A Vida e o Trabalho do Marítimo no Offshore

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“Vida e trabalho de marítimos embarcados do setor offshore” por Milena Maciel de Carvalho Dissertação apresentada com vistas à obtenção do título de Mestre em Ciências na área de Saúde Pública. Orientador: Prof. Dr. Carlos Minayo Gómez Rio de Janeiro, setembro de 2010

Transcript of A Vida e o Trabalho do Marítimo no Offshore

Vida e trabalho de martimos embarcados do setor offshore

por

Milena Maciel de Carvalho

Dissertao apresentada com vistas obteno do ttulo de Mestre em Cincias na rea de Sade Pblica.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Minayo Gmez

Rio de Janeiro, setembro de 2010

Esta dissertao, intitulada

Vida e trabalho de martimos embarcados do setor offshore

apresentada por

Milena Maciel de Carvalho

foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:

Prof. Dr. Silvana Mendes Lima Prof. Dr. Jussara Cruz de Brito Prof. Dr. Carlos Minayo Gmez Orientador

Dissertao defendida e aprovada em 16 de setembro de 2010.

Catalogao na fonte Instituto de Comunicao e Informao Cientfica e Tecnolgica Biblioteca de Sade Pblica

C253

Carvalho, Milena Maciel de Vida e trabalho de martimos embarcados do setor offshore / Milena Maciel de Carvalho. Rio de Janeiro: s.n., 2010. 74 f.; il. Orientador: Gmez, Carlos Minayo Dissertao (mestrado) Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2010. 1. Sade do Trabalhador. 2. Jornada de Trabalho. 3. Carga de Trabalho. 4. Local de Trabalho. 5. Relaes Familiares. 6. Isolamento Social. 7. Satisfao no emprego. 8. Estresse psicolgico. 9. Navios. 10. Indstrias Extrativas e de Processamento. 11. Pesquisa Qualitativa. 12. Entrevistas. I. Ttulo. CDD - 22.ed. 633.11

DEDICATRIA

A todos os trabalhadores martimos do Brasil.

AGRADECIMENTOS

Ao gerente de QMS Moises Haddad; minha mentora Ftima Cavalcante, que possibilitou meu ingresso na rea acadmica atravs das pesquisas que coordenou e, principalmente, por seu exemplo, carinho e incentivo; Ceclia Minayo, pelo exemplo de profissionalismo, humildade e generosidade; Ao Claves (Centro Latino Americano de Estudos de Violncia e Sade Jorge Careli), pelo acolhimento no incio de minha carreira acadmica e por me possibilitar prosseguir no caminho; minha famlia, especialmente Constantino e minha me Myrian, pelas leituras conjuntas, amor e apoio incondicionais, compartilhamento de frustraes e vitrias e presena em cada etapa; Ao meu marido e parceiro Robson, pelo amor, confiana e por me fazer acreditar que os maiores sonhos so possveis; Aos amigos da Orla Sul, que acreditaram comigo que este estudo seria concludo com sucesso; Aos amigos e colegas da turma do mestrado, pela amizade e ajuda; Aos professores do Cesteh e da ENSP, por terem compartilhado suas experincias e conhecimentos; A Carlos Minayo Gmez, pela orientao e ensinamentos; Ao Comandante Homero, do SINDARMA, pelos contatos e orientao em relao ao tema; Aos martimos que compuseram a tripulao, pelo tempo dedicado a esse estudo, pelo carinho, ateno, acolhimento e confiana; A Deus, por ter colocado cada uma dessas pessoas em minha vida.

EPGRAFE

Para no sofrer, trabalha. Sempre que puderes diminuir o teu tdio ou o teu sofrimento pelo trabalho, trabalha sem pensar. Parece simples primeira vista. Eis um exemplo trivial: sa de casa e sinto que as roupas me incomodam, mas com a preguia de voltar atrs e mudar de roupa continuo a caminhar. Existem contudo muitos outros exemplos. Se se aplicasse esta determinao tanto s coisas banais da existncia como s coisas importantes, comunicar-se-ia alma um fundo e um equilbrio que constituem o estado mais propcio para repelir o tdio.

Sentir que fazemos o que devemos fazer aumenta a considerao que temos por ns prprios; desfrutamos, falta de outros motivos de contentamento, do primeiro dos prazeres - o de estar contente consigo mesmo... enorme a satisfao de um homem que trabalhou e que aproveitou convenientemente o seu dia. Quando me encontro nesse estado, gozo depois, deliciadamente, com o repouso e os mais pequenos lazeres. Posso mesmo encontrar-me no meio das pessoas mais aborrecidas, sem o menor desagrado; a recordao do trabalho feito no me abandona e preserva-me do aborrecimento e da tristeza.

Eugne Delacroix, in 'Dirio'

RESUMO

Neste estudo avaliada a relao entre trabalho e vida cotidiana de martimos embarcados em empresa de apoio martimo (Offshore), formados pela Marinha Mercante Brasileira. Buscou-se compreender, entre outras questes, o ambiente de trabalho desse grupo, seus comportamentos diante da situao de embarcados e de afastamento de seus familiares, a jornada de trabalho, os perodos de descanso e suas especificidades, bem como conhecer as trajetrias de vida dos trabalhadores martimos, suas percepes sobre esse tipo de trabalho e as motivaes que os levaram a escolher tal ocupao. Alm disso, investigou-se como se do as relaes entre o trabalho embarcado e a vida familiar e social, e o impacto de uma sobre a outra. A metodologia adotada seguiu uma abordagem qualitativa, constituindo-se de observao participante dos ambientes de trabalho a bordo e entrevistas semi-dirigidas com a tripulao. Como resultado, observou-se que o contexto de trabalho embarcado afeta diretamente a vida familiar e social desse grupo de trabalhadores, impactando suas relaes sociais e alguns aspectos de sua sade, especialmente queles que atuam em ambientes com rudo. Dada a condio de confinamento, verificou-se que os trabalhadores permanecem imersos ao ambiente de trabalho mesmo nas horas de descanso e lazer. O descanso no se mostrou efetivo e evidenciou impactos negativos no sono desses trabalhadores. O sistema de frias e a aposentadoria foram identificados como aspectos geradores de frustrao e que merecem ateno especial dos Sindicatos e da Legislao. O ganho financeiro aparece como fator mantenedor e motivador nesse tipo de ocupao, considerada difcil, porm adaptvel. Grande parte do grupo estudado compreende o trabalho que realiza como sendo um meio de obteno rpida de ganhos financeiros, sendo para muitos uma forma de acumular recursos para realizao de seus sonhos profissionais.

Palavras-chave: Trabalho Embarcado, Setor Offshore, Contexto de trabalho e vida familiar, Marinha Mercante Brasileira.

ABSTRACT

This study evaluates the relationship between work and daily life of seamen on board offshore support company (Offshore), formed by the Merchant Marine Ministry. We tried to understand, among other issues, the working environment of this group, their behavior before the situation on board and away from their families, working hours, rest periods and their specificities, as well as learn about the life trajectories seafarers, their perceptions about this type of work and the motivations that led them to choose such an occupation. Furthermore, we investigate how to give the relationship between work and family life and embedded social, and impact on one another. The methodology followed a qualitative approach, being participant observation of work environments on board and semi-directive interviews with the crew. As a result, it was observed that the work context shipped directly affects the family and social life of this group of workers, impacting their social relations and some aspects of their health, especially those who work in noisy environments. Given the condition of confinement, it was found that workers remain immersed in the work environment even in hours of rest and relaxation. The rest has not proved effective and showed a negative impact on sleep of these workers. The system of vacation and retirement issues were identified as generating frustration and deserve special attention from the unions and the Legislature. Financial gain appears to be motivating and maintaining factor in this type of occupation, as difficult, but adaptable. Much of the study group comprises the work she does as a means to obtain quick financial gains, and for many a way to accumulate resources for achieving their professional dreams.

Keywords: Embedded Work, Offshore Sector, Background work and family life, Merchant Marine Ministry.

SUMRIO

PG. APRESENTAO ......................................................................................... CAPTULO 1 DELINEAMENTO E OBJETO DA PESQUISA ............ 1.1 A Estratgia emprica ..................................................................... 1.2 O Trabalho de campo (Embarque) ................................................. 1.3 Contextualizao do objeto de pesquisa ........................................ 1.3.1 - Trabalho de Apoio Martimo (Offshore) Definies e Caractersticas .................................................................................. 1.3.2 A Marinha Mercante e o cenrio aquavirio ....................... 1.3.3 - A Formao Profissional Martima na Marinha Mercante Brasileira .......................................................................................... CAPTULO 2 A EMBARCAO ............................................................ 2.1 Especificaes gerais ...................................................................... 2.2 Atividades e Organizao do trabalho a bordo .............................. 2.2.1 O trabalho no Convs .......................................................... 2.2.2 O trabalho no Passadio ....................................................... 2.2.3 O trabalho na Praa de Mquinas ......................................... CAPTULO 3 O TRABALHO EMBARCADO ....................................... 3.1 O Trabalho Embarcado e suas especificidades .............................. 3.2 Jornada de trabalho, sistema de turnos e pausas ............................ 3.3 O isolamento ................................................................................... 3.4 Normas, Disciplina e Hierarquia a bordo ....................................... CAPTULO 4 - CONSIDERAES FINAIS ............................................. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................... ANEXO 1 ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA ..... ANEXO 2 FOTOGRAFIAS ....................................................................... 19 21 21 21 21 23 24 25 25 32 39 47 61 64 68 70 9 14 1 3 3 6 9

1 APRESENTAO

Entender em que medida a diminuio de contato social e comunicao por conta de uma atividade de trabalho interfere na vida familiar e social de um trabalhador foi um dos questionamentos que motivaram a realizao de um estudo sobre trabalhadores martimos embarcados. Num primeiro momento, a idia era estudar trabalhadores embarcados em plataformas de petrleo e em navios da Marinha Brasileira, devido a uma demanda casual desses trabalhadores sobre a necessidade de estudo desse grupo. Contudo, pareceu invivel uma investigao de tal magnitude nesse momento - mestrado. Dessa forma, optou-se por realizar estudo sobre embarcados formados pela Marinha Mercante Brasileira, devido a uma aproximao e um interesse de longa data da pesquisadora por esse setor. Uma investigao sobre o contexto de trabalho em plataformas de petrleo poder ser realizada em outra ocasio. A pesquisa foi desenvolvida junto aos martimos formados pela Marinha Mercante Brasileira, embarcados em empresa de Apoio Martimo entre 28 de agosto e 04 de setembro de 2009. A tripulao j estava embarcada h 21 dias quando foi dado incio ao trabalho de campo. Diante de um estudo dessa natureza, importante que seja feita uma contextualizao desta conjuntura particular de trabalho. A permanncia prolongada em servio, com a ruptura na convivncia habitual revela processos de trabalho peculiares. Esse, em particular, ainda apresenta outro fator caracterstico, a atividade vem permeada pela condio de ser ou no oficial militar, ou seja, trata-se de um trabalho mediado pela hierarquia militar. Nesse caso, o grupo estudado constitudo por trabalhadores martimos embarcados formados pela Marinha Mercante, oficiais ou no. importante frisar que os martimos formados pela Marinha Mercante no so considerados militares da ativa e sim militares da reserva, diferentemente da Marinha de Guerra. A relao com a instituio Marinha do Brasil formativa. Ela a responsvel pela formao de martimos para atuarem embarcados ou no, sendo esses considerados oficiais da reserva assim que se formam. A formao dos martimos e as respectivas divises sero explicadas posteriormente, no captulo 1 desta dissertao.

2 Partindo do pressuposto que o trabalho martimo embarcado rene

caractersticas peculiares, como por exemplo, a jornada de trabalho, o contato restrito com familiares e demais pessoas em terra, autonomia no trabalho, risco iminente de acidentes e relaes mediadas pela hierarquia militar, diversos questionamentos acabam sendo levantados em relao organizao e estrutura dos processos de trabalho nessas condies. Busca-se, portanto, compreender como se organizam esses trabalhadores, como esses aspectos citados se configuram no ambiente de trabalho e fora dele e, tambm, quais os fatores que contribuem para a escolha em atuar num trabalho em regime de confinamento. O estudo divide-se em quatro Captulos. O Captulo 1 tem como foco a apresentao do que vem a ser o trabalho martimo, evidenciando o trabalho no setor aquavirio. Tambm ser realizada no primeiro captulo uma contextualizao do objeto de pesquisa, explicitando as definies e caractersticas do trabalho offshore, igualmente conhecido como setor de Apoio Martimo, e como se d a formao profissional martima, apresentando as particularidades desse tipo de ocupao. Ainda no Captulo 1, so apresentadas as etapas do estudo, identificando as estratgias traadas para a obteno dos dados em campo e suas nuances. O Captulo 2 apresenta a embarcao onde a pesquisa de campo foi realizada. Esto descritas as atividades realizadas pelos trabalhadores, o tipo e as caractersticas da embarcao, bem como as impresses e relatos de alguns tripulantes. No Captulo 3, so apresentados dados obtidos em campo acerca do trabalho embarcado, a representao dos trabalhadores acerca do trabalho que executam, como avaliam a relao do trabalho com a vida cotidiana, relacionamento interpessoal, o que pensam sobre isolamento, alm de dados sobre o sistema de turnos, remunerao e escolha de carreira. O Captulo 4 traz as consideraes finais, encerrando as discusses apresentadas no decorrer da dissertao.

3 CAPTULO 1 DELINEAMENTO DA PESQUISA

1.1 A ESTRATGIA EMPRICA Entender como trabalhadores martimos embarcados compreendem e

sistematizam o trabalho que realizam e, tambm, de que forma se organizam ao sofrerem os impactos ocasionados por situaes adversas, particularmente o isolamento da costa, so pontos centrais desta investigao. A pesquisa partiu da suposio de que pode haver certo sofrimento/desprazer como resultado do isolamento prolongado de seus familiares e demais pessoas em terra. O estudo foi possvel graas autorizao de uma empresa atuante no segmento brasileiro de offshore, pertencente a um grupo noruegus do ramo. Atua como prestadora de servios para grandes empresas petrolferas. Pelo fato desta instituio atuar no setor de apoio martimo s plataformas e navios de petrleo localizados em alto-mar, a mo de obra contratada pela mesma trabalha durante perodos de 28 dias consecutivos a bordo de transporte naval especfico, levando recursos que se fazem necessrios manuteno e permanncia dos mesmos em alto-mar. Para isso, os profissionais contratados devem possuir formao martima pela Marinha Mercante (como oficiais ou guarnio) e permanecerem na embarcao a servio da empresa durante todo o tempo de embarque. O local onde foi realizada a pesquisa emprica foi estabelecido atravs de contato com a empresa em questo, responsvel por grande parte dos afretamentos martimos realizados entre o Brasil e outros pases. O trabalho de campo para a coleta de dados foi realizado em perodo considerado conveniente tanto pela pesquisadora como pela empresa. A autorizao de embarque incluiu a observao participante do trabalho a bordo e a realizao de entrevistas junto aos martimos. O tipo de embarcao ser descrito posteriormente, no Captulo 2, onde tambm ser detalhado o espao fsico e o nmero de tripulantes na embarcao. O espao utilizado para as observaes e entrevistas foi definido pelo comandante do barco, de forma a resguardar a privacidade das pessoas e no afetar o andamento das atividades a bordo. No caso de eventuais problemas a bordo por conta da pesquisa, como a desistncia da participao na mesma e/ou situaes em que os participantes se sentissem desconfortveis, foi explicado que no sofreriam retaliaes e que poderiam a

4 qualquer momento desistir da participao. O trabalho de campo transcorreu da melhor forma possvel. Todas as etapas da pesquisa durante a viagem embarcada obedeceram a critrios de tica e foram cuidadosamente realizadas, para que no caso de eventuais problemas estes fossem sanados da melhor forma. Outro fator positivo foi a boa interlocuo com o Departamento de Qualidade, Meio Ambiente e Segurana da empresa, que se colocou disposio para ajudar em qualquer fase da pesquisa e sanar eventuais problemas a bordo, inclusive sugerindo a presena de uma psicloga da empresa para acompanhar a pesquisadora, o que de fato ocorreu e facilitou a adeso da tripulao. Baseada nos pressupostos e acepes comentadas anteriormente foi realizada pesquisa bibliogrfica para investigar e identificar os aspectos relevantes que constituem o contexto do trabalho offshore (caracterizado pelo afastamento da costa), especialmente no que tange sade dos trabalhadores que atuam nessa rea. A partir desse levantamento foi possvel elencar caractersticas que vm demandando dos pesquisadores uma investigao mais aprofundada. Os instrumentos de investigao da presente pesquisa, como as entrevistas e observaes em campo, foram pautados nesses pontos. Em levantamento realizado nos principais bancos de dados cientficos da internet, como Scielo, Peridicos Capes, Bireme, alm do arrolamento de descritores no Decs (Descritores em Sade), o foco maior se concentrou nos temas trabalho offshore e Marinha Mercante, neste ltimo no encontrando muito material com o enfoque psicossocial. Por conseguinte, procurou-se ampliar o olhar sobre o objeto de estudo, realizando levantamento sobre o trabalho em plataformas de petrleo, organizao do trabalho caracterizado pelo isolamento (sendo ele afastado da costa ou no), trabalhos mediados pela hierarquia e estrutura e organizao da Marinha Mercante brasileira. Utilizando o descritor trabalho offshore na base de dados do Scielo, foram encontrados dezesseis artigos, sendo que apenas cinco abordavam relaes e organizao do trabalho e todos relacionados indstria petrolfera e a atividade de mergulho profundo. J na Bireme, usando o mesmo descritor, foram encontrados entre os meses de julho e dezembro de 2008 onze artigos, sendo que no ms de fevereiro de 2009 foram encontrados nesta mesma Base de dados 96 artigos. Aps refinar o levantamento com a categoria humano, o filtro selecionou oitenta e cinco artigos. Do total de artigos encontrados, a grande maioria estava relacionada rea petrolfera (27 artigos), seguido de Acidentes de Trabalho e Doenas Profissionais (com 18 artigos cada). Navios e

5 Sade do Trabalhador aparecem com 13 artigos cada. Optou-se por filtrar ainda mais a seleo, utilizando os limites disponveis no prprio site, na tentativa de categorizar os temas. Para o refino do levantamento foram usados os seguintes assuntos (com respectivos nmeros de artigos encontrados): Exposio Ocupacional (6), Doenas profissionais (18), Estresse Psicolgico (5), Satisfao no Emprego (5), Tolerncia ao trabalho programado (8) e Navios (13). Foi possvel notar que o pouco material encontrado abordava o tema trabalho offshore associado preocupao com a segurana nessa conjuntura de trabalho e a sade ocupacional dos tripulantes. Relacionavam tal preocupao ao nmero de acidentes registrados longe da costa (plataformas de petrleo, principalmente). Do levantamento descrito acima, foram utilizados apenas trs textos como base para a discusso: um relativo atividade de mergulho profundo, um sobre acidentes em plataformas de petrleo e uma dissertao de mestrado acerca de martimos embarcados. O trabalho em plataformas de petrleo pode ser comparado ao de embarcaes de apoio martimo porque possuem caractersticas muito prprias e semelhantes. Entender como se estrutura o trabalho em plataformas nos ajudar na compreenso do trabalho offshore. Outra questo reincidente nos artigos foi a afirmao de que as condies de trabalho no contexto offshore so especialmente perigosas. Freitas et al.1 descreve as caractersticas do trabalho em plataformas, evidenciando o quo perigosas e complexas so as atividades nesses locais:O trabalho em unidades de processo como as plataformas de petrleo pode ser compreendido por quatro aspectos que se inter-relacionam e o caracterizam. Ele simultaneamente contnuo, complexo, coletivo e perigoso (Ferreira & Iguti, 1996 citado por Freitas et al.1). Contnuo, j que a produo flui durante as 24 horas do dia ao longo do ano, exigindo o revezamento de vrios grupos de trabalhadores para acompanhamento da mesma. Complexo porque as diversas partes do sistema tecnolgico se encontram interligadas numa estrutura de rede que impede que se possua um controle total do sistema, sempre sujeito a um certo grau de imprevisibilidade e de desencadeamento de efeitos do tipo domin em caso de incidentes e acidentes. Coletivo porque o funcionamento da unidade s possvel pelo trabalho de equipes em que as atividades so altamente interdependentes. Perigoso porque est relacionado ao processamento de hidrocarbonetos que evaporam, incendeiam-se ou explodem, ao uso de compostos qumicos txicos para os homens e para o ambiente e operao de mquinas e equipamentos que podem desencadear acidentes poderosos, com o potencial de causar mltiplos bitos e leses (Sev Filho apud Freitas et al.1).

6 A privao do sono e o trabalho em turnos tambm discutida nos artigos. Pouco material foi encontrado onde se discutia a organizao do trabalho offshore levando-se em conta o contexto familiar e as relaes interpessoais no trabalho. Considerando o levantamento bibliogrfico descrito acima, o estudo em questo pretende contribuir para a ampliao do tema no campo cientfico, assim como fornecer dados mais atuais sobre organizao e dinmica do trabalho no contexto offshore. Baseada nesses aspectos, o roteiro de entrevistas sofreu modificaes durante o trabalho de campo, pois algumas questes foram sendo levantadas pelos martimos durante as entrevistas e no decorrer da prpria viagem. Um exemplo disso foram os questionamentos a respeito da legislao voltada para a mulher martima, que esbarra na questo da gravidez. Essa discusso ser aprofundada posteriormente, no captulo 3 desta dissertao.

1.2 O TRABALHO DE CAMPO A metodologia na pesquisa de campo seguiu duas etapas: observao participante e realizao de entrevistas. A primeira etapa da pesquisa de campo foi a realizao de observaes do ambiente de trabalho e das relaes que se estabeleceram no contexto em que a pesquisadora esteve embarcada. Por se tratar de um estudo de cunho qualitativo, a estratgica da observao participante foi realizada com o objetivo de aproximao das rotinas especficas do trabalho a bordo. Durante a observao foi usado o dirio de campo, onde foram registradas informaes sobre a estrutura e organizao do trabalho, como se d o sistema de turnos, descansos, registro de falas dos tripulantes que se mostraram relevantes e, tambm, as impresses enquanto pesquisadora e tripulante do navio. Esta etapa configurou-se como a porta de entrada da pesquisa e o momento onde se estabeleceu maior contato entre a pesquisadora e os sujeitos que fizeram parte da pesquisa, buscando-se o estabelecimento de confiana e entendimento do que a pesquisa se prope. A partir do levantamento bibliogrfico, foi possvel observar que muitas pesquisas vm se utilizando de instrumentos para avaliao das condies de trabalho no contexto offshore, considerando relao do trabalho com a famlia e vida social, carreira, realizao, segurana, relacionamento interpessoal, fatores fsicos do trabalho, ambiente do navio, ergonomia, estrutura da organizao, entre outros fatores. Esses aspectos foram considerados ao se elaborar o roteiro das entrevistas semi-estruturadas.

7 Com base nos dados e informaes coletados atravs do material levantado e observaes, foram realizadas entrevistas semi-dirigidas com os trabalhadores participantes. O objetivo foi coletar opinies, valores, fatos, situaes relevantes dos trabalhadores, levando em conta suas trajetrias de vida. O registro das falas teve como intuito favorecer uma descrio mais ampla do fenmeno estudado.

Campo emprico de investigao Como mencionado anteriormente, a pesquisa de campo foi realizada em embarcao de uma grande empresa do setor offshore, empresa esta indicada pelo Sindicato dos Armadores do Rio de Janeiro e pela Associao Brasileira de Empresas de Apoio Martimo, em ocasio da reunio da pesquisadora com esses rgos para planejamento e autorizao de embarque para realizao da mesma. Trata-se de uma das maiores empresas de apoio martimo em atividade no Brasil, responsvel por afretamentos de sua frota para as maiores empresas petrolferas do mundo, entre elas a Petrobrs e a Shell e, tambm, por embarcaes e equipamentos de alta tecnologia. Para o embarque da pesquisadora, foi feito contato da empresa com o comandante responsvel pela embarcao. Este j se encontrava embarcado h vinte e um dias no barco onde seria realizado o estudo. Os objetivos e mtodos utilizados na pesquisa foram explicitados para o gerente de Qualidade, Meio Ambiente e Segurana da empresa com antecedncia, que deu todo o suporte necessrio para que a pesquisa ocorresse de forma tranqila e eficaz. Aps esses contatos, o projeto de pesquisa foi submetido ao Comit de tica da ENSP. Vale ressaltar que a chegada da pesquisadora j no vigsimo primeiro dia de embarque da tripulao, pode ter sido um aspecto influenciador em relao s expectativas e comportamentos dos trabalhadores. preciso levar em conta que as relaes a bordo aps 20 dias de embarque no so as mesmas da do incio do perodo. possvel que, com a participao da pesquisadora desde o incio do embarque do grupo, outras questes e relaes fossem estabelecidas. No dia do embarque foi entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para o comandante, para que este definisse juntamente com a pesquisadora a melhor forma de realizar a coleta de dados, resguardando a identidade e garantindo a confidencialidade e espao adequado para a realizao das etapas da pesquisa.

8 O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido s pde ser lido pelos martimos embarcados no momento das entrevistas. Aps a leitura e esclarecimentos por parte da pesquisadora, os que desejaram participar da pesquisa assinaram o Termo em duas vias, ficando uma via com a pesquisadora e outra com o participante. Nesse documento ficou claro para o martimo que sua recusa em no participar da pesquisa no traria nenhum prejuzo em sua relao com o pesquisador ou com a instituio, e que a qualquer momento, depois de assinado o Termo, o martimo poderia desistir de participar, retirando seu consentimento. importante citar a observncia contida no item IV.3 da Resoluo 196/962, do Conselho Nacional de Sade, que trata em seu item c sobre os casos em que haja qualquer restrio liberdade ou ao esclarecimento necessrios para o adequado consentimento. Este solicita que o pesquisador fique atento quanto liberdade do consentimento nos casos em que os sujeitos, embora adultos e capazes, estejam expostos a condicionamentos especficos ou influncia de autoridade, especialmente estudantes, militares, empregados, presidirios, internos em centros de readaptao, casas-abrigo, asilos, associaes religiosas e semelhantes, assegurando-lhes a inteira liberdade de participar ou no da pesquisa, sem quaisquer represlias. Quanto amostra dos que participaram do estudo, sua representao se deu no prprio campo, buscando o aprofundamento e compreenso do que se pretende pesquisar. De acordo com Minayo et al.3, o foco da amostra, dentro de uma perspectiva qualitativa, se volta para questes acerca de quais grupos observar e a quem e o que discutir. A amostragem qualitativa assume, segundo os autores3:95, as seguintes caractersticas:prioriza os sujeitos que possuem os atributos que se deseja conhecer, considera que o tamanho da amostra suficiente a partir da reincidncia das informaes, mas no despreza informaes singulares, trabalha com a noo de que os informantes sejam suficientemente diversificados a ponto de possibilitarem a apreenso de semelhanas e diferenas e busca que a escolha do campo e dos grupos a serem observados contenham o conjunto das experincias que se pretende captar (grifo meu).

A amostra constituiu-se de martimos formados pela EFOMM (Escola de Formao de Oficiais da Marinha Mercante), representado no Estado do Rio de Janeiro pelo CIAGA (Centro de Instrues Almirante Graa Aranha) e em Belm pelo CIABA (Centro de Instrues Almirante Brs de Aguiar), e por profissionais com curso de qualificao e/ou atualizao para as categorias de aquavirios, realizados em plos da Marinha do Brasil (Capitanias, Delegacias e Agncias) em todo o territrio nacional, segundo critrios estabelecidos no Programa de Ensino Profissional Martimo. H dois

9 nveis entre os martimos: os oficiais e a guarnio. Ambas as formaes profissionais martimas so de responsabilidade do Ministrio da Marinha. O critrio de incluso na pesquisa levou em conta o fato de o trabalhador ser profissional martimo formado pela Marinha Mercante Brasileira e ter estado embarcado no perodo em que a pesquisa de campo foi realizada. Foram includos na amostra todos os trabalhadores martimos brasileiros que estiveram embarcados, no fazendo distino entre aqueles que estavam em perodo de estgio (chamado de praticagem) e os que j tivessem longos anos de servio. Outro critrio de incluso foi a anuncia dos martimos em participar da pesquisa. As entrevistas foram realizadas em camarotes da embarcao, especialmente onde ficou alojada a pesquisadora. Nele havia duas mesas de trabalho e cadeiras, o que favoreceu a realizao das mesmas. Alm desse camarote, o comandante do barco tambm cedeu o seu para este fim, nos turnos em que estava em servio.

1.3 CONTEXTUALIZAO DO OBJETO DE PESQUISA 1.3.1 Trabalho de Apoio Martimo (Offshore) Definies e Caractersticas O trabalho dito offshore apresenta caractersticas bem prprias, como por exemplo o fato de seus trabalhadores estarem isolados da costa, em alto mar, num perodo prolongado de tempo e tendo pouco espao fsico (limitado/restrito) para se movimentarem. Essa caracterstica, que se encontra no cerne de nossa investigao, por si s j torna o processo de trabalho distinto dos demais e, possivelmente, provoca impactos na vida dos profissionais que se encontram nessa condio. Freitas et al.1, ao apresentarem seu artigo sobre acidentes de trabalho nas plataformas de petrleo uma descrio sobre estes locais, nos ajudam a entender de alguma forma como so organizados os processos de trabalho nesse contexto especfico. Eles dizem:O perodo de dias de trabalho embarcado no mar e dias de descanso em terra varia. Em alguns pases possui uma alternncia de 14/14 (Reino Unido), 7/7 (Estados Unidos), ou mesmo uma progresso de 14/14 no primeiro ciclo, 14/21 no segundo ciclo e 14/28 no terceiro ciclo (Noruega). Em termos de horas de trabalho durante o perodo de embarque, o mais comum so 12 de trabalho para 12 de descanso, porm, o perodo de horas efetivamente trabalhadas, incluindo as extras, freqentemente chega a ser de 14 horas. H alguns postos de trabalho em que a jornada pode chegar a 17 horas. De qualquer modo, independentemente da modalidade de turnos estabelecida,

10alguns trabalhadores permanecem de prontido durante todo o tempo em que se encontram na plataforma1:119.

A Organizao Internacional do Trabalho entende que,por operarem distantes da costa e de socorros imediatos, necessitam de certo grau de autonomia, exigindo-se um conjunto de servios tais como alimentao e alojamento das tripulaes, fornecimento de energia eltrica, compressores e bombas, gua, transportes para a costa (barcos ou helicpteros), meios para cargas e descargas, telecomunicaes, servios mdicos e botes salva-vidas, alm de outros meios de salvamento, o que requer um elevado nvel de coordenao (OIT apud Freitas et al.1:119).

O objetivo desse estudo exatamente analisar essas caractersticas e particularidades da organizao do trabalho nesse contexto offshore. Apesar de no se tratar de plataformas de petrleo, o exerccio profissional em embarcaes em alto mar, por perodos longos, se assemelha ao anterior pelas caractersticas j citadas e merece uma investigao mais aprofundada, sobretudo levando-se em conta os impactos na vida desses trabalhadores.

Legislaes e Mecanismos Legais At o ano de 2006 diversas Convenes foram promulgadas em relao ao trabalho martimo, permitindo que diferentes esferas fossem consideradas e asseguradas. Essa evoluo histrica relativa aos direitos e deveres da gente do mar (como so chamadas as pessoas empregadas ou contratadas que trabalham a bordo de navios de propriedade pblica ou privada, normalmente ocupados em atividades comerciais, exceto navios dedicados pesca ou a atividade semelhante e navios de construo tradicional, como dhows e juncos) resultou na Conveno sobre o Trabalho Martimo, de fevereiro de 2006. Com o intuito de criar um documento nico e coerente que incorporasse tanto quanto possvel todas as normas atualizadas das Convenes e Recomendaes Internacionais existentes sobre Trabalho Martimo, bem como princpios fundamentais de outras Convenes Internacionais sobre trabalho, promovendo condies de trabalho decentes, a Conferncia Geral da Organizao Internacional do Trabalho (OIT), determinou que este novo instrumento fosse concebido de forma a assegurar a mais ampla aceitao possvel entre os governos, armadores, e gente do mar, comprometidos com os princpios de trabalho decente, fosse de fcil atualizao e se prestasse a uma efetiva implementao e controle da aplicao4. Como comenta o diretor geral do Conselho de Administrao da OIT, Juan Somavia, no site da Organizao Internacional do Trabalho Lisboa/Portugal5,

11Adoptmos uma Conveno que abrange continentes e oceanos, fornecendo uma carta de trabalho para o mundo dos 1,2 milhes ou mais de trabalhadores martimos, e que ao mesmo tempo aborda as novas realidades em mudana e necessidades de um sector relacionado com 90% do comrcio mundial. E mais importante, estabelecemos uma base scio econmica para a competitividade global no sector martimo. Esta iniciativa pode tambm servir como um novo impulso e uma base para iniciativas igualmente inovadoras e equilibradas para uma globalizao justa noutros sectores no mundo do trabalho. (...) A Conveno permitiu estabelecer uma Carta dos Direitos para o setor martimo.

Como j citado anteriormente, por se tratar de um documento que concentra as normas e recomendaes atuais sobre o trabalho martimo, abordaremos aqui especialmente tal Conveno. Para tanto, importante citar algumas das Convenes e Recomendaes revisadas pela Conveno, com seus respectivos anos de promulgao em ordem cronolgica, conforme a Conveno sobe o Trabalho Martimo4: - Conveno (N. 7) sobre Idade Mnima (Trabalho Martimo), 1920; - Conveno (N. 54) sobre Frias Remuneradas (Trabalho Martimo), 1936; - Conveno (N. 55) sobre Obrigaes do Armador (Doena e Acidente de Gente do Mar), 1936; - Conveno (N. 56) sobre Seguro Doena (Trabalho Martimo), 1936; - Conveno (N. 57) sobre Horas de Trabalho e Tripulao (Trabalho Martimo), 1936; - Conveno (N. 68) sobre Alimentao e Servio de Mesa (Tripulao de Navios), 1946; - Conveno (N. 69) sobre Certificado de Aptido de Cozinheiros de Navio, 1946; - Conveno (N. 70) sobre Seguridade Social (Gente do Mar), 1946; - Conveno (N. 72) sobre Frias Remuneradas (Gente do Mar), 1946; - Conveno (N. 73) sobre Exame Mdico (Gente do Mar), 1946; - Conveno (N. 76) sobre Salrio, Horas de Trabalho e Tripulao, 1946; - Conveno (N. 91) sobre Frias Remuneradas (Gente do Mar) (Revista), 1949; - Conveno (N. 92) sobre Alojamento da Tripulao a Bordo (Revista), 1949; - Conveno (N. 109) sobre Salrio, Horas de Trabalho e Tripulao (Revista) 1958; - Conveno (N. 134) sobre Preveno de Acidentes do Trabalho (Martimos, 1970; - Conveno (N. 145) sobre Continuidade de Emprego da Gente do Mar, 1976; - Conveno (N. 147) sobre Normas Mnimas na Marinha Mercante, 1976;

12 - Conveno (N. 163) sobre o Bem-Estar dos Trabalhadores Martimos no Mar e no Porto, 1987; - Conveno (N. 164) sobre a Proteo da Sade e a Assistncia Mdica aos Trabalhadores Martimos, 1987; - Conveno (N. 180) sobre a Durao dos Trabalhos a Bordo e Tripulao, 1996. Como se v, a Conveno atual abarca inmeras questes referentes ao contexto martimo, incluindo outras mais atuais e que demandavam maior ateno. A seguir, esto elencados os principais pontos abordados no documento, a saber: Requisitos Mnimos para trabalhar a bordo de navio (idade mnima, formao, qualificao, contratao e operacionalizao), Condies de Emprego (salrio, horas de trabalho e descanso, frias, carreira e desenvolvimento de habilidades), Alojamento, instalaes de lazer, alimentao e servio de mesa a bordo (condies favorveis e higinicas no ambiente de trabalho), Proteo da Sade, Atendimento mdico, Bem-Estar e Proteo Social (assistncia mdica a bordo e em terra, responsabilidade dos armadores, proteo da segurana e da sade e preveno de acidentes, exposio a rudo e ventilao, notificaes, estmulo a adoo de polticas pblicas na rea da segurana e sade no trabalho, cooperao internacional, acesso a servios e instalaes que ofeream bemestar em terra, seguridade social), Cumprimento e Controle da Aplicao (cumprimento das diretrizes da Conveno, certificao do trabalho martimo e declarao de conformidade do trabalho martimo, inspeo e controle da aplicao das normas, tramitao de queixas a bordo e em terra, inspeo nos portos)4. Abaixo esto elencadas algumas definies importantes do mbito martimo que so pontuadas em seu Artigo II Definies e rea de Aplicao4:3:gente do mar significa qualquer pessoa empregada ou contratada ou que trabalha a bordo de um navio ao qual esta Conveno se aplica; servio de contratao e colocao de gente do mar significa qualquer pessoa, empresa, instituio, agncia ou outro tipo de organizao do setor pblico ou privado que se dedica a recrutar gente do mar em nome de armadores ou colocao de gente do mar junto a armadores; navio significa embarcao outra que no navegue exclusivamente em guas interiores ou em guas dentro de ou adjacentes a guas abrigadas ou reas onde se aplicam os regulamentos porturios; armador significa o proprietrio do navio ou outra organizao ou pessoa, como o gerente, agente ou afretador a casco nu, que houver assumido a responsabilidade pela operao do navio em lugar do proprietrio e que, ao assumir tal responsabilidade, se comprometeu a arcar com os deveres e responsabilidades cabveis a armadores em virtude da presente Conveno, independentemente do fato de outra organizao ou pessoa cumprir certos deveres ou responsabilidades em nome do armador.

13 Como toda norma internacional, a Conveno sobre o Trabalho Martimo preconiza a cooperao entre a Organizao Internacional do Trabalho, a Organizao Martima Internacional e a Organizao Mundial da Sade. No que tange s normas, regulamentos e regimentos legais nacionais referentes s atividades de trabalho martimo, podemos citar a Norma Regulamentadora N 306 do Ministrio do Trabalho, e de forma mais genrica, a Consolidao das Leis do Trabalho (CLT) 7. A Norma Regulamentadora N 306 do Ministrio do Trabalho trata especificamente das condies de segurana e sade dos trabalhadores aquavirios, funcionando como um mecanismo legal de proteo e regulamentao de tais condies. Nela6, no item 30.4.1, estabelecida a obrigatoriedade da formao de um Grupo de Segurana e Sade do trabalhado a bordo de Navios Mercantes (GSSTB), composto pelos seguintes tripulantes: oficial encarregado da segurana, chefe de mquinas, mestre de cabotagem ou contramestre, tripulante responsvel pela seo de sade e marinheiro de mquinas. De acordo com a Norma6, cabe ao GSSTB, entre outras coisaszelar pelo cumprimento a bordo das normas vigentes de segurana, sade no trabalho e preservao do meio ambiente; avaliar se as medidas existentes a bordo para preveno de acidentes e doenas relacionadas ao trabalho so satisfatrias; sugerir procedimentos que contemplem medidas de segurana do trabalho, especialmente quando se tratar de atividades que envolvam risco; investigar, analisar e divulgar os acidentes ocorridos a bordo, com ou sem afastamento, fazendo as recomendaes necessrias para evitar a possvel repetio dos mesmos; promover, a bordo, palestras e debates de carter educativo, assim como a distribuio publicaes e/ou recursos audiovisuais relacionados com os propsitos do grupo; identificar as necessidades de treinamento sobre segurana, sade do trabalho e preservao do meio ambiente; quando da ocorrncia de acidente de trabalho o GSSTB deve zelar pela emisso da CAT e escriturao de termo de ocorrncia no dirio de bordo.

Para fins de aplicabilidade, a Norma Regulamentadora N 306 do MTE dirige-se trabalhadores das embarcaes comerciais, de bandeira nacional, bem como s de bandeiras estrangeiras, no limite do disposto na Conveno da OIT n. 147 - Normas Mnimas para Marinha Mercante, utilizadas no transporte de mercadorias ou de passageiros, inclusive naquelas embarcaes utilizadas na prestao de servios. (Subitem alterado pela Portaria n 58/2008 - DOU 24/06/2008).

A criao desse Grupo um aspecto que vem sendo discutido entre trabalhadores, Governo Federal e o setor patronal. Trata-se da criao de uma CIPA especfica para os martimos. De acordo com matria publicada na Revista Unificar8 (Revista do Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante - SINDIMAR), de

14 abril de 2009, a recente introduo de dispositivos na Norma Reguladora N 30, obriga as empresas de navegao a compor essa comisso interna de preveno de acidentes, com a participao dos martimos. Segundo a revista8:100-101,o assunto veio tona porque algumas companhias tm interpretaes diversas sobre esse mesmo tema. Umas trabalham em dimensionar a CIPA da empresa e outras interpretam que somente os empregados de terra podem compor a comisso(...) A realizao de reunies trimestrais de carter deliberativo com a comisso tripartite fundamental.

A matria fala de um encontro realizado entre os membros da Comisso Permanente Nacional Aquaviria (CPNA) para o debate da Norma, criada para regulamentar e garantir a proteo das condies de segurana e sade dos aquavirios e que est em vigor desde 2002. Julga-se importante apresentar tais legislaes e documentos legais existentes por se tratarem da base jurdica concernente promoo da sade e preveno de acidentes desse grupo de trabalhadores, alm, claro, da Constituio Federal de 1988 e de outros documentos legais que sustentam a busca pela promoo da sade dos cidados, de uma forma geral. Com base nesse conjunto de normas e regulamentos, as anlises realizadas no estudo tero um embasamento legal, imprescindvel quando se pensa em formulao e avano das polticas pblicas. Os parmetros que abarcam tais leis, regimentos, normas e convenes tambm tm papel fundamental na metodologia do estudo, como a elaborao das entrevistas e na observao participante.

1.3.2 A Marinha Mercante brasileira e o cenrio aquavirio A Marinha Mercante brasileira responsvel pelas trocas comerciais atravs da via martima. Trata-se do conjunto de navios e outras embarcaes, portos e tripulaes destinadas ao transporte martimo de mercadorias e passageiros. responsvel pelo funcionamento do comrcio exterior do pas e ajuda a promover a competitividade das exportaes. Para isso, conta com tripulaes formadas por profissionais bem treinados e disciplinados. De acordo com o site do Sindicato Nacional das Empresas de Navegao Martima SYNDARMA9,a Marinha Mercante brasileira gera diretamente cerca de 10.000 empregos, contando-se apenas os empregados das empresas de navegao brasileiras (operando em terra e na tripulao dos navios de registro brasileiro). Sua capacidade de gerao de novos postos de trabalho indiretos - principalmente na indstria de construo naval grande: o efeito multiplicador estimado de trs empregos indiretos para cada direto. No final da dcada de 70, no entanto, o setor j chegou a empregar cerca de 40 mil

15pessoas. (...) A frota martima brasileira responde por pouco mais de 1% da tonelagem total de navios no mundo, ocupando a posio de 19 frota mercante mundial, segundo nmeros do Unctad, divulgados em 2001.

Segundo Costa, Pires e Lima10:138,a indstria naval brasileira atingiu seu apogeu no final da dcada de 1970, quando empregava cerca de 40 mil trabalhadores. Entrou em declnio durante os anos 1980 e chegou em 1999 empregando cerca de 600 metalrgicos. Mas, em decorrncia das encomendas da Petrobrs, oferecendo incentivos para embarcaes de bandeira brasileira, a atividade foi retomada. Alm dessas encomendas, outros fatores geraram expectativas positivas para o setor, como o Programa de Acelerao do Crescimento (PAC), lanado em janeiro de 2007, que destacou a indstria naval como um setor prioritrio. (...) Mais tarde, em maio de 2008, a indstria naval foi includa como um dos setores estratgicos da Poltica de Desenvolvimento Produtivo (PDP). Foi considerada estratgica em razo de seus efeitos multiplicadores na economia, pois movimenta uma extensa cadeia de agentes econmicos e gera uma quantidade significativa de empregos diretos e indiretos. Alm disso, segundo o governo, essa indstria reduz a remessa de divisas por fretes ao exterior e incentiva a gerao de novas tecnologias.

Quanto ao modal aquavirio (navegao martima ou fluvial), destacam-se a seguir algumas definies importantes elencadas na Lei 10.893/0411, que dispe sobre o Adicional ao Frete para a Renovao da Marinha Mercante - AFRMM e o Fundo da Marinha Mercante - FMM, e d outras providncias:Art. 2o. Para os efeitos desta Lei: I - porto o atracadouro, o terminal, o fundeadouro ou qualquer outro local que possibilite o carregamento e o descarregamento de carga; II - navegao de longo curso aquela realizada entre portos brasileiros e portos estrangeiros, sejam martimos, fluviais ou lacustres; III - navegao de cabotagem aquela realizada entre portos brasileiros, utilizando exclusivamente a via martima ou a via martima e as interiores; IV - navegao fluvial e lacustre aquela realizada entre portos brasileiros, utilizando exclusivamente as vias interiores; V - granel a mercadoria embarcada, sem embalagem ou acondicionamento de qualquer espcie, diretamente nos compartimentos da embarcao ou em caminhes-tanque sobre a embarcao; VI - empresa brasileira de navegao a pessoa jurdica constituda segundo as leis brasileiras, com sede no Pas, que tenha por objeto o transporte aquavirio, autorizada a operar pelo rgo competente; VII - estaleiro brasileiro a pessoa jurdica constituda segundo as leis brasileiras, com sede no Pas, que tenha por objeto a indstria de construo e reparo navais; e VIII - jumborizao o aumento de uma embarcao. Pargrafo nico. Considera-se tambm como empresa brasileira de navegao o rgo ou entidade que integre a administrao pblica estatal direta ou indireta ou esteja sob controle acionrio de qualquer entidade estatal, autorizada a executar as atividades de transporte aquavirio.

16 Navegao de Cabotagem e de Longo Curso De acordo com Velasco e Lima12:11,a cabotagem no Brasil est praticamente restrita ao transporte de granis (99% das cargas). Dentre as 47 milhes de toneladas transportadas observase o predomnio da movimentao de granis lquidos (76%) com grande destaque para a movimentao de petrleo e seus derivados. Em seguida vem a movimentao de granis slidos (23%) sendo que apenas 500 mil toneladas de carga geral so atualmente movimentadas por navios (1% da movimentao). O transporte de granis por navios no sofre concorrncia direta do modal rodovirio. So cargas de grande volume e/ou baixo valor, operadas em terminais especializados, normalmente conectados a redes ferrovirias ou dutos, havendo muitas vezes a integrao plena entre o porto e a indstria.

J o SYNDARMA9 aponta queA participao da navegao de cabotagem, embora responsvel por apenas 13% do total transportado em toneladas, vem crescendo nos ltimos anos. Em mdia, esse crescimento de 20% a cada ano. Destes 13%, apenas 2% so relativos carga geral. Uma caracterstica marcante que vrios navios originalmente concebidos para este segmento esto migrando do longo curso para a cabotagem e para a operao na regio do MERCOSUL.

Para Lima e Velasco13:18,A marinha mercante brasileira de longo curso sempre foi um setor bastante protegido e com grande interveno do governo. O setor privado recebeu grandes incentivos a partir do anos 70, com a implementao de sucessivos planos nacionais de construo naval. As trs empresas existentes nesse perodo eram estatais e operavam em segmentos distintos: Fronape, pertencente Petrobrs, atuando no setor de transporte de petrleo e derivados; Docenave, da Vale do Rio Doce, atuando no setor de granis slidos minerais; e Lloyd Brasileiro, do governo federal, atuando no setor de carga geral.

O SYNDARMA9 informa que atualmente muito pequena a participao de navios de registro brasileiro nesta modalidade de transporte martimo chamado de longo curso:baixou para pouco menos de 2%. At no segmento de apoio martimo registrou-se uma retrao: as empresas nacionais que j operaram cerca de 90 embarcaes de bandeira brasileira foram reduzidas a apenas 40.

O ltimo segmento de navegao apresentado aqui o de apoio martimo, que como o prprio nome j diz apia as atividades de explorao e produo de petrleo no mar. considerado um dos segmentos da navegao de cabotagem. O trabalho realizado por embarcaes especializadas, contratadas por empresas exploradoras de petrleo. Este o segmento sobre o qual o presente estudo se debrua, j que a autorizao para a pesquisa de campo foi aceita por uma empresa do Setor (Apoio Martimo). A navegao de apoio martimo considerada essencial no setor de explorao de petrleo no mar, pois tanto as plataformas martimas de perfurao de

17 petrleo como as de produo do mesmo, dependem integralmente das embarcaes de apoio para realizarem toda a logstica necessria. O termo Apoio Martimo se confunde muitas vezes com o de Offshore, pois se trata de atividades realizadas longe da costa. Quando se fala em Setor Offshore, necessariamente estamos falando do Setor de Apoio Martimo rea petrolfera. Esse apoio se d de diversas formas, todas elas consideradas operaes de grande sofisticao e em guas profundas: suprimentos ( o caso da embarcao onde a pesquisa foi realizada), operaes de reboque, posicionamento de plataformas de petrleo, apoio a construes submarinas, manuseio de ncoras, alm do transporte de pessoal. Julga-se importante nesse momento fazer uma descrio breve da trajetria do setor de apoio martimo no pas, para que se possa entender em que cenrio o Brasil se encontra atualmente e a importncia do setor para a economia do nosso pas. Pode-se dizer que o setor de apoio martimo teve incio no ano de 1948, no Golfo do Mxico, com a primeira plataforma de explorao a cu aberto, a chamada Breton Rig 20. A partir da foi construda a primeira embarcao de apoio martimo do mundo, o navio Ebb Tide. Este navio serviu de base para a construo das demais embarcaes de apoio. No Brasil, o setor de apoio martimo deu incio s suas operaes no ano de 1968, em Sergipe. Nessa ocasio, o poo no campo de Guaricema foi perfurado pela sonda norte- americana Vinegaroon e o apoio a essa operao se deu atravs de quatro embarcaes (duas de transporte de pessoal e duas para transporte de material). A base das operaes ficava em Salvador, na Bahia. Tambm nesse ano foi construda no Brasil a primeira plataforma de perfurao, pelo Estaleiro Mau, no Rio de Janeiro. A plataforma se chamava Petrobrs I. Foi a partir dessa plataforma que o mercado petrolfero se expandiu no pas e as primeiras empresas de navegao de apoio martimo se instalaram no Brasil. Quatro anos depois, foi criada a empresa de apoio martimo H. Dantas Servios Martimos, sendo a primeira empresa brasileira do setor. No entanto, s no ano seguinte, 1973, o pas dispunha de uma frota de bandeira brasileira no setor de navegao de apoio martimo, quando a Petrobrs importou o navio sonda Petrobrs II e mais treze navios de apoio martimo construdos para esse fim.

18 Em termos legais, a navegao de apoio martimo s foi considerada como um dos segmentos da Navegao de Cabotagem no final do ano de 1973, a partir de uma Resoluo do Governo Brasileiro. Quanto ao incio da produo de petrleo no pas, o que se sabe que em 1974 o poo offshore de Garoupa, na Bacia de Campos, jorrou petrleo pela primeira vez. Esse acontecimento marcou o comeo da produo offshore no Brasil. A Sociedade Auxiliar da Indstria do Petrleo (SATRO), considerada a primeira empresa brasileira a atuar especificamente no setor de apoio martimo, foi criada nesse mesmo ano. Com o passar dos anos, a Petrobrs, maior empresa da rea petrolfera do pas e uma das maiores do mundo, continuava a importar embarcaes, chegando ao nmero de vinte e oito no ano de 1975. Com o crescimento do setor no pas, surge a necessidade de um rgo representativo integrado dos interesses desse segmento. Foi ento instituda no ano de 1977 a Associao Brasileira das Empresas de Apoio Martimo ABEAM, reunindo as empresas pioneiras do setor. Atualmente a produo de petrleo offshore representa mais de 80% da produo nacional e a frota de apoio martimo dispe de um grande nmero de embarcaes. Uma das responsveis por esse aumento da frota brasileira foi a prpria ABEAM, que atravs de uma ao poltica h cerca de dez anos, props a implantao de um programa de renovao da frota de apoio martimo. Com a aceitao dos Governos Federal e Estadual, alm do BNDES e da Petrobrs, diversos navios de apoio martimo foram construdos em estaleiros brasileiros. Na poca, a maior parte dos navios da frota era muito antiga e no eram de bandeira brasileira. J o cenrio atual apresenta uma frota brasileira conhecida como uma das mais modernas do mundo, com embarcaes com tecnologia avanada. Alm disso, com a criao de novas empresas brasileiras de apoio martimo, esse programa de renovao sugerido pela ABEAM mudou o quadro da indstria de construo naval, j que muitos estaleiros foram criados e reativados para a construo de navios petroleiros. Alm do aumento significativo da frota brasileira, as embarcaes se tornavam cada vez mais modernas tecnologicamente. Segundo o presidente da ABEAM, Dr. Ronaldo Lima14, em discurso proferido no aniversrio de 30 anos da Associao,o olhar sobre o cenrio da indstria offshore, onde cerca de mais de 40 bilhes de dlares esto sendo investidos at 2011, apresenta a dimenso do desafio que o setor de Apoio Martimo tem pela frente. A explorao de petrleo est intensificada. As descobertas se sucedem e a Petrobrs tem

19planos de colocar em operao quatro novos campos produtores at 2011. Isso tudo nos mostra, que devemos continuar trabalhando intensamente para novos programas de Renovao e nacionalizao da Frota brasileira de Apoio Martimo.

1.3.3 - A Formao Profissional Martima Quanto formao profissional martima, de responsabilidade do Ministrio da Marinha, esta compreende dois nveis: os Oficiais e a Guarnio. O curso de formao de Oficiais da Marinha Mercante se d atravs de regime de internato e ministrado no Rio de Janeiro, pelo Centro de Instruo Almirante Graa Aranha (CIAGA) e em Belm, pelo Centro de Instruo Almirante Braz de Aguiar (CIABA). Tem a durao de seis semestres escolares e dois de estgio embarcado (em navios das Companhias de Navegao) para os oficiais de nutica e a mesma durao de semestres escolares e mais um semestre embarcado para os oficiais de mquinas. Aps o estgio embarcado (conhecido como praticagem), os alunos aprovados recebem o certificado de segundo Oficial de Nutica ou de Mquinas, dependendo da categoria que estiverem cursando. A certificao lhes confere o ttulo de Bacharel em Cincias Nuticas (nvel superior) e estes passam a integrar o Quadro de Oficiais da Reserva no Remunerada da Marinha, como Segundo-Tenentes. Em alguns pases, a escola de Marinha Mercante privatizada, portanto os alunos devem pagar para estudar, diferentemente do Brasil, que tem sua escola de formao para a Marinha Mercante vinculada Marinha do Brasil, sendo todo o oramento voltado para a formao de seus oficiais e profissionais de guarnio advindos do Ministrio da Marinha. Os alunos, inclusive, recebem uma ajuda de custo no perodo de formao. Alm desses cursos, h tambm os voltados para adaptao de universitrios recm-formados e de subalternos da Marinha, o que ajuda na formao de oficiais. O CIAGA tambm realiza o Programa do Ensino Profissional Martimo, voltado para cursos de qualificao e atualizao para as categorias de aquavirios. Para isso, dispe atualmente de um efetivo de cerca de 213 militares e 201 servidores civis15. Quanto ao curso de formao de guarnio, divide-se em duas categorias: Diviso de Mquinas e Convs e de Cmara e Sade. Santos16:22, sobre os cursos de formao, assinala queO primeiro intitulado de Curso Preliminar de Aquavirios A (CPAA), destinado habilitao ao embarque de Moo e Marinheiro Auxiliar de Mquinas e Convs, tem carga diria de trs horas, sendo sua durao de

20cinco dias, totalizando uma carga horria de quinze horas. O segundo, Curso Preliminar de Aquavirios B (CPAB), destinado habilitao (ao embarque) para a seo de cmara (Cozinheiro e Taifeiro) e seo de sade (Enfermeiro e Auxiliar de Sade), tem a durao de quatro dias, totalizando doze horas de carga horria. Ambos os cursos tambm so de responsabilidade do Ministrio da Marinha (Superintendncia de Ensino Profissional Martimo) e ministrados pela Capitania dos Portos, Delegacias e Agncias em todo o territrio nacional, segundo critrios e datas estabelecidas no Programa de Ensino Profissional Martimo (PREPOM).

O curso de formao martima do CIAGA, atravs da EFOMM (Escola de Formao de Oficiais da Marinha Mercante), tem um papel de altssima relevncia dentro da Marinha do Brasil e, tambm, da Universidade Martima Mundial. Atravs de um convnio com a Organizao Martima Internacional (IMO), o CIAGA passou a receber regularmente alunos vindos de diversos pases e foi eleito, em 1988, Centro Regional da Universidade Martima Mundial15. Uma vez esclarecida a atuao da Marinha Mercante e de que forma estruturada a formao profissional martima, destaco uma frase extrada da dissertao de mestrado de Janana Santos16, que julgo ser interessante nessa discusso: a da escolha por se trabalhar embarcado, num espao limitado e ausente da famlia e amigos em terra e, principalmente, a percepo desses trabalhadores em relao ao espao e contexto de trabalho. em funo desse olhar do trabalhador sobre seu ambiente de trabalho e sobre sua prtica profissional e, tambm, em como se d a organizao do trabalho nessas condies que o estudo se debrua. Ela diz16:52:A Marinha Mercante uma instituio que tem como objetivo o transporte de diversas mercadorias entre os portos dos continentes, mas isto no impede que em alguns momentos o navio seja percebido pelo trabalhador como uma priso, sendo o seu desembarque a nica possibilidade de liberdade.

Os desdobramentos dessa afirmao parecem ter uma conotao um tanto pesada, contudo, diversas percepes sobre o trabalho embarcado e, especialmente, sobre o que venha a ser liberdade e isolamento puderam ser constatadas no decorrer das observaes em campo e, a partir das entrevistas com os martimos embarcados. interessante observar a representao e entendimento do isolamento para esse grupo de trabalhadores, podendo surpreender os que tm uma viso distanciada da realidade de trabalho em questo. Tais impresses e percepes sero apresentadas no captulo 3 desta dissertao.

21 CAPTULO 2 A EMBARCAO

2.1 ESPECIFICAES GERAIS O trabalho de campo foi realizado em uma embarcao do tipo PSV (Platform Supply Vessel), barco que tem como funo o armazenamento e transporte de suprimentos para plataformas de petrleo e Portos. So embarcaes projetadas para ter grande capacidade de armazenagem, com o objetivo de abastecer instalaes de offshore (plataformas de petrleo). De acordo com o comandante do barco, h embarcaes especficas para o transporte de leo, granis e outros materiais. O Suplly abrange diversos tipos de materiais para fornecimento. Segundo ele, todo PSV um barco de suprimentos. Ele explica que para as plataformas de petrleo funcionarem, dependem do recebimento e transporte de diversos equipamentos e suprimentos. O trabalho dos martimos que trabalham no setor offshore, especificamente nesse tipo de barco, justamente realizar esse transporte. No caso da embarcao onde a pesquisa foi realizada, sua funo fornecer gua, leo diesel, granis com materiais como lama, betonita, cimento, lama qumica, e barintina, que sero utilizados na perfurao das plataformas de petrleo. Transportam os equipamentos e retornam para peg-los novamente, quando as plataformas no estejam necessitando mais dos equipamentos. H barcos, por exemplo, que s fornecem leo diesel, produtos qumicos, e outros que tambm operam com posicionamento de plataforma. Esse barco em questo tambm fornece alimentos, o chamado rancho da tripulao embarcada. A tripulao dos PSVs geralmente composta de 20 tripulantes.

2.2 ATIVIDADES E ORGANIZAO DO TRABALHO A BORDO 2.2.1 O trabalho no Convs O convns o local da embarcao onde ficam alojadas as cargas e onde ocorre o transporte das mesmas, que ficam armazenadas em containeres. Todo o material transportado para as plataformas e retirado dos portos fica armazenado no convs. Esse trabalho de acomodar os containeres e retir-los conforme so entregues (movimentao de carga) realizado pelos marinheiros e moos de convs. Alm disso, esses profissionais tambm trabalham na manuteno do barco, quando a embarcao no est realizando operaes com plataformas. Esse trabalho inclui tratamento de ferrugem e limpeza, prevenindo o desgaste do barco por conta da ao da maresia.

22 No convs, h o marinheiro de ordem, cujas instrues de trabalho so passadas pelo imediato. Aps receber as coordenadas de servio, informa aos demais marinheiros. Durante a permanncia no convs obrigatria a utilizao de EPI (equipamento de proteo individual), que inclui capacete, protetor auditivo, culos, luvas, macaco e botas. A pesquisadora recebeu todo esse material antes do embarque e pde observar que a utilizao do mesmo pela tripulao feita de forma natural, segura e educativa. Todas as informaes foram passadas em relao forma de utilizao e locais obrigatrios de uso, alm das relativas segurana nos espaos do barco e como proceder em caso de acidente. J com as informaes relativas ao uso dos EPIs e recomendaes de permanncia no convs, foi possvel percorrer todos os espaos do local com um dos marinheiros e a psicloga da empresa. O mestre de ordem do convs explicou sobre a estrutura da embarcao e deu informaes sobre seu trabalho, o que favoreceu um levantamento de dados importante sobre segurana, trabalho, hierarquia, funes dentro da embarcao, limites, riscos, entre outros aspectos. No momento da entrevista com o marinheiro, o barco estava transportando gua para uma plataforma, e por isso no foi possvel percorrer todo o espao por conta do risco de um mangote estourar (mangote o termo tcnico usado no setor de navegao para se referir mangueira). Atravs do mangote so transportados leo, gua e outros materiais para as plataformas, variando apenas a espessura. Segundo o comandante, geralmente a quantidade solicitada pelas plataformas de 100m. Durante a observao do convs e do trabalho dos marinheiros, algumas informaes foram levantadas em relao ao trabalho dos marinheiros. Perguntado a um dos martimos sobre os tipos de trabalho realizados no convs quando a embarcao estivesse transportando materiais, ele explicou: Ns aguardamos instrues, at porque aqui a gente no tem que fazer nada por nossa conta...Ns seguimos o sistema.. e o sistema chama-se uma hierarquia. Procede das ordens do passadio. Para isso bom trabalharmos sempre em sintonia, para que no haja mal entendidos, principalmente quando se refere transferncia de leo, porque uma operao muito delicada. Perguntado sobre como se d a execuo de seu trabalho, ele comenta:

23 Aguardar instrues e... enquanto eles (da plataforma) se preparam para uma transferncia de gua ou leo, aguardamos um posicionamento da embarcao em relao unidade (que neste caso uma plataforma da Shell)... e recebendo a ordem de passar o leo, preparamos o mangote. (...) Nosso propsito aqui trabalhar com segurana, no trabalhar correndo, atropelando ningum... Aqui ns no precisamos mostrar servio. Fazer o nosso, na marca, para que a empresa fique feliz em saber que estamos trabalhando bem... para que todos fiquem felizes... e quando chegar prximo do desembarque, na troca de turma, irmos para casa felizes tambm. Aqui nossa casa. Passamos 28 dias aqui e 27 dias com a nossa famlia, mas quando estamos aqui procuramos ao mximo nos desprender l de fora. Ou seja, temos que estar concentrados naquilo que estamos fazendo aqui, at para evitar um acidente em relao nossa pessoa e queles que esto nossa volta, cumprindo suas tarefas. Julga-se importante detalhar as atividades para que se tenha um panorama da atuao do grupo e dos aspectos envolvidos. Com base nas informaes do martimo, os mesmos recebem o mangote, o conectam com o da embarcao que esto (o da unidade com o mangote de bordo) e assim, uma vez conectado, aguardam a ordem de abrir a vlvula (quando essa ordem de abrir a vlvula chega at eles, significa que a Praa de mquinas j deu o pronto (a confirmao) ao passadio de que est tudo pronto para o recebimento ou a transferncia do produto, que no caso pode ser leo, gua, barintina, cimento, etc.). 2.2.2 - O trabalho no Passadio O passadio o local onde fica localizada a sala de navegao da embarcao. Geralmente o piso mais alto do barco. Dele, possvel ter uma viso externa da embarcao, do mar, do horizonte e do que est acontecendo na navegao. onde ficam os pilotos, os oficiais de nutica, o imediato e o comandante. Acima do passadio s h o Tijup, onde ficam as antenas. De acordo com o comandante, nenhum tripulante freqenta esse local. De acordo com o comandante, sempre ficam dois profissionais por turno na funo, tanto no passadio como na Praa de Mquinas.

24 2.2.3 O trabalho na Praa de Mquinas A Praa de Mquinas o local onde ficam os motores da embarcao, que geram energia para o barco (motores de propulso, bombas que fazem com que toda a estrutura da embarcao funcione, etc). De acordo com o Cdigo de Prticas da OIT, organizado pela

FUNDACENTRO, intitulado Preveno de Acidentes a bordo de navios no mar e nos Portos17:139, todas as operaes na sala de mquinas devem ser conduzidas por pessoa competente, sob superviso de um oficial responsvel ou de um especialista. Quanto ao equipamento de proteo, o Cdigo atenta para o fato de que deve haver ateno especial proteo dos martimos que trabalham na Sala de Mquinas contra os efeitos dos rudos. Segundo as recomendaes, nos espaos onde o equipamento de proteo auditiva deve ser utilizado, o uso deve ser indicado por sinalizao de segurana. H muitos documentos legais referentes locais de trabalho com excesso de rudos, com orientaes e normas para que o trabalho seja realizado de forma a no afetar negativamente a sade do trabalhador. Dentre esse arcabouo legal importante citar a Conveno 119, que fala sobre Proteo nas Mquinas; a Conveno 148 sobre Ambiente de Trabalho, que aborda a poluio do ar, rudo e vibraes e, por fim, o Cdigo de Prticas sobre proteo dos trabalhadores contra rudo e vibrao no ambiente de trabalho, organizado pela OIT em 1984. Todos esses Cdigos so importantes instrumentos de preveno de acidentes e de sistematizao do trabalho em locais com rudos, como o caso da Praa de Mquinas dos navios. A equipe de Mquinas composta pelo chefe de mquinas (oficial superior de mquinas), pelo subchefe de mquinas (que tem patente de 1 ou 2 oficial de mquinas), condutor (responsvel pela conduo mecnica), eletricista e marinheiro de mquinas.

25 CAPTULO 3 O TRABALHO EMBARCADO

3.1 O TRABALHO EMBARCADO E SUAS ESPECIFICIDADES Como vem sendo dito at o momento, o pressuposto que fundamenta a presente investigao est pautada na idia de que o trabalho realizado em navio, longe da costa e com acesso restrito comunicao pode causar impactos na vida dos trabalhadores nessas condies. importante enfatizar que a empresa responsvel pela embarcao onde o trabalho de campo foi realizado vem se destacando no mercado de apoio martimo pela preocupao com uma permanncia em alto mar que inclua boa alimentao, meios de comunicao com familiares em terra e segurana. Portanto, vale ressaltar que no contexto especfico da embarcao estudada, o impacto negativo da falta de comunicao no se aplica inteiramente. Nessa empresa, especificamente, h uma comunicao dos trabalhadores com familiares, atravs de e-mail e telefone, o que no comum nessa conjuntura de trabalho. Em diversos momentos durante a pesquisa, os trabalhadores fizeram questo de ressaltar que aquela no era a realidade do trabalho martimo, ou seja, a conjuntura de trabalho estudada no correspondia a dos martimos em geral. A empresa se destaca no cenrio de apoio martimo justamente por oferecer uma boa infra-estrutura para seus trabalhadores, especialmente no que tange comunicao com a rea externa ao ambiente de trabalho. A grande maioria dos martimos embarcados casada e possui filhos, sendo a comunicao por telefone e e-mail considerada por eles como fundamental para a boa continuidade do trabalho. No perodo da pesquisa de campo, a turma (como chamado o grupo que compe a tripulao nos 28 dias de embarque) era composta de 18 pessoas, distribudas conforme o quadro a seguir: Funo Comandante Imediato Condutor mecnico Praticante Taifeiro Efetivo 1 1 1 2 1

26 Moo de Convs Marinheiro de Convs Cozinheiro Marinheiro de Ordem Oficial de nutica Chefe de mquinas Eletricista Oficial de mquinas 3 1 1 1 3 1 1 1

Com base nas entrevistas realizadas a bordo, o perfil dos martimos embarcados predominantemente masculino e com idade entre 24 e 60 anos. Dos 18 martimos que estavam a bordo, 14 participaram das entrevistas e um dos que no participaram mencionou a idade em conversa informal com a pesquisadora. Segundo matria da Revista Unificar18:82-83, o perfil mundial dos martimos aponta para profissionais cada vez mais velhos:De acordo com dados da Organizao Internacional (BIMCO) sobre o quantitativo de oficiais mercantes no mundo, a faixa etria predominante est aumentando gradativamente. Em outras palavras, hoje o mercado acolhe oficiais cada vez mais experientes. Segundo dados dessa pesquisa, os oficiais com mais de cinqenta anos so a maioria dos que trabalham no mundo, atingindo o impressionante ndice de 40%; nesse mesmo ano, o menor percentual aponta para martimos abaixo de 30 anos. Este ndice ultrapassa timidamente a casa dos 10%. No incio dos anos 1990 esses percentuais eram diferentes. Os oficiais at 30 anos eram a menor fatia, mesmo porque, como em qualquer profisso, o nmero de profissionais recm formados sempre bem menor do que o nmero de trabalhadores em atividade. No entanto, o que diferencia uma poca da outra o nmero de oficiais com mais de cinqenta anos. Enquanto no incio dessa dcada eles eram, e provavelmente continuam a ser hoje em dia, a maior fatia do mercado (conforme citado anteriormente), nos idos de 1990 eles significavam, praticamente, o mesmo percentual de oficiais recm formados. Naquela poca, o domnio dos martimos entre 30 e 50 anos era amplo. A partir desses nmeros, o SINDIMAR concluiu que no houve renovao e nem mesmo investimentos significativos em jovens. O profissional que tinha 40 anos em 1990, por exemplo, e que fazia parte da maioria, hoje est no grupo de profissionais em atividade com mais de 50 anos (que a grande fatia do mercado atual).

Ainda fazendo referncia ao perfil etrio dos martimos no pas, o texto mostra o quanto os jovens profissionais tm apresentado crescimento em suas carreiras, chegando rapidamente a funes de comando18:83:No Brasil, os jovens que ingressam nas Escolas de formao de oficiais da Marinha Mercante, no Par e no Rio de Janeiro, demonstram vocao pelo mar. A qualidade dos jovens oficiais mercantes excelente. Prova disso que muitos deles alcanam postos de comando e chefia de embarcaes com menos de dez anos de carreira. E este apenas um dos segredos do pas que

27forma mais de duas centenas de oficiais mercantes altamente qualificados todos os anos. Alm do excelente curso de formao proporcionado pela Marinha do Brasil, os oficiais ainda podem se especializar em diversas reas do setor martimo. H cursos de ps-graduao que contribuem para o aprimoramento ainda maior de homens e mulheres do mar. H pouco tempo, a Universidade Corporativa de marinha mercante, se inseriu no mbito acadmico marinheiro para oferecer educao complementar. A UCM ministra cursos MBA em Gesto de SMS e MBA em Gesto de equipamentos martimos.

Apesar da matria acima apresentar dados estatsticos que mostram a prevalncia de homens no trabalho martimo, corroborando o que foi observado e discutido com os trabalhadores a bordo, um ponto parece no retratar o que, de fato, vem ocorrendo no setor de apoio martimo. O fato de estarem alcanando rapidamente funes de comando nas ltimas dcadas parece ter outro sentido, que no simplesmente vocao para o mar e uma formao de qualidade. Segundo alguns entrevistados, a ascenso rpida postos de comando indica o desejo de acumular recursos (o chamado p-de-meia) ainda jovem e, com isso, realizar seus sonhos profissionais e pessoais. A formao martima vista pela grande maioria deles como um meio de ganhar dinheiro para realizao de outras aspiraes e sonhos, que vo desde uma boa criao para os filhos at o desejo de abrir seu prprio negcio. Eu tinha uma meta de ficar de cinco a sete anos. No quero fazer carreira. s o tempo de juntar um dinheiro... Mas tambm s saio daqui se passar num concurso pblico. A eu saio daqui, sem pensar (...) Eu queria me aposentar com 50 anos...Eu pensava em trabalhar uns cinco, sete anos aqui, embarcado, que onde tem o retorno maior...da depois eu passar num concurso pblico, ou abrir um negcio...Mas...Agora aqui eu vejo que difcil... porque todo mundo fala: Ah, no...vou fazer um p de meia e depois eu saio.... Mas se sair a pessoa no tem qualificao para ter um emprego em terra. Essa profisso totalmente especfica. Por melhor que eu seja aqui, em terra eu no vou ser nada... Bacharel em Cincias Nuticas... Ah, faz o qu? O que voc vai me ajudar aqui na minha empresa?. Sempre pensei em abrir uma lanchonete, comenta um dos martimos, que oficial. Essa viso a respeito da carreira martima foi comentada em outras entrevistas e nas conversas informais durante a pesquisa de campo, evidenciando uma relao dialtica entre os trabalhadores e o trabalho que realizam. Ou seja, para muitos deles o trabalho realizado representa apenas um meio de se alcanar coisas, mas no

28 necessariamente prazeroso para eles. Esse aspecto chama a ateno tambm para as motivaes que os levaram a escolher essa ocupao e as expectativas para o futuro. Uma das perguntas do roteiro de entrevista pedia que falassem de suas expectativas profissionais para o futuro, e foi possvel identificar um pensamento comum entre eles no que diz respeito idade e realizao profissional. Muitos jovens, na faixa de 24 a 30 anos, falaram de seu trabalho como um trampolim para sua realizao pessoal e profissional, manifestando o desejo de uma vida embarcada curta. Em outras palavras, muitos vem o trabalho martimo embarcado como difcil de ser mantido por muitos anos, devido a alguns elementos diferenciadores desse trabalho, como ausncia da famlia e o fato de no vivenciarem muitos acontecimentos fora do trabalho. Os mais jovens comentam que ingressar cedo na Marinha Mercante e fazer o que eles chamam de p-de-meia, a idia da grande maioria a respeito desse tipo de trabalho, como pde ser visto no trecho da entrevista acima. Diante dessa fala, foi perguntado se era comum essa idia entre eles, de que o trabalho embarcado era considerado por muitos como um p-de-meia. Ele completa: Quase todo mundo pensa assim. Por qu? Ficar seis meses sem ver sua famlia?... Isso aqui no vida para voc ficar a vida toda... Ficar 30 anos aqui? Em clima de navio? Voc vai deixar de viver muita coisa... Vale a pena porque est ganhando dinheiro, mas no futuro no vai valer tanto a pena assim.... Essa questo da carreira transitria tambm aparece na fala de uma martima, que associa o tempo de carreira a um tema bastante polmico no setor, a gravidez e a licena maternidade, assuntos que sero abordados ao final deste captulo. Nesse sentido, para as mulheres a perspectiva de trilhar uma carreira curta ainda mais evidente. possvel notar que a famlia tanto aparece como a causa central da permanncia na profisso (para que seja mantida financeiramente), como tambm para que a carreira seja curta (impossibilidade emocional de manter essa ruptura constante com o ambiente scio-familiar). Voc quando vem para a Marinha tudo so flores, n? Depois voc acaba ficando porque j est dentro do mercado... j est profissionalizado nessa rea. Porque normalmente, depois que acaba aquela empolgao toda, de conhecer o mundo, de navegar os sete mares, a voc comea a buscar uma

29 famlia e voc v que no d para compartilhar. Ento o que que voc faz? Sua vontade meter o p e ir embora para casa, ficar em casa..., explica um dos entrevistados. O que mantm alguns desses profissionais na rea justamente a famlia, ou melhor dizendo, as responsabilidades para com ela: Voc ama a esposa que tem em casa e os filhos que tem em casa... mas a voc acaba ficando pela sua responsabilidade. Quando voc assume uma responsabilidade para com uma famlia, ento voc ignora qualquer outro fator, at mesmo a saudade, completa. J apresentado o perfil da tripulao estudada, com dados referentes faixa etria e funes na embarcao, julga-se importante, nesse momento, elucidar as funes de cada posto dentro do barco e qual a relao entre os diversos tipos de trabalho na embarcao. Considerando que cada embarcao composta por pessoal de mquinas, convs e cmara, divididos entre oficiais, suboficiais e subalternos, conhecer as responsabilidades de cada profissional favorecer a compreenso desse estudo. Vale ressaltar que h uma diferena entre posto e funo. O martimo pode evoluir em seu posto de acordo com o tempo que trabalha embarcado e com os cursos de especializao que realiza na carreira, contudo, a funo que exercer depender da empresa que o contratou. Um exemplo disso um oficial de nutica que exerce a funo de imediato na embarcao. Cada funo ser descrita a seguir, divididas por sees da embarcao. Como mencionado anteriormente, essa descrio detalhada das funes se mostra necessria para que tenhamos uma idia clara das atividades executadas por cada profissional e a relao com as demais. Conhecer cada atribuio possibilita um entendimento maior sobre os riscos envolvidos, relao entre as funes, demanda de trabalho, etc. Seo de Convs Oficiais: Comandante: a maior autoridade a bordo. Ele o responsvel por tudo o que ocorre na embarcao, controla os gastos e o elo de comunicao entre o barco e o armador (proprietrio). sempre um oficial formado pela Marinha Mercante, com treinamento e cursos relativos ao tipo de embarcao que est comandando. Juntamente com o

30 comandante e o imediato, trabalham sempre um oficial de navegao, com funo de auxiliar. Imediato: O imediato a segunda pessoa com maior autoridade na embarcao, o substituto legal do comandante a bordo. responsvel pela disciplina a bordo, portanto praticamente toda a tripulao fica subordinada funo do imediato. Trabalha diretamente com os marinheiros do convs e no suporte aos pilotos no passadio. Tambm de responsabilidade do imediato os assuntos relativos sade e medicao (enfermaria) e limpeza a bordo. O imediato um oficial de nutica, contudo sua funo vai alm das referentes a essa qualificao. Atua com funes de um oficial de nutica, com exceo de algumas atividades, como correo de cartas nuticas, realizada pelo piloto. O imediato apenas coordena essa funo, sendo considerado um gestor da embarcao. Gerencia tanto o convs como o setor de nutica. Primeiro Oficial de Nutica: Responsvel pela documentao da embarcao. No setor offshore, o Primeiro e Segundo Oficiais de Nutica exercem funes bem semelhantes. Ambos geralmente so pilotos e podem atuar tanto na rea de documentao como na de segurana. Segundo Oficial de Nutica: Tambm chamado na embarcao de Oficial de quarto e de convs. Fica responsvel pela parte de segurana e salvatagem. Esta ltima pode ser descrita como um conjunto de procedimentos para salvaguardar a vida humana no mar. Caso ocorra alguma situao de abandono do navio, esse profissional cuida das balsas, da inspeo e manuteno da embarcao, alm do servio voltado para documentao, que tambm realizado pelo Primeiro Oficial de Nutica. Em cada carregamento e descarga, esse oficial precisa ficar atento s cargas, fazer anotaes, construir o plano de carga, cuidar da navegao (plano de viagem, correo de carta nutica, aviso aos navegantes, registro em dirio de navegao). As cartas nuticas contm a posio geogrfica da embarcao e algumas vezes se faz necessrio realizar correes nas mesmas, por conta de navio naufragado e outras situaes. Essas correes so feitas em geral, quinzenalmente. Dependendo da operao, os oficiais de nutica tambm operam no convs da embarcao, fiscalizando operaes. Segundo um dos martimos, esta diviso mais adotada em grandes navios, sendo bem clara a diferena entre 1 e 2 oficiais de nutica. O primeiro fica responsvel pela documentao do navio, como correo de carta nutica e

31 documentao para portos, e o segundo pela segurana e salvatagem. Nessa embarcao especfica a diferena entre esses Oficiais muito sutil. Em termos de formao na Marinha Mercante, todos saem como 2 oficial de nutica, atingindo a graduao de 1 oficial de nutica aps dois anos de embarque. Aps mais dois anos, podem passar para o posto de Capito de Cabotagem (CCB), e por fim Capito de Longo Curso (CLC). Caso o oficial atinja graduao mxima, pode atuar como comandante em embarcaes.

Subalternos (mestragem e marinhagem): Marinheiro de Ordem/Mestre da embarcao: subordinado diretamente ao comandante e ao imediato. responsvel pelo convs, atuando em manobras de atracao e desatracao, fundeio e manuteno da limpeza, disciplina e ordem na embarcao. Marinheiro de convs: responsvel pela atracao e manuteno da embarcao, pintura e conservao. Por vezes auxilia na navegao e em alguns servios de limpeza da embarcao, como convs e outras reas de acesso comum tripulao. Moo de convs: Tambm chamado de aprendiz de marinheiro, esse profissional atua no manuseio de cargas e manuteno de peas volantes. responsvel por tratar o barco, fazendo limpeza do convs e passadio. Fazer a segregao do lixo tambm tarefa do moo de convs. Ao ingressar na Marinha Mercante o martimo passa a ser considerado moo de Convs (MOC), devendo passar por um perodo de embarque de quatro anos para se tornar um marinheiro.

Seo de Mquinas: Oficiais: Conforme a sua categoria a bordo, um oficial de mquinas pode exercer as funes de chefe de mquinas, segundo oficial de mquinas/subchefe de mquinas ou de oficial de mquinas chefe de quarto. Chefe de mquinas: o responsvel maior pela seo de mquinas, cabendo a ele supervisionar as tarefas de conduo e manuteno das mquinas, compostas pelos sistemas de propulso e produo de energia da embarcao. Em funo dos tipos de barco, a funo de chefe de mquinas pode ser exercida por um oficial de mquinas ou por um condutor de mquinas, chamado tambm de maquinista.

32 Subchefe de mquinas (2 Oficial de Mquina): A funo do 2 oficial de mquinas consiste em acompanhar o chefe de mquinas da embarcao, sendo seu substituto direto caso seja necessrio. responsvel pelas instalaes mecnicas e eltricas juntamente com chefe de mquinas e supervisiona operaes de rotina de conduo e manuteno de mquinas. Tambm compete a ele a chefia de um quarto de mquinas, podendo assumir responsabilidade sobre um determinado equipamento da seo.

Subalternos (mestragem e marinhagem): Condutor: Os aquavirios da seo de mquinas so considerados subalternos e chamados de forma geral como condutores ou maquinistas. Como os oficiais de mquinas, eles tambm atuam na conduo e manuteno de mquinas. Inspecionam, controlam o funcionamento, conduzem e monitoram as mquinas da seo. Eletricista: Responsvel pelas instalaes eltricas da embarcao.

Seo de Cmara: Cozinheiro: Prepara as refeies da tripulao. No caso dessa empresa, o cozinheiro segue o cardpio elaborado pela nutricionista, que no atua embarcada. O cardpio de cada dia do ms organizado levando-se em conta o contexto de trabalho dos martimos, com alimentao balanceada e que supra as necessidades nutricionais da tripulao. Trabalha juntamente com o taifeiro. Para ingressar no curso da marinha mercante, o cozinheiro precisa ter experincia de dois anos como taifeiro, que equivale a profisso de garom em terra. Taifeiro: A taifa na rea nutica a profisso relacionada aos servios de alojamento e alimentao. O taifeiro responsvel pela limpeza da embarcao, incluindo camarotes, frigorficos e demais ambientes do barco. Ajuda o cozinheiro na preparao de refeies, no servio de cafeteria e na arrumao, alocao, conservao e distribuio dos alimentos a bordo.

3.2 JORNADA DE TRABALHO, SISTEMA DE TURNOS E PAUSAS O perodo em que os martimos ficam embarcados de 28 dias, sendo os 28 dias seguintes para descanso em terra. Nesses 28 dias embarcados, cumprem regime de

33 trabalho de 12 horas dirias, sendo 6 horas de trabalho, seis de descanso e mais seis de trabalho (o chamado sistema seis por seis). Um dos elementos diferenciadores do trabalho embarcado justamente esse tempo de descanso, pois estando embarcados durante esses 28 dias, as horas de descanso so utilizadas no prprio local de trabalho. A partir do momento em que voc embarca voc est 24 horas no ar, voc est 24 horas no ar. (repetio do entrevistado). Claro que dentro dessas 24 horas voc precisa de um revezamento...para voc poder tomar seu banho, jantar ou almoar, tomar o caf da manh... no caso o pessoal que larga s seis horas da manh, que pegou de 0 hora s seis, eles tm de seis da manh ao meio dia. Nesse intervalo a, no quer dizer que ele v dormir seis horas... at porque no tem como... no existe mgica. Mgica iluso. (...) Ele tem que ter um tempo para tomar banho, trocar de roupa, tomar seu caf, fazer a digesto e dormir... nisso que ele vai dormir, j vai para quase oito horas da manh... para acordar 11:15h... para poder ter uma maneira a dentro desses 45 minutos, de escovar os dentes, lavar o rosto e almoar...para meio dia ele estar j rendendo o pessoal que pegou de seis da manh ao meio dia, entendeu...?, explica um martimo na entrevista. Essa questo foi recorrente nas entrevistas, chamando a ateno por ter sido uma fala comum e pela forma semelhante com que foi descrita pelos trabalhadores. Todos apresentaram o mesmo discurso quando se referiam s horas de descanso. O trecho abaixo evidencia esse discurso comum apontado nas entrevistas: s vezes, chega no final e a gente est meio cansado j...(...)a rotina bem puxada, porque voc trabalha na verdade as seis horas, mas voc no descansa efetivamente aquelas seis horas que voc tem para descansar. Voc tem que acordar mais cedo para tomar um caf, por exemplo, acordar mais cedo para jantar, para almoar (...). Em outra entrevista, um deles responde que as horas de descanso no so suficientes para descansar, assim como grande parte das demais entrevistas. Suficiente eu acho que no , mas d para descansar... Porque... voc tem seis horas para descansar...s que voc no descansa seis horas... porque, vamos supor... eu saio agora s 18h... a eu tenho que tomar banho, tenho jantar... quer dizer, isso a tudo leva em torno de 1 hora. A eu j no tenho

34 seis horas para descansar, n... eu tenho 5... se eu estiver com sono... porque se eu no estiver com sono...no consigo dormir.... Nesse sentido, as horas de lazer que poderiam ser aproveitadas aps o trabalho muitas vezes so utilizadas para descanso e o convvio social externo fica limitado a ligaes telefnicas e e-mails no perodo de embarque. E essa questo se torna ainda mais emblemtica pelo fato de estarem a servio da empresa na embarcao 24 horas por dia, imersos nas atividades e no ambiente de trabalho, o que diferencia esse tipo de trabalho dos demais. Como comenta um dos martimos na entrevista, ficam disposio durante todo o perodo na embarcao: So 12 horas de trabalho por dia... obrigatrias... e a gente voluntrio... estamos disposio para qualquer outro tipo de ajuda, de socorro, que seja necessrio. Ento, estamos 24 horas por dia.... Aps 28 dias de trabalho embarcado, pode ocorrer o problema da falta de rendio, muito comentado e aberto discusso pelos martimos durante a pesquisa de campo. Inclusive, na ocasio da reunio de segurana com a tripulao, onde todos estavam presentes, esse ponto foi posto em pauta para reflexo e mudanas pela empresa. Quando essa dobra ocorre, ou seja, quando o martimo precisa substituir outro tripulante em sua funo, a empresa paga por esse perodo de trabalho. Esse pagamento pode se dar atravs de dinheiro ou por dias de folga. Toda a tripulao entrevistada fez referncia a essa questo, mostrando visivelmente a insatisfao nos casos em que precisa render outro profissional. Um dos martimos comenta: Quando a gente vem embarcar, a gente fica com o psicolgico para 28 dias. E quando acontece alguma coisa da gente ter que dobrar dois dias, trs dias a gente j fala Ah, vai ter que trocar...? Mas a gente j sabe que isso no adianta, isso pode acontecer. A gente no tem para onde correr. Na verdade...vamos colocar a 27 dias.