HORRIBLE HISTORIES: DISCURSO E REPRESENTAÇÕES … · A perspectiva pós-estruturalista e...
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HORRIBLE HISTORIES: DISCURSO E REPRESENTAÇÕES EUROCÊNTRICAS
Luiz Gustavo de Paris Ferreira (ULBRA)1
O presente artigo apresenta uma análise do discurso eurocêntrico presente na série de
televisão “Horrible Histories”; no Brasil, intitulada “Deu a louca na História”. Através desta
análise, busco responder a seguinte questão: como o programa, explícita e implicitamente,
produz uma historiografia marcada por uma visão eurocêntrica? É importante ressaltar que as
análises aqui apresentadas fazem parte de uma pesquisa mais ampla sobre esse programa
televisivo na perspectiva dos Estudos Culturais em Educação. Por uma questão de
delimitação, contudo, neste artigo, serão analisados apenas dois quadros do programa.
Este trabalho será dividido em três partes. Inicialmente, será apresentada uma breve
síntese sobre os conceitos teóricos que embasam as análises: discurso, representação
e eurocentrismo. Em seguida, serão analisados dois quadros da série quanto à presença de
discursos e representações eurocêntricas. Por fim, serão tecidas algumas considerações finais.
Deu a louca na História2 é uma série de programas televisivos que apresenta
pequenas passagens históricas através da dramatização, com um viés humorístico. Baseado na
coleção de livros Horrible Histories, no Brasil, foi lançada com o nome Saber Horrível.
Produzido pela Produtora Lion Television em parceria com a emissora inglesa BBC, o
programa apresenta um formato de 30 minutos, aproximadamente. Quadros (sketches)
dramatizam, através da comédia, passagens históricas que abrangem desde o período pré-
histórico até a Segunda Guerra Mundial, passando pelas Idade Média e Moderna. Focada,
inicialmente, em um público pré-adolescente, a série foi premiada em diferentes
oportunidades. No Reino Unido, por exemplo, o programa Horrible Histories ganhou o
1 Mestre em Educação – Estudos Culturais. E-mail: [email protected] 2 Informações disponíveis em Wikipédia (2016a).
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Broadcast Awards em 20103, como melhor programa infantil, e o Children's BAFTA, em
2010 e 2011.
Antes de continuar descrevendo o programa de TV, uma breve apresentação da
coleção de livros Saber Horrível é fundamental para entender como a série se originou. A
Saber Horrível4 é composta por livros ilustrados produzidos para despertar o interesse do
público infanto-juvenil por temas relacionados à História, Geografia e Ciências. As obras
literárias são de autoria de William Terence, popularmente conhecido como “Terry Deary”.
Aos 69 anos, o escritor inglês possui mais de 200 livros publicados. O seu trabalho atingiu a
marca de mais de 25 milhões de cópias vendidas, em mais de 40 idiomas, além de receber
prêmios como o Outstanding Children's Non-Fiction Author Of The 20th Century, pela
revista Books for Keeps, por exemplo. Os primeiros livros, The Terrible Tudors e The
Awesome Egyptians foram publicados originalmente em junho de 1993, na Inglaterra. O
sucesso da publicação, representado pelos números de venda e prêmios citados, criaram um
ambiente favorável para a expansão da marca, impulsionando a comercialização de produtos
relacionados aos livros e, posteriormente, ao programa de televisão5. Canecas, games,
adesivos e uma série de itens foram disponibilizados para o consumo, inicialmente, na
Inglaterra, todos identificados com a marca Horrible Histories.
Na televisão, a série começou a ser exibida, no Reino Unido, em 2009. Com cinco
temporadas e 65 episódios, o programa foi produzido para a CBBC (Children`s BBC),
emissora de televisão inglesa especializada em conteúdo educativo para crianças, ligada à
estatal BBC. Na televisão brasileira, o programa estreou no canal aberto TV Cultura em 2011.
Hoje, é exibido no canal aberto TV Escola6, além de estar disponível na Internet, no endereço
eletrônico da emissora referida e na plataforma Youtube. A sua classificação indicativa na
televisão aberta brasileira é livre.
3 Informações disponíveis em TV Cultura ([s.d.]). 4 Informações disponíveis em Wikipédia (2015a). 5 Informações disponíveis em Preston (2013). 6 Informações disponíveis em Brasil (2011).
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DISCURSO, REPRESENTAÇÃO E EUROCENTRISMO
Michael Foucault, a partir dos seus estudos arqueológicos e genealógicos, colocou em
questão os processos de constituição e construção de diferentes saberes que, anteriormente,
eram tomados como verdades totalizadoras e universalizantes, marcadas por uma
racionalidade científica que as sintetizava e solidificava. Neste trabalho, não pretendo
desenvolver um estudo classificado como foucaultiano. Contudo, busco, através de diferentes
autores inspirados em Foucault e em outros autores pós-estruturalistas, tensionar visões
essencialistas de relatos históricos. Nesta sessão, exponho o que entendo por discurso e como
este conceito opera na produção de saberes, constituindo verdades que atuam na formação dos
sujeitos.
Na Arqueologia do saber, Foucault define o discurso como um conhecimento
constituído que define uma forma de ver o mundo e interpretar os seus diferentes aspectos. O
discurso é composto por um conjunto de enunciados que se apoiam em uma mesma formação
discursiva, esta definida, como resume Fairclough (2001), como as regras e normas que
compõem o saber discursivo e ligadas aos elementos que constituem a própria formação.
O enunciado, por sua vez, pode ser definido como o fragmento de um discurso (de
uma visão sobre o mundo). A materialização de um enunciado ocorre através da enunciação,
que diz respeito à forma como um enunciado se materializa, por exemplo, através de imagens,
textos ou falas. A partir da enunciação, posições de sujeito são estabelecidas, interpelando os
indivíduos a assumirem determinados papéis ou posições de sujeito. Norman Fairclough
(2001) afirma que o conceito de discurso e as suas respectivas regras (formação discursiva)
formam o que Foucault chamou de “episteme”, um conceito ligado à primeira fase dos
estudos de Foucault, chamados de estudos arqueológicos.
Na segunda fase dos seus estudos (a fase genealógica), Foucault amplia a ideia de
formação dos sujeitos para além do discurso, inserindo as práticas não discursivas nesse
processo; agora, rituais ou espaços, por exemplo, também são analisados como tecnologias
capazes de operar para produzir os sujeitos e as suas respectivas condutas e visões de mundo.
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Nessa fase, Foucault aprofunda estudos sobre as relações de poder implicadas nas tecnologias
e nos dispositivos que produzem subjetividades.
Segundo Fairclough (2001), o poder, em Foucault, pode ser entendido como uma força
produtiva, não violenta, que produz realidades, induz ao prazer, forma saberes e também
produz discursos. Tal como uma rede produtiva, atravessa todo o corpo social, através de
instituições, por exemplo, que implicitamente moldam e instrumentalizam os sujeitos, a partir
de microtécnicas que estabelecem uma relação dual: poder e conhecimento. Em outros
termos, de um lado, as técnicas se desenvolvem na base do conhecimento; por outro, as
técnicas estão relacionadas ao exercício do poder no processo de aquisição de conhecimento.
Assim, nessa perspectiva, por exemplo, é possível observar a mídia como promotora de
diferentes conhecimentos e simultaneamente como uma instância que se constitui como
objeto de saber.
A perspectiva pós-estruturalista e pós-moderna de Michael Foucault, articulada por
Stuart Hall (1997) ao campo dos Estudos Culturais, permitiu identificar um regime de disputa
na legitimação dessas “visões sobre o mundo”, em constante produção dentro da cultura,
através dos códigos (saberes) e dos significantes (signos) acionados na construção das
representações. As enunciações que compõem um discurso, como mostrou Foucault, estão
investidas de “poder”, na medida em que são capazes de produzir subjetividades e constituir
identidades. Uma enunciação é uma manifestação de “poder”, no sentido produtivo e não
repressivo. O poder do discurso reside no fato de ser capaz de produzir saberes que irão
legitimar uma forma específica de interpretar o mundo e de se conduzir perante ele. Segundo
Hall (1997), a importância de Foucault para as discussões sobre linguagem e identidade reside
justamente na aproximação que sua teorização realiza entre linguagem e poder, permitindo
compreender que a formação dos sujeitos e das suas identidades está atrelada à produção dos
saberes (discursos e representações) na cultura. Em síntese, as representações acionam
diferentes discursos para a sua produção, constituindo formas de materializar diferentes visões
de mundo.
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O objeto de estudo deste artigo, o programa “Deu a louca na História”, se constitui em
produto midiático com características de uma produção historiográfica. Sendo assim, é
fundamental abordar alguns conceitos sobre a constituição do saber História, enquadrando-o
também como uma produção discursiva. Para tanto, ancoro-me em algumas ideias do
historiador inglês Keith Jenkins (2007), que começa a definir este campo de conhecimento a
partir da distinção e dissociação entre “história” e “passado”:
Há até pouco tempo, os historiadores estavam convictos que estudavam os fatos, que
o passado, no singular e determinado por “leis necessárias”, estava lá atrás bem
organizado, à espera de ser por ele revelado em sua suposta “essência” e em sua
“totalidade”. Havíamos aprendido que o “real”, o “concreto” – representado à nossa
revelia como coisa – devia ser interpretado com objetividade e neutralidade, isto é,
sem a intervenção subjetiva do narrador (JENKINS, 2007, p. 9).
Para o autor, a história não é o passado em sua forma pura e cristalina. Jenkins chama
atenção para a participação e a intervenção dos próprios historiadores em suas respectivas
pesquisas, que pode ser direta (manifesta pelos interesses, crenças ou visão de mundo de
quem pesquisa) ou indireta (manifesta pelos recursos linguísticos selecionados, por exemplo).
Em poucos termos, para o autor, a história é um constructo linguístico intertextual. Sendo
assim, um mesmo objeto pode ter várias interpretações, traduções ou formas de ser observado
(JENKINS, 2007). Em seus próprios termos:
A história é um discurso cambiante e problemático, tendo como pretexto um aspecto
do mundo, o passado, que é produzido por um grupo de trabalhadores cuja cabeça
está no presente (e que, em nossa cultura, são na imensa maioria historiadores
assalariados), que tocam seu ofício de maneiras reconhecíveis uns para os outros
(maneiras que estão posicionadas em termos epistemológicos, metodológicos,
ideológicos e práticos) e cujos produtos, uma vez colocados em circulação, veem-se
sujeitos a uma série de usos e abusos que são teoricamente infinitos, mas que na
realidade correspondem a uma gama de bases de poder que existem naquele
determinado momento e que estruturam e distribuem ao longo de um espectro do
tipo dominantes/marginais os significados das histórias produzidas (JENKINS,
2007, p.52).
Alinhado a esta perspectiva discursiva, o intelectual palestino Edward Said, no
cultuado livro Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, configura-se em uma
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grande inspiração para a minha pesquisa. A sua importância reside no conceito de “invenção”,
utilizado para abordar o processo de representação do “Outro”. Said investiga como o Oriente
foi inventado a partir da produção de um saber intitulado “Orientalismo”, constituído e
acionado, em um primeiro momento, por uma visão eurocêntrica.
A partir da literatura, Said (2007) mostra como o oriente era imaginado pelo europeu
como um lugar “de episódios romanescos, seres exóticos, lembranças e paisagens encantadas,
experiências extraordinárias” (p.27). Entretanto, a literatura foi apenas um dos dispositivos
que, ao longo do tempo, foram constituindo um saber sobre o oriente. Outras instâncias, tais
como a política, a economia e a produção acadêmica também foram se alinhando para a
produção de uma visão de mundo utilizada para interpretar, definir e regular o que se chamou
de “Oriente”.
O Orientalismo é um estilo de pensamento baseado numa distinção ontológica e
epistemológica feita entre o “Oriente” e (na maior parte do tempo) o “Ocidente”.
Assim, um grande número de escritores, entre os quais poetas, romancistas,
filósofos, teóricos políticos, economistas e administradores imperiais têm aceitado a
distinção básica entre o Leste e o Oeste como ponto de partida para teorias
elaboradas, epopeias, romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do
Oriente, seus povos, costumes, “mentalidade”, destino e assim por diante (SAID,
2007, p. 29).
O autor busca, na concepção genealógica de Michael Foucault sobre discurso e poder,
fundamento para embasar a sua tese de que o espaço “Oriente” foi inventado, através da
construção de um saber chamado de “Orientalismo”:
Minha argumentação é que, sem examinar o Orientalismo como um discurso, não se
pode compreender a disciplina extremamente sistemática por meio da qual a cultura
europeia foi capaz de manejar – e até produzir – o Oriente política, sociológica,
militar, ideológica, científica e imaginativamente durante o período do pós-
Iluminismo (SAID,2007, p.29).
Os efeitos desta invenção se configuram em um processo de dominação que tem como
maior expressão, primeiramente, a ascensão dos impérios Britânico e Francês, ganhando força
com a projeção dos Estados Unidos como maior potência (bélica, cultural e econômica) do
mundo, após a segunda Guerra Mundial. Desta forma, o autor defende que, ao observarmos a
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história, no caso, a história da relação entre Oriente e Ocidente, devemos analisar as
configurações de poder que a constituem. Para Said (2007), trata-se de uma relação de poder,
de dominação, de graus variáveis de uma hegemonia bastante complexa. O conceito de
hegemonia, para o autor, configura-se a partir das ideias do pensador italiano Antonio
Gramsci:
Numa sociedade não totalitária, portanto, certas formas culturais predominam sobre
outras assim como certas ideias são mais influentes que outras, a forma dessa
liderança cultural é o que Gramsci identificou como hegemonia, um conceito
indispensável para qualquer compreensão da vida cultural no Ocidente industrial
(SAID, 2007, p.34).
As reflexões de Edward Said nos ajudam a desnaturalizar algumas concepções de
mundo que foram construídas ao longo da história, marcadas por interesses de dominação e
produções discursivas. Os discursos sobre uma determinada região, povo ou cultura - no caso
o Orientalismo - revelam uma intencionalidade calcada em interesses no presente. A sua
eficácia na produção de identidades e conceitos revela um dos seus aspectos mais cruéis, na
minha opinião: o reducionismo, o qual expressa uma intencionalidade pejorativa que pode ser
classificada a partir do estereótipo. Said (2007) alerta que o estereótipo é frequentemente
utilizado como estratégia de captação de público, por exemplo, pelas mídias:
Especialistas políticos combativos e deploravelmente ignorantes, cuja experiência de
mundo se limita a livros superficiais que circulam por Washington sobre
“terrorismo” e liberalismo, ou sobre fundamentalismo islâmico e a política externa
americana, ou sobre o fim da história, tudo isso competindo pela atenção do público
e sem menor preocupação com confiabilidade ou reflexão ou autêntico
conhecimento. O que conta é a eficiência e a engenhosidade do texto e, por assim
dizer, quantos irão morder a isca. O pior aspecto desse material essencializante é que
o sofrimento humano, em toda a sua densidade, é eclipsado. A memória, e com ela o
passado histórico, é eliminada, como na conhecida e desdenhosamente insolente
expressão inglesa “You`re history” [você já era] (p.17-18).
Em Cultura e Imperialismo, Edward Said (1999) amplia suas análises anteriores,
agora, na medida em que incorpora estudos sobre outras regiões e territórios ao redor do
mundo, além do Oriente, sob uma perspectiva eurocêntrica. Nesta obra, encontro outro
aspecto que considero valioso para este artigo, tratando da influência do “presente” na
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construção do “passado”, através da produção historiográfica. Aqui, Said (1999) acredita que
não há nenhuma maneira de isolar a ideia de “passado” da influência das ideias e interesses de
um “presente”, ou seja, ambos se modelam mutuamente:
A invocação do passado constitui uma das estratégias mais comuns nas
interpretações do presente. O que inspira tais apelos não é apenas a divergência
quanto ao que ocorreu no passado e o que teria sido esse passado, mas também a
incerteza se o passado é de fato passado, morto e enterrado, ou se persiste, mesmo
que talvez sob outras formas. Esse problema alimenta discussões de toda espécie —
acerca de influências, responsabilidades e julgamentos, sobre realidades presentes e
prioridades futuras (p.33).
As contribuições de Edward Said para o meu trabalho podem ser resumidas na
passagem em que afirma que “os textos precisam ser lidos como textos produzidos no
domínio histórico e que nele vivem” (SAID, 2007, p.26). Por isso, é fundamental
desnaturalizar todo o conhecimento que adquirimos e, consequentemente, contextualizar a sua
produção. A disciplina História e o seu processo de produção, a historiografia, são uma
prática discursiva regulada por instituições que estabelecem relações de poder, que irão
produzir formas de ver mundo (discursos).
EUROCENTRISMO EM HORRIBLE HISTORIES: ANÁLISES
Tanto o europeu quanto outros povos e civilizações são representados, no programa,
predominantemente, como realizadores de práticas culturais que, nos dias de hoje e fora do
contexto mais amplo no qual eram realizadas, parecem bizarras. Em outros termos, Horrible
Histories tem uma predileção por produzir o bizarro a partir de informações históricas
descontextualizadas e inseridas no cotidiano do sujeito contemporâneo. Afinal, o bizarro é
risível e também se presta como um excelente conteúdo para atrair audiências em programas
televisivos de entretenimento. Assim, mais do que uma oposição entre europeus e não-
europeus, há aqui um contraponto entre o passado e o presente. Aquele, representado como
uma época primitiva, violenta, bizarra, exótica e dominada pela ignorância. Este, representado
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não pelo conteúdo dos quadros, mas pela forma selecionada para veicular os conteúdos:
shows, musicais, quiz, concursos, peças de publicidade entre vários outros.
Uma grande parte das informações históricas selecionadas pelo programa é veiculada
através de paródias. No primeiro episódio da terceira temporada, por exemplo, um sketch é
produzido em alusão ao programa culinário de televisão “MasterChef”. O formato do
programa é composto por jovens profissionais da gastronomia que competem pela melhor
avaliação e aprovação de um júri, formado por renomados chefes de cozinha.
Já em Horrible Histories, os competidores são personagens representando civilizações
do passado; no sketch aqui analisado, por exemplo, há um asteca como concorrente. O quadro
explora o choque entre o passado e o presente, provocando um estranhamento através dos
hábitos e preferências alimentares dessa civilização já extinta. O hábito, por exemplo, de
comer grilo, praticado pelos astecas, é colocado como algo estranho e nojento no contexto
atual, especialmente para uma audiência que tem como base a cultura gastronômica europeia.
O cardápio sugerido pelo asteca provoca asco nos apresentadores, antecipando o sentimento
que, provavelmente, será despertado entre a audiência infanto-juvenil europeia, visada pelo
programa. Cabe ressaltar que, além do choque entre o passado e o presente, aqui também está
em questão um choque entre culturas do presente, pois o hábito de se alimentar de insetos
ainda existe em alguns países na atualidade, como no próprio México, mas também na China
e na Tailândia, por exemplo.
Figura 01 – Masterchef histórico
Fonte: Editada pelo autor. Extraída do primeiro programa da terceira temporada (2011).
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Ao mesmo tempo em que constroem uma visão do passado como um tempo bizarro e
repleto de atrocidades, as paródias com base em programas televisivos da atualidade fazem
com que o presente seja definido pelo passado que lhe antecede: se antes havia predomínio do
violento, do bizarro e do exótico, agora provavelmente vivemos em uma época mais evoluída,
mais racional e menos exótica. Nesse contexto, o passado europeu não aparece como mais
evoluído do que o passado de outras civilizações. Pelo contrário, abundam quadros que
narram atrocidades cometidas pelos espanhóis e pelos próprios ingleses, para citar alguns
exemplos, juntamente com quadros que abordam o genocídio praticado pelos incas, astecas,
egípcios e outros. Aparentemente, portanto, o programa Horrible Histories estaria isento de
eurocentrismo, uma vez que é “democrático” na seleção de bizarrices europeias e não-
europeias.
Entretanto, do ponto de vista da recepção desses conteúdos na atualidade, há uma
grande diferença entre países economicamente bem-sucedidos como a Grã-Bretanha e a
Espanha, de um lado, e países pobres como o México, o Peru e o Egito, de outro. Os
primeiros fazem parte de um grupo sociocultural hegemônico tanto em termos econômicos
como culturais, ao passo que os segundos são periféricos na ordem mundial globalizada. Há
um desbalanceamento, portanto, nas relações de poder entre essas nações, o que torna
diferente rir do passado da Inglaterra e rir do passado do México, por exemplo. O efeito
causado pela satirização do passado de nações periféricas, no presente, pode atuar como
reforço de estereótipos e preconceitos, ao passo que nações ricas estão em condições mais
confortáveis para rirem de seus próprios passados, uma vez que o seu presente atestaria uma
evolução ou superação desse passado.
Como exemplo, pode-se citar um quadro da segunda temporada inserido no episódio
número quatro. Nele, o tema abordado é o conhecimento médico-científico na Idade Média.
Neste quadro, é retratada a figura do médico europeu como um sujeito primitivo e ignorante
em comparação com um médico árabe. O sketch mostra uma paródia dos programas de
televisão sobre o universo médico-hospitalar, similar à série “E.R.”, no Brasil, “Plantão
Médico”. Em um hospital, semelhante ao que encontramos no presente, um paciente recebe a
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visita de médicos do passado, mais precisamente, da Idade Média, os quais utilizam seus
conhecimentos pretéritos para tratar pacientes do presente. O primeiro, um médico árabe do
século XII, receita produtos medicinais a base de ervas manualmente processadas a um
paciente, com o que obtém sucesso. O médico oriental também ressalta o caráter preventivo
de uma correta alimentação, configurada em uma dieta equilibrada, o que o faz parecer
alinhado com conhecimentos ou crenças sobre saúde na atualidade.
Já o segundo médico medieval é um europeu. Diferente do árabe, este opta por
métodos mais extremos ao olhar contemporâneo, como a amputação. Esse método é escolhido
sem que sejam consideradas outras possibilidades menos invasivas. A forma incongruente
(em relação ao que se acredita hoje como solução médica) como é retratada a cura através da
mutilação é um dos recursos humorísticos que torna aquele quadro risível, pois ressalta a
disparidade do passado frente à realidade da medicina praticada hoje na Europa, uma das mais
avançadas. Os sistemas de saúde que garantem acesso ao tratamento da população em geral,
por exemplo, são bastante distintos se observarmos, hoje, países como Inglaterra e Síria. Na
Inglaterra, o acesso à saúde básica é notoriamente mais abrangente do que em países de etnia
árabe, localizados na África e no Oriente Médio, com exceção, talvez, de alguns países ricos
como a Arábia Saudita. No caso da Síria, país em guerra civil, as condições são caóticas,
incluindo as necessidades básicas como a alimentação, por exemplo. O pouco disponível na
área médica chega através de ajuda humanitária enviada, em grande parte, por países como a
Inglaterra. Será que hoje, em países devastados por conflitos bélicos como a Síria, por
exemplo, a amputação sumária seria risível?
Figura 02 – Plantão Médico histórico
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Fonte: Editada pelo autor. Extraída do quarto programa da segunda temporada, exibido em 2010.
A partir destas análises, é possível observar que o humor se configura com peça chave
para este processo de produção historiográfica que reforça uma visão de mundo marcada pelo
eurocentrismo, colocando, explicita e implicitamente, o atual modelo europeu de civilização e
os seus respectivos sistemas simbólicos como hegemônicos. O efeito humorístico se completa
através do contraste entre o “passado” estereotipado e o “presente” idealizado. O caráter
risível dessas representações estereotipadas do passado só é possível através da idealização de
um presente em oposição ao estereótipo produzido em relação ao passado. A condição
favorável e confortável para o riso dessa audiência (inicialmente “europeia” ou
ocidentalizada) se traduz na crença de que há uma ruptura e uma desconexão com este
passado no presente. O passado, em especial o europeu, não se configura como um modelo de
crenças e valores para o presente. Deste modo, o contraste entre este passado e o presente nos
oferece uma interpretação possível, cuja ideia central é a de um presente mais evoluído, mais
pacífico, menos ganancioso, mais esclarecido e “normal” (em oposição ao bizarro e ao
exótico).
A escolha dos produtores da série por manifestações explicita ou implícita desta visão
eurocêntrica se configura, na minha interpretação, através de diferentes relações de poder
constituídas no presente. No caso do “não europeu”, o programa parece levar em conta as
relações de poder entre as nações, povos e civilizações na atualidade, buscando evitar
conflitos, sejam eles étnicos, religiosos, políticos, econômicos ou sociais. Isso justifica a
escolha dos produtores da série em não ridicularizar o passado de civilizações não-ocidentais
da atualidade, como a China, por exemplo; diferente da Asteca, já extinta. Discursos de
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tolerância, antixenofobismo e o politicamente correto, na minha interpretação, também
contribuem para a seletividade dos temas que serão abordados nesta produção historiográfica
e humorística.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nas reflexões de Edward Said sobre o orientalismo e o pensamento
imperialista, é possível concluir que o programa seleciona e produz (inventa) representações
que manifestam, de forma sutil, uma visão de mundo marcada pelo eurocentrismo. O discurso
eurocêntrico se constitui, explicitamente, através do rebaixamento do “Outro”, como na
estereotipia, por exemplo. De forma implícita, este discurso se materializa através de
representações que ridicularizam a si mesmo, a partir da crença de que hoje, no presente, o
sujeito que ri é superior ou mais evoluído em relação ao sujeito de quem se ri. Deste modo, é
através do riso que o discurso eurocêntrico encontra uma forma de se manifestar e de se
legitimar, colocando as crenças e os valores europeus como modelo para interpretar o passado
e constituir o presente.
Como já foi referido, na geopolítica da contemporaneidade, há um desbalanceamento
muito forte nas relações de poder entre nações europeias e alguns países da América do Sul,
África e Oriente Médio, por exemplo. Esse fato torna diferente o ato de rir do passado
britânico em contraste com o passado mexicano, por exemplo. O efeito causado pela
satirização do passado de nações periféricas, no presente, pode ser o reforço de estereótipos e
preconceitos. Cito como exemplos estereótipos como “o sul-americano atrasado”, “o africano
supersticioso”, “o árabe exótico”, entre outros. Deste modo, o presente europeu se mantém, de
certa forma, como modelo hegemônico conforme as representações produzidas por Horrible
Histories, uma vez que as atrocidades e bizarrices do passado teriam sido supostamente
superadas.
Assim, sutilmente, o programa reforça a ideia de superioridade (hegemonia)
econômica e cultural da Europa, principal característica de uma visão eurocêntrica. O
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resultado da combinação entre a produção historiográfica com tom humorístico, nesse caso, é
o reforço de uma hegemonia e de um protagonismo europeu (ocidental), através do contraste
entre um passado “atroz e perverso” aparentemente superado por um presente “iluminado e
justo” no “Velho Continente”, perspectiva que torna o riso confortável e prazeroso.
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