A natureza comportamental da mente

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  • 1. A NATUREZA COMPORTAMENTAL DA MENTE BEHAVIORISMO RADICAL E FILOSOFIA DA MENTE Diego Zilio

2. A natureza comportamental da mente 3. Conselho Editorial Acadmico Responsvel pela publicao desta obra Dr. Ricardo Pereira Tassinari (Coordenador) Dr. Antonio Trajano Menezes Arruda Dra. Cllia Aparecida Martins 4. Diego Zilio A natureza comportamental da mente Behaviorismo radical e filosofia da mente 5. 2010 Editora UNESP Cultura Acadmica Praa da S, 108 01001-900 So Paulo SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br [email protected] Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (UNESP) CIP Brasil. Catalogao na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Z65n Zilio, Diego A natureza comportamental da mente : behaviorismo radical e filosofia da mente / Diego Zilio. So Paulo : Cultura Acadmica, 2010. 294p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7983-090-7 1. Behaviorismo (Psicologia). 2. Filosofia da mente. 3. Comportamento. I. Ttulo. 10-6450. CDD: 150.1943 CDU: 159.9.019.4 6. Aos meus pais, Adauto & Sandra, por serem responsveis pelo melhor ambiente que um filho poderia desejar. 7. Agradecimentos Gostaria de agradecer ao professor Jonas Coelho, por me orientar durante a pesquisa de mestrado que originou este livro. Suas ponderaes acerca da atividade filosfica e seus comentrios sobre o meu trabalho foram imprescindveis. Ao professor Kester Carrara, por sua orientao segura ao longo do meu percurso pela graduao, por suas lies de parcimnia e perspiccia, por me acompanhar, na condio de coorientador, at o mestrado, e por me ensinar o que o behaviorismo radical. Tambm gostaria de agradecer professora Tereza Maria de Azevedo Pires Srio, pelos seus comentrios valiosos sobre este tra balho e por encorajar a ideia de publiclo como livro. Ao professor Joo de Fernandes Teixeira, pelos seus aponta mentos sobre este trabalho e tambm pelas nossas estimulantes conversas sobre filosofia da mente, behaviorismo radical e cincia cognitiva que ocorrem desde quando iniciei meus primeiros es tudos nessas reas. minha famlia, especialmente ao meu pai, Adauto, minha me, Sandra, e meu irmo, Pedro. Este livro no teria sido possvel sem o contexto familiar fornecido por eles. Finalmente, gostaria de agradecer Nanda, pelo companhei rismo, pelas conversas, pela ajuda e pela pacincia. Obrigado. 8. O que ns vemos das cousas so as cousas. Por que veramos ns uma cousa se houvesse outra? Por que que ver e ouvir seria iludirmonos Se ver e ouvir so ver e ouvir? O essencial saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se v, E nem pensar quando se v, Nem ver quando se pensa. Mas isso (tristes de ns que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender. O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) 9. Sumrio Introduo 13 PRIMEIRA PARTE Filosofia da mente e behaviorismo radical 21 1Filosofia da mente 23 2Fundamentos do behaviorismo radical 63 SEGUNDA PARTE A teoria behaviorista radical da mente 141 3A mente comportamento 143 4 Behaviorismo radical e as teorias da mente 181 5 Sobre a natureza do comportamento 223 6Consideraes finais 253 Referncias bibliogrficas 277 10. Introduo J que sabem to bem o que se encontra fora de vocs, com certeza sabem ainda melhor o que possuem por dentro. Digamme o que a sua alma e como constroem as suas ideias. Os sbios falaram todos ao mesmo tempo, como antes, porm foram de diferentes opinies. O mais velho citava Aristteles, outro pronunciava o nome de Descartes; este falava em Male branche, aquele em Leibniz, um outro em Locke. Um velho pe ripattico disse em voz alta com toda a segurana: A alma uma entelquia, razo pela qual tem o poder de ser o que . o que declara expressamente Aristteles, pgina 633 da edio do Louvre. [...] No entendo muito bem o grego disse o gigante. Nem eu tampouco replicou o inseto filosfico. Ento por que tornou o siriano cita um certo Aristteles em grego? que respondeu o sbio convm citar aquilo de que no se compreende nada na lngua que menos se entende. O cartesiano tomou a palavra e disse: A alma um esprito puro. [...] Mas que entende por esprito? Bela pergunta! exclamou o raciocinador. No tenho a mnima ideia disso: dizem que no matria. Mas pelo menos sabe o que matria? 11. 14 Diego Zilio Perfeitamente respondeu o sbio. Por exemplo, esta pedra cinzenta e possui determinada forma, tem as suas trs dimenses, pesada e divisvel. Pois bem disse o siriano , e essa coisa que lhe parece divi svel, pesada e cinzenta, saber dizerme exatamente o que ? Voc v alguns atributos; mas o fundo da coisa, por acaso, o co nhece? No respondeu o outro. Ento no sabe o que matria. Em seguida, o sr. Micrmegas, dirigindo a palavra a outro sbio, a quem equilibrava sobre o polegar, perguntoulhe o que era a sua alma, e o que fazia. Absolutamente nada respondeu o filsofo malebran chista , Deus que faz tudo por mim. [...] o mesmo que se voc no existisse tornou o sbio de Srio. E voc, meu amigo disse a um leibniziano que ali se encontrava , o que vem a ser a sua alma? Ela respondeu o leibniziano um ponteiro que indica as horas, enquanto o meu corpo toca o carrilho; ou, se quiser, ela quem toca o carrilho, enquanto meu corpo marca a hora. [...] Um minsculo partidrio de Locke estava ali perto; e quando afinal lhe dirigiram a palavra, respondeu: Eu no sei como que penso, mas sei que nunca pude pensar sem a ajuda dos meus sentidos. No duvido que existam substncias imateriais e inteligentes; mas tambm no nego que Deus possa transmitir pensamento matria. Venero o poder eterno, no me cabe limitlo; nada afirmo, contentome em acreditar que existem mais coisas possveis do que julgamos. [...] O siriano retomou os pequenos insetos; faloulhes de novo com muita bondade [...]. Prometeulhes que escreveria um belo livro de filosofia, com letras bem midas, para uso deles, e que, nesse livro, veriam o fim de todas as coisas. De fato, entregou lhes esse volume, que foi levado para a Academia de Cincias de Paris. Porm, quando o secretrio o abriu viu apenas um livro em branco. (Voltaire, 1752/2002, p.1268) 12. a natureza comportamental da mente 15 Micrmegas era um gigante do planeta Srio. De tamanho im pensvel, possua mais de mil sentidos e sua idade beirava os qui nhentos anos. Ao longo de sua vida estudou filosofia e cincia. Durante suas viagens pelo espao se deparou com o planeta Terra e seus nfimos moradores, travando contato especial com os seres humanos. Nesse encontro, Micrmegas fez indagaes sobre a na tureza da mente desses seres diminutos. interessante notar que o viajante, em toda a sua magnitude predicativa, detmse principal mente nesse mistrio. O conto deVoltaire exemplifica, assim, uma das questes essenciais da filosofia e da cincia. No entanto, qual seria o sentido do livro em branco de Micrmegas? Servindo aos propsitos deste trabalho, uma interpretao possvel que o gi gante pretendia dar uma lio de parcimnia. Se h um livro que contm a verdade ltima de todas as coisas e no nos cabe aqui negar ou aceitar que esse livro exista , ainda no h nada para ser escrito nele sobre a natureza da mente. Nesse contexto, as pginas em branco do livro de Micrmegas tm significado especial, pois mostram que no h nenhum dado inquestionvel sobre o assunto. Essa constatao no sugere, porm, que devamos parar de fazer perguntas. De fato, questionamentos sobre a natureza da mente e sobre a sua relao com o mundo tm ocupado cada vez mais a agenda de pesquisa de psiclogos, neurocientistas e filsofos que pretendem preencher, cada um sua maneira, as pginas do livro de Micrmegas. Seria a mente a prova da existncia da alma imaterial sobre a qual diversas religies falam? Seria a mente cons tituda pelo crebro, mas ao mesmo tempo detentora de proprie dades psicolgicas irredutveis s suas caractersticas fsicas? Seria a mente nada alm do crebro e, portanto, algo passvel de explicao completa pelas neurocincias? Seria a mente uma iluso lingus tica? Enfim, o que seria a mente? Essas questes so fundamentais para qualquer teoria que pre tenda fornecer explicaes sobre a mente humana inclusive para o behaviorismo radical. Entretanto, por ser uma filosofia da cincia do comportamento e no uma teoria da mente, o behaviorismo ra dical no atua necessariamente no mesmo mbito de discusso da 13. 16 Diego Zilio filosofia da mente. Mas no devemos abandonar, por conta desse fato, a possibilidade de coloclo nesse contexto. O presente livro pretende fazer justamente isto: delinear uma possvel interpretao do behaviorismo radical como teoria da mente, o que significa, em outros termos, contextualizlo no mbito das discusses da filo sofia da mente. Em que implica, exatamente, essa contextualizao? Possivel mente existem muitas diferenas entre o behaviorismo radical e as teorias que compem a filosofia da mente, inclusive diferenas de agenda: o primeiro surge como uma proposta de filosofia da cincia do comportamento, e as segundas foram desenvolvidas para tratar de questes que permeiam a filosofia desde o seu surgimento entre os gregos. O sentido da presente contextualizao, portanto, sim plesmente o de tratar de alguns temas da filosofia da mente a partir da ptica behaviorista radical, mas sempre tendo em vista que esse trabalho no esgotar todos os problemas e todas as questes que formam essa subdiviso da filosofia. Pretendese neste livro contextualizar o behaviorismo radical na filosofia da mente por meio de trs atividades. A primeira delas consiste em apresentar uma resposta possvel questo o que a mente?.1 A segunda delas, por sua vez, demanda o tratamento de outra questo, a saber, qual a natureza da mente?. primeira questo subjaz o problema de se delimitar que coisas ou fenmenos so considerados mentais. Tratase, portanto, da busca de uma de finio conceitual da mente. J a segunda questo endereada ontologia do mental, isto , s caractersticas essenciais sua exis tncia. Em seu turno, a terceira atividade no possui uma questo especfica, mas nem por isso deixa de ser importante: consiste na anlise de algumas teses, problemas e questes apresentadas pelas teorias da mente atravs do ponto de vista behaviorista radical. 1. importante notar que perguntas do tipo o que ...? podem ser interpre tadas como ontolgicas. Todavia, elas tambm podem indicar questiona mentos puramente conceituais. Neste livro, a pergunta o que a mente? deve ser interpretada tendo em vista esse segundo sentido. 14. a natureza comportamental da mente 17 Esperase que essas atividades representem, ao menos, um passo em direo construo de uma teoria behaviorista radical da mente. O livro est dividido em duas partes. A primeira delas, Filosofia da mente e behaviorismo radical, constituda por dois captulos. O captulo 1 fornece uma breve apresentao das principais teorias da mente que figuram nas discusses da filosofia da mente contem pornea. Essa apresentao constitui a primeira seo do captulo (seo 1.1), na qual se discorre sobre o dualismo cartesiano (sub seo 1.1.1); sobre o behaviorismo filosfico apresentado por Ryle, Carnap e Hempel (subseo 1.1.2); sobre as teorias centralistas, exemplificadas pela teoria da identidade, pelo funcionalismo da mquina e pelo funcionalismo causal (subseo 1.1.3); sobre o eli minativismo (subseo 1.1.4); e sobre as teorias do aspecto dual, ca racterizadas normalmente como dualistas de propriedade (subseo 1.1.5). Essa seo serve a dois propsitos. O primeiro o de estabe lecer os parmetros da discusso subsequente entre behaviorismo radical e as teorias da mente. O segundo o de fornecer dados a partir dos quais seja possvel responder questo referente defi nio da mente, assunto que ser tratado na seo seguinte (seo 1.2). A estratgia simples: partindo das teorias da mente, procedese localizao dos termos e conceitos que normalmente levam a alcunha de mental. Esse mapeamento possibilita uma diviso em cinco dimenses conceituais que definem a mente: (1) pensamento; (2) intencionalidade e contedos mentais; (3) percepo, imagem mental e sensao; (4) conscincia; e (5) experincia. Por fim, o captulo 1 encerrado com uma breve seo na qual a possibili dade de se desenvolver uma teoria behaviorista radical da mente analisada. Todavia, para que seja possvel cumprir o objetivo deste livro e, ao mesmo tempo, para diminuir as chances de deslizes interpreta tivos, preciso percorrer um caminho pelos fundamentos do beha viorismo radical. Para tanto, a primeira seo do captulo 2 apresenta uma proposta de definio do comportamento (seo 2.1). A segunda seo trata dos fundamentos filosficos, cientficos e metodolgicos que 15. 18 Diego Zilio nortearam a construo da teoria do comportamento proposta pelo behaviorismo radical (seo 2.2). A terceira seo dedicada aos dois principais tipos de relao comportamental presentes na anlise behaviorista radical: o respondente e o operante (seo 2.3). A quarta seo tem como foco o comportamento verbal (seo 2.4), pea-chave para entender o posicionamento behaviorista radical sobre os fen menos ditos mentais. Pelos mesmos motivos, outro assunto im prescindvel a diferena proposta por Skinner entre comportamento governado por regras e comportamento modelado pelas contingncias, tema da seo seguinte (seo 2.5). O captulo 2 finalizado com a apresentao da teoria do conhecimento e da teoria dos eventos priva dos que, em conjunto, constituem o mago da anlise behaviorista radical sobre o mundo privado da mente (seo 2.6). Em posse dos fundamentos do behaviorismo radical (captulo 2), das principais teorias que constituem a filosofia da mente (seo 1.1) e das dimenses conceituais definidoras do mental (seo 1.2), tornase possvel caminhar para a segunda parte do livro, A teoria behaviorista radical da mente, que constituda por quatro cap tulos. O captulo 3 oferece uma resposta questo conceitual da mente O que a mente? , fixando, assim, o primeiro ponto de contato entre behaviorismo radical e filosofia da mente. O captulo 4, por sua vez, representa o segundo passo em direo contextua lizao do behaviorismo radical na filosofia da mente. Nesse cap tulo, algumas caractersticas centrais das teorias da mente expostas no captulo 1 so avaliadas pela ptica behaviorista radical. Primei ramente, so estabelecidas as diferenas entre a teoria do significado behaviorista radical e behaviorista lgica e as consequncias que essas divergncias acarretam em suas propostas de cincia (seo 4.1). Alm disso, discorrese a respeito do papel do vocabulrio dis posicional na explicao do comportamento (seo 4.1). Em relao ao dualismo cartesiano, o foco de anlise a tese do conhecimento privilegiado que cada sujeito supostamente possui de sua prpria mente, um dos principais argumentos dualistas na defesa da natu reza imaterial da mente (seo 4.2). J as teorias centralistas incitam questes relativas s qualidades das experincias e ao processo por 16. a natureza comportamental da mente 19 detrs de suas qualificaes. Quais so as condies requeridas para que uma sensao dolorosa seja uma sensao dolorosa? E o que nos leva a qualificar uma sensao como dolorosa? Pos sveis respostas behavioristas radicais a essas questes so apresen tadas na seo 4.3. Em seu turno, o eliminativismo traz consigo dois temas que merecem anlise: qual o posicionamento behavio rista radical acerca da psicologia popular? Seria o behaviorismo ra dical adepto do projeto reducionista (seo 4.4)? Finalmente, a ltima seo dedicada ao argumento do conhecimento exemplifi cado pelo caso hipottico da cientista Mary. As questes que se co locam so as seguintes: Mary aprendeu algo de novo quando saiu do quarto? Se sim, o que isso significa (seo 4.5)? Os captulos 3 e 4 englobam dois passos importantes e impres cindveis para a contextualizao do behaviorismo radical na filo sofia da mente. Neles esto contidas possveis interpretaes behavioristas radicais dos fenmenos classificados como mentais e das principais teses e argumentos das teorias da mente. No en tanto, ainda est faltando uma resposta behaviorista radical questo ontolgica da mente: qual a natureza da mente? Como ve remos ao longo do livro, para o behaviorismo radical, a mente comportamento. Sendo assim, a questo ontolgica se torna a se guinte: qual a natureza do comportamento? O captulo 5 dedi cado a esse problema. Como se trata de uma questo ontolgica e, por consequncia, metafsica, o primeiro passo avaliar em que medida o behaviorismo radical pode ser considerado uma filosofia da cincia do comportamento sem metafsica (seo 5.1). Com essa questo esclarecida, o passo seguinte determinar que posio me tafsica sobre a natureza do comportamento coerente com o beha viorismo radical (seo 5.3). Mas, para chegar a esse ponto, antes preciso buscar indcios dessa metafsica nas obras em que Skinner discorre, mesmo que de maneira indireta, sobre a importncia da substncia na cincia do comportamento (seo 5.2). Finalmente, o captulo 6 dedicado apresentao de algumas consequncias decorrentes da teoria behaviorista radical da mente. Especificamente, h certos temas da filosofia da mente que s po 17. 20 Diego Zilio deriam ser discutidos com mais segurana aps termos percorrido todo o caminho dos captulos anteriores, e tratar desses temas jus tamente a funo do captulo final deste livro. A primeira e a se gunda consequncias decorrentes da teoria da mente behaviorista radical so, respectivamente, a dissoluo do problema mentecorpo e a dissoluo do problema da causalidade mental (sees 6.1 e 6.2). A terceira consiste na negao do fisicalismo, ao mesmo tempo que se sustenta o monismo fisicalista (seo 6.3). A quarta con sequncia implica a retomada do problema da cientista Mary, mas que agora serve ao propsito de mostrar que os limites do conheci mento cientfico to bem expostos pelo exemplo no decorrem da falha da anlise objetiva da cincia, mas sim do simples fato de que o conhecimento cientfico no um reflexo do fenmeno estudado. Dessa forma, as anlises objetivas da mente no devem ser des cartadas por conta de um compromisso que elas no pretendem as sumir ao menos no pelo ponto de vista behaviorista radical (seo 6.4). A quinta consequncia a eliminao dos qualia en quanto propriedades qualitativas das experincias. Na teoria behaviorista radical da mente assumese que existe um aspecto qualitativo do comportamento, mas esse aspecto no indica a exis tncia de propriedades qualitativas, que, enquanto tais, seriam di vergentes das categorias de substncia e de relao necessrias existncia do comportamento (seo 6.5). Por fim, o captulo 6 e, por assim dizer, o presente livro encerrase com a constatao de que possvel encontrar o lado positivo do behaviorismo radical no contexto da filosofia da mente em sua anlise alternativa da vida mental. Nesse sentido, seria impreciso dizer que o behaviorismo radical apresenta uma teoria do comportamento sem mente. Em contrapartida, haveria tambm um lado negativo do behaviorismo radical em seu antimentalismo, fato responsvel pela sua posio bastante singular no contexto da filosofia da mente (seo 6.6). 18. primeira parte Filosofia da mente e behaviorismo radical 19. 1 Filosofia da mente 1.1 Qual a natureza da mente? 1.1.1Dualismo cartesiano Indagaes relativas mente sempre estiveram de alguma forma presentes na filosofia, mas foi principalmente com Descartes que elas tomaram a forma que despertou tanto interesse do pensa mento filosfico posterior. Todavia, o objetivo do autor no era propriamente apresentar uma teoria da mente, mas sim buscar um fundamento slido a partir do qual a construo do conhecimento livre de conjecturas e erros fosse possvel. De acordo com Malcolm (1972), Descartes pretendia estabelecer algum ponto de certeza na metafsica e, para tanto, o autor valeuse da dvida metdica, m todo que consiste em rejeitar como totalmente falso todo e qual quer conhecimento que possua o menor indcio de dvida. Tal estratgia atingiu seu pice quando Descartes presumiu que um gnio maligno dedicava todo o seu tempo para enganlo atravs dos seus sentidos, raciocnios e sonhos, o que o levou a rejeitar quase todas as coisas: Pensarei que o cu, o ar, a terra, as cores, as fi guras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos no passam de iluses e fraudes (Descartes, 1641/1999b, p.255). J sobre si mesmo afirma o autor (1641/1999b, p.255): Considerei a mim 20. 24 Diego Zilio mesmo totalmente desprovido de mos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crena de possuir todas essas coisas. Ao depararse com a negao de quase todas as coisas, Des cartes (1641/1999b), ento, avalia se tambm no havia negado a sua prpria existncia. Nesse processo, o autor encontra duas provas de que a sua existncia seria inquestionvel. A primeira consiste no fato de que, se h um gnio maligno que dedica todo o seu tempo para enganlo, ento o simples fato de ser o sujeito en ganado indica que ele alguma coisa e, assim, que ele existe. A segunda prova est no exerccio de duvidar de todas as coisas: du vidar uma forma de pensamento e, ao ser pensante, possvel duvidar de qualquer coisa menos do fato de que ele um ser pen sante. Ora, como poderamos duvidar do fato de que estamos pensando se esse ato ele prprio uma atividade pensante da qual somos conscientes e que garante nossa existncia enquanto se rea liza? E assim conclui Descartes (1641/1999b, p.262): Mas o que sou eu, ento? Uma coisa que pensa. Que uma coisa que pensa? uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que no quer, que imagina tambm e que sente. Descartes, enfim, encontra o ponto seguro e inquestionvel sobre o qual seria fundamentada a sua filosofia: a sua prpria existncia enquanto ser pensante. Aodiscorrersobreaexistnciadascoisas,Descartes(1642/1984, p.155) afirma: se algo pode existir sem uma propriedade, ento [...] essa propriedade no est includa em sua essncia. A busca da natureza essencial , portanto, a busca da propriedade que, se ausente, resulta na inexistncia. A essncia da mente seria, ento, a caracterstica essencial sua prpria existncia, a saber, o pensa mento. Foi justamente a busca de argumentos que sustentassem a ideia de que a natureza essencial da mente seria o pensamento que resultou no dualismo de Descartes.1 De acordo com Malcolm 1.Malcolm (1965) chega mesma concluso sobre esse posicionamento de Descartes. 21. a natureza comportamental da mente 25 (1965), haveria trs argumentos principais sustentados pelo autor. O primeiro deles o argumento da dvida: podemos duvidar da existncia dos nossos corpos sem entrar em contradio, mas o mesmo no ocorre quando duvidamos da nossa existncia. No possvel duvidar da prpria existncia por causa das duas provas apresentadas anteriormente: preciso que exista um sujeito para o gnio maligno enganar, e no se pode duvidar do pensamento porque duvidar pensar. Mas esses argumentos no se sustentam quando lidamos com o corpo: o gnio maligno pode nos enganar a respeito dos nossos prprios corpos, e no h contradio em du vidar da existncia do corpo, j que o corpo no pensamento. Assim, o corpo no parte da essncia da mente. A segunda prova est no argumento do conhecimento privile giado que temos de nossa prpria mente (e.g., Burge, 1988; Byrne, 2005; Curley, 2006; Kim, 1996; Shoemaker, 1988, 1990, 1994). Di gamos, por exemplo, que um sujeito S veja uma bola vermelha. Nesse caso, a bola vermelha pode ser uma iluso criada pelo gnio maligno, mas o estado mental perceptivo de ver a bola ver melha existe, pois, se assim no fosse, o sujeito S no estaria cons ciente de estar vendo a bola vermelha. Curley (2006) denomina essa caracterstica da mente de transparncia, segundo a qual a mente seria transparente no sentido de que ns teramos conhe cimento contnuo, direto e no inferencial a respeito dos nossos prprios estados mentais. Haveria outra caracterstica da mente, de acordo com Curley (2006), que contribuiria para o conhecimento privilegiado: a incorrigibilidade. A mente seria incorrigvel no sentido de que estar no estado mental M necessariamente im plica estar no estado mental M. Por exemplo, se o sujeito S cr que est vendo uma bola vermelha, ento ele necessariamente tem essa crena. A bola vermelha pode ser uma iluso criada pelo gnio maligno, mas isso no invalida a crena de estar vendo a bola vermelha enquanto estado mental. Finalmente, a terceira prova estaria nas diferenas entre as pro priedades da mente em relao s propriedades do corpo. A primeira diferena est na divisibilidade do corpo em comparao indivisi 22. 26 Diego Zilio bilidade da mente, j que no podemos conceber a metade de alma alguma, da mesma maneira que podemos fazer com o menor de todos os corpos (Descartes, 1641/1999b, p.242). A segunda dife rena que a mente seria pura, enquanto o corpo seria composto: mesmo que todos os seus acidentes se modifiquem [...] tratase sempre da mesma alma; enquanto o corpo humano no mais o mesmo pelo simples fato de haverse alterado a configurao de al guma de suas partes (Descartes, 1641/1999b, p.243). A diferen ciao entre corpo e mente fica ainda mais clara quando Descartes (1641/1999b, p.260) apresenta a sua definio de corpo: Por corpo entendo tudo o que pode ser limitado por alguma fi gura; que pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espao de tal maneira que todo outro corpo seja excludo dele; que pode ser sentido ou pelo tato, ou pela viso, ou pela audio, ou pelo olfato; que pode ser movido de muitos modos, no por si mesmo, mas por algo de alheio pelo qual seja tocado e do qual receba a impresso. A mente no ocupa lugar no espao; no limitada por uma fi gura; no movida a no ser por si mesma; e no sentida pelo tato, viso, audio ou olfato; mas conhecida diretamente. A essncia do corpo, em seu turno, seria ocupar lugar no espao, ou seja, ser extenso. Por outro lado, a essncia da mente seria o pensamento, um fenmeno que no possui essa caracterstica do corpo, mas tam pouco algo de que se possa duvidar da existncia. Consequente mente, por ser impossvel colocar a existncia do pensamento prova e por conta do fato de que ele supostamente no faria parte do mundo fsico do qual o corpo, por sua vez, faria parte, Descartes conclui que a mente deveria possuir natureza diferente da fsica. Sendo assim, o dualismo cartesiano sustenta que a mente e o corpo so substncias de naturezas diferentes. Nas palavras do autor (1641/1999b, p.320): 23. a natureza comportamental da mente 27 Pelo prprio fato de que sei com certeza que existo, e que, con tudo, percebo que no pertence necessariamente nenhuma outra coisa minha natureza ou minha essncia, salvo que sou uma coisa que pensa, concluo que minha essncia consiste apenas em que sou uma coisa que pensa ou uma substncia da qual toda a essncia ou natureza consiste apenas em pensar. E, apesar de, embora talvez [...] eu possuir um corpo ao qual estou estreita mente ligado, pois, de um lado, tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pen sante e sem extenso, e que, de outro, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida em que somente algo com extenso e que no pensa, certo que este eu, ou seja, minha alma, pela qual eu sou o que sou, completa e indiscutivelmente distinta de meu corpo e que ela pode existir sem ele. Em poucas palavras, no podemos duvidar da existncia da substncia mental e nem de que somos seres que pensam, mas po demos duvidar de todo o resto. A essncia da mente, portanto, pensar, j que no h pensamento sem uma mente que pense e no h mente que pense sem o ato de pensar. Descartes, assim, conclui que, por se tratar de duas substncias distintas, a mente e o corpo possuiriam existncias distintas. Assim, a mente no pereceria com o corpo. As caractersticas da mente e do corpo esto reunidas no Quadro 1.1.2 Quando temos duas substncias distintas, uma das principais questes que se coloca a seguinte: haveria algum tipo de relao entre mente e corpo? Isto , o corpo exerceria influncia nos estados mentais e estes, por sua vez, seriam capazes de influenciar o corpo? possvel analisar esse problema mediante as abordagens parale lista e interacionista. Armstrong (1968) apresenta uma analogia bastante esclarecedora sobre o assunto: as diferenas entre parale lismo e interacionismo seriam equivalentes s diferenas entre (1) um quarto e um termostato e (2) um quarto e um termmetro. 2.Searle (2004) apresenta um quadro semelhante. 24. 28 Diego Zilio Quadro 1.1 Substncias Mente Corpo Essncia Pensamento Extenso Propriedades Conhecimento privilegiado. Indivisvel. Pura. Imperecvel. Conhecimento indireto. Divisvel. Composto. Perecvel. Um quarto e um termostato interagem entre si. O aumento da temperatura do quarto ativa o termostato que, por sua vez, faz com que a temperatura volte ao padro preestabelecido. Dessa forma, o quarto causa mudanas no termostato e este causa mudanas no quarto. Por outro lado, no caso do termmetro no h interao: o aumento da temperatura no quarto acompanhado paralelamente pelo aumento do nvel do mercrio no termmetro. Nesse caso, embora o aumento da temperatura seja responsvel pela mudana no termmetro, no h interao entre os processos, j que o term metro no reage sobre o quarto. Armstrong (1968) ressalta que essa forma de paralelismo mais branda, pois se admite que haja in fluncias do corpo (quarto) sobre a mente (termmetro). Uma forma mais extrema de paralelismo negaria qualquer tipo de re lao. Ainda com o exemplo do termmetro, a variao de tempe ratura do quarto e a mudana de nvel do mercrio no termmetro ocorreriam paralelamente, mas sem relao direta. Poderamos dizer, por exemplo, que h uma terceira fora responsvel por ambas as variaes: talvez uma interveno divina seja a causa tanto da mudana de temperatura quanto da mudana no term metro. Outra sada seria dizer que a ocorrncia contgua das varia es no passa de uma grande coincidncia. J o paralelismo brando, de acordo com Armstrong (1968), assume que o corpo in fluencia a mente, mas no o contrrio. O problema desse parale 25. a natureza comportamental da mente 29 lismo que, da forma como est posto, a nica consequncia possvel seria o epifenomenalismo do mental. Afinal, o que o parale lismo brando faz negar qualquer tipo de poder causal mente. O interacionismo, como o nome indica, consiste na tese de que h interrelaes entre mente e corpo. Descartes era interacionista, pois no negava a existncia de relaes entre a mente e o corpo, chegando inclusive a localizar anatomicamente o local dessas rela es no crebro ou, mais precisamente, numa determinada gln dula muito diminuta, situada no meio de sua substncia [cerebral] (Descartes, 1649/1999a, p.124), a saber, na glndula pineal. O problema, entretanto, como poderia algo no fsico como a mente cartesiana se relacionar com algo fsico como o corpo, mas Des cartes no tratou diretamente dessa questo. Sua contribuio foi a de simplesmente localizar qual seria o ponto de contato entre mente e corpo. Dessa forma, possvel sugerir que Descartes no ofereceu uma resposta ao problema mentecorpo, mas, pelo contrrio, co locou o problema para a posteridade. 1.1.2Behaviorismo filosfico3 Embora Descartes seja considerado o responsvel pela postu lao do problema mentecorpo nos moldes contemporneos, o es tabelecimento da filosofia da mente como rea central da filosofia foi um feito de Ryle. O argumento central do autor (1949) que Descartes alocou os fatos a respeito da mente em uma categoria l gica errada, criando, assim, um mito o mito da doutrina oficial ou, mais perniciosamente, o mito do fantasma na mquina. Para Ryle (1949, p.16), a doutrina oficial representa os fatos da vida mental como se fossem pertencentes a uma categoria ou tipo lgico 3.A expresso behaviorismo filosfico utilizada aqui para indicar princi palmente duas linhas de investigao filosfica que costumeiramente so classificadas como behavioristas: a anlise conceitual de Ryle (1949) e o beha viorismo lgico de Carnap (1932/1959) e Hempel (1935/2000, 1950/1959). Esse tipo de classificao comum em textos da filosofia da mente (e.g., Armstrong, 1968; Churchland, 1988/2004; Kim, 1996). 26. 30 Diego Zilio (ou conjunto de tipos ou categorias), quando na verdade eles per tencem a outro. Possivelmente, o erro cartesiano, conhecido como erro categorial, surgiu quando termos mentais no gerndio pas saram a ser usados como substantivos, o que facilitou a criao de uma entidade mental que, assim, passou a ser tratada como uma substncia diferente da fsica. Dizemos, por exemplo, que um su jeito est pensando em alguma coisa ou que est sentindo al guma coisa. No h nada de errado em descrever aes por meio desses termos o problema surge quando falamos do pensamento ou da sensao como se esses termos indicassem, em vez de uma ao, uma coisa ou substncia. O erro estaria, portanto, em classi ficar a mente, tal como o corpo, na categoria de substncia. O seguinte exemplo de erro categorial bastante esclarecedor: um estudante visita a universidade U; conhece todos os prdios, estabelecimentos, laboratrios, salas de aula, professores, alunos e assim por diante. Ento esse estudante pergunta: onde est a uni versidade U? Seria preciso, perante essa pergunta, explicar ao estu dante que a universidade no uma coisa parte das que ele visitou, isto , que universidade apenas o nome dado forma como est organizado tudo o que ele visitou antes. A universidade no faz parte da mesma categoria que outras instituies, como o Masp ou o Maracan. A universidade no seria algo alm do que ele viu. O estudante errou ao incluir a universidade numa categoria lgica qual no pertence, e teve, assim, a iluso de que sua pergunta era coerente. Outro exemplo: uma pessoa assistindo a um jogo de futebol reclama que no v o esprito de equipe em campo. Diz que v todos os jogadores, a comisso tcnica e os reservas, mas afirma que nenhuma dessas pessoas est encarregada do esprito de equipe. preciso explicar a essa pessoa, portanto, que esprito de equipe no uma caracterstica do futebol como as regras, as posies e as funes dos jogadores , mas o nome que se d quando um time joga com entusiasmo e harmonia, dentre outras caractersticas. Quando dois termos pertencem mesma categoria comum apresentlos em proposies conjuntivas que englobam ambos 27. a natureza comportamental da mente 31 (Ryle, 1949). Nesse sentido, no mago do erro categorial, existem a mente e o corpo, existem processos mentais e processos fsicos, existem causas mentais e causas fsicas. Entretanto, por no po derem ser descritos pela linguagem da fsica, qumica ou fisiologia, os processos mentais necessitariam de uma linguagem correlata, mas ao mesmo tempo particular. Consequentemente, as evidncias cartesianas que sustentam a diferenciao entre o mental e o fsico so construdas por meio da linguagem da categoria lgica de subs tncia: os processos mentais no so mecnicos, portanto devem constituir algo no sujeito s leis da fsica; as leis da mecnica dizem respeito aos objetos que ocupam lugar no espao, portanto outras leis devem existir quando se trata dos eventos mentais; o compor tamento inteligente seria causado pela mente enquanto os no in teligentes seriam apenas movimentos corporais; e assim por diante. Esse ponto importante porque uma das teses de Ryle (1949) a de que uma anlise lgicolingustica do vocabulrio cartesiano seria o bastante para invalidar a doutrina oficial. Justamente por utilizar a linguagem substancial para tratar da mente, que, por sua vez, de acordo com Ryle (1949), no uma substncia, Descartes estaria errado desde o princpio. Em tempo, embora crtico ferrenho do dualismo cartesiano, importante ressaltar que Ryle (1949, p.23) no nega a existncia da mente: perfeitamente prprio dizer, em um tom de voz lgico, que mentes existem e dizer, em outro tom de voz lgico, que corpos existem. Mas essas expresses no indicam duas espcies diferentes de existncia. Em outras palavras, o autor apenas contesta que seja amesmacoisadizerqueexistemprocessosmentaisequeexistem processos fsicos, pois a mente e o corpo fazem parte de categorias distintas. perfeitamente possvel dizer que existem mentes e que existem corpos, mas essas expresses no indicam dois tipos dife rentes de existncia substancial. Ryle (1949), portanto, suposta mentedestriomitocartesianopormeiodacrticadoerrocategorial. Surge, ento, a questo: se no uma substncia, o que a mente? Essa uma questo bastante traioeira quando dirigida obra de Ryle, j que o autor (1949, p.7) no estava interessado em desen 28. 32 Diego Zilio volver uma teoria positiva da mente: Os argumentos filosficos que constituem este livro so projetados no para aumentar o nosso conhecimento sobre a mente, mas para corrigir a geografia lgica do conhecimento que j possumos. Esse posicionamento de Ryle pode sugerir uma leitura no ontolgica da sua obra, segundo a qual ela seria apenas uma anlise lgicolingustica do vocabulrio cartesiano, em vez de uma afirmao ontolgica a respeito da natu reza da mente (Park, 1994). Por outro lado, a suposta absteno de Ryle acerca do problema fez com que sua obra fosse interpretada como partidria do behaviorismo filosfico.4 E no faltam indcios na prpria obra do autor que apontam para essa interpretao: ao descrever o funcionamento da mente de uma pessoa [...] ns es tamos descrevendo a maneira pela qual parte de sua conduta le vada a cabo (Ryle, 1949, p.50); e minha mente [...] denota minha habilidade e inclinao para fazer certos tipos de coisas e no algum pedao de aparato pessoal sem o qual eu no poderia ou de veria fazlas (Ryle, 1949, p.168). A despeito das intenes de Ryle (1949), sua obra acabou por ser caracterizada como behaviorista filosfica (e.g., Armstrong, 1968; Ayer, 1970; Churchland, 1988/2004; Kim, 1996; Place, 1999;Weitz, 1951), e isso se deve, em grande medida, linguagem disposicional que fundamentou a sua anlise da mente. Nas pala vras do autor (1949, p.43): Possuir uma propriedade disposicional no estar em um estado particular, ou sofrer uma mudana parti cular; estar inclinado ou sujeito a estar em um estado particular, ou a sofrer uma mudana particular, quando uma condio parti cular for realizada. Dizemos, por exemplo, que um espelho tem a disposio para se quebrar se certas condies forem realizadas: ele 4.A validade dessa interpretao uma questo em aberto: por um lado o pr prio autor a nega (e.g., Park, 1994; Ryle, 1949), mas, por outro lado, diversos autores a defendem (e.g., Armstrong, 1968; Ayer, 1970; Churchland, 1988/ 2004; Kim, 1996; Place, 1999; Weitz, 1951). Talvez o que esteja em questo aqui, como bem ressalta Armstrong (1968), seja a concepo de behavio rismo por detrs da discusso. Todavia, esse um problema que foge dos li mites do presente livro. 29. a natureza comportamental da mente 33 pode ser atingido por uma pedra ou cair no cho. Entretanto, ser quebradio no uma propriedade ou um estado intrnseco ao es pelho no algo que est nele , mas apenas uma propriedade que indica algo que pode acontecer com ele se certas condies forem satisfeitas. Afirmamos que espelhos so objetos quebradios porque eles tendem a se quebrar quando atingidos por pedras ou quando caem no cho. Dessa forma, aps esclarecer o erro catego rial, o passo seguinte de Ryle (1949) foi apresentar uma releitura dos termos e sentenas referentes mente numa linguagem dispo sicional capaz de dar conta do fenmeno, mas sem sucumbir aos problemas da doutrina oficial. De acordo com Ryle (1949), os termos mentais correspondem s habilidades e inclinaes para fazer certos tipos de coisas, isto , denotam disposies para se comportar de uma dada forma. Afirmar, por exemplo, que o sujeito S inteligente significa dizer que h nele uma disposio para se comportar inteligente mente. Esse tipo de afirmao classificado como uma sentena disposicional. Em adio, h, tambm, sentenas do tipo lgico se midisposicional ou hbridocategrico. Quando afirmo que o sujeito S est resolvendo o problema Y no estou me referindo apenas a um episdio acabado, mas tampouco me refiro apenas a uma dis posio do sujeito S. Nesse caso, h tanto uma narrativa da ao inacabada do sujeito, quanto uma disposio a ser confirmada. A narrativa da ao acabada, que consistiria numa sentena categrica, seria o sujeito S resolveu o problema Y. A disposio seria, por sua vez, o sujeito S tem disposio para resolver problemas do tipo Y ou, se definirmos inteligncia como a capacidade para re solver problemas, o sujeito S tem disposio para agir inteligen temente. Baseandose na linguagem disposicional, Ryle (1949) apresentou uma anlise das principais caractersticas da mente, como o conhecimento, a inteno, a conscincia, a percepo e a sensao. Enquanto avaliar a obra de Ryle (1949) como behaviorista filo sfica uma mera possibilidade de maneira alguma consensual , por outro lado, alguns autores positivistas lgicos defenderam 30. 34 Diego Zilio abertamente o behaviorismo filosfico, caracterizandoo especial mente pelo seu desdobramento denominado behaviorismo lgico (e.g., Carnap, 1932/1959; Hempel, 1935/2000, 1950/1959). O ponto de vista desses autores sustentado por dois pilares princi pais: (1) a possibilidade de traduo conceitual da linguagem da psicologia linguagem fisicalista; e (2) a teoria verificacionista do significado. Sobre o segundo ponto, Hempel (1935/2000, p.1701) apresenta uma clara explicao: o significado de uma proposio estabelecido pelas suas condies de verificao. Em particular, duas proposies formuladas di ferentemente possuem o mesmo significado ou o mesmo con tedo efetivo quando, e somente quando, elas forem ambas verdadeiras ou falsas nas mesmas condies. Alm disso, uma proposio para a qual no seja possvel indicar condies pelas quais podemos verificla, e que em princpio incapaz de con frontao com condies de teste, totalmente desprovida de contedo e no possui significado. H duas informaes relevantes nessa citao. A primeira que proposies formuladas diferentemente podem possuir o mesmo significado, ou seja, podem se referir s mesmas condies de satis fao. Tomemos, como exemplo, a afirmao Hoje a temperatura ambiente de 25 C. Como podemos verificar sua validade? Uma maneira possvel averiguar a marcao no termmetro de mer crio e constatar se, de fato, a temperatura ambiente de 25 C, mas tambm podemos verificar por meio de outros testes fsicos (outros tipos de termmetros ou equipamentos meteorolgicos) e, nesse contexto, possvel apresentar as seguintes proposies: O termmetro de mercrio est marcando 25 C ou O nvel do mercrio est alinhado marcao de 25 na escala que o acom panha paralelamente. Nessas proposies no foi utilizado o termo temperatura, mas elas indicam as condies de verificao da proposio que utiliza o termo, o que significa que todas elas possuem o mesmo significado. A segunda informao relevante 31. a natureza comportamental da mente 35 contida na citao de Hempel, por sua vez, que quando no h condies de verificao no possvel validar as afirmaes e esse fato resulta na negao de seus significados ou contedos. Nesse caso, as afirmaes podem at ser gramaticalmente coerentes, mas so vazias porque no passam de pseudoproposies. A afirmao Hoje a temperatura ambiente ser controlada por Apolo, deus do Sol, por exemplo, no teria sentido, j que no h condies pelas quais possamos verificar a sua validade. A partir da teoria verificacionista do significado, o behavio rismo lgico pretendeu traduzir todos os conceitos da psicologia em conceitos fisicalistas. Nas palavras de Hempel (1935/2000, p.173): Todas as afirmaes psicolgicas que so significativas isto , que so em princpio verificveis so traduzveis para pro posies que no envolvem conceitos psicolgicos, mas apenas conceitos da fsica. Analisemos, por exemplo, a afirmao O su jeito S est com dor de dente. Como podemos verificar a validade dessa afirmao? Hempel (1935/2000) apresenta cinco condies possveis: (1) o sujeito S est chorando, emitindo grunhidos e fa zendo gestos, como colocar a mo na boca; (2) quando questionado, o sujeito S afirma estar com dor de dente; (3) um exame meticu loso feito por um dentista revela que S est com um dente infla mado; (4) h modificaes fisiolgicas no corpo de S, como aumento da presso sangunea e da temperatura, que podem estar correlacionadas inflamao do seu dente; e (5) ocorrem certos processos no sistema nervoso central que podem, de alguma forma, estar relacionados com o estado de S. A partir dessas condies, Hempel (1935/2000) pretende traduzir a sentena psicolgica que contm o termo dor para sentenas que dizem respeito apenas a estados ou processos fsicos: a dor a nada mais equivaleria a no ser s condies fsicas que satisfazem a sua verificao. E mais, o conceito de dor, quando no faz parte de uma sentena psico lgica de tempo presente que indica o estado atual de um sujeito, apenas um conceito disposicional: assim como inteligncia, o termo dor, em seu sentido disposicional, apenas indica uma in clinao ou tendncia para se comportar de uma dada maneira e a 32. 36 Diego Zilio propenso de que certas mudanas fisiolgicas ocorram sob certas condies (Armstrong, 1968). O projeto do behaviorismo lgico, no que diz respeito psico logia, consistiria em traduzir todos os conceitos psicolgicos para conceitos da fsica e, se pressupormos que essa empresa seja vivel, no haveria problema mentecorpo. O problema da relao entre mente e corpo, tal como posto pelo dualismo cartesiano, no faria sentido. Afinal, todos os conceitos mentais, em princpio, seriam traduzveis para conceitos fsicos e, mesmo se defendssemos a im possibilidade de traduo dos conceitos mentais, isso no invali daria o programa behaviorista lgico, pois apenas indicaria que esses conceitos no possuiriam significado, ou seja, que seriam conceitos vazios. Sendo assim, o que no fosse possvel traduzir seria preciso descartar perante o argumento da ausncia de signifi cado. Nesse contexto, pertinente apresentar quais seriam as estra tgias de verificao dos termos mentais, isto , em que lugar as suas condies de verificao estariam, e Carnap (1932/1959, p.165) quem nos d a resposta: todas as sentenas da psicologia descrevem ocorrncias fsicas, a saber, o comportamento fsico dos humanos ou de outros animais. A observao objetiva essencial paraoverificacionismodopositivismolgico(Hempel,1935/2000, 1950/1959). Assim, dizer que um termo da psicologia traduzvel para um termo fsico significa dizer que um termo da psicologia encontra suas condies de verificao nos comportamentos fsicos e observveis dos sujeitos. Kim (1996, p.28) apresenta uma definio de comportamento para o behaviorismo lgico que compatvel com essa constatao: qualquer coisa que as pessoas ou os orga nismos, ou at mesmo os sistemas mecnicos, fazem e que so ob servveis publicamente; e Armstrong (1968, p.68) afirma que o objetivo do behaviorismo lgico era traduzir a mente em termos de comportamento observvel. Por fim, possvel encontrar uma definio bastante clara e concisa sobre o behaviorismo filosfico no texto de Churchland (1988/2004, p.49): 33. a natureza comportamental da mente 37 De fato, o behaviorismo filosfico no tanto uma teoria sobre o que so os estados mentais (em sua natureza interior) e sim, mais propriamente, uma teoria sobre como analisar ou compreender o vocabulrio que usamos para falar sobre eles. Especificamente, ele afirma que falar sobre emoes, sensaes, crenas e desejos no falar sobre episdios espirituais interiores, mas um modo abreviado de falar sobre padres de comportamento, potenciais ou reais. A primeira parte da definio ressalta o fato de que o behavio rismo filosfico apresenta essencialmente uma anlise lgico lingustica dos conceitos mentais. possvel encontrar essa estratgia tanto na obra de Ryle (1949), em sua linguagem disposi cional, quanto na de Hempel (1935/2000), em sua estratgia ve rificacionista. A segunda parte da definio, por sua vez, destaca o ponto central do behaviorismo filosfico: os conceitos mentais, se possurem qualquer significado, sero passveis de traduo para conceitos fsicos, o que nesse contexto significa que eles seriam equivalentes a termos comportamentais publicamente observveis ou a termos disposicionais que indicam a tendncia ou propenso de que certos comportamentos publicamente observveis possam ocorrer se certas condies forem satisfeitas. 1.1.3Teorias centralistas possvel encontrar ao menos trs problemas que suposta mente colocariam o behaviorismo filosfico em dvida. O primeiro deles est no alcance da anlise proposta pela teoria: seria possvel esgotar o que a mente atravs da descrio de comportamentos publicamente observveis e da utilizao da linguagem disposi cional? (Place, 1956/2004; Smart, 1959). O segundo envolve o status ontolgico dos termos disposicionais: as disposies no po deriam ser apenas conceitos lingusticos cuja funo seria apenas a de sinalizar padres de comportamento, pois, assim, elas no pas sariam de entidades fictcias (Lewis, 1966). Seria preciso, ento, 34. 38 Diego Zilio propor algum fundamento ontolgico claro para explicar a exis tncia da mente (Smart, 1994). O terceiro problema, por sua vez, consiste no fato de que as condies de verificao dos termos men tais, isto , os comportamentos publicamente observveis, no constituiriam, necessariamente, a mente, mas sim os efeitos cau sados por ela: a mente deveria, ento, ser vista como algum tipo de estado ou processo interno do sujeito (Armstrong, 1968; Lewis, 1966). H nessas trs questes os principais fundamentos das teorias centralistas. O termo centralista aqui utilizado de forma abrangente, pois pretende englobar todas as teorias que alocam a mente novamente dentro do sujeito, ao invs de analisla como disposies ou comportamentos manifestos. Nesse contexto, trs teorias que satisfazem esse requisito sero apresentadas: a teoria da identidade, o funcionalismo da mquina e o funcionalismo causal. Comecemos pela teoria da identidade. A ideia bsica da teoria da identidade a de que os estados men tais so estados cerebrais. Especificamente, cada tipo de estado mental corresponde a um determinado estado cerebral. A proposta de Place (1956/2004) e de Smart (1959, 1979, 1994) pode ser ana lisada como uma resposta aos trs problemas do behaviorismo filosfico. Primeiramente, aceita o fato de que a anlise lgico lingustica do behaviorismo filosfico no esgota o que a mente (problema 1); em seguida apresenta o fundamento ontolgico dos estados mentais a partir das neurocincias (problema 2); e, final mente, aloca a mente, enquanto estados cerebrais, dentro do sujeito (problema 3). Nas palavras de Place (1956/2004, p.45): No caso de conceitos cognitivos como conhecer, crer, en tender e recordar, e de conceitos volitivos como desejar e intencionar, no h dvidas, acredito eu, de que uma anlise em termos de disposies para se comportar [...] fundamental mente vlida. Por outro lado, parece haver resduos intratveis de conceitos agrupados em volta das noes de conscincia, ex perincia, sensao e imagem mental, em que algum tipo de pro cesso interno inevitvel. 35. a natureza comportamental da mente 39 Place (1956/2004), alm de defender claramente a incomple tude do behaviorismo filosfico, tambm ressalta que os conceitos mentais devem ser tratados como processos internos do sujeito, em vez de meras disposies ou comportamentos manifestos. Mas o que significa dizer que os estados mentais no passam de estados cerebrais? A resposta a essa questo iniciase com Smart (1959, p.144): Deixeme primeiramente tentar apresentar de maneira mais acurada a tese de que as sensaes so processos cerebrais. No se trata da tese de que, por exemplo, uma imagem mental ou uma dor signifiquem o mesmo que um processo cerebral do tipo X (em que X substitudo por uma descrio de um pro cesso cerebral). a tese de que, desde que imagem mental e dor sejam descries de processos, elas so descries de pro cessos que, por acaso, so processos cerebrais. Sucedese, assim, que a tese no sustenta que afirmaes sobre sensaes possam ser traduzidas em afirmaes sobre estados cerebrais. Smart (1959) apresenta uma questo bastante importante: a descrio de um estado mental no precisa necessariamente ser passvel de traduo para uma descrio de seus estados cerebrais. A teoria da identidade, em contraposio ao behaviorismo filos fico, no est interessada em fazer tradues (Place, 1956/2004; Smart, 1959, 1994). A ideia central do argumento relativamente simples: quando um sujeito descreve um estado mental, ele est descrevendo um estado cerebral. Para entender o que isso significa pertinente discorrer um pouco mais sobre a noo de identidade. possvel atestar uma relao de identidade entre a descrio de um estado mental M e a descrio de um estado cerebral C se, e somente se, ambos possurem o mesmo referente R. Tomemos como referente, por exemplo, a dor. Suponhase que seja pos svel identificar a dor com certos estados cerebrais especficos, Cdor, e que tambm seja possvel descrevla como ativao do estado cerebral Cdor. Por outro lado, que a dor possa ser des 36. 40 Diego Zilio crita como um estado mental, especificamente, uma sensao, Mdor, a partir do ponto de vista do sujeito que diz estar com dor. A descrio da dor enquanto estado mental (Mdor) e enquanto estado cerebral (Cdor) possuem o mesmo referente: a dor. Quando digo que estou com dor me refiro sensao, a qual, por sua vez, tambm pode ser descrita como ativao do estado cerebral Cdor. Assim, o estado mental no seria nada alm de um estado cerebral. Entretanto, ressalta Smart (1959), isso no significa que seja possvel fazer uma traduo conceitual dos termos mentais em termos cerebrais. A identidade implica apenas que ambas as formas de descrio possuem o mesmo fenmeno como referente. A principal constatao da teoria da identidade, portanto, que formas diferentes de descrio no justificam a existncia de fenmenos distintos. A linguagem mental, por mais diferente que seja da linguagem das neurocincias, no tem como referente algo alm da constituio fsica do organismo e, nesse contexto, a teoria da identidade estabelece uma agenda de pesquisa emprica: identificar, uma a uma, as relaes de identidade entre estados mentais e estados cerebrais (Place, 1956/2004; Smart, 1959). Nesse momento importante ressaltar o ponto fraco da teoria da identidade: se encontrarmos apenas um caso em que no seja possvel estabelecer relaes de identidade entre um estado mental e um estado cerebral, ou em que os mesmos estados mentais pos suam referentes cerebrais diferentes, ento a teoria da identidade ser falsa. Isso se d porque, por detrs da noo de identidade, h o princpio da correlao. Nas palavras de Kim (1992, p.4): para cada tipo psicolgico M h um tipo fsico P (presumivelmente neu robiolgico) nico que nomologicamente coextensivo a ele (i.e., [...] qualquer sistema instanciar M em t se, e somente se, esse sis tema instanciar P em t). O princpio da correlao diz que, para que uma relao de identidade seja possvel, todo evento mental M deve sempre ser idntico a um evento cerebral C. justamente esse ponto que a tese da mltipla realizao do mental ataca. Nova mente com Kim (1992, p.1): 37. a natureza comportamental da mente 41 Ns somos constantemente lembrados de que qualquer estado mental, por exemplo, a dor, capaz de ser realizado, instan ciado, ou implementado em estruturas neurobiolgicas bas tante diversas, em humanos, felinos, rpteis, moluscos, e talvez outros organismos mais distantes de ns. s vezes pedemnos para contemplar a possibilidade de que criaturas extraterrestres com uma bioqumica radicalmente diferente da dos terrestres, ou at mesmo dispositivos eletromecnicos, podem realizar a mesma psicologia que caracteriza os humanos. Essa tese para ser chamada daqui em diante de tese da mltipla realizao. O argumento da mltipla realizao sugere que no h uma re lao necessria entre estados mentais e estados cerebrais, sendo impossvel sustentar, consequentemente, a tese da identidade. Suponhase, por exemplo, que exista um sujeito S e seu gmeo quase idntico Sg. Suponhase, tambm, que tanto S quanto Sg so capazes de sentir dor, isto , de terem sensaes do tipo Mdor, descrevendoas, inclusive, de forma idntica atravs de termos mentais. De acordo com a teoria da identidade, quando S descreve o estado mental Mdor ele est descrevendo, na verdade, o estado cerebral Cdor. O problema surge quando buscamos a referncia da descrio de Sg e constatamos que ele no possui o estado cere bral Cdor: quando diz estar com dor, Sg est descrevendo es tados cerebrais do tipo Xdor. Nesse caso, temos estados mentais semelhantes (Mdor) que se referem a estados cerebrais distintos (Cdor e Xdor), situao que insustentvel pelo princpio da cor relao e, assim, pela tese da identidade. O argumento da mltipla realizao tem sua origem no texto de Putnam (1967/1991), que tambm foi responsvel por uma nova forma de analisar a mente: o funcionalismo da mquina. OfuncionalismodamquinapropostoporPutnam(1967/1991) fundamentouse principalmente na concepo de mquina de Tu ring (Turing, 1950). A mquina de Turing seria constituda por uma fita de dados de tamanho infinito, mas de estados finitos, ou seja, estados funcionais discretos; por um processador de informa 38. 42 Diego Zilio es; e por um cabeote capaz de ler, apagar e escrever informaes na fita, alm de poder movimentla. A mquina processaria infor maes serialmente, com memria capaz de recordar qual a funo do smbolo que est inscrito na fita e qual o estado da m quina no momento da leitura, podendo, assim, determinar a pr xima ao e, consequentemente, o prximo estado funcional da mquina. A universalidade da mquina deTuring est na possibili dade de imputar nela qualquer algoritmo,5 no havendo, ao menos no em princpio, limites para os tipos de processos que ela poderia instanciar. A consequncia imediata da universalidade da mquina de Tu ring no contexto do funcionalismo da mquina a seguinte: assim como possvel que o mesmo programa (software) de computador possa ser rodado em mquinas com configuraes fsicas diferentes (hardware), tambm possvel que o mesmo programa mental possa ser rodado em organismos com configuraes fsicas dife rentes. Dizemos, ento, que a mente o software e que o crebro o hardware, sendo o segundo necessrio ao funcionamento do pri meiro, o que no significa, porm, que seja idntico a ele. No caso dos computadores, por exemplo, o programa Windows pode ser rodado em mquinas com diversas configuraes de placasme, discos rgidos, memrias ram, e assim por diante. Portanto, h dois princpios bsicos do funcionalismo da mquina: (1) os estados funcionais podem ser realizados em qualquer configurao fsica; e (2) entender como a mente funciona implica conhecer os estados funcionais que a caracterizam. O que possvel dizer sobre o se gundo princpio? Para responder a essa pergunta analisemos a dor como exem plo de estado mental. Para o funcionalismo da mquina, a dor seria um estado funcional resultante da relao entre os estmulos 5.O algoritmo um conjunto de frmulas, regras e parmetros computveis que possibilitam a produo de um conjunto especfico de informaes (output) quando na presena de um conjunto especfico de informaes (input) (Knuth, 1977). 39. a natureza comportamental da mente 43 que modificam os estados do corpo, entre outros estados funcionais e entre as respostas comportamentais. No caso dos seres humanos, por exemplo, a dor de dente um estado funcional que est re lacionado com a ativao do estado cerebral Cdor a partir de al gum tipo de estimulao (dente inflamado) que, por sua vez, pode resultar em certos padres comportamentais manifestos, tais como ir ao dentista, colocar gelo no dente dolorido, emitir grunhidos, etc. Um extraterrestre poderia instanciar o mesmo estado funcional de dor de dente, inclusive apresentando os mesmos padres comportamentais, mas isso no significa que ele deveria possuir a mesma constituio cerebral (Cdor). A dor, portanto, no o estado fsico cerebral (no caso dos seres humanos, Cdor). Os es tados fsicos so apenas parte da frmula, que tambm envolve certos tipos de estimulaes e certos tipos de comportamentos ma nifestos. por isso que a a dor no um estado cerebral, no sen tido de ser um estado fsicoqumico do crebro (ou at mesmo de ser o sistema nervoso como um todo), mas um tipo de estado com pletamente diferente (Putnam, 1967/1991, p.199), e, enquanto tal, a dor, ou o estado de estar com dor, um estado funcional do or ganismo como um todo (Putnam, 1967/1991, p.199). A crtica da mltipla realizao deixou claro que estados men tais semelhantes podem ser realizados por sistemas com configura es fsicas diferentes, o que significa que a teoria da identidade estrita bastante difcil de sustentar. Todavia, a possibilidade de mltipla realizao no invalida o programa emprico dos tericos da identidade: buscar os correlatos cerebrais dos estados mentais. Para Smart (1994), o pomo da discrdia entre funcionalismo e teoria da identidade estaria na acusao do primeiro de que, para os tericos da identidade, dois sujeitos diferentes s estariam num mesmo estado mental se, e somente se, eles estivessem em estados cerebrais idnticos. De fato, essa acusao pertinente se levarmos em conta o peso lgico da relao de identidade. Haveria, ento, outra forma de manter o projeto emprico de buscar os correlatos cerebrais dos estados mentais, mas sem incorrer nos problemas da teoria da identidade? justamente isso o que prope o funciona 40. 44 Diego Zilio lismo causal de Armstrong (1968, 1977/1991) e Lewis (1966, 1972/1991b, 1980/1991a). Armstrong (1968) afirma que a teoria da identidade sustentada por Smart e Place no era centralista o bastante. Afinal, esses auto res sustentavam que a anlise behaviorista filosfica estava correta quando se tratava de conceitos cognitivos como crenas, de sejos, intenes e conhecimento (Place, 1956/2004; Smart, 1959). A proposta de Armstrong (1968, p.80) mais radical: em oposio a Place e Smart [...] eu desejo defender uma explicao centralista [centralstate] de todos os conceitos mentais. Nesse caso, todos os estados mentais devem ser vistos apenas como estados cen trais internos do sujeito: tratase da volta do cartesianismo, exceto pela negao da existncia de duas substncias. Mas o que caracteri zaria os estados mentais? Deixemos Armstrong (1977/1991, p.183) responder: O conceito de estado mental o conceito de algo que , caracte risticamente, a causa de certos efeitos e o efeito de certas causas. Que tipo de efeitos e que tipo de causas? Os efeitos causados por um estado mental sero certos padres de comportamento da pessoa que est no estado em questo. [...] As causas do estado mental sero objetos e eventos do ambiente da pessoa. A essncia do funcionalismo causal est nessa citao. Os estados mentais seriam eventos intermedirios entre os inputs ambientais e os outputs comportamentais. Basicamente, existiria uma cadeia causal de trs elos: input a estado mental a output. Restanos saber, porm, qual seria a estratgia utilizada para relacionar os estados mentais com os estados cerebrais. De acordo com os defensores do funcio nalismo causal (Armstrong, 1968, 1977/1991; Lewis, 1972/1991b, 1980/1991a; Smart, 1994), o primeiro passo definir um estado mental de acordo com a sua funo, isto , de acordo com o seu papel causal. O segundo passo buscar os correlatos cerebrais desse estado mental. O ltimo passo, por sua vez, consiste em apresentar uma explicao sobre como os correlatos cerebrais so capazes de preencher o papel 41. a natureza comportamental da mente 45 causal do estado mental em questo. Ao fazermos isso acabamos por identificar funcionalmente o estado mental com o estado cerebral. Por exemplo, o estado mental inteno de ir ao banheiro pode ser visto, a partir da linguagem mental, como causa do comportamento mani festo de ir ao banheiro. No entanto, depois de diversos estudos, neu rocientistas descobrem que a causa do comportamento manifesto de ir ao banheiro est em certos estados cerebrais especficos. Assim, atravs da concordncia sobre o papel causal, identificase o estado mental com o estado cerebral em questo. A diferena, em relao teoria da identidade estrita, que a identificao dos estados cerebrais e estados mentais contingencial, isto , no se sustenta nenhum tipo de necessidade lgica (tal como o princpio da correlao) de que um evento mental M dever sempre ser idntico a um evento cerebral C, no importando a circunstncia, e independente de quem seja o su jeito. A identificao feita a partir do papel causal, o que plena mente concebvel at mesmo pela tese da mltipla realizao. Nas palavras de Lewis (1980/1991a, p.231): Em suma, o conceito de dor tal como entendido por Armstrong e por mim no rgido. Da mesma forma que a palavra dor um designador no rgido. A aplicao do conceito e da palavra a um estado um fato contingente. dependente do que causa o qu. O mesmo vale para o resto dos nossos conceitos e nomes comuns dos estados mentais. [...] Se a dor idntica a um dado estado neural, a identidade contingente. Um rob cuja constituio corporal de silcio em vez de, como os humanos, carbono, pode estar em um estado mental de dor, Mdor, desde que tal estado cumpra o mesmo papel causal dos estados mentais de dor nos seres humanos. No importa se esse papel causal seja realizado, no final das contas, por um estado fsico de silcio, Sdor, em vez de um estado cerebral, Cdor, j que a caracterizao da dor estaria na funo desse estado e no em suas caractersticas fsicas. Mantmse, assim, a agenda emprica 42. 46 Diego Zilio de pesquisa da teoria da identidade, ao mesmo tempo em que a tese da mltipla realizao respeitada. 1.1.4Eliminativismo e psicologia popular Ramsey et al. (1991, p.94) afirmam que eliminativismo um nome chique para uma tese simples, segundo a qual algumas ca tegorias de entidades, processos ou propriedades exploradas por uma concepo de senso comum ou cientfica do mundo no exis tem. No contexto da filosofia da mente, os eliminativistas sim plesmenteeliminamamente,ou,maisespecificamente,apsicologia popular, uma teoria de senso comum que foi desenvolvida para tra tar das causas do comportamento e para fornecer respostas sobre a natureza da mente humana (Churchland, 1981, 1988/2004, 1989; Churchland, 1986; Feyerabend, 1963; Rorty, 1965, 1970). Mas para entender a tese eliminativista preciso falar um pouco mais sobre as teorias centralistas. A agenda de pesquisa emprica sustentada tanto pela teoria da identidade quanto pelo funcionalismo causal de localizar, uma a uma, as relaes de identidade entre estados mentais e estados fsicos, encontra sua contraparte filosfica no re ducionismo, e mediante a apresentao do reducionismo que en tenderemos o ponto de vista eliminativista. A reduo uma relao entre duas teorias cientficas, uma teoria secundria (TS), que a teoria a ser reduzida, e uma teoria primria (TP), que a teoria qual a outra ser reduzida (Nagel, 1961). H duas condies essenciais para que ocorra o processo de reduo. A primeira delas a condio de derivao, segundo a qual a reduo implica uma derivao lgicodedutiva da TS a partir da TP. A segunda condio, por sua vez, denominada condio de conectabilidade. A ideia bsica que todos os termos, conceitos e leis presentes no vocabulrio da TS devem possuir correlatos na TP. Para Nagel (1979/2008), essas condies so essenciais, pois o processo de reduo formado por uma srie de afirmaes terico cientficas, uma delas sendo a concluso e as outras as premissas que a sustentam. Agora, se as afirmaes tericocientficas da TS 43. a natureza comportamental da mente 47 contiverem termos que no possuem correlatos na TP, o processo de reduo se torna impossvel. De acordo com Nagel (1961), isso ocorre porque, no processo de derivao lgicodedutiva, nenhum termo pode aparecer na concluso a menos que tambm aparea nas premissas. Alm dessas caractersticas, a reduo da TS para a TP pode ser vista como de natureza (1) lgica, em que a TS e a TP esto ligadas apenas por algum vnculo formal; (2) convencional, em que a re duo vista como uma estratgia criada deliberadamente pelos cientistas como uma norma a ser seguida; e (3) factual ou material, em que a reduo consiste em hipteses empricas. Isto , se uma expresso ou termo de uma TS que denota um estado de coisas do mundo for reduzido a uma expresso ou um termo de uma TP que denota um estado de coisas do mundo, ento o prprio estado de coisas denotado pela TS ser reduzido para o estado de coisas de notado pela TP. No contexto da teoria da identidade e do funcionalismo causal, a reduo de natureza material, j que essas teorias pretendem ser, acima de tudo, alternativas monistas fisicalistas ao dualismo cartesiano. Afinal, qual seria o propsito de localizar as relaes de identidade seno o de provar que estados mentais so nada mais que estados fsicos? Em poucas palavras, buscase reduzir a mente cartesiana imaterial mente cerebral material. Entretanto, con testar a possibilidade do projeto reducionista pode levar pelo menos a dois caminhos. O primeiro seria a reafirmao do dualismo carte siano: no possvel reduzir os estados mentais aos estados fsicos porque eles possuem natureza distinta. O segundo caminho, por sua vez, o percorrido pelo eliminativismo: no possvel reduzir estados mentais aos estados fsicos porque os conceitos mentais da psicologia popular no condizem com a realidade da cognio hu mana (Churchland, 1988/2004). Assim, o eliminativismo pode ser definido como a tese segundo a qual: a nossa concepo popular dos fenmenos psicolgicos constitui uma teoria radicalmente falsa, uma teoria radicalmente to defi 44. 48 Diego Zilio ciente que tanto os seus princpios quanto a sua ontologia iro ser finalmente substitudos, em vez de suavemente reduzidos, por uma neurocincia completa. (Churchland, 1981, p.67) As teorias centralistas, desde o princpio, herdaram a linguagem mentalista cartesiana. Falase de estados mentais como crenas, desejos, intenes, sensaes e imagens mentais, e a partir desse vocabulrio buscamse as relaes de identidade entre os conceitos mentais e os conceitos fsicos, especialmente os das neu rocincias. O eliminativismo sustenta que esse projeto invivel porque a psicologia popular apresenta uma teoria da mente com pletamente errada e por isso as condies de satisfao do reducio nismo (derivao e conectabilidade) no seriam contempladas. O ponto de partida do eliminativismo, portanto, a sustentao de que os conceitos mentais constituem uma teoria denominada psicologia popular (Churchland, 1981; Churchland, 1986; Stich & Ravenscroft, 1994). Esse ponto crucial tanto porque o projeto reducionista implica uma reduo interterica quanto porque, a partir do momento em que se atribui tal status aos conceitos men tais, possvel coloclos prova. Isto , no estamos mais falando de uma mente cartesiana irrefutvel, da qual no podemos duvidar porque a prpria dvida seria a prova de sua existncia. Mas o que caracterizaria, ento, a psicologia popular? Nas palavras de Churchland (1989, p.225): A psicologia popular [] um sistema de conceitos, grosseira mente adequado s demandas do dia a dia, a partir do qual o mo desto adepto compreende, explica, prediz e manipula um certo campo de fenmeno. Ela , brevemente, uma teoria popular. Como qualquer teoria, ela pode ser avaliada por suas virtudes ou vcios em todas as dimenses listadas. E como qualquer teoria, se for insuficiente para dar conta de toda a extenso da avaliao, ela pode ser rejeitada em sua totalidade. 45. a natureza comportamental da mente 49 Entre as funes da psicologia popular, de acordo com Stich & Ravenscroft (1994), estaria descrever a ns mesmos e aos outros. Di zemos, por exemplo, que somos amveis, indecisos e crentes. Alm do propsito descritivo, a psicologia popular fornece um ar cabouo conceitual a partir do qual seria possvel explicar o com portamento. Dizemos que uma pessoa bebeu gua porque estava com sede ou que ela foi missa porque cr em Deus ou que ela discutiu com algum porque estava brava. Outra funo da psi cologia popular seria a previso do comportamento. Continuando com os mesmos exemplos, levandose em conta o fato de que a pessoa cr em Deus, provvel que ela v missa; j que a pessoa est com sede provvel que ela beba gua; e por estar brava possvel que ela discuta com algum. Partindo da premissa de que a psicologia popular uma teoria sobre a cognio e o comportamento, o prximo passo do elimina tivista negar a sua validade. Churchland (1981, 1988/2004) for nece ao menos trs razes que do suporte ao eliminativismo. A primeira est na obscuridade da psicologia popular: seus conceitos e suas explicaes trazem mais indagaes do que respostas. O pre sente captulo seria um exemplo claro desse fato: qual a natureza da mente? Como o mental se relaciona com o fsico? Como conhe cemos a mente? Afinal, o que a mente? A consequncia imediata da eliminao da psicologia popular seria o desaparecimento dessas questes, j que com os conceitos eliminamos, tambm, a ontologia da mente. A segunda razo, por sua vez, fruto de uma lio indutiva da histria dos conceitos (Churchland, 1988/2004, p.84). Na his tria da filosofia e da cincia h casos de conceitos que possuam um papel explicativo sobre um fenmeno, mas que acabaram por ser descartados em troca de outros que cumpriam melhor a funo. Acreditavase, por exemplo, que quando alguma coisa queimava havia a liberao de uma substncia voltil denominada flogisto. Era o flogisto que mantinha o fogo aceso e, assim que toda a subs tncia era liberada, o fogo se apagava. Mais tarde, porm, notouse que o processo de combusto no implicava a perda, mas sim o con 46. 50 Diego Zilio sumo de uma substncia: o oxignio. A teoria do flogisto se mos trou radicalmente errada: no era possvel nem mesmo reduzila nova teoria, o que resultou em sua eliminao. Outro exemplo, mais prximo da psicologia, est nas histrias de possesses demo nacas. Antigamente, pessoas com distrbios psicolgicos, como psicoses, eram acusadas de estarem possudas pelo demnio ou de serem bruxas. A possesso era a causa das suas condies. No en tanto, embora no se saiba exatamente quais so as causas de di versas condies psicolgicas, hoje em dia elas no so atribudas s possesses. Esse um exemplo interessante, pois, mesmo sendo uma cincia incompleta, a psicologia j capaz de eliminar teorias provavelmente incorretas. Finalmente, a terceira razo est no fato de que o reducionismo um projeto bastante exigente. Basta analisar os problemas enfren tados pelas teorias centralistas listados na subseo 1.1.3 e as con dies de satisfao da reduo interterica para constatar que h grandes chances de que esse projeto d errado. Porm, uma neuro cincia que abandone o projeto reducionista est livre da psicologia popular. O que est em questo no a capacidade para descrever, explicar e prever o comportamento humano e, assim, apresentar uma teoria da natureza da mente por meio da neurocincia reducio nista ou por meio da neurocincia eliminativista. Esse um pro blema em aberto, que depende exclusivamente do desenvolvimento das neurocincias. A questo que, alm de ter que lidar com as chances de sucesso ou fracasso das neurocincias, o projeto re ducionista ainda teria que tratar dos problemas da reduo inter terica. Aos eliminativistas, por sua vez, s restaria esperar pelos avanos das neurocincias. 1.1.5Teorias do aspecto dual Com o propsito de estabelecer o carter definitrio da mente, o dualismo cartesiano postulou a existncia de duas substncias dis tintas, a mental e a fsica. No entanto, essa manobra trouxe tona o problema mentecorpo: como possvel que a mente exista e exera 47. a natureza comportamental da mente 51 influncia no mundo fsico? A primeira parte da questo no se co loca no dualismo cartesiano, pois, desde o princpio, a teoria de Descartes j postulava a realidade do cogito. A existncia da mente enquanto substncia imaterial no estava em questo, sendo, inclu sive, o ponto de partida do sistema cartesiano. A Descartes restou apenas a tarefa de provar como a relao entre a mente e o corpo era possvel, mas a localizao do ponto de contato entre esses dois mundos na glndula pineal estava longe de ser uma resposta ca bvel. O problema mentecorpo, portanto, se coloca fundamental mente a partir da viso fisicalista de mundo (Zilio, 2010). De acordo com Kim (1999, p.645), o fisicalismo a tese segundo a qual tudo o que existe no mundo espaotemporal uma coisa fsica, e de que todas as propriedades das coisas fsicas so ou propriedades fsicas ou propriedades intimamente relacionadas sua natureza fsica. O behaviorismo filosfico, as teorias centralistas e o eliminativismo so exemplos de teorias fisicalistas a despeito de suas diferenas, todas possuem o mesmo objetivo: mostrar que possvel esgotar tudo o que concebemos como mental a partir de uma anlise fisi calista do mundo, sem ser preciso admitir, assim, a existncia de uma substncia imaterial. O fisicalismo pretende, em poucas pala vras, explicar a mente sem ter que ir alm do mundo fsico. As teorias do aspecto dual surgem principalmente como crticas dirigidas s teorias fisicalistas. Extrado de Nagel (1986/2004), o termo aspecto dual indica que h no mental uma dualidade entre subjetivo e objetivo; uma dualidade que seria intransponvel pelo fi sicalismo. Por serem essencialmente objetivas, as pesquisas cient ficas fundamentadas pelos parmetros fisicalistas em especial, as neurocincias no dariam conta da subjetividade. Contudo, ao mesmo tempo em que pretendem negar o fisicalismo, as teorias do aspecto dual no sustentam a dualidade pela postulao da exis tncia de uma substncia imaterial. Para esclarecer esse projeto, comecemos com os argumentos apresentados por Jackson (1982, 1986). Jackson (1982, 1986) pede que imaginemos o caso de Mary, uma neurocientista interessada em estudar os processos cerebrais 48. 52 Diego Zilio referentes percepo visual. Entretanto, Mary vivia trancada em um quarto preto e branco, suas investigaes sobre o funciona mento do crebro eram realizadas atravs de um monitor preto e branco e seus livros eram tambm todos em preto e branco. Enfim, Mary vivia em mundo preto e branco. Mas mesmo assim Mary se tornou uma neurocientista de renome na rea da percepo visual. Ao longo dos anos de estudo ela conseguiu delimitar todos os pro cessos cerebrais referentes percepo visual. Observando o fun cionamento do crebro, Mary sabia identificar quais os objetos que os sujeitos experimentais experienciavam naquele momento. Con seguia, inclusive, identificar as caractersticas desses objetos, prin cipalmente as suas cores. Assim, se um sujeito experimental via uma ma vermelha, Mary conseguia identificar que era uma ma vermelha. Eis a questo: o que acontecer quando Mary sair do quarto preto e branco ou quando ela tiver acesso a um mo nitor ou a livros coloridos? Ela aprender algo novo? Isto , algo alm do que ela aprendera pelos seus estudos neurocientficos a respeito da percepo visual? A resposta de Jackson (1982, p.130) positiva: indiscutvel que o seu conhecimento prvio era incom pleto. Mas ela possua todas as informaes fsicas. Portanto, h mais para se ter do que isso, e o fisicalismo falso. Em outras pa lavras, Mary sabia tudo o que se podia saber sobre a neurofisiologia da percepo visual, especialmente no que concerne percepo de cores. Todavia, ao sair do quarto e entrar em contato com coisas de outras cores, ela adquiriu novos conhecimentos. Assim, h mais para se conhecer do que as informaes neurocientficas, o que sig nifica que a estratgia fisicalista no abrange tudo o que conce bemos como mental. H um trecho do artigo de Jackson (1982, p.127) que pinta com cores fortes essa tese: Digame tudo o que existe para dizer sobre o que est aconte cendo em um crebro vivo, os tipos de estados, seus papis fun cionais, suas relaes com o que est acontecendo em outros momentos e em outros crebros, e assim por diante, e sendo eu 49. a natureza comportamental da mente 53 to inteligente quanto se deve ser para juntar tudo isso, voc no ter me dito nada sobre o desprazer da dor, o prurido da coceira, a angstia do cime, ou sobre a experincia caracterstica de provar um limo, de cheirar uma rosa, de ouvir um barulho alto ou de ver o cu. A tese de Jackson ficou conhecida como argumento do conheci mento, j que o limite do conhecimento de Mary a respeito das caractersticas da mente que estaria em questo. Mary sabia tudo o que se podia saber sobre o crebro, mas no tudo o que se podia saber sobre a mente. Faltavalhe o conhecimento acerca das expe rincias que acompanham a vida mental. Mary conseguia correla cionar processos cerebrais com percepes de mas vermelhas, mas ela nunca havia experienciado a cor vermelha. Ao sair do quarto e ver uma ma vermelha, Mary percebeu que seu conhe cimento neurofisiolgico no era o bastante, pois, se o fosse, nada de novo ocorreria com a sua sada. Outro famoso argumento sobre o aspecto dual subjetivo objetivo foi proposto por Nagel (1974). Para o autor, o que torna o problema mentecorpo intratvel a conscincia. Um organismo consciente se cabvel perguntarmos como ser tal organismo, e ser, nesse sentido, o que caracteriza o aspecto subjetivo da expe rincia. Em seu texto, Nagel (1974) afirma que nunca saberemos como ser um morcego porque nunca seremos capazes de adotar o ponto de vista de um morcego. Os morcegos possuem um sistema perceptivo bastante diferente em relao ao dos seres humanos: eles percebem o mundo externo a partir de sonares capazes de circunscrever a geografia do ambiente. Especificamente, os mor cegos emitem ondas sonoras que ao se chocarem com os objetos do ambiente causam ecos. Os ecos, por sua vez, servem como est mulos auditivos a partir dos quais os morcegos podem estabelecer as caractersticas geogrficas do ambiente. Tratase de uma forma de perceber o mundo bastante diferente da nossa e justamente por isso que Nagel (1974) afirma que nunca saberemos como ser um morcego, isto , que nunca saberemos como ter uma experincia 50. 54 Diego Zilio subjetiva de se locomover pelo mundo atravs do ponto de vista re sultante do sistema de sonares dos morcegos. Poderseia indagar, porm, que uma descrio do funciona mento da percepo dos morcegos acabou de ser apresentada, e que isso significa que sabemos como ser um morcego? Para Nagel (1974), no podemos formar mais do que uma concepo esquem tica sobre como ser um morcego. Ns estamos presos aos nossos prprios sistemas perceptivos e aos nossos prprios pontos de vista, e apenas a partir dessa nossa constituio que podemos mera mente imaginar como ser um morcego. Nagel (1974), por outro lado, est interessado em saber como ser um morcego sob o ponto de vista de um morcego, e isso, conclui o autor, impossvel. Em suas palavras: Meu ponto [] no que ns no podemos ter conhecimento sobre como ser um morcego. Eu no estou lanando esse pro blema epistemolgico. Meu ponto , mais precisamente, que at mesmo para formar a concepo de como ser um morcego (e a posteriori conhecer como ser um morcego) preciso adotar o ponto de vista do morcego. (Nagel, 1974, p.442) O problema do ponto de vista mais fundamental do que o pro blema do conhecimento apresentado pelo exemplo da Mary (Jack son, 1982). Antes preciso estar no mesmo ponto de vista para s assim conhecer o que ser um morcego. Sem estar no mesmo ponto de vista s podemos tecer concepes esquemticas, baseadas prin cipalmente em nossa capacidade de imaginar, a partir do nosso prprio ponto de vista, como ser qualquer organismo consciente. O exemplo do morcego um caso extremo, j que o seu sistema perceptivo notadamente diferente do nosso, mas o problema do ponto de vista persiste at mesmo entre os seres humanos.6 Talvez 6.Nagel (1974, p.440) afirma que o problema no limitado aos casos exticos, pois ele existe at entre as pessoas. 51. a natureza comportamental da mente 55 possamos imaginar ou conceber como ser outra pessoa de ma neira mais clara ou acurada por conta do fato de que possumos os mesmos sistemas perceptivos, mas, mesmo assim, nunca podere mos saber como adotar o ponto de vista daquela pessoa. impor tante ressaltar, nesse momento, o que Nagel (1965, 1974, 1986/2004, 1998) entende por ponto de vista. Ponto de vista, para o autor, no significa o conhecimento privilegiado que temos da nossa prpria mente defendido pelo dualismo cartesiano. No , portanto, o ponto de vista epistemolgico. Ao que parece, o sentido proposto por Nagel o de que o ponto de vista a subjetividade que torna cada organismo nico e incapturvel por uma anlise meramente objetiva, ou at mesmo por uma anlise subjetiva a par tir dos nossos pontos de vista singulares, isto , a partir de nossas existncias singulares.7 Aos argumentos de Nagel (1965, 1974, 1986/2004, 1998) e de Jackson (1982, 1986) foi atribudo um teor dualista, mas no do tipo substancial (e.g., Churchland, 1988/2004; Teixeira, 2000). Por um lado, ao passo que a negao da completude explanatria do fisicalismo invariavelmente coloca esses autores no patamar do dualismo, j que uma explicao fsica completa no esgotaria tudo o que concebemos como mental, o que significa que deve haver algo mais que o fsico, por outro lado, esse posicionamento no nos leva necessariamente ao dualismo cartesiano. Assim afirma Nagel (1986/2004, p.45): A falsidade do fisicalismo no requer substncias no fsicas. Requer apenas que haja coisas verdadeiras sobre os seres cons cientes que no possam, dada a sua subjetividade, ser reduzidas a termos fsicos. Por que o fato de o corpo possuir propriedades fsicas no seria compatvel com o fato de possuir tambm pro priedades mentais [...]? 7.Malcolm (1988) apresenta uma anlise meticulosa das concepes de ponto de vista e de subjetividade propostas por Nagel. 52. 56 Diego Zilio Para Nagel (1986/2004, p.26), o mental, assim como o fsico, deveria ser visto como um atributo geral do mundo. Dessa forma, as ideias de Nagel (1965, 1974, 1986/2004, 1998) e de Jack son (1982, 1986) originaram o posicionamento denominado dua lismo de propriedade, segundo o qual h apenas um mundo, mas um mundo que contm tanto propriedades fsicas quanto proprie dades mentais. 1.2O que a mente? Ainda falta uma delimitao clara sobre o que os autores citados na seo anterior entendem por mente e sobre quais seriam as suas caractersticas que devem ser levadas em conta nas discusses da filosofia da mente. Em sntese, preciso fazer um mapeamento do conceito de mente. Quando trata da mente, Descartes referese especificamente ao pensamento, de cuja existncia no se pode du vidar, j que a dvida , tambm, um pensamento. Uma definio mais precisa do termo encontrada na seguinte passagem do autor (1642/1984, p.113): Eu uso esse termo para incluir tudo o que est dentro de ns de tal modo que estamos imediatamente cons cientes. Assim, todas as operaes da vontade, do intelecto, da imaginao e dos sentidos so pensamentos. Portanto, o termo pensamento, tal como utilizado por Descartes, abrange a mente como um todo. Por outro lado, principalmente no mbito da cincia cognitiva e da psicologia cognitiva, o pensamento normal mente caracterizado como uma atividade cognitiva responsvel pela manipulao de informaes adquiridas do ambiente com a finalidade de executar comportamentos manifestos. O pensa mento, assim definido, estaria relacionado com os processos de ra ciocnio e de resoluo de problemas (Sternberg, 1996/2000; Zilio, 2009). Enquanto a definio cartesiana abarca a mente em seu sen tido mais geral, a definio cognitiva salienta apenas esse aspecto processual, mas ambas so importantes para entender o alcance do conceito de mente. 53. a natureza comportamental da mente 57 J os behavioristas filosficos, alm do pensamento, tratam de conceitos mentais como crenas, desejos, intenes e conhecimento. A teoria da identidade, entretanto, defende que as explicaes beha vioristas filosficas no abrangeriam processos como sensaes, percepes e imagens mentais. Tanto o funcionalismo da mquina quanto o funcionalismo causal, por sua vez, trata dos mesmos pro cessos enumerados pela teoria da identidade, mas abandonam a ideia de que seja possvel identificar os estados mentais com es tados fsicos especficos. O eliminativismo tambm trata dos mesmos processos, mas, baseandose no argumento de que so apenas iluses lingusticas da psicologia popular, eliminaos en quanto estados mentais. As teorias do aspecto dual tratam da cons cincia, mas ressaltam a sua propriedade qualitativa, isto , a experincia de estar em um estado consciente ou de ter um ponto de vista particular e afirmam que justamente essa caracterstica que assegura a subjetividade da mente. Por meio dessa breve varredura terminolgica possvel apre sentar a mente a partir de cinco dimenses conceituais: (1) pensa mento; (2) intencionalidade e contedos mentais; (3) percepo, imagem mental e sensao; (4) conscincia; e (5) experincia. A di menso conceitual (1) diz respeito ao pensamento tal como definido pela cincia cognitiva e pela psicologia cognitiva, ou seja, envolve a definio mais estrita do termo. Isso se justifica porque, por ser bas tante geral, a definio de Descartes abrange praticamente todas as dimenses conceituais de classificao da mente. J a dimenso conceitual (2) trata da intencionalidade, que, na definio de Searle (1983/2002, p.1), a propriedade de muitos estados e eventos mentais pela qual estes so dirigidos para, ou acerca de, objetos e estados de coisas no mundo, incluindo, portanto, estados mentais como crenas, desejos e intenes. Essa definio de intencionali dade leva a outra questo: a dos contedos mentais. A intenciona lidade caracterizada pela ideia de que os estados mentais so sempre sobre algo ou direcionados para algo e esse algo so os contedos dos estados intencionais. So os contedos que diferen ciam um estado mental M1 de um estado M2. Pensar sobre um 54. 58 Diego Zilio problema de aritmtica diferente de pensar sobre o significado dos poemas de Fernando Pessoa. Crer que o mundo vai acabar daqui a vinte anos diferente de crer que o sol nascer amanh. A pergunta central a respeito dos contedos me