A CRONICA: LlTERATURA OU JORNALISMO? - TCC...

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DORNELIO ALVES VIEIRA A CRONICA: LlTERATURA OU JORNALISMO? Monografia apresentada como avalia980 parcial do Curso de P6s-GraduaC;:flo em Lingua Portuguesa da Universidade Tuiuti do Parana, para obten9ao do titulo de especialista. Orientadora: ProP. Dra. Elisiani Tiepolo. Curitiba 1999

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DORNELIO ALVES VIEIRA

A CRONICA: LlTERATURA OU JORNALISMO?

Monografia apresentada como avalia980 parcial

do Curso de P6s-GraduaC;:flo em Lingua

Portuguesa da Universidade Tuiuti do Parana,

para obten9ao do titulo de especialista.

Orientadora: ProP. Dra. Elisiani Tiepolo.

Curitiba

1999

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SUMARIO

INTRODUi;Ao 04

A ORIGEM DA CRONICA 06

ORIGEM MITOLOGICA... ..........06

ORIGEM HISTORICA. .. . 06

A CRONICA E SEU PUBLlCO 09

A CRONICA ENQUANTO FAZER LlTERARIO 13

OS GENEROS LlTERARIOS 18

o TEXTO LlTERARIO 21

o MODERNISMO E POS-MODERNISMO 24

o CONCEITO DE JORNALISMO 26

o FAZER JORNALisTICO 27

A COMUNICAi;Ao JORNALisTICA 30

A IMPRENSA COMO CENARIO 33

A CRONICA: LlTERATURA OU JORNALlSMO? 34

CONCLUsAo 41

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 43

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INTRODUCAO

A cr6nica e melhor entendida quando pensamos no jornal (revista) como

veiculo de informac;:ao e cultura. 0 papel precipuo do jornal ou a sua natureza

propriamente dita e informar as ocorrencias diarias. Contudo, em SU8S paginas

pede-s8 encontrar materias estranhas a sua natureza informativa.

Assim, 0 jornal apresenta duas formas de texto IingOistico. Aquela que

informa simplesmente as fatas do cotidiano e outra que e livre desses mesmas

fatas e naD S8 prende as regras jornalisticas.

Sendo assim, temos dois angulos diferentes quando olhamos a questao

com as olhos do autor dos textos: uma caisa e escrever para 0 jornal e outra

completamente diferente e publicar os seus escritos no jornal. Entao, 0 editorial, a

reportagem, as noticias configuram-se como sendo a alma do jornal e nao tern

outro destino a naD ser 0 peri6dica, mesmo porque, so mente ali cumprem a sua

missao. Esses textos nao sobrevivem rna is do que 24 horas, sao extrema mente

pereciveis, uma vez que no dia seguinte sao substituidos por outros e que

tambem terao e mesmo destino: 0 esquecimento.

Desta forma, encontram-se textos publicados no jornal pelo fato do

peri6dico ser urn meio de divulga9ao cultural. Esses mesmos textos podem, e

muitas vezes sao publicados em outros meios de comunica9aO. Todavia, erguem-

se ao nivel abstrato e desejadamente universal. Estao ali, nas paginas do jornal,

como poderiam estar em um livro.

Quem publica seus escritos literarios no jornal sabe que os leitores

habituais podem nao conceder mais aten980 aos seus textos que as noticias, mas

sabe tambem, que esta utilizando um mecanisme a mais para divulga9ao das

suas obras, embora no final do dia, tambem como a noticia, estarao esquecides.

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Neste contexto nos perguntamos: a cronica publicada em jornal (ou

revista) e literatura au simplesmente jarnalismo?

Para elucidar tal questionamento torna-se necessario compor urn

hist6rico da cronica, a seu canceita e estrutura, mostrando as suas qualidades

literiuias enquanto genera e a sua fundamental vocac;ao em desnudar as fatos

cotidianas. Bem como evidenciar a func;ao cardeal do jornalismo, que e informar

par meio de uma linguagem univaca, sem margem para a ambigOidade.

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A ORIGEM DA CRONICA

ORIGEM MITOLOGICA

No Grego e no Latim a palavra cranica tern a sua origem: do Grego

Kr6nos, significa tempo, do Latim annu(m). ano, anua, anais. Na Mitologia classica

Cronos to um deus, filho de Urano (0 ceu) e de Gaia (a Terra). Cronos destronou 0

pai e casou~se com a pr6pria irma, Raia. Urana e Gaia, prevendo 0 futuro disse

que, tambem Cronos seria destronado par urn de seus filhos. A partir desse fato,

Cronos pas sou a devorar todos os seus filhos gerados de sua uniao com Reia.

Ate que esta gravida mais uma vez, enganou seu marido dando-I he uma pedra

para que a devorasse no lugar da crian9a reeem nascida. E assim. S8 cumpriu a

profecia: Zeus, 0 ultimo filho de Granos, conseguiu sobreviver e deu a seu pai

uma droga que 0 fez vomitar todos os filhos devorados. Assim, Zeus, liderou uma

guerra contra 0 pai derrotando~o com a ajuda dos irmaos.

Percebemos, entao, Cronos como a personifica9ao do tempo que, em

sua passagem fatal, engole tudo 0 que e criado e tudo 0 que e criatura. E cabe ao

cronista, assim como Zeus, arrancar das entranhas de Cronos os fithos

devorados, na medida em que nao deixa perecer no tempo a materia efemera da

vida, registrando~a e salvando~a do esquecimento.

ORIGEM HISTORICA

Naturalmente toda lingua passa por transforma90es e, nao foi diferente

com a palavra cr6nica que teve 0 seu sentido modificado no transcorrer do tempo.

A respeito disso Massaud Moises e bastante esclarecedor:

o vocabulo ~cr6nicalt mudou de sentido ao longo dos seculos. Empregadoprimeiramente no inicia da era crista, e designava uma lista au rela9aa de

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acontecimentos, arrumados conforme a sequencia linear do tempo. Colocadaassim, entre os simples anais e a Historia propria mente dita, a cronica selimitava a registrar os eventos, sem aprofundar-Ihes as causas ou dar-Ihesqualquer interpreta9ao. Em tal acep9ao, a cronica atingiu 0 apice na alta ldadeMedia, ou seja, apos 0 seculo XII. Nessa altura, porem, acercou-sefrancamente do polo historico, 0 que determinou uma distin9ao: as obras quenarravam os acontecimentos com abundancia de pormenores e algo deexegese, ou situavam-se numa perspectiva individual da Historia, recebiam 0

tradicional apelativo de "cronica", como, por exemplo, as obras de FernaoLopes (seculo XIV). Em contra partida, as simples e impessoais nota90es deefemerides, ou "cronicas breves", passaram a denominar-se "cronic6es" Taldiscriminacyao, somente possivel em portugues e Espanhol, nao atingiu 0Frances e 0 Ingles, que englobam as dais tipos sob urn rotuto comum(chonique, chonic/e). A partir do Renascimento (seculo XVI), 0 termo ~cronicaHcome90u a ser substituido por "Historia". (Moises, 1999, p.132).

Essa associayao da cranica ao sentido ancestral de memoria de fatos

passados, au flagrante de urn tempo presente que logo se tornara documento de

tempos idos, sempre tao forte e constante, que torna 0 cronista uma especie de

historiador do cotidiano, ainda que nao esteja preocupado em fazer historia.

Contudo, 0 cronista faz historia ou a registra em suas cranicas, mas de uma forma

artistica e dentro do seu momento cultural. A respeito disso Ligia Cademartori nos

diz:

Todo momento historico apresenta um conjunto de normas que orienta ecaracteriza suas manifestacyoes culturais, constituindo 0 que se chama de estiloda epoca. Ou seja, 0 estl10 de epoca que caracteriza a produ9ao cultural de umdeterminado momento historico se orienta por normas que agem comoprincipio regulador, estabelecendo regras para a Cria9aO, prescrevendo ostra90s que devem apresentar e circunscrevendo sua abrangemcia. No caso daprodU9aO artistica, as regras que a disciplinam sao chamadas de normasesteticas e reunem-se segundo 0 preceito do gosto. ( CADEMARTORI, Ligia,1986 - peg. 5,6).

A cranica, no sentido em que 0 termo e cornurnente usado hoje para

designar urn texto que aborda as rnais diversos assuntos, nasceu de urn filao que

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come90u no seculo XIX, na Franc;a, e que se transplantou com sucesso para 0

Brasil.

Esse filao era chamado Folhetim (do Irances leuilleton). E 0 que era

esse folhetim? Era um espac;o livre no rodape do jamal, destinado a entreter a

leitor e a dar-Ihe uma pausa de descanso em meio a enxurrada de noticias graves

e pesadas que ocupavam ---como sempre ocuparam--- as paginas dos peri6dicos.

Com 0 tempo, a acolhida do publico com relaC;ao a esse espac;o foi aumentando,

eo folhetim passou a ser um chamariz para atrair leitores.

Assim entendida, a cr6nica teria sido inaugurada pelo frances Jean LoisGeoffroy, em 1800, no Journal des Debats, onde periodicamente estampavafeuilletons. Seus imitadores entre nos, aparecidos depois de 1836, traduziam 0

termo para ~folhetim", mas jil para a derradeira quadra do seculo a palavra"cr6nica" principiou seu curso normal. (Moises,Massaud 1999, p.132).

Foi 0 folhetim-variedades que deu origem a cr6nica tal como a

conhecemos hoje. Nos rodapes dos jornais, ao mesmo tempo que cabiam

romances em capitulos, tambem cabia --- ainda quando em outras folhas que nao

a inicial --- aquela materia variada dos fatos que registravam e comentavam a vida

cotidiana da provincia, do pais e ate do mundo.

Grande exercicio para presentes ou futuros grandes escritores, 0

folhetim de variedades era uma materia peri6dica em que a literatura brasileira se

ia formando e afirmando e mediante a qual um publico fiel adquiria 0 habito da

leitura. 0 valor e a sedugao dessa segao do jornal dependiam do lalento e do

estilo do escritor, ainda que a marca fosse ° tom ligeiro e descomprometido,

geralmente e propositadamente Irivolo, para conquistar a empatia do leitor.

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A CRONICA E 0 SEU PUBLICO

Gestos pequenos e despercebidos, beijos ou urn paozinho com 0 cafe

da manha --- com ou sem leite --- e lS50 que a craniea acaba sendo para a leitor.

No jamal, as manchetes trazem, em titulos epicos au grandiloqOentes, 0 mundo.

o mundo em letras garrafais. 0 susto e a primeira emoyao do recem acordado

brasileiro. As vezes e urn susto born: val haver urn show do nossa cantor

predileto, estreia urn fUme de urn diretor competente, ou havera uma entrevista

com uma personalidade de quem gostamos. Ou ainda n05SO time de futebol, volei

au basquete fez algum sucesso no exterior. Depois de lido, porem, 0 jornal acaba

tendo urn final nada nobre, como forrar 0 caixote dos cachorrinhos recern-

nascidos, ou 0 chao da casa que esta sendo pintada. A respeito do carater

perecivel do jornal e 0 seu conteudo Ciro Marcondes nos diz:

Com a leitura ocorre 0 uso; ao leitor, uma vez absorvida a informac;:ao, 0 veiculoimpresso (material) nao mais interessa. a mercadoria noticia e uma das maisrapidamente pereciveis. (FILHO, Ciro Marcondes, 1989 - pag. 25).

E nesse contexto que a nossa hist6ria de cada dia acontece sem

registros e sem importancia. Os fatos estao ai, contidos entre a nascimento e a

morte.

Onde cabem as pequenas coisas do cotidiano? Como registrar a hist6ria

nossa de cada dia? Como tomar a etemo instantaneo? Como captar a conversa

fiada, os pequenos sentimentos, as coisinhas, nossas ou alheias?

o espayo liten3rio para tudo isso e a cr6nica, de que nao se imagina seja

assunto a Ulisses, aquele da epopeia, rei de itaca onde suas aventuras inspiraram

a Odisseia, de Homero. Na cr6nica esse nome s6 teria espayo como sendo 0

nome de um cachorro au do verdureiro da esquina.

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o humor e fundamental, bern como leveza e tom coloquial. Mas de tanto

S8 dizer que cronica e urn genera menor, tarvez 0 proprio cronista acabe S8

convencendo disso e naD S8 leve muito a serio. A esse respeito diz Antonio

Candido, professor e critico literario:

A cr6nica naD e um "genero maior". Nao se imagina uma literatura feita degrandes cronistas, que Ihe dessem 0 brilho universal dos grandes romancistas,dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir 0 Premia Nobel a urncronista, p6r melhor que fosse. Portanto, parece mesma que a cr6nica e urngenera menor.uGrac;as a Deus", -- seria 0 casa de dizer, porque sendo assim ela fica perta den6s. (CANDIDO, Antonio -1998 - pag.5).

Entao a cr6nica seria urn genera para homens menores? A quem se

destina, inicialmente, a cr6nica? Ao leiter de revistas e jornais. Ora, num pais

como 0 Brasil, quem Ie peri6dicos jil. se destaca quanto ao nivel cultural, em

relaC;80 ao resto de seus compatriotas, parque, se em terra de cego, quem tern

urn alho e rei, em terra de analfabeto, quem Ie jornal e intelectual. Isso, porem, e

relativizar demais os valores. Certo que ler jornal e revista, para urn estudante e

pauco, mas para professores se contentam com os que 0 fazem, pois ate esse

habita estao perdendo. Quem Ie livros, alem dos pedidos na escola e na lista dos

vestibulares? Quem compra livro espontaneamente? Para quem a literatura e uma

fonte de prazer ou uma forma de libertac;ao?

No nosso contexto cultural, em que uma tiragem de 3 mil exemplares faz

urn best-seller, urn leitor de genera menar nao seria urn leitor menor, e sim urn

leitor a mais. E a cronica, principalmente per ser tao difundida nos livros didaticos,

acaba sendo a principal fonte de texto litera rio para a maiaria dos nossos jovens,

quanto nao a unica, pelo menos no ensino fundamental. Entao por que

estigmatiza-Ia, tachanda-a de mener?

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II

Ao jogar conversa fora, 0 cronista nada mais faz do que levar urn papo-

cabega, sem censura, livre. E a liberdade e uma das principais caracteristicas da

cronica, principalmente pela Iimita<;c3o do espa90: tem-S8 de preencher aquela

coluna e 56. Ja nao S8 poderia especificar qual e a materia-prima do genero, par

ser a pr6pria vida. A vida como ela e ou nao e, as aventuras au desventuras do

cotidiano, as noticias de hoje, de ontem, da minha infancia au mesmo aquelas

que nunca foram notlcias. Nao ha restri9ao de assunto para a cronica, talvez para

compensar a pouco espac;o. E essa total liberdade, tambem quanta a estrutura,

faz ser dificil a sua conceitua9ao.

Comumente, 0 fato jornalistico que detona 0 texto e mero pretexto, pais

nao e daquela determinada guerra que 0 cronista quer falar, mas da guerra

enquanto nao-paz. E nem da princesa da Inglaterra, e sim de como todos gostam

de reis e rainhas. e menos ainda do carnaval que vimos ontem pela teve, de

madrugada, mas sim de como as antigos carnavais eram mais verdadeiros, mais

puros, mais alegres do que os de hoje.

o espa90 em que acontece 0 fato analisado pelo cronista nao fica no

mundo real que nos rodeia. Mesmo quando ha verdade inquestionavel no que diz,

as entrelinhas e as analogias e que interessam. A cr6nica e urn genero do

disfarce e ajuda a agOentar com certa fantasia a vida e a realidade. Geralrnente

nao e ficvao pura, uma vez que a realidade esta palpavel nela, 0 cora9ao de cada

leitor esta batendo forte, ao identificar-se com as ideias do cronista. Lemos a

cronica, damos um sorriso meio de lade e comentamos: "--- Olha, 0 fulano esta

incrivel, hoje. Nao e que esta dizendo exatamente 0 que eu queria dizer sobre

aquela noticia?"

Bem, eu queria dizer mas nao disse, 0 cronista diz por mim. E 0 meu

porta voz (nao a oficial, solene e falso), desnuda a realidade e, paradoxalmente, a

reveste de beleza e ideal. Acaba sendo a realidade que 0 leitor queria e, ao

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mesmo tempo, seu elemento transformador. Nao enquanto agente historica, que

essa naD e a sua func;:ao. Dir-se-ia que a cranica, como um gemero de rodape,

ajuda 0 "hom em rodapen, nao 0 general ou 0 presidente; para esses existem as

maquiaveis, os estrategistas, as constituintes. a cranica existe para 0 misero

mortal, ou seja, para nos, homens menores, e isto e born, pois desperta a

humanidade que htl em nos e que as miserias do rnundo tentam adormecer,

matar talvez. 0 leitor S8 dignifica, ao perceber, nas grandes cranicas, 0 pequeno

S8 eternizar, 0 prosaico transcender.

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A CRONICA ENQUANTO FAZER LlTERARIO

A aparencia de simplicidade nao quer dizer desconhecimento das

artimanhas artfsticas. Ela decorre do fato de que a cr6nica surge primeiro no

jarnal, herdando a sua precariedade, esse seu lado efemero de quem nasce no

come90 de uma leitura e morre antes que S8 acabe 0 dia, no instante em que 0

leiter transform a as paginas em papel de embrulho, au guarda as recortes que

mais Ihe interessam num arquivo pessoal.

o cronista transcende tais banalidades e vai alem, ele ve a cidade com

as 01has de urn bebado au de urn poeta: VElmais do que a aparencia permite, e

descobre, par isso, as fon;:as secretas da vida. Nao S8 limita a descrever a objeto

que tern diante de si, mas 0 exam ina, penetra-o e 0 recria, buscando sua

essen cia, pais a que interessa nao e a real vista em fun9aO de valores

consagrados. E preciso ir mais longe, romper as conceitua90es, buscar

exatamente aquila que caracteriza a poesia: a imagem.

A Cr6nica apresentada a seguir, de minha autoria, entitulada "A Revolta

dos Estomagos", publicada no Jomal 0 Estado do Parana em 23/01/88 no

suplemento Almanaque, pagina 8, mostra mais do que a aparencia permite.

Faminto, 0 estomago comet;:ava a rebelar-se contra 0 resto do corpo. 0metabolismo digestiv~ estava se alterando sensivelmente, po is 0 estomagoestava adquirindo vida propria.

o motivo desta mutac;:ao estomacal era porque 0 dono do estomago, umpolitico em epoca de repressao, foi privado do direito a liberdade de ex pres sao,e em sinal de protesto resolveu fazer greve de fome. 0 estomago, antes servile obediente, quando percebeu 0 conluio que se formava, se bem que jadesconfiava por que fazia dias que nao via nenhum tipo de comida, ficourevoltado e iniciou sua insurrei((ao estomacal.

Comet;:ou a roncar com um furor incontrolavel, como um leao ferido. Seudono, assustado, colocou a mao sobre 0 estomago e sentiu 0 que estavaacontecendo. Foi seu grande erro. 0 estomago, completamente possesso,mordeu-Ihe a mao e come((ou a engoli-Io impiedosamente. Imaginem a cena:um estomago engolindo seu proprio dono. Da mao passou a engolir 0 brac;:o,0

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ombro e depois a troneo, a cabeya; da cabey3 engoliu as duas pernas, Amedlda que en90lia, ficava maior e mais faminto. De subito, 0 politico naoexistia mais. 0 est6mago estava delirante, tentou engolir a si proprio maschegou a conclusao de que nao era canibal. Imediatamente atacau arestaurante mais proximo, devorou tudo e nem pagou a conta. Tornou-seindependente, preservou somente as pes do seu antigo dono para selocomover. E adorava roer as unhas do seu novo pe numero 40.

Apesar da liberdade de comer quanta quisesse, par sinal amiude, erainfeliz. Ate que urn dia tentou, sem sucesso, a suicidio, pois urn estomago 56naD taz urn verao apetitoso.

Par ter antecedentes politicos, decidiu ajudar seus injustiyadoscompanheiros: as estomagos. E come~ou uma revolu~ao gastrica.

Proferia discursos apaixonados em praga publica._Estomagos e estomagas, somos os responsaveis pelo bom

funcionamento do corpo humano e todos as dias somos brutalizados porhabitos alimentares inconseqOentes. Estamos cansados desse cruel desprezogastrico. Os estudantes quanta comem nos obrigam a digerir sopa de letrinhasindecorosas e promiscuas.

Os politicos nos enganam com demagogias gastronomicas, compromessas utopicas de acabar com a fome do mundo. 0 pior e que quandodizem: estou morrendo de fome, vou comer urn suculento churrasco a gaucha,mas nunca comem. Eles subestimam a for~a dos estomagos, e isso e umaviolencia sem precedentes que nao podemos mais admitir.

_ Estomagos e estomagas, rebelem-se, acabemos com essa filosofiaantigastronomica indigesta. Liberdade aos estomagos.

_ Os estomagos unidos jamais serao vencidos._ Os estomagos unidos jamais serao vencidos.As pessoas senti am algo estranho no ar, mas ja era tarde, os estomagos

nao queriam mais dialogar, deglutiam seus donos sem medo de engordar._ Esperem urn pouco, que barulho e esse? 0 que esta acontecendo?_ Larga meu lapis. Nao ai, meu braga, larga, solta. Socorro meu

estomago esta me engolindo, socorro .._ Croch, nham, nham, nham ..

Esse universe imaginario nao se afasta do real. Ao contra rio: ejustamente ele que nos permite suportar as pressoes de um mundo convencional

e partir para a descoberta de horizontes novos, que sao a realidade e suas rnuitas

faces. Como cad a um de n6s olha 0 rnundo par urn angulo particular, ernbora

conjugado aos angulos ocupados par outros seres, reaprendemos a cad a instante

que a verdade e uma experiE!Ocia pessoal. Portanto, elirninar a jogo ilus6rio eeliminar a pr6pria realidade; estimular 0 jogo e ampliar 0 alcance do real.

Assim sendo, Luiz Roncar; nos esclarece:

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A mascara do narrador da cronica parece essa figura composta: em umaprimeira visao, a fei<;:ao de alguem que ve, extremamente atendo ao tempo,fazendo da cronica uma membrana sensivel, capaz de captar a moda, oscostumes, a mudan<;:a, novas express6es e termos, a novidade e as marcas dotempo que nao sao noticias; e, numa segunda visao, 0 rosto de alguem quejulga, que procura alem das camadas superficiais do tempo 0 velho conhecido.comentando 0 novo, confrontando-o com a velho e projetando 0 futuro, 0

cronista cria a perspectiva para construir a imagem do presente, revelada nospequenos fatos banais da vida e da rua.~ ( RONCARI, Luiz - Sermao, Folhetime Cronica - Ciencia Hoje, Vol. 11 n 65 - agosto de 1990, pag. 47/48).

Contudo, a pressa de escrever, junta-se a de viver. Os acontecimentos

sao extremamente rt3pidos, e a cronista precisa de um ritimo agil para poder

acompanha-Ios. Par isso a sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, salta,

mais proxima da conversa entre dois amigos do que propria mente do texto escrito.

Dessa forma, he uma proximidade maior entre as normas da lingua escrita e da

eralidade, sem que 0 narrador caia no equivoco de camper frases frouxas, sem a

magicidade da elabera\=80, pais ele nao perde de vista a fato de que a real nao emeramente copiado, mas recriado. 0 coloquialismo, portanto, deixa de ser a

transcric;:ao exata de uma frase ouvida na rua, para ser a elaborac;:ao de urn

dialogo entre 0 cronista e a leitor, a partir do qual a aparencia simpl6ria ganha sua

dimensao exata.

o dialogismo, assim, equilibra a coloquial e a literario, perrnitindo que a

lade espontaneo e sensivel permane\=a como a elemento provocador de outras

visoes do tema e subternas que estao sendo tratados numa determinada cronica,

tal como acontece em nossas conversas diarias e em nossas reflex6es, quando

tambem conversamos com urn interlocutor que nada mais e do que a nossa outro

lado, nossa outra metade, sempre numa determinada circunstancia. Mas nao

circunstancia naquele sentido de um escritor que, embora nao seja jornalista,

precisa sobreviver ••- e ganha dinheiro publicando cronicas em jornais e revistas:

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o termo assume aqui 0 sentido espedfico de pequeno acontecimento do dia-a-dia,

que poderia passar despercebido ou relegado a marginalidade par ser

considerado insignificante. Com 0 seu toque de lirismo reflexivo, 0 cronista capta

esse instante brevissimo que tambem faz parte da condityao humana e Ihe confere

a dignidade de urn nucleo estruturante de Qutros nucleos, transformando a

simples situaryao no dialogo sabre a complexidade das nossas dares e alegrias.

somente nesse sentido critico e que nos interessa 0 lado circunstancial da vida.

Oesta forma:

Recompor a propria hist6ria individual e um jeito de 0 cronista nos ensinara camper a nos sa hist6ria na condic;ao de pessoas ligadas a tantas e tantasheranc;as Gulturais. Ora, per mais que 0 narrador-rep6rter seja 0 escritor decarne e osso, nervos e musculos, e nunca persona gem ficcional, ele representaum ser coletivo com quem nos identificamos e atraves de quem procuramosvencer as limitagoes do nosso olhar. Queremos ver mais longe - para a frente epara tras -, e s6 0 conseguimos com 0 auxflio de quem nasceu para narrar 0mundo.

Oaf a importimda do instante, porque e 0 flash do momento presente quenos projeta em diferentes dire goes, todas elas basicamente voltadas para aelaborag80 da nossa identidade. Logo, e fundamental que 0 cronista se definanum tempo e num espago, compondo uma cronologia nunca limitadora, massempre esclarecedora da suntuosa relag80 com os seres e com os objetos.Enfim, 0 elemento biografico funciona como linha costurando 0 tecido da vida,tecendo a renovagao do imaginario, atraves do qual 0 homem se reafirma comoponte para outras formas de conhecimento e convivencia." ( sA, Jorge de, 1997- pag. 15).

Assim 0 escritor, com 0 aplauso ou, ao menos a tolerancia da

sociedade, pode criar 0 seu mundo com fragmentos do mundo real

arbitrariamente recolhidos. E assim exerce a critica social em toda sua plenitude,

sem preocupar-se com a rea~ao moral do leit~r. Embora a Literatura Brasileira,

essencialmente, nao tenha estreitos la~os com a critica social, quando a tem

como objetivo se utiliza de satiras e humor.

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Fora as poucos exemplos excepcionais, a verdade e que a literatura brasileirade compromisso social nao alcanc;:ou urn nivel de apreciavel fon;:a criadora e deimplantat;;30 de urn esti10 de epoGa que seja marcante e dotado de poder deirradiac;:ao.E preciso naD esquecer que, nas epocas de bloqueio, como aconteee em todasas partes, tambem entre nos, tem-se desenvolvido certos gemeros satiricos,burlescos e humorfsticos - forma pela qual a sociedade se compensa da perdado direito de dizer, as claras, as verdades fundamentais. Trata-se de umaforma de praticar a Ulinguagem es6pica~, na expressao de Otto Maria Carpeaux.Veja-se, pois, 0 notavel desenvolvimento do humoristico, entre n6s, al8m dagrande repercussao de names como Millor Fernandes (Vao Gogo) - criadorinsuperiwel ., e Sergio Porto (Stanislaw Ponte Preta) - simbolo do protestopopular. (LUCAS, Fabio, 1985 pag.70, 71).

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IS

OS GENEROS LlTERARIOS

Basta urn primeiro cantata com a literatura para term as a ideja de que

suas obras sao diferentes, nao apenas pelo autor e pela epoca, mas tambem pelo

conteudo e forma. as Lusiadas, par exemple, sao urn longo poem a her6ico ou

epico, com seus "cantos" constituidos par algumas dezenas de estrofes de oito

versos au oitavas; a Canyao do Exilic de Gonryalves Dias e urn pequeno poema,

subjetivo au lirico; Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, e uma longa

narrativa, romanesca e de fundo hist6rico; e 0 Pagador de Promessas, de Dias

Gomes, e uma obra escrita para ser representada, e dai ter uma estrutura teatral.

Partindo da ideia de que as obras sao diferentes no conteudo e na forma, nao ediffeil chegarmos a conclusao de que tais elementos, se de um lade as

distinguem, de outro nao impedem que se assemelhem a outras, com mesmo tipo

de conteudo e de forma, e venham a constituir com elas um grupo, com

determinadas afinidades entre seus elementos. Ao lade de Os Lusiadas sentimos

que podem agrupar-se obras como a lIiada, a Odisseia, a Eneida e 0 nosso

Caramuru; ao lade da Canyao do Exilio, podemos colocar um poema subjetivo de

Petrarca ou de Carlos Drummond de Andrade; ao lade do romance de Jorge

Amado, um romance de Eya de Queiros, de Balzac, de Joyce ou de Zola; e ao

lade da peya teatral de Dias Gomes, qualquer outra peya, de Gil Vicente, de

Shakespeare, de Brecht.

Assim, e natural formularmos, entao, as seguintes indagayoes: nao sera

licito ver na literatura, como na natureza, determinados "generos" e, dentro

destes, determinadas "especies"? Nao seria possivel fazer uma classificayao

desses generos e dessas especies? Sera 0 escritor livre na criayao de sua obra,

ou tem de se subordinar a modelos ou generos e especies literarias?

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AS 9re905 e as latinos, bern como as classicos modernos, que as

imitaram, viram nos generos literarios, 0 poema epico, a poema lirico, a tragedia,

a comedia, perfeitas categorias artisticas, inconfundiveis entre si; baseados em

obras que expressavam modelarmente essas categorias, criaram uma teoria dos

Qeneros literarios: as generos deveriam ser puros, nunca hibridos. Uma comedia

tinha que ser exclusivamente cornica, e uma tragedia, tragica. A cada genera

devia corresponder uma forma e urn conteudo; era Heito falar em generos de

prime ira grandeza au maiores e de segunda grandeza ou menores, iste e, que

exprimiam assuntos menDS nobres. 0 valor de uma obra devia ser medido pelo

seu respeito a pureza do genera que representava, as regras estabelecidas pelos

te6ricos para obtenc;:ao dessa pureza e pelo fato de ser uma obra maior au menor.

Os romanticos, dada a sua radical oposic;:ao aos classicos, combateram

todas as suas teorias acerca dos generas literarios: nao era lieito falar em generos

maiores e men ores, nem em generos puros e impuras, pais 0 que importava era a

novidade de uma obra, sua atualidade, seu interesse e 0 que expressava da vida;

e nao podia pretender tiranizar urn escritor com regras de urn genera, pais a que

se impunha era dar liberdade ao seu genio criativo, que as gemeras existiam, era

evidente, bastava pensar nos antigos, nos de tradic;:ao medieval enos modernos.

o que se nao podia pretender era defini·los como categorias absolutas e eternas,

nem mesmo classifica-Ios, tal a peculiaridade de cada obra e a imprevisivel do

poder inventive de escritor.

Ainda a respeite des generos literarios Olavo de Carvalho nes diz:

Os generos literarios, a rigor, sao realidades arquetipicas: enquadram eorientam a multiplicidade dos fatos da historia literaria, sem jamais manifestar-se em toda a sua integra pureza - pois a temporalidade imita a perenidade,sem poder identificar-se com ela - e tambem sem nunca desaparecertotalmente de cena, par mais irreconheciveis que os tome a multidao, nao raroconfusa, dos fatos e variayoes particulares. A dificuldade que 0 homemcontempOf<3neOsente em compreender os generos e reconhece-Ios no meio da

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confusao dos dados empiricos e exatamente a mesma que ele encontra parareconhecer qualquer sentido arquetlpico nos fatos de uma vida cotidianatotal mente banalizada e coisificada, cujas la905 com a mundo dos arquetiposforam encobertos pela fuma93 e pelo ruida do imediatismo comercial e fabril,bern como pelas diston;:5es poluidoras que a industria das comunicaQ6es demassas introduz criminosamente no mundo das imagens e dos simbolos. Adificuldade de ver esta no sujeito, naD no objeto. (CARVALHO, Olavo de 1992·pogo 45, 46)

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o TEXTO LlTERARIO

A literatura e chamada de fiC9c30, isto e, imaginayao de algo que naa

existe particularizado na realidade, mas no espirito de seu criador. A literatura cria

o seu proprio universa, semanticamente autonomo em relayao ao mundo em que

vive 0 8utor, com seus seres ficcionais, seu ambiente imaginario, seu c6digo

ideologica, sua propria verdade: pessoas metamorfoseadas em animais, anima is

que falam a linguagem humana, tapetes voadores, cidades fantasticas, amores

incriveis, situay:oes paradoxais, sentimentos contraditorios etc. Mesmo a literatura

mais realista e fruto de imaginayao. pois 0 carater ficcional e uma prerrogativa

indeclinavel da obra liten3ria. Se 0 fata narrado pudesse ser documentado, S8

houvesse perfeita correspondencia entre os elementos do texto e do extratexto,

terfamos entao nao arte, mas historia, biografia.

A obra literiuia cria uma objetualidade propria, um heterocosmo

contextual mente fechado. Esta realidade nova, criada pela ficyao poetica, nao

deixa de ter, porem, uma relayao significativa com 0 real objetivo.

o texto literario veicula uma forma especifica de comunica~ao que evidenciaum uso especial do discurso, colocando a servic;:o da criac;:ao artisticareveladora.Per revela~ao compreende-se a configurac;:ao mimetica do real. Tal afirmac;:aoleva a um dos mais importantes conceitos ligados a arte literiuia: mimese."( FILHO, Domicio Proen~a, 1992 - pogo 28).

Ninguem pode criar a partir do nada: as estruturas lingOisticas, socia is e

ideologicas fornecem ao artista 0 material sobre 0 qual ele constr6i 0 seu mundo

de imaginaryao. A teo ria classica da arte como mimese da vida e sempre valida,

quer se conceba a arte como imitay80 do mundo real, quer como imitaryao de um

mundo ideal ou imaginario.

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'2

A linguagem literaria constitui-se num discurso conotado, porque seu

plano de expressao ja inclui uma significac;ao primaria. 0 termo conotac;:ao deve

ser reservado para sentidos de uma palavra ou de uma expressao que pod em

existir virtualmente na experiemcia que temas da coisa designada par essa

palavra, au nas associac;oes que nascem do usc que S8 faz dessa palavra na

Iinguagem em geral, mas que 56 S8 atualizam pelo seu emprego particular num

certo discurso. A conotaC;:2o e urn sentido que 56 advem a palavra numa dada

situac;:ao e par referencia a urn certo contexto.

A linguagem literiuia e sempre polissemica, ambigua, aberta a varias

interpretar;oes. esta ambigOidade nao atinge apenas a mensagem em si, mas

tambem 0 emissor, 0 destinatario e a referente.

o texto litera rio transforma incessantemente nao s6 as relac;6es que as

palavras entretem consigo mesmas, utilizando-as alem de seus sentidos estritos e

alem da 16gica dos discurso usual, mas estabelece com cad a leitor relac;6es

subjetivas que a tornarn urn texto m6vel, capaz mesmo de nao conter nenhum

sentido definitiv~ ou incontestavel.

Um enunciado poetico, por exemplo, pel a peculiaridade de sua estrutura

fonica, ritmica e sintatica, sugere varias significac;6es, evocando correspondencias

entre termos que se tornam presentes na memoria do leitor, associando

significantes lingOisticos a significados miticos e ideol6gicos, elevando ao nlvel da

consciencia os anseios do subconsciente individual e coletivo.

ConseqOencia do carater conotativo da linguagem literaria e que, para a

inteligencia ou decodificaC;ao de um texto poetico, nao e suficiente apenas 0

conhecimento do c6digo lingOistico. Ha necessidade do conhecimento de uma

pluralidade de c6digos: retoricos, miticos, culturais, etc., que estao na base da

estrutura artistico-ideol6gica de uma obra literaria. Essa forma de vida que e a

lingua esta sempre e necessariamente inserida em situatyoes s6cio-culturais e

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abarca formas de trabalho IingOisticas e nao-lingOisticas, que se interpretam

mutuamente.

Assim:

E a literatura porta de um mundo autonomo que, nascendo com ela, nao sedesfaz na ultima pagina do livre, no ultimo verso do poema, na ultima fala darepresentac;:ao. Permanece ricocheteando no leitor, incorporado como viv€mcia,erigindo-se em marco do percurso de leitura de cad a um. ( LAJOLO, Marisa,1987 - pag. 43).

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MODERNISMO E POS-MODERNISMO

o pas-guerra de 1914-1918 e marcado, no Brasil, par muitas convuls6es

socia is e politicas. A par das agitac;oes e movimentos armadas do decenio 1920-

30, a literatura tambem se agita e se arma. Eclode em Sao Paulo a famosa

Seman a de 22, que propoe e imp6e, de maneira virulenta, as novas ideias que ha

tempos vinham tomando corpo e forma entre a jovem intelectualidade brasileira.

E a cronica desse periodo?

Se a revoluc;ao modernista explode, a cr6nica tambem explode: torna-S8

arma de luta, irreverente e incisiva. E despojada dos elementos ret6ricos da

linguagem academica, contra a qual as modernistas 58 insurgiam.

Os cronistas das primeiras horas do Modernismo sao, em grande parte,

panfletarios da novas estetica, fazendo uma cr6nica que S8 equipara a critica, ou

uma critica que se equipara a cronica, contaminada de impressoes pessoais e do

calor das paixoes do momento.

Os modernistas queriam suplantar a linguagem utilizada pelos

parnasianos e substitui-Ia por uma fala brasileira, agil, coloquial e agressiva.

Desse conflito litera rio, apoiado em duas visoes de mundo opostas: uma

conservadora, estatica; outra, renovadora, dinamica. Isso num periodo em que 0

Modernismo ainda estava numa fase agudamente demolidora. Contudo e a nova

gerac;ao que permanece viva e, ja em outra fase, pode comec;ar a fazer uma

reftexao critica sobre suas conquistas e construir, com base nessa reflexao, uma

literatura moderna s6lida, que inclui, ate os dias de hoje, a pesquisa e a invenc;ao.

o terrena literario exausto do passado ja estava devidamente revolvido e

revitalizado. E propfcio ao f1orescimento de uma cr6nica de maturidade, viva,

atuante e profundamente renovada.

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Neste momento devemos dar um saito para 0 ambiente pos-moderno

que significa basicamente ter entre n6s e 0 mundo os meios tecnologicos de

comunicayao, ou seja, de simulac;ao. Eles nao nos informam sobre 0 mundo; eles

o refazem a sua maneira, hiper-realizam 0 mundo, transformando-o num

espetacul0. Uma reportagem a cores sobre os retirantes do Nordeste deve

primeiro nos seduzir e fascinar para depois nos indignar. Caso contra rio,

mudamos de canal.

o p6s-modernismo e um ecietismo, ista e, mistura varias tendemcias e

estilos sob 0 mesmo nome. Ele nao tem unidade; e aberto, plural e muda de

aspecto se passamos da tecnaciencia para as artes plasticas, da sociedade para

a filosofia. E inacabado, sem definic;ao precisa.

Mas outros sentem no p6s-modernismo uma praga boa e saudavel. Abalapreconceitos, poe abaixo 0 muro entre arte culta e de massa, rompe asbarreiras entre os generos, traz de volta 0 passado (os modernos 56 queriam 0

novo). Democratizando a produgao, ele diz: que venham a diferenga, adispersao. A desordem e tertii. Pluralista, ele propoe a convivencia de todos osestilos, de todas as epocas, sem hierarquias, num vale-tudo que acredita noseguinte: sendo 0 mercado um cardapio variado, e nao havendo mais regrasabsolutas, cada um escolhe 0 prato que mais lhe agrada. Morte ou renovagao,tambem na arte 0 p6s-modernismo flutua no indecidivel. (SANTOS, JairFerreira dos, 1986 - pag. 70).

Neste ambiente de livre criayao 0 escritor so Ita as amarras e apresenta a

sua viseD de mundo, descomprometida e original, fazendo com que a cr6nica de

urn sentido a aparente desordem.

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CONCEITO DE JORNALISMO

Os homens dos nossos dias tern fome de conhecer 0 presente. Para

estar a par das ideias, eventos e situac;oes correntes, procuram veiculos multo

mais especializados e diversificados do que os seus ancestrais.

Jornalismo e, antes de tudo, informar:;::c3.o.Informac;::ao, bern entendido, de

fatas atuais, correntes, que mere<;am 0 interesse publico, porque informar sobre

fatas passados, e fazer hist6ria e 0 jornalismo e a hist6ria que passa.

Os fatas correntes ex pastas pelo jornalismo tern de ser devidamente

interpretados, porquanto informac;::ao, orientac;::ao e direC;2Io sao atributos

essen cia is do period ism 0, que nao pade ser substituido nem sequer

momentaneamente par nenhum outro agente cultural nesta tareta junto asociedade. Oaf porque a obra jornalistica se realiza dia a dia, porque os fatos,

devidamente interpretados, tem de ser transmitidos periodicamente nao ao

individuo isolado, mas a um conjunto ou a totalidade dos homens que vivem em

sociedade.

Exercendo-se pela difusao de conhecimentos, utilizando todos os

recursos da tecnica disponiveis ao seu desenvolvimento, 0 jornalismo tem por

objetivo informar e orientar a opiniao, censurar e sancionar as agoes publicas dos

habitantes de uma regiao e divulgar a cultura entre a populagao de um pais.

Assim, jornalismo e a informagao de fatos correntes, devidamente

interpretados e transmitidos periodicamente a sociedade, com 0 objetivo de

difundir conhecimentos e orientar a opiniao publica, no sentido de promover 0

bem comum. Registra os acontecimentos em qualquer setor da vida social, em

qualquer parte do universo, em qualquer dominic das ciencias, das artes, da

natureza e do espirito, que sejam capazes de despertar 0 interesse dos homens

reunidos em sociedade.

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o FAZER JORNALiSTICO

Urn dos objetivos dos meiDs de comunicaC;:3o e manter a nossa

sensibilidade despertada, a fim de que possamos participar ativamente dessa

imensa aldeia global. Ja S8 disse mesma que 0 mundo de hoje nao comporta as

dares individuais, pais a solidariedade e a esperan9a de epocas mel hares exigem

que partilhemos todas as dares. Vivemos simultaneamente em todes as lugares, 0

que faz da terra inteira uma extensao sensivel do nosso proprio corpo: a radio, a

televisao, 0 telefax e a internet sao as celulas nervosas desse imenso organismo

a transmitir-Ihe impress6es sob formas de noticias.

Com issa a nossa individualidade S8 universaliza de tal forma que as

mais distantes acontecimentos afetam a nossa vida, seja a marie de urn politico

estrangeiro, seja a independe!ncia de uma pequena comunidade ap6s seculos de

servidao, seja ainda simplesmente 0 furto de urn pao par uma menininha inocente

e faminta. Tudo nos atinge nervosamente e se estampa num gratico que e 0

jomal, uma vez que nele circulam todas as oscila<;:5es de nossas tristezas

universais.

A preocupa<;:ao basica do jornal e com a notlcia, com 0 fato em si,

deixando em segundo plano as pessoas que participaram da cena. Nesse caso,

qual a fun<;:ao da cronica, que surge exatamente no espa<;:o jornalistico?

Aberta a janela, cumpre ensinar 0 leitor aver mais longe, muito alem do

factual. Isso s6 e possivel quando 0 fato, os personagens e a preocupa<;:ao

estetica revelada na estrutura<;:ao do texto se associam para que 0 resultado final

alcance a empatia com 0 leitor. Uma empatia que significa a cumplicidade entre

quem escreve e quem Ie, mas tam bern a elabora<;:ao de uma linguagem que

traduza, para 0 leitor, as muitas linguagens cifradas do mundo. Portanto a fun<;:ao

da cronica e aprofundar a noticia e deflagrar uma profunda visao das rela<;:5es

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entre 0 fato e as pessoas, entre cada urn de n6s e 0 mundo em que vivemos e

morremos, tornando a existemcia mais significativa.

A existemcia dos jornais S8 deve aDs fatas que sao noticia, isto e,

aqueles fatas que podem causar maior impacto em seus leitores. Assirn, nao

publicam em destaque, au mesma nao publicam, materias que falem, par exemplo

da "vida silenciosa e umida das arvores" e da "pedra escura com sua pele de

musgo e seu misterioso coray8o mineral" Os jornais noticiam tudo, tude, menes

uma caisa tao banal que ninguem S8 lembra: a vida.

Hoje, as jornais que S8 destinam as classes mais elitizadas procuram

captar a poesia da vida, mas nao podem escapara a escolha dos fatas que

tenham conteudo jornaHstico no sentido de maior interesse, credibilidade no

esclarecimento do publico. Oesta forma, as proprios jornais conferem ao cronista

a missao de colocar a vida no exiguo esparyo dessa narrativa curta, que corre a

risco de ser sufocada pelas grandes manchetes, ou confundir-se com 0 contexto

da pagina em que ela to publicada.

Logo, a jornal nos da noticias da vida e da morte; a cr6nica nos faz

compreender a coexistemcia desses dois elementos que se op6em, mas nao se

excluem.

Em conclusao, se stricto sensu 0 jornal nao pertence a arte literaria, lato sensuo sera quando 0 texto for deliberadamente literario, e neste caso 0 jornal seconverte num veiculo ocasional; ou parcialmente litera rio, e neste casoprevalece nao 0 aspecto estetico, mas ° jornalismo. Em suma: pragmatico,utilitario, vazado em linguagem referencial, aborrecendo as exuberancias dafantasia, 0 jornalismo e atividade nao-literaria. (MOISE.s, Massaud, 1998 - pag.157).

o estilo do jornalista, bem como sua linguagem, nao se apuram tao bem

como 0 do escritor. Falta em regra a densidade dos verdadeiros estilos literarios,

que se obtem pela paciencia e pela obstinaryao em perseguir a forma perieita,

artisticamente trabalhada: para a escritor a lingua nao e um simples meio de

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comunicaC;80 com 0 publico contemporaneo, mas urn meio de expressao artistica,

valida para a posteridade.

Nao convem esquecer que a proximidade, no tempo, dos fatos, que sao

a materia-prima exclusiva do jornalismo, naD somente 0 priva da perspectiva

historica, como Ihe tira, ate certa ponto, a perspectiva liter8.ria.

No funda, que e 0 jornalismo senaa 0 dialogo diario, apressado,

superficial, com 0 leitor, dialogo em que urn dos interlocutores e mudD e a Dutro

Ihe tern de adivinhar as perguntas? Estas, que nascern da perplexidade em face

do rnundo dia a dia mais vertiginoso e desnorteante. Devern ser captadas e

respondidas obrigatoriamente e pontualmente.

Nessa especie de conversa naD lugar para as sih~ncios gravidas de

sabedoria, os sorrisos enigmaticos, os gestos indecisos ou evasivos. 0 que 0

leitor exige do jornalista e que este Ihe explique, enciclopedica e profeticamente,

tudo 0 que de significativo esta acontecendo e vai acontecer. As respostas nao

pod em ser as de um ensaista, porque ao jornalista nao Ihe sobra tempo para as

long as medita90es, nem as de urn ficcionista, porque nao Ihe e lieito, suprir com a

imagina9ao as lacunas da realidade.

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A COMUNICA<;Ao JORNALiSTICA

o homem maderno e apressado, preocupado, nao disp6e de muito

tempo para dedicar a [eitura de jornais e revistas; e 0 publico a quem S8 destinam

jornais e revistas e urn publico variado, onde S8 misturarn pessoas Gultas, pessoas

alfabetizadas e pessoas urn pouco menes que analfabetas. Assim, a comunic89ao

deve ser concisa, evitando sempre a prolixidade e 0 fastidio; assim 0 jornalista

deve escrever tornando par base nao seus eventuais leitores Gultes, mas as

pouco menDS que analfabetos. Deve, entao, ser simples e claro na constrw;ao

das e escolher as palavras mais usuais passive is.

E bom lembrar que nao e todo veiculo que serve para qualquer mensagem, evice~versa: nem toda mensagem serve para qualquer veiculo. ( BUKSTEIN,Izidoro, 1987 - pag. 55).

o que pretende 0 homem que Ie jornais, ao abrir uma ediryao, e ser

informado. Presume-se de um modo geral, nao ter ele tempo para apreciar estilo,

nem para acompanhar complicados raciocinios. Imaginemo-Io na fila do 6nibus

agarrado ao jornal de sua predileryao, no balcao do bar enquanto toma cafe, na

esquina enquanto espera a companheira, em casa no intervalo entre a banho e 0

jantar ou entre 0 jantar e a hora de dormir. E um ser cansado, preocupado,

atribulado por mil requisiry6es da vida moderna. 0 que ele exige do jornal e,

sobretudo, seguranrya na informary80 dos fatos.

A comunicaryao jornalistica se limita a informaryao. Se ultrapassarmos 0

fato, dando-I he a nossa pr6pria interpretaryao e a nossa opiniao a respeito dele,

estamos fugindo da comunicary8o jornalistica. Ha que se limitar a informaryao. 0jornalismo nao tem par que e nao deve sair do campo da informaryao. Se um livro

cai no chao, faz barulho e acorda 0 velhinho que dormia, 0 fato, para ser noticia,

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deve ser narrado simplesmente. Nao importa a causa porque 0 livra caiu, se naD a

conhecemos. NaG devemos arriscar quaisquer suposi9oes a respeito dessa

causa. Se uma busca de informa<;:6es nos leva a encontrar a causa da queda do

livre, esse dado deve ser acrescentado a natieia, para enriquece-Ia, mas nada

devemos concluir a respeito.

o jornalismo e antes de tudo descritivo. E a representac;:ao verbal de

objeto sensivel, atraves da indica<;:c3odos seus aspectos rna is caracteristicos, dos

pormenores que 0 individualizam, que 0 distinguem. Oescrever uma cena de rua,

D desenrolar de uma conferencia, uma batalha da guerra e muitos Qutros fatas da

realidade. E procurar oferecer urn retrata fiel do que S8 descreve, sem

interferencia de nossa propria personalidade nem procurando, muito ao nosso

gosto, destacar um elemento e coloca-Io em posiyao que so deturparia a

entendimento do fato par parte do leitor. Narra-se a fato descrevendo a cena. A

melhor narrayao e a que usa as elementos de forma cronologica.

A descri980 do fato, pelo reporter, e uma descri980 que se assemelha ado tecnico au a do cientista: nao pode ser enxertada por observa90es, que

prejudicam a narra9ao. 0 ponto de vista nao pode estar presente na noticia. Ao

narrar a fato, a reporter deve deixar de lada a seu ponto de vista pessoal. 0 ponto

de vista e uma atitude de predisposi980 afetiva diante do fata. Essa atitude pode

ser prejudicial a verdade. Par isso, a jornalismo obriga a reporter a urn trabalho

ingrato, 0 de captar tudo a respeito de um lato e levar isto a reda9ao, onde cada

detalhe e selecionado. 0 redator, a quem cabe escrever a notlcia, sabera

proceder a sele9aO, e a fara dentro do espirito da informa980, evitando tanto

quanta passivel deixar marcada a sua personalidade na noticia que aprova au

reescreve.

Par fim, a comunica980 jornalistica informa, orienta e df:l entretenimento.

o seu objetivo e ajudar 0 desenvolvimento do meio social. Par isso a seu

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fundamento e a mensagem. Desta forma, infarma-se aquila que e utH para a

camunidade.

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A IMPRENSA COMO CENARIO

No momenta em que a imprensa brasileira se afirmou, as folhetins da

Franc;a nela se aclimataram, floresceram e encontraram uma feiC;Elode tal maneira

pr6pria, que fez muitos criticos contemporaneos afirmarem que a cr6nica e um

fen6meno literario brasileiro.

Pelo tom coloquial, temas do dia-a-dia e alguma poesia, esses escritoresconseguiram uma enorme popularidade. A combinac;ao de tudo isso fez comque estudiosos indagassem se nao havia nascido um novo genera litera rio,genuinamente brasileiro, carioca da gem a, como a Bossa Nova na musica.(SABINO, Mario - Cr6nica em crise -Istoe Senhor\1117 - 20\02\91 pag. 56).

Do Romantismo ao Modernismo, e mesma ate nossos dias, varios

escritores encontraram nos jornais e revistas urn espac;o de adestramento e

profissionalizaC;Elo, al8m da intima e gratificante comunicac;ao com a publico.

Muitos desses escritores, mais conhecidos como poetas, contistas au

romancistas, fizeram da cr6nica urn gE§nero subsidiario em suas obras, como

Machado e Bilac, no sEkula passado, au Mario de Andrade, neste seculo; outros,

ao contrario, emergentes do pr6prio jornalismo, encontraram no genera urn fazer

estetico e um estilo pessoal que os guindaram a categoria de artistas da palavra,

transcendendo a momenta efemero e a espac;o descartavel das paginas do jornal,

como foi a caso, em nosso tempo, de Rubem Braga; oulros, permanecendo,

embora, despretensiosamente, no ambito jornalistico do consumo imediato,

fizeram a registro incomparavel de cenas, tipos e costumes, f1agrando 0 cotidiano

do pais num determinado momenta historico.

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A CRONICA: LlTERATURA OU JORNALISMO?

Inserido numa sociedade em que a divisao de trabalho ainda nao atingiu

urn nivel ideal, aborrece ao intelectual ser coagido a dispensar seu esforgo em

beneficia da sobrevivencia imediata, 0 que, para ele, S8 afigura como atividade

conspurcat6ria. Sua liberdade de criaryEio S8 ve amea<;:ada nao 56 pela premencia

do tempo, que nao Ihe permite trabalhar 0 texte, como tambem pelo inevitavel

condicionamento da materia frente a direc;ao do jornal e frente ao 905tO do grande

publico. A respeito da liberdade de criar Luzia de Maria nos diz:

o nosso e urn tempo de divisas, de separar.;:oes, de descontinuidade, derapidez, de fragmentarismo. Estamos no reino da racionalidade capitalista que,em nome da eficiemcia e do lucro, instaura a pressa e fragmenta 0 processo detrabalho, roubando a cada trabalhador 0 controle de sua propria atividade,tirando de cada um 0 gosto de apreciar sua propria criac;:ao. Porque nao hacriac;:ao.Perde-se 0 prazer do trabalho. Onde, par exemplo, em pieno sistemaindustrial, em que um trabalhador apenas manipula "certa maquina", produtorade "certa pec;:a"que associada a centenas de outras chegara a compor umtodo, onde nesta realidade, 0 prazer de um artesao mirando, realizando, 0 frutode usa criac;ao? (MARIA, Luzia de 1987 - pag. 84,85)

Quanto ao trabalho intelectual a direc;ao do jomal, enquanto mascara

atenuada ou nao de patronato, destina-Ihe um espac;o, no qual 0 tratamento

dispensado ao ass unto escolhido sera sempre "observado" para que nao se

rompam normas tacitas de convivencia. 0 intelectual sentindo-se, no fundo,

degradado, por ter de vender tao indiscretamente sua forya de trabalho, 0

intelectual tenta escamotear a situac;ao, apelando ora para a ironia, ora

justificando seu labor jornalistico como exercicio estilistico, balao de ensaio para a

"grande obra luIura" Para a grande publico, par outro lado, despreocupado

quanto a problematizac;oes da realidade ou quanto a virtuosismos estilisticos, a

cr6nica funciona como oasis ludico em meio a aridez das noticias secas.

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Etimologicamente, cr6nica e materia adstrita ao tempo enquanto

narrativa factual. Imbricada no tempo historico, ela atesta os fatos, deformados

segundo a contingencia do narrador.

Ultrapassada como relato historico, ela metamorfoseou-se, instalou-se

no periodismo, sem perder, entretanto, na essencia, 0 travo fundamental de

depoimento sobre 0 tempo circundante. Nesta acepvao, constitui-se a cr6nica um

repositorio precioso para se avaliar as concepvoes de seu autor perante 0 mundo

que 0 rodeia, pois seus prejuizos, decorrentes de uma visao de mundo que se

estratifica, afloram com espontaneidade ou se deixam surpreender.

E nao e somente desta maneira que 0 tempo opera sobre a cr6nica. Hatambem, em outra dimensao, sua forva constritora funcionado em duplice direvao:

a que obriga a concisao e a brevidade e a que coage 0 autor a uma elaborat;ao

relativamente despoliciada, na medida em que e materia para 0 jornal do dia

seguinte. Assim, 0 cronista se VEl nas frases de Vinfcius de Maraes que diz:

Escrever prosa e uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista;nao a prosa de um ficcionista, na qual este e levado melD a tapas pelaspersonagens e situag6es que, azar dele, criou porque quls. (MORAIS, Viniciusde, 0 exercicio da cronica, 1991, pag.7).

Desta forma, vemos que, embora ja nao mais conscientemente

destinada a ser testemunho historica, a cr6nica ainda sofre as vicissitudes

temporais: enquanta interpretat;ao parcial de um fato; enquanto materia breve;

enquanto urgencia de elaboravao.

E esta exatamente nesta urgencia, que torna vulneravel a reflexao critica

eo estilo, um filao que nos parece fecunda.

Antes porem de enveredarmos por esse caminho aparentemente

promissor, convem intercalar um parentese explicativo.

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a cronica de fei(fao moderna, via de regra publicada em jornal au revista emuitas vezes reunida em volume, concentra-se num acontecimento diario quetenha chamado a aten<;:8odo escritor, e semelha a primeira vista naoapresentar carater proprio au limites muito precisos. Na verdade, classifica-secomo expressao litera ria hibrida, au multipla, de vez que pode assumir a formade alegoria, necrologia, entrevista, invectiva, apelo resenha, confissao,mon6logo, dialogo, em torna de personagens reais e\ou imaginarias, etc.(MOISE'S, Massaud, 1997 - pogo 132, 133).

o enfado da crltica diante da cr6nica aparece-nos como resultado de

uma distorryao de raiz.

Esquecida de que 0 meio de divulgagao preponderante da cr6nica e 0

peri6dico de consumo rapido e atrelada ao fato de que a palavra Ihe serve como

materia-prima, tanto quanto na literatura, a critica, habituada a discutir, entre

outras coisas, a perenidade de um texto, esquece-se de que se 0 jornalismo tem a

fun<;:aoprecfpua de informar, a literatura desconhece fun<;:oes vetoriais.

o equivoco critico nasce na confusao de considerar apenas a materia-

prima verbal, enquanto forma construida e organizada, sem atentar para 0 fato de

que Jornalismo e Literatura sao entidades distintas, cujo unico ponto de contato e

o emprego da palavra.

Como se pode julgar a cr6nica jornalistica em confronto com 0 texto

poetico, sem evidente perda para a primeira? Ou, de outra forma: e Heito

confrontar bale e ginastica ritmica, discutir a superioridade de um sobre ~Utro,

ainda que 0 Movimento Ihes sirva de elemento basicamente constitutivo?

Se 0 critico busca aferir a eficiencia da literariedade de um texto poetico,

nao e justo que ele 0 fa<;:a em uma coluna jornalistica que ja nasceu

descomprometida com 0 futuro, que nao visa ao nivel da poetieidade, mas 0 da

referencialidade, sobretudo.

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Ora, acreditamos que resida exatamente na distin(f80 entre as func;oes

da linguagem, segundo proposta jakobsoniana, 0 n6 da questao. Isto e, cumpre

considerar a primazia de uma ou Dutra func;ao referencial ou poetica, na analise

do discurso verbal. Se diante de urn texto jornalistico e 6bvio que dispensaremos

maior cuidado para sua eficiencia referencial; se diante de urn texto litera rio, para

sua eficie!ncia de poeticidade.

A func;ao cardeal de urn peri6dico e a de informar, par meio de uma

linguagem univoca, sem margem para a ambiguidade. E, dentro das paginas de

um jarnal, pejadas de informac;6es rigorosas, a cr6nica funcionaria como

descanso para 0 leitof, na medida em que ela S8 constr6i a partir de urn evento

qualquer, porem moldada numa linguagem que tende para a ambigOidade, tende

para a plurivocidade.

Assim, perante uma constru<;:ao verbal, cujos limites ro9am pelo

Jornalismo e pela Uteratura e que por essa mesma raz80, embora estampada em

paginas efemeras, e passivel de participar em livro.

Transcender 0 fato denunciado no dia anterior, interpreta-Io dentro de

um contexto maior, indicar-Ihe as implicac;:6es latentes e sintomaticas, vasculha-Io

em sua essencia requer liberdade verbal, a cronica condensa a tensao narrativa

exemplar, cuja fidelidade ao hist6rico est'; constantemente amea,ada pela

liberdade criativa. Diante do cronista, 0 fato se desfolha, se desentra e,

eventualmente, 5e torn a tao ambiguo quanto a pr6pria linguagem que 0 moldou.

Se a literatura nao precisa, em principio, de nenhum compromisso com a

realidade hist6rica, 0 mesmo ja nao pode ocorrer com a cronica, cujo motor de

arranque e 0 cotidiano.

Bern, se nao devemos buscar exclusivamente a feic;:ao de literariedade

no discurso cronistico, de que vale, entao, nos determos nele? Qual sua

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importancia dentro dos estudos de literatura? Por que na~ 0 deixarmos para as

estudiosos do Jornalismo?

Linhas antes, ponderamos a respeito da pressao do Tempo que preside

a elabora9ao de uma cronica. Ora, essa premencia que fustiga 0 cronista ( que

dela vive lamentando~se) nao Ihe permite urn policiamento rigor050 do texto, nem

mesma uma reflexao prolong ada. As ideias que, visceralmente, fazem parte de

sua visao do mundo, brotam, portanto, com naturalidade e S8 despejam sabre 0

papel, sem a concurso retificador da auto censura. Com a desnudamento do autor

perante a publico e a partir de urn exame severo de sua produ9ao, perguntamo-

nos S8 na~ seria passive I a levantamento de determinadas linhas-mestras que

informam sua ideologia, enquanto tomada de posi9ao filosofica, politica estetica,

em face da realidade? No seu relativo a vontade, na~ seria a cr6nica urn veiculo

generoso para identificar as matrizes ideol6gicas que se ocultam sob sua ret6rica?

Per outro lado, a exumac;:ao e 0 estudo de extensa colaborac;:ao jornalistica nao

poderia servir como auxiliar no sentido de consolidar, retificar ou alterar 0 perfil

intelectual do escritor ja estabelecido?

Quando Joao do Rio, na abertura do seculo, comec;:ava a publicar na

Gazeta de Noticias suas cronicas referentes as religioes do Rio de Janeiro, muita

gente duvidou entao da veracidade do que era revelado num estilo agil, vivo,

trepidante, num processo novo de apresentar a informac;:ao. Abria-se, assim, na

imprensa brasileira, uma maneira nova de informar, que nao se imp6s, e que,

imprudentemente, serviu como mais urn argumento para desacreditar 0 cronista

junto aos jornalistas e junto aos escritores. Ambiguamente, 0 autor nao se situava

nem em um campo, nem em outro. Verificar 0 fato "in loco" e, depois, conferir-Ihe

uma roupagem que tendia para a literatura desapontava as expectativas

estabelecidas e criava a confusao.

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As reportagens de Joao do Rio, como a apresentada a seguir "A Fame

Negra" publicada na Gazeta de Noticias do Rio de Janeiro em 22\06\1904,

inserida no volume recentemente editado pela Companhia das Letras, A Alma

Encantadora das Ruas, selec;c3o do professor Raul Antelo, configura-s8 em uma

mistura de jornalismo e literatura. 0 autor trabalha com personagens reais como

exige a boa imprensa, porem utiliza recursos rigorosamente literarios na

reprodUl;:ao dos cenarios de sua reportagem, humanissima e recheada de estilo.

De madrugada, escuro ainda, ouviu-se 0 sinal de acordar. Raros ergueram-se.Tinha havido serao ate a meia noite. Entao, a feitor, um homem magro,corcovado, de tamancos e bei90s fines, a feitor, que ganha duzentos mil reis eacha a vida urn paraiso, 0 Sr. Correia, entrou pelo barrado onde a manada dehom ens dormia com a roupa suja e ainda empapada do suor da noite pass ada.--- Eh! La! rapazes, acorda! Quem nao quiser, roda. Eh! La! Fora!Houve urn rebulic;o na furna sem ar. Uns sacudiam os outros amedrontados,com os olhos so a brilhar na face cor de ferrugem: outros, prostrados, nadaouviam, com a boca aberta, babando.---6 Joao, olha 0 cafe ..--- Olha 0 cafe e olha 0 trabalho! Ai, raios me partam! Era capaz de dormir ateamanha.Mas, ja na luz incerta daquele quadrilatero, eles levantavam-se impelidos pelanecessidade como as feras de uma menagerie ao chicote do domad or. Naolavaram 0 rosto, nao descansaram. Ainda estremunhados, sorviam uma aguaquente, da cor do po que lhes impregnava a pele, partindo 0 pao com escarasda mesma fuligem metalica, e poucos eram os que se sentavam, com aspernas em compasso, tristes.Estavarnos na ilha da ConceiC;ao, no trecho hoje denominado -- a Fome Negra.Ha ali urn grande deposito de manganes e, do outro lado da pedreira quesepara a ilha, um deposito de carvao. Defronte, a algumas brac;:adas de remo,fica a Ponta da Areia com a Cantareira, as obras do porto fechando urn largotrecho coalhado de barcos. Para a1E~m,no mar tranqOilo, outras ilhas surgem,onde 0 trabalho escorcha e esrnaga centenas de homens.()

Apelar para a hiparbole, para a metonimia, para a metafora, artificios

estilisticos que vivificam e encorpam a relato, nao era usual numa apoca em que a

noticia, desfibrada e neutra, mostrava-se no jornal. Rejeitada pelos

contemporaneos durante largo tempo, a lic;:ao de Joao do Rio nao seria enterrada

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inteiramente. Hoje em dia, na imprensa brasileira mais requintada, assiste ao

renascimento dessa tendencia que nao ignora nem despreza a sofistic8c;ao

estilistica para aquecer e condimentar a informattao.

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CONCLUSAO

A cr6niea S8 mostra ambigua, transitando entre 0 Jornalismo e a

literatura. Ao longo da sua historia, foi S8 afastando cada vez mars da inten~ao de

informar e comentar, para fiear com a de divertir. A sua linguagem tornou·se mais

leve, mais descompromissada. Nao esta, tambem, preocupada em oferecer urn

ceninio excel so, numa revoada de adjetivos e periodos can dentes, peg a 0 miudo

e mostra nele uma grandeza, uma beleza au uma singularidade insuspeitadas. A

craniea S8 mostra amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e

tambem nas suas formas mais fantasticas, sobretudo porque quase sempre utiliza

o humor.

Contudo, a aparente simplicidade nao quer dizer desconhecimento do

labor artistico. A cronica materializa os brevissimos instantes da vida, onde se

oculta a complexidade das nossas dares e alegrias, prategidas pela mascara da

banalidade. Constitui-se urn claro caminho, atraves do qual 0 leitor reencantra a

prazer da leitura.

Assim sendo, sabemos que os textos escritos para 0 jornal morrem

automaticamente a cad a dia, substituidos por outros, que exercem identica func;:ao

e conhecem igual destino: 0 esquecimento.

Quem se disp6e a dar conhecimento dos seus escritos literarios em

jornal, sa be que 0 leitor habitual pode nao conceder mais atenc;:ao aos seus textos

que as noticias. Aqueles que escrevem para 0 jornal tem pleno conhecimento do

carater perecivel do jarnal, que ao fim do dia seu texto podera estar esquecido.

A cr6nica e uma narrativa curta por excelencia, uma "prosa fiada", como

dizia Vinicius de Moraes, mas que recebe um tratamento literario, mesmo que nao

seja considerado ficcional. Todavia, merece a atenc;:ao que Ihe vem sendo

dispensada ultimamente nao s6 porque apresenta qualidades literarias

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apreciaveis mas porque, e sobretudo, busea subtrair-se a fugacidade jornalistica

assumindo a perenidade do livre.

A croniea que e escrita para 0 jarnal difere conceitualmente da materia

jornallstica. Mesma fazendo do cotidiano a sua materia prima, nao visa a mera

informat;:ao. 0 seu objetivo, declarado ou nao, reside em mostrar aque!es

instantes onde S8 oGultam a compJexidade humana. E, desta forma, muitas vezes

transcendem 0 nossa dia-a-dia alcanyando extratos mais elevados da vida que

deixamos escapar.

o cronista naD quer ser rep6rter ou urn historiador menor, mas sim urn

poeta ou ficcionista do cotidiano e tirar dos acontecimentos a fantasia latente.

Neste processo 0 cronista difere dos autores de fic9ao haja vista a sua imediata

reac;ao diante do acontecimento, nao dando margem para que 0 tempo mitifique 0

acontecido.

A cronica e ambigua ao oscilar entre a reportagem e a literatura, entre 0

relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento banal e a recriay2lo do

cotidiano por meio da fantasia. No primeiro caso a cronica envelhece como 0

jornal e fica condicionada ao seu cicio de vida, ou seja, 24 horas. No segundo

caso a cronica se livra da condiC;ao jornalistica ao se utilizar dos ingredientes

metaf6ricos, hiperboles, metonimia e artificios estilisticos, ressaltando sobretudo 0

humor no texto. A croniea traz em sua estrutura elementos jornalisticos e literarios

tendendo para um lado ou para outro de acordo com os recursos utilizados pelo

escritor.

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