Crimes de maio

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RENATO SANTANA DA REDAÇÃO A criança estava para nascer. Contava nove meses. Ia se chamar Bianca. No útero, o bebê tinha a mão esquerda perto do joelho esquerdo. Normalmente se sabe desses detalhes pela esperada ultrassonografia. Momento de felicidade para qualquer família. Era maio de 2006 e se soube disso por uma necropsia. Mão e joelho lesionados. Na esquina das ruas Campos Sales e Braz Cubas, Vila Mathias, em Santos, a mãe, Ana Paula Gonzaga dos Santos, conversava com Eddie Joey Oliveira num fim de noite do dia 15 de maio de 2006, três dias depois dos atentados do Primeiro Comando da Capital (PCC). Tinham 24 anos. Por volta das 23 horas, um carro escuro precipitou-se na esquina. Quatro pessoas saíram. Encapu- zadas. Armadas. Eddie levou oito tiros. Dois nas costas. Outros dois nas mãos. Três no peito e um na cabeça, por trás. Ana Paula levou cinco. Um na lateral da cabeça. Um na parte posterior da coxa. Outro no braço esquerdo e mais um no abdômen. A morte do bebê foi notificada como “inviabilidade materna”. Eddie tinha passagem por furto, sem condenação. O vigia de um posto de gasolina próximo assistiu ao crime. Foi morto na noite seguinte, depois de dizer para a mãe de uma das vítimas o que viu. O inquérito durou seis meses e seis dias antes de ser arquivado. A alegação é que os autores não foram identifica- dos. Estão impunes. Controvérsias e novas revelações, no entanto, rondam esse e muitos outros crimes de autorias não tão desconhe- cidas nos bastidores de uma guerra particular que teve seu ápice em maio de 2006, como represália aos ataques do PCC. BUSCA POR JUSTIÇA A Defensoria Pública de Santos e São Vicente, detentora de seis inquéritos com nove vítimas, incluindo Ana Paula e Eddie, quer que todos esses casos sejam investigados pela Polícia Federal e julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Também, atra- vés de ações de indenização em nome dos familiares, que o Estado se responsabilize pelas mortes. As medidas serão tomadas entre este mês e maio. Nos dias seguintes aos atentados do PCC, grupos de extermínio, assim denominados pela Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, Defensoria Pública e grupos de direitos humanos, encapu- zados ou não, executaram sumariamente 142 pessoas. Nos bole- tins de ocorrências, as mortes são descritas como homicídio. No Estado, os registros são de 505 civis mortos e 97 feridos entre os dias 12 e 21 de maio. Aqui tomamos como base os dados de um estudo feito pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Encomendado pelo Conectas Direitos Humanos, o estudo parte da análise de laudos cadavéricos e boletins de ocorrências do período da primeira onda de ataques do PCC. A semana sangrenta registrou 564 mortes, entre civis e agentes públicos. Na Baixada Santista, segundo dados da Polícia Civil, entre 12 e 20 de maio de 2006, foram 40 assassinatos por autoria desconhe- cida, além de 38 tentativas de homicídio e duas mortes em confronto policial – a chamada resistência seguida de morte. Guarujá foi o terceiro no Estado em números gerais de óbitos: 29, ante 163 na Capital e 54 em Guarulhos. Há registros de ataques em Cubatão, Praia Grande e São Vicente. Passados quase quatro anos, nenhum desses homicídios foi julgado. A falta de provas é a principal alegação da Polícia Civil e do Ministério Público. A Promotoria de Justiça recomendou o arquivamento dos processos, sem precisar quantos, mesmo depois de reconhecer a existência da ação de grupos de extermínio ou parapoliciais. O Poder Judiciário acompanhou as decisões e bateu o martelo pelo arquivamento. Caso o pedido de investigação federal seja negado, os inquéritos serão encaminhados para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA). O órgão convoca o Estado brasileiro ao banco dos réus. O defensor público responsável pelos processos é o advogado Antônio Maffezoli. Há mais de um ano no caso, milita na área dos direitos humanos. Aponta que a polícia local, o Ministério Público e o Poder Judiciário, que acatou o arquivamento dos processos, não agiram direito. “Há falhas nos inquéritos. Analisamos todos, descrevemos cada caso e apontamos as falhas. São várias contradi- ções e omissões”, diz. Maffezoli justifica com três teses a ação judicial em nome das famílias: responsabilidade direta do Estado pelas mortes, devido aos indícios de participação de policiais nos grupos de extermínio; omissão do governo em garantir a segurança da população naque- les dias de ataques do PCC. Ao contrário, as autoridades políticas disseram que estava tudo sob controle e não coibiram as represá- lias atribuídas a seus policiais: “Várias autoridades reconhecem, inclusive o promotor de Santos”, afirma o defensor. Por fim, que o Estado não fez a devida investigação dos crimes e punição dos culpados, violando o direito dos familiares à verdade e à justiça. SEMELHANÇAS ENTRE OS CRIMES A ação dos grupos de extermínio é homogênea. Foram praticados por pessoas encapuzadas, seja na região ou em outros municípios do Estado. Carros escuros, com vidros filmados, acompanhados de motos. “Na maioria dos inquéritos, uma viatura da PM passou minutos antes no local dos ataques”, frisa Maffezoli. Nos anos 70, os esquadrões da morte operavam da mesma forma. Em baixa velocidade, os policiais olhavam quem estava no bar ou numa esquina. De repente, surgem os encapuzados, em motoci- cletas, os chamados ninjas. Tiros, execuções e recolhimento de cápsulas. Na sequência, o retorno da viatura. “Se a pessoa estiver morta, os policiais não podem mexer. Portanto, sempre alegam que a pessoa está viva porque aí eles tiram do local e alteram a cena, recolhem cartuchos. Estamos falando dos crimes de Santos, mas pelo que sei é assim em qualquer lugar”, afirma o defensor público. A Defensoria e diversas entidades de direitos humanos presu- mem que policiais estejam envolvidos nos crimes. “Ainda não há nenhuma prova cabal. Num dos inquéritos, uma das testemunhas identifica a calça cinza, que muitos encapuzados trajavam, além do coturno da PM”, relata. Houve uma situação em que o encapuzado levantou a touca e uma testemunha reconheceu o policial. Falou para a mãe de uma das vítimas. Na delegacia não se sentiu bem para depor. Para Maffezoli, não se sabe se a testemunha não falou porque o delegado não perguntou ou se foi medo mesmo. ANTECEDENTES CRIMINAIS O RG de Edson Rogério Silva dos Santos, morto com cinco tiros no dia 15 de maio, às 23h20, no Morro da Nova Cintra, foi consultado 20 vezes entre 23h55, minutos depois de ser assassina- do, e 17h22 do dia 16. Nenhum dos policiais que trabalhavam na central naquela noite lembrou-se das pesquisas quando chamado para depor. As informações foram levantadas pela Defensoria Pública. Os policiais que pesquisaram o RG do jovem de 29 anos morto acharam uma condenação por roubo em 1997. Nove anos depois do delito, Edson trabalhava como gari. “Me pergunto como pode um criminoso, traficante ou ladrão, trabalhar embaixo de sol e chuva e ganhar pouco, catando lixo”, questiona o defensor. Tal característica pode ser vista na página dois de todos os inquéritos. Quando a polícia conversava com familiares, seja no local do crime ou no pronto-socorro, a primeira pergunta era sempre essa: tem antecedentes? Maffezoli defende que é o tipo de informação irrelevante: “A polícia não tratou as pessoas como vítimas, mas como suspeitas. Se uma pessoa branca e de classe média cair no Gonzaga, bairro nobre de Santos, é tratada como vítima. Pardo, jovem e da periferia era desde o começo relacionado a dívida de drogas, acerto de contas. Teve inquérito arquivado por isso”, afirma o defensor público. OPINIÃO JUSTICEIRA Para Maffezoli, a Polícia no Brasil sempre existiu, principalmente depois da abolição da escravidão, como forma de conter a camada mais pobre da sociedade. Para ele, justificativa para a extrema tolerância com os crimes de colarinho branco. “Fala-se muito em impunidade. É verdade. Ela existe para crimes fiscais, tributários, desvios de recursos públicos. A cadeia está cheia. De 1995 a 2010, dobrou o número de presos. Sabe quem são? 60% de furto, roubo e pequeno tráfico de drogas. Os grandes traficantes fazem acertos”, define o defensor público. Para ele, os setores que precisam conter a violência dependem dessa opinião justiceira da sociedade. A velha tese de que bandido bom é bandido morto, criada em gestões públicas atreladas ao período da ditadura militar. Maffezoli frisa que identificar os autores dos Crimes de Maio e puni-los é uma tarefa reconhecidamente difícil. Sabe-se de apeli- dos de policiais, envolvidos nos grupos, tais como Bubu e Cama- rão, mas a PM geralmente isola o indivíduo para proteger a corporação. A intenção da Defensoria é a universalidade dos crimes e que o Estado pague pe- lo que fez. Crimes de maio 1ª parte “A responsabilidade das mortes é do Estado. Ele deve investigar quem são os agentes que estão atrás das máscaras”. Débora Maria da Silva, líder da Associação de Mães e Familiares Vítimas da Violência. >>Em 12 de maio de 2006, uma sexta-feira, começava a maior onda de ataques promovi- da por uma facção criminosa. O Primeiro Co- mando da Capital (PCC), em oito dias, articu- lou 373 atentados contra bases da Polícia Mili- tar, agências bancárias, delegacias, viaturas e ônibus. Outras duas séries de ataques volta- ram a acontecer em julho e agosto. >>Os atentados foram uma resposta do PCC a uma tentativa da polícia de isolar seus líderes em presídios de segurança máxima. No total, 765 presos foram removidos. Em o todo Estado, 24 unidades de detenção sofre- ram rebeliões. A população, em pânico, esva- ziou as ruas e o comércio fechou as portas. >>O ano registrou também a famosa frase do então governador Cláudio Lembo, ao co- mentar prováveis razões da crise: “A elite branca precisa tirar a mão do bolso”. Outra marca do período foram as inúmeras tentativas do secretário da Segurança Públi- ca do Estado de São Paulo, Saulo de Castro Abreu Filho, de abafar as ações de retalia- ção da polícia. A mando do secretário, lau- dos necroscópicos de vítimas chegaram a ser retidos. Quando a vida encontra sentido na luta “Não consigo mais viver sem o meu neto” Dona Maria foi atingida pelas perdas logo no primeiro casamento. O marido morreu cedo. Quando se casou novamente, gerando o pai de Ricardo, vendia na Praça dos Andradas as bananas que cultivava no morro e os porcos de seu pequeno chiqueiro. Depois da morte de seu segundo marido, seguiu na batalha até perder as forças. Ricardo foi quem a socorreu. “Ele fazia tudo para mim. A morte dele foi a pior coisa que me aconteceu na vida. Senti mais que a perda do pai dele”, lamenta dona Maria. A dependência era total. O rapaz fazia feira, cuidava dela quando ficava doente, comprava os remédios. Era ele que administrava sua aposentadoria de um salário mínimo. Não gastava um tostão sem antes consultar a avó. Ricardo estudava e jogava futebol. Duas atividades que desempenhava com louvor. Professores aconselhavam o jovem a estudar línguas, dada a vontade de Ricardo em fazer Senai para mexer com maquinários estrangeiros em obras estatais. Isso se o sonho de ser jogador não vingasse. Na manhã seguinte da morte do neto, dona Maria recebeu uma ligação do Santos Futebol Clube informando que o jovem passara numa peneira. “Meu menino não fumava, não bebia ou usava drogas. Era desses negros que gostam de se arrumar, ficar cheiroso e namorar”, brinca. Há pouco tempo, o irmão mais novo de Ricardo, fruto do segundo casamento de seu pai, veio morar com dona Maria junto com a esposa grávida. O menino é menor de idade. Até então, vivia sozinha. Deixou de gastar a aposentadoria inteira com remédios graças a uma médica que lhe arrumou um atestado para pegar os medicamentos de graça. Uma enfermeira recebe sua aposentadoria e compra aquilo que for necessário. Dona Maria se alimenta mal, pois não é tudo que seu estômago aceita. “Eu queria ter ido no lugar dele. Lembro de uma vez que fiz uma cirurgia e ele disse que não sabia o que faria sem mim. Eu é que não sei agora”, afirma. Na casa, Ricardo gostava de subir no alto de um morro do terreno para ver os navios e lamentava não poder jogar bola ali. “Se eu fosse mais nova, ia atrás de quem fez isso com meu neto”, desabafa. A Defensoria Pública tentará, junto com a Justiça Global, que os crimes sejam julgados na esfera federal. Mesmo assim, entrará com ação na Justiça regional. Cronologia Desespero 60% foram na cabeça “Na maioria dos inquéritos, uma viatura da Polícia Militar passou minutos antes no local dos ataques”. 3000 disparos dados em 505 vítimas no mês de maio de 2006 142 é o número de execuções cometidas por autores desconhecidos em todo Estado. ❚❚❚ “O sangue do meu filho borbulha nos meus olhos 24 horas por dia”. O san- gue é de Edson Rogério Silva dos Santos e os olhos são de Débora Maria da Silva, líder da Associação de Mães e Familiares Víti- mas da Violência. Ela aprendeu o significado da palavra impunidade sem abrir o dicionário. Segundo entidades de di- reitos humanos e Defenso- ria Pública, depois da dita- dura militar, os Crimes de Maio representam um dos momentos de maior violên- cia praticada pelo Estado na história recente do País. RESULTADOS DA LUTA Entretanto, a situação está clareando na opinião das Mães de Maio. Os debates e a militância na área dos di- reitos humanos têm dado vi- sibilidade aos Crimes de Maio. Tanto que elas contri- buíram na elaboração do 3ª Programa Nacional de Di- reitos Humanos(PNDH). “Estamos em busca da mo- ral, da ética, da verdade, da democracia. Não podemos continuar sofrendo com a impunidade. Estamos gri- tando, aclamando por justi- ça”, diz Débora. A participa- ção das Mães de Maio na elaboração do PNDH ocor- reu em todas as instâncias da Conferência Nacional dos Direitos Humanos. “A responsabilidade pelas mortes é do Estado. Ele de- ve investigar quem são os agentes que estão atrás das máscaras”, pontua Débora. Ela teme pela própria vida, apesar da coragem em se- guir na luta pelo desarquiva- mento dos processos. As ameaças que recebe não a fazem parar. CRIMES CONTINUAM As mortes causadas por gru- pos encapuzados ainda ocor- rem nas periferias da re- gião, segundo Débora. Rogé- rio Monteiro Ferreira, de 31 anos, é uma dessas vítimas. No dia 17 de março de 2007, num bar da Avenida Jovino de Mello, Zona Noroeste, em Santos, foi morto com quatro tiros. Todos de trás para frente, sendo um na cabeça. Execução. Rogério foi morto acuado entre má- quinas de caça-níquel. Não pôde correr, como os ami- gos, porque o primeiro tiro foi na perna. “Ele era trabalhador, não tinha vícios. Estava toman- do cerveja com os amigos. Mais nada”, lamenta a mãe de Rogério, Rita de Cássia Nogueira. Apenas duas se- manas depois foi chamada para depor no 5º DP, distri- to onde o homicídio foi regis- trado. A tragédia desta mãe ain- da teve outros desdobra- mentos. No dia 5 de maio do mesmo ano, seu outro filho, Alexandro Monteiro Ferrei- ra, estava num bar e presen- ciou a ação de três homens encapuzados. Três mortes. No dia 25 de setembro, Alexandro foi abordado por uma viatura da PM enquan- to ia comprar pão. Levado para o Morro da Nova Cin- tra, foi espancado por seis policiais. Um deles disse que ia matá-lo como fizera com o irmão. Alexandro foi preso na se- quência do espancamento portando um tijolo de maco- nha. Os indícios analisados pela Defensoria apontam para o porte forjado da dro- ga. Condenado, cumpre pe- na. Rita luta para provar a inocência de um filho e que o Estado pague pela morte do outro. 29 mortes foram registradas em Guarujá de 12 a 21 de maio de 2006. A cidade foi a terceira do Estado nesse tipo de ocorrência no período. “Pardo, jovem e da periferia era desde o começo relacionado a dívida de drogas, acerto de contas”. Antônio Maffezoli, defensor público. 40 mortes de homicídio doloso com autoria desconhecida ocorreram na região entre 12 e 20 de maio de 2006. ALBERTO MARQUES O PCC adotou como principal tática atingir bens públicos. Centenas de ônibus foram queimados 564 é a quantidade de pessoas mortas, entre civis e agentes públicos, nos conflitos e ações encapuzadas de maio de 2006. IRANDY RIBAS 20 é a quantidade de consultas feitas no Copom, na noite do assassinato, ao RG de uma das vítimas dos grupos de extermínio . Quem pagará por isto? Depois dos ataques da facção criminosa que se autointitula Primeiro Comando da Capital (PCC), em 12 de maio de 2006, grupos de extermínio, com fortes suspeitas de serem compostos por policiais, levaram o terror à periferia. Quase quatro anos depois, nenhuma morte foi esclarecida Garoto de ouro Num antigo caminho cons- truído por escravos, calça- do por pedras rústicas e disformes, no Morro Santa Maria, o canal portuário da Alemoa, na Zona No- roeste, periferia de Santos, parece seguir seu incansá- vel vaivém de embarca- ções. Do alto, tudo aparen- ta normalidade na parte da cidade onde as mortes cau- sadas por grupos de exter- mínio deixaram rastros de medo e dor. O caminho usado pelos escravos para chegar ao Quilombo do Jabaquara, no século 19, é o mesmo que Ricardo Porto Noronha, de 17 anos, fazia para chegar em casa. Deixou de fazê-lo na noite do dia 17 de maio de 2006 quando foi assassi- nado, com sete tiros, um na têmpora, por encapuzados. Não tinha passagem pela polícia. O rapaz era negro, tal co- mo sua avó, Maria da Pure- za de Araújo Noronha, que depois da morte do neto se viu sozinha no alto do Santa Maria, numa casa simples e repleta de recordações de suas perdas. Entre elas, a foto de Ricardo. Uma vida destroçada e mergulhada na impunidade. Dona Maria tem 88 anos. Sua história começa em Ser- gipe e termina com a morte do neto. Há cerca de 40 anos vive no Santa Maria. Naquela trágica noite, a avó atendeu ao pedido de Ricar- do e cozinhou batatas com linguiça. O jovem se prepa- rava para ir à escola, o Sesi. Estudava lá desde pequeno por conta de Dona Maria. Da casa dá para ver o colé- gio, na Avenida Nossa Se- nhora de Fátima. “Quando era pequeno eu o levava para o Sesi às 7 horas. O acordava às 6 ho- ras, dava banho, arrumava. Quando era liberada mais cedo das roupas (as lavava para terceiros) ia buscar às 17 horas”, conta Dona Ma- ria. Ricardo passou a ser criado pela avó aos 3 anos, quando a mãe do menino o abandonou. O pai consti- tuiu outra família e sumiu do morro. Ambos morre- ram antes do assassinato de Ricardo. A avó virara mãe. O neto, filho. E assim ambos se trata- vam. As batatas com lingüi- ça foram o último mimo da mãe/avó. Duas horas de- pois um amigo de Ricardo subiu correndo o caminho dos escravos para avisar Do- na Maria sobre a morte do neto/filho. “Se eu fosse mais nova ia atrás de quem fez isso com meu neto”. Dona Maria, avó de Ricardo Porto Noronha. A-4 Baixada Santista A TRIBUNA Domingo 25 Domingo 25 A TRIBUNA Baixada Santista A-5 www.atribuna.com.br abril de 2010 abril de 2010 www.atribuna.com.br

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RENATO SANTANA

DA REDAÇÃO

A criança estava para nascer. Contava nove meses. Ia se chamarBianca. No útero, o bebê tinha a mão esquerda perto do joelhoesquerdo. Normalmente se sabe desses detalhes pela esperadaultrassonografia. Momento de felicidade para qualquer família.Era maio de 2006 e se soube disso por uma necropsia. Mão ejoelholesionados.

Na esquina das ruas Campos Sales e Braz Cubas, Vila Mathias,em Santos, a mãe, Ana Paula Gonzaga dos Santos, conversavacom Eddie Joey Oliveira num fim de noite do dia 15 de maio de2006, três dias depois dos atentados do Primeiro Comando daCapital (PCC). Tinham 24 anos. Por volta das 23 horas, um carroescuro precipitou-se na esquina. Quatro pessoas saíram. Encapu-zadas. Armadas. Eddie levou oito tiros. Dois nas costas. Outrosdois nas mãos. Três no peito e um na cabeça, por trás. Ana Paulalevou cinco. Um na lateral da cabeça. Um na parte posterior dacoxa. Outro no braço esquerdo e mais um no abdômen. A mortedo bebê foi notificada como “inviabilidade materna”. Eddie tinhapassagemporfurto, semcondenação.

O vigia de um posto de gasolina próximo assistiu ao crime. Foimorto na noite seguinte, depois de dizer para a mãe de uma dasvítimas o que viu. O inquérito durou seis meses e seis dias antes deser arquivado. A alegação é que os autores não foram identifica-dos. Estão impunes. Controvérsias e novas revelações, no entanto,rondamesse e muitos outros crimesde autorias não tão desconhe-cidas nos bastidores de uma guerra particular que teve seu ápiceemmaiode2006, comorepresáliaaosataquesdoPCC.

BUSCA POR JUSTIÇAA Defensoria Pública de Santos e São Vicente, detentora de seisinquéritos com nove vítimas, incluindo Ana Paula e Eddie, querque todos esses casos sejam investigados pela Polícia Federal ejulgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Também, atra-vés de ações de indenização em nome dos familiares, que o Estadose responsabilize pelas mortes. As medidas serão tomadas entreestemêsemaio.

Nos dias seguintes aos atentados do PCC, grupos de extermínio,assim denominados pela Ouvidoria da Polícia do Estado de SãoPaulo, Defensoria Pública e grupos de direitos humanos, encapu-zados ou não, executaram sumariamente 142 pessoas. Nos bole-tins de ocorrências, as mortes são descritas como homicídio. NoEstado, os registros são de 505 civis mortos e 97 feridos entre osdias12e21demaio.

Aqui tomamos como base os dados de um estudo feito peloLaboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual doRio de Janeiro (UERJ). Encomendado pelo Conectas DireitosHumanos, o estudo parte da análise de laudos cadavéricos eboletins de ocorrências do período da primeira onda de ataquesdo PCC. A semana sangrenta registrou 564 mortes, entre civis eagentespúblicos.

Na Baixada Santista, segundo dados da Polícia Civil, entre 12 e20 de maio de 2006, foram 40 assassinatos por autoria desconhe-cida, além de 38 tentativas de homicídio e duas mortes emconfronto policial – a chamada resistência seguida de morte.Guarujá foi o terceiro no Estado em números gerais de óbitos: 29,ante 163 na Capital e 54 em Guarulhos. Há registros de ataquesem Cubatão, Praia Grande e São Vicente. Passados quase quatroanos, nenhum desses homicídios foi julgado. A falta de provas é aprincipalalegaçãodaPolíciaCiviledoMinistérioPúblico.

A Promotoria de Justiça recomendou o arquivamento dosprocessos, sem precisar quantos, mesmo depois de reconhecer aexistência da ação de grupos de extermínio ou parapoliciais. OPoder Judiciário acompanhou as decisões e bateu o martelo peloarquivamento.

Caso o pedido de investigação federal seja negado, os inquéritosserão encaminhados para a Corte Interamericana de DireitosHumanos, ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA).Oórgãoconvoca oEstadobrasileiro aobancodos réus.

O defensor público responsável pelos processos é o advogadoAntônio Maffezoli. Há mais de um ano no caso, milita na área dosdireitos humanos. Aponta que a polícia local, o Ministério Públicoe o Poder Judiciário, que acatou o arquivamento dos processos,não agiram direito. “Há falhas nos inquéritos. Analisamos todos,descrevemoscadacasoeapontamosasfalhas.Sãováriascontradi-çõeseomissões”,diz.

Maffezoli justifica com três teses a ação judicial em nome dasfamílias: responsabilidade direta do Estado pelas mortes, devidoaos indícios de participação de policiais nos grupos de extermínio;omissãodo governo em garantir a segurança dapopulação naque-les dias de ataques do PCC. Ao contrário, as autoridades políticasdisseram que estava tudo sob controle e não coibiram as represá-lias atribuídas a seus policiais: “Várias autoridades reconhecem,inclusive o promotor de Santos”, afirma o defensor. Por fim, que o

Estado não fez a devida investigação dos crimes e punição dosculpados,violandoodireitodos familiaresàverdadeeà justiça.

SEMELHANÇAS ENTRE OS CRIMESA ação dos grupos de extermínio é homogênea. Foram praticadospor pessoas encapuzadas, seja na região ou em outros municípiosdo Estado. Carros escuros, com vidros filmados, acompanhadosde motos. “Na maioria dos inquéritos, uma viatura da PM passouminutos antes no local dos ataques”, frisa Maffezoli. Nos anos 70,osesquadrõesdamorteoperavamdamesmaforma.

Em baixa velocidade, os policiais olhavam quem estava no barounumaesquina.Derepente,surgemosencapuzados,emmotoci-cletas, os chamados ninjas. Tiros, execuções e recolhimento decápsulas.Nasequência,oretornodaviatura.

“Se a pessoa estiver morta, os policiais não podem mexer.Portanto, sempre alegam que a pessoa está viva porque aí elestiram do local e alteram a cena, recolhem cartuchos. Estamosfalando dos crimes de Santos, mas pelo que sei é assim emqualquer lugar”,afirmaodefensorpúblico.

A Defensoria e diversas entidades de direitos humanos presu-mem que policiais estejam envolvidos nos crimes. “Ainda não hánenhumaprova cabal. Num dos inquéritos, uma das testemunhasidentifica a calça cinza, que muitos encapuzados trajavam, alémdocoturnodaPM”,relata.

Houve uma situação em que o encapuzado levantou a touca euma testemunha reconheceu o policial. Falou para a mãe de umadas vítimas. Na delegacia não se sentiu bem para depor. ParaMaffezoli, não se sabe se a testemunha não falou porque odelegadonão perguntououse foimedomesmo.

ANTECEDENTES CRIMINAISO RG de Edson Rogério Silva dos Santos, morto com cinco tirosno dia 15 de maio, às 23h20, no Morro da Nova Cintra, foiconsultado20 vezesentre23h55,minutos depoisdeserassassina-do, e 17h22 do dia 16. Nenhum dos policiais que trabalhavam nacentral naquela noite lembrou-se das pesquisas quando chamadopara depor. As informações foram levantadas pela DefensoriaPública.

Os policiais que pesquisaram o RG do jovem de 29 anos mortoacharam uma condenação por roubo em 1997. Nove anos depoisdo delito, Edson trabalhava como gari. “Me pergunto como podeum criminoso, traficante ou ladrão, trabalhar embaixo de sol echuva e ganhar pouco, catando lixo”, questiona o defensor. Talcaracterísticapodeser vistanapágina doisdetodosos inquéritos.

Quando a polícia conversava com familiares, seja no local docrime ou no pronto-socorro, a primeira pergunta era sempre essa:tem antecedentes? Maffezoli defende que é o tipo de informaçãoirrelevante: “A polícia não tratou as pessoas como vítimas, mascomo suspeitas. Se uma pessoa branca e de classe média cair noGonzaga, bairro nobre de Santos, é tratada como vítima. Pardo,jovem e da periferia era desde o começo relacionado a dívida dedrogas, acerto de contas. Teve inquérito arquivado por isso”,afirmaodefensorpúblico.

OPINIÃO JUSTICEIRAPara Maffezoli, a Polícia no Brasil sempre existiu, principalmentedepois da abolição da escravidão, como forma de conter a camadamais pobre da sociedade. Para ele, justificativa para a extrematolerânciacomoscrimesdecolarinhobranco.

“Fala-se muito em impunidade. É verdade. Ela existe paracrimes fiscais, tributários, desvios de recursos públicos. A cadeiaestá cheia. De 1995 a 2010, dobrou o número de presos. Sabequem são? 60% de furto, roubo e pequeno tráfico de drogas. Osgrandestraficantes fazem acertos”,defineodefensor público.

Para ele, os setores que precisam conter a violência dependemdessa opinião justiceira da sociedade. A velha tese de que bandidobom é bandido morto, criada em gestões públicas atreladas aoperíododaditaduramilitar.

Maffezoli frisa que identificar os autores dos Crimes de Maio epuni-los é uma tarefa reconhecidamente difícil. Sabe-se de apeli-dos de policiais, envolvidos nos grupos, tais como Bubu e Cama-rão, mas a PM geralmente isola o indivíduo para proteger acorporação. A intenção da Defensoriaé a universalidade dos crimese que o Estado pague pe-loque fez.

Crimes de maio 1ª parte

“A responsabilidadedas mortes é doEstado. Ele deveinvestigar quem sãoos agentes que estãoatrás dasmáscaras”.Débora Maria da Silva, líder da Associaçãode Mães e Familiares Vítimas da Violência.

>>Em 12 de maio de 2006, uma sexta-feira,começavaa maior ondadeataques promovi-dapor umafacção criminosa.O Primeiro Co-mandodaCapital (PCC), emoito dias, articu-lou373 atentados contrabases da Polícia Mili-tar,agênciasbancárias, delegacias, viaturaseônibus. Outrasduas sériesde ataquesvolta-ramaacontecer em julho e agosto.

>>Os atentados foram uma resposta doPCC a uma tentativa da polícia de isolar seuslíderes em presídios de segurança máxima.No total, 765 presos foram removidos. Em otodo Estado, 24 unidades de detenção sofre-

ram rebeliões. A população, em pânico, esva-ziou as ruas e o comércio fechou as portas.

>>O ano registrou também a famosa frasedo então governador Cláudio Lembo, ao co-mentar prováveis razões da crise: “A elitebranca precisa tirar a mão do bolso”.Outra marca do período foram as inúmerastentativas do secretário da Segurança Públi-ca do Estado de São Paulo, Saulo de CastroAbreu Filho, de abafar as ações de retalia-ção da polícia. A mando do secretário, lau-dos necroscópicos de vítimas chegaram aser retidos.

Quando a vida encontra sentido na luta

“Não consigo mais viver sem o meu neto”

Dona Maria foi atingida pelas perdas logo no primeiro casamento. Omarido morreu cedo. Quando se casou novamente, gerando o pai deRicardo, vendia na Praça dos Andradas as bananas que cultivava nomorro e os porcos de seu pequeno chiqueiro. Depois da morte de seusegundo marido, seguiu na batalha até perder as forças. Ricardo foiquem a socorreu.

“Ele fazia tudo para mim. A morte dele foi a pior coisa que me aconteceuna vida. Senti mais que a perda do pai dele”, lamenta dona Maria. Adependência era total. O rapaz fazia feira, cuidava dela quando ficavadoente, comprava os remédios. Era ele que administrava suaaposentadoria de um salário mínimo. Não gastava um tostão sem antesconsultar a avó.Ricardoestudavaejogavafutebol.Duasatividadesquedesempenhavacomlouvor.Professoresaconselhavamojovemaestudarlínguas,dadaavontadedeRicardoemfazerSenaiparamexercommaquináriosestrangeirosemobrasestatais. Issoseosonhodeserjogadornãovingasse.

Namanhãseguintedamortedoneto,donaMariarecebeuumaligaçãodoSantosFutebolClubeinformandoqueojovempassaranumapeneira.“Meu menino não fumava, não bebia ou usava drogas. Era desses negrosque gostam de se arrumar, ficar cheiroso e namorar”, brinca. Há poucotempo, o irmão mais novo de Ricardo, fruto do segundo casamento deseu pai, veio morar com dona Maria junto com a esposa grávida. Omenino é menor de idade. Até então, vivia sozinha.Deixou de gastar a aposentadoria inteira com remédios graças a umamédica que lhe arrumou um atestado para pegar os medicamentos degraça. Uma enfermeira recebe sua aposentadoria e compra aquilo quefor necessário. Dona Maria se alimenta mal, pois não é tudo que seuestômago aceita.“Eu queria ter ido no lugar dele. Lembro de uma vez que fiz uma cirurgiae ele disse que não sabia o que faria sem mim. Eu é que não sei agora”,afirma. Na casa, Ricardo gostava de subir no alto de um morro do terrenopara ver os navios e lamentava não poder jogar bola ali. “Se eu fossemais nova, ia atrás de quem fez isso com meu neto”, desabafa.

A DefensoriaPública

tentará, juntocom a JustiçaGlobal, que oscrimes sejamjulgados na

esfera federal.Mesmo assim,

entrará com açãona Justiçaregional.

Cronologia

Desespero

60%foram

na cabeça

“Na maioria dosinquéritos, umaviatura da PolíciaMilitar passouminutos antes nolocal dos ataques”.

3000disparos dados em 505 vítimas

no mês demaio de 2006

142é o númerode execuçõescometidas porautoresdesconhecidos emtodo Estado.

��� “O sangue do meu filhoborbulha nos meus olhos24 horas por dia”. O san-gue é de Edson RogérioSilva dos Santos e os olhossão de Débora Maria daSilva, líder da Associaçãode Mães e Familiares Víti-mas da Violência. Elaaprendeu o significado dapalavra impunidade semabrir o dicionário.

Segundo entidades de di-reitos humanos e Defenso-ria Pública, depois da dita-dura militar, os Crimes deMaio representam um dosmomentos de maior violên-cia praticada pelo Estadona história recente doPaís.

RESULTADOS DA LUTAEntretanto, a situação estáclareando na opinião dasMães de Maio. Os debates ea militância na área dos di-reitos humanostêm dado vi-sibilidade aos Crimes deMaio. Tanto que elas contri-buíram na elaboração do 3ªPrograma Nacional de Di-reitos Humanos(PNDH).

“Estamosembuscadamo-ral, da ética, da verdade, dademocracia. Não podemoscontinuar sofrendo com aimpunidade. Estamos gri-

tando, aclamando por justi-ça”, diz Débora. A participa-ção das Mães de Maio naelaboração do PNDH ocor-reu em todas as instânciasda Conferência Nacionaldos Direitos Humanos.

“A responsabilidade pelasmortes é do Estado. Ele de-ve investigar quem são osagentes que estão atrás dasmáscaras”, pontua Débora.Ela teme pela própria vida,apesar da coragem em se-guirna luta pelo desarquiva-mento dos processos. Asameaças que recebe não afazem parar.

CRIMES CONTINUAMAs mortes causadas por gru-posencapuzadosaindaocor-rem nas periferias da re-gião,segundoDébora.Rogé-rio Monteiro Ferreira, de 31anos, é uma dessas vítimas.No dia 17 de março de 2007,num bar da Avenida Jovinode Mello, Zona Noroeste,em Santos, foi morto comquatro tiros. Todos de tráspara frente, sendo um nacabeça. Execução. Rogériofoi morto acuado entre má-quinas de caça-níquel. Nãopôde correr, como os ami-gos, porque o primeiro tirofoi na perna.

“Ele era trabalhador, nãotinha vícios. Estava toman-do cerveja com os amigos.Mais nada”, lamenta a mãede Rogério, Rita de CássiaNogueira. Apenas duas se-manas depois foi chamadapara depor no 5º DP, distri-toondeohomicídiofoiregis-trado.

A tragédia desta mãe ain-da teve outros desdobra-mentos. No dia 5 de maio domesmo ano, seu outro filho,Alexandro Monteiro Ferrei-ra, estava num bar e presen-ciou a ação de três homensencapuzados. Três mortes.

No dia 25 de setembro,Alexandro foi abordado poruma viatura da PM enquan-to ia comprar pão. Levadopara o Morro da Nova Cin-tra, foi espancado por seispoliciais. Um deles disseque ia matá-lo como fizeracomo irmão.

Alexandro foi preso na se-quência do espancamentoportando umtijolo de maco-nha. Os indícios analisadospela Defensoria apontampara o porte forjado da dro-ga. Condenado, cumpre pe-na. Rita luta para provar ainocência de um filho e queo Estado pague pela mortedo outro.

29mortesforam registradas emGuarujá de 12 a 21 demaio de 2006. A cidadefoi a terceira do Estadonesse tipo deocorrência no período.

“Pardo, jovem e daperiferia era desde ocomeço relacionado adívida de drogas,acerto de contas”.

Antônio Maffezoli, defensor público.

40mortes de

homicídio dolosocom autoria desconhecidaocorreram na região entre

12 e 20 de maio de 2006.

ALBE

RTO

MAR

QU

ES

O PCC adotou como principal tática atingir bens públicos. Centenas de ônibus foram queimados

564é a quantidadede pessoas mortas, entrecivis e agentes públicos,nos conflitos e açõesencapuzadas de maio de2006.

IRANDY RIBAS

20é a quantidadede consultas feitas noCopom, na noite doassassinato, ao RG deuma das vítimasdos grupos deextermínio .

Quem pagará por isto?Depois dos ataques da facção criminosa que se autointitula Primeiro Comando da Capital (PCC), em 12 de maio de 2006, grupos de extermínio, comfortes suspeitas de serem compostos por policiais, levaram o terror à periferia. Quase quatro anos depois, nenhuma morte foi esclarecida

Garoto de ouro

Num antigo caminho cons-truído por escravos, calça-do por pedras rústicas edisformes, no Morro SantaMaria, o canal portuárioda Alemoa, na Zona No-roeste, periferia de Santos,parece seguir seu incansá-vel vaivém de embarca-ções. Do alto, tudo aparen-ta normalidade na parte dacidade onde as mortes cau-sadas por grupos de exter-mínio deixaram rastros demedo e dor.

O caminho usado pelosescravos para chegar aoQuilombo do Jabaquara,no século 19, é o mesmo queRicardo Porto Noronha, de

17 anos, fazia para chegarem casa. Deixou de fazê-lona noite do dia 17 de maiode 2006 quando foi assassi-nado, com sete tiros, um natêmpora, por encapuzados.Não tinha passagem pelapolícia.

O rapaz era negro, tal co-mo sua avó, Maria da Pure-za de Araújo Noronha, quedepois da morte do neto seviu sozinha no alto do SantaMaria, numa casa simples erepleta de recordações desuas perdas. Entre elas, afoto de Ricardo. Uma vidadestroçada e mergulhadanaimpunidade.

Dona Maria tem 88 anos.

Sua história começa em Ser-gipe e termina com a mortedo neto. Há cerca de 40anos vive no Santa Maria.Naquela trágica noite, a avóatendeu ao pedido de Ricar-do e cozinhou batatas comlinguiça. O jovem se prepa-rava para ir à escola, o Sesi.Estudava lá desde pequenopor conta de Dona Maria.Da casa dá para ver o colé-gio, na Avenida Nossa Se-nhora de Fátima.

“Quando era pequeno euo levava para o Sesi às 7horas. O acordava às 6 ho-ras, dava banho, arrumava.Quando era liberada maiscedo das roupas (as lavava

para terceiros) ia buscar às17 horas”, conta Dona Ma-ria. Ricardo passou a sercriado pela avó aos 3 anos,quando a mãe do menino oabandonou. O pai consti-tuiu outra família e sumiudo morro. Ambos morre-ram antes do assassinatode Ricardo.

A avó virara mãe. O neto,filho.Eassimambossetrata-vam. As batatas com lingüi-ça foram o último mimo damãe/avó. Duas horas de-pois um amigo de Ricardosubiu correndo o caminhodos escravos para avisar Do-na Maria sobre a morte doneto/filho.

“Se eu fosse mais nova iaatrás de quem fez isso commeu neto”.Dona Maria, avó de Ricardo Porto Noronha.

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