornais mais próxima, o pessoal do DIP chiava. Ao telefone, ameaçavam o Samuel:

-Você está brincando com fogo! Vamos acabar fechando esse antro de comunistas!

E não ficava apenas nas ameaças. Muitas vezes o DIP chegou a cortar a cota de papel a que a revista tinha direito. Naquele tempo era o DIP que controlava a importação e distribuição do papel destinado à imprensa, o chamado "linha-d'água". Para os jornais amigos e "compreensivos", direta ou indiretamente favoráveis à ditadura, nenhuma dificuldade: tinham o papel que queriam e pelo qual pagavam preço de banana. Mas contra os desafetos, os rebeldes, os que não rezavam pela cartilha do Estado Novo, caía a pesada mão do DIP. Era o que acontecia com Diretrizes, com A Manha, de Aparício Torelly, com O Radica4 de Mário Martins, e até mesmo com O Estado de S. Paulo, dos Mesquita, irredutíveis adversários de Vargas e cuja posição ostensiva contra o Estado Novo acabou custando ao jornal uma intervenção direta do governo, tutela que durou quatro anos.

Para os que sabem pouco da ditadura getulista e de sua posição em relação à imprensa, voltemos ao caso de Diretrizes versus DIP. O semanário, por exemplo, necessitava em determinada semana de tantas bobinas de papel importado do Canadá (a guerra sustara a importação do papel sueco e finlandês) para atender à sua tiragem. Emburrado com qualquer coisa que Diretrizes havia publicado na edição anterior e que não havia lhe agradado, o pIP determinava que a cota de papel destinada ao semanário fosse cortada pela metade; ou simplesmente suspensa. Era um sufoco. Samuel tinha que se virar, comprando por debaixo da mesa, em operações sigilosas e por preço duas ou três vezes maior que o oficial, o papel que sobrava nos estoques dos jornais e publicações simpáticos a Getulio.

Conseguindo o papel, a edição de Diretrizes saía penosamente, às vezes tendo de reduzir o número de suas páginas, mas mantendo sempre, bravamente, a sua linha

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editorial, de defesa da Democracia, da luta dos Aliados contra o nazi-fascismo. Instalados no Palácio Tiradentes, os maiorais do DIP voltavam com as velhas ameaças:

-Vocês não perdem por esperar. Vamos fechar esse antro de comunistas! Foi quando um dia (em maio de 1944) Samuel teve a idéia de me mandar a São Paulo

para entrevistar Monteiro Lobato, o homenzinho de carregadas sobrancelhas, que, trajando um doméstico pijama de largas listras, me recebeu no modesto bangaló do Pacaembu com a vivacidade de um adolescente. Tinha acabado de tomar café, mas insistiu que eu provasse a canjiquinha caseira, "receita da roça", que ele não dispensava na primeira refeição do dia.

-Prove enquanto está quentinha. E capriche na canela. Fiquei lá no bangaló a manhã quase toda. Era para ser uma entrevista sobre temas

ligados à literatura e às editoras (e Lobato era escritor e editor ao mesmo tempo), mas o autor de Urupés e Cidades mortas e, muito menos, o criador do Visconde de Sabugosa não estava naquela manhã para amenidades. Inimigo declarado de Getulio, que tempos antes já o mandara prender, Lobato, em nosso encontro, deixou a literatura de lado e soltou os cachorros em cima do nazismo, do fascismo, de toda espécie de ditadores e ditaduras. E me dizendo "tome nota! tome nota!", quase aos gritos, dando pulinhos na larga e gasta poltrona de couro que praticamente engolia a sua figurinha miúda, esbravejou:

-O governo deve sair do povo como a fumaça da fogueira! Era, é claro, o título da entrevista, que Samuel publicou nas

páginas centrais de Diretrizes, além de ter dado na capa uma foto bem enfezada, e tão conhecida do país inteiro, do criador da boneca Emília. Na ocasião, o DIP não era mais dirigido por Lourival Fontes, mas por um simples capitão do Exército de poucas letras mas metido a literato, Amílcar Dutra de Menezes, tão intolerante e tão fascista quando Lourival. Quando leu a entrevista -e isso foi contado ao Samuel por quem assistiu à cena -, o capitão Amílcar berrou:

-Bem que o Lourival tinha me prevenido para essa corja de comunistas! Mas basta! Vou fechar essa porcaria agora mesmo. Me liguem para o DOPS.

As ordens foram cumpridas. E assim morreu Diretrizes, de morte anunciada e matada. Com a redação interditada, com um agente do DOPS (Departamento de Ordem

Política e Social, a Gestapo de Getulio) à porta, e mais ameaças de prisão, nada mais havia a fazer a não ser me esconder. Cauteloso, Samuel recolheu-se a uma embaixada, creio que a do Chile; e o resto do "antro de comunistas" dispersou-se. Andei uns dias por Sergipe, mas com mulher e filho para assistir, eu não podia me esconder por muito tempo. Retomei uma quinzena depois e no mesmo dia, bolso vazio, fui pedir socorro a Virgílio de MeIo Franco. Dele, pretendia duas coisas: primeiro, que me arranjasse um emprego; segundo, três contos de réis emprestados, para serem pagos logo que me fosse possível. O segundo pedido foi atendido imediatamente: na mesma hora dr. Virgílio fez o cheque (do Banco da Lavoura, mineiro), não aceitou recibo:

-Você paga quando puder. Quanto à segunda solicitação, o emprego, ele me disse, e não era uma sugestão, era

uma ordem: -Agora que Diretrizes não existe mais, nada o impede de ir trabalhar com o

Chateaubriand. Vamos até lá, ele hoje está aqui no Rio. E lá fomos. E lá fiquei.

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Trabalhei nos Diários Associados de junho de 1944 a julho de 1945. Descontados os meses que fiquei na Itália, fazendo a cobertura da FEB, reduziram-se a uns quatro meses os meus esporádicos contatos com Assis Chateaubriand. Nesse curto espa- ço não foram muitas as vezes em que entrei em rota de colisão com o chefão todo-poderoso e temperamental, cuja vontade era lei dentro de seu império e mesmo fora dele. O primeiro atrito aconteceu quando, numa manhã do princípio de julho, esbarrei no elevador com Leão Gondim de Oliveira, das figuras de proa do império Associados. Apocalíptico, Leão Gondim foi logo me dizendo, antes mesmo de responder ao meu cumprimento:

-O homem está uma fera com você! E está à sua procura! De imediato, não atinei com o motivo de tanta fúria. -Que é que eu fiz, Gondim? -Nada demais, apenas mexeu numa casa de marimbondos. A casa de marimbondos era um tal de Clube das Vitórias'

Régias, com sede no Rio, onde semanalmente se reuniam senhoras já quarentonas, todas possuídas pelos demônios da literatice. O clube era presidido por Iveta Ribeiro, poetisa de ofegante inspiração e dona de monumentais seios. O Clube se reunia toda semana numa sala do Liceu Literário Português, no largo da Carioca, e suas atividades se resumiam em tardes inteiras de recitativos e discurseiras sobre temas como "O amor e o lenço", "A lágrima na poesia brasileira", coisas assim. Havia, ainda, torneio de trovas, discursos patrióticos e cantoria ao som de um piano terrivelmente desafinado. As sessões eram públicas, embora a elas só tivesse ingresso quem estivesse decentemente trajado, com roupa de domingo.

Certa tarde, apuradamente vestido com o meu terno melhor, jaquetão e gravata, lá estive; e como tivesse me divertido, e concluído que a prosa, verso e o canto daquelas senhoras (todas escoradas em maridos abonados da indústria e do comércio) eram assunto para uma reportagem, lá voltei mais duas ou três vezes. Na verdade, eu nada tinha contra o Clube e suas matronas, a maioria de fartas carnes, outras esquálidas e de olheiras profundas, que ali se juntavam para expelir de público os fluidos e gases de sua literatice. Meu alvo era apenas a presidente do grêmio, Iveta Ribeiro, em quem eu não via apenas uma irremediável literata de farta e gelatinosa poitrine, mas principalmente o que ela fora até bem pouco: uma das líderes da ala feminina da Ação Integralista Brasileira, o partido fascista de Plínio Salgado que Getulio pôs fora da lei em maio de 1938.

Desanquei d. Iveta e também fiz um razoável estrago entre as demais Vitórias-Régias, no rol das quais figurava a poetisa Rosalina Coelho Lisboa, pessoa do afeto do dr. Assis Chateaubriand, meu patrão (na verdade, o afeto do dr. Assis não era exatamente por dr.Rosalina, mas pelo seu marido, o magnata Antônio Larraigoti, então presidente da poderosa Sul América de Seguros).

Na redação da Agência Meridional, e repetindo o tom catastrófico de Leão Gondim, Carlos Lacerda me recebeu tirando os óculos pesados e limpando os olhos com um lenço:

-Te prepara! O homem está fulo! -E daí?

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-Não sei. Ontem ele procurou você por todo canto. -Pois bem, aqui estou. Ele quer falar comigo? Pois agora mesmo vou até o quarto

andar. Mas no quarto andar um contínuo me informou que dr. Assis estava viajando, fora

para São Paulo logo cedo. Os dias foram adiando a catástrofe anunciada e que todos, Leão, Lacerda, até o Edmar

Morei, tinham como certa. Somente umas duas semanas depois, quando no elevador (e o elevador, velho, cheio de rangidos, movendo-se às sacudidelas, era um som para todo mundo), é que a tempestade se anunciou, ameaçadora. O dr. Assis não respondeu ao meu cumprimento, limitando-se a me encarar de cara fechada. Fiz que não havia notado, e já ia deixando o elevador quando ele me falou, a voz dura:

-Seu Silveira, me acompanhe. Por favor, seu Silveira, me acompanhe. Em sua sala, antes mesmo de tirar o paletó, me disse apenas

isto, num tom de voz que então me pareceu apenas magoado: -Seu Silveira, o que o senhor fez com a dona Rosalina foi

algo imperdoável. Uma crueldade, seu Silveira. Sabia, seu Silvei- ra, que dona Rosalina é uma das pessoas mais cultas e brilhantes deste pais? E é uma dama, seu Silveira! Uma dama!

E sem mais nada a dizer, voltou a sentar-se à sua mesa, onde o caos estava sempre instalado, e logo recomeçava a rabiscar a . lápis as laudas de papel ordinário. Esperei ainda alguns segun- dos, mas como ele parecesse ter me ignorado por completo fui embora.

Lá embaixo, Carlos Lacerda me aguardava, ansioso: -E então? -Então, nada.

-Ele não despediu você?

-Não tenho a menor idéia. O que sei é que ele me levou até seu gabinete e lá me disse que eu havia cometido uma imperdoável crueldade com a Rosalina. E me disse mais, que dona Rosalina é uma dama. Uma dama! Agora cabe a você, Carlos, decidir o que devo fazer. Fico aqui, à espera da demissão oficial, ou passo logo no Caixa para pedir as contas?

Carlos riu: -Se ele não o demitiu na hora, como costuma fazer, eu é que não vou tomar a

iniciativa. Continue trabalhando. Algum tempo depois aconteceu o caso do algodão. Carlos Lacerda telefonou à

noite para a minha casa, na rua Real Grandeza: -O doutor Assis acaba de me ligar de São Paulo. Quer você lá com urgência.

Pegue no caixa dinheiro e passagem. Não deixe de ir, e no primeiro avião.

No seu gabinete, na sede paulista dos Associados, na rua Sete de Abril, Chateaubriand me recebeu com inesperada amabilidade:

-Seu Silveira, tenho um prato cheio para o senhor. Vou lhe conceder o privilégio, seu

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Silveira, de desbaratar aqui em São Paulo uma quadrilha de malfeitores, de dilapidadores dos cofres públicos. Seu Silveira, o senhor vai sair daqui herói!

Não me lembro com exatidão dos detalhes. Do que me lembro é que à época Chateaubriand andava às turras, com a virulência de sempre, com plantadores de algodão, gente do roçado paulista. Lembro-me, ainda, que o alvo principal da ira do dono dos Associados era o sr. Geremia Lunardelli, "o rei do café", agora também plantado r e beneficiador de algodão. Dono de fazendas e igualmente plantador de algodão, parece que Chateaubriand, fazendeiro recente e emergente, estaria a sofrer a hostilidade dos velhos fazendeiros, que não viam com bons olhos a intrusão do jornalista num mercado por eles controlado.

-Trata-se de uma corja de salafrários, seu Silveira! Mas vamos esmagá-los! Agora mesmo o senhor irá procurar Fulano de Tal, que está à sua espera. Aqui tem o endereço. É o nosso homem, aliado de peso, que lhe fornecerá toda a munição necessária. E atire para valer, seu Silveira! Não economize munição!

O tal Fulano me encheu de documentos, cópias fotostáticas, estatísticas, gráficos, números e mais números, texto que eu devia ler "com toda a atenção", e mais uma lista de pessoas, agricultores e economistas, que eu devia procurar e entrevistar.

Devidamente abastecido, tranquei-me no quarto do Hotel Excelsior, na avenida Ipiranga, degustei a papelada toda, afoguei-me até o pescoço naquele algodoal. Dias depois publicava no Diário de S. Paulo a primeira reportagem sobre o algodão paulista, em que denunciava a ação predatória de muitos agricultores. E falei dos negócios e transações, alguns aparentemente escusos e consumados, com o beneplácito e mesmo a conivência do Banco do Brasil. A munição que Fulano me fornecera. Além de farta, era confiável, de forma que não me foi difícil escrever a série de três reportagens sobre o "A Quadrilha do Algodão", constituída, de fato, de um bando de negocistas de alto coturno, viciados em tomar dinheiro fácil nos bancos oficiais e mestres na sonegação de impostos.

A primeira reportagem, da série de três, entreguei-a pessoalmente a Chateaubriand, e logo no dia seguinte era publicada em página inteira do Diário de S. Paulo, com chamada na primeira página. A segunda saiu uns três dias depois, e com igual destaque. Agora só restava a terceira e última, a mais importante de todas, pois nela é que eu revelava, com números, fatos e depoimentos, as tramóias da quadrilha. No dia seguinte, fui correndo ler o Diário: a terceira não havia sido publicada. E também não o foi nos dias que se seguiram.

Já no Rio, queixei-me ao Carlos Lacerda: -Que é que houve com a última reportagem do algodão? ; -Não tenho a menor idéia. Aqui não chegou, vou telefonar para o Rizzini. Mas uma hora depois, já sabia. Telefonou para Carlos [Rizzini, diretor-

secretário do Diário de S. Paulo]: -O homem mandou sustar. Por quê? -eu queria saber. Estava mal escrita? Foi o que indaguei de Rizzini

quando Carlos me passou o telefone: -O que o homem me disse, quando estive com ele cobrando a reportagem, é que

não havia mais necessidade de continuar com o assunto. E que você não se

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preocupasse, que o pessoal (ou seja, "a quadrilha") já havia entregue os pontos. E pediu mais: para lhe dizer que você fez um bom trabalho.

Cerca de um mês depois, numa foto que tomava três colunas no alto da primeira página do Diário de S. Paulo, um sorri- dente grupo de elegantes cavalheiros aparecia cercando o dr. Assis. Entre eles, em posição de destaque, o sr. Geremia Lunardelli, que, no momento exato em que a foto fora tirada, fazia a prazerosa entrega ao dono dos Associados, para que fosse incluída no acervo do incipiente Museu de Arte Moderna, um valioso quadro, não sei se de Velázquez, Renoir, Modigliani, Degasou de um outro da mesma valia. Com o Diário na mão, foi trincando os dentes que procurei Carlos Lacerda:

-Você viu isto? Fui vendido! Vou embora daqui! Pareceu-me que Lacerda não estava dando muita importância à minha indignação: -Bem, se você quiser ir embora, vá. Mas não agora, de jeito nenhum. Tenho uma

tarefa para você. Você vai percorrer todas as capitais do Nordeste, de Fortaleza a Salvador, e de cada uma delas me mandar uma reportagem sobre um assunto local. O pessoal dos Associados lá no Nordeste anda reclamando que a Meridional só se interessa por assuntos aqui do Sul. É trabalho para uns vinte dias. Esqueça o algodão, pelo menos por agora.

Segui para Fortaleza, onde me demorei uns três dias, e na véspera de embarcar para Natal recebi um telegrama de Carlos Lacerda: que eu voltasse imediatamente. "Ordens do dr. Assis:' Meti o telegrama no bolso, pensei: "Deve ser ainda o caso da Rosalina. Chatô deve ter recebido novas reclamações ou mesmo queixas da dama, e certamente quer ter o prazer de me demitir pessoalmente. Pois tem que esperar. O Carlos me deu uma tarefa, vou cumpri-Ia até o fim. E sem pressa".

Em Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Aracaju e Salvador, lá estava a mesma mensagem de Carlos: "Dr. Assis ordena sua volta imediata".

Voltei exatamente 25 dias depois. Quando me viu, Carlos parecia fora de si: -Vou enlouquecer. O homem está furioso! Sabe o que ele me disse ontem à noite?

-o quê,.Carlos? -Para eu providenciar a sua prisão imediata, no lugar em

que você estivesse. -E agora? Cheguei, que devo fazer? -Procurar o homem imediatamente. Ele está lá no quarto andar. Fui, pedi ao continuo que me anunciasse. Da sala do doutor

Assis veio um berro: -Entre, seu Silveira! Dr. Assis estava de pé, atrás da mesa. Vociferou: -Onde diabos o senhor se meteu, seu Silveira? Vosmicê

não sabe cumprir ordens, seu Silveira? E por aí foi num crescendo. Antes que a diatribe chegasse a

um ponto irreversível, com uma palavra mais dura dele recebendo de mim uma resposta igualmente dura, atalhei:

-Doutor Assis, claro que sei cumprir ordens. E me demorei exatamente porque estava

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cumprindo uma delas, que me foi transmitida pelo Carlos Lacerda. Ele me deu um roteiro para reportagens em todas (escandi o todas) as capitais do Nordeste. Eu não podia voltar sem ter cumprido a tarefa. Fiz o meu trabalho, estive em todas as capitais nordestinas, pronto, estou de volta e inteiramente às suas ordens.

O tom de voz do dr. Assis agora era mais civilizado: -Vosmicê... Atalhei novamente: -Me perdoe interrompê-lo, doutor Assis, mas gostaria de

dizer alguma coisa. -Fale, seu Silveira. -Doutor Assis, se o senhor não estiver satisfeito com o ' meu trabalho, é só dizer. Vou

embora agora mesmo, me despeço do senhor com um aperto de mão e vou embora. Encarou-me fixo:

-É o que vosmicê pensa. E vosmicê está muito enganado. Veio na minha direção, apontou-me uma das poltronas: -Sente aí, seu Silveira, sente aí, seu Silveira. Ele sentou-se na poltrona defronte, voltou a repetir: -É o que vosmicê pensa. Então o senhor, seu Silveira, pensa que é fácil assim, todo

educadinho, foi um prazer, doutor Assis, trabalhar com o senhor. Adeus, doutor Assis? Assim, tão fácil? Pois vosmicê está muito enganado.

Fez uma pausa, porque o telefone o chamava, deu uns gritos não sei em quem, voltou: -Seu Silveira, desde que o senhor chegou já me deu muita dor de cabeça, já me

indispôs com amigos, me criou problemas seríssimos, seu Silveira. E agora sobe aqui para me dizer que vai embora. Não vai não, seu Silveira.

Fez outra pausa, levantou-se, foi até a mesa, voltou, um papel na mão: -Sabe do que o senhor está precisando, seu Silveira? De um corretivo pra valer, seu

Silveira. É o que o senhor merece. Sabe o que vou fazer com o senhor, seu Silveira? -Não, doutor Assis, não sei. -Pois saiba: vou lhe mandar para a guerra, seu Silveira! Isto mesmo, para a guerra!

Para a guerra! Meu espanto era total. -Por isso é que eu queria o senhor aqui, seu Silveira. Eu ainda não estava atinando bem com a coisa. Falei: -Guerra, doutor Assis? Que guerra? -A guerra, seu Silveira! Então o senhor não sabe que o mundo inteiro está guerreando?

Que até os brasileiros estão na Itália guerreando? Pois é exatamente para lá que o senhor vai, seu Silveira, para a guerra, ver de perto a briga dos nossos soldados.

Nova pausa. O tom era agora quase solene:

-o senhor vai ser Correspondente de Guerra dos Diários Associados junto à Força Expedicionária Brasileira, entendeu? Procure agora mesmo o doutor Austregésilo [de Athayde]. Ele já tem instruções, já está providenciando tudo.

E pondo fim à conversa:

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-Agora vá, seu Silveira. E só me volte aqui na véspera do embarque e devidamente fardado. Antes de partir, tenho um último pedido a fazer.

Voltei uma semana depois, devidamente tardado, Chateaubriand era todo efusão: -O senhor está uma beleza, seu Silveira! Uma beleza! Deu uma volta em torno de mim, repetiu: -Uma beleza! Depois me despediu: -Agora vá, seu Silveira. Estendeu-me a mão. Antes de estender a minha, falei: -Doutor Assis, estou me lembrando do que o senhor me

disse quando do nosso encontro anterior, que tinha um último pedido a fazer. Ele riu, e disse:

-Tem razão, seu Silveira, ia esquecendo. Tenho mesmo um pedido a lhe fazer. Vá para a guerra, seu Silveira, mas, por favor, não me morra! Não me morra, seu Silveira! Repórter não é para morrer. Repórter é para mandar notícias. Vá, seu Silveira.

E me deu as costas.

As muitas guerras de Monteiro Lobato A atividade literária de Lobato começou praticamente no dia 12 de novembro de 1914, quando apareceu na terceira página de O Estado de S. Paulo daquele dia um artigo de José Bento Monteiro Lobato, fazendeiro em Taubaté. Lobato tinha então 32 anos, e o artigo seria quatro anos depois incluído, sob o título de "Velha praga", em Urupês, coleção de contos e escritos vários que foi sua primeira obra publicada e por muitos considerada o seu melhor livro. Os trechos iniciais do artigo davam uma idéia do que já era o estilo do futuro autor de Cidades mortas:

Andam todos em nossa terra, por tal forma embevecidos, quando .não estonteados pelas proezas dos belicistas vons alemães [a Primeira Guerra Mundial acabara de explodir] que não sobram olhos para enxergar males caseiros. Que uma voz do sertão venha, portanto, dizer às gentes da cidade que, se por lá fora o fogo da guerra lavra implacável, fogo não menos pernicioso devasta as ,;: nossas matas com furor não menos germânico. "

o artigo, contando a luta de um fazendeiro contra a praga das queimadas e outros males. rurais, fez o maior sucesso e revelava o escritor que, no dizer de Otto Maria Carpeaux, iria "descobrir o homem do interior do Brasil", o resignado e doente caboclo interiorano do qual logo depois Lobato traçaria, com o seu Teca Tatu, o perfil imortal.

Quando morreu, no dia 5 de julho de 1948, o mais importante do que ele escreveu já estava reunido em suas Obras completas, aparecidas dois anos antes num lançamento da editora Brasiliense, de São Paulo, que até hoje continua a reeditar seus livros. As Obras completas de Monteiro Lobato se compõem de 33 obras em trinta volumes, cada um com uma média de 340 páginas. Começam com os Urupês e terminam precisamente com Os doze trabalhos de Hércules. Dos trinta volumes, treze formam sua obra "adulta": Urupês, Idéias de Jeca Tatu, Cidades mortas, Negrinha, A onda verde, O macaco que se fez

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homem, O presidente negro ou O choque das raças, O escândalo do petróleo, Ferro, Mr. Slang e o Brasil Problema vita América, Mundo da lua, Miscelânea, A barca de Gleyre e Prefácios e entrevistas. Os restantes dezessete volumes englobam a sua literatura infantil, iniciada com Reinações de Narizinho e terminada com Os doze trabalhos de Hércules.

Particularmente as campanhas na defesa do nosso ferro e do nosso petróleo, que ele liderou, e que lhe valeram tantas desventuras e até prisões, podem perfeitamente ser incluídas no rol dos maiores fatos praticados em favor do Brasil e do seu povo.

Ele foi, como disse Hermes Lima, "um realizador e implantador da indústria livreira, o homem que se preocupou com a produção do petróleo, que nunca se preocupou em ser rico e que trabalhou a vida inteira para que o país fosse rico. É, ao lado de Machado de Assis, um contista supremo". Para Tristão de Ataíde, "ele transfundiu um novo sangue à velha língua portuguesa". Viana Moog disse ter sido ele

o maior homem de ação deste pais. A quantidade de movimentos que ele desencadeou é espantosa num homem tão pequeno. Renovou a maneira de administrar fazendas do interior e levou o Brasil a pesquisar sobre petróleo. A indústria do livro ganhava dinheiro com os livros dele e perdia com os livros dos outros.

E João Ribeiro via nele "o ousado empresário de todas as nossas possibilidades". Já no fim da vida, doente e sentindo-se como um "cavalo cansado", Lobato ainda fazia

planos para o futuro e, pequeno Hércules, imaginava e projetava novas façanhas. Não ligava para a idade. Talvez porque tivesse aprendido com Emerson que "o homem só conta os anos que tem quando não tem mais nada para contar". E ele, Lobato, sempre teve muito para contar.

Em 1918, Monteiro Lobato alcançava um estrondoso sucesso com Urupês, livro de contos, hoje um clássico no gênero, e ao qual se seguiram imediatamente Cidades mortas e Negrinha. Entre 1918 e 1944, Lobato iria estabelecer no Brasil sucessivos recordes de venda de livros que somente mais tarde seriam igualados pela procura dos romances de Jorge Amado. Calculase que até agora já foram vendidos, no Brasil, uns 40 milhões de exemplares dos livros infantis de Lobato; e centenas de milhares de suas outras obras, particularmente Urupês. O sucesso imediato de Urupês deveu-se, em parte, à famosa referência que, meses depois do aparecimento do livro, Rui Barbosa, numa conferência no teatro Lírico do Rio, fez ao Jeca Tatu, o mais importante e bem construído personagem da obra e que, como disse Edgard Cavalheiro, estaria "fadado a se transformar no único símbolo realmente vivo da literatura brasileira". Escreveu Lobato na carta que mandou a Godofredo Rangel em 20 de abril de 1919:

O discurso de Rui foi um pé-de-vento que deu nos Urupês. Não ficou um só para remédio, dos 7 mil. Estou apressando a quarta edição, que irá do oitavo ao décimo milheiro. Tiro-as agora aos 4 mil. E isto antes de um ano, hein? O livro

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assanhou a taba -e agora, com o discurso do Cacique-Mor, vai subir que nem foguete.

Muitos anos depois, em outra carta ao mesmo Godofredo Rangel (de 28 de março de 1944, incluída em A barca de Gleyre, "-

onde Lobato reuniu quase toda a correspondência trocada entre os dois escritores durante mais de quarenta anos -de 1903 a 1944), dizia o autor de Cidades mortas, mal podendo disfarçar sob a capa de sua conhecida ironia o júbilo em saber-se o escritor preferido pelo seu cada vez maior público infantil:

E vim de Otales [Otales Marcondes]. Anunciou-me que com as tiragens deste ano passou o MILHAO só de livros infantis. Este número demon&tra que meu caminho é esse -e é o caminho da salvação. Estou condenado a ser o Andersen desta terra -talvez da América Latina, pois contratei 26 livros infantis com um editor de Buenos Aires. E isso não deixa de me assustar, porque tenho bem viva a recordação das minhas primeiras leituras. Não me lembro do que li ontem, mas me lembro do meu Robinson inteirinho -o meu Robinson dos onze anos. A receptividade do cérebro infantil ainda limpo de impressões é algo tremendo -e foi ao que o infame fascismo da nossa era recorreu para a sórdida escravização da humanidade e supressão de todas as liberdades.

Quando escrevia para as crianças, quando se dirigia aos cérebro infantis "ainda limpos de impressões", Lobato, como confessa na carta a Godofredo Rangel, tinha plena consciência da enorme responsabilidade que assumia diante daquele "algo tremendo". Suas histórias infantis são inimitáveis não apenas pela maneira como ele as contava, mas pela total comunicação que conseguia estabelecer com as crianças, pelo mágico poder de se fazer amigo delas, de atraí-Ias e conquistá-Ias. A prosa de suas histórias infantis é basicamente arejada, sincera e alegre -talvez porque ele tivesse aprendido com Marcel Braunschvig, a quem se refere numa de suas cartas, que "mostrar sempre à criança a felicidade que acompanha fielmente a virtude e o infortúnio que segue o vício infalivelmente é dar-lhe uma idéia muito inexata da vida e dessa forma prepará-la para mais tarde amargas decepções".

Antes dele, o que as crianças do Brasil ouviam ou tinham para ler eram as aterrorizantes histórias de Trancoso, trazidas de Portugal, quase todas elas desenroladas num reino sombrio de fadas más e rainhas vingativas, de madrastas perversas e vilões sem alma, e que mais aterrorizavam que divertiam. Ao contrário, nas histórias infantis do criador de Pedrinho e Emília não se encontram, como escreve Edgard Cavalheiro, seu melhor biógrafo,

o misticismo, a superstição, a fantasia mórbida que emboloraram o pensamento brasileiro através dos séculos. Há nelas completa libertação de velhos preconceitos; alegria de viver, saúde para o espírito; impulso para os vôos da razão que desabrocha. Deixando de lado a falsa e inoperante moral de Catecismo, Lobato enveredou por outro rumo, sem dúvida alguma bem mais consentâneo com as duras realidades da vida. Realidades que os meninos terão, um dia, de enfrentar, queiram ou não queiram. Que faz ele? Simplesmente mostra que este mundo é dos espertos, que a inteligência

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bem orientada acaba sempre vencendo a força bruta. Um plano bem executado vale mil vezes mais do que o mais potente dos muques.

Na mesma carta a Godofredo Rangel, de 1944, o próprio Lobatoreferia-se aos "dois mundos", o do adulto e o da criança, tão diferentes e por vezes tão opostos. Por não compreenderem essa diferença, dizia ele, "e considerar a criança um adulto em ponto pequeno, é que tantos escritores fracassam na literatura infantil e um Andersen fica eterno". "Um menino ou uma menina não é um homem ou uma mulher em idade reduzida. São ambos muito diferentes, como a crisálida é diferente da borboleta." Mas era ele mesmo quem confessava não saber a "receita" exata para a confecção de uma história infantil perfeita, que pudesse atingir, certeira, o alvo a que se dirige. "Entram em cena", dizia, "imponderáveis, inapreensíveis:' Mas o fato é que, como disse Manuel Bandeira numa crônica de 1933, não há a menor dúvida de que Monteiro Lobato sabia "falar às menininhas de nariz arrebitado ou não. Se a sua linguagem é às vezes por demais de gente grande, por demais gramaticalmente certa, o mesmo não há que dizer da imaginação e do espírito, sempre bem perto do adorável lirismo da infância". É que Lobato, como escreveu Heraldo Barbui, "conhecia de perto a realidade do fabuloso e o valor da imaginação. E na contraposição moderna entre o conceito racional e o mito intuitivo era o homem do mito contra o conceito". E aqui estou a me lembrar de Anísio Teixeira, grande admirador de Lobato, que um dia me disse que as lições da sábia d. Benta "poderiam servir de base para toda uma reformulação da nossa pedagogia".

As crianças o amavam; e que continuam a amá-Io atestam as sucessivas e numerosas edições dos seus livros infantis. Mas ele também amava as crianças, e não as enganava nunca. Eu mesmo senti a prova desse amor na confidência que Lobato me fez quatro anos antes de morrer, quando fui entrevistá-lo em São Paulo. Confessou-me ele, então, que não costumava guardar "cartas de literatos e excelências" que recebia diariamente, "aos montes", mas que tinha "cuidadosamente, arquivadas, como pergaminhos sem preços", as ingênuas mensagens infantis, milhares delas (e muitas das que Lobato leu para mim, naquela tarde, eram verdadeiros poemas em prosa), que todos os dias o carteiro deixava no escritório da rua dos Gusmões ou na casa do escritor desde que ele havia dado vida aos personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo -aprazívellugar que sua proprietária, d. Benta de Oliveira, "uma velha de mais de sessenta anos", dizia ser "o suco da liberdade", Paraíso Encantado onde "não bate geada, não há fogo-de-mato, nem broca de café, nem exploração de caboclo".

Nem sempre foi compreendida ou aceita a maneira singular e revolucionária (no bom sentido da palavra) como Monteiro Lobato dirigiu-se às crianças, com elas dialogando através dos seus inquietos e irreverentes personagens miúdos: o imaginoso Pedrinho, a boneca Emília, independente e astuciosa, o guloso Marquês de Rabicó, o erudito e pedante Visconde de Sabugosa, "complicado e pernóstico", a "bruteza humanizada" do rinoceronte Quindim, todo esse mundo alegre e divertido que na realidade, como observou Cavalheiro, era "praticamente governado por Emília", que "movia todos os cordéis".

Emilia [escrevia ainda Cavalheiro] nasceu como nascem as válvulas de segurança. Ou

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a seção livre dos jornais. Emília, mais do que um ser humano, é uma idéia, um pensamento. É Lobato-criança. Mas é também Lobato-adulto. Nela, mais do que em qualquer outro personagem, encontra-se o autor. Traçar-lhe o retrato psicológico é levantar, de certo modo, os véus que ocultam a personalidade de Monteiro Lobato. A respeito de ,tudo Emilia pensa de modo especial. Suas idéias hão de ser sempre novidades. Emília tem a mania da franqueza.

Lobato disse dela: "Nunca viveu em sociedade, e ainda não sabe mentir". E a própria Emília assim se retrata: "Dizem todos que não tenho coração. É falso. Tenho sim, um lindo -só que não é de banana. Coisinhas à-toa não o impressionam; mas ele dói quando vê uma injustiça. Dói tanto que estou convencida que o maior mal deste mundo é a injustiça". E o que Emília diz de si mesma, Lobato poderia dizer dele próprio -tal pai, tal filha. Como acontecia com o seu criador, com Emília tudo tem de ser "ali na batata da convicção"; e, também como Lobato, "quando se firma numa verdade é difícil torcê-la".

Inconveniente e franca, Emília não podia agradar aos espíritos mais reacionários da nossa velha e estafada pedagogia, como também não agradavam muitas das verdades do Visconde de Sabugosa, sábio que, apesar do seu pedantismo, realmente sabia das coisas e que muitas vezes as antecipava. Muitos dos livros infantis de Lobato chegaram a ser proibidos em certos colégios. Alguns -como O poço do Visconde e História do mundo para crianças -chegaram mesmo a ser queimados, como heréticos. Numa entrevista recente a uma revista de São Paulo, o ex-vereador Osvaldo Guisard, de Taubaté, refere-se a um desses autos-defé, de que foi testemunha. Contou ele ao repórter:

Foi em 1953, quando alguns padres organizaram uma verdadeira fogueira da Inquisição com os livros de Lobato, ordenando aos alunos do Colégio Santo Antônio que os empilhassem e incendiassem no pátio, depois de lerem, na hora da missa e na hora da fogueira, boletins que chamavam o batalhador do petróleo de "comunista e inimigo da família". Tudo isso apenas porque Emília, entre outros rompantes, dissera certa vez: "Eu sou a Independência ou Morte!': Ou porque o Visconde de Sabugosa, muito antes do primeiro esguicho do poço pioneiro do Recôncavo Baia- no, insistia em dizer que havia petróleo no Brasil.

E Edgard Cavalheiro escreve sobre o Poço do Visconde:

Nessa obra, o maior dos geólogos brasileiros, o Visconde de Sabugosa, faz profecias tremendas. Afirma que no Brasil há petróleo e indica com precisão lugares onde é fácil tirá-lo. Nessa época 1937 -'--, pela boca dos técnicos oficiais, o Brasil não tinha nem poderia ter petróleo. As afirmativas do Visconde não passavam de heresia. Ao fogo, portanto, com o herege.

Jornais católicos chegam a publicar este aviso, em suas primeiras páginas: "Cuidado! Tornamos a avisar a todos que o livro História do mundo para crianças é péssimo e não pode ser lido por ninguém". E num artigo de anos atrás, o escritor Raul Lima (hoje diretor

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do Arquivo Nacional) conta o que se passou no Colégio Sacré-Coeur de Jesus, no Rio, em 1942. Certo dia, uma das diretoras do colégio solicitou das alunas que trouxessem no dia seguinte todos os livros de Lobato que por acaso tivessem em casa. "Reunidos os volumes", diz Raul Lima, "a Reverendíssima Irmã e educadora fez uma fogueira, com alguns paus de bambu, e queimou-os todos:'

Emília, o Visconde, o próprio Pedrinho falam claro e não têm papas na língua. E d. Benta, do alto dos seus lúcidos e iluminados sessenta anos, por sua vez insiste em trocar "tudo em miúdos, expõe os fatos e as conseqüências com absoluta clareza e sempre na ordem direta".

As inconveniências de Emília e do Visconde e a mania de "trocar tudo em miúdos" e "sempre na ordem direta'~, que eram também características do indomável temperamento do autor de Urupês, complicaram muito a vida de Lobato, enchendo-a de agravos e cercando-a de ameaças -estas, por sinal, concretizadas nas duas prisões que ele sofreu por insistir em defender suas idéias, avançadas demais para o exigente figurino político da época, quando o espartilho mental é que dava a nota da elegância. Mas ele pouco se importava com isso, e nas salas das prisões onde foi metido divertia-se como uma criança. Um dia chegou mesmo a confessar: "Sou visceralmente imprudente e os anos não me têm modificado nisso': "Prudência", acrescentava, "é virtude que apenas conserva, como o vinagre conserva o pepino, mas não cria coisa alguma." E da prisão, em 1942, onde foi metido pelo crime de algumas cartas desaforadas que enviou a Getulio Vargas, relacionadas com o problema do petróleo, logo foi quebrada a sua "incomunicabilidade", passou a enviar a parentes e amigos cartas e bilhetes bem-humorados. Num deles pedia:

A quem perguntar pela minha ilustre pessoa diga que estou ótimo, satisfeitíssimo, na sala livre, com um belo jardim para passear à vontade e com ótimos companheiros. Um é médico, e conhece bem a botânica, de modo que quando não estou no meu trabalho de tradução, filosofamos juntos diante das flores e aprendo muita coisa.

A Teófilo Siqueira, um dos seus amigos mais íntimos, escrevia:

Creia que se me dessem uma condenação graças à qual eu ficasse aqui muitos meses, rejubilar-me-ia e aceitaria a sentença como uma oportunidade única de estudar a sociedade e a alma humana deste ponto de vista. Quem vive aí fora, solto, só fica sabendo dum pedaço da vida; aqui aprendemo-Ia inteira.

Num bilhete a Menotti Del Picchia: "Você precisa fazer uma temporada aqui: achará assunto para 92 romances. E acabará engordando". E uma das cartas que enviou da prisão ao próprio Vargas começava assim: "Atirei no petróleo e acertei na cadeia, o que prova bem má pontaria".

Mas, na prisão, ele foi testemunha de cenas e fatos escabrosos que nunca mais saíram de sua memória e que o marcaram para sempre. Já no fim da vida, confessava: "Depois que me vi condenado a seis meses de prisão, e posto numa cadeia de assassinos e ladrões só porque teimei em dar petróleo à minha terra, morri um bom pedaço na alma. Espero que seja esse o meu último

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desapontamento".

Um trecho do Monteiro Lobato: vida e obra, de Edgard Cavalheiro, que acabo de reler, me trouxe de volta um mundo de lembranças de mais de trinta anos. O trecho é este:

Das entrevistas que com tanta prodigalidade espalhou pela imprensa brasileira, [Lobato] reuniu pequena parte no volume Prefácios e entrevistas, dando preferência às mais substanciosas, aquelas nas quais expôs idéias próprias sobre os grandes problemas do momento, ou então as puramente biográficas; Joel Silveira recomendava aos amigos repórteres que, ao pretenderem arrancar algo pessoal de Lobato, não vacilassem: "Batam", diz ele, "na tecla da editora que ele fundou, levem a conversa para a sua formidável ação como editor, iniciada em 1918. Ele entrega inteiramente os pontos:'Vê-se logo -é coisa que está nos seus olhos, no seu sorriso, nos seus gestos -que o seu grande orgulho sempre será o de ter saído vitorioso da grande luta que, há vinte anos atrás, manteve contra os medalhões e a inércia do país. E tanto a Joel Silveira, como a Silveira Peixoto, a Justino Martins ou a Cel~stino Silveira, o antigo editor falou dos dias heróicos em que inundara o país de livros.

Foi na última semana de agosto de 1944. Quem é daquele tempo sabe o suplício que era se conseguir falar pelo telefone daqui do Rio para São Paulo -ou para qualquer outra parte do mundo além do Méier. Naquele dia tentei sem sucesso pelo menos umas dez vezes conseguir uma ligação do beco dos Barbeiros, no Rio, onde ficava a redação de Diretrizes, com o pequeno bangalô da Aclimação, em São Paulo, onde morava Monteiro Lobato. Ainda hoje me zumbe nos ouvidos -ou voltou a zumbir, após a releitura de Edgard Cavalheiro -a vozinha implacavelmente neutra da telefonista, a repetir, no mesmo tom torturante, o ignóbil refrão: "Os circuitos estão todos ocupados. Favor chamar novamente".

A solução, portanto, era bater na casa do escritor sem aviso prévio -o que fiz, utilizando-me heroicamente de uma das sucatas voadoras da extinta Navegação Aérea Brasileira (NAB), em cujos enferrujados bimotores qualquer jornalista podia arriscar a vida sem precisar pagar passagem. Foi o próprio Lobato quem, no fim de uma tarde friorenta mas translúcida, me recebeu na porta de sua casa: baixinho, calças cinza e paletó de pijama (com alamares). Quando lhe contei a tal história dos circuitos ocupados, seus olhos vivos e maliciosos cintilaram ainda mais sob as espessas e famosas sobrancelhas, na época já não tão negras:

-Vá entrando, meu filho. Não tem importância. Ultimamente dar entrevista é quase só o que tenho feito. Ando de língua solta.

E depois: -Quanto aos tais circuitos ocupados, não são somente os telefônicos. No Brasil

de hoje todos os circuitos estão fechados. Da próxima vez que quiser falar comigo, tente o pombo-correio. Eu mesmo estou fazendo uma criação deles, para tais emergências. Mas antes veja se o pombo é de confiança.

Revelava-se, assim, logo nos primeiros minutos do nosso encontro o intransigente e virulento rancor contra a ditadura do Estado Novo que o pusera na cadeia; e que, naqueles dias, com o nazi-fascismo sendo batido na Europa e no

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Pacífico, já não se mostrava tão segura da sua perenidade. Nossa conversa durou horas, entrou pelo começo da noite e só não se alongou mais

porque lá pelas tantas d. Purezinha, a mulher do escritor, veio arrancá-lo do repórter e da sala, no segundo andar, tomada pelos livros e por uma incrível papelada, sob a alegação de que "o jantar estava esfriando". Cauteloso, não botei na entrevista tudo o que ele me disse, mas o que foi publicado -a começar pelo titulo da matéria ("O governo deve sair do povo como a fumaça sai da fogueira") -redundou em grande confusão, antecipando inclusive o fechamento do semanário, que, por falta de modos, já estava há tempos na alça de mira do Estado Novo.*

Na semana passada andei procurando na Aclimação, em São Paulo, o modesto bangalô onde me encontrei com Lobato, trinta anos atrás, quando o bairro era acolhedor, tranqüilo e arborizado. Demorou, mas creio ter conseguido localizar o ponto exato, na incrivelmente mutante topografia da cidade que mais cresce (e mais se embaralha) no mundo, onde ficava a casinha. Mas a pracinha de antes é agora um quadrado duramente sitiado pelo cimento e vidro de um bloco de arranha-céus que agora ali se erguem, avidamente verticais. Pensei comigo que Narizinho, Pedrinho, o Visconde, Rabicó, Emília e, principalmente, d. Benta de Oliveira iriam detestar aquele lugar, tão diferente do arejado e colorido Sítio do Pica-Pau Amarelo, "o suco da liberdade". Mas é possível que Lobato tivesse se adaptado à mudança, pois foi ele mesmo quem disse um dia (noutra carta a Alberto Rangel) que "a paz do marasmo vale como medicamento; como alimento perpétuo, traz doenças contrárias. A solução da vida está no alternarmos coisas inversas -rumor e paz do silêncio, pasmaceira e tumulto, capital e cidadinha do

O episódio foi narrado por Joel Silveira na crônica "Encontro com Chatô" (pp. 59-74). (N. E.) interior". E na verdade foi isso que Lobato fez durante toda a sua vida.

Quando ele morreu, Anisio Teixeira (com quem abri e vou terminar este trabalho) disse dele, num artigo em A Tarde, de Salvador:

Lobato tudo desejou ser, no Brasil, desde fazendeiro até incorporador de sociedades anônimas; teve uma das vidas mais ativas e mais acidentadas de que se pode ter notícia, foi infeliz e insucedido na maior parte de sua trepidante trajetória pela existência; jamais fez da literatura seu objetivo e termina a vida trágica e luminosa, deixando uma das maiores obras literárias de nossa história, amado e querido como jamais foi querido e amado um escritor brasileiro. [...] Nos últimos meses, já quase sem forças, ferido de morte, recordo-me de vê-Io no canto que lhe preparou a Livraria Brasiliense, sentado em sua cadeira, fraco mas siderantemente lúcido, a receber a todos que passavam e lhe iam falar. Nunca tive tão material a visão da posteridade a falar a um escritor. O grande inquieto encontrara a sua paz. Todo seu espírito de luta se fez espírito de compreensão e de ternura. Amava os jovens e as crianças e cria no Brasil de amanhã. [...] Os demais escritores brasileiros serão admirados, mas só este foi amado e querido, como são amados e queridos os grandes mestres do povo, os que, possuindo sua candura e sua bravura, se identificam com ele e escrevem, sem querer, as grandes obras de arte que não morrem e que não os deixam morrer.

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Lobato continua e continuará a viver nos corações das crianças brasileiras, que beijam seus retratos antes de dormir, como se beijassem a um amigo ou um pai, e no espírito de todos os brasileiros, que se inquietam com o nosso destino e o sonham maior e melhor.

Conversa franca com os bandidos de Lampião

Penitenciária de Salvador, março de 1944.

Em meio à conversa, fiz a pergunta inesperada: os antigos companheiros e comandados de Lampião se entreolharam, silenciosos. Ângelo Roque baixou a cabeça e Saracura, a fisionomia carregada, pôs-se a olhar pela janela aberta. Segundos depois, Cacheado me encara com seu rosto de criança, ilumina-se num sorriso cândido e me diz:

-A gente matava como uns danados. -E acrescenta: Mas a culpa não era da gente. Ângelo Roque, "o velho Ângelo", aprovou com a cabeça. E Cacheado continuou: -Se os homens educados não auxiliassem a gente com munição, a história seria outra.

Não teria se dado nada do que se deu. Pensando bem, os criminosos são eles. Uma pessoa de bem não ajuda um bandido.

É uma tarde de quinta-feira, e estamos aqui, num dos mais amplos salões da penitenciária da cidade de Salvador, diante de seis famosos ex-cangaceiros: Volta Seca, Angelo Roque, Saracura, Cacheado, Deus Te Guie e Caracol. Deus Te Guie é quase um menino, mas Angelo Roque já vai se aproximando dos cinqüenta: tem um rosto grave, de uma tristeza séria. O sertão deixou nele profundas marcas -as faces cortadas por rugas como talhos e nos olhos um brilho de sol inclemente. Antes de começar a tomar os meus apontamentos, o diretor da penitenciária fizera um pequeno discurso aos seis antigos bandoleiros. Aquilo seria, disse ele, uma espécie de mesa-redonda, na qual o jornalista e os prisioneiros debateriam assuntos ligados ao cangaço. Que cada um contasse sua história, as razões que o haviam levado a deixar a lei, suas roças e seus empregos para a tremenda aventura do banditismo sertanejo. E que falassem livremente, com toda a sinceridade.

Angelo Roque fez um aparte, numa voz rouca: -Eu sempre falei com sinceridade. E me conta, dando início à conversa, que entrou para o cangaço para desafrontar sua

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honra. "Sempre fui um homem de ordem. Sempre vivi honestamente do meu trabalho:' Sua história é simples, e escuto do próprio "velho Angelo", na sua linguagem seca e

típica. Angelo Roque da Costa nasceu em Jatobá, Tacaratu, em Pernambuco. Entrou para o banditismo em 1928, quando conheceu Lampião. Seu primeiro encontro com Virgulino foi na fazenda Arrasta-Pé, na margem baiana do São Francisco.

-Não me esqueço da primeira impressão que Lampião me deu: a de um homem tão sujo que dava nojo.

Pouco antes de 1928, em Jatobá, um soldado da força local deflorou uma irmã de Angelo, é o que me diz. O caso foi para a Justiça, mas o soldado era protegido da política "de cimà' -as queixas de Angelo de nada valeram.

--' Então resolvi fazer justiça com as minhas próprias mãos. Fui na casa do soldado, mas só estava lá a mulher dele. Esperei na porta até que ele chegasse. De noitinha ele apareceu, e então eu lhe disse que ia morrer. Atirei duas vezes. O praça caiu de bruços, mas não morreu. Me disseram depois que andou muito tempo à beira da morte, mas não morreu.

O medo da prisão jogou Ângelo Roque na caatinga: durante vários meses, andou como um sem-pouso pelos áridos caminhos do sertão. Pouco aparecia nas cidades. Trabalhou em roças, dormia no mato. Conheceu depois Corisco e Arvoredo, e os dois lhe explicaram que a única maneira de viver tranqüilo, longe da polícia, era entrar para o cangaço. Em 1928, quando conheceu Lampião, se decidiu. Mas demorou pouco tempo ao lado de Virgulino.

Lampião não podia ficar parado num canto, e eu nunca fui homem viajeiro. Além disso, de vez em quando, a gente se encrencava. Um dia tive uma briga mais séria com ele, por causa de uma coisa sem importância. A gente estava de emboscada, na caatinga, à espera de um caminhão. Mas depois aconteceu a desgraceira.

O culpado da "desgraceira", me explica Ângelo Roque, foi o promotor de Coité, que, em 1941, requereu da Justiça estadual a prisão do "velho" e dos seus companheiros.

-Este homem sempre me quis mal, não sei por quê. Nunca fiz nada com ele. A Justiça foi implacável para com os antigos reis do cangaço: Ângelo e seus amigos

foram condenados, cada um, a trinta anos de prisão. Há meses atrás, o antigo bandoleiro trabalhou numa "Horta da Vitória', da Legião

Brasileira de Assistência e, diariamente, sem qualquer vigilância, tomava o bonde e ia para o bairro de Brotas, como um passageiro comum.

De todos os seis ali presentes, o único que tentou fugir foi Volta Seca.

Pergunto -ao famoso cabra de Lampião, seu lugar-tenente, o que pretende fazer ao recuperar a liberdade. Volta Seca -é o mais vivo, o mais alegre e o mais inteligente de todos -me responde num sorriso:

-Vou cuidar da minha vida. -E depois? -Me meto num lugar bem longe, tão longe que ninguém vai ouvir falar de mim.

Mudo de nome e vou viver tranqüilo. O que passou passou. Sua fuga, há pouco mais de um ano, foi um prodígio de habilidade e sangue-

frio: com uma lima rústica, Volta Seca conseguiu serrar uma das grades da prisão, e

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seu corpo fino e elástico, corpo de menino, deslizou pela pequena abertura e, em seguida, por um reduzido espaço entre fios elétricos do muro da penitenciária.

-Em pouco mais de vinte dias, fui a pé daqui da Bahia até Santa Luzia, em Sergipe. Não fui em menos tempo, porque um companheiro meu, que também havia conseguido escapar, adoeceu no caminho.

Converso com esse rapaz de 26 anos de idade (parece ter apenas vinte), e às vezes me esqueço que foi ele próprio, há uns dez anos, quem comandou uma série de horrores numa fazenda : de uns parentes meus, no sul de Sergipe. Seu bom humor é contagiante, e é impossível deixar de rir quando Volta nos revela, na sua maneira dialogada, ecos de sua fuga recente:

-Uma tarde cheguei numa roça e pedi emprego. A dona da roça me olhou, me olhou, perguntou depois: "Você não é o Volta Seca?". Dei um pulo para trás, gritei: "Deus me livre, minha senhora! Isto é coisa que se diga!': Então a moça continuou: "Pois já vi o retrato de Volta Seca e o senhor se parece muito com ele". Respondi: "Pois então, dona, me pareço com o diabo!".

Peço a Volta Seca sua opinião sobre Lampião, e ele me responde:

-Lampião sempre foi um homem difícil de explicar. -Mas era valente? -Homem, não sei. Rodeado de amigos bem armados e dispostos, todo mundo é

valente... Nunca vi ele brigar sozinho. Lampião só andava rodeado, e assim qualquer trabalho é fácil.

Aponta para Angelo Roque, afogado na sua gravidade: -Valente era aquele ali. Isto sim. Já vi várias vezes o velho Angelo enfrentar sozinho

vários "macacos". Também Volta Seca brigou, certa vez, com Lampião. Foi uma briga muito séria, me

diz ele, e Deus Te Guie confirma. -Naquele dia, eu tinha certeza que um dos dois ia deixar de viver: ou Volta Seca ou o

capitão. O mal-entendido entre o chefe do bando e o seu cabra mais famoso teve lugar em

1931, após um duro combate com a força policial. Um dos bandoleiros, Bananeira, havia sido ferido pelos "macacos'), os soldados das volantes) e ficara estendido na estrada. Volta Seca procurou Lampião e pediu-lhe autorização para ir buscar o amigo ferido. Virgulino achou que a empresa era perigosa e que a ida de Volta poderia facilitar aos soldados a pista do bando. Mas Volta Seca não podia deixar o companheiro morrer, explica Deus Te Guie. Então surgiu o primeiro atrito entre os dois. Em companhia de Caracol (também presente à entrevista) com seu rosto parado)) Volta conseguiu arrastar Bananeira até um lugar bem seguro. Mas Bananeira estava muito ferido e teve que ser transportado numa rede.

-Bananeira pesava como o diabo -me diz Volta Seca. Quando os dois chegaram com o companheiro ferido) Lampião e o resto do bando já

haviam ido embora. Voltaram depois) e Virgulino procurou Volta Seca: -Menino) a gente tem que andar depressa. Os "macacos') estão por perto. Solte o

ferido aí e monte no seu cavalo. Volta Seca respondeu que não podia fazer aquilo. Bananeira iria com ele -e montou o

ferido no seu próprio cavalo. Virgulino, enfurecido, ordenou a Volta Seca que desmontasse

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Bananeira. -Então o sangue me subiu à cabeça. Disse que não desmontava. Lampião

pegou a carabina, mas fui mais ligeiro do que ele. Apontei bem no peito, e lhe disse: "Se o senhor bulir com as pestanas, atiro". Lampião estava verde de raiva. Ficamos assim um tempo grande, um olhando para o outro. Depois os companheiros serenaram a coisa. De noite no meu rancho, fui avisado por Quixabeira e Gavião que Lampião ia me matar no dia seguinte. Então dei o fora.

Volta Seca tinha apenas catorze anos quando entrou para o bando de Virgulino Ferreira da Silva. Nascera em ltabaiana, no centro de Sergipe, fugiu de casa menino e andou sozinho pelo sertão. Encontrou-se com Lampião em Goroso, no município de Bom Conselho, na Bahia. Ele me diz agora que no princípio apanhava quase que diariamente de Lampião. E de Virgulino e dos outros:

-Todo mundo gostava de enxugar a mão em mim. Até o velho Roque. Mas depois endureci o cangote, e o primeiro que me apareceu com ares de pai, recebi com a mão no rifle.

Volta Seca me garante que quase todas as histórias que contam a seu respeito não são verdadeiras.

-Gostavam de contar, por exemplo, que eu só matava à traição. Uma calúnia. Eu posso ser tudo, meu senhor, posso ser ruim de doer, uma coisa, no entanto, não sou: covarde e traidor. Nunca matei ninguém pelas costas, mas sempre em defesa própria. E sempre fui amigo dos meus amigos. Eu podia ter matado Lampião, naquele dia da briga, matar pelas costas, friamente. Mas não matei, porque era feio.

Pergunto a Volta Seca os nomes de alguns dos coiteiros mais importantes e mais chegados ao bando. Ele sorri e responde:

-O que passou, passou.

Mas Cacheado toma a palavra: -Quase todo dono de fazenda era coiteiro. Os coiteiros sempre foram a nossa

perdição. Eles nos davam dinheiro, comida e munição. E eram sempre eles que nos entregavam aos macacos.

Volta Seca tenta inocentar os coiteiros: -Eles tinham que ajudar a gente. Se não, a gente queimava as fazendas deles e

matava o gado. Saracura, a pele esverdeada pelo impaludismo, tem o olhar distante, perdido no

mundo lá fora que a janela aberta deixa ver: o telhado comprido da estação de Calçada, as casas equilibradas

.no morro ao lado, a chaminé comprida da fábrica. É um rapaz calado que de vez em quando morde os lábios. Suas respostas são quase monossilábicas. Pergunto:

-Como você começou essa vida de bandoleiro, Saracura? Ele responde: -A gente nunca sabe.

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Angelo Roque é da mesma opinião. -Nunca se sabe. Uma coisa digo ao senhor: ninguém nasce bandido. Vamos dizer que

aquele soldado casado não tivesse feito mal à minha irmã: tudo seria diferente. Eu continuaria na minha rocinha, talvez tivesse hoje umas economias, talvez até já fosse dono de um sítio. Nunca fui um homem da maldade. Depois que a gente vai pelo caminho do crime, é que é o diabo. O medo da prisão transforma o indivíduo numa fera.

Caracol, tão calado, parece despertar, e começa a falar numa espécie de explosão: -Por aí só se fala nas crueldades dos bandidos. Mas o senhor ande pelo sertão,

converse com o povo pobre de lá: todo mundo dirá ao senhor que muito mais barbaridades do que nós, praticavam os soldados da força volante. E os coronéis também. Eu poderia citar casos e mais casos de coisas horrorosas que eles

fizeram por esses sertões. Bandidos como a gente. Por isso é que, em muitas cidades e povoados, nós, os cabras, éramos recebidos como salvadores. Em certos lugares, meu senhor, o povo tinha mais confiança na gente do que nos "macacos" das volantes.

Volta Seca aparteia: -É isso mesmo: os crimes dos "macacos" foram iguais aos nossos. Mas nada

aconteceu com eles. E com os coiteiros? Os homens importantes e ricos do sertão, que nos ajudavam, nos davam armas, dinheiro e comida, continuam ricos e importantes.

Cacheado volta com seu riso de menino: -A gente matava muito, a gente matava como uns danados. Mas a polícia e os coronéis

matavam mais. Ângelo Roque faz um gesto com a mão, e o silêncio volta à sala. Agora só se ouve a

voz grossa do "velho Ângelo", que diz, o rosto fechado: -Mas não vamos falar mais nisso. O que passou passou, já disse. O que adianta agora é

que nos dêem a liberdade prometida. Sou ainda um homem moço, quero ficar livre, trabalhar e cuidar de minha vida.

Volta Seca se volta para mim: -Veja o que o senhor pode fazer por nós. Até agora ninguém nos ajudou. Chegam aqui

uns doutores, pedem para ver a gente e saem prometendo mundos e fundos. Mas a verdade é que continuamos aqui. Já passei um tempo medonho na prisão, mais de dez anos, quero a liberdade. Fugi, há pouco tempo, porque não agüentava mais. Se eu não fugisse ficava maluco.

Deus Te Guie acrescenta: -Seu Ângelo não gosta que a gente fale, mas é preciso que se diga que houve muita

injustiça por esses sertões. Por que foi que Arvoredo ficou criminoso? Por causa das barbaridades que os "macacos" fizeram com a sua família.

E é Volta Seca quem me conta a história:

-o pai de Arvoredo vivia em Santo Antônio da Glória. Numas eleições, o velho deixou de votar no chefe político do lugar. O chefe mandou uma volante no seu sítio e eles fizeram horrores: estupraram as duas filhas e mataram os quatro filhos do velho, inclusive duas criancinhas de berço. Só escapou Arvoredo. Acabou bandido. E o velho se tornou coiteiro. Foi preso, morrendo aqui nesta penitenciária, há dois anos atrás, quase com

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oitenta anos. O próprio Saracura parece, agora, sair do seu sono triste. Pede a palavra e conta: -Posso falar do meu caso. Peguei na espingarda quase que obrigado, para me vingar

das misérias que fizeram com meu pai. Um dia, no Coité, uma volante invadiu o nosso sítio. Queriam à força que meu pai desse notícia dos bandidos, como se ele fosse coiteiro. O velho não sabia nada, e então os "macacos" começaram a supliciar o pobre: arrancaram as barbas dele, fio por fio, arrancaram suas unhas com alicate; se o senhor pensar que estou mentindo, vá no Coité e procure André Paulo do Nascimento, que mora nas redondezas. É o meu pai. Ele dirá ao senhor se estou ou não falando a verdade. Ele mostrará ao senhor o estado em que ficaram seus dedos. E eu próprio, antes de pegar na espingarda, fui um dia violentamente espancado na fazenda Curral, perto de Coité. Os "macacos" haviam dito que eu era coiteiro, mas a verdade é que, até então, eu nunca vira um bandido na minha vida.

Saracura me revela ainda que é casado e tem três filhos, que de vez em quando o visitam.

A conversa chega ao fim, e peço aos antigos companheiros de Lampião que permitam ao meu fotógrafo uma série de instantâneos, coletivos e individuais.

Instintivamente, Deus Te Guie abotoa a blusa e passa a mão nos cabelos lisos. Volta Seca diz, num sorriso:

-Só deixo tirar meu retrato se o senhor mandar uma cópia para mim. E quando o violento magnésio do meu amigo Brito rebenta na sala, como um tiro de

canhão, o ex-Iugar-tenente do capitão Virguiino dá um pulo da cadeira: -Um tiro desgraçado! Parece pólvora seca. E ao lhe pedir uma pose especial, Volta chega até a janela aberta e diz:

-Quero tirar um retrato olhando para fora, com a cara triste. Para mostrar aos doutores que estou doidinho para sair daqui.

Há uma larga distribuição de charutos e, ao se despedir, o "velho Angelo" aperta minha mão com força:

-Disponha aqui de um criado às ordens. Desminta as calúnias que dizem a nosso respeito e veja o que o senhor pode fazer por nós.

Vida, prisões, glória e morte de Graciliano

No número 810 de Manchete, de 28 de outubro de 1967, Rubem Braga publicou uma crônica sob o título "Nós queremos ser golfo!", que começa assim:

Graciliano Ramos era alagoano, e Joel Silveira naquele tempo já era sergipano. Os dois conversavam sobre os problemas de seus estados, e Graciliano apresentou uma idéia revolucionária.

-Alagoas e Sergipe não têm jeito não. O melhor era fazer um golfo. -Golfo?

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-Todo grande pais tem um golfo. Olhe um mapa do Brasil: a costa é quase toda lisa, com uma baiá pequena aqui, outra ali. Golfo mesmo não tem. Se a gente arrasasse Sergipe e Alagoas poderia fazer um bom golfo entre Pernambuco e a Bahia, com o rio São Francisco desembocando lá no fundo. Ai, sim, o Brasil era capaz de ir em frente!

A história é verdadeira, mas Rubem esqueceu (ou não quis) contar o resto dela. E o resto é este:

Após aquele funéreo e inesquecível diálogo entre mim e o velho Graça (acontecido na antiga Livraria José Olympio, a da rua do Ouvidor), deu-se que houve um certo silêncio, coisa de dois, três minutos; e que, em seguida a essa pausa, Graciliano acrescentou:

-Pois é. Um golfo. O golfo das Alagoas! No que protestei, ferido em meus sensíveis brios de sergipano:

-E por que não golfo de Sergipe? Graciliano deu mais uma chupada no seu cigarro, soltou a fumaça, respondeu, manso e

peremptório: -Ora, Joel, vamos deixar o nome para discutir depois. O importante, o essencial, é fazer

o golfo.

"UMA CACHORRADA!"

O encadernador me entrega os livros de Graciliano Ramos, que mandei vestir de roupa nova, mas não tão cara como eles merecem. A maioria traz dedicatória, naquela letra de um desenho seco, que era a sua. Fico a olhar um ou outro volume, a reler uma ou outra página mais conhecida, mas sinto que o que salta das páginas, mais vivo do que qualquer dos personagens do escritor, é o próprio Graciliano, que conheci tão bem nos meus primeiros anos do Rio de Janeiro.

Encontrava-o quase que diariamente na José Olympio, na rua do Ouvidor, lá no fundo do largo corredor que era então a livraria, o cigarro infalível entre os dedos magros, a voz lenta, um amargo pessimismo a marcar cada palavra e cada gesto. Vivíamos -como hoje estamos vivendo -dias turvos, o arbítrio se fizera

lei, o amigo de hoje poderia ser o prisioneiro de amanhã. O próprio Graça passara por muitas das misérias que, então, se praticaram contra tantos, na maioria inocentes como ele. Ou então unicamente culpados do crime de terem idéias mais arejadas do que as do Reichsführer Filinto Müller, do dr. Chico Campos ou do general Cavalcanti, excitado precursor da chamada linha dura, à qual mais tarde a Revolução de março de 1964 haveria de dar força e filosofia. Diante de mais uma porcaria da clique ditatorial contra as liberdades, a reação do Velho Graça era sempre a mesma -e ele a externava como se estivesse cuspindo:

-Uma cachorrada!

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Agressivo e duro, Graciliano negava-se a ver o lado bom do mundo, suas possíveis venturas e alegrias. Era um amargurado que se alimentava da própria amargura, e que levou para os seus livros esse travo de fruta verde que era o gosto que ele sentia da vida.

Mas também era -e principalmente é o que ele era -um homem de bem. Dificuldades, tormentos e glórias nunca o torceram. Insatisfeito com o mundo inteiro, talvez, mais insatisfeito ainda se mostrava com ele próprio -particularmente com a sua literatura. Os magníficos romances que escreveu costumava chamar de livrecos. Certo dia, quando eu tentava lhe arrancar uma entrevista para o meu jornal, Graciliano me recebeu ríspido e, num tom de reprimenda, me disse que não sabia de "profissão mais idiota do que essa de vocês, jornalistas, que vivem a recolher bobagens de pessoas sem importância".

O homem seco e hostil era, no entanto, capaz de imprevistas generosidades, a começar pela afeição, afeição de mestre escola, que dedicava a alguns rapazes, noviços da literatura, que caíam no seu agrado. Tinha então uma paciência sem limites para com esses literatos ainda impúberes e implumes, aconselhava, consertava, sugeria; ou, quando a coisa simplesmente não valia nada, ele próprio se encarregava de reduzir a prosa mambembe a uma bola de papel, que jogava fora com um piparote do seu indicador longo e encardido de fumo.

No dia 3 de março de 1936, Graciliano Ramos (que já havia 1 publicado seus dois primeiros romances, Caetés e São Bernardo) era preso em Maceió, acusado de "atividades extremistas", mandado para o Recife e, logo depois, para o Rio, onde chegou num abarrotado porão de navio em companhia de outros colegas de "subversão': Libertado no dia 13 de janeiro de 1937 (depois de mais de dez meses na Ilha Grande e na Casa de Correção, onde lhe rasparam a cabeça), o escritor decidiu não voltar a Alagoas e recompor a sua vida no Rio. Na verdade, será uma nova vida.

Um mês e quinze dias após sua libertação, ele vai ao Ministério da Educação entregar os originais do livrinho A terra dos meninos pelados, com o qual concorrerá (ganha o terceiro lugar, em setembro do mesmo ano) ao concurso de literatura infantil que aquele Ministério acabara de instituir. Numa carta a sua mulher, de 28 de fevereiro de 1937, Graciliano comenta tais fatos:

Comecei a escrever um conto muito chato, fiz uma carta ao Garay e revi a cópia datilografada dos meninos pelados, que foram para o Ministério da Educação. Vi lá, num corredor, o nariz e o beiço caído de S. Ex.a o sr. Gustavo Capanema. Zélins [José Lins do Rego] acha excelente a nossa desorganização, que faz que um sujeito esteja na colônia [presídio da Ilha Grande] hoje e fale com o ministro amanhã; eu acho ruim a mencionada desorganização, que pode mandar para a colônia o sujeito que falou com o ministro.

É de outra carta a d. Heloísa este trecho:

Ontem, Zélins andou com vontade de se atracar com o Marques Rebelo por causa de Dostoiévski e outros russos, todos uns idiotas, na opinião do Marques. Zélins quis

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brigar e afirmou que o outro, de literatura russa, só conhecia Ana Karenina, porque tinha visto o romance numa fita de cinema. A conversa tomou-se desesperadamente azeda e terminou com a chegada de Adalgisa Nery. Levei o Marques para o café, onde ele se vingou de Zélins atacando Santa Rosa e todos os pintores, com exceção de Portinari. Quando voltamos à livraria, o autor de Bangüê e a poetisa de Eu em ti haviam desaparecido.

No seu apartamento na rua Dias Ferreira, no Leblon, d. Heloísa Ramos coordena e revê as cópias das cartas do grande escritor morto. Além das cartas -cerca de trezentas -, Graciliano deixou vários outros inéditos, inclusive páginas manuscritas de um romance que não chegou a concluir. D. Heloísa transformou um dos três quartos do seu apartamento numa espécie de "Museu Graciliano Ramos". Ali o futuro biógrafo de Graciliano encontrará, cuidadosa e minuciosamente catalogado, todo o material necessário à reconstituição da vida do romancista de Angústia. Um dos armários de aço guarda a maioria da colaboração de Graciliano na imprensa -artigos sobre temas literários, contos, trechos de romances -desde os tópicos publicados em O sino de Palmeira dos lídios, em 1915, até as histórias escritas para La Prensa, de Buenos Aires. Noutro armário, dezenas de pastas catalogam, em ir repreensível ordem cronológica, artigos e críticas que se escreveram no Brasil e no exterior sobre o grande escritor. E, na prateleira superior da estante, alinham-se as edições nacionais e estrangeiras dos livros de Graciliano.

A correspondência inédita revela, por vezes, muito de um Graciliano desconhecido, diferente do homem áspero, amargo e mesmo hostil como parecia ser aos que não o conheceram de perto. O tom amargo, este está sempre presente em todas as cartas, mesmo na que, datada de 20 de outubro de 1914, ele escreve do Rio, onde acaba de chegar pela primeira vez, à mãe e às irmãs:

Estou numa casa de pensão. Meu antigo quarto da avenida tinha um metro de largura, uma cama onde havia um bando de animais, um toucador e uma cadeira; entrava-lhe pela única janela que possuía uma inundação de sol; pelos corredores e por toda a parte hóspedes gritavam, cantavam, desciam escadas e subiam escadas; e o barulho da rua, o medonho barulho que apenas se modificava um pouco depois das duas horas da madrugada, era capaz de endoidecer um surdo. Custava-me 50 mil-réis aquele chiqueiro, onde às vezes o criado passava três dias sem entrar para fazer a limpeza. Agora habito um quarto espaçoso com regular mobília e roupa de cama, tenho mesa quase boa, banhos, todo o conforto enfim.

E adiante:

Enquanto escrevo, ouço a voz da dona da casa: -O café pra seu Ramos. Coisa extraordinária! Raras vezes tenho ouvido aqui o meu nome! Passei quase um mês a trabalhar no Correio da Manhã [o seu primeiro emprego, no Rio] sem ninguém saber como eu me chamava.

Vem o café. Sim, senhor! Estou admirado! Então eu me chamo mesmo Ramos! Estava quase esquecido. Enfim, tenho um nome.

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Mas o fato é que, 23 anos depois, em 1937, é reduzido o número dos que conhecem e admiram a obra do escritor Graciliano Ramos. O grande público, ao contrário daquela dona de pensão, 23 anos atrás, ainda não havia aprendido o seu nome. Numa carta de fevereiro de 1937, o escritor queixava-se disso: "Vejo sempre indivíduos que me dizem: 'Sou um seu admirador', pessoas que nunca me leram. Horrível. Para que essas mentiras? Nunca digo isso a ninguém".

E, dias depois, noutra carta datada de São Paulo, onde a imprensa lhe trocou o nome, escreve: "Os jornais disseram que chegaram e foram à festa dois escritores cariocas: o sr. Lins do Rego e o sr. Gratuliano de Brito. Esse Gratuliano de Brito tem-me atrapalhado a vida, é a segunda vez que me toma o lugar. Paciêncià'.

No Rio de Janeiro, pela primeira vez, Graciliano Ramos (ele nasceu no dia 27 de outubro de 1892, em Quebrangulo, município de Palmeira dos Índios, Alagoas) trabalhou como revisor em três jornais: Correio da Manhã, A Tarde e O Século. E colaborava num jornal de Paraíba do Sul, no estado do Rio, assinando R. O. Aos 22 anos, suas primeiras impressões do Rio são de deslumbramento. Faz descobertas, inclusive a do café com leite.

"Passei a vida inteira: escreve ele, em novembro de 1914, "a dizer que não gostava de café com leite. Mas é porque nunca tinha experimentado. É uma das coisas melhores que há sobre a terra. Um copo com leite, um pouquinho de café e açúcar, muito açúcar:'

Mas, na mesma carta, já desponta o velho Graça de trinta anos depois, de convívio difícil, presença constante e monossilábica na Livraria José Olympio, da rua do Ouvidor:

Tenho visto pouquíssimos alagoanos. Têm-me dito que a colônia alagoana aqui é a pior de todas. E eu creio que é mesmo. O sujeito que me prometeu arranjar um lugar na redação do Século é o tipo que eu mais aborreço. Tenho-lhe uma antipatia medonha. O mesmo deve ele dizer de mim. Que valor merece uma promessa assim? Nenhum. O. Brito também não fez nada. Promessas...

Não é diferente o tom da carta que escreve a d. Maria Arné.J lia, sua mãe, quatro meses depois (fevereiro de 1915). O Rio ia perdendo, a seus olhos, a magia dos primeiros contatos:

O que eu sinto é morar numa terra onde só se pode conseguir alguma coisa com muito reclamo [a grafia é dele]. Aqui tudo se resume nisto: cada sujeito faz propaganda de si mesmo. Um individuo que é burro fala em voz alta, de papo, grita, diz asneiras e às vezes chega a fazer figura diante de outros que são mais burros do que ele. Um animal que tem algum talento afeta uma atitude ultra-humana, quase divina -não conversa: prega; não dá opinião sobre coisa nenhuma: afirma, assevera, pontifica. É dogmático e é intolerante [...]. Um tipo escreve um livro e vai, ele próprio, engrandecer, pelos jornais, o livro que escreveu [...]. Veja a senhora como as coisas aqui são. Tudo reclamo. E o pobre-diabo que for tímido, que não declarar que é um gênio, é uma criatura morta. Ora, eu estou arrependido de ter feito hoje uma asneira. Um rapaz meu conhecido apresentou-me a um poeta, dizendo que eu era literato. E eu caí na tolice de dizer que não era. Dei uma grande patada, não há dúvida. Eu devia

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ter ficado calado, ou melhor, ter entrado a dizer sandices sobre arte e outras coisas que não conheço. Era o que eu devia ter feito. É o que todos fazem...

Na verdade, isso é o que Graciliano jamais fará em toda a sua vida.

Em maio de 1915, pouco mais de seis meses após ter chega- do ao Rio, está definitivamente resolvido a voltar a Palmeira dos índios. É o que manda dizer numa carta ao pai:

Minha presença nessa terra adorável [Palmeira] não era uma coisa absolutamente necessária nem incondicionalmente agradável. Sei que é assim, embora aí em casa alguém possa dizer o contrário. Eu me conheço -não presto mesmo para nada. Desgostos sei que lhos tenho dado. Joguei, meti-me em farras, pintei a manta. Fui um bocado doido. Fazendo semelhantes coisas é muito difícil um indivíduo se tornar aceitável. Coisas úteis, creio que nunca fiz. Para que servia eu aí? Para ensinar gramática aos rapazes? Mas eu sou burro como o diabo. Demais, pode-se muito bem aprender gramática sem professor. E eu era, positivamente, um professor avacalhado. Não há, portanto, nenhuma necessidade de minha pessoa em Palmeira dos índios.

Entretanto, eu reconheci que minha permanência aqui era uma coisa inútil. E pensei que entre ser inútil aqui e ser inútil em Palmeira era preferível sê-lo aí. É possível que tenha refletido mal? Não, que nem sequer refleti. Abandonei Correio e Século, belas desgraças, e mais teria abandonado, talvez, se as houvesse. Não havia, felizmente. Fiquei ocupado em não fazer nada, uma bela ocupação, esperando comprar a passagem e umas gravatas. Eu sou sempre o homem das gravatas.

A volta, decidida, mas sem data ainda marcada, é precipitada por um acontecimento dramático: em princípio de junho, Graciliano Ramos recebe notícia, vinda por telegrama, de que num só dia morreram em Palmeira dos Índios duas irmãs, um irmão e um sobrinho -todos de peste bubônica. E que a mãe e as outras duas irmãs, com a mesma moléstia, estão em estado grave. Três dias depois, o futuro romancista, em navio da Costeira, embarca para Alagoas. Só retornará ao Rio em 1936 -e da maneira singular a que já me referi: preso num porão de navio e com endereço certo -, à colônia penal da Ilha Grande, onde na época eram confinados os tidos como inimigos do Estado.

Em março de 1930, Graciliano Ramos, renunciando ao cargo de prefeito de Palmeira dos índios, para o qual fora eleito em novembro de 1927, é nomeado diretor da Imprensa Oficial do Estado. A Prefeitura de Palmeira dos índios foi, de certo modo, decisiva na carreira literária de Graciliano. Os dois relatórios que, na qualidade de prefeito, enviou (em 8 de janeiro de 1929 e i. 11 de janeiro de 1930) ao governador do estado causaram sensação pelo tom informal, pela linguagem franca e pelo estilo nada burocrático. Publicados no Diário Oficial de Maceió, foram ambos transcritos n' A Esquerda, jornal carioca, por iniciativa de seu diretor, Pedro Mota Lima. Lendo-os, o poeta Augusto Frederico Schmidt, então editor, farejou, no apagado alagoano autor dos relatórios, um romancista nato. "Esse Graciliano deve ter algum romance na gaveta." Consultado, o diretor da Imprensa Oficial de Alagoas respondeu. Tinha, sim, e

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não apenas um, mas dois romances. Um, concluído, chamava-se Caetés; o outro, em fase de conclusão, chamar-se-ia São Bernardo. Schmidt prontificou-se a editar Caetés. Mas embora os originais lhe tivessem sido enviados naquele mesmo ano de 1930, o romance só seria publicado em 1933, um ano antes da publicação de São Bernardo, que apareceria em fevereiro de 1934, num lançamento da Ariel Editora.

Os dois famosos relatórios fazem parte hoje do livro Viventes das Alagoas, uma das obras póstumas de Graciliano.

Em 11 de outubro de 1930, ainda diretor da Imprensa Oficial, Graciliano assiste de perto à vitória da revolução "tenentista", sem tiro nem sangue. Naquele dia, ele escreve de Maceió a sua mulher, que se encontra em Palmeira:

Na última carta que me escreveste mostraste algum receio por eu estar aqui. Procurei tranqüilizar-te. E agora venho dizer-te que o .perigo passou, se é que houve perigo. Não te assustes. Lê esta carta em reserva, não a

mostres a ninguém. São duas horas da manhã. Por volta de meia-noite fui ao palácio e encontrei tudo deserto. A guarda tinha desaparecido, as pessoas que lá em cima haviam passado uma semana sem poder dormir tinham desaparecido também. Sem luta, sem tiro. É possível que assim esteja certo. Não sei. O que sei é que preciso dormir um pouco para continuar os meus Caetés. Essa coisa de política é bobagem, e eu não entendo disso [...]. O pano desceu, está finda a peça. Eu, como tu sabes, não representei nenhum papel: sou miúdo demais.

Quando Graciliano Ramos deixa a prisão, em janeiro de 1937, os amigos concordam que será melhor para ele recomeçar a vida, não no Rio, mas em São Paulo. José Olympio, José Lins do Rego (em cuja casa o romancista se hospeda, depois de libertado) e Oswald de Andrade apóiam a idéia com entusiasmo.

Graciliano passa na época por uma aguda fase depressiva. Carta a d. Heloísa, de 2 de fevereiro de 1937:

Provavelmente não aparecerão [no concurso de livros infantis, do Ministério da Educação] coisas muito melhores que os Meninos pelados. Mas não acredito no prêmio, como não acredito na Revista AcadP-mica. Isso está parecendo uma grande safadeza. Enfim, vamos ver.

Almocei ontem com o José Olympio, que me falou na possibilidade de se arranjar um emprego qualquer em São Paulo. Creio que já lhe disse que o Oswald de Andrade havia insistido comigo para que fosse morar lá. Tudo muito vago.

Vinte dias depois, Graciliano vai a São Paulo. O convite é de José Lins do Rego. Carta a d. Heloísa, que se encontra em Maceió, com a data de 28 de fevereiro de 1937:

Na livraria, Zélins queria achar quem aceitasse um convite para vir a São Paulo. Ninguém

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queria vir. Julgo que ninguém queria vir porque ele me convidou com tanta insistência que fiquei desconfiado. Recusei as passagens gratuitas, hospedagem etc. Estava com remorso de abandonar o conto e uns vagos projetos de trabalho. José Américo e Otávio Tarquínio submeteram o caso a votação e acharam que eu devia fazer a viagem, que todos pensavam assim. Unanimidade na votação. Mais tarde, no café, João Alphonsus e Manuel Bandeira aconselharam-me a não perder uma boa ocasião de conhecer São Paulo.

Graciliano decide-se: irá. As dez horas de sexta-feira embarcamos. A minha cama, como você deve esperar, tinha o número 13. Não dormi bem, mas dormi e aqui cheguei ontem pela manhã. Não sabia, nem sei ainda muito bem, qual era a finalidade da viagem. Na estação encontrei uns cidadãos importantes, donos duma dessas companhias que distribuem artigos para a imprensa. Na apresentação vi bem que nenhum deles sabia que espécie de indivíduo era eu. Tinham dificuldade em acertar o meu nome, e um deles, à noite, ainda pensava que eu fosse do Correio da Manhã ou não sei donde. Trepamos num automóvel, percorremos a cidade e fomos hospedados num hotel de criados fardados, com um luxo infeliz e dois elevadores [...]. Depois de tomar banho e raspar a cara, andamos em muitos lugares. Fomos à Secretaria da Agricultura, onde o secretário disse umas literaturas brabas ao Zélins, vimos o Brás e o Anhangabaú. Andei nisso incógnito, naturalmente. Apenas durante o almoço, no Automóvel Club ou coisa parecida, um lugar onde se reúnem a plutocracia paulista, ministros e o diabo, ouvi um português sapecar o meu nome perto de mim. Parece que ele falava em escritores [...]. A noite tivemos um banquete. É verdade,

um banquete medonho, de mais de cento e cinqüenta talheres. Naturalmente você está ai arrancando os cabelos ao pensar que apareci nesse banquete com a roupa com que desembarquei na colônia. Explica-se: é que não tenho outra. Você deve procurar um meio de me mandar esses panos que ai ficaram [em Maceió], e também o Larousse e o Aulete [...]. Chegamos ao hotel às duas horas da manhã. Banho quente e cama. Despesa até agora: mil e quinhentos de barba e dois tostões de uma caixa de fósforo. Acor,. dei hoje bem-disposto. O champagne e o whisky não me fizeram mal. Zélins está um Sardanapalo. Pediu os jornais pelo telefone e leu-os metido na banheira, num banho fumegante. Agora está espichado na cama, enrolado num roupão, conversando pelo arame com Oswald de Andrade, que promete estar aqui dentro de meia hora.

E no dia seguinte:

Jantamos em casa de Oswald. Um jantar maravilhoso que a Baiana, uma preta que nos foi apresentada na cozinha, preparou. Ele tem dois filhos: um rapaz que é pintor, e um pequeno de seis anos, da Pagu. Leitura dum capitulo do romance Marco Zero, do dono da casa. Parece que vai ser uma obra notável [...]. Durante o jantar os dois rapazes se levantaram algumas vezes e telefonaram a um terceiro a respeito das nossas passagens de volta. SaÍmos. No hotel, uma surpresa: só havia passagem para um. Acompanhamos Zélins à estação, depois entramos num cinema, onde vimos o Gordo e o Magro. E agora, oito da manhã, estou aqui no hotel, só, à espera do café e sem saber como empregar o dia. [...] Tudo é excelente. Se me arranjar aqui, farei o romance em dois

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anos.

Mas os planos de ficar em São Paulo não vingam. Quatro dias depois Graciliano volta ao Rio. Carta do dia 14 de março de 1937: "Um sujeito disse em O Jornal que os romancistas de hoje são todos muito cacetes e

o mais cacete de todos sou eu. Ele tem razão. O conto que terminei ontem é uma estopada que nenhum i leitor normal agüenta". O Rio será, definitivamente, a pousada do romancista. Vidas secas é publicado em 1938. Em 1939, o romancista é nomeado inspetor do ensino secundário e em 1942 é comemorado o seu cinqüentenário com um jantar no Lido, em Copacabana, ao qual comparecem os nomes mais conhecidos da literatura, das artes e da política (inclusive o então ministro Capanema). No mesmo ano, Graciliano conquista o prêmio Felipe de Oliveira. Em 1944, saem as Histórias de Alexandre e, em 1947, Infância. Um golpe rude, em 1950: o suicídio de seu primogênito, Márcio. Eleição, em 1951, para a presidência da Associação Brasileira de Escritores e reeleição em 1952 -ano em que vai à Rússia. Regressa ao Rio, em junho de 1952, e adoece gravemente em agosto do mesmo ano. Viaja para Buenos Aires acompanhado da mulher e de Clarita, a filha mais velha, e lá é operado, sem esperanças.

Regressa ao Rio no mês seguinte. Em janeiro de 1953 é internado na Casa de Saúde e Maternidade São Vítor, na praia de Botafogo. E ali morre no dia 20 de março, às cinco e meia da manhã de uma sexta-feira. Depois que o escultor Honório Peçanha modela a máscara mortuária do escritor, o corpo é levado para o salão nobre da Câmara Municipal, onde fica em câmara ardente. No dia seguinte, às dez da manhã, centenas de pessoas acompanham Graciliano Ramos até o cemitério de São João Batista. E lá o deixam no jazigo nº 16724.

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PARTE 03 A MILÉSIMA SEGUNDA NOITE DA AVENIDA PAULISTA Manuel Bandeira, 13 de março de 1966, em Teresópolis: "Venham ver! A vaca está comendo as flores do Rodriguinho. Não vai sobrar uma. Que beleza!"

Houve um tempo, 1938 e 1939, em que eu visitava o poeta Manuel Bandeira pelo menos uma vez por semana, procurando-o no modesto quarto, pejado de livros, da rua Morais e Vale, na Lapa. Fazia-o sempre pela manhã, bem cedo, porque assim ele pedia. São daquela época os primeiros livros que dele recebi Crônicas da província do Brasil, edição da Civilização Brasileira, as Poesias, editadas pela Revista de Língua Portuguesa, e as Poesias escolhidas, também lançadas pela Civilização -, nos quais ele escrevia, na sua letra tão peculiar, dedicatórias breves: "Ao Joel, com um abraço do Manuel". Ou simplesmente: "Ao Joel, o Manuel".

A partir de 1946, nossos encontros foram rareando, sem qualquer razão a não ser a motivada pelos descaminhos, mas o grande poeta continuou a me ofertar regularmente seus novos livros. E os tenho todos comigo, devidamente vestidos nas encadernações que merecem.

A última vez que vi Manuel Bandeira foi na tarde de 13 de março de 1966, em Teresópolis, pouco antes dos seus oitenta anos, que ele iria completar no dia 19 de abril daquele mesmo ano. Quem me levou até ele, na serra, foi Rubem Braga, que cuidava, para a então sua (e do Femando Sabino) Editora do Autor, de uma antologia de poemas de Bandeira, a ser lançada precisamente para comemorar o octogésimo aniversário do poeta.

Deixamos lá embaixo o calor do Rio, encontramos, lá em cima, um friozinho de outono europeu, molhado por uma chuva rala, gelada, persistente. Bandeira nos recebeu na casa de verão de Rodrigo MeIo Franco, onde repousava; e para nós, Rubem e : eu, a primeira surpresa, entre as tantas daquela tarde, foi o pró) prio Bandeira que, indiferente ao frio úmido, nos recebeu de pijama, paletó aberto, como se estivesse no seu apartamento carioca, em pleno verão.

A conversa estendeu-se por horas. E Bandeira falou de tudo. Com a sua prodigiosa memória, a sua espantosa lucidez e agilidade mental, rememorou para nós fatos e episódios velhos de cinqüenta, sessenta anos. E fazia isso como se estivesse a contar coisas acontecidas na véspera, sem esquecer um detalhe, sem

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confundir uma data ou um nome.

No jardinzinho da frente, uma vaca solitária, de sonoro chocalho, impôs sua insólita e desinibida presença, entrando sem pedir licença pelo portão que alguém deixara aberto; e, bovinamente serena e descuidada, pôs-se a fazer um estrago geral nas rosas, dálias e crisântemos do jardim de Rodrigo MeIo Franco. O imprevisto da cena encheu Manuel Bandeira da mais pura alegria -alegria de menino cúmplice de uma travessura. E da janela, para onde fora atraído pelo chocalhar do bicho, nos chamou, os fortes e grandes dentes desnudados num largo sorriso:

-Venham ver! A vaca está comendo as flores do Rodriguinho. Não vai sobrar uma. Que beleza!

Naquele instante o poeta era o próprio alumbramento. E novamente alumbrado ficou quando, ao despedir-se de nós, viu os dois cavalos brancos que, na rua serrana e deserta, trotavam tranqüilos. Sua reação foi um hino, uma verdadeira festa:

-Cavalo passeando na rua... Há muito tempo que eu não via uma coisa assim. Que beleza!

Quando, naquele domingo, ouvi pelo rádio a notícia de que Manuel Bandeira havia acabado de morrer,* logo me ocorreu que ninguém mais preparado para a morte do que o grande poeta -essa mort,e o vinha rondando, sempre à espreita, desde sua adolescência. Essa morte da qual, por senti-Ia sempre ao seu lado durante toda a sua vida, já não lhe dava o menor medo ("Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres"):

Bem que filho do Norte Não sou bravo nem forte Mas, como a vida amei, Quero te amar, ó morte.

" Manuel Bandeira morreu em 13 de outubro de 1968. (N. E.) N ássara: a ciência de ser carioca

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Rio de Janeiro, junho de 1968.

Durante todo um dia (incluindo a noite) andamos à procura do mundo de Nássara (Antônio Gabriel Nássara), daquele mundo no qual o nome do autor de "Alá-lá-ô" (com Haroldo Lobo), "Periquitinho verde" (com Sá Róris), "Nós queremos uma valsa" (com Eratóstenes Frazão), e tantas outras composições carnavalescas ainda vivas, era um dos mais populares do Rio. Mas esse mundo, fisicamente, topograficamente falando, não existe mais. São Cristóvão já é hoje um complemento urbano da cidade que se espraiou, e sua praça redonda, que antes nos parecia imensa, parece agora angustiada, com aquele enorme e desgracioso pavilhão que levantaram onde havia antes o gentil coreto e o gramado de capim curto. Em derredor do antigo circus, não mais os elegantemente rebuscados casarões de soberbas platibandas ou os velhos palacetes de aspecto heráldico. O neon a tudo desfigurou e nos lugares onde ainda não cresceu o cimento vertical dos arranha-céus restaram as sobras das últimas imponentes residências, irreconhecíveis na sua maquilagem nova de churrascaria de luxo.

Vila Isabel, e particularmente o famoso Boulevard (batizado com um nome, o de avenida 28 de Setembro, que o carioca legitimo jamais aceitou), virou por sua vez um simples caminho unindo pedaços do mesmo chão urbano que começa na Cinelândia, ou talvez no Flamengo, e vai acabar em Madureira, ou ainda mais para lá. Na cidade, outros pontos de referência obrigatória desse mundo "nassariano" também desapareceram: a mole do edifício da Caixa Econômica, com a brutal tonelagem dos seus quarenta andares, sepultou o Café Nice, onde o Rio de até vinte anos atrás tinha um dos seus pontos de encontro. Ao lado, a Galeria Cruzeiro, viveiro de conhecidos, pombal de "igrejinhas" e canteiro de rodas íntimas, acabou quando acabou o Hotel Avenida, onde se hospedavam senadores, deputados e fazendeiros de São Paulo e latifundiários do Nordeste; e cujo território, cortado ao meio pela galeria propriamente dita (mais corredor do que galeria), ia do chope (ótimo!) do Nacional ao chope (sublime!) do Café Brahma.

E o que mais? a Bar do Zica, na praça Mauá? Este é hoje repartição pública. a auditório da Rádio Nacional, onde imperavam majestades como Carmen Miranda ou Francisco Alves, Sílvio Caldas ou arlando Silva, Marlene ou Aracy de Almeida, não é mais auditório, mas anfiteatro decadente de um cada vez mais despovoado "zôo", já que as "macacas" que costumavam superlotá-lo se transferiram para outras jaulas, mais adequadas aos novos tempos -as das emissoras de televisão.

E da Lapa, da velha Lapa, restam apenas escombros e fantasmas. a 49 da rua da Lapa, com seus excelentes siris e seu pianista triste, foi promovido: é hoje o 93, e não oferece mais siris, mas antigüidades. E os cabarés, todos em estado de coma, viraram catacumbas, com suas mulheres mecanicamente disponíveis, espécie de robôs controlados à distância pelo rigor contábil dos últimos rufiões, agora organizados em comanditas.

Bem, mudou (ou acabou) o mundo de Antônio Nássara, mas não mudou e muito menos acabou o próprio Nássara, sem dúvida alguma (juntamente com Emiliano Di Cavalcanti) o carioca mais completo, aquele que conseguiu sobreviver incólume e alegre às continuas e por vezes fulminantes modificações por que passou o Rio nos últimos trinta anos; e, mais drasticamente ainda, na última década.

"UM CARIOCA LEGiTIMO NÃO ENVELHECE. ACUMULA VIDA"

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Antônio Gabriel Nássara, Antônio Nássara ou simplesmente Nássara: aqui está ele, e tudo nele, excetuando os pequenos desgastes do tempo ("Um carioca não envelhece, acumula vida", como costuma dizer), permanece intacto, inteiriço, exatamente como o encontrei pela primeira vez naquele aziago (lembraivos) ano de 1937.

Recordo aqui uma entrevista que ele, então em pleno gozo ' da glória musical ("Periquitinho verde", que havia tomado conta do Carnaval -creio que o de 1939 -e estava em todos os rádios da cidade), me deu no Café Nice, e que seria publicada no semanário Diretrizes.

-Meu nome -dizia ele -é Antônio Gabriel Nássara. Também me assino Antônio Nássara, com ambas as firmas em cartório. Mas me identifico melhor como Nássara. E há ainda os que me chamam de "meu chapa", "meu chefe", "oba", "psiu" etc. Até de "Nássara e Frazão" já fui chamado, isso na época em que eu tinha o Eratóstenes Frazão como parceiro mais constante nos meus sambas e marchas. Sou reservista de segunda categoria, nasci em

São Cristóvão, fui criado em Vila Isabel e pela minha carteira de identidade fico sabendo que tenho ummetro e sessenta e oito de altura, cor branca, cabelos castanhos (hoje já mais grisalhos que castanhos), barba raspada, olhos castanhos, boca regular, rosto oval, nariz regular; e mais, que sei ler e escrever e também efetuar as quatro operações. Outras indicações que não vêm na carteira: calço 38 no inverno e 39 no verão, o mesmo acontecendo com o colarinho. Finalmente, sou vacinado, fiz o Curso Superior de Preparatórios, cheguei ao quarto ano de arquitetura, na Escola de Belas-Artes, e comecei a trabalhar em jornal, como caricaturista, em .o Globo, então dirigido por Euricles de Matos e para onde fui .levado por Eduardo Bahout, que na época era repórter do vespertino. Em seguida virei também paginador, e o que sei da matéria aprendi com mestre Andrés Guevara, a quem o Rio (e possivelmente o melhor da imprensa brasileira) deve a modernização gráfica dos seus jornais.

Este o Nássara de 25 anos atrás, época da nossa entrevista. De lá para cá, tivesse eu que citar os jornais por onde ele passou, as caricaturas que traçou e as músicas que compôs, seria obrigado a transformar este capítulo (ou este cronicão) num infindável rol no qual se entrosam e se confundem, misturam-se ou correm paralelos títulos de jornais e de composições carnavalescas (uma centena delas, talvez mais, nem ele mesmo sabe ao certo), mil nomes de gente morta e mais de mil de gente viva.

Quanto ao Nássara de hoje, vejo-o, aos 56 anos, tranqüilo na sua condição de espectador de um show -o grande show da sua cidade do Rio de Janeiro -, do qual durante anos e anos ele vem participando como astro de primeira grandeza, como uma de suas principais atrações. Mas o invólucro do espectador de hoje continua o mesmo: o terno bem cortado, a camisa sempre limpa, a gravata cara e de bom gosto, o permanente cigarro equilibrado no canto da boca, o bom humor contagiante, a boa educação inata, o irresistível amor

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pela noite, o bate-papo colorido no qual as palavras, arrumadas com maestria e propriedade, jamais repetem as mesmas histórias. E desse conjunto, que o tempo não desmembrou ou desconjuntou ("Em Nássara nunca dará cupim", me disse certa vez Ari Barroso), muito menos enferrujou, surge a figura do mais autêntico dos últimos cariocas autênticos.

Antônio Gabriel Nássara, o mais carioca dos cariocas, aceita sem protesto (e com muito menos rancor) as transformações da sua cidade; a elas se adapta, sem que com isso deixe de ser carioca. É que ele aprendeu, desde que se tornou carioca atuante, aos dezenove anos, quando a sua (e de J. Rui) "Formosa" ("Foi Deus quem te fez formosa, formosa..." -lembram-se?) tomou conta da cidade, as lições necessárias, imprescindíveis mesmo, para que um carioca de verdade não passe a ser um carioca de mentirinha. Lições como esta, que ele próprio me ensina:

-Bom carioca é aquele que sabe que os grandes empregos não foram feitos para ele. E reconhece que o filho (ou um genro) de um político mineiro tem, desde o dia do nascimento, estrutura de ministro, pinta de tabelião ou de diretor de autarquia. Bom carioca é o que se considera plenamente realizado e feliz se consegue uma "bocà' pequena em qualquer repartição onde tenha apenas de assinar o ponto. Bom carioca, como já ensinava o carioca J. Carlos, é aquele que, tendo de tratar de um assunto urgente hoje, transfere o problema para amanhã entre três e seis da tarde, chega às oito da noite e ainda bronqueia porque a pessoa com quem marcou o encohtro não o esperou.

Mais lições: -O bom carioca nunca foi ao Corcovado ou Pão de Açúcar. Só esteve uma vez na

Cascatinha e um dia irá ao Jardim Botânico, isso num domingo que não tenha praia. Em compensação, o bom carioca jamais se perdeu no emaranhado das ruas de sua cidade, embora, e isso já aconteceu comigo, possa errar de caminho no chão quadriculado e numerado de Nova York. Bom carioca, ainda, é aquele que, apesar de não conseguir guardar na memória o número do seu ônibus diário, sabe perfeitamente que a rua Dona Mariana, em Botafogo, nada tem a ver com a travessa Mariana, em Ramos; e que sabe também que a rua Emerenciana fica em São Cristóvão e as ruas Rocha Fragoso e Visconde de Abaeté em Vila Isabel. E para acabar, bom e autêntico carioca é aquele que depois de ter cruzado a marca dos quarenta e ter sofrido na carne todos os pesadelos que desabaram sobre o Rio moderno, ainda encontra em si amor e ternura pela cidade. É como eu digo naquela minha marchinha:

Sou carioca Não sou de briga Tenho conversa até demais Se for preciso Eu embarco pro Oriente Pra mostrar àquela gente Que é melhor viver em paz.

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O pandeiro de Antônio Gabriel Nássara -como o de todo "bom e autêntico" carioca -é a caixa de fósforo, e é nela que ele tamborila a sua marchinha, que é também o seu hino de paz. Mas quando pára de cantarolar, faz uma pausa, bebe mais um gole de cerveja que já deve estar morna, conclui:

-Em resumo, seu Joel, o bom, o autêntico carioca é uma raça em acelerado processo de extinção, que certamente acabará quando acabar gente como eu. Ou como o Bororó, a Aracy de Almeida, o Marques Rebelo e o Di Cavalcanti.

Portinari: "Sou o sujeito mais triste do universo."

Na bela e veneranda praça Carlos Gomes, em Ribeirão Preto, o jovem e confuso motorista de táxi quase conseguiu arregalar os olhinhos de nissei, exageradamente apertados, quando lhe perguntei que direção deveríamos tomar, no trevo rodoviário que fica na entrada dà cidade, para pegar a estrada que leva a Brodowski.

-Bro... Brósqui? -Brodowski. !

Quem nos socorreu foi um outro chofer de praça, muito . mais idoso. Cabelos já grisalhos, sua fala era repleta de 14 sotaque tão comum na

gente do Noroeste paulista quanto a abundância, ali existente, de olhos azuis -um azul parado e frágil, de porcelana. Na maioria das crianças locais são esses olhos de conta e mais as roupinhas sempre bem cuidadas e coloridas que fazem com que elas se pareçam com bonecas em tamanho natural, dessas que falam e piscam.

-O doutor quer saber de Brodósqui, não é? A terra do pintor. Agora é assim que se diz.

Se diz e se escreve, e assim vem nos mapas modernos, Brodowski virou Brodósqui, vítima de um despropositado aportuguesamento do nome da cidadezinha, em cujas proximidades (no sítio Santa Rosa, da fazenda Taquaral) nasceu em 1903 Cândido Torquato Portinari, no dia 29 de dezembro -dia em que também nasceram outro pintor, Siqueiros, e o violoncelista Fabio Casais, conforme o próprio Portinari gostava de lembrar.

Os moradores mais antigos de Brodowski, e muitos deles foram amigos de infância do menino Candinho, repelem o Brodósqui. Para eles, Brodowski continua Brodowski mesmo, pois este era o nome do engenheiro polonês, inspetor da Estrada de Ferro Mogiana, que em 1893, em terras por onde se espalhavam os imensos cafezais da fazenda Belo Monte, do coronel Lúcio Enéias de MeIo Fagundes, e atendendo a um pedido do mesmo coronel e de outros poderosos fazendeiros locais, ali fez construir um ponto de parada da nova ferrovia, cujos dormentes e trilhos estavam sendo fincados na dadivosa

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terra roxa. O engenheiro-inspetor não pediu que batizassem a estaçãozinha com o seu nome, mas ela ficou sendo Brodowski e assim continuou através de suas sucessivas e apressadas promoções -de parada a povoação, de povoação a distrito de paz (em 1902), de distrito a vila (em 1906), até que a lei estadual 1381, de 22 de agosto de 1913, desmembrou a vila do município de Batatais, concedendo-lhe foros de cidade.

Portinari repelia também, indignado, o Brodósqui caipira, insistindo no Brodowski polonês. Um dia, em seu ateliê (então nas Laranjeiras), onde eu o entrevistava para o Vamos Ler, como lhe tivesse perguntado como devia escrever o nome certo de sua cidade natal, ele me respondeu, num daqueles seus ásperos rompantes, os olhos fuzilando e livres dos óculos que haviam caído até a ponta do nariz comprido:

-Brodósqui é burrice. Chamar Brodowski de Brodósqui é o mesmo que chamar Shakespeare de Guilherme Shakespeare.

Arrumada no planalto do Noroeste paulista, a quase novecentos metros de altitude, Brodowski fica a 349 quilômetros de São Paulo, a 29 de Ribeirão Preto, a doze de Batatais (em cuja matriz se encontra a mais famosa Via Crucis de Portinari, mas toda ela pintada em Brodowski) e a 63 quilômetros de Franca. Depois vem Pedregulho e, em seguida, Rifaina, que está a cinco quilômetros aquém do rio Grande, na fronteira com Minas Gerais.

Liga Ribeirão Preto e Rifaina uma estrada só -a sp-334, agora chamada rodovia Cândido Portinari, confortável pista de asfalto e cimento cujas retas irrepreensíveis e curvas suaves tentam o velocímetro; e tão bem cuidada que parece ter sido inaugurada na véspera. Nos seus quase duzentos quilômetros de extensão, a Cândido Portinari atravessa um dos mais belos e férteis trechos do chão paulista, de paisagem diversificada e onde nascem culturas de toda espécie -feijão, milho, arroz, laranjais e pessegueiros. Mas o que predomina são os extensos canaviais e cafezais, de fileiras rigorosamente alinhadas, nalguns pontos estendendo-se pela terra plana, noutros galgando as colinas e lombadas de um redondo macio, até se perderem de vista. O verde é novo, limpo e geral, e só não aparece nos quadrados marrons ou arroxeados que ficaram no chão depois que a cana foi cortada ou erradicados os cafeeiros mais velhos; ou então quando a continuidade verde é interrompida pela agressiva presença das quaresmeiras ensangüentadas ou dos ipês amarelos ou de um rosa ViVO.

Se em vez de cafezais e canaviais ali crescessem vinhedos e ciprestes, e se no lugar de cada usina e fábrica houvesse um castelo ou os restos de um aqueduto medieval, poderíamos dizer que estávamos correndo pelos doces caminhos da Ümbria ou da Toscana; ou também de Vêneto, a região da Itália de onde emigraram para o duro trabalho nas fazendas de café, no Brasil, os pais de Portinari: Giovan Battista Portinari, de Chiampo, e Domenica (que no Brasil virou Domingas) Torquato di Bassano. Mesmo a maneira como, nalguns pontos, os cafeeiros são plantados, não em filas retas, mas em curvas que mais parecem a metade da roda das cirandas infantis, lembra o chão toscano, onde a vinha é disposta do mesmo modo. E o céu, de um azul suavemente enxuto nesse fim de primavera, completa a paisagem de cartão-postal, tão minuciosamente arrumada. Olhando-a, lembro-me do poema de Carlos Drummond: "[...] a mão infinita/ a mão-de-olhos azuis de Cândido Portinari", e obviamente concluo que aquele céu de afresco bem poderia ter sido pintado por ele, Portinari, porque é o mesmo céu contra o qual se destaca o seu Espantalho no arrozal, o mesmo que serve de fundo ao dorido Cristo crucificado que faz parte da Via Crucis que está na igreja da Pampulha.

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No quilômetro 29 da sp-334, a tabuleta de dois metros quadrados, com uma seta que aponta para a esquerda, em letras caprichosamente desenhadas, mas em parte já quase apagadas pelo sol e pela chuva, informa (numa ênfase que certamente o tímido Portinari não aprovaria) que "Todos são bem-vindos à cidade do Gênio da Pintura Brasileira".

Trocamos, então, a pista de asfalto pelo pequeno caminho de piçarra, de um vermelho puxando para o roxo, que menos de um quilômetro adiante nos deixa no centro de Brodowski, a cidadezinha (hoje com pouco mais de 6 mil habitantes) onde Cândido Portinari criou-se, viveu até os quinze anos, "menino manquitola, lourinho e de olhos azuis, grande rabiscador de paredes e papéis" (a descrição é de Manuel Bandeira), a quem seus pais, irmãos e parentes mais próximos chamavam de "Candinho" e de "Candim". O caminho estreito desemboca na primeira rua calçada -prodigiosamente limpa, como, de resto, toda a cidade -, passa defronte ao singelo cemitério sitiado pelo verde carregado de grandes e velhas árvores frondosas (lá estão enter- rados Giovan e Domenica, os pais do pintor; e lá, como confessou certa vez, Portinari também gostaria de estar),* e logo chegamos à praça principal, que em pouca coisa lembra a pracinha da infância do pintor, tão retratada em vários dos seus quadros, e lembra ainda menos o desenho que Portinari fez dela, creio que em 1954, para servir de ilustração ao livro Retrato de Portinari, de Antônio Callado. Começa que ela não se chama mais praça da Matriz, mas praça Cândido Portinari, nem seu chão (onde "Candim" e seus amigos costumavam chutar, em renhidas peladas, a bola de bexiga de boi) é mais de areia fina, "cor de chocolate raspado", como o pintor a via na meninice e guardou para sempre na memória. De alguns anos para cá, a pracinha ganhou aspecto novo -mas, surpreendentemente, as modificações que nela foram feitas conseguiram escapar do incorrigível e pomposo mau gosto que caracteriza e desfigura a maioria das praças "modernizadas" do nosso interior, com seus profusos postes de cimento e suas indefectíveis fontes luminosas.

Em volta da igrejinha (em cuja parede dos fundos, acima do altar, Portinari pintou um belo santo Antônio), os canteiros protegidos por orlas de metal rendado foram dispostos com inteligente harmonia e cada um deles é um pequeno jardim compactamente florido, onde arde o vermelho intenso das azáleas e dos antúrios, e de onde nos chega o perfume das rosas, mais insinuante e penetrante que o odor dos jasmins e dos cravos. Bem em frente à igreja, colocaram (em 1969) o busto do pintor, uma forte criação de Morrone. Para fazê-la, o escultor teve de basear-se em fotografias, mas foi extraordinariamente feliz em seu trabalho, pois todos os traços marcantes do rosto de Portinari lá estão reproduzidos no bronze: a testa ampla terminando no topete dos cabelos sempre bem penteados, os óculos redondos de metal fino

Portinari foi enterrado no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. (N. E.) e até mesmo as duas rugas, profundas e em forma de delta, que ele trazia constantemente cavadas entre as sobrancelhas.

Cabelos de um louro queimado, franjinha bem aparada e toda garbosa no imaculado uniforme azul e branco do Colégio São José local, a menina estende a mão e nos aponta,

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num dos lados da praça, a casa de Portinari: "É aquela ali, a da quaresmeira. Tem uma placa na porta':

A casa onde foi criado o menino "Candim" e onde, antes e depois de se tornar famoso, Cândido Portinari pintou algumas de suas melhores telas, não se diferencia muito das demais que circundam a praça -todas elas com o jeito de bangalôs de estilo rural (se é que existe bangalô de tal estilo), com jardinzinhos floridos na frente e separadas da praça pelos muros baixos ou por gradis de metal. A casa de Portinari tem nove cômodos, todos amplos, mas alguns não existiam antes -foram mandados acrescentar pelo próprio Portinari, em sucessivas remodelações e ampliações. Como também foi ele quem fez construir, ao lado da casa, a hoje já tão famosa Capela da Norma.

Fê-lo a pedido de sua avó materna, Maria Torquato di Bassano, quando esta, já bastante idosa, sofreu uma fratura que não consolidou inteiramente, impedindo-a de caminhadas mais longas e, conseqüentemente, de atravessar o espaço entre a casa e a matriz, onde durante mais de sessenta anos, sem perder um dia, assistia à primeira missa matutina. A avó Maria foi uma das grandes admirações de Portinari, que dela costumava dizer:

-Era uma mulher fabulosa. Parecia um condottiere. Saía no seu carrinho puxado por um cavalo preto e nas saias tinha bolsos de um metro de comprimento, cheios de níqueis e de balas para as crianças. Era dessas mulheres que aos quinze anos já se preocupam com o enxoval das netas.

Adquirida, em 1969, pelo governo paulista, que por ela pagou o preço simbólico de 245 mil cruzeiros (irrisório em comparação com os tesouros que ela guarda), a casa de Brodowski foi completamente restaurada para que pudesse se transformar no que hoje é: um pequeno museu onde afrescos, quadros, móveis e objetos do seu uso pessoal (inclusive o cachimbo inglês) contam a história da presença de Portinari na cidade de sua infância e, particularmente, na casa que até o fim da vida foi o seu refúgio preferido. Duas jovens professoras (ambas muito bonitas) -Roza Thereza Facioli Morando e Zélia Cortez Ribas Garcia (Roza, assim mesmo com z, é prima de Portinari) -, nascidas em Brodowski e funcionárias da Secretaria de Educação do Estado, tomam conta da casa-museu e são as responsáveis pela conservação e preservação de tudo o que ela contém. Tarefa que desempenham com zelo carinhoso e atento. (O velho assoalho de peroba, encerado diariamente, brilha como um espelho e não se nota a menor presença de poeira nos móveis constantemente espanados.) Tal zelo se faz ainda mais aguçado quando ali chegam os cada vez mais numerosos visitantes, a maioria constituída de inquietos grupos de colegiais das cidades vizinhas trazidos em ônibus especiais ou vindos pelos morosos comboios da Mogiana, que duas vezes por dia fazem escala na estaçãozinha que, orgulhosamente irredutível, continua a ostentar em sua fachada e nas paredes laterais o nome BRODOWSKI, que recebeu ao nascer, quando era uma simples parada de trem.

No jardim da frente e nos canteiros dos fundos, que um jardineiro apara e irriga todos os dias, ainda florescem as rosas e os cravos, as flores preferidas de d. Domingas, a mãe do pintor, e quase todas plantadas por ela.

Na sala de entrada, podem ser vistos um afresco -Fuga para o Egito -e um quadro -São João Batista; e na sala principal, três detalhes de cabeças, pintados em 1935, e que representam a avó do pintor e duas mulatas. Há ali, ainda, um outro

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afresco -São Francisco pregando aos pássaros, a maior pintura de toda a casa, com dois metros e meio por um metro e quarenta, de cores sombrias a realçar o despojamento de uma paisagem esquálida e do santo quase andrajoso e igualmente esquálido. Uma têmpera, de 1943, representa São Jorge matando o dragão, e noutra parede da mesma sala está um outro afresco -Jesus pregando a três apóstolos.

Mas o ponto alto da casa é a capelinha que fica ao lado, a Capela da Nonna, onde as três paredes, a do fundo e as dos lados, estão cobertas pelos santos, todos em tamanho natural, que Portinari pintou, em 1939, em apenas quinze dias, "num trabalho febril, quase de possesso': como já se disse. A cada um dos santos ele emprestou a fisionomia de parentes seus mais chegados. a rosto de São João Batista com um cordeirinho é o mesmo de um dos seus irmãos. Nossa Senhora e Santa Isabel tiveram como modelos sua irmã alga e sua mulher, Maria. Santa Luzia segurando um prato com um par de olhos tem o rosto de uma outra irmã do pintor, Julieta. E o rosto de São Pedro é o rosto de seu Giovan, seu pai.

A casa tem três quartos, um reservado aos hóspedes ocasionais, e o outro, menor, que era o de Portinari e no qual tudo permanece exatamente como o pintor deixou, quando de sua derradeira passagem por Brodowski: a pequena cama de dormitório de internato, cama de menino, onde durante anos "Candinho" estirou o seu pequeno corpo de pouco mais de um metro e meio; ao lado da cama, no chão, como se aguardassem o momento de ser levadas para uma nova e longa viagem, duas pequenas malas, de material barato (uma é de pano, dessas que dobram), trazem ainda etiquetas de uma companhia aérea e do navio da Chargeurs Reunis. No armário, também quase infantil em suas proporções, estão dependurados três ternos, todos de casimira pesada, que Portinari ali deixou meses antes de morrer; e, estirado na cama, o roupão esponjoso, de cores mortiças, com o qual, manhã cedo, ele enfrentava o frio cortante do planalto. ) Foi o próprio Portinari quem mandou abrir no teto de madeira da salinha da frente, onde ele instalou seu ateliê, a grande clarabóia, um quadrado de telhas de vidro através das quais a luz se escoa fácil e livremente. Num dos cantos, diligentemente dispostos sobre uma mesa, os pincéis lavados e as bisnagas de tinta metade usadas, bem como a grande tela vazia apoiada no cavalete, parecem esperar a volta do pintor que ali os deixou há onze anos. Disponíveis e pacientes, é como se pincéis, tintas e tela estivessem certos do cumprimento da estranha e aparentemente inviável promessa que seu dono fizera um dia num dos seus -poemas de poeta bissexto: "Antes de morrer, quero passar minha velhice em Brodowski".

E de um certo modo é lá, em sua casa de Brodowski, que ele está passando a sua velhice eterna -uma velhice que não conheceu quando vivo, pois morreu aos 58 anos, no dia 6 de fevereiro de 1962, vitima de uma hemorragia, conseqüência final do lento e progressivo envenenamento pelo uso durante mais de quarenta anos de tintas contendo chumbo. Ele havia chegado fazia pouco da França, onde fora visitar seu filho João. Poucos dias antes escrevera o seu último poema, que era também um presságio:

Virão as trevas e desaparecerá A brisa. Os raios circularão

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Caos e escuridão...

E no dia em que desembarcou no Rio, de volta da última viagem, a um repórter que lhe perguntou como o pintor Porti- nari definia o homem Cândido Portinari, ele respondeu:

-Sou o sujeito mais triste do universo.

Dois instantes de João Cabral de MeIo Neto

1) UMA AVENTURA JORNALÍSTICA

"Uma das frustrações da minha vida foi não ter conseguido ser jornalista. Aliás, fui, mas apenas durante quatro meses, quando trabalhei na Vanguarda." A revelação é de João Cabral de MeIo Neto, e vou encontrá-la numa das inúmeras entrevistas que deu logo após sua eleição para a Academia.

"[...] quando trabalhei na Vanguarda... A evocação do grande poeta me espicaça a lembrança e me faz recuar até aquela manhã de junho de 1953. O telefone tocou lá em casa. Era João Neder, na época já próspero industrial. Queria me fazer um convite:

-O Dodsworth [Henrique Dodsworth, ex-prefeito carioca e então presidente do Banco da Prefeitura do Distrito Federal] me nomeou a mim e ao Hélio Sodré para cuidar do acervo da Vanguarda, de que o Banco da Prefeitura tomou conta para saldar parte de velhas dívidas não pagas. Como você sabe, a Vanguarda não circula mais. Mas tem a oficina: uma velha Marinoni, 23 linotipos, alguns prelos de mão. O Dodsworth nos deu carta branca, mas o Hélio e eu estamos numa dúvida: ressuscitamos o jornal ou continuaremos apenas a explorar a oficina, imprimindo jornais dos outros?

Uma velha Marinoni, 23 linotipos, dois ou três prelos manuais (na verdade eram apenas dois) e mais o resto que havia sobrado de uma longa vida gráfica. Bem, respondi a João Neder que se a rotativa e as linotipos funcionassem (e certamente estavam funcionando, já que a oficina produzia para os outros), ele podia fazer as duas coisas ao mesmo tempo: imprimir os jornais alheios e voltar a editar o jornal da casa, a Vanguarda. Tudo era questão de ter dinheiro para papel, tinta e mais o pessoal da redação, a ser recrutado. -Pois aí é que está a questão -respondeu Neder. -Dinheiro não temos. Mas se

nós dois, eu e o Hélio, encontrá.ssemos quem quisesse tomar conta do jornal, sem pedir muito, daríamos um jeito de botá-lo novamente na rua. Foi então que me lembrei de você. Soube que anda meio parado...

Parado era uma maneira gentil de falar. Na verdade, naquela metade de 1953, eu estava paradíssimo. Acabava de deixar a direção do semanário Plan, depois da terceira ou quarta briga (tiro briga, boto desentendimento) com Samuel Wainer, acontecida logo no começo do ano, e o dinheirinho da indenização ia chegando ao fim. Urgia fazer qualquer coisa. O convite de Neder não era animador. Mas eu não

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tivera outro desde que deixara o último emprego, e a coisa, com o progressivo encurtamento do saldo no banco, começava a me inquietar. De forma que em vez de pedir 24 horas para pensar, pedi apenas cinco minutos apenas o intervalo necessário para contar até cem, e respondi:

-Topo! Mais tarde, lá no Jóquei Clube, onde Neder fazia ponto, selamos o acordo com

um aperto de mão, não se falou em salário ("Dinheiro nós não temos"), mas ficou combinado que no

dia seguinte eu iria ver de perto a oficina, na rua do Rosário, quase esquina da Uruguaiana, e, em seguida, a redação, que tomava toda a sobreloja do então edifício Martinelli, um encanto de redação, ampla, ventilada, abrindo suas largas janelas para o melhor trecho da avenida Rio Branco. Contrastando com a redação, a oficina era sombria, a denunciar em tudo, na rotativa, nas linotipos, nos prelos, nas paredes sujas e até mesmo nos macacões dos gráficos, uma longa vivência, já sem encanto, com o papel e a tinta. Mas lá fui encontrar como chefe experimentado do pessoal o meu amigo Valentim, já em fim de carreira, velho companheiro de outros jornais, e, conseqüentemente, de outras oficinas.

-Topo! Agora só me restava encontrar pessoas que estivessem igualmente nas minhas

condições, com tempo livre, de preferên- cia com todo o tempo livre e sem maiores exigências em matéria de ordenado, para formar a redação. "Não pode ser muita gente. Como lhe disse, dinheiro não temos." Mais animadoras, e dentro de mim elas se transformavam em uma espécie de compulsão, as palavras com que Valentim se despedira de mim bimbalhavam na minha cabeça:

-A Vanguarda não pode morrer. Coragem. Vamos botar o jornal na rua. Era um desafio, e eu me perguntava se valia a pena aceitá-lo. O fato é que o jornal

ficara com seu nome e reputação bastante feridos depois de passar por mãos pouco nobres, em matéria

de política, e de defender idéias e causas que inclusive colidiam frontalmente com os meus pontos de vista. Na última -que a partir de julho de 1953 seria a penúltima -fase de sua vida, a Vanguarda cometera, no meu pensar, dois pecados mortais. Mortalíssimos. Primeiro, se fizera integralista, em 1935 ou 1936, não me lembro bem, trocando sua roupagem liberal, mais condizente com o título, pelo verde e enquadrado uniforme com que o sr. Plínio Salgado fardara as suas milícias inspiradas no fascismo de Mussolini, reduzindo-se a um simples boletim de informações já recebidas mastigadas das embaixadas da Itália e da Alemanha no Brasil. Quando Getulio, violentando a sua "democracia autoritária", foi obrigado a romper

com os guerreiros do nazi-fascismo, pressionado pelo povo, tendo à frente os estudantes, traumatizados todos pelos contínuos afundamentos de navios brasileiros por submarinos do Eixo, é claro que já não era cabível a circulação de jornais, como a Vanguarda, o Meio Dia e a Gazeta de Noticias, que no Rio defendiam o nazismo de Hitler e o fascismo de

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Mussolini. Pelo que no dia seguinte ao rompimento do Brasil com as duas potências totalitárias já não se viam nas bancas nem eram mais gritados pelos pequenos e andrajosos jornaleiros de então os nomes dos três diários que a polícia acabara de fechar.

A partir daí, a voz de Hitler e Mussolini no Brasil passara à condição de sussurros codificados, divulgados por estações clandestinas na calada da noite, ou espalhados em forma de boatos derrotistas e tendenciosos (o que hoje se chama de "contrainformação") pelos ventríloquos da "quinta-coluna" nacional a serviço do Eixo. A qual, diga-se de passagem, funcionou no Brasil com exemplar eficiência até o último dia da guerra.

"Topo': disse e repetira eu ao João Neder. Restava agora saber se os "outros" iriam topar. A noite, eu já arrolara meia dúzia deles, dos quais sabia que se encontravam por motivos vários tão disponíveis quanto eu. E o primeiro da lista era precisamente João Cabral de MeIo Neto, disponível e, na época, em briga com o Itamaraty, vítima de uma "caça às bruxas" que o levara a licenciar-se por tempo indeterminado.

Desempregado por força de uma ignóbil intriga que o obrigara a afastar-se da carreira diplomática, o poeta vivia dias apertados, ganhando o pão com tarefas as mais diversas -traduções etc. -ou, então, passando o tempo vazio a manipular o seu pequeno e velhíssimo prelo de mão que havia trazido da Espanha juntamente com uma coleção completa de belíssimos tipos Bodoni. Na minúscula oficina gráfica improvisada em seu apartamento da rua Farani, João Cabral, com a diligência de um artesão, compunha e imprimia ele mesmo livros de poemas, de circulação reduzida. Inclusive um meu, O marinheiro e a noiva, uma trintena de poemas que são o que até hoje produzi no gênero, e que, impressos (apenas duzentos exemplares) por João Cabral em esplêndido papel Vitória, igualmente trazido da Espanha, e valorizados por cinco admiráveis ilustrações de Darel, foram vendidos a amigos e conhecidos à razão de mil cruzeiros (um conto de réis) cada exemplar -transação poético-comercial cujos promissores resultados divididos eqüitativamente entre impressor, ilustrador e "poeta" permitiram um certo desafogo na nossa então arrochadíssima situação financeira.

Fica explicado, portanto, por que foi de João Cabral que primeiro me lembrei para compor a redação da Vanguarda; e ao convidá-lo, convite que ele aceitou meio temeroso -"Eu nunca trabalhei em jornal"-, dei-lhe logo o cargo de chefe da redação. Mas o fato é que ele tinha muito pouco o que chefiar, pois não chegava a dez o número dos que também concordaram em entrar naquele barco furadíssimo. Dou o nome dos heróis: Vinicius de Moraes, que vinha comigo do Flan e que assinaria na Vanguarda uma crônica diária; Tati de Moraes, que faria a crítica de cinema; DareI, ilustrador; Nássara, paginador e caricaturista; Arthur Seixas, que se responsabilizaria pela reportagem geral, mas que acabou, durante os quatro meses que lá passou, limitando-se a publicar diariamente capítulos e mais capítulos das infindáveis e confusas memórias do general Góis Monteiro; Sebastião Isahias, que fazia esporte e ainda me dava uma mãozinha na oficina; e, finalmente, Ibrahim Sued, em fase de transição entre a condição de fotógrafo (e excelente fotógrafo) e a de cronista social, e que na Vanguarda acabou se decidindo por esta última, passando a assinar uma

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coluna de fofocas intitulada "Zum-Zum", marco zero do que seria uma gloriosa carreira. Fotógrafo propriamente dito, não havia; nem repórteres de setor, nem cobertura da Câmara e do Senado, sequer reportagem de polícia. Para atender a tais exigências, carne e sangue de qualquer jornal que se preze, recorríamos às sobras de outros jornais, que nos forneciam pelo telefone um pouco de matéria para nossa edição.

Para ser mais exato, era precisamente João Cabral o principal manufaturador de tudo o que ali chegava em estado bruto, relendo ou reescrevendo (ou copidescando, como se diz hoje) a maior parte do que ia para a oficina, terrível ofício que ele executava pausadamente com a ajuda dos dez ou mais comprimidos de aspirina que ingeria diariamente, entre as nove da manhã, quando chegava pontualmente à redação, até às cinco da tarde, quando ia embora. Também eram dele os furibundos e escorreitos editoriais, quase sempre contra o governo (Getulio), escritos em boa prosa e dos quais quase sempre eu tirava a manchete do dia, mas só depois da segunda prova tipográfica receber a aprovação do seu autor.

Politicamente falando, o jornal era meio erradio. "Contra o governo" era o seu lema básico. Mas também contra outras coisas e a favor de umas tantas. E tinha ainda, em matéria de individualidades, seus tabus, a começar, é óbvio, pelo dr. Henrique Dodsworth, que afinal de contas, embora de forma indireta, era o verdadeiro dono do jornal. E mais dois, do acendrado afeto do João Neder:-Milton Campos e Pedro Aleixo.

Vocês podem falar mal de quem quiserem -nos disse Neder, na véspera do reaparecimento do jornal-, menos de três pessoas: o dr. Dodsworth, o dr. Milton e o dr. Pedro.

E assim foi feito. O ressurgimento da Vanguarda se dava numa hora difícil, no instante em

que os concorrentes, amedrontados com as novidades gráficas que o última Hora de Samuel Wainer introduzira e com os altos salários que estava pagando, procuravam melhorar o aspecto e o conteúdo dos seus diários. Também lá na Vanguarda nos demos ao luxo de algumas proezas (no terreno gráfico, é claro, pois nem pensar em ordenado graúdo), embora a envelhecida oficina não nos ajudasse muito. Mas sempre havia uma coleção esquecida de tipos, que João Cabral, artesão gráfico, ia descobrir num desvão qualquer, e com ele armávamos um título mais gracioso ou enfeitávamos uma matéria que merecesse uma apresentação mais cuidada. Em termos de vendagem, a primeira semana não foi nada animadora: não havia jeito de o jornal conquistar os 4 mil leitores previstos, não passando o seu consumo urbano de 1500, 2 mil exemplares. Mas a partir da segunda quinzena, teve início a linha ascendente: 2 mil, 3 mil, até atingir, no quarto e último mês, a média de 5 mil exemplares, o que, para Neder, constituía uma "felicidade total".

Mas 5 mil exemplares de venda de mistura com a ausência quase completa de anúncios (o principal anunciante era precisamente o Banco da Prefeitura, também o nosso principal credor) não sustentam por muito tempo jornal nenhum. E o pouco dinheiro que entrava ia para o papel, a tinta e os gráficos. Para o pessoal da redação sobravam apenas alguns trocados, distribuídos

parcimoniosamente pelo Neder todas as sextas-feiras à :;;;j tarde. Não tinha importância. Ali estávamos em caráter temporário, a esperar todos, numa confortável redação onde marcávamos encontro com amigos, onde dispúnhamos de mesa telefônica e de dois boys,

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os empregos verdadeiros que naturalmente teriam de aparecer. Era como um intermezzo, uma festa diária, um tanto vadia e alegre, que a falta de dinheiro debalde tentava atrapalhar. Finalmente, com o esperado aparecimento de novos convites, mais concretos, o grupo foi aos poucos se dispersando, e, com ele, o próprio jornal, que logo depois morreria definitivamente. Os sucessivos transplantes daqueles quatro meses não foram suficientes, apesar do extremo devotamento e, nalguns casos, da reconhecida perícia dos cirurgiões, para prolongar por mais tempo a vida de quem já trazia dentro de si velhos males sem cura.

Tempos atrás, João Cabral me dizia, lá em sua casa: -Engraçado, era a primeira vez em toda minha vida que

eu trabalhava em jornal, mas creio que, se tivesse continuado, teria dado um jornalista razoável. Pelo menos, você é testemunha, eu levava a coisa a sério.

E como levava!

2) DOIS ANOS SEM POESIA

Varanda da cobertura de Rubem Braga, setembro de 1971.

Nossa conversa já dura bem uma hora e João Cabral de MeIo Neto ainda não tomou uma só aspirina. Estou prestes a manifestar a minha estranheza a respeito quando ele se levanta e diz que vai lá dentro buscar um copo com água. Volta com o copo pela metade, tira do bolsinho de dentro do paletó um envelope, destaca dele um comprimido e o engole rápido. Pergunto quantas aspirinas ele toma por dia.

-Agora só de quatro em quatro horas. Anos atrás era de hora em hora.

E houve mesmo uma época em que o poeta consumia analgésico um em cima do outro, como quem come pipoca.

A explicação para o fato é que João Cabral sofre de uma dor de cabeça crônica desde os dezesseis anos. De lá para cá, quantos exames ele já fez e quantas radiografias já tirou para que fosse localizada a origem desse achaque permanente que o vem perseguindo desde a adolescência?

-Minha cabeça e partes vizinhas, incluindo a garganta, já foram fotografadas de todos os ângulos e esmiuçadas nos mínimos detalhes. Mas a dorzinha continua a resistir bravamente e a esconder dos médicos os motivos por que dói. E por que dói? Minha opinião é que se trata de uma dorzinha de fundo neurótico.

O fato, porém, é que quem conversa com João Cabral não distingue nada nele que lembre um neurótico. A fala é mansa, os gestos parcos, atenção total ao que lhe dizem, tudo a compor o retrato de um homem excepcionalmente bem-educado, senhor de si. avesso à ênfase e aos tons mais altos. Vez por outra, um franzir da testa larga, talvez motivado pela dorzinha que apertou mais fundo, ou por um ruído mais contundente que vem lá de fora ou mesmo. quem sabe, por uma pergunta mais idiota do repórter. (No caso, eu.) Sua linguagem é igualmente parcimoniosa. despojada, limpa e precisa, e ao escutá-lo falar, a impressão que tenho (que sempre tive) é a de que ele está usando no nosso bate-

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papo informal as mesmas palavras que emprega em sua poesia. apenas mais desarrumadas. Após uma longa temporada como cônsul-geral do Brasil em Barcelona. João Cabral é

agora nosso ministro-conselheiro em Assunção, no Paraguai. onde já está há dois anos. E quando, no meio da conversa. ele me diz que há precisamente dois anos não escreve um poema novo -tenho uma porção de coisas começadas em diversos lugares. mas nada definitivo -, ligo uma coisa a outra e pergunto se essa sua hibernação não é conseqüência da dura modorra de Assunção, que conheço tão bem. Ele responde que não:

-Até que gosto de Assunção, como gosto de toda cidade pequena. Não tem escrito, explica-me, porque acha que já escreveu muito e que é tempo de

uma pausa. "Para recarregar as baterias:' Sei o que estou perguntando quando indago de João Cabra! como ele consegue

encher os infindáveis e apagados domingos de Assunção. Convivência com os intelectuais da cidade?

-Quase nenhuma. Você sabe, no Paraguai, entre dez intelectuais, oito são historiadores. E conversar com eles sobre história, particularmente sobre a nossa história, não é, por motivos óbvios, muito diplomático.

Remédios aconselháveis para as tardes vazias de domingo, em Assunção, e remédio que o poeta sempre usa, é sintonizar o rádio com o Brasil e ficar escutando a transmissão de um bom jogo de futebol. Principalmente quando o time que está jogando é o América, de Recife, ou o América do Rio, dos quais João Cabra! de MeIo Neto é fiel, paciente e conformado torcedor. (Como em São Paulo não tem América, ele torce pelo Palmeiras, cuja camisa é verde como a do seu América pernambucano.) E já que o assunto agora é futebol, João Cabra! aproveita a oportunidade para revelar que já foi campeão juvenil, em Recife, em 1935. Mas pelo Santa Cruz.

De futebol a conversa pula para as cidades nas quais o poeta-diplomata tem parado: Barcelona, Madri, Sevilha, Berna, Genebra, Londres. Já ficou dito aí em cima que ele não gosta de cidade grande. Cidade onde se pode morar -e morarem os dois, o diplomata e o poeta -para ele é Berna, "uma confortável aldeia". Ou então, e principalmente, Sevilha, a sua cidade, depois do Recife.

-É a cidade mais fabulosa do mundo. Ou como ele já disse num dos seus melhores poemas:

A cidade mais bem cortada que vi, Sevilha; cidade que veste o homem sob medida.

-Em Sevilha pode-se caminhar horas e horas pelas ruas. Andar sozinho pelas ruas é um dos prazeres de João Cabral

de MeIo Neto. Ele diz que conhece Sevilha, que não é grande, de ponta a ponta.

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-As ruas todas, os becos, os bares, tudo. Outra cidade agradável para a gente andar a pé, sem rumo certo, é Madri. Barcelona também era assim quando lá estive pela primeira vez. Voltei vinte anos depois e foi uma decepção. Em 1947, Barcelona era como uma São Paulo de fogo morto. Em 1967, com todos os fogos acesos, passara a ser apenas mais uma cidade grande, com todos os seus inconvenientes, os seus barulhos, inquietações, neuroses. Sevilha, não. Sevilha nasceu para ser sempre a mesma.

Volto ao poema:

Justa no tamanho do corpo ela se adapta, branda e sem quinas, roupa bem recortada. Cortada só para um homem, não todo o humano; só para o homem pequeno que é o sevilha no.

João Cabral ainda tem muitos anos de vida diplomática pela frente, mas quando lhe pergunto qual a cidade em que gos- taria de morar depois de aposentado, ele responde logo:

-Recife. Ou então Carpina, uma cidadezinha a cinqüenta quilômetros do Recife, onde mora meu pai.

E por que não o Rio? Pelos motivos apontados: o Rio é uma cidade grande. -De qualquer maneira, o Rio talvez seja a única cidade grande onde se pode

morar com alegria. Contanto que não se trabalhe. Mas João Cabral, é claro, não está pensando na aposentadoria, o que seria

bastante prematuro. Está pensando é para onde irá, como diplomata, quando deixar o posto em Assunção. O ideal seria servir em Lisboa. Ou no Porto. "Lá eu tenho trânsito."

Em Portugal, onde seus livros são muito vendidos -ele e Vinicius são os poetas brasileiros contemporâneos mais conhecidos dos portugueses -, João Cabral é conhecido como o poeta "MeIo Neto"; e os críticos literários locais são unânimes em afirmar que a poesia de "MeIo Neto", ao lado da de Fernando Pessoa, é a que tem mais influído os jovens poetas lusos. Creio que é hora de fazer uma pausa e beber um uisquinho -o sempre generoso uísque de Rubem Braga. Pergunto a João Cabral se ele quer. O poeta consulta o relógio de pulso, diz que ainda é cedo (são quatro e meia da tarde).

-Daqui a pouco. Mas vou beber mais um pouco d'água. E tomar mais uma aspirina.

Vai, volta. Instintivamente, leva a mão ao bolsinho de dentro do paletó, como se fosse apanhar a aspirina. Mas não o faz. Bebe a água devagar. Depois vai até a amurada da varanda, fica a admirar por alguns instantes o exagerado espetáculo que se estende lá fora. Diz:

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-É impressionante. Nunca vi um mar tão reto. Volta a sentar-se e pela terceira vez não dá bola à minha sugestão para que tire o

paletó. Abro o livro de Luiz Costa Lima, na página previamente marcada (trata-se de um longo estudo crítico, de mais de trezentas páginas, sobre a poesia de Mário de Andrade, Carlos Drummond e João Cabral), e leio o seguinte trecho: "A poesia cabralina não evolui por saltos. Evolui por círculos. Cada círculo representado por um livro". E adiante: "O aludido crescimento por círculos, do ponto de vista histórico, permite ao intérprete acompanhar a obra cabralina como através de régua milimetrada". Pergunto a João Cabral se ele concorda com o que diz o crítico. Ele pede que eu repita os dois pequenos trechos, pensa alguns segundos, responde que sim, que concorda.

Agora abro outro livro (que também levei comigo), de Olto Maria Carpeaux, e leio um outro trecho antecipadamente assinalado: "João Cabral de MeIo Neto já foi definido como o maior poeta da Geração de 45 ". O poeta reage:

-Essa história de alguém pertencer a uma geração chega a ser um truísmo. O fato, porém, é que, no sentido de grupo de poetas com uma orientação estética comum, não me considero da Geração de 45. Mas no sentido literal da palavra "geração", está claro que faço parte dela. E sofri o mesmo condicionamento dos outros escritores que nasceram por volta de 1920. Só que reagi a esse condicionamento de maneira diferente.

Outro trecho do livro de Luiz Costa Lima: "Tradutor para o espanhol de Le cimetiere marin, havendo privado da intimidade de Valéry, Jorge Guillén prolonga sobre João Cabral a influência do eixo francês MallarméValéry".

João Cabral não aceita que sua poesia tenha sido influenciada por Guillén. Quanto à influência de Mallarmé e Valéry, admite-a, mas apenas no que diz respeito à teoria poética, à preocupação construtivista. Diz ele que sob o ponto de vista de linguagem poética voltada para a realidade aprendeu muito mais com os poetas espanhóis de antes do Século de Ouro, poetas que descobriu em Barcelona, quando lá esteve pela primeira vez, em 1947. E revela uma outra influência positiva em sua poesia: a de Le Corbusier.

Há muito ainda o que perguntar e, conseqüentemente, a ser respondido, principalmente agora que João Cabral resolveu acompanhar com o seu primeiro uísque o meu terceiro. Mas eis que chega o fotógrafo, imperativo, diligente. João Cabral é levado para a horta suspensa do Rubem e colocado sem piedade nas mais diversas posturas. Escuto quando o fotógrafo lhe pede para tirar o paletó. "Não vai tirar", penso. Mas o poeta é um homem lhano: tira. Di Cavalcanti, pintor, poeta e mágico, pouco antes do fim

Vez por outra, Antônio Maria, o saudoso cronista, me con- vidava:

-Vamos fazer uma visita ao Protopittore?

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É que um dia ele, Maria, lera lá em casa um livro sobre pintura no qual vinha contado que era assim que um certo G. C. Gigli, esquecido poeta menor do Settecento, referia-se num dos seus poemas a Caravaggio:

[...] il gran Protopittore Meraviglia dell'Arte Stupor de Ia natura [...]

Deliciado, Antônio Maria comentava, repetindo os versos: -"... gran Protopittore..., Stupor de Ia natura..." Mas é o

próprio Di! E ligava para a casa do pintor: -Quero falar com o gran Protopittore Emiliano Di Cavalcanti, meraviglia dell'Arte,

stupor de Ia natura.

Glutões e inventivos, mestres da pantomima e da irreverência, os dois quando se encontravam valiam por um circo inteiro. E quando a eles se juntava Antônio Nássara, outro inesgotável baú de histórias, o circo adquiria as proporções de um imenso e mágico picadeiro onde tudo podia acontecer. Todos os malabarismos, todas as palhaçadas, todas as mágicas. E sempre acontecia.

Era nessas ocasiões, motivadas pelos formidáveis almoços , .

no apartamento 803 do 222 da rua do Catete, que entre pratos e vinhaça podiam durar a tarde inteira e entrar pela noite, que melhor se revelavam, e na sua totalidade, os incríveis recursos histriônicos de Emiliano Di Cavalcanti. Então, ele era tudo: jogral inquieto ou plangente personagem da commedia dell'arte a tocar um alaúde imaginário, menestrel medievo ou repentista nordestino, dançarino de tango ou de flamengo, cantor de fados (alguns obscenos), mágico e acrobata -"a coisa mais jovem, trêfega, inteligente e lírica do mundo", como dele disse certa vez Vinicius de Moraes.

Na última vez que Di apareceu lá em casa -poucos meses antes de morrer -estava, apesar da recente operação a que se submetera, com toda a corda. A fala um tanto arrastada e os gestos menos exuberantes ou mais comedidos, mas de cuca intacta e o mesmo humor lúcido e irreverente. Comboiava-o o seu chofer (que também era o seu leal escudeiro), o grave, paciente e imperturbável Lucas, que, por sua vez, portava cheio de cuidado, como se carregasse um bebê de colo, um litro de uísque de classe.

-Como lhe avisei pelo telefone -disse Di -, estou no momento sem poder beber nem comer. Mas considero um indesculpável disparate deixar que você consuma sozinho esse uísque sublime. Vou chamar o Oscar. E também o Villaça, duas figuras maravilhosas.

Telefonou para Oscar Niemeyer, que não foi encontrado, e depois para o já lendário hotelzinho de Santa Tereza, onde morava Antônio Carlos Villaça, que eu ainda não conhecia pessoalmente. O que, aliás, não teve a menor importância, pois Villaça, com a sua volumosa simpatia, é um ser essencialmente empático: minutos depois já

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conversávamos como se fôssemos velhos conhecidos. Conversávamos é a maneira de dizer, pois na verdade quem conversou mesmo foi

Emiliano. Uma fieira completa de casos, fatos, episódios da véspera e de cinqüenta anos atrás, anedotas, historinhas sarcásticas (muitas delas possivelmente inventadas na hora), que se estendeu sem pausa do meio-dia ao fim da tarde, num anárquico desfilar dos mais variados temas sem qualquer compromisso cronológico. Tudo isso dito naquele estilo tão dele mesmo, uma maneira especialíssima de contar que fazia com que na sua boca as histórias mais banais ganhassem toques surrealistas; e as mais absurdas parecessem absolutamente verossímeis.

Ele falava e a gente comia e bebia. Pois foi num sábado, tradicionalmente dia de fartura lá em casa. Havia rabada com polenta e agrião, lombo assado com batatas coradas, galinha ao molho pardo, arroz-de-carreteiro, farofa de ovo e mais feijão e arroz -uma mistura, reconheço, nada éivilizada. E havia, ainda, as indefectíveis empadas de camarão, um dos pontos altos do inventivo trivial variado de d. Maria de Jesus, a saudável baiana de Feira de Santana que lá em casa é qúem, e isso há já mais de trinta anos, manda na cozinha.

Era de cortar o coração ver Di, notório comilão, freguês exigente dos melhores restaurantes da França e da Itália, ir acompanhando com os olhos súplices o nosso intenso e sadio mastigar, enquanto ele, sitiado por uma dieta impiedosa, era obrigado a apenas bicar o picadinho sem graça e insosso, preparado especialmente para ele. "Isto aí deve estar maravilhoso", dizia, os olhos famintos acompanhando nossas sádicas garfadas. "Vou só dar uma provadinha." E punha na boca o pedacinho mais magro do lombo, a porçãozinha de arroz com carne-seca, o cantinho menos gorduroso da empada, e lá ficava mastigando bem devagar, como se estivesse economizando. O vinho era chileno -e ele derravama dois dedos no copo, enchia o restante de água, e lá ia molhando a garganta, de gole em gole, com a mesma unção de um connaisseur (e ele era) que estivesse saboreando o mais precioso Bordeaux ou Bourgogne.

AS MIL HISTÓRIAS DE QUEM NÃO PERDEU UM MINUTO DA VIDA

"O Brasil é um país extraordinário ou "Hoje aconteceu comigo [estava sempre acontecendo] uma coisa extraordinária ou, ainda, "Brasileiro é assim -com um destes três intróitos era que invariavelmente começavam as histórias de Emiliano Di Cavalcanti. E os três eram tão constantes em sua prosa verbal quanto aquele "Bem, aí..:', que ele costumava intercalar como um ponto-e-vírguia no correr da narrativa, mas que na verdade servia apenas como uma espécie de marco fronteiriço que ele saltava quando queria passar de um assunto a outro, o que fazia com freqüência perdulariamente arbitrária.

As histórias de Di... Me pergunto quantas delas ouvi dele mesmo desde aquela tarde, em novembro de 1942, quando nos encontramos pela primeira vez, no bar do Hotel Glória. Foi lá, por sugestão de Samuel Wainer, que ele, Di, então grande conhecedor do assunto, me deu todo o serviço a respeito da nascente grã-finagem paulista, constituída em sua maior parte de novosricos que começavam a fazer fortuna com a guerra; material que

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dias depois eu utilizaria numa pirotécnica reportagem que na época, para surpresa do Samuel, minha e do próprio Di, causou um inesperado e barulhento sucesso. Pois devo dizer que a reportagem -"Grã-finos em São Paulo" -é muito mais dele, Di, do que minha. Recém-egresso do mundanismo paulista, cujas frivolidades não suportou por muito tempo, foi ele quem, às gargalhadas, me dedurou tudo sobre os hábitos, manias e pre'conceitos dos endinheirados parvenus que naqueles tempos iniciavam no Brasil, a partir da capital paulista, a refulgente, monótona e alienada festa da chamada society, surrado espetáculo cujos personagens só se renovam de vinte em vinte anos e que ainda hoje sobrevive como a mais cintilante de todas as nossas inconseqüências nacionais.

Operado pela segunda vez, Di teve que interromper a tarefa a que se vinha dedicando com um entusiasmo impaciente, quase febril: a de selecionar material para o segundo volume de suas Memórias. Quando estive pela última vez em seu apartamento, encontrei-o às voltas com uma incrível papelada que, lá no ateliê do 802, espalhava-se por sofás, poltronas, cadeiras, esparramando-se pelo chão. A jornalista Zenaide Andréa, sua velha amiga, era quem o vinha ajudando na triagem do papelório, uma atordoante mistura de anotações, cartas, rascunhos de poemas e recortes de crônicas suas, e mais recortes, milhares, de jornais e revistas, contas de hotéis e restaurantes, flagrantes fotográficos recentes ou outros já desbotados pelo tempo; e ainda mil bilhetes e cartas de amigos, que através dos anos foram se acumulando nas amplas gavetas dos armários antigos e nas pejadas pastas de papelão reforçado.

Profundamente lamentável o fato de Emiliano não nos ter dado a continuação de suas Memórias. Não só porque ele tinha mesmo muito o que contar (creio mesmo que no Brasil ninguém mais do que ele tinha tanto a contar, ou que valesse a pena ser

contado), mas também porque sua prosa (a escrita) era da melhor qualidade: fluente, colorida, enfeitada de mil graças imprevistas. Prova isso a Viagem da minha vida, primeiro volume de suas Memórias que a Civilização Brasileira editou em 1955 "fragmentos de um diário várias vezes interrompido e muitas vezes reiniciado': Manuel Bandeira certa vez escreveu que "se Di Cavalcanti não fosse por vocação pintor, poderia ser escritor, pois tanto no verso como na prosa revela o dom da expressão aguda e original': Há, de fato, páginas admiráveis na Viagem da minha vida (que estaria a merecer uma reedição), como aquelas em que o carioquíssimo Emiliano Di Cavalcanti recorda o bairro de São Cristóvão da sua infância; ou aquelas outras em que relembra os seus primeiros contatos com a intelectualidade do Rio de Janeiro do princípio do século.

No prefácio da Viagem da minha vida, Di prometia: "Mais dois volumes virão: O sol e as estrelas e Retrato dos meus amigos e... dos outros". Não vieram. A morte não deixou.

PAPAI ERA INCAPAZ DE FICAR COM AS MÃOS PARADAS"

Além de bom prosador -de papo e de escrita (e aqui me pergunto se não seria o caso de alguém reunir em livro, como Mário da Silva Brito fez com a farta produção jornalística de Oswald de Andrade, as centenas de crônicas que Di publicou em

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jornais do Rio e São Paulo, particularmente a correspondência que mandou da Europa, quando da sua primeira permanência em Paris, antes de 1930) -, poeta, ele também o era, e de grande sensibilidade, como prova o "Testamento da Aurora", poema fteuve que ele botou no final do volume publicado de suas Memórias; e como atestam também as dezenas de poemas que escreveu, publicou ou simplesmente distribuiu com os amigos. Três deles foram incluídos por Manuel Bandeira em sua Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos, entre os quais o magnífico "Soneto dos 50 anos", que outro poeta, Augusto Frederico Schmidt, sabia de cor:

Vejo preso aos astros o véu da prece O canto desperdiçado e louco, a mão Que morre no adeus. Tudo porém reaparece Na água da lágrima que atravessa o coração

Aumenta o peso do sonho, a alma cansa Desfaz-se em sombra em terrível lentidão Na paisagem parada Há destroços de aeronaves pelo chão

Amor perdido! O fim da caminhada A fonte que cessa de cantar, o fundo De um vale onde não chega a madrugada E dentro da solidão sem esperança Uma vontade de novo partir por este mundo Levado pela mão de uma criança.

A última obra que Emiliano nos deixou foi o álbum Realismo mágico, contendo serigrafias suas realizadas entre 1960 e 1974. O álbum, verdadeiro primor, é o resultado de um trabalho essencialmente artesanal, desde o planejamento gráfico, orientado pelo próprio Di, até sua impressão, realizada no ateliê de Genaro e Guilherme Rodrigues. A edição foi de apenas 110 exemplares, assim numerados: de um a cem, destinados ao comércio; e de um a dez, prova do artista. A diagramação é de Brigitte Bruns e a encadernação de Mauro Belintini. Foi Elizabeth, a filha do pintor (uma bela moça de suave perfil de camafeu e densa cabeleira ruiva), quem acompanhou desde o início a confecção do álbum, o que demorou cerca de dois anos. Numa singela introdução ao álbum, onde a admiração pelo pintor e a admiração pelo pai se confundem numa única emoção, ela explica a intenção e o espírito da obra, na qual, segundo ela, a preocupação maior foi apresentar "um lado de Di Cavalcanti pouco conhecido e aceito: a sua faceta onírica, fantástica e, por que não?, surrealista".

Até 1974 [escreve Elizabeth di Cavalcanti], papai era incapaz de ficar com as mãos paradas. Desenhava o tempo todo, jogando buraco com os amigos, falando

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ao telefone, esperando pelo próximo prato. Desenhar, desenhar, desenhar. Por quê? Segundo alguns amigos, Di Cavalcanti é um homem diabolicamente inteligente e patologicamente sensível. Quantas formas, cores, situações, conhecimentos, idéias não torturam a cabeça deste artista? A profunda tensão por ele sentida encontra o seu principal outlet no desenho. Daí o papel, o lápis e o guache (com menos freqüência). Pequena, sentada à mesa, vendo meus pais jogarem biriba -só valiam reais , e imperiais ficava horas a fio vendo o grafite derramar-se sobre o papel, criando formas, composições. O lápis andava em roda, em linha reta, em tracinhos e pontinhos. Mas, não importa como, ele andava. E como andava! Houve a época dos veios de madeira, houve a época das charges políticas, familiares, das obsessões carnais e do escárnio à mediocridade. O traço começando aqui ou ali só se interrompe depois que completa formas. Não existe cansaço de pulso, não existem vacilações. O lápis e sua continuação: crayon-Di, Di-crayon. Amando o lado fantástico de Di, talvez por rebeldia ao leitmotiv "o pintor das mulatas", fui aos poucos me interessando pelos desenhos que para muitos são somente insólitos (se isto existe em arte, principalmente na contemporânea!). O lado monumental de Di está para seus óleos (tive disso consciência quando de sua exposição retrospectiva no MAM de São Paulo) como sua faceta lirica, mágica está para seus desenhos e guaches.

Na mesma introdução, Elizabeth informa como e em que instantes foram produzidas as serigrafias do álbum. Painel de máscaras, por exemplo, foi feito durante um "mano a mano sobre papel de buraco"; e Máscara preta, quando de um telefonema e que acabou em estudo para óleo.

"Filosófica e politicamente", diz Elizabeth, "vejo meu pai, Emiliano Di Cavalcanti, como pessoa extremamente realista. Artisticamente, ele é o mágico das cores e das formas: Realismo Mágico." E numa pequena e precisa nota crítica, acrescentada ao álbum, Bráulio Pedroso observa que ele "vale como lembrete para aqueles que hoje se deslumbram diante de um Gabriel Garcia Márquez, de um Julio Cortázar, esquecendo-se que a originalidade que expressam já tinha sido aqui elaborada e desenvolvida por artistas como Di Cavalcanti':

OS 802 E 803 DA RUA DO CATETE, 222

Na cidade do Rio de Janeiro ando para um lado e para o outro, boêmio como sempre. A cultura não apaga os meus sentidos, sou sempre o vagabundo, o homem da madrugada, o amoroso de muitos amores.

Di Cavalcanti (Viagem da minha vida)

Durante anos até o dia da sua morte, a 26 de outubro de 1976, Di Cavalcanti morou na rua do Catete, 222, apartamento 803; e no 802, adquirido pelo pintor poucos anos antes de mor-

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rer. No 802, que dá para a rua do Catete, Di tinha o ateliê, onde guardava uma parte de sua refinada biblioteca e onde dispunha de um pequeno quarto para a sesta e eventuais cochilos, um barzinho sempre municiado e uma aconchegante sala onde recebia os amigos. O apartamento dos fundos, o 803, era a parte doméstica da casa: sala de jantar, dormitório, sala de visitas etc. Um corredor interno liga os dois apartamentos através da área de serviço, o que permitia ao pintor deslocar-se de um para o outro sem ter que se expor à curiosidade dos vizinhos (no edifício, que ainda lá está, de quatro apartamentos por andar).

Mas tanto no 802 como no 803 a presença do artista era uma constante: quadros, e não apenas os seus, sempre em minoria, livros, objetos de arte, móveis antigos, numa heterogeneidade disposta com bom gosto e funcionalidade, cada coisa no seu lugar certo. Um dos orgulhos do dono da casa era a Plêiade numerosa, que enchia toda uma estante de jacarandá de porta envidraçada e que ali estava não como enfeite, mas para consumo diário do seu dono, famoso devorador de livros, particularmente da literatura francesa. Léautaud, do qual Di possuía em encadernação primorosa todo o Diário literário, era um dos seus autores preferidos; Malraux, outro; e mais todos os poetas malditos, particularmente Rirnbaud. E também Éluard, Valéry, Prévert (de quem era amigo), Martin du Gard e Cocteau. E, ainda, o Marquês de Sade, de quem Di tinha estimulantes edições ilustradas.

O 802 cheirava a tinta e verniz; o 803 tinha o odor comum a toda casa de família, e vez por outra era envolvido pelos apetitosos olores que fugiam da entreaberta porta da cozinha, onde a magnífica cozinheira preparava os fartos almoços do dono da casa. Nos últimos meses, como já disse, devido à doença, Di foi obrigado a uma severa frugalidade -severa e vigiadíssima. Mas isso não queria dizer que almoçar ou jantar em sua casa, quando ele já estava bastante doente, implicasse a obrigação de o convidado participar de uma penosa e insossa dieta de hospital. Nada disso. A comida continuava da melhor qualidade e do melhor sabor. E para os amigos mais chegados, nunca deixou de haver o uísque nobre, como aperitivo, os vinhos de classe, durante as refeições, e o licor de depois do cafezinho; ou o conhaque; ou o vinho do Porto.

Também por determinação médica, o cotidiano de Emiliano Di Cavalcanti sofreu uma radical mudança. Nos últimos meses, ele acordava às sete ou às oito da manhã, fazia um frugalíssimo desjejum, lia os jornais e das dez ao meio-dia ia trabalhar no ateliê do 802. O almoço era entre meio-dia e meia e uma da tarde, quase sempre com um ou mais convidados à mesa. Quando não havia convidados, Di recolhia-se ao quartinho ao lado do ateliê logo após o almoço, para uma sesta que ia até às três da tarde, quando retomava o trabalho. Jantava cedo, entre sete e oito horas da noite, ficava vendo televisão até às dez ou onze horas, quando ia dormir. Acordava invariavelmente às três ou às quatro horas da madrugada e ficava lendo até às seis. Dormia mais uma horinha, para despertar definitivamente às sete.

Mas se havia amigos para o almoço -e à sua mesa só se sentava quem ele realmente estimava (bicões e importunos eram atendidos ou maciamente despachados, no 802, pela sua filha Elizabeth ou pela sua mulher, Beryl) -, Di abria mão da sesta e até do trabalho, e podia ficar a tarde inteira num daqueles intermináveis bate-papos onde falava de tudo e (raramente) de pintura. Também no primeiro (e único) volume de suas Memórias do que ele menos fala é de pintura, embora, como no caso de Picasso, a pintura fosse mais forte do que ele, obrigando-o a fazer o que ela desejava.

Em seus mais de sessenta anos de pintura, Di Cavalcanti praticamente não deixou de pintar ou desenhar um só dia. Certa vez ele me disse: "Só deixo de pintar quando estou num navio ou num avião. Mesmo dormindo estou pintando -o que significa dizer que pinto

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quando cochilo no avião ou durmo no navio". Muitas vezes o vi pintar enquanto conversava; ou erguer-se da poltrona, em

meio à conversa, e ir até o cavalete dar um retoque ou acrescentar uma pincelada na tela que estava elaborando.

((ESTA HISTÓRIA SÒ TERIA GRAÇA SE FOSSE CONTADA PELO DI

A inesgotável e sempre renovada capacidade que tinha Di de contar histórias é que frustrava qualquer tentativa de uma entrevista mais ordenada, mais disciplinada com ele. Era impossível manter com Di um diálogo "jornalístico" -conversa de entrevistador com entrevistado. Eu, pelo menos, jamais consegui isso nas várias vezes que fui até sua casa na qualidade de repórter. À pergunta inicial, e obviamente prosaica: "Di, afinal, você nasceu no Catete ou em São Cristóvão?': ele respondia contando uma historinha qualquer, que nada tinha com o assunto, e que começava invariavelmente com aquele infalível "Bem..:'. Depois desse "Bem..:' vinha o resto, e o resto era uma copiosa cachoeira de fatos e episódios, farto material evocativo de que sempre esteve repleta a sua transbordante vida, uma vida da qual ele viveu com a mesma intensidade, paixão e gula todas as horas, todos os minutos e segundos.

Mas a graça das histórias de Di residia precisamente no fato de serem contadas por ele. Creio que foi Rubem Braga que certa vez comentou, após escutar algo que alguém acabara de lhe contar: "Esta história só teria graça se fosse contada pelo Di".

Causeur inimitável, ele falava como se desse cor às palavras, a elas emprestasse a vivacidade, a alegria e os exuberantes tons que costumava colocar em suas telas. O que às vezes podia acontecer era ele contar a mesma história, a ela acrescentando novos adornos e complementos: no caso, a pintura continuava a mesma, ele apenas mudava a moldura da tela, que o tempo havia desbotado ou descascado. Era essa fabulosa capacidade de recriação, aliada a uma assombrosa lucidez que ele manteve intacta até o fim, que dava à sua conversa (que ele sempre fazia acompanhar de gestos que eram verdadeiros passos de balé, como numa pantomima) o odor convidativo e a consistência crocante de pão fresquinho, ainda quente do forno.

Um dia lembrei a ele, Di, aquela frase de Picasso: "Admito tudo no homem, menos a morte". Ao que ele acrescentou: "A morte e a burrice".

APENAS UMA RUSGA, LOGO DESFEITA

Somente uma vez, em toda a minha vida, tive uma rusga com Di Cavalcanti. Talvez por culpa minha. Mas culpa fácil de ser perdoada -e logo ele a perdoou. Conto.

Naquele fatídico (e burríssimo) dia 13 de dezembro de 1968, às onze horas da manhã -e, por conseguinte, horas antes da decretação oficial do AI-S -, um capitão, um tenente e três praças, suados, armados de metralhadora e em uniforme de campanha, foram lá em casa me buscar. Por quê? Até hoje não sei -embora lá no quartel do Batalhão de Guardas, onde fui recolhido, me tivessem dito que eu constava de um rol onde a Junta Militar havia alinhado os "intelectuais mais perigosos e contestadores do regime militar" então vigente. Aproveito aqui para dizer que fui o primeiro brasileiro a ser preso naquele dia 13 -horas

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antes de o locutor Jorge (ou Alberto) Cury, com o ministro Gama e Silva ao lado, ler em voz grave e caprichada o ucasse castrense que ia mergulhar o país em densas trevas. Fui o primeiro preso (e a edição de O Estado de S. Paulo daquele dia constata isso), não por ser peixe graúdo. Apenas aconteceu que dois dias antes uma monumental gripe havia me pego de surpresa e me jogado na cama, onde fiquei ardendo com uma febre de 39, quarenta graus..Foi nesse estado que a patrulha militar me encontrou; e foi nesse estado que me levou para o quartel, de onde só sairia 28 dias depois.

Ora, precisamente àquela época eu estava às voltas com o casamento da minha filha Elizabeth. Contraíra empréstimos nos bancos, assumira outros compromissos -enfim, estava de dívidas até o pescoço. Quando saí da prisão, foi a catástrofe: empregos perdidos, encomendas desfeitas, contas atrasadas, promissórias vencidas. Dois meses depois, no Carnaval de 1969, nova cana, o que aumentou ainda mais as minhas dificuldades financeiras. Mas o fato é que o casamento de Elizabeth, já marcado, com os primeiros convites já distribuídos, não poderia de forma alguma ser adiado. Só me restava, portanto, para saldar compromissos atrasados e assumir outros, me desfazer de alguma coisa de real valor que eu tivesse lá em casa. E o que eu tinha de mais valor era precisamente um óleo de Di; e também duas águas-fortes de Portinari -todos ganhos de presente dos seus autores. Foi com o coração apertado que vendi tudo; e devo dizer que ainda hoje odeio ferozmente as pessoas a quem os vendi. E foi com esse dinheiro que o casamento de Elizabeth saiu; e saiu como eu queria: alegre e farto.

Quando Di soube que eu tinha vendido o quadro que me dera, ficou uma fúria. E durante uns dois meses, amuado, deixou de ligar lá para casa. Só me restava esperar que sua mágoa passasse. Mandei-lhe convite para o casamento, mas sem esperança de vê-lo entre os amigos (tantos e tantos) que lá estiveram na igreja de Nossa Senhora da Glória, no outeiro de mesmo nome, naquela tarde de 25 de abril de 1969. E confesso que fiquei comovido (quase choro -vejam só!) quando percebi que Di era um dos primeiros da fila. E que, já dentro da igreja, por conta própria, fora se juntar ao numeroso grupo de padrinhos da noiva.

Na manhã daquele dia, Elizabeth recebia de Di dois belos presentes. E acompanhando-os, este bilhetinho, que até hoje ela guarda com ternura, ciúme e reverência:

Querida Elizabeth:

Filha de Sua Mãe Santa e de seu pai Joel, brevemente canonizado pelo clero nacionalista, no dia do seu casamento envio-lhe estes dois presentes: um desenho e um prato português para você ornamentar sua futura morada com seu amor.

Beijos do Di Cavalcanti.

De lá pra cá, nunca mais brigamos. Mas, em compensação, nunca mais me deu outro quadro seu. Nem precisava. Nenhum outro, por maior e mais belo, poderia substituir aquele que em determinado momento da minha vida foi a própria tábua de

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salvação.

Certo fim de tarde, eu ia caminhando do largo do Machado até o apartamento de Di. Era um entardecer muito bonito, de céu sem mancha. Parei numa esquina para comprar um jornal, não sei por quê, ergui os olhos e subitamente a coisa aconteceu: cruzando velocíssima o filamento numa só direção -de bombordo para estibordo, como diria um marinheiro -uma luz reta e intensa me encheu os olhos e quase me cegou. Que diabo seria aquilo?

Cheguei ao apartamento de Emiliano de coração ainda batendo, contei-lhe em tumulto o que havia acontecido, insistindo nos detalhes, que pretendia fazer os mais convincentes possíveis:

-Uma coisa incrível, seu Emiliano. Mais parecia um cometa ou uma estrela que estivesse caindo, sei lá. Riscou o céu, fulminante, e lá se foi. Juro que não estou mentindo.

Di me ouviu em silêncio, sem largar o pincel: dava uma rápida pincelada na tela, depois mais outra, parava, olhava a tela por alguns segundos, dava outra pincelada. Só depois é que falou:

-O que você viu foi um disco voador. Dá muito por aqui pelo Catete. Já me acostumei. E em seguida, botando o pincel de lado e limpando as mãos na flanela coloridamente

suja, perguntou o que eu queria beber antes de jantar: -Uísque? Gim? É inglês! Tônica? Ou batida de vodca russa? Optei pelo uísque, que não sou homem de novidades.

.

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PARTE 04 A MILÉSIMA SEGUNDA NOITE DA AVENIDA PAULISTA Paulo Mendes Campos: um erudito sem erudição

Nos "Fragmentos em prosa" Paulo Mendes Campos cataloga numa espécie de contraponto os singulares eventos que aconteceram antes e depois do seu nascimento, e que, segundo ele, de um certo modo justificam o fato de ter nascido no dia e ano em que nasceu. Escreve ele:

Nasci a 28 de fevereiro de 1922, em Belo Horizonte, No ano de Ulysses e de The Waste Land Oito meses antes da morte de Marcel Proust Um século depois de Shelley afogar-se no golfo de Spezzia. Nada tenho com eles, fabulosos. Mas foi através da literatura que recebi a vida. E foi em mim a poesia uma divindade necessária.

Dessa divindade necessária poucas pessoas no Brasil conheceram melhor os mistérios e os sortilégios do que Paulo Mendes Campos. Embora ele costumasse dizer que tudo o que fazia "era por encomenda", a verdade é que quem lhe encomendava qual- quer escrito seu, em prosa ou em verso, sabia a quem estava encomendando. Nada lhe saía imperfeito da imaginação e muito menos da tarimba de quem durante quase meio século viveu da cabeça e do que ela lhe podia dar. E na verdade podia dar tudo: grande poeta e prosador nato, é cada vez maior o interesse pela sua obra, que vem sendo reeditada, toda ela.

Extremamente modesto quando fala de si próprio, parcimonioso no elogio, desajeitado no vestir, sempre despenteado, amigo do bom uísque e "exímio domador de tremendas ressacas", como ele se define, Paulo Mendes Campos é capaz de despedir-se um começo do dia de sua mulher, a simpática inglesinha Jane, que foi sua companheira por toda a vida -pois bem, Paulinho é capaz de dizer a Jane, oito horas da manhã: -Vou ali na esquina

comprar jornal e volto logo. E só voltar de madrugada, quando o bar cerra as portas. O bar sempre foi a sua

segunda casa. Ele explica: -Num bar, depois da quinta dose, todo mundo fica inteligentíssimo. A conversa que se segue deu-se por acaso, poucos meses antes de ele morrer.

Encontrei-o no começo da tarde na avenida Ataulfo de Paiva, e ele foi logo dizendo: -Estou faminto e sedento. Passei o dia inteiro lá no Centro. Um horror! Meu cavalo

por um uísque. Cavalgas comigo?

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Começamos a conversar no bar, depois fomos para o seu apartamento no Leblon. Na época eu estava escrevendo uma série de reportagens-entrevistas para a revista Status, e vi logo que aquela conversa com Paulinho, que estava com toda corda, daria uma excelente matéria. Expliquei a situação:

-Vamos gravar tudo isso, Pablito. Você está de lÍngua solta, e vai salvar o meu "vale" mensal.

A conversa foi das cinco da tarde às dez da noite, ou seja, cinco horas e quase um litro de J&B. Como Jane, sua mulher, ainda estava na biblioteca, providenciando gelo e salgadinho, achei que a pergunta seria sobre ela. Comecei:

-Você e a Jane... trinta anos de casados, não? -Trinta e cinco. -Pois é. Mas me diga, como é que você conheceu esta santa inglesa de notória e

festejada paciência? E como conseguem ainda ser namorados? Um dia destes um amigo surpreendeu vocês dois num restaurante de Petrópolis de mãos dadas e trocando beijinhos... Como isso é possível depois de mais de trinta anos de casamento?

Paulinho bebeu mais um gole, disse, sem encarar Jane, que já se retirava: -Você já disse. Paciência, a dela. Nisso ela é um monstro, imbatível. Nunca se altera,

nunca a vi chorosa. Uma coisa incrível. E não deve ser fácil agüentar bêbado, particularmente essa espécie de bêbados, na qual me incluo, que quanto mais bebem mais agressivos e insuportáveis ficam. Não, não foi em Londres, mas aqui no Rio, onde ela vinha pela primeira vez. Eu era muito amigo do irmão dela, o Jimmy, que trabalha numa agência de publicidade, a Thompson. Ele já se mudara para o Rio havia muito tempo. É muito mais velho do que ela. Então, quando ela veio passar as férias de verão com o Jimmy, o irmão, ficamos nos conhecendo. E em apenas três meses namoramos, ficamos noivos e casamos. Ela, inclusive, não sabia português.

Dou uma virada na entrevista, pulando de um assunto pessoal para outro genérico, e pergunto a PMC:

-Você tem fama de ser, de todo o grupo mineiro, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, o mais erudito de todos. Como você aceita esse qualificativo de erudito?

-Essa história de erudito-erudição, ao contrário do que se pensa, não é coisa que se adquire. O sujeito nasce erudito. No meu caso, nasci com todo o mecanismo, com todos os instrumentos para ser erudito, mas não os desenvolvi. De forma que hoje me defino como um erudito, mas não fiz a erudição. Nasci erudito, mas não fiz a erudição. Tenho uma facilidade danada para guardar coisas, relacionar e tal. Daria um grande arquivista da ONU, talvez pudesse ser um grande historiador, qualquer coisa assim. Mas não desenvolvi essa qualidade de guardar as coisas e isso principalmente porque na minha vida eu sempre preferia mais o Vogue, o Sachas, do que a Biblioteca Nacional ou o Arquivo Nacional.

-Como foi a sua iniciação literária? Quando ela começou? -Meu pai [o pai de PMC, Mário Mendes Campos, foi poeta

festejado em seu tempo, e até ganhou crítica lisonjeira de João Ribeiro] tinha uma grande biblioteca. Aliás, meu pai conheceu minha mãe, também dotada de inclinações literárias, quando ela recitava um poema de Alberto de Oliveira com ele, Alberto de Oliveira, presente. Ela era então uma colegial. Isso foi em Ubá, terra do meu pai. Ao ver a colegial

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recitando Alberto de Oliveira diante do próprio, meu pai, homem sensível, ficou comovido até as lágrimas, e foi nessa ocasião que ele falou pela primeira vez com a minha mãe. De forma que desde menino eu vivia em contato com os livros. Mas meu pai jamais me obrigou a ler um livro, nem mesmo os dois livros que publicou com poemas seus. Meu pai é uma figura extraordinária, nos tratamos com informalidade e cordialidade, é uma alegria mútua quando nos vemos, ele parece mais irmão mais velho do que pai. E sei exatamente o que ele acha de mim.

-E o que é que ele acha? -Ele me acha um tanto moleque... Um moleque que de vez em quando lê. Meu pai é o

meu melhor amigo. Jane adora ele. -Como foi o seu primeiro encontro com Mário de Andrade? -Quem primeiro fez amizade com ele foi o Fernando Sa-

bino. Tempos depois, quando o Fernando há muito trocava car- tas com ele, o Mário foi a Belo Horizonte apenas para ficar uma semana com a gente. Passamos o dia inteiro juntos, bebendo chope no famoso e demolido Grande Hotel. A partir daí, ingressei no rolinfindo! -de intelectuais que trocavam cartas com Mário de Andrade. Eu tinha mais de cem delas, e pretendia publicá-las em livro. Ai aconteceu o desastre!

-Que desastre? -Eu guardava as cartas do Mário numa caixa, por sua vez guardada num armário do

meu quarto. Certo dia, mandaram, lá em casa, o armário para ser consertado. E quando o carpinteiro trouxe o armário de volta, disse à minha mãe: "Olhe, encontrei lá no armário uma caixa com uma papelada velha, esquecida no canto, e toquei fogo em tudo". Quase matei o portuga.

-Corre por aí, nos ambientes lítero-etílicos, que foi você quem ensinou o Otto Lara a beber uísque. Procede?

-Procede. É verdade que tentei ensinar, mas o Otto nunca aprendeu. O uísque não gostava dele, como não gosta do José Aparecido. Como você sabe não é de todo mundo que o uísque gosta. E quando não gosta, é o diabo...

-E de você, ele gosta? -Às vezes... Vez por outra, quando o porre é maior, me trata como se eu fosse um

cachorro enjeitado. Com uísque aprendi uma coisa: ele não adula nem gosta de ser adulado. E trata com todo respeito, e até mesmo com reverência, os bons bebedores.

-O que o levou a trocar definitivamente Belo Horizonte pelo Rio? Lá em Belô (ou Beagá, como se diz hoje) você tinha cama e comida e mais uns quatro empreguinhos. Vida de fartura, família classe média, sem maiores preocupações. Como você explica ter trocado todo esse bem-bom pelas aperturas que certamente sabia que iria passar no Rio?

-Pois é... A resolução não foi assim tão súbita, há tempos que eu pensava em vir com meus trens para o Rio. Afinal é aqui que as coisas acontecem. Um fato precipitou os acontecimentos. Li que Pablo Neruda estava no Rio, em visita aos amigos brasileiros, entre eles o Di Cavalcanti e o Vinicius de Moraes. Isso foi em 1945, logo após a queda de Getulio. A vinda de

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Neruda ao Rio não era só um ato poético -era também um ato político. Vim conhecer Neruda, sobre o qual eu já havia escrito vários artigos. Artigos estes que a Gabriela Mistral, que então residia como diplomata no Rio (era cônsul-geral do Chile), enviava a ele, Neruda. De forma que ele já conhecia meus artigos, o que significa dizer que já me conhecia de nome. Fiquei um mês no Rio, morando na casa de Vinicius, onde o Neruda costumava aparecer. Aliás, foi na casa de Vinicius que Neruda leu para mim um trecho do Canto general que eu traduziria mais tarde, um trecho lindo, aquele em que ele fala das alturas de Machu Picchu -depois resolvi encerrar em definitivo minha vida em Belô, e me mudar para o Rio. Menti para meu pai, dizendo que havia arranjado um bom emprego no Rio, e me mandei. E logo não tardaria a me enturmar com uma turma de alto quilate: Vinicius, Di, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Lúcio Cardoso, Santa Rosa, Sérgio Milliet, uma porção de outros. Fui morar com Vinicius e depois com Rubem Braga e tinha como companheiro de birita o usineiro Antôgenes Chaves (que deve ter pago tonéis de uísque para a patota), Rosário Fusco, alívio Montenegro, Lúcio Rangel, uma porção de outros. E fui tocando a vida, ou a vida me tocando, tanto faz.

-Você em seguida andou viajando muito pelo exterior. Que lembranças guarda dessas viagens? -A minha primeira viagem ao exterior foi para Paris, em 1949. Paris, na época, ainda estava muito marcada pela guerra, a França com pouco dinheiro e eu com pouquíssimo. a que salvava era o nosso câmbio, que era bom em relação ao dinheiro francês -e por aí se vê em que miséria eles estavam. Trabalhei numas coisas extras, juntei um dinheirinho e fui para lá, de avião. Fiquei morando em Paris uns dez meses, e minha vontade era ficar para sempre. Durante essa viagem, fiquei somente em Paris, me negava a bancar o turista aflito, esses que vivem pulando de país em pais, de cidade em cidade, e acabam não conhecendo nada ou só conhecendo pela rama.

-Diz a lenda que a primeira coisa que você fez em Paris foi deixar a mala no hotel e ir correndo visitar o túmulo de Baudelaire, em Montparnasse. É verdade?

-Não foi bem assim. Só fui ao túmulo de Baudelaire no dia seguinte, e já curtindo a minha primeira ressaca em Paris, pois passei a noite inteira com um jornalista português, Novais Teixeira, que eu já conhecia aqui no Brasil e que fora me esperar no aeroporto. Visitar o túmulo de Baudelaire era uma promessa que eu fizera a mim mesmo. Foi minha mãe, quando eu era ainda menino, quem me deu os primeiros versos de Baudelaire -que me fascinaram. E ainda hoje Baudelaire é uma das minhas fascinações.

-Como era o seu cotidiano na Paris de 1949, ainda empobrecida pela guerra? -Eu vivia aquela vidinha de Saint-Germain. Não tinha preocupação de procurar

escritores nem nada. Paris vivia o auge do existencialismo. Sartre, Camus, Simone de Beauvoir, Juliette Gréco eram os donos e as vozes da cidade, com plantão diário no Café de Flore. Eu também ia lá todo dia beber a minha cervejinha ou o meu anis. Conheci uma porção de gente, conheci o Picabia, o Benjamin Péret, que me foi apresentado pelo Mário Pedrosa.

-E Picasso, conheceu? -Não. Mas conheci o chofer do Picasso! Ele era muito amigo do Cícero Dias. -E o Sartre?

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-Uma vez, na rua, eu estava sem fósforo nem isqueiro, doido para fumar. Então

vi Sartre se aproximando, vindo não sei de onde, e pitando furiosamente. Me deu uma vontade louca de pedir fogo a ele, mas como poderia fazer isso, pedir fogo a um filósofo existencialista? De forma alguma. Tempos depois, quando Sartre visitou o Brasil, contei a ele essa história e ele riu muito. Dos brasileiros, na época, lá estavam o Guimarães Rosa, o AntÔnio Bandeira, o Cícero Dias, e uma porção de gente que por lá passava. Lembro-me também da Bluma, a primeira mulher do Samuel Wainer, bonita de doer, e era um encanto andar com ela pelas ruas de Paris, sem horário, nem itinerário determinado. Que dias maravilhosos! Conheci também o Jacques Prévert. Esbarrava-se, e ainda se esbarra, em Paris, com gente famosa com a mesma facilidade com que aqui no Rio se esbarra em batedor de carteira.

-Você já foi do Partido Comunista? -Não, nunca pertenci a partido nenhum. Não sou homem de partidos. -Mas como é que você se define politicamente? De direita é que você não é.

Você pensa e escreve como um homem de esquerda. -Digamos que sou um socialista. Acho que o mundo dá mais ou menos para

todos, mas não dá para ficar nas mãos de alguns poucos enquanto milhares ficam sem nada. Então eu me defino como um socialista por racionalismo absoluto. Já me interessei até por uma revolução, uma reviravolta, que pudesse instalar o socialismo no Brasil.

-Por que você, dono de excelente ficção e prosador nato, nunca escreveu um romance?

-Sou um homem de encomendas. Se me encomendarem uma missa, faço a missa. Se me encomendarem um romance, terão um romance. Nunca escrevi um romance porque nunca

me encomendaram.

-Vamos agora à pergunta final, mesmo porque o uísque está acabando: que conselho você daria a um jovem mineiro de dezessete ou.dezoito anos que nesta hora exata estivesse arrumando a mala para vir para o Rio ser outro Paulo Mendes Campos?

-Aconselharia a ele ir para Sabará, ficasse lá escrevendo, publicasse lá mesmo suas coisas. E que todo sábado e domingo desse um pulo até Belo Horizonte, subisse e descesse a rua da Bahia, se encontrasse com o Murilo Rubião. E que na segunda-feira, bem cedo, voltasse correndo para Sabará. Gilberto Freyre: confissões em Apipucos

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Ainda não eram sete horas, na bochornosa manhã de outubro de 1958, quando o motorista parou o táxi defronte à velha mansão que noutros tempos fora casa-grande de engenho. O gringo que viajava no banco de trás botou a cabeça para fora, interrogou com os olhos o chofer, que lhe respondeu, apontando para o portão de ferro:

-É aqui. Magro, compridíssimo, os olhos quase sumindo por detrás das grossas lentes dos

óculos, vestido num conjunto de tweed tão inadequado para a temperatura local, o homem desceu, pagou a corrida e encaminhou-se para o velho portão de ferro. Mas não conseguiu abri-lo. Velho conhecedor do endereço, o chofer veio em seu auxílio, puxando o ferrolho interno. O gringo agradeceu com um thank you e empurrou o portão, que rangeu, fanhoso, nas dobradiças. Depois, tomou o caminho de pedra que, margeado de árvores centenárias e copudas, numa extensão de uns duzentos metros, vai do portão à escadaria, igualmente de pedra, na estrada principal do casarão. Galgou rápido com suas longas pernas os doze degraus que levam à varanda tomada pelas begônias e trepadeiras, procurou sem sucesso, na porta fechada, a campainha inexistente, depois bateu palmas, que lhe pareceram excessivamente ruidosas no silêncio úmido e vegetal do ambiente, um silêncio até então só perturbado na sua modorra pelo atropelado cantar dos pássaros em derredor.

Minutos depois, sonolento e embrulhado num chambre sem dúvida vestido às pressas, o dono da casa abriu a porta, para ouvir do visitante, num impecável inglês:

-Procuro o professor Freyre. Meu nome é Huxley. Aldous Huxley. A chegada extremamente matutina de Huxley à casa de Gilberto Freyre, no bairro de

Apipucos, em Recife, tem a sua explicação. Na verdade, o famoso escritor ali arribava como um náufrago. Em visita oficial (ou oficiosa) ao Brasil, no quinto dia de sua estada, depois das homenagens e dos almoços e jantares de praxe, o autor de Contraponto vira-se completamente abandonado pelo Itamaraty, que deveria ser o seu guia e anfitrião. Quem o salvou foi a carta na qual Julien, seu irmão, recomendava-o a Gilberto Freyre, um velho amigo brasileiro. Voou, então, para Recife; e do aeroporto, mal o dia clareava e após uma rápida passagem pelo hotel, onde deixou as malas, mandou-se aflitivamente para Apipucos, onde chegou gaguejando desculpas e repetindo uma definição do Brasil que ainda hoje Gilberto Freyre considera a mais perfeita das tantas que já ouviu sobre o nosso país: "Este é um dos países mais improváveis que tenho conhecido".

A BATIDA DE PITANGA E A TOCA DO BRUXO

Aldous Huxley não seria o primeiro -nem seria o último -visitante famoso que Gilberto Freyre iria receber em sua mansão situada no centro de uma miniatura de floresta, no ponto mais extremo do bairro de Apipucos, na capital pernambucana. John Dos Passos, Rossellini (que tinha planos de filmar Casa-grande & senzala), o príncipe da Baviera, Robert Kennedy (que lá apareceu comandando um pelotão de trinta pessoas), Albert Camus, Lucien Febvre, Georges Gurvitch, Arnold Toynbee, Robert Lowell, Jean Duvignaud e tantos outros, incluindo os portugueses mais famosos da literatura lusa contemporânea -é

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infinda a lista internacional de gente importante que lá esteve. E maior ainda a nacional, o que torna quase impossível enumerar com exatidão todos os escritores, poetas, cientistas, sociólogos, antropólogos, jornalistas, ensaístas, cineastas, artistas plásticos do primeiro time (e do segundo também) que nos últimos quase cinqüenta anos passaram pelo solar de Apipucos para uma visita de minutos ou de horas. "Apipucos é o Vaticano do Recife", costumava dizer José Lins do Rego, um dos seus visitantes mais assíduos.

De todos que lá chegam, o dono da casa só exige uma obrigação, espécie de ritual introdutório: que provem da sua batida de pitanga, cuja receita, invenção dele, Gilberto nunca dá por inteiro, por mais que se insista, limitando-se a informar vagamente que a infusão, realmente deliciosa, deve ter como base a cachaça chamada de "cabeça" (ou seja, a que sai no primeiro jato do alambique), que as pitangas têm que ser "vermelhíssimas, colhidas na hora" e que, na mistura, são imprescindíveis algumas gotas de licor de violeta, "um licor raro, uma beleza de licor, misticamente roxo no seu colorido e seráfico no seu odor fabricado pelas freiras do convento do Bom Pastor, em Garanhuns. O que mais? Apenas "um pormenor significativo", mas esse "pormenor" é segredo que o alquimista Gilberto Freyre jamais revelou a quem quer que seja, nem mesmo aos seus amigos mais íntimos, nem mesmo aos seus parentes mais próximos, incluindo a mulher e os filhos. "Nem sequer ao alcoólatra mais sincero", diz ele.

Envelhecida por cinco anos, a bebida é forte, mas John Dos Passos consumiu, imperturbável, um frasco inteiro dela. Rossellini chegou, euforicamente, à metade de um outro. E um dos poucos que não passaram da primeira dose foi Rubem Braga, segundo me conta o dono da casa.

-Ele bebeu meio cálice, fez um muxoxo e pediu uísque. Durante muito tempo, o contínuo desfilar dos visitantes que transitavam pela mansão

de Santo Antônio de Apipucos uma mistura de casa-grande, biblioteca, museu e galeria de arte -estendia-se por todo o dia e muitas vezes continuava noite adentro, com sérios prejuízos para Gilberto Freyre, que não conseguia tempo e tranqüilidade para o seu trabalho. Hoje, o horário em Apipucos é rigorosamente policiado por d. Madalena Guedes Pereira Freyre, a dona da casa, que acabou com as visitas imprevistas ou sem horário previamente combinado. Agora, quem quiser avistar-se com GF terá que procurá-lo no Instituto Joaquim Nabuco de Ciências Sociais, criado em 1948 no governo do general Eurico Dutra por sugestão do próprio Gilberto e do qual ele é hoje presidente do conselho diretor. Lá, ele pode ser encontrado todas as tardes, das três às seis. Pela manhã, em Apipucos, nem telefone ele atende, pois não existe extensão na "Toca do Bruxo", que é como ele chama a dependência, nos fundos do casarão, onde se enclausura, "como um frade penitente", das oito da manhã ao meio-dia, após o desjejum e um rápido caminhar pelo jardim ou uma esporádica visita ao pitangal. Na verdade, a Toca do Bruxo não é mais do que um dos segmentos da biblioteca de mais de 40 mil volumes que se espalham por quase todos os dois andares da casa. A Toca do Bruxo é o escritório e o estúdio de GF; e também o seu ateliê, pois quando ele não está escrevendo, está pintando, já que a pintura é o seu hobby preferido. Viajar pelo mundo é um outro.

Mas não é fácil, para quem não conhece a geografia da casa, chegar até a Toca, escala

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terminal de um verdadeiro e apinhado labirinto de salas, saletas, corredores e degraus.

"APIPUCOS É UMA PROJEÇÃO DA MINHA PESSOA"

A perna esquerda estendida sobre um dos braços da velha poltrona de couro, o bloco de papel apoiado na coxa e munido de uma caneta esferográfica barata, dessas que a gente compra em qualquer camelô da esquina -é assim que GF escreve, sem precisar de óculos apesar dos seus mais de oitenta anos, numa letra regular, firme e facilmente legível no seu talhe bem desenhado. À sua volta, a total desarrumação dos livros, quadros recém-pintados (sua pintura pode ser qualificada de um figurativismo naif), pincéis, jornais e revistas, nacionais e estrangeiros, velhos e recentes; e mais mil objetos os mais diversos, dezenas e dezenas de souvenirs trazidos de viagens pelo mundo, tudo dando a impressão de um caos irremediável, absoluto, ao qual o dono da casa de há muito tivesse desistido de impor qualquer ordem ou disciplina. Mas o que ao estranho pode parecer desordem e confusão é para GF a "sua ordem". Na barafunda geral, com a segurança e a confiança de um maestro que conhece a fundo sua orquestra, ele sabe perfeitamente onde encontrar o documento de que necessita e na hora que necessita; e nas estantes abarrotadas, localizar sem trabalho o livro que quer consultar. Imagino a irremediável catástrofe que significaria para ele se acontecesse de uma empregada nova, desconhecedora da "ordem" do patrão, resolvesse substituí-Ia pela sua, pondo cada coisa no seu devido lugar. Falo disso a GF e ele diz:

-Não poderia me acontecer desastre maior. É o próprio GF quem afirma que a mansão de Apipucos é uma projeção de sua

própria pessoa. -E não só da minha pessoa, mas também da minha vida, das minhas idéias, das minhas solidões, dos meus mistérios, dos meus sonhos, das minhas memórias, das minhas saudades, das minhas esperanças, das minhas inquietações, do meu gosto de confraternizar com os pássaros que fazem seus ninhos dentro de casa, com plantas, com verdes de árvores. Arvores e pássaros que são quase pessoas de casa ou quase gente da família. Certa vez o pintor Francisco Brennand disse que meu nome "está como que para sempre ligado a duas casas: à casa-grande do livro e à casa também grande de Apipucos". É verdade. Num caso, seria a ligação de um autor com a "casà' de um livro germinal na sua obra; no outro, a de um homem com a casa que lhe pertence e a que ele pertence, há quase cinqüenta anos; e onde mora amorosamente, por amor e não por conveniência. São um autor e um homem completados, um por uma casa simbólica, outro, por uma casa, para ele, mais que real: carnal. Extensão do seu próprio ser ou do seu próprio "estar sendo". Na verdade, sou um autor que se autobiografou e, até certo ponto, "autobiografou" quase todo brasileiro -autobiografia coletiva -escrevendo um livro (Casa-grande & senzala) talvez único pelo que, revelando um indivíduo em busca de sua identidade, revela também a formação mais íntima de um povo: ou de um homem coletivo e, esse, o brasileiro, em particular; e o homem de várias origens situado n9 trópico, em geral. Escrito esse livro, o autor se ligaria para sempre -a vida imitando a arte? -a uma ao mesmo tempo particularíssima e brasileiríssima casa para ele idealmente sua. Uma casa que é, como já disse, uma projeção

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do meu eu múltiplo e de sus mais afins ao meu: o da esposa, os dos filhos, os dos netos e, também, os dos mortos mais queridos, os dos amigos mais amigos, os dos autores de livros mais lidos e relidos, os retratos de família, o leque que foi da minha avó, as esporas de prata que foram do meu avô, as velhas receitas de doces, segredo da família. E mais as pinturas, as esculturas, as cerâmicas, as porcelanas, os móveis mais admirados; e, ainda, as comidas, os seus cheiros, o "conhaque" (como você, Joel, resolveu chamar minha batida de pitanga) , os prazeres mais caseiros, os chinelos sem meias, a rede, a cadeira de balanço, o relógio antigo, os pijamas, os amanheceres, os anoiteceres mais íntimos. Mas não só essa projeção desses eus sobre uma casa: também dessa casa sobre esses eus. O mistério de uma reciprocidade. Onde o homem mais descobre aquilo que Jung chama a sua alma, ou mais comunga com seu Deus ou com os seus deuses ou com seus santos; ou mais se sente ao mesmo tempo que uno, plural, do que através da identificação com a sua casa, e através de sua casa, com a gente de que emergiu e com o futuro para o qual ele, indivíduo, e essa gente, como um todo, caminham.

MIL LEMBRANÇAS, TODAS VIVAS

Antiqüíssimos e pesados móveis de jacarandá de Spiegler e Béranger, algumas das melhores telas de Vicente do Rego Monteiro, óleos e desenhos da primeira fase de Di Cavalcanti, quadros, de várias épocas, de Cícero Dias (que Gilberto Freyre considera essencialmente "o pintor da luz brasileira"), e muitos outros de Lula Cardoso Aires e Brennand, retratos de Smailovitch, um magnífico auto-retrato de Pancetti (na verdade, uma tela dupla, pois do outro lado é uma marinha), um insuspeitado, ; pelo seu arrogante colorido, Jenner Augusto, de 1955. E mais pratas e azulejos portugueses, marfins do Oriente requintadamente trabalhados, tapetes persas, toda uma coleção de armas brancas (na qual se destaca uma ameaçadora espada de samurai), rústicas pulseiras de ébano (presente de um soba africano), caixas de sândalo da índia, uma relíquia de são Francisco Xavier trazida de Goa, jarros de porcelana de todos os tamanhos, louças portuguesas e inglesas, um jarro pré-marajoara, o busto do poeta Manuel Bandeira feito por Celso Antônio... Numa mesa, espécie de escrínio envidraçado, dezenas de condecorações, medalhas, troféus -inclusive os referentes ao prêmio Aspen, do Instituto Aspen, dos Estados Unidos, e o prêmio Internacional La Madonnina, da Itália, conquistados respectivamente em 1967 e 1969 -, comendas e colares; e ainda uma infinidade de objetos os mais vários (alguns, preciosidades que têm espicaçado a gula dos antiquários) e que enchem os armários de porta de cristal desenhado, sobram deles, espalham-se pelas mesas, pela beirada das prateleiras das estantes -ocupam, enfim, todos os poucos espaços ainda vazios que restam na casa. Coroando tudo isso, uma galeria de retratos de ancestrais, reprodução ampliada de velhos daguerreótipos que mostram graves barões e conselheiros do Império, rapazes de aparência tristonha e bigode ralo, senhoras de olhar distante, belas e suaves sinhazinhas de colo redondo, todos autênticos e orgulhosos membros de uma fanada aristocracia canavieira que se perdeu no tempo.

Assim é o solar de Apipucos, onde cada quadro, cada móvel, cada objeto, cada fotografia desbotada pelo passar dos anos ou mais recente, cada carta ou cada livro

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raro tem a sua história ou lembra alguém ou alguma coisa. História que GF guarda na memória excepcionalmente inteiriça num homem que já passou dos oitenta. Ele pode dizer o ano, o mês e o dia exatos, e às vezes até mesmo a hora, em que recebeu de presente de d. Laurinda Santos Lobo, no seu salon de Santa Teresa, aquele tinteiro de metal representando Sarah Bernhardt e que pertenceu a Joaquim Murtinho -e isso foi em 1926. Como também pode reconstituir, como se estivesse repassando uma conversa da véspera, os fraternalmente ásperos diálogos que manteve com Manuel Bandeira, quando, há quase sessenta anos, foi hóspede do poeta na rua do Curvelo. Só raramente sua memória claudica, ao não se lembrar logo de um nome ou de uma data. E quando isso acontece, é imediatamente socorrido por d. Madalena, sua mulher, ela própria um catálogo minucioso do fascinante mundo de Apipucos.

"UM DESSES RAROS HOMENS QUE SABEM INAUGURAR REPENTINAMENTE UMA INTIMIDADE

Tantas preciosidades e lembranças do passado guardadas numa só casa poderiam fazer crer a quem nunca esteve em Apipucos que a atmosfera que lá reina é solene e formal, como acontece com os museus, onde se deve falar baixo e pisar macio. Mas o difícil é dizer onde, na mansão de Apipucos, termina a parte doméstica e começa a parte, digamos, erudita, de tal forma as duas estão interligadas pela presença em quase todas as dependências dos livros, quadros e peças antigas. E a informalidade, imposta pela maneira de ser dos donos da casa, acolhedora e descontraída, cresce ainda mais com a presença, que ali é quase diária, dos filhos, netos, genro e nora.

Escrevendo certa vez sobre Gilberto Freyre, o romancista Lúcio Cardoso disse dele ser "um desses raros homens que sabem inaugurar repentinamente uma intimidade". Na rápida construção dessa intimidade entra, como principal ingrediente, a própria maneira de conversar de GF, vária, ecumênica, multidirecional, como se ele, ao tratar de tantos assuntos e abordar temas tão diversos, estivesse à procura do denominador comum capaz de estabelecer entre ele e o interlocutor um entendimento imediato e mais solto.

Aos mortos que foram seus desafetos, ele se refere muitas vezes com ironia, jamais com ira ou rancor fermentado; e aos que foram seus amigos íntimos, com uma saudade inconformada. É ele mesmo quem diz que nada mais o fere que a morte de um amigo.

-E ultimamente, em matéria de perda de amigos, tenho sofrido muito. As mortes de Rossellini e de Carlos Lacerda, por exemplo, ainda me doem.

De Lacerda ele lembra "a pessoa incessantemente dinâmica, o homem criador, renovador e inovador, todo orgulhoso do fato de ser escritor ao lado do homem político que sempre foi".

A propósito de Rossellini, pergunto-lhe se é correta a informação de que o grande cineasta italiano pretendia filmar Casagrande & senzala, ou alguns episódios do livro, que ele, Rossellini, havia lido na tradução italiana da editora Einaudi, de Milão. GF confirma:

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-Discutimos muito a respeito. Rossellini apareceu aqui em Apipucos, de surpresa, trazido pelo Di Cavalcanti. Provou, é claro, da minha batida de pitanga, quis saber dos meus projetos, interessou-se pelos móveis de jacarandá da casa, exigindo que eu contasse a história e a procedência de cada um. Interessouse também pelos quadros, particularmente pelo auto-retrato de Pancetti. E referindo-se a passagens do livro, provou que realmente havia lido Casa-grande. Tempos depois eu recebia um telegrama de São Paulo, de um amigo meu e dele: Rossellini pretendia fazer de Casa-grande & senzala um grande filme brasileiro que fosse ao mesmo tempo épico e lírico, uma espécie de louvor à morenidade brasileira, à nossa cordialidade. Seria, dizia ele, a mensagem do Brasil dirigida a um mundo dividido por ódios, inclusive os da chamada "raça pura", Mais que o prêmio Aspen, tido como o Nobel dos Estados Unidos, ou o italiano La Madonnina de Literatura, ou até mesmo o título de nobreza britânica com que, por motivo intelectual, fui distinguido por Elizabeth li, nenhum deles me deu maior emoção do que esse puro e, afinal, platônico desejo de Rossellini. Desejo que não foi adiante, pois não encontrou apoio no Brasil. Ainda verde, o sonho murchou, secou, morreu.

O romancista José Lins do Rego, com os altos e baixos de sua genialidade ciclotímica, homem de arroubos e desmoronamentos, é outro personagem sempre presente na conversa de Gilberto Freyre, que a ele se refere como se ainda estivesse vivo. Outro é Assis Chateaubriand, do qual recorda o derradeiro encontro, o jornalista já definitivamente entrevado e tentando expressar-se num aflito mover de lábios que somente a enfermeira especializada que ele tinha sempre ao seu lado conseguia traduzir.

-Foi penoso. Eu sabia que estava me despedindo de Chateaubriand. E ele sentiu isso. Encarou-me, num sorriso triste, quase um esgar, começou a balbuciar sons que eu não entendia, o que me tornava ainda mais aflito. O que estaria ele querendo me dizer? A enfermeira me traduziu: "Seu Gilberto, a verdade é ,que nunca tive sorte com as mulheres. Quem sabe se talvez, lá no fundo, eu não passe de um homossexual?", E enquanto a enfermeira recitava, na voz escandida e neutra, essa estranha declaração tão sem propósito, ele, Chateaubriand, insistia em me encarar com o mesmo sorriso no qual tristeza e zombaria se misturavam.

Outra lembrança é de Juarez Távora, visitante bissexto de Apipucos. Na primeira vez que GF o levou até a Toca, pois o general insistia em conhecer o local onde o dono da casa trabalhava, o homem grandalhão olhou demoradamente tudo em volta, depois comentou, ingenuamente auto-suficiente: "Aqui eu também escreveria Casa-grande".

Quando pergunto a GF por que tem recusado os convites que lhe foram feitos para ocupar importantes cargos públicos federais, como o Ministério da Educação, que lhe foi oferecido por Vargas, em 1943, e Castello Branco, em 1964, ele responde:

-É difícil dizer, as razões são várias. Mas entre elas não se incluem a soberba ou o medo da responsabilidade. Talvez tenha acontecido, apenas, que me convidaram para o lugar errado na hora errada.

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"OS TENENTES DE 30 ERAM UNS MENINÕES"

O dia 3 de outubro de 1930 vivia os seus primeiros minutos quando Gilberto Freyre foi chamado ao telefone, na redação de A Província, em Recife, jornal do qual era diretor. O chamado vinha do palácio do governo, situado poucos quarteirões adiante. "Venha urgente para cá. Agora mesmo pegamos no rádio que rebentou um movimento sério na Paraíba e no Rio Grande do Sul. Porto Alegre já foi tomada pelos revoltosos. Venha logo."

Na época, aos trinta anos de idade, o futuro autor de Casagrande & senzala exercia, na capital pernambucana, a dupla função de diretor de A Província, diário que havia sido fundado dois anos antes, e de chefe de gabinete do presidente (governador) Estácio Coimbra.

-Chefe de gabinete é uma designação por demais pomposa para o cargo que eu exercia junto ao Estácio -me diz GF. Na verdade, eu não passava de um assessor intelectual, digamos assim, sem qualquer vinculação partidária ou política com as correntes que então se enfrentavam em Pernambuco. Claro, A Província apoiava o governo estadual, pois fora criada por amigos de Estácio Coimbra, mas esse apoio não era ostensivo, incondicional. Dentro das limitações da época, o jornal podia ser tido como independente, e nele eu tinha carta branca. Basta dizer que diariamente o jornal publicava três colunas assinadas por políticos das várias filiações partidárias. No mais, o jornal se propunha a inovar no que fosse possível, inclusive no pagamento de seus colaboradores, coisa até então desconhecida na imprensa pernambucana. Manuel Bandeira, Olívio Montenegro, José Américo, Barbosa Lima Sobrinho, José Lins do Rego (que então morava em Recife), Pontes de Miranda, entre outros, colaboravam em A Província e recebiam por seus artigos. Demos nova feição ao noticiário, modernizamos o feitio gráfico, enfim, procuramos tirar do jornal o mau caráter provinciano, trocando-o pelo bom caráter provinciano. Tal a independência do jornal que vez por outra seu editorial se permitia fazer críticas ao governo.

Não poderia calcular Gilberto Freyre que deixando a redação de A Província, naquela madrugada do dia 4 de outubro, e entrando no palácio dos Guararapes, sede do governo estadual, só iria voltar à sua casa dois anos depois. Já na manhã do dia 4, as tropas revolucionárias, sob o comando do capitão Juarez Távora, que desciam da Paraíba, entravam em Recife e ameaçavam encurralar no palácio o presidente Estácio Coimbra e seu grupo mais fiel. A solução era fugir. Dos Guararapes, o grupo palaciano deslocou-se através da ponte Buarque de Macedo e, já sob uma chuva de balas, para a barra de Recife. Lá, embarcaram no rebocador Estácio Coimbra (que dias depois seria rebatizado de Quatro de Outubro) e tomaram o rumo sul, na direção de Tamandaré, vila e distrito de Rio Formoso, em Pernambuco, onde aguardariam reforços federais. Mas como os reforços não chegaram, e as tropas de Juarez Távora prosseguissem em seu avanço, e na mesma direção, o rebocador fez-se novamente ao mar, na direção de Salvador, onde Estácio Coimbra tinha amigos, entre

eles Góis Calmon, Pedro Lago e Luís Viana. Mas na capital baiana a situação também se tomava cada vez mais insustentável, e foram os próprios amigos baianos de Estácio que lhe recomendaram o exílio. Foi no terceiro e último dia de sua permanência em Salvador que Gilberto Freyre teve notícia de que a casa onde morava com seus pais e seu irmão

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Ulysses, uma heráldica e ampla mansão no bairro de Madalena, em Recife, havia sido totalmente saqueada pela turba "revolucionária':

-Levaram tudo. Até os móveis, até o piano. Só não levaram a totalidade dos meus livros porque a maioria deles se achava na garçonniere que eu e o Ulysses mantínhamos no Centro de Recife. Foi um saque premeditado e organizado, com caminhões enfileirados à nossa porta para a remoção ordenada de nossos pertences.

Decidindo-se pelo exílio, Estácio Coimbra e seu pequeno grupo embarcaram no lIe de France, um vapor misto da Chargeurs Reunies, que os levaria até Lisboa. Gilberto Freyre poderia perfeitamente ter ficado em Salvador, em casa de um dos amigos locais; ou até mesmo retomar a Recife. Mas preferiu acompanhar o amigo deposto.

-Cheguei a Salvador com a roupa do corpo. E de dinheiro só tinha um conto de réis, que pedi emprestado ao José Lins do Rego poucas horas antes de embarcar no rebocador. Em Salvador, amigos me arranjaram um casaco, um temo mais pesado e alguma roupa branca. Com o dinheiro do Zé Lins comprei mais alguma coisa, inclusive uma caneta e um caderno.

Antes de chegar a Lisboa, o lIe de France fez uma demorada escala em Dacar, o que permitiu a Gilberto Freyre o seu primeiro contato físico com a África negra. Contato que, segundo ele, foi fundamental para a sua futura obra de sociólogo e antropólogo.

-Posso mesmo dizer que foi em Dacar, naqueles primeiros instantes do exílio, que começou a ganhar forma o Casa-

grande & senzala, que já vinha germinando dentro de mim e que eu começaria a escrever em Lisboa, meses depois.

"NÃO SEI E NÃO QUERO SABER"

-Não creio que o movimento de 1930 mereça sequer o nome de revolução. O que se deu, em outubro daquele ano, foi uma mudança de ocupantes dos grandes postos nacionais e estaduais. Apenas uma mudança do pessoal dirigente. Isso, a meu ver, não se pode considerar nem social, nem política nem economicamente uma revolução. Acredito que desses novos dirigentes, nem mesmo os mais brilhantes, como Osvaldo Aranha, Antônio Carlos, ou João Neves da Fontoura, nenhum tinha idéia do que se pudesse chamar de construtivamente revolucionário. Isso sem falar nos "tenentes", no meu entender todos eles, como Eduardo Gomes, Cordeiro de Farias, Juarez Távora, Juracy Magalhães, uns meninões sem qualquer ideal renovador e construtivo, todos árdegos, sem dúvida, mas igualmente confusos. Na época, o Brasil era, no meu entendimento, uma massa plástica, dúctil, à espera de ganhar um novo molde, o que só poderia acontecer através de reformas de profundidade, o que não aconteceu. Ficou-se no voto secreto, na derrubada dos chamados "carcomidos" (a maioria dos quais voltaria, pouco tempo depois, a atuar na política de seus estados e na federal), nessas soluções epidérmicas e de emergência. Na verdade, o movimento de 1930 sequer produziu uma liderança revolucionária, não conseguiu estabelecer no país uma liderança construtivamente revolucionária. Creio também que os poucos líderes civis de 1930, que poderiam ter

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exercido mais efetivamente essa liderança revolucionária e construtiva, não tiveram essa oportunidade, é o caso, por exemplo, de Virgílio de MeIo Franco.

-Mas será que não teria havido nada de positivo no movimento de 1930? -pergunto. -Houve, sem dúvida. Seja dito a favor de Getulio Vargas que ele pelo menos permitiu

a dois de seu ministros realizarem alguma coisa de positivo. Esses dois ministros foram Gustavo Capanema e Lindolfo Collor. O primeiro no campo da Educação; o segundo, na área do Trabalho, esta até então praticamente ignorada por todos os governos da chamada República Velha. Credite-se a Getulio o fato dele ter permitido a esses dois ministros realizarem qualquer coisa de novo, de renovação e até de inovação.

E como remate ao "capítulo 1930" de suas recordações, Gilberto Freyre conta esta pequena história:

~ Em 1933, pouco depois de retomar do exílio, fui convidado para um jantar formal, no solar de uma das melhores e mais brasonadas famílias aqui de Recife. E qual não foi a minha surpresa ao ver, rodeando a mesa de jantar, algumas das pesadas e velhas cadeiras de jacarandá autêntico, velhas de mais de um século, que faziam parte do mobiliário de nossa casa, saqueada em outubro de 1930. Até hoje não sei como as cadeiras foram parar naquela mansão de gente tão distinta. Não sei e não quero saber.

UM ANARQUISTA CONSTRUTIVO

Definindo-se, hoje, como um "anarquista construtivo", Gilberto Freyre me diz que alcança os 85 anos tendo diante de si "um mundo a realizar as mais surpreendentes acrobacias sociais fora de sua rotinâ'.

-O menino que persiste em mim vê esse espetáculo de olhos arregalados e espantados. O provecto indaga: aonde vamos? Falta-lhe a capacidade do menino de simplesmente desfrutar o que vê de surpreendente. Preocupa-se. Porque há perspectivas até de catástrofe mundial. Com elas, porém, ou ao lado delas, também existem as possibilidades de um equilíbrio de antagonismos. Dentro dessas perspectivas gerais, a do Brasil é a de uma importante parte desse mundo entregue a velhos acrobatas. Uma parte do mundo a que não falta, ou não vem faltando, a singularidade, observada por Aldous HuxIey: a de um país, o nosso, onde muito do que acontece é impossível, mas funciona.

Após mais de meio século de, por vezes, intensa situação política e de circunstancial (logo após a queda do Estado Novo de Vargas) militância partidária, Gilberto Freyre confessa hoje não ser um entusiasta da solução democrática.

-Mas sigo o velho Churchill, em admitir que com as suas graves falhas a democracia é a mais funcional solução que se conhece para problemas nacionais de ordem social e econômica. Mas acredito que a melhor solução, em termos ideais, solução que ainda não foi experimentada, é a anarcoconstrutiva. Ou seja, o mínimo de Estado e o máximo de espontaneidades criativas e em movimento. O Estado como guarda que regulasse o tráfego, como queria Bertrand Russell.

E se lhe fosse pedida uma mensagem aos jovens do Brasil, ele daria esta, do alto dos seus 85 anos:

-As gerações mais moças de brasileiros, sugiro, no menos conselheira dos tons, que sejam, em qualquer setor de atividade, o mais possível brasileiros. Existe já no mundo uma experiência brasileira culturalmente válida, à espera de sucessivas novas gerações que a

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desenvolvam, resistindo a desbrasileiramentos, venham de onde vierem. Gilberto Freyre não aceita a afirmação, feita por críticos, de ser hoje um autor

desconhecido das gerações mais moças -ou até mesmo repudiado por elas. -É verdade isso? Talvez. Mas discutível. Já em idade de avô e até de bisavô, venho

recebendo de jovens e adolescentes as melhores demonstrações de apreço, sendo ouvido e aplaudido por eles como se fossem netos adolescentes e jovens talvez em conflito com os pais, porém em misteriosas alianças com os avós. O que, ao meu ver, torna discutível a verdade de ser eu, agora, ao contrário do que fui antes, um repudiado pelo Brasil mais jovem? O calor da inteligência jovem nos encontros que temos tido, eu e ela. Eu, o suposto repudiado; ela, a suposta enojada de minhas idéias e de minhas palavras. E lembro aqui que num dos meus mais recentes encontros com os jovens, em São Paulo, fui informado que determinado intelectual (desses que formam no rol daqueles que acreditam no repúdio da mocidade à minha obra) sussurrara, antes do início da conferência, que eu seria saudado com uma tremenda vaia logo que pronunciasse a primeira palavra. Pois aconteceu exatamente o contrário. Em vez da vaia, a gente jovem vibrou em aplausos.

Polêmico por natureza, Gilberto Freyre de vez em quando é acusado de incoerente, afirmando hoje o que negara ontem, ou vice-versa. Refiro-me a isso, e pergunto-lhe como ele costuma receber tais acusações. Ele se levanta e me diz:

-Espere um pouco. Vai lá dentro e volta com um exemplar de O Estado de S. Paulo, onde uma entrevista

sua ocupa duas páginas inteiras do jornal. -Vou ler para você o que eu disse ao pessoal do Estadão:

Não sei se me interpreta quem diz que sou homem de matizes. Sou, antes, o homem dos paradoxos. Creio que sou chocante, sobretudo pelos paradoxos. Acredito muito na verdade que os paradoxos apresentam. Acho que quase todas as verdades estão em paradoxos. Sou francamente paradoxal e, com isso, tenho tendência a escandalizar os bem-pensantes, e choco também os matemáticos.

-Quando me acusam de intolerante acho que nessa acusação não deixa de haver alguma verdade. Eu sou pela tolerância total num intelectual. Acho que a tolerância é uma expressão de vida ou de convivência civilizada das mais importantes, das mais significativas. Mas digo-lhe o seguinte: no setor intelectual a tolerância tem seus limites. O indivíduo que está identificado com uma certa interpretação da realidade está obrigado a, de certa altura em diante, parecer intolerante na defesa do seu ponto de vista, na insistência em certos critérios de interpretação do pensamento humano. É isso aí.

Nossa longa conversa, que teve início antes das nove horas da manhã, atravessou o almoço (no qual se destacava, soberbo, um peixe ao molho de coco, receita exclusiva -como tantas outras -de d. Madalena, a anfitriã), entrou pela tarde, chegou à boca da noite. O conhaque de pitanga cedeu lugar, como acompanhamento da refeição, a um esplêndido e agulhento vinho branco português. Depois do café,

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foi a vez de um velhíssimo Porto. Já de volta à varanda, voltou-se novamente ao conhaque caseiro que, no final da tarde, já com as primeiras sombras noturnas amortalhando o bosque ao redor, era rebatido por um glorioso scotch rótulo preto.

No velho móvel de jacarandá que serve de bar, notei com certo susto que o conhaque de pitanga que pela manhã enchia toda uma avoenga frasqueira de cristal descera drasticamente de nível e já mostrava, lá no fundo, a borra velha e fermentada, tal e qual como acontece com a maré vazante quando chega ao seu ponto mais baixo; ou com a ampulheta quando vai deixando cair os últimos grãos de areia. Era hora de ir embora. Levanto-me, sento-me novamente, porque o dono da casa insiste em que eu o acompanhe num último uísque, ou numa última dose do seu conhaque de pitanga.

Aceito os dois, pois não seria de bom-tom recusar. o anjo torto e o poeta radical Paulo Mendes Campos lembra em um dos seus livros (Os bares morrem numa quarta-feira):

Conhecemos o poeta Carlos Drummond de Andrade numa tarde memorável, na avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte. COA não se lembra mais dos alinhadissimos sapatos de camurça que usava, mas nós, os mineirinhos da época, salvamos do olvido a elegância sóbria do escritor. Este, por sua vez, espantou-se da intimidade com que tratamos duas ou três moças encontradas no caminho. Era um tremendo barato, um progresso de Minas.

Numa entrevista que me deu para a revista Status -e isso foi pouco antes de ele morrer -me contou Paulinho:

-Eu costumava encontrar Drummond no oitavo andar do Ministério da Educação, onde funcionava a diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Drummond trabalhava numa sala exígua ao lado de um homem caladão, que me parecia um bom e fiel servente. Uma tarde, Di Cavalcanti apresenta- me na rua o homem caladão. Terei corado de vergonha? Era Lucio Costa.

-Quando CDA aposentou-se do serviço público -prossegue Paulinho -, escrevi uma crônica mostrando o funcionário exemplar que ele foi, não apenas pontual e eficiente, mas criador, tendo participado de modo decisivo de várias medidas essenciais aos negócios da cultura e da educação. Para minha surpresa, mandou-me uma carta comovida; jamais imaginara que seus serviços públicos fossem lembrados.

Confesso agora que a lembrança não foi minha, mas de Justino Martins, diretor de Manchete. Certa vez participamos juntos de um júri de poesia. Contou para Manuel Bandeira, para Fausto Cunha e para mim que estava contente: tendo mudado de apartamento, pela primeira vez possuía um escritório fechado; os outros tinham sido improvisados em cantos de sala. Bandeira compreendeu logo: "As vezes até a solicitude amorosa cansa".

Outra historinha de Paulo Mendes Campos sobre Drummond: -Caíra o Estado Novo. O poeta foi nomeado, entre outros, para transformar o

DIP(Departamento de Imprensa e Propaganda) em Departamento Nacional de

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Informações. Entro em seu gabinete pela manhã e encontro o poeta desalinhado, procurando os óculos; enrolam-se com um funcionário malcriado que o ofendera. E estava bem feliz com o resultado do round.

Confissão de Drummond a Fernando Sabino: -Não sou capaz de fazer poema a frio, como se resolve um problema de matemática.

Há um condicionamento, uma espécie de preparação, determinado pelo tema. Não sou poeta no sentido clássico ou erudito da palavra -o que obedece a um programa, observa as regras e procura renovar -, nunca tive essa pretensão. Procurei apenas tirar, de uma emoção que sinto naturalmente, ou por provocação externa.

E ao mesmo Fernando ele confessou, noutra ocasião: -Fui sempre tratado com muita benevolência: não sou propriamente um ser sociável e,

no entanto, sinto que certo número de amigos me cerca de carinho e muita gente tem paciência comigo. Meu gênio não é dos mais floridos, e por isso mesmo vejo uma grande boa vontade na maneira com que me tratam, com que recebem as coisas que escrevo. A princípio me tratavam até com certa crueldade, mas nunca liguei para isso, porque tinha sempre a compreensão dos amigos. No fundo, escrevi para mim e para os meus amigos. Foi tudo o que fiz na vida.

De fato, Drummond foi um cultivado r incondicional da amizade. Seus amigos, com raríssimas exceções, sempre foram os mesmos, aqueles que ele fez quando no começo da vida em Minas e depois no Rio. Em 1930, quando os amigos, em Belo Horizonte, comemoraram com um almoço o aparecimento do seu primeiro livro, Alguma poesia, o poeta teve oportunidade, num pequeno discurso de agradecimento (um dos poucos que pronunciou em toda a sua vida), de fazer o elogio da amizade e o auditório para quem falava era composto na maioria de amigos seus: lá estavam Milton Campos, Gustavo Capanema, Pedro Aleixo, José Maria Alkmim, Abgar Renault, Pedro Nava, Cyro dos Anjos, Guilhermino César, Dário de Almeida Magalhães, Gabriel Passos, Francisco Negrão de Lima.

Disse ele, então, finalizando o seu discurso: -O anjo me espia na sombra e, em vez de assassinar-vos com palavras que não

traduzem a medida do sentimento forte e delicado deste momento, prefiro subscrever àquele antigo e delicioso brinde mineiro de sobremesa, que um dos convivas puxava, enternecido, e que todos os demais secundavam em coro: "Como é grata a companhia/ lisonjeira a sociedade/ entre amigos verdadeiros/ viva a constante amizade".

Vertical, rígido, sem alarme, cheio de graça e ironia, um tanto cético e um pouco moleque, discreto e disciplinado assim foi Carlos Drummond de Andrade.

Certa feita, ele, Drummond, desabafou em conversa com Fernando Sabino: -O fato de a gente ser muito conhecido, muito manjado, aparecer freqüentemente em

jornal, faz com que os jovens nos procurem pedindo opiniões e querendo mensagens, confissões, diretrizes etc. Confesso que não me sinto em condições de dar conselhos a ninguém. Nem a mim mesmo.

E com o jornalista Sérgio Cabral, que lhe havia solicitado uma entrevista "bem franca" para O Pasquim, ele tirou o corpo fora, publicando no pé da sua coluna no Jornal do Brasil

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este bilhetinho:

Prezado Sérgio Cabral, há mais de cinqüenta anos que não tenho feito outra coisa na vida senão dar entrevistas: em verso, em crônica, em carta, em papo. O que penso, o que sinto, o que imagino, o que me dói, me alegra, me aborrece, tudo está dito e contado por este autocontador incorrigível. E você quer que repita o repeteco, bicho?

Naquele 31 de outubro de 1982, quando completou oitenta anos, foram muitos os que bateram à porta do poeta, fazendo o mesmo pedido de Sérgio Cabral, mas poucos (e no momento não me lembro de nenhum) os que seriam recebidos e atendidos pelo poeta em seu apartamento na rua Conselheiro Lafaiete, no Posto 6, em Copacabana. E ainda mais raros os que conseguiram ir além da portaria do edifício, onde um porteiro prevenido e vigilante estava sempre a postos para evitar que algum impertinente chegasse ao apartamento 701, onde o poeta morou durante mais de trinta anos.

Em resumo, todas as homenagens, e não foram poucas, prestadas a Carlos Drummond, quando do seu octogésimo aniversário, não contaram com a presença (a física) do grande poeta. A um amigo ele mesmo já havia confidenciado que logo se aproximasse a "data fatal", saberia escafeder-se discretamente, tomando furtivamente o rumo de local ignorado ou de difícil acesso. E aqui me dou conta que em matéria de esconderijo Drummond não poderia encontrar um melhor do que ele mesmo, refugiando-se naquele seu íntimo que era somente seu.

Mas é preciso que se diga que o perfil do homem caladão, fechado em si mesmo, declarado inimigo de badalações e quase inacessível na sua torre (de rocha e não de marfim), vem sendo, depois de sua morte, profundamente reestudado e, por conseguinte, modificado. Meses antes de sua morte, já dizia Tônia Carrero, que nunca deixou de ser atendida, e atendida com alegria, quando telefonava para Drummond:

-Para mim, ele nunca foi o mineiro seco e enrustido de que tanto falavam, mas o amigo que adorava uma prosa longa e mostrava indisfarçável prazer em saber das últimas fofocas da literatura, dos meios artísticos e da política. Comigo ele sempre foi assim, conversador, afável e, por vezes, engraçadíssimo.

E Fernando Sabino, que juntamente com o cineasta David Neves fez com ele um documentário cinematográfico, já contou em crônicas as verdadeiras diabruras e peraltices praticadas pelo poeta quando das filmagens -que deixavam, exatamente porque Drummond insistia em não seguir à risca o script previamente traçado, nele enxertando improvisos e cacos que deixavam os dois, Fernando e Neves, completamente atarantados.

-O poeta -conta Fernando Sabino -em plena avenida Rio Branco, a câmera quase colocada em seu nariz, Neumann andando de costas e eu abrindo caminho com a maior cara-depau para ele não tropeçar. O poeta entrega a sua crônica no jornal do Brasil tem de repetir a cena porque a luz pifou. Depois, em frente ao Ministério da Educação, "vê se consegue um ângulo bem dramático, Neumann". Ele se estende literalmente no asfalto, correndo o risco de um carro passar por cima dele, o que seria bem dramático. Mas o poeta vai fazer agora uma sugestão: quer se esconder atrás de uma coluna. Pois assim seja -a coisa já está ficando mesmo meio surrealista; esconde-se atrás de uma coluna e aparece atrás de outra. De súbito são vários Carlos Drummond de Andrade que surgem de um lado

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e desaparecem do outro. Ubíquo, numeroso e esquivo, "onde está ele agora?". Eis que surge de um salto diante da câmera tomado de um inesperado frouxo de riso. Não era essa imagem que fazíamos dele dirão os exegetas de suas obras.

Já Otto Lara Resende me dizia: -A impressão que tenho é que sempre conheci Carlos Drummond de Andrade. Não me

lembro quando ouvi ou li pela primeira vez o seu nome. Pessoalmente, não tive professores que, nos anos 30, vissem no poeta motivo de controvérsia ou mofa, tal como era mais ou menos comum naquele tempo e tal como o prova o livro sobre o "poema da pedra", com prefácio de Arnaldo Saraiva. Escapei desse toque de burrice, ou de tacanha incompreensão. [Já eu, Joel, não escapei. Também gozei o poema quando de sua publicação.] Adolescente, foi com admiração que tomei conhecimento da obra do poeta.

Para Otto, Carlos Drummond de Andrade sempre foi uma espécie de enriquecedora e permanente companhia:

-Sua maneira de ser e de dizer foi decisiva para o grupo de antigos rapazes mineiros. Andamos sobre suas pegadas. Num certo sentido, nosso ambiente cultural estaria mutilado, seria outro, não estivesse profundamente impregnado de Carlos Drummond de Andrade. Além da obra, dos seus versos e da sua prosa que circulam em nosso sangue, há também, no meu campo visual, o perfil do homem Carlos Drummond de Andrade. O amigo de uma solicitude inexcedível. Se há a imagem de um ser inescalável, distante, fechado, essa imagem é mentirosa, quando se refere ao Carlos Drummond que se conheceu de certo. De fato, ele nunca foi um homem distante, inacessível. Forte personalidade, grande poeta, Carlos era também um grande caráter. Sua timidez é exemplar. E não apenas literariamente. Em tudo. Sua vida sempre foi um exemplo de dignidade e de trabalho. Fica chato, ToeI, escrever essas coisas óbvias e que, de repente, assumem um ar solene. O Carlos é o contrário desse tom oratório. O que ele nos ensina é exatamente o oposto, a busca de uma expressão despojada e sincera.

E finalizava Otto: -O jeito drummondiano já está me puxando a ponta do casaco e me advertindo contra

o descabido vôo condoreiro. De forma que é bom ficar por aqui. Durante mais de trinta anos fui vizinho do poeta, ele lá na Conselheiro Lafaiete, e eu

cá, na Francisco Sá -em termos de metragem, menos de um quilômetro nos separando. Mas pouco nos encontrávamos, embora quase que diariamente, no final da tarde, eu visse da minha janela, no sexto andar, o poeta passar na calçada defronte, nesse traje informal que a zona Sul do Rio permite e até exige. Numa dessas vezes, ao surpreendê-lo mais uma vez, camisa esporte de meia gança, o passo cadenciado, chamei meu neto Rodrigo é então com cinco anos, hoje já está beirando os trinta) e falei, apontando para o homem magro e vertical que passava do outro lado.

-Sabe quem é aquele senhor, meu neto? -Aquele magro, de óculos? -Aquele mesmo. Claro que você não sabe, ainda não sabe: o nome dele é Carlos

Drummond de Andrade e é o maior poeta vivo do Brasil.

Rodrigo mostrou uma certa incredulidade: -O maior, vô? -O maior.

-Pois nem parece. Tão magrinho... No dia 31 de outubro último,* se vivo, Carlos Drummond de Andrade teria

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completado 98 anos. E se vivesse mais dois, estaria fazendo cem, centenário que o Brasil inteiro iria festejar com alegria e reverência, mas que para ele, o gauche, não teria sido mais que um enorme aborrecimento. Naquele dia, talvez, ele sequer fosse visto pela velha amendoeira que continua crescendo num contínuo renovar de galhos e folhas diante do edifício onde por mais de trinta anos o grande poeta, "tão magrinho..:: morou, aqui no final de Copacabana.

"Outubro de 2000. Drummond nasceu em ltabira, em 1902. (N. E.)

A víbora está viva

Fernando Morais

O livro que você acaba de ler retrata o surgimento, no Brasil, do gênero jornalístico chamado de "grande reportagem" - depois rebatizado como "novo jornalismo", "jornalismo investigativo" e, como diz o título desta coleção, "jornalismo literário". É verdade que a primeira grande reportagem de que se tem notícia no Brasil é muito anterior - o monumental Os sertões, de Euclides da Cunha, publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 1902. Mas também é verdade que só no final dos anos 30 é que ela vai fazer parte do dia-a-dia dos grandes jornais. Um dos pioneiros do gênero, Joel Silveira defende a tese de que, mais do que uma opção da imprensa, a grande reportagem surge como válvula de escape à censura imposta pela ditadura do Estado Novo. Sem poder falar do que importava - a política - os jornais abriam espaço para a investigação de temas menos candentes.

Autoridade para falar sobre a ditadura Vargas não falta a Joel Silveira. Nove meses antes que ela fosse instaurada, numa tórrida manhã de fevereiro de 1937 o jovem sergipano de Lagarto chegava ao cais do porto do Rio de Janeiro a bordo do vapor Itagiba - que cinco anos depois seria posto a pique por submarinos alemães. Trazia no bolso duzentos mil-réis, dinheiro que dava para comer e dormir por um par de meses, e uma carta de apresentação para um político de seu estado que sequer o recebeu. Além do destinatário da carta, Joel só tinha uma referência na capital federal: um semanário que o pai assinava em Aracaju, chamado Dom Casmurro - em cuja porta resolveu bater. Saiu de lá empregado, e mais: seis meses depois, seu nome já aparecia no expediente como secretário de redação.

A mais importante publicação literário-jornalística do Brasil de então, Dom Casmurro tinha sido criado por Brício de Abreu e Álvaro Moreyra, e exibia entre seus colaboradores a fina flor da literatura e do jornalismo de então: Carlos Lacerda, Rachel de Queiroz, José Américo Almeida, José Lins do Rego, Oswald de Andrade, Cecília Meireles, Aníbal Machado, Astrojildo Pereira, Adalgisa Nery, Jorge Amado, Marques Rebelo, Graciliano Ramos, Murilo Miranda e Moacyr Werneck de Castro. Vendia 50 mil exemplares por semana, número surpreendente para um país com 30 milhões de habitantes e índices estratosféricos de analfabetismo. Uma briga interna faria com que Lacerda, seu primo Moacyr e Murilo Miranda deixassem o jornal para montar um concorrente, a Revista Acadêmica, para a qual arrastaram, entre outros, Rubem Braga,

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Lúcio Rangel e Arnaldo Pedroso d'Horta. O quadrilátero formado entre a Cinelândia e a rua do Ouvidor converteu-se no ponto chique da inteligência carioca: numa esquina ficava a redação do Dom Casmurro. Na outra, a Revista Acadêmica. Entre as duas repousava a editora José Olympio, a mais prestigiada de então.

No dia 10 de novembro Joel Silveira ouviu no rádio que Getulio Vargas tinha fechado o Congresso e adiado para as calendas gregas as eleições presidenciais previstas para o ano seguinte. Iam começar os tenebrosos oito anos da ditadura do Estado Novo. A rigorosa censura imposta à imprensa pelo novo regime proibia desde notícias políticas até mexericos sociais da família Vargas - como os escandalosos pileques que Benjamim "Bejo" Vargas, irmão caçula do presidente, tomava no Cassino da Urca. E era contra esse inimigo comum que, embora concorrentes, Dom Casmurro e a Revista Acadêmica costumavam se unir. Joel Silveira conta que Lacerda certa vez procurou-o com um plano mirabolante:

- Você escreve na Dom Casmurro um artigo arrasando o Portinari. Eu saio em defesa dele na Revista Acadêmica. Aberta a polêmica, vamos entrevistar todo mundo, driblando a censura.

O desconfiado Joel sabia como matar o assunto (e a proposta):

- Claro que topo, Carlos, acho sua idéia ótima. Só que nós vamos trocar: você esculhamba o Portinari e eu o defendo no Dom Casmurro.

Os dois voltariam a trabalhar juntos meses depois, convidados para compor a equipe de Diretrizes, o semanário lançado por Samuel Wainer em março de 1938. E foi em Diretrizes que Joel se converteu em uma estrela do jornalismo, com visibilidade nacional. Mais precisamente depois que ele publicou, no começo dos anos 40, a reportagem "Grã-finos em São Paulo", um irônico, debochado perfil do high-society paulistano. O texto fez brilhar os olhos de Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados. Naquela época, jornalista importante no Rio trabalhava em Diretrizes ou nos Associados. Em Diretrizes os baixos salários eram compensados pelo prazer de escrever em uma publicação moderna, dinâmica, inteligente e liberal, que se opunha ao situacionismo político em meio a um oceano de unanimidades pró-Estado Novo. Admirador confesso de Diretrizes, Chateaubriand quis saber quem era o autor da reportagem (na verdade Joel já publicara crônicas em O Cruzeiro) e pediu a Virgílio de Melo Franco que o convidasse para trabalhar em O Jornal. A oferta era tentadora, mas prevaleceu o idealismo de Silveira:

- Não vou, doutor Virgílio. Estou bem aqui e não quero trabalhar em uma empresa como os Associados, que não têm e nunca tiveram bandeira. Uma empresa que, ao contrário de Diretrizes, é a favor de tudo. Um ano depois Joel é mandado a São Paulo para entrevistar Monteiro Lobato e volta para a redação com uma reportagem em que o escritor desancava o Estado Novo e reclamava a imediata redemocratização do país. Com o título "O governo deve sair do povo como a fumaça da fogueira'', retirado de uma frase do entrevistado, a matéria incendiou o meio político, e produziu trágicas conseqüências: Diretrizes foi fechada pelo governo, Samuel Wainer exilou-se nos Estados Unidos e Joel Silveira fugiu para sua cidade natal, Lagarto (onde, segundo ele, "nem Lampião nem o

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dip conseguiam entrar"). Ao saber que o sergipano estava desempregado, Chatô volta à carga com Virgílio de Melo Franco:

- Como o senhor vai fazer não me importa, doutor Virgílio, mas eu quero essa víbora aqui nos Associados.

Dias depois Virgílio apresentava-o a Chateaubriand:

- Doutor Assis, está aqui a víbora que o senhor quer contratar. Ele levantou-se da mesa e cumprimentou Joel:

- Seu Silveira, o senhor é um dos homens mais perigosos deste país, tem que vir trabalhar conosco. Diga quanto é que o senhor quer ganhar e vá se entender com o doutor Lacerda lá embaixo, na Meridional.

O "doutor Lacerda" a quem ele se referia era Carlos Lacerda, que desde 1942 dirigia a agência de notícias dos Associados. Lá Joel iria se juntar a uma das mais brilhantes equipes já reunidas até então em uma empresa. Liderados por Lacerda, na Agência Meridional, e por Freddy Chateaubriand, sobrinho de Chatô, em O Cruzeiro, lá estavam David Nasser, Edmar Morel, Nelson Rodrigues, Lucio Cardoso, Rachel de Queiroz, Alex Viany, Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Franklin de Oliveira e os irmãos Hélio e Millôr Fernandes.

A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial converteu o dono dos Associados de ferrenho germanófilo em cruzado pró-Aliados. Eufórico com o envio de tropas brasileiras para lutar no conflito, Chatô decidiu que seus jornais teriam um correspondente de guerra na Europa. O primeiro nome em que ele pensou foi o do coronel Euclides Figueiredo, pai do general João Baptista Figueiredo (que viria a ser presidente da República durante a ditadura militar de 1964). Um dos líderes da Revolução Constitucionalista de 1932, Euclides fora condenado, logo após a implantação do Estado Novo, a quatro anos de prisão. Da cadeia enviava clandestinamente artigos que Chatô publicava com o pseudônimo de "Um observador militar". Um dia depois de libertado, Figueiredo recebeu em casa a visita de Chateaubriand, que vinha com um insólito convite:

- Euclides, vosmecê fala francês e alemão, não é? Então vai ser correspondente dos Associados no front russo.

Figueiredo aceitou, mas Getulio não. Quando soube da notícia, o ditador foi claro com Chateaubriand:

- Esse não pode. É meu inimigo. Com o veto a Euclides Figueiredo, Chatô convidou Edmar Morel. Novo veto, desta vez do general Eurico Dutra, ministro da Guerra que viria a ser presidente da República, eleito em 1946, e que acusava o repórter de ser "ligado ao Partido Comunista". Quando o Catete sinalizou que o terceiro nome a ser apresentado pelo dono dos Associados - o de Joel Silveira - seria vetado pelas mesmas alegações feitas contra Morel, Chateaubriand perdeu a paciência, mandou Silveira tirar as medidas para fazer a farda e arrancou pessoalmente de Getulio a autorização para que o repórter embarcasse para a Itália junto com a Força Expedicionária Brasileira. (Getulio confessou a Chatô que, sem conhecê-lo

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pessoalmente, tinha simpatias pelo autor da desaforada reportagem sobre os ricos paulistas publicada em Diretrizes.) Ao despedir-se dele, o patrão exultava: - O senhor vai para a guerra, mas não me morra, seu Silveira! Não me morra! Repórter é para mandar notícia, não é para morrer!

Ao chegar à Europa, Joel tinha 26 anos e era o mais jovem de todos os correspondentes estrangeiros. Já chegou criticando o fardamento dos soldados (e dos jornalistas), e escreveu que o Exército dera roupas para "o frio de Friburgo" a uma tropa que enfrentava um inverno glacial, com temperaturas de até vinte graus negativos. Foi nesse período que apareceu pela região de Porreta-Terme, onde estavam as tropas da FEB, uma celebridade do jornalismo mundial - ninguém menos que o escritor americano Ernest Hemingway, vindo da Normandia e a caminho da Iugoslávia. Joel conta que nas duas semanas em que esteve por lá, o autor de Por quem os sinos dobram se encantou com o jogo "escravos de Jó", com que o correspondente gaúcho Egidio Squeff se distraía na porta da barraca. Por mais que tentasse, porém, Hemingway jamais conseguiu aprender a jogar. "Quando ele se aproximava de nós o Squeff resmungava", recorda-se Joel. "Ele dizia: lá vem o Hemingway, que, além de chato, é burro. Como é que alguém não consegue aprender a jogar uma bobagem dessas?"

Joel passou dez meses no front italiano, e seu retorno ao Brasil coincidiu com uma das muitas guerras santas que Chateaubriand costumava declarar a seus desafetos. Desta vez a vítima era o conde Francisco Matarazzo Jr., o "conde Chiquinho", que cometera a ousadia de pedir de volta a Chatô o prédio que os Associados ocupavam no viaduto do Chá, em São Paulo, de propriedade do industrial. Chateaubriand explodiu quando soube que, pra enfrentá-lo de igual para igual, o conde estava adquirindo o controle do grupo Folha (que editava os jornais Folha de S.Paulo, Folha da Manhã e Folha da Noite). Em meio à saraivada de reportagens e artigos que escrevia ou mandava escrever contra os Matarazzo, Chatô soube que o conde preparava aquilo que os colunistas sociais já anteviam como "a festa do século": o casamento de sua filha Filly com o jovem milionário carioca João Lage. O primeiro nome que lhe veio à cabeça para escrever sobre assunto foi, obviamente, o de Joel Silveira, a víbora - que, no caso, contava com trunfos adicionais: além das fontes infiltradas na alta sociedade, que o haviam ajudado a bisbilhotar a vida dos ricos paulistas para fazer "Grã-finos em São Paulo" (entre as quais, ele revelaria depois, estava o pintor Di Cavalcanti), Joel conhecera o noivo quando este servia como pracinha da Força Expedicionária Brasileira no norte da Itália. Estava nascendo A milésima segunda noite da avenida Paulista.

Uma casualidade haveria de tornar ainda maior o estrago feito pela reportagem de Joel na imagem pública da família Matarazzo. Ele acabava de datilografar as últimas laudas do seu trabalho quando uma humilde senhora entrou na redação com um pedido:

- Leio todos os dias notícias do casamento da filha do conde, e pensei que os senhores poderiam publicar uma notinha qualquer sobre o casamento da minha filha, que se realiza hoje.

Maurício Loureiro Gama, o repórter que a recebeu, saiu aos berros pela redação:

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- Joel! Olha só a maravilha que me apareceu aqui: uma operária vai se casar hoje com um torneiro-mecânico, e os dois trabalham na fábrica do Matarazzo!

O bairro de São Miguel Paulista, na miserável zona Leste de São Paulo, jamais veria tantos fotógrafos e repórteres quanto no dia do casamento dos operários Nadir Ramos e José Tedeschi. Ao ser informado, no Rio, da descoberta do casamento dos empregados de Matarazzo, Chateaubriand telefonou para São Paulo dando ordens:

- Temos que dar para o casamento dos operários o mesmo espaço que dermos para o casamento da filha do conde! Se as bodas de dona Filly receberem duas páginas, quero duas páginas para os operários!

No dia seguinte o Diário da Noite estampava duas páginas inteiras, face a face: na da esquerda, o fausto da milésima segunda noite de Filly e João Lage. Na da direita, o casamento de Nadir e José em São Miguel. A víbora, naturalmente, não deixaria de chamar a atenção dos leitores para o fato de que a orgia de gastos da página esquerda tinha sido paga com o trabalho dos noivos da página direita.

Mais de meio século depois da festança, Joel Silveira parece continuar a mesma víbora de antes. Até alguns anos atrás, ele costumava responder a quem lhe perguntasse:

- Mudar? Eu não mudei nada nesse tempo. Só engordei.

Às vésperas de completar 85 anos, a balança já não permite que continue repetindo a resposta. Das "dez arrobas" de então, como ele diz, Joel baixou para cem quilos de peso, resultado de prescrições médicas e do fim de um velho hábito, o santo uísque de cada dia. "Detesto beber sozinho", lamenta, "e como quase todos meus amigos já morreram, prefiro não beber nada." Emagreceu, ficou mais solitário, virou abstêmio, mas não deixou a víbora morrer. Quando menos se espera, Joel ressurge cheio de fúria, espalhando veneno a torto e a direito.

Foi assim dois anos atrás, quando a escritora Zélia Gattai decidiu pleitear a vaga aberta na Academia Brasileira de Letras pela morte de seu marido, Jorge Amado. A candidatura reabriu velhas feridas da esquerda, e Joel resolveu entrar na disputa, mesmo sabendo que ia perder. "Estou concorrendo para impedir que essa senhora seja eleita por unanimidade", espinafrou. Ele lembrava que a história da abl só conhecia duas escolhas unânimes, a de Getulio Vargas ("que era um ditador, todo mundo votou nele para não ser preso"), e Assis Chateaubriand ("que não era ditador, mas de quem todo mundo também morria de medo"). Joel insistia em que Zélia não era "ditadora e nem escritora", e que, portanto, não merecia entrar para a ABL - e menos ainda ser escolhida por unanimidade. "Esta é uma anticandidatura, sei que serei esmagado", gargalhava aos repórteres que o procuravam. "Vai ser a minha Armada Brancaleone contra a Wehrmacht da Zélia". Foi mesmo: Zélia recebeu 32 votos, contra apenas quatro dados a Joel. Para ele, estava ótimo: "Só me candidatei para isso: para tirar quatro votos da Zélia".

Da velha víbora restou não apenas o veneno, mas a mesma disposição para o trabalho de cinqüenta, sessenta anos atrás. Joel continua escrevendo. Depois de passar três anos publicando crônicas semanais em um jornal mineiro (cujas portas a crise acaba de fechar), ele hoje escreve um texto mensal para a sofisticada revista Continente, editada há

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alguns anos por um grupo de jornalistas e intelectuais pernambucanos. Mas nunca perde de vista a velha paixão, a grande reportagem. É curioso ler as respostas que ele costuma dar, pacientemente, à pergunta-clichê que lhe fazem quase todos os entrevistadores: que reportagem você gostaria de fazer hoje? Há cinco anos seu sonho era cobrir a guerra do Kosovo. Tempos depois o assunto era outro, e outra era a resposta: "Gostaria de escrever um perfil dessa moça, a Monica Lewinsky". Se alguém repetir a pergunta hoje, Joel terá a resposta na ponta da língua: "Gostaria de fazer uma grande reportagem sobre a violência do Rio de Janeiro". Como há meio século, a víbora continua gostando mesmo é de encrenca.

ORELHA ESTA OBRA FOI COMPOSTA PELO ACQUA ESTÚDIO EM MINION E FOI IMPRESSA PELA GEOGRÁFICA EM OFSETE SOBRE PAPEL PÓLEN BOLD DA COMPANHIA SUZANO PARA A EDITORA SCHWARCZ EM SETEMBRO DE 2003

Mulheres elegantes "como as orquídeas que nascem de dezenas de enxertos" desfilam em alvoroço pelos "salões carcamanos" da avenida Paulista. Para lá e para cá, industriais italianos, famílias quatrocentonas (e já meio falidas), cronistas de jornal e arrivistas de toda espécie freqüentam "noites lantejoulantes" em bares, casamentos, livrarias e festas mundanas. O grã-finismo paulistano ferve: é 1943, o mundo está em guerra, mas isso é um mero detalhe para quem cultiva os esplendores da "vida em sociedade".

Ao descrever o universo da elite paulistana numa reportagem publicada em Diretrizes, semanário dirigido por Samuel Wainer, Joel Silveira fez muito mais do que o retrato de um deslumbrado grupo do high saciety tupiniquim. Com seu texto fino, irônico, repleto de sutilezas, adjetivos matadores e metáforas pontiagudas, o então jovem repórter sergipano conseguiu ser original e ousado em meio a um noticiário burocrático, debilitado pela censura do Estado Novo. Por causa da matéria, Assis Chateaubriand lhe daria um emprego e um apelido -"víbora'. O mérito maior daquele texto, no .entanto, foi inaugura! no Brasil um tipo de reportagem que utilizava recursos da narrativa de ficção, e que abriria caminho para o moderno jornalismo brasileiro.

Nesta antologia, que reúne alguns de seus melhores trabalhos (alguns deles inéditos), Joel penetra duas vezes no mundo elegante de São Paulo; entrevista os companheiros de Lampião numa penitenciária de Salvador; colhe um depoimento político de Monteiro Lobato que causaria o fechamento de Diretrizes e o exílio de Samuel Wainer; mostra intelectuais, artistas e expoentes da cultura como João Cabral, Portinari, Manuel Bandeira, Agripino Grieco e Gilberto Freyre em momentos descontraídos e bem-humorados, muito diferentes da imagem solene que o tempo acabou lhes conferindo.

Esses perfis, entrevistas e reportagens dão uma idéia do que pode ser a melhor imprensa brasileira: cáustica, saborosa, provocativa, inteligente. E, é claro, venenosa, como convém a víboras incorrigíveis como Joel Silveira.

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Joel Silveira (acima, em foto de 1944) nasceu em Lagarto, Sergipe, em 1918. Em 1938, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde vive até hoje. Publicou diversos livros de contos, reportagens e crônicas.